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DOSSIÊ

apresentação
ESTRATÉGIAS DE REPRODUÇÃO DE “ELITES”,
TRANSFORMAÇÕES MORFOLÓGICAS E RECONFIGURAÇÕES
DOS ESPAÇOS DE PODER

STRATEGIES OF “ELITES” REPRODUCTION,


MORPHOLOGICAL TRANSFORMATIONS AND
RECONFIGURATION OF SPACE OF POWER

Igor Gastal Grill*


Rodrigo da Rosa Bordignon**

Em tempos críticos – de questionamen- social, econômica e política. No entanto,


tos e embates acerca dos parâmetros que pouca ênfase tem sido dada às tentativas
pautam valores e relações sociais, regras e de perenização empregadas nas lutas defla-
condutas institucionais – é particularmente gradas tanto no espaço social mais amplo
oportuno refletir sobre fenômenos que de- dos países – com a ativação de modalidades
notam (re)composições sociais. Os estudos coletivas de gestão das mudanças toleradas
sobre “elites” têm abordado com excelência (adaptações, reconversões, alianças, etc.) –
os contextos de “crises” que favorecem a como nos planos mais específicos, de pre-
(ou são favorecidos por) redefinições de re- servação de patrimônios sociais, econômi-
cursos, linguagens e repertórios legítimos cos, políticos e simbólicos, ativados pelos
ao exercício do poder, ou conjunturas fluí- grupos dominantes. Consideração que ga-
das de transição entre modos de dominação nha maior relevo quando percebemos que a

* Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia (DESOC) e do Programa de Pós-Graduação em


Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão – UFMA – (São Luís/MA/BR). E-mail: igorgrill@
terra.com.br
** Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em So-
ciologia e Ciência Política – UFSC – (Florianópolis/SC/Brasil). E-mail: rrbordignon@hotmail.com

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ascensão econômica e/ou política de agen- de posições e notabilidades, em variados/
tes integrantes de certos segmentos – com imbricados domínios sociais, econômicos,
posições sociais de origem, sociodiceias e políticos e culturais; e as bases disposicio-
posicionamentos ideológicos que conferem nais (apetências ou repulsas) envolvidas
marcas de “novidades” –, vem acompanha- nas estratégias de transmissão/apropriação
da pela orquestração de investimentos fa- de espólios materiais e simbólicos, compa-
miliares, individuais e institucionais para a tíveis com o desempenho de determinadas
gestão de um sentido de continuidade. atividades.
O dossiê aqui apresentado é formado Desta maneira, mesmo que voltados a
por uma equipe heterogênea de cientistas universos específicos e privilegiando mo-
sociais vinculados a diferentes centros de dalidades de objetivação contrastantes, os
pesquisa, atuantes no Brasil e no exterior, componentes do dossiê compartilham veios
e pertencentes a distintas gerações de pes- analíticos consistentes. Convergem quanto
quisadores. Suas reflexões aportam sobre à necessidade de aglutinar uma miríade de
transformações em espaços de poder no lógicas (econômicas, culturais, políticas, de
Brasil, abrangendo da elite política e inte- sucessão, de divisão entre sexos ou gera-
lectual na passagem do Império para a Re- ções, etc.) intervenientes nas práticas dos
pública às modalidades de justaposição de agentes estudados – temas comumente mo-
inscrições política e culturais vigentes na nopolizados em subáreas das ciências so-
segunda metade do século XX; abordam ciais (estudos rurais, das empresas, de gêne-
condicionantes históricos de gestão do ca- ro, da família, da educação, da socialização,
pital social e do capital simbólico de grupos das instituições, da política, da intelectuali-
sociais, constituídos desde descendentes da dade, etc.). Em decorrência disso, confluem
nobreza francesa até estirpes militares, es- sobre a importância das conexões plurais
tancieiras, políticas e culturais em certos entre registros e domínios da vida social
estados brasileiros; tratam de diversifica- na potencialização do acúmulo de trunfos
das formas de ativação do capital escolar, (reputações, redes, competências, etc.), com
conforme as configurações nacionais sobre arranjos sempre originais – não raro asso-
as quais se debruçam (Brasil, França e No- ciados a “nomes de famílias”, “personalida-
ruega); e atentam a discrepantes conjun- des” ou categorias dirigentes. O que implica
turas e meios mais ou menos proveitosos na observação comum do caráter comple-
aos rendimentos de “elites tradicionais” ou mentar (e até mesmo compensatório) dos
à mobilidade e circulação social de “grupos investimentos diacrônicos e sincrônicos
dirigentes” em ascensão/declínio. (inter e intrageracionais) dos agentes liga-
Notadamente, este projeto coletivo reú- dos por múltiplas identificações coletivas,
ne autores que se aproximam, em primeiro sempre tensionadas por sua condição fami-
lugar, por seus esforços de análise orienta- liar de origem. E coincidem, igualmente,
dos por indagações derivadas da problemá- na relevância atribuída aos movimentos de
tica crucial, desenvolvida nas formulações fissão (concorrências, disputas e rivalida-
de Pierre Bourdieu, sobre as estratégias de des), internos aos grupos sociais em geral e
reprodução. Contemplando a apreensão de: nos familiares em particular; mais ou me-
princípios, práticas e contextos propícios à nos controlados por forças de fusão (coe-
conquista, preservação ou reconfiguração são, orquestração e concentração).

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Os lugares (“famílias”, escolas, clubes, modo, as variações ocorrem em função do
exército, academias, enfim, instâncias va- volume e da estrutura de recursos a serem
riadas) de produção de “herdeiros” são, reproduzidos e, efetivamente, dos instru-
pois, centrais nas análises aqui agrupadas. mentos de sua reprodução. Contudo, esses
As estratégias acionadas por “famílias” e instrumentos de reprodução e as estraté-
“grupos sociais” – em vias de desclassifi- gias que lhes são correlatas não operam
cação ou com vistas à diversificação e à pela lógica dicotômica do “ou”/“ou”. Antes
manutenção dos patrimônios materiais e disso, está em jogo a combinação múltipla
simbólicos, bem como aos meios de apro- de investimentos familiares, matrimoniais,
priação dos seus lucros – são impulsiona- escolares, intelectuais, políticos, profissio-
das pelos desdobramentos em um espaço de nais, e, de forma contundente, o trabalho
luta, ele mesmo em devir. Devemos tomar mundano de acumulação de capital de re-
a sério, então, os registros ou repertórios de lações sociais.
ação que definem os papeis estabelecidos Com efeito, trata-se de pensar em que
no relacionamento, em mão dupla, entre medida princípios e funções são sedimen-
usos socialmente autorizados passíveis de tadas individual e coletivamente; ou, em
serem feitos, e as bases sociais nas quais outros termos, como e em que grau as
estão fundamentados. disposições morais individuais podem se
A hierarquia dos recursos (posses, títu- objetivar com relativo sucesso, instauran-
los, posições, autoridade para determina- do modos legítimos de ação e os limites
das intervenções no mundo social) e das instituídos à manipulação possível de pa-
classificações ou categorizações (laudató- peis e princípios de classificação. Eviden-
rias ou depreciativas) das práticas é, tam- cia-se um processo indissociável: se os
bém, uma ordenação das pessoas, realizada indivíduos se relacionam desigualmente
pela alquimia social por meio da qual as com o mundo social e, mais especifica-
“vocações” objetiva e subjetiva se inscre- mente, com as diferentes missões e ins-
vem em espaços dos possíveis, transfigu- tituições sociais, é porque as fronteiras e
rando-se em atributos pessoais: “dons”, as barreiras alfandegárias entre os espaços
“qualidades”, “capacidades”, etc. Enquanto ou domínios dependem da constituição e
marcadores sociais, elas são naturalizadas transmissão de um sistema de disposições,
e incorporadas ao arsenal simbólico que logo, dos “recipientes” sociais ao alcance
respalda a origem (“serviços prestados”, dos seus investimentos. As transformações
“excepcionalidade”, “tradição”, etc.) e/ou geracionais e morfológicas impactam, em
o destino (“carreiras exemplares”, “felizes maior ou menor grau, as possibilidades de
acasos”, “missões incontornáveis”, etc.) dos êxito ou de declínio dos grupos familiares
“herdeiros”. e das distintas categorias sociais; afora as
Longe de ser homogênea e sequencial, a chances diferenciais dos agentes lançarem
transmissão da “herança” – de espólios fa- mão de estratégias compensatórias. Sen-
miliares, simbólicos, institucionais, etc. – se do assim, condições de reprodução ou de
expressa, de modo diferencial, nas disposi- subversão da ordem estão, pois, ligadas à
ções ao reforço ou inscrição em uma linha- multiplicidade de estratégias individuais e
gem; ou, ainda, na ruptura, distanciamento coletivas acionadas e aos modos de domi-
ou redefinição genealógica. De qualquer nação que lhe são subjacentes.

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O empreendimento primordial é, pois, dução disponíveis em cada contexto social.
no tratamento das múltiplas e comple- Cada contribuição que dá sequência ao
mentares estratégias de reprodução, pro- dossiê é uma amostra do potencial heurís-
curando desvelar os modos de dominação tico que a transposição das especializações
subjacentes; sem pressupor que essas re- temáticas ou em áreas de estudos pode tra-
lações remetem à existência de “estágios” zer. Do mesmo modo, cotejando os diferen-
bem definidos, e desviando dos diagnós- tes trabalhos, com seus universos distantes
ticos limitados a detectar sentidos de fal- no tempo e no espaço, o leitor tem a alter-
ta ou de excepcionalidade (GRILL e REIS, nativa de exercitar o viés da comparação
2018). A vigilância contra a essenciali- exigido à compreensão tanto dos sistemas
zação das espécies de recursos, práticas, de estratégias de reprodução como dos con-
princípios de hierarquização e formas de dicionantes que lhe são intervenientes.
dominação coloca-se como elemento cen- O artigo de Monique de Saint-Martin
tral. Isso porque, como os invariantes es- explora a multiplicidade de estratégias
truturais tendem sempre a expressar opo- postas em movimento por uma “grande
sições, mesmo os cientistas sociais “mais família” da nobreza francesa, que estão
rigorosamente dedicados a descrever” se- relacionadas à manutenção e à expansão
rão “sempre suspeitos de prescrever ou de dos patrimônios econômico, cultural, so-
proscrever” (BOURDIEU, 1994, p. 16). cial e simbólico, que marcam tais estirpes.
Pelo o que foi ressaltado até então, fica Uma das questões mais gerais e subja-
patente a filiação do conjunto de colabo- centes ao texto é saber em que medida e
radores desta coletânea ao esquema analí- como, após o período revolucionário e a
tico “bourdieusiano”. Tendo isso em vista, abolição da nobreza e de seus privilégios,
é inegavelmente apropriado iniciar com a um conjunto de práticas sociais e simbóli-
tradução do artigo “Stratégies de reproduc- cas reproduz o sentido de grupo, garantin-
tion et modes de domination”, publicado do a existência e a celebração de pertenci-
originalmente na revista Actes de la Re- mentos/fronteiras, que são afiançadas por
cherche en Sciences Sociales, em edição de diferentes tipos de vínculos. Mobilizando
1994. Seria impossível recensear todas as um vasto acervo de produções memoria-
inspirações que o programa de investiga- lísticas, biográficas, hagiográficas, entre
ções sintetizado nesse texto forneceu. Para outras; a variedade de redes e recursos
mencionar apenas algumas influências, fri- concentrados se expressa no caso exem-
samos que, nele, Pierre Bourdieu postula, plar de um de seus membros: o duque de
por um lado, a atenção que deve ser dirigi- Brissac. Ele ilustra a intersecção de uma
da à “unidade das práticas” (ligadas aos in- gama de elos e concertações. A divisão
vestimentos sucessoriais, econômicos, edu- dos papeis no interior da “família”, com
cativos, matrimoniais, sociais, simbólicos, efeitos nas próprias experiências e estilos
etc.); quase sempre assimiladas de modo das narrativas; a progressiva imposição da
segmentado e submetido às divisões disci- escola como meio de reprodução social; as
plinares, artificial e arbitrariamente cons- alianças, matrimônios, amizades, camara-
truídas. Ademais, insiste que atentemos aos dagem escolar, etc., desvendam os efeitos
pesos dos diferentes capitais (desigualmen- de coesão, que caracterizam as condições
te objetivados) e aos mecanismos de repro- sociais de existência.

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O exame de investimentos diversos efe- trangimentos (sociais, históricos, regionais,
tuados por agentes (individuais e coletivos) entre outros) e dispositivos de perpetuação
permite defrontá-los com divisões de fun- genealógica nesses domínios. Antes do que
ções entre membros de uma mesma “fa- pressupor resultados de sequências de cál-
mília”, consideradas como congruentes e culos ou planejamentos (lineares, coletivos
necessárias à manutenção de posições bem e conscientemente perseguidos); os autores
alocadas na hierarquia social. Por esse in- exploram as imposições/reações de “her-
termédio, podemos compreender fatores que deiros” oriundos de “famílias de elite” às
condicionam (porque coagem e/ou oportu- reestruturações mais amplas do mundo so-
nizam) escolhas diversas concernentes aos cial; às contrapartidas estabelecidas entre
laços matrimoniais, aos títulos escolares e os “direitos” e “deveres” associados ao per-
às aplicações profissionais, às relações prio- tencimento/mobilização do patrimônio co-
rizadas, aos negócios preferidos, às adesões letivo; às prescrições de atribuições; às in-
políticas assumidas, às visões de mundo pro- culcações de responsabilidades; e, ainda, às
fessadas; etc. E, por suposto, toda sorte de tensões inscritas nas dimensões objetivas e
notoriedades advindas do trabalho de me- subjetivas da existência dos indivíduos.
diação (social, política ou cultural), de con- Seidl analisa os ajustes entre as oportu-
tatos qualificados, de “serviços prestados”, nidades disponíveis a certas frações sociais
de “feitos heroicos”, enfim, de atributos que no interior do serviço estatal e as estraté-
conferem reputação a determinadas “famí- gias que lograram mobilizar. Ele examinou,
lias” e a seus membros. Conjugando a isso, em detalhe, uma das linhagens que, prova-
fica mais viável identificar os efeitos que os velmente, forneceu a maior quantidade de
encaminhamentos dos agentes produzem na oficiais ao Exército brasileiro até o presen-
reordenação do mundo social, visto que os te (“seis gerações de soldados”): os Menna
casos “bem sucedidos” são protagonistas de Barreto. Utilizando, como fonte principal,
processos mais gerais de redefinição da gra- dois livros dedicados à “história da estir-
mática econômica, cultural e política e, não pe” de atuantes das forças armadas, entre
raro, servem de “modelos de conduta” aos 1769 e 1950, o autor realça: o forte en-
demais, graças a mecanismos de transmuta- trelaçamento de “famílias de tradição” no
ção do que é excepcional (por motivos arbi- Exército entre si e com outras em posição
trários) em exemplar (com feições sagradas) social homóloga; as manobras de proteção,
(CORADINI, 1998; GRILL, 2003). favoritismo e privilégio, que funcionaram
Nessa trilha, os artigos de Ernesto Sei- como fatores de ascensão na carreira, adi-
dl, Marcos Piccin e Igor Grill ressaltam o cionadas à ativação do capital simbólico
peso do capital social e do capital simbó- familiar; e as orientações de alguns dos
lico concentrado em determinados grupos seus membros para profissões como direito,
familiares. Examinando, respectivamente, medicina e engenharia. O caso exemplar é
a presença contínua de membros das mes- revelador das lógicas sociais de fabricação
mas “famílias” no alto oficialato do exér- de representações dominantes sobre os mi-
cito, na direção de grandes propriedades litares e sobre suas qualidades, como “bra-
rurais (as denominadas “estâncias”) e no vura”, “disciplina”, “desempenho escolar”,
parlamento brasileiro (deputados federais entre outras. Não por acaso, a origem da
e senadores), as pesquisas revelam cons- “dinastia” é o meio rural do Rio Grande do

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Sul, estado conhecido como uma “terra de pelo pertencimento étnico, que ascenderam
militares” e “berço de generais”. mais recentemente. O estudo permitiu, por
O “mundo da instância” gaúcho é, jus- um lado, pontuar a progressiva e diferen-
tamente, o universo de análise privilegiado ciada diversificação de segmentos da “elite
por Marcos Piccin. No seu artigo são exa- política” brasileira, com redefinições cor-
minados os principais meios de interação respondentes das modalidades de ação e
social e cultural (clubes, associações cultu- dos repertórios de mobilização. Por outro
rais e esportivas, bailes, teatros e outros), lado, por intermédio da análise de escritos
além das estratégias matrimoniais e suces- dos “sucessores” e seus posicionamentos
soriais de reprodução social de uma “elite” voltados à produção de “histórias” dos an-
formada por grandes proprietários de terra tepassados, associando-se aos “espólios”
(criadores de gado extensivo) no muníci- (que eles próprios ajudam a fabricar), o au-
pio de São Gabriel (RS). O autor demonstra, tor verificou os suportes à disponibilidade/
assim, como a vinculação entre processos autoridade a assumirem uma condição de
de sociabilidade e casamentos se traduz na porta-voz de “questões” nacionais, regio-
constituição de esquemas de percepção e nais, sociais e relacionadas à própria his-
afinidades de estilos. Busca, dessa forma, tória familiar. Por meio da atuação política
grifar os alicerces da modelação de um ha- e da produção de bens simbólicos desses
bitus de classe reconhecível e comunicável, protagonistas (com atuação entre 1945 e
bem como salientar as estratégias matrimo- 2020) é possível, pois, apreender os siste-
niais estabelecidas a partir das homologias mas de referências, problemáticas legítimas
de posições entre cônjuges. Para tanto, am- e ethos, que condicionam as intervenções
para-se em observações diretas e dados so- de especialistas na mediação, indistinta-
bre 6 linhagens de “estancieiros”, que sig- mente política e cultural, em momentos e
nificou a análise de 99 matrimônios e 233 contextos regionais discrepantes.
indivíduos, a realização de entrevistas e o Outras contribuições ao dossiê não par-
exame de documentos variados (inclusive tem de casos exemplares e relacionados a
dos acervos das próprias famílias). certas configurações regionais, mas apos-
O artigo de Igor G. Grill também parte tam na objetivação do campo do poder no
do cenário sul-rio-grandense, contrastado plano nacional e em conjunturas de apa-
à configuração mineira, para explorar iti- rente transformação social. A partir da ca-
nerários e posicionamentos de parlamenta- racterização da morfologia desses espaços,
res “herdeiros” de “famílias” que se notabi- os autores buscam compreender relações
lizaram na ocupação de posições políticas e entre posição social de origem, percursos
intelectuais. Com base em materiais diver- e posições alcançadas. Aliando discussões
sos, o autor situou os recursos detidos pe- mais gerais sobre os princípios e significa-
los agentes, relativamente às configurações dos que circundam determinadas formas de
históricas e regionais em que exerceram organização social às bases sociais que lhe
suas carreiras (escolares, profissionais e são subjacentes, o sobrevoo acionado pelos
de cargos políticos). Demonstrando que os autores fornece elementos à compreensão
casos são representativos de padrões de li- dos condicionantes que definem estraté-
nhagens estabelecidas social e politicamen- gias, ou seja, das chances diferenciais aos
te desde o século XIX e de grupos marcados deslocamentos possíveis e das barreiras

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(econômicas, culturais e simbólicas) que in- e, notadamente, seus alicerces sociais. Ten-
tervêm nas modalidades de inscrição, rea- do em vista a “variabilidade da conversão
lização e/ou reformulação de papeis (BOR- entre as posições” e a produção de “linha-
DIGNON, 2015). gens” que conectam origens e destinos, o
O artigo de Rodrigo da Rosa Bordignon resultado mais geral aponta para uma for-
focaliza as estratégias de reprodução que te “causalidade do provável”. Concluindo
expressam os fluxos de deslocamentos – que isso significa que, independentemente
verticais ou horizontais –, caracterizados das fortes percepções sobre a igualdade e
pela relação entre origens sociais, forma- o “excepcionalismo” norueguês, alguns são
ção escolar e destino de “elites” políticas e “mais iguais que outros”.
intelectuais de fins do XIX. Questionan- Levando em conta o declarado ponto de
do-se sobre a transformação dos princípios partida no esquema analítico “bourdieusia-
de hierarquização que marcam a transição no”, esta publicação não deixa de ser uma
do Império para a República no Brasil, o homenagem ao sociólogo francês, que fa-
autor busca apreender os efeitos e limites leceu há 18 anos. Por essa razão trazemos
à diversificação dos papeis e de suas ba- ainda algumas contribuições de “seguido-
ses sociais. Isso permite, em termos gerais, res”, que auxiliam na compreensão do seu
vislumbrar as tendências à reprodução e “a “legado”: uma conferência de Julian Du-
reconversão do trabalho, do tempo e de um val1; uma entrevista com Afrânio Garcia
conjunto de condições” (BOURDIEU, 2016, Jr., realizada por Mihai Gheorghiu; e uma
p. 241), que indicam, ao mesmo tempo, a resenha de um livro de Pierre Bourdieu e
adesão parcial aos valores em ascensão Abdelmalek Sayad.
(particularmente a valorização dos títulos Duval interroga-se sobre a atualidade
escolares) e as barreiras que se impõe aos do livro Le Métier de sociologue, 50 anos
que não dispõem das condições de acesso após sua publicação. Partindo da conexão
aos recursos e às posições mais valorizadas. entre a “concepção de ciências sociais” nele
Johs Hjellbrekke e Olav Korsnes se de- presente e a “revolução específica” pos-
bruçam sobre as permanências e transfor- tulada por Bourdieu, o autor explora dois
mações que marcam as divisões intergera- elementos: os efeitos associados ao esfor-
cionais das elites norueguesas, a partir do ço de “refundação da sociologia”; a rela-
topo das hierarquias educacional e profis- ção entre o “livro”, a “obra” e a posição de
sional. O recorte específico são os agentes Pierre Bourdieu e a sociologia na França.
sem experiência de desclassificação e cujos A linha de ataque comporta o questiona-
pais possuíam ensino superior e/ou eram mento mais amplo sobre os efeitos de vul-
CEOs ou “profissionais liberais”. Com o ob- garização e os empréstimos extraídos do
jetivo de clarificar as condições sociais que livro, em parte decorrentes do fato de que
escoram a circulação dessas elites, os auto- o mesmo se tornou um “manual” escolar
res se esforçam por delinear as principais e/ou um argumento de autoridade aos que
tendências à reprodução ou à reconversão pretendem definir a sociologia como ciên-

1. Redigida para o Colóquio Internacional O oficio de sociólogo e o trabalho sociológico de Pierre Bourdieu,
realizado em 2018, na Universidade Federal de Santa Catarina.

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cia e dela participar. Nesta perspectiva, “o pet, Beatriz Heredia), que participaram, por
‘métier’, no sentido de um habitus” espe- suas inserções profissionais e pelas relações
cífico, não teria se generalizado, mesmo pessoais estabelecidas, da sua trajetória.
com o conjunto de transformações institu- Todos investiram na leitura e apropriação
cionais e profissionais que favoreceram a das orientações de Bourdieu, principalmen-
institucionalização e a profissionalização te, das pesquisas sobre a Argélia, algumas
do ofício de sociólogo; mas a reivindicação delas em parceria com Abdelmalek Sayad.
da autonomia das ciências sociais e de sua O que justifica concluirmos este em-
função propriamente científica – que não preendimento com a resenha, produzida
consiste nem a “servir ao poder” nem “fazer por Juarez Lopes de Carvalho Filho e Lean-
a política por outros meios” – certamente dro Costa, do livro El desarraigo: la violen-
deformou o campo de lutas. cia del capitalismo en una sociedad rural,
O depoimento concedido por Afrâ- de Pierre Bourdieu e Abdelmalek Sayad,
nio Garcia Jr. ao sociólogo romeno Mihai lançado em 2017 em espanhol, pela editora
Gheorghiu – ambos com vinculação à rede argentina Siglo Veintiuno Editores. A pu-
de pesquisadores ligada ao Centre de Socio- blicação original, Le déracinement: la crise
logie Européenne (atual Centre Européen de de l’agriculture traditionnelle en Algérie, é
Sociologie et de Science Politique) e à revis- de 1964. As análises dos autores certamen-
ta Actes de la Recherche em Science Sociales te continuarão a inspirar estudos sobre o
(espaços acadêmicos fundados por Pierre campesinato e as transformações do capi-
Bourdieu) – nos fornece alguns elementos talismo em contextos de importação, dos
sobre as capilarizações das formulações e países centrais, de instituições e modos de
das relações tecidas por Bourdieu. A inter- regulação das relações sociais, realizada em
locução entre entrevistador e entrevistado contextos periféricos ou semiperiféricos.
traz à tona fatores significativos de coações,
oportunidades, planejamentos e tensões, Referências
que agiram no transcurso de um itinerário
exemplar. E ainda situa aspectos importan- BORDIGNON, R. R. Elites políticas e in-
tes dos encaminhamentos de pesquisas pri- telectuais: condições de diversificação e
mordiais à compreensão de fenômenos di- estratégias de carreira (1870-1920). 410
versos, como as transformações no mundo f. Tese (Doutorado em Ciência Política) –,
rural brasileiro (em especial no nordeste); Programa de Pós-Graduação em Ciência
os efeitos da internacionalização no domí- Política, Universidade Federal do Rio Gran-
nio universitário do país; e as condições de de do Sul-UFRGS, Porto Alegre, 2015.
produção intelectual em circunstâncias se-
BOURDIEU, P. Stratégies de reproduction et
miperiféricas. Sobretudo, o relato pontua o
modes de domination. Actes de la recher-
emaranhado complexo de tessitura da histó-
che en sciences sociales. V. 105, n.º 1, p.
ria das Ciências Sociais no Brasil.
3-12,1994.
Afrânio Garcia Jr. faz referência a ou-
tros pesquisadores do Museu Nacional da BOURDIEU, P. Sociologie générale: cours
Universidade Federal do Rio de Janeiro au Collège de France (1983-1986). V. 2. Pa-
(Moacir Palmeira, Lygia Sigaud, José Sér- ris: Seul / Raisons d’agir, 2016.
gio Leite Lopes, Marie-France Garcia-Par-

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BOURDIEU, P. Lições de aula: aula inaugu-
ral proferida no Collège de France em 23 de
abril de 1994. São Paulo: Ed. Ática, 1994.
CORADINI, O. L. Panteões, Iconoclastas e
as Ciências Sociais. In: FELIX, L. O. et al.
(Orgs.). Mitos & Heróis: Construção de
imaginários. Porto Alegre: Editora da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul,
1998, p. 219-240.
GRILL, I. G. Heranças políticas no Rio
Grande do Sul. São Luís: EDUFMA, 2003.
GRILL, I. G.; REIS, E. T. Dos campos aos
domínios das “elites” no Brasil. Revista
Tomo, n. 32, 2018, p. 163-210.

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