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SILÊNCIOS QUE GRITAM POR PALAVRAS

Ana Cláudia Santos Meira

Na teorização de seus conceitos teóricos e técnicos, Freud ocupou-se mais da fala


dos analisandos do que de seu silêncio. Façamos, então, agora, falar o silêncio, neste
paradoxo que nos leva a muitas indagações: do que fala o silêncio? Ele sempre é uma forma
de comunicar algo ou ele é, justamente, a ausência da comunicação? Há um silêncio
comunicativo e transparente, prenhe de ditos no que não é dito?
Existe, porém, há também um outro silêncio que é gélido, opaco, fechado, ausente e
distante. Este silêncio é do vazio e ele próprio é vazio. É produto da não-assunção de uma
fala; uma fala que existe, mas não pode ser assumida como própria, porque não lhe foi
dada. Este silêncio grita em voz muda uma história que o sujeito acha que não pode ser
contada, que não será escutada, pois foi cortada em sua foz, morta em sua nascente... As
palavras do analista poderão, quem sabe, contar uma história. Contarei aqui uma parte da
história de Virginia, uma moça em análise comigo há três anos, em quem sobra silêncio,
falta palavra, fala e vida.

O Silêncio Beira à Morte


“E eu sei que preciso continuar a dançar assim sobre tijolos
em brasa até minha morte” (Virgínia Woolf)

Virginia passa longo tempo, por intermináveis sessões, por sucessivas semanas, por
demorados meses, fazendo penosos silêncios, deitada no divã, imóvel e quieta. Parece
morta, e eu também. O sono me domina, um quase-sonho me captura, uma quase-
desistência me tenta; tenta, mas não consegue, mas quase. É por pouco que não durmo,
desejando que o tempo passe mais rápido, que a sessão acabe, que o dia da sessão seguinte
demore a chegar, que eu possa finalmente levantar da poltrona, me mexer e receber a
pessoa seguinte, que estará viva. É por pouco que não morro, que não desisto de tentar, de
alguma forma, qualquer forma, fazer com que ela fale.
Felizmente, chega um ponto na sessão com ela em que saio deste estado de
amortecimento e penso: “alguém aqui vai ter que ficar acordado e vivo, e este alguém tem
que ser eu!”. Então, submerjo desta condição inerte, apática e me ponho a trabalhar.
Contudo, não tenho muito sucesso. Já tentei de tudo, pelo menos é o que parece: perguntar
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os tradicionais: “o que ficaste pensando?; sua versão reduzida: “ficaste pensando...”; ou


ainda mais compacta: “E...”, esperando que um estímulo destes bastasse para que aquilo
que guarda atrás de seu silêncio, dentro dela, ganhe direito à existência fora dela. Mas não...
Tento diversas interpretações: a impossibilidade de usar a sessão – lugar de fala –
para dizer tudo aquilo que seus pais não querem ouvir; sua sensação de que ela é
insuportável para as pessoas e, logo, para mim, já que “só reclama de tudo e está sempre
insatisfeita”; o estado em que se faz cadáver como os cadáveres nos caixões, que o pai
prepara na funerária, onde ele trabalha; o estado vegetativo dos pacientes em estado
terminal em seu estágio na oncologia; o estado anestesiado dos pacientes prontos para
serem abertos a faca no estágio de cirurgia.
Virginia me conta um sonho: ela está mal, com dor, e a mãe e mais uma mulher vão
abrir seu abdômen e retirar de dentro todos os órgãos que tem, e ela vai deixar; não parece
preocupada com isso. Porém, o pai intervém e explica que somente um órgão precisa ser
retirado. Assim é na sessão: ela não se angustia com seu silêncio; eu sim. Em casa, a mãe
também. Virginia se desespera a cada prova que tem pela frente. Chora desesperadamente,
pois tem certeza de que se sairá mal. Seu pânico é tão intenso, que a evidência de que nunca
pegou uma recuperação e nunca ficou com uma nota abaixo de oito, nem no colégio, nem
na faculdade de enfermagem, não são capazes de deixá-la mais confiante. Nestes
momentos, ninguém consegue tranquilizá-la, pois o que os pais falam – que ela vai ir bem,
que é inteligente e sabe a matéria – não faz nenhum sentido para ela. Eles não entendem;
por isso, sugeriram que ela viesse a tratamento. Na sessão, ela tem alguma noção de que
seu desespero não é pelas provas; contudo, não sabe por que chora tanto. Se soubesse, diria.
Mergulhada em um estado de desistência por todas as coisas ruins de sua vida que
ela julga ser horrível, Virginia chora, mas não entende do que se trata. Ela diz: “Não
aconteceu uma coisa que eu saiba que é por aquilo que fiquei assim. Se tento explicar pras
pessoas o que é, eu não consigo. Não tenho palavras pra explicar uma coisa que nem sei. Se
falo da minha família pra elas, parece que não é nada de mais; e realmente não parece nada
de mais...”. Realmente não parece nada de mais. Virginia tem uma família aparentemente
“normal”. Seus pais são casados e relacionam-se bem. O pai é dono de uma funerária, e a
mãe trabalha como corretora de seguros. Ela tem uma irmã de 19 anos, dois anos mais
moça que ela, que também está na faculdade. Eles têm uma situação financeira estável, uma

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casa, um carro e tiram férias. “Ela tem tudo para ser feliz”, mas não é; pelo contrário. É
profundamente infeliz. O que houve com Virginia foi insidioso e silencioso.

No Útero, Tudo é Silêncio


“Estou composta de tal forma que nada para mim é real
a não ser que eu o escreva” (Virgínia Woolf).

No estado pré-natal, o útero da mãe é lugar de silêncio. Não silêncio externo – já


que o corpo da mãe é pleno de ruídos –, mas de um feto que não fala e não precisa. Lugar
de vida, é o espaço que fornece todas as condições de crescimento deste que, um dia, se
fará um recém-nascido; ao mesmo tempo, é lugar de morte, onde este feto morrerá, caso
não possa nascer. Ao sair ou ser retirado, o primeiro grito será expressão de vida; o
primeiro choro anunciará um nascimento. Um bebê que chora nasceu vivo.
De um ambiente regido pela tensão zero, ao nascer, o bebê terá que, forçosamente,
adaptar-se a muitos novos estímulos. Em “Projeto para uma Psicologia Científica”, Freud
(1895a) explica que o princípio da inércia, buscado pelo organismo vivo, é rompido por
estímulos endógenos e externos. Ele descreve que estes estímulos são eliminados por meio
de uma intervenção que suspenda a descarga no interior do corpo, por uma alteração no
mundo externo, por via de uma ação específica que, no entanto, o recém-nascido é incapaz
de executar; ele necessita de ajuda alheia. Assim, uma pessoa experiente volta-se para ele: a
mãe. O sistema nervoso é obrigado a abandonar sua tendência original à inércia, e o que,
primariamente, visava à descarga adquire a importante função secundária da comunicação.
Para isso, contudo, precisa tolerar um acúmulo de Q suficiente para satisfazer as exigências
da ação específica. A mesma tendência à inércia persiste, porém modificada pelo empenho
de, ao menos, manter a Q no mais baixo nível possível e de mantê-la constante.
Depois do choro, virão resmungos, grito, palavra e fala, nesta ordem; por vezes, ao
mesmo tempo; por vezes, um no lugar do outro; por vezes, nenhum deles. Às vezes, mesmo
fora do receptivo ambiente intrauterino, os braços da mãe são lugar de silêncio, quando eles
acolhem, mas também, quando mais tarde, não permitem que o bebê vá para o mundo,
separado dela. Após chorar a primeira vez, ele levará muitos meses para falar. Até lá, no
encargo de executar a ação específica, será a voz da mãe, suas palavras que lhe informarão
sobre suas necessidades. Será ela que definirá se ele tem fome, sono, frio ou se só precisa
de um colo. Será ela que providenciará ao bebê imaturo, desde o início, que cada uma
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destas necessidades seja adequadamente atendida, para o crescimento deste que chega ao
mundo em total desamparo. O desamparo inicial do bebê é a fonte primordial dos motivos
morais, ou seja, o bebê “aprende” que é dependente do outro para sua sobrevivência.
Dando um salto do Projeto para o Narcisismo, Freud (1914) descreve em outros
termos, que esta mãe vai investir e, mais, vai supervalorizar, atribuir todas as perfeições ao
filho, ocultar e esquecer todas as deficiências dele. Esta mãe renova, em nome dele, as
reivindicações aos privilégios de há muito ela mesma teve de abandonar. Este bebê terá a
garantia de divertimentos e estará imune à doença, morte e renúncia ao prazer. Ele “será
mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação – “Sua Majestade, o Bebê”. Em
troca, porém, a criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram,
como uma compensação a eles. Em um estado de Eu Ideal, de perfeição narcísica, o bebê
não precisa falar, pois ele já está atendido.
O desenvolvimento do Eu consistirá em um afastamento do narcisismo primário e
dá margem a uma vigorosa tentativa de recuperação desse estado. Esse afastamento é
ocasionado pelo deslocamento da libido em direção a um Ideal do Eu imposto de fora,
sendo a satisfação provocada pela realização desse ideal (FREUD, 1914). Paralelamente a
tudo o que a mãe garante, nutre e provê, felizmente, ela falta, se ausenta, demora, se afasta.
Por alguns meses, o bebê chorava, e a mãe vinha, até que um dia, ele terá que
necessariamente falar, para que a mãe lhe forneça aquilo de que necessita. Então, de ter a
mãe sempre atenta e inteiramente ligada, chega este ponto em que o infans terá que chamar
a atenção desta mulher que já dirige seu olhar para o lado.
Para McDougall (2000), na medida em que diminui o contato corporal, as formas
gestuais e corporais de comunicação com a mãe são substituídas pela linguagem, pela
comunicação simbólica. O lactente torna-se uma criança dotada de palavra, capaz de
conceber e pronunciar a palavra “mamãe”, criando, assim, a possibilidade de evocar a
proteção dela. Existe uma solicitação muda – a esperança que sobrevive em cada um de nós
– de união fusional em um único corpo, especialmente quando esta união estiver escorada
pelo terror de perder o sentimento de self. A partir daí, recalca-se o desejo contraditório de
ser ela mesma, e de, ao mesmo tempo, continuar sendo parte indissolúvel do outro-mãe. A
nostalgia de tal estado será compensada pela sensação de sustentar uma identidade
separada, enquanto se conserva um acesso somente virtual à unidade original.

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Esse bebê terá de se fazer ouvir. Para que ele comece a falar, a mãe terá que parar de
compreendê-lo sem palavras. Ela consegue executar este afastamento, quando tem outros
interesses e não necessita, para se sentir plena, manter sua prole como prova contrária de
sua castração. Se ela não está em condições de fazer isso sozinha, o bebê ainda terá a
chance de ser retirado de cena por aquele que vem mostrar que esta dupla não poderá
manter uma união idílica, de profunda e perfeita comunicação, por muito tempo: o pai.
Logo, quando um terceiro se apresenta e quando a mãe não está mais completamente lá, o
bebê pode e deve começar a – ativamente – buscar o objeto, a chamar a mãe.
Segundo McDougall (2000), o lactente aprende rapidamente os gestos e
movimentos que fazem com que a mãe se aproxime, bem como os que não obtêm resposta
ou despertam a rejeição. Assim, entre gestos dela e dele, a criança pequena também envia
constantemente sinais que indicam suas preferências e aversões. Se a mãe estiver livre de
entraves internos, saberá “ouvir”. Todavia, se ela estiver presa por seu próprio sofrimento e
por suas angústias, será incapaz de observar e interpretar os sorrisos, gestos, as mensagens
e queixas de seu filho e, ao contrário, o violentará, ao impor suas próprias demandas,
necessidades e ideias acerca daquilo que deseja que ele sinta ou sobre suas necessidades.
Se há alguém que não escuta e, repetidas vezes, proclama à criança que sua fala não
interessa, ela para de falar; ela sucumbe à não-escuta do outro, sem conseguir sustentar o
que quer ou precisa dizer. A fala anuncia uma ausência: a ausência da mãe; como prêmio,
anuncia, pela primeira vez, a presença de uma criança, separada do corpo materno, com
direito à existência. Se isso não puder acontecer, teremos um bebê – depois uma criança,
um jovem e um adulto – habitado pela voz da mãe e, se assim for, o que há para ele dizer?

Quando a Voz da Mãe é o Silêncio da Criança


“Antigamente, eu pensava todos os dias nele [pai] e na mamãe;
mas, escrevendo La Promenade au phare,
eu os enterrei em meu espírito [...].
Estou convencida de que todos
os dois me obsedavam de uma maneira doentia;
e que escrever sobre eles foi um ato necessário [...].
Até os 40 anos, a presença de minha mãe me obsedava.
Não ouvia sua voz, eu a via”
(Virgínia Woolf).

McDougall (2000) alerta que, para um lactente, ser compreendido sem ter que
recorrer à linguagem é uma solicitação legítima. Porém, a mesma necessidade, estendida

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por mais tempo, pode criar mal-entendidos capazes de produzir sofrimento dentro da
relação entre adultos.
Marucco (1998) propõe o conceito de pactos narcísicos para descrever a situação
em que o bebê fica junto à mãe, desmentindo a falta de pênis dela e mantendo-a na
condição de fálica. Dentre as promessas existentes no pacto, está a desmentida, que oferece,
ao bebê irreal, a sensação de completude, mas os pais precisam que este filho esteja sempre
presente, não questione e desminta a castração da mãe. Para ser tudo o que a mãe define
que o infante seja, ele não pode desejar, porque o desejo abre espaços, possibilidades,
separação. O custo desse pacto, porém, é uma fissura no Eu, uma cisão. O bebê chega ao
Édipo capturado pela função mãe fálica. Ele desmente, porque é ameaçado e teme o ódio da
mãe fálica, que o obriga a desmentir.
A denominação usada por Leclaire (1977) para o bebê nessa etapa tão precoce é de
infans, ou seja, aquele que não fala, nem falará nunca, caso não puder matar a imagem do
bebê maravilhoso e idealizado dos pais. Ainda que pareça ideal, esta imagem é uma
representação tirânica, define Leclaire (1977), já que condena a uma inexistência, pois se é
simplesmente uma representação do desejo da mãe. Para viver, devemos executar a morte
desta criança entronizada pelos pais, monarca, investida, fascinante, “criança-não-morta-
para-o-consolo-de-sua-mãe” (p. 46). Ele conclui: “Na exata medida em que começamos a
matá-la é que começamos a falar” e, indo mais longe, atenta: “Na medida em que
continuamos a matá-la, continuamos a falar verdadeiramente, a desejar” (p. 19).
Avançando, quando alguém tenta quebrar o pacto, é como se lhe dissessem: “já que és
imortal, só viverás, amarás e falarás em teu próprio nome mais tarde, quando tua mãe
estiver morta” (p. 46).
No caso de a função materna de para-excitações fracassar, o infans não tem a
capacidade de empregar o pensamento verbal e as palavras que poderiam exprimir as
angústias indizíveis na vida e nas sessões são desprovidas de sua verdadeira impregnação
afetiva e de valor simbólico. McDougall (2000) explica que, quando o psiquismo fica
privado de palavras que deixam de preencher – ou nunca preencheram – uma função de
ligação – ele terá de enfrentar de outro modo as fantasias aterrorizantes, os estados de
intensa excitação ou de dor que ele não consegue elaborar. Ele emitirá sinais pré-simbólicos
de sofrimento, respostas não psíquicas, mensagens primitivas e sinais de ordem

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somatopsíquica, provenientes de uma parte do psiquismo que não dispõe das palavras: as
manifestações psicossomáticas e o ato. Sugiro que o silêncio funciona da mesma maneira.
Marucco (2007) propõe que, na clínica da repetição, existe “algo” que não se pode
recordar, que resiste à recordação, à palavra, em suma, à representação. Trata-se de “algo
experimentado na infância e logo esquecido – algo que a criança viu e ouviu em uma época
em que ainda não sabia falar” (FREUD, 1937b, p. 3371). Para Marucco (2007), trata-se de
significantes pré-linguísticos.
“As palavras são os diques mais eficazes para conter a energia vinculada às pulsões
e aos fantasmas aos quais estas deram origem, em relação com os objetos parentais do
início da infância” (MCDOUGALL, 2000). Quando cumprem sua função simbólica e
podemos nomear o trauma, as palavras revelam-se continentes privilegiados para
representações de ideias fortemente carregadas de afeto. No silêncio, caem no vazio.
Muitas vezes, Virginia passava os primeiros minutos da sessão falando algo entre
um resmungo e um grunhido. Eu não escutava e não entendia quase nada do que ela dizia.
Eu oscilava entre me espichar na poltrona para ouvir, perguntar a ela o que disse, tentar
entender por que ela fazia isso, ou, quando nada parecia ter efeito, deixar passar, desistir de
entender, ignorar, com a sensação de que ela não queria ser ouvida. Um dia, perguntei: “Por
que estás falando assim...?”, mas ela não pode me responder; não tem a mínima ideia.
Então, lembro que ela me contara que sua avó materna dizia que falava com ela por
telepatia. Então, digo: “Acho que é por isso que falas pra dentro: não estás falando comigo;
estás falando com elas, a avó e a mãe, que estão dentro de ti, e se enfiaram na tua cabeça e
na tua vida”.
Em consonância a McDougall, Marucco (2007) indica que, quando a estrutura da
repetição, produto das primeiras inscrições na constituição do psíquico, irrompe no campo
analítico, a questão do representável sofre uma guinada importante. O não-representado e o
irrepresentável da pulsão, que não chegam ao campo da palavra, produzem um “curto
circuito” que os localiza na passagem ao ato ou ao corpo, manifestações psicopatológicas
que se referem à clínica do arcaico em psicanálise, ou seja, a tudo aquilo onde, no lugar da
representação de palavra, existem atos.

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McDougall (2000) pergunta: “Como a criança chega a compreender que sua mente
é uma caverna cheia de tesouros dos quais ela é a única proprietária, usufruindo com todo o
direito dos pensamentos, dos sentimentos, dos segredos íntimos que esta guarda?” (p. 40).
Hoje, mesmo com 21 anos de idade, a mãe de Virginia insiste em entrar em seu
quarto e arrumar suas roupas e seus armários. Indignada, ela protesta: “Meu quarto é o
único lugar onde eu deveria poder ter autonomia!”. Mas sabemos que o quarto, aqui,
representa muito mais que o único cômodo da casa que ela poderia ser a dona: representa
seu corpo, este corpo assaltado, aberto e penetrado do sonho, de onde a mãe e outra mulher
tiram o que quiserem, sem muita reivindicação, da parte de Virginia, do direito que tem
sobre ele. Então, com a mesma força que, na sessão, ela chora de raiva por não ser escutada
pela mãe, em suas esgotáveis tentativas de dizer a ela que não invada seu espaço, ela se
sente culpada por deixar a mãe triste e decepcionada com sua atitude mais “hostil”, e rende-
se, incapaz de seguir tentando.
Sente-se igualmente incapaz de se fazer ouvir pelo pai, quando ele a proíbe
terminantemente de dormir no quarto com o namorado e fica de guarda indo até a sala, no
meio da madrugada, para averiguar se ela está dormindo sozinha no sofá. Ela declara que
não há como nem porque falar, pois ele não a escuta, segue pensando o que pensava e
sequer leva em consideração os argumentos da filha. Ela, então, decreta falência e, ao invés
de brigar e gritar como a irmã que tem a vitalidade que falta a ela, Virgínia desiste e isola-
se, bem comportada e quieta, em casa, em seu quarto, em sua cama. Só quer dormir.
Dois mandatos se impõem aqui: que ela não terá escolha e que não terá prazer. Ela
obedece e age conforme estes imperativos, por mais que tente fugir deste pacto silencioso
firmado sem ela saber. Na verdade, ele não pode falar, pois a fala denuncia. Para
McDougall (2000), a resistência à mudança psíquica é muito forte porque esses analisandos
estão convencidos de que a mudança só pode ser-lhes desfavorável.
Para ilustrar isso que nem se sabe que está lá, no silêncio do analisando, Ferreira
(2009) afirma que, nos armários, há sempre esqueletos escondidos ou guardados ou que se
deseja ignorados. Virgínia não sabe que esqueletos guarda em seus armários. Sabe que, na
realidade de seu quarto, a mãe vem arrumar aquilo que ela preferia deixar bagunçado. Será
este um dos esqueletos? Uma mãe que não tolera o mínimo de espaço entre as duas, um
espaço com porta fechada, gostos diferentes, escolhas diferentes, um terceiro que tenta se

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impor no meio das duas e que mostra a esta mãe que sua filha, mesmo que a fórceps, saiu,
desgrudou-se de si, de seu corpo...? Um dia, este bebê que não falou, chega adulto à
análise. Na análise, lugar de fala, segue sem falar.

Silêncios Que Falam e Silêncios que Gritam Palavras Mudas


“Escrevi o livro muito rapidamente.
E quando ele foi escrito, deixei de ser obsedada por minha mãe.
Não ouço mais sua voz; não a vejo mais.
Suponho que fiz por mim
o que os psicanalistas fazem por seus clientes”
(Virgínia Woolf).

Silêncios que falam... O silêncio do analisando na sessão é comumente relacionado


a um movimento resistencial, e pode ter, por isso, seu significado traduzido, a partir da
descoberta do que está sendo velado. Este é o silêncio da neurose, do recalque, que tem um
sentido, que guarda revelações, que retém informações, encobre fantasias, oculta segredos,
que contém uma riqueza a ser desvelada. Há um desejo de não dizer, uma força que,
ativamente, impede a expressão do que habita o id do sujeito que, então, se cala.
Freud (1933a) descreverá, em Dissecação da Personalidade Psíquica, o momento
em que as associações deixam de fluir livremente como sinal de uma resistência em tornar
consciente o inconsciente, por ação da repressão efetuada pelo Eu, em obediência ao
supereu que julga, condena e castiga.
Na busca de um significado encoberto pela ausência de fala de Virginia, fui
pensando, ao longo do tempo, em possíveis caminhos percorríveis por Édipo: ela se põe
deitada no divã, parecendo morta, para fazer-se morta como os cadáveres com os quais o
pai trabalha. Faz-se assim objeto de desejo do pai? Ela reencena comigo essa necessidade
de despertar o desejo do outro? O que eu menos sentia por ela, com seu silêncio, era desejo.
Sentia-me agoniada, irritada, inútil, dispensável e impotente. Foi isso que me levou a
pensar em outros significados, em silêncios que gritam palavras mudas, que eu não
conseguia ouvir.
No trabalho Palavras do Silêncio, Ferreira (2009) elenca significados bastante
diversos para essa posição de silêncio: há o silêncio daquilo que não se diz, o que se
guarda, segredo ou mistério, o silêncio como refúgio ou como sustento. Há o silêncio da
escuta, o silêncio da pausa, o silêncio da transferência, da neurose e da psicose; o silêncio

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do analista e o do analisando. Ora é defesa, ora é pausa, ora agride. Às vezes, é grito; outras
cessa a palavra do outro. Pode significar cuidado e pode demonstrar ternura. Há o silêncio
das lágrimas; o difícil, pesado e terno do autista. E há o silêncio contundente, sem meio
termo, radical, da morte.
Entre silêncio, palavras e gritos, há muito o que pensarmos, para além do silêncio da
resistência. Em patologias mais regressivas, não há um desejo de esconder, suprimir,
omitir, disfarçar. Há uma apatia que impõe sua presença; a presença da ausência daquele
que está cheio do outro. Esta qualidade de silêncio carece do que dizer. É o silêncio do
vazio, da falta, da ausência, um silêncio que não diz coisa alguma, em que o sujeito sequer
se pergunta o que tem algo a dizer... Era isso que eu sentia com Virgínia naquelas sessões
intermináveis: para ela, “não havia o que ser dito; ela não estava pensando em nada”. E não
estava mesmo. Não era o silêncio de alguém que tinha o que dizer, que poderia dizer e não
dizia. Virginia parecia, realmente, não ter o que dizer.
Fui percebendo que o silêncio de Virginia não era da neurose. Ela não escondia
desejos. Ela mais parecia não ter desejo algum. Então, quando um analisando faz um
silêncio de tal ordem, devemos nos perguntar: é por obediência a quem? A um supereu
exigente e punitivo, que proíbe a fala como expressão de uma autonomia? Ou falamos aqui
de pais que foram internalizados de tal forma que obstruem a possibilidade de um desejo
individual deste bebê, que hoje está em nosso divã sem poder falar, como se fora um bebê?
Se o supereu da neurose proíbe a expressão de temas conflitivos, o que é proibido aqui? É
aqui que nos servimos dos conceitos de Marucco.
Marucco (2007) propõe um núcleo do psiquismo onde se alojariam o desejo e o
trauma, ponto em que os caminhos se bifurcam. O trauma, quase originário, é produto de
uma inscrição sem palavras, coincidindo na clínica com uma repetição monótona,
invariável, que é, ao mesmo tempo, uma re-petição, um pedido de ajuda. Esse arcaico é o
que se repete. Ele se questiona: surge no ato a partir da pressão regressiva para um estado
anterior ao encontro com o outro? Ou é algo que é produto da força intrusiva de um objeto
que imprimiu a marca destrutiva do desligamento ali onde se deveriam abrir os caminhos
para a possibilidade de representação? “Estamos longe do inconsciente reprimido e, por
outro lado, muito próximos do caldeirão do id, essa zona psíquica em que se expressa a
repetição em ato, que oculta zelosamente o soterrado mais ‘recôndito’”. É mais que

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sepultado: é soterrado. Mas esse “soterrado” retorna e grita de desespero; um grito, porém,
mudo.
Segue a linha já descrita por Freud (1937b), em Construções em Psicanálise: “todo
o essencial está conservado; inclusive as coisas que parecem completamente esquecidas
estão presentes de alguma maneira e em alguma parte, e ficaram meramente enterradas e
feitas inacessíveis ao sujeito”. E acrescenta: “só depende da técnica psicanalítica que
tenhamos êxito em levar completamente à luz o que se acha oculto” (p. 3367)
Na sessão com Virginia, soterradas – ela em seu silêncio e eu em minha impotência
– oscilo entre me render, caindo de sono, abatida por sua apatia e mudez, sua voz
choramingada e sua fala aborrecida, e tendo que fazer um esforço consciente para me
manter acordada. Deveria conseguir me manter acordada por compreender o que se passa e
suportar, mas não é o que acontece. Então, por vezes, não consigo – por mais que tente –
decodificar algo ou emprestar algum sentido. Ela fala de sua cachorrinha, que dorme de tal
forma, que parece não respirar. Virginia teme que ela esteja morta, então, a chama; como
ela não reage, vai até ela e a sacode. Ela acorda, está viva; só estava dormindo. Falando da
cachorrinha, fala de si. Digo: “É isso que preciso fazer? Te sacudir pra descobrir que não
estás morta?”, pois é a vontade que tenho: de gritar, chamando-a, ou de sacudi-la, para que
reaja e nos tire deste estado que beira ao insuportável.
Para falar da função do analista, Ferreira (2009) usa uma cena que ilustra de certa
forma o que vivo na sessão com Virginia: “As investigações criminais passam horas
ouvindo o morto. Em linguagem policial, o corpo da vítima transmite um sem número de
preciosas e fundamentais informações de tempo, lugar, forma, circunstâncias da morte,
além de características do assassino [...], tipo de arma, direção dos disparos, se profissional
ou amador. Enfim, quais foram os últimos atos do morto” (p. 24). Mas quem foram os
assassinos de Virgínia? Que pistas temos de seguir? Quem matou o que ela poderia dizer?
Quem matou, inclusive, sua crença de que havia o que dizer? Em uma sessão, ela diz que
tem vontade de dar sua vida a alguém que merecesse vivê-la. Diz isso, pois sabe que “teria
tudo para ser feliz e não é”. Então, digo, impactada por sua declaração: “Já deste! Não
precisas ter vontade de dar, porque já deste!”. E completo: “Isso nos deixa com duas
questões: O que tu fizeste para não merecer a tua vida e tuas coisas, não poder aproveitá-las

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e curti-las; e para quem tu deste, para que, quando achares que mereces viver a tua vida,
saibamos onde ir para pegar tua vida de volta”.
O silêncio de Virginia roga por uma escuta? Ou o que ele pretende é ser deixado em
paz, em um estado de Nirvana, apático? Isso é o que ela, muitas vezes, dizia querer: ficar só
deitada, na cama de seu quarto, de sua casa, de sua mãe, quieta no divã sem pensar e menos
ainda falar. Tem vontade de ficar só parada de frente para uma parede olhando para o nada.
“Como uma autista?”, pergunto, pois é assim que ela era descrita no colégio: autista. Ela
era “estranha” e, mais de uma vez, escutou alguém falar, no fim do semestre ou do ano,
com surpresa, que não sabiam que ela estava ali, como se ela fosse “invisível”, pois nunca a
tinham visto nem ouvido. Quando enxergava alguém conhecido na rua, baixava a cabeça,
colocava os óculos e fingia que não via, para não precisar parar e conversar, sequer esboçar
um oi. Era muito para ela... Ela se escondia e, de fato, quando chegou a tratamento, tinha
trejeitos bizarros, um olhar por vezes esquisito e era mesmo estranha.
A mãe de Virginia deu à filha um nome que ela achava lindo; é o nome de uma
poetisa, Virginia Woolf. Virginia, minha analisanda, odeia este nome. Trocaria se pudesse,
porque é o nome de uma poetisa depressiva, que teve uma internação psiquiátrica e
cometeu suicídio aos 59 anos de idade. O temor de ser deprimida ou louca a acompanha há
tempos, mas, muitas vezes, ela mostra-se exatamente assim. Não pode trocar de nome, mas
pode trocar o significado que ele carrega. Contudo, quando fala, é para dizer como acha
tudo horrível em sua vida. Detesta a faculdade, que não sente ter escolhido, e só deseja que
termine, para trabalhar em um escritório qualquer. Odeia cada semestre, estágio, professor,
colega, monitoria, palestra, aula e plantão. Cada nova coisa é vivida como um inferno.
Fliess (2010) fala de um silêncio que descreve bem o que passamos, Virginia e eu:
este tipo de silêncio substitui uma verbalização; ele dá a impressão de que o paciente
“ausentou-se” fisicamente. Não há sinal de luta ou conflito, pelo contrário: ele repousa
tranquilamente. O silêncio parece interminável. A falta completa de afeto e de motivação
que acompanha esse silêncio torna-o compreensível, mas às vezes intrigante para a dupla.
O analista é incorporado; ele deixa de existir como objeto externo, e sua influência
sugestiva fica momentaneamente suspensa. “O paciente substitui temporariamente a
situação analítica por uma experiência intrauterina” (p. 69).

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13

Virgínia apresenta as coisas como se estivesse condenada a não mudar. Se não


mudar, não crescer e não se diferenciar, pode seguir no útero ou no colo da mãe. Não
imagina que um dia vá ser diferente do que esta pessoa atormentada, preocupada, tensa,
desesperada que é, nem deixar de olhar o mundo da forma pessimista, desanimada e pesada
como vê. Sente-se aprisionada, sentenciada a ficar dentro de um hospital, sem direito à
vida. Diz que nada nunca vai mudar, como se cumprisse pena de prisão perpétua. Se vai
ficar para o resto de sua vida deste jeito, só repetindo os mesmos assuntos, do mesmo
modo, sempre igual, por que vai falar?
Nessa linha, Moulin (2010) indica: “O silêncio guardião do Nada se faz garantia do
ao-menos Um: e assim é um lugar inexpugnável para Outro não-castrado, não-mortal” (p.
169). Ele apresenta o caso de um analisando, com pontos de contato com Virginia. Ele
evoca o silêncio de luto, ou como ele propõe, um silêncio de não-luto, do olhar que o
silêncio encerra e conserva como uma tumba. É o silêncio inconsciente do luto ignorado de
uma perda, às vezes, anterior ao nascimento do sujeito, luto de uma perda não verbalizada –
, silêncio inconsciente do luto “forcluído”, de um dos pais, luto que o sujeito não pôde
fazer, luto impossível de uma perda não simbolizável, devido à morte ou desaparição
prematura de um dos pais não ter dado “lugar” ao luto do outro, durante toda a primeira
infância do sujeito. Um “buraco da memória”. Uma perda atual – a de um ser fantasiado
como “parte” de si – vem percutir o luto longínquo no tempo interior, luto mantido em
ignorância. Nela, “o silêncio se faz guardião do Nada: um silêncio de pedra, um silêncio da
morte” (p. 166). Não é difícil imaginar Virginia assim.
Na história dela, há algo que não foi pensado, nem conversado: o pai teve câncer de
estômago quando ela tinha 10 anos. Ela não lembra como foi. Ninguém conversou sobre
nada da situação com ela ou com a irmã; “afinal, elas eram pequenas”, pensaram. Ela,
contudo, está convencida de que “não foi afetada por isso”. Pela idade, nem tomava
conhecimento do que estava se passando. Lembra vagamente da mãe preocupada, nada
além disto. Passados, seis anos, quando já não era tão nova, a mãe teve câncer na garganta.
Como não foi um câncer agressivo, e agora os dois estão bem, ela não acha que tenha
ficado com alguma marca disto. Logo, eles nunca falaram sobre o assunto.

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“Seu mundo interior é tão penoso, tão perseguidor ou caótico, que ele precisa fazê-
lo calar-se, precisa escondê-lo negando a existência de um mundo interior ‘habitado’”
(MOULIN, 2010, p. 166).
Para propor que “o silêncio é uma espera que negaceia com a morte” (p. 94),
Hasson (2010) descreve uma analisanda que se parece em muito com Virginia: “Ela não
pode gritar. Proibiram-na de berrar seu horror ante a mãe suicida que se punha
periodicamente frente a um espelho para abrir as veias do pulso, enquanto os filhos – ela o
sabia – a olhavam pela portinhola do banheiro. Lugar do suplício, jardim das delícias, o
olhar da menina encontrava o olhar da mãe num espelho indiscreto que permitia a uma e
outra se encontrarem no próprio lugar de uma morte sempre presente, sempre contrariada”
(p. 94-95). Existia um segredo que palavra alguma dava conta de exprimir. O autor fala da
extraordinária densidade do silêncio que ocupava o tempo das sessões, “encenação de uma
proibição de revelar que lhe havia sido infligida desde a mais tenra infância” (p. 96).
Em sua descrição, Hasson (2010) destaca que esses momentos de silêncio da
paciente eram instantes deliciosos para ela, pois ela imaginava o analista perturbado diante
de um corpo sem voz e sem palavra, nada mais que corpo oferecido sobre o divã” (p. 97).
Virginia, porém, nem isso. Nesta época, ela não parecia ter qualquer prazer ou qualquer
intenção de me atingir ou mobilizar com seu silêncio.

O Barulho ou o Silêncio das Pulsões


“Assim, continuo acreditando que a aptidão para receber golpes
é o que faz de mim uma escritora. À guisa de explicação,
adiantarei que um golpe, no meu caso, é logo seguido do desejo de explicar”
(Virgínia Woolf).

Nos textos freudianos, encontramos algumas referências à relação entre silêncio e


morte, que proponho aqui. Isso aparece nos artigos O Tema dos Três Cofrinhos1 e no O

1
Freud (1913) relata o sonho de um homem: “Nele, vira um amigo ausente de quem não havia recebido
notícias por tempo muito longo, e censurara-o energicamente por seu silêncio. O amigo não deu resposta.
Posteriormente, descobriu-se que havia encontrado a morte por suicídio, aproximadamente à época do
sonho”. Freud (1913) afirma não ter dúvida de que a mudez no sonho representava a morte. Também
menciona o conto da Cinderela, anunciando que a mudez deve ser interpretada como sinal de estar morto
(grifos meus), em produções como os sonhos, os mitos, as lendas e as histórias infantis.

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15

Inquietante2. Desde Freud, diversos autores ligaram silêncio e morte, o que nos leva a
pensar: o silêncio tem a ver, então, com a pulsão de morte? Ele pouco se refere ao silêncio
do analisando em sessão, mas é uma relação que nos interessa. Detenhamo-nos nela, para
depois retomarmos o silêncio na sessão, especificamente e relacionar esses elementos.
Freud (1923, 1925) anuncia que a pulsão de morte é silenciosa. Na busca de um
retorno ao estado inorgânico, a pulsão de morte só quer a paz e a quietude da morte e da
ausência de estímulos que quer conservar. Sua tarefa é conduzir a vida orgânica de volta ao
estado inanimado. Em paralelo, a finalidade principal de Eros é unir, ligar, estabelecer uma
unidade. Visa a complicar a vida e, ao mesmo tempo, naturalmente, preservá-la. Agindo
dessa maneira, ambas as pulsões são conservadoras no sentido mais estrito da palavra,
visto que ambas se esforçam para restabelecer um estado de coisas que foi perturbado pelo
surgimento da vida.
Pulsão sexual e pulsão de morte lutam dentro do Id. Como é raro que
testemunhemos tanto a pulsão de morte como a pulsão sexual em seu estado puro, vemos
que as duas classes de pulsão se fundem, misturam e ligam uma com a outra, união pela
qual o sexual vai tratar de domar a pulsão de morte. Então, felizmente, a pulsão de morte
nunca está sozinha, mas sempre amalgamada à pulsão sexual, que a atenua. Freud (1923,
1924, 1933b) descreve esta fusão e amalgamação muito ampla, em proporções variáveis.
A pulsão de morte é dotada de um caráter indomado e caberá à libido domesticá-la,
apaziguá-la. Pela ação muscular, a pulsão de morte pode ser assim neutralizada e inócua,
quando, então, passa a expressar-se como pulsão de destruição dirigida contra o mundo
externo, por intervenção da libido (Freud, 1923, 1924, 1933b). O id se acha sob a
dominação da pulsão de morte, que quer fazer calar Eros, o estraga sossegos3, por
instigação do princípio do prazer (Freud, 1923). A pulsão de morte é a força que
desacomoda, que dá trabalho, que exige transformação por seu movimento pulsante. Ela é
silenciada por uma pulsão sexual mal engatada, que abafa de tal forma o movimento da
pulsão de morte a ponto de calá-la, a ponto de matá-la. A inquietude de Eros é decorrente

2
Freud (1919) relaciona silêncio e morte: sobre a origem do efeito estranho do silêncio, da escuridão e da
solidão, ele explica que, no caso das crianças, esses são os elementos que determinam, mais frequentemente, a
expressão de medo. Neste mesmo texto, Freud indica que a morte aparente e a reanimação dos mortos têm
sido representadas como temas dos mais estranhos.
3
Na tradução de L. Hanns, encontramos a expressão “o irrequieto Eros”

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16

da inquietude produzida pelo embate com a pulsão de morte. A quietude é decorrente do


não encontro. Qualquer uma sozinha provoca silêncio; só o encontro provoca fala.
Em Análise Terminável e Interminável, Freud (1937a) identifica raízes mais
profundas na fonte de resistências ao tratamento analítico: o comportamento das duas
pulsões, sua distribuição, mistura e defusão. Há uma força que se defende ferozmente
contra a melhora e que está absolutamente apegada à doença e ao sofrimento: o sentimento
de culpa e a necessidade de punição, localizadas na relação do Eu com o supereu.
Entretanto, essa é apenas a parte que está psiquicamente presa pelo supereu e, assim, se
torna reconhecível. Há outra parte da mesma força que não é governada pelo desejo de
prazer, indicando a presença de um poder de destruição, segundo seus objetivos: a pulsão
de morte original da matéria viva. E conclui: “Somente pela ação concorrente ou
mutuamente oposta das duas pulsões primevas — Eros e pulsão de morte —, e nunca por
um ou outro sozinho, podemos explicar a rica multiplicidade dos fenômenos da vida”.
A melancolia é, para Freud (1923), talvez, a pulsão de morte em seu estado mais
desligado. Ele afirma: O que está influenciando agora o supereu é uma cultura pura da
pulsão de morte, que tem sucesso em impulsionar o Eu à morte, se aquele não afastar a
tempo seu tirânico supereu. Podemos dizer que, na medida em que controla a agressividade
para com o exterior, mais severo, cruel, agressivo e proibitivo se torna a ação do supereu
contra o Eu. Neste ponto, o mínimo que há de pulsão sexual na melancolia cede até o ponto
de desvitalizar; e aí a destrutividade que estaria em movimento só quer sossegar.
Freud (1923) descreve que, “na melancolia, o supereu excessivamente forte, que
conseguiu um ponto de apoio na consciência, dirige sua ira contra o Eu com violência
impiedosa, como se tivesse se apossado de todo o sadismo disponível na pessoa em
apreço”. Sobre o sadismo, ele mostra que “o componente destrutivo entrincheirou-se no
supereu e voltou-se contra o Eu”. O próprio Eu se abandona porque se sente odiado e
perseguido pelo supereu, ao invés de amado. Segundo Freud (1923), “quando o Eu se
encontra em um perigo real excessivo, que acredita ser incapaz de superar por suas próprias
forças, ele se vê desertado por todas as forças protetoras e se deixa morrer”. O bebê fica
tomado por uma angústia pela separação da mãe, que outrora foi sentida protetora.
Por sorte, depois que nasce, há, neste sujeito que chega hoje a nós, o investimento
de um quantuum de pulsão sexual do objeto que, por mínimo que tenha sido, impede que

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este bebê seja, naquela época, tragado pela força da pulsão de morte. Então, quando
engatada pela força integradora, sintetizadora, ligante da pulsão sexual, tânatos ganha
expressão, forma e ruído.
Contudo, quando à parte da pulsão de morte do bebê que segue seu trabalho interno
– porque já estava lá –, soma-se a pulsão de morte dos pais que é derramada por eles na
criança soterrada por eles, há uma amarração problemática, de modo que também a pulsão
sexual ligará em demasia, ao ponto de só satisfazer, atender e juntar. É preciso uma
presença, mas com certa distância. Freud (1924) alerta para o perigo de o masoquismo
moral reside no fato de ele originar-se da pulsão de morte e corresponder à parte desse
instinto que escapou de ser voltado para fora, coma pulsão de destruição. No entanto, de
vez que, por outro lado, ele tem a significação de um componente erótico, a própria
destruição de si mesmo pelo indivíduo não pode se realizar sem uma satisfação libidinal.
Em O Eu e o Id, Freud (1923) discrimina três direções da perigosa pulsão de morte:
uma parte é fusionada com componentes eróticos, outra parte é desviada para o mundo
externo sob a forma de agressividade e uma terceira parte continua seu trabalho interno sem
estorvo. O supereu torna-se uma espécie de lugar de reunião para a pulsão de morte. É no
terceiro tipo que localizo este silêncio do qual tratamos. Um ano mais tarde, Freud (1924)
definirá que uma porção da pulsão de morte permaneceu no interior do organismo, o que
corresponde ao masoquismo original erógeno; com o auxílio da excitação sexual
acompanhante, fica libidinalmente presa dentro dele.
Sabemos que o supereu surge de uma identificação com o pai tomado como modelo,
Freud (1923) vai mais longe, ao propor que, quando uma transformação desse tipo se
efetua, ocorre uma desfusão das pulsões. Quando o componente erótico não tem mais o
poder de unir a totalidade da agressividade que com ele se achava combinada, e esta é
liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à destruição, desfusão que seria a fonte
do mandato ditatorial “farás”.
Então, vemos que o silêncio não equivale à pulsão de morte, mas à morte que pode
se dar pela quietude tanto da pulsão de morte quanto da pulsão sexual que ganha espaço,
quando falta o barulho provocado pela pulsão de morte e o barulho provocado pela pulsão
sexual, quando uma desperta a outra. A pulsão de morte desligada fica em seu estado
anarquista, caótico e solto para dirigir o sujeito ao único lugar que mais a interessa: o

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18

nirvana, com sua ausência de estímulo. Ao ser enlaçada, domesticada pela pulsão sexual,
ganha uma força com direção e pode converter-se em destrutividade, na melhor das
hipóteses, voltada para fora. O silêncio vira o sujeito para si.

Psicanálise: a Cura pela Fala


“É o testemunho de uma coisa real para além das aparências,
e eu a torno real, traduzindo-a em palavras.
É apenas traduzindo-a em palavras que eu lhe dou sua inteira realidade.
Essa inteira realidade significa que ela perdeu seu poder de me ferir”
(Virgínia Woolf).

Se a Psicanálise é a cura pela fala, o que significa o silêncio do analisando na


sessão? Uma recusa de cura? O que podemos fazer? Na Conferência XIX: Resistência e
Repressão, Freud (1917b) fala de um paciente que manteve um silêncio deste tipo, durante
semanas, por ocasião do término de um caso amoroso. Solicitado a dar as razões de haver
rompido a regra estabelecida, defendeu-se com o argumento de que essa história constituía
assunto particular seu, mas Freud foi contundente: “o tratamento psicanalítico por certo não
reconhece tal direito de asilo”.
Não é de ignorar que a única coisa que seja, de fato, uma “regra” da análise seja:
“Fale!”. Este imperativo indica que o analisando comunique tudo o que lhe ocorrer, sem
uma seleção crítica, sem excluir sentimentos desagradáveis ou pensamentos indiscretos,
sem julgar lembranças banais ou sensações irrelevantes. Todavia, Freud (1917b) já prevê
que “a primeira coisa que conseguimos, ao estabelecer a regra técnica fundamental, é que
ela se transforma no alvo dos ataques da resistência. O paciente procura, por todos os
meios, livrar-se das exigências desta regra. Declara que não lhe ocorre nenhuma ideia, que
não está pensando em nada; depois, que tantos pensamentos se acumulam dentro de si, que
não pode apreender nenhum”. Por isso, silencia.
Esse silêncio, contudo, está mais na superfície da neurose. Falamos aqui de algo
muito mais primitivo, de outra ordem. Quando se trata de outra coisa, diferente da neurose,
a análise também ensina a demarcar territórios nunca antes imaginados, para depois
desbravá-los. McDougall (2000) indaga: “Como ouvir esses sinais? Como descodificá-los,
a fim de torná-los simbólicos? E como, no final das contas, esperamos poder torná-los
simbólicos e, daí, passíveis de comunicação através da linguagem?” (p. 46). Enquanto é
bastante possível que nunca cheguemos a saber o que se passou realmente, na história
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19

destes analisandos, podemos observar a maneira pela qual a versão que é a da criancinha
permanece intacta no modo de pensar (ou no modo de “não pensar” ou do “impensável”)
do adulto em relação aos acontecimentos da vida cotidiana (p. 116).
Quando a Psicanálise incorpora a definição que Anna O. (Freud, 1895b) dá ao
método – a “cura pela fala” – isso diz mais do que a forma pela qual o analisando trará, nas
sessões, o conteúdo de seus sonhos, associações livres, atos falhos, acontecimentos, suas
histórias, suas hipóteses sobre o que aconteceu consigo. Podemos estender esta
denominação e pensar que, além de um meio, é também o objetivo da análise: que este que
nos chega sem voz e sem desejos próprios conquiste uma fala, que é aquilo que produz
desde si mesmo: falar a partir de si mesmo e não mais a partir do outro. Isso significará ter
abandonado a condição de infans – daquele que não pode falar – e ter ascendido à condição
de sujeito. Poder falar como sinal de “cura”.
Logo, a Psicanálise é mais do que a cura pela fala, esta fala na sessão, do analisando
e do analista. Isso já não é pouco, mas parece haver mais para ser pensado: o “Fique quieto!
Não diga nada!” de Emmy Von N. (Freud, 1895c) rogava por uma posição de escuta de seu
analista, e um pedido de que ele renunciasse a ser portador da voz que ela queria sua. Mas,
para além disto, ela nos faz pensar sobre a necessidade de que se faça esta fala que seja sua
e que saia de sua boca; e que a demanda, a expectativa e o desejo do outro ceda lugar para o
sujeito que se põe em cena.
A que Virginia me convoca? A escutar tudo e falar tudo que não pode, em casa? Ou
a ser um pai que a resgate do cativeiro materno, de um colo em que um bebê pode dormir,
dormir para sempre...? Ou ela me convida a estar no seu lugar e a sentir na pele, no corpo e
na alma o que é estar paralisada, desativada, imobilizada, desvitalizada por um outro? Eu
podia supor várias coisas, mas como saber – se ela ficava em silêncio e não conseguia
relacionar nada – que eu não estava imprimindo um conhecimento teórico, ou algo que
seria uma criação a partir de mim e não dela, ou pela minha necessidade de entender e dar
significados ao que não existia?
O que posso dizer, se Virginia não fala...? O que faço eu, se minha maior tarefa é
escutar? Escuto seu silêncio; mas, e se não sinto que seu silêncio diga alguma coisa? Que
não há mensagens latentes, prontas para serem reveladas por minha descoberta? Traduções
são feitas de uma língua para outra. Como, então, na sessão, traduzir para a linguagem

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falada, algo que não é uma língua ou linguagem, mas a ausência dela? Se não mostra
conteúdo, ela mostra, pelo menos, um modo de funcionar; ou de não funcionar. O que fazer
com o silêncio em uma análise que é um lugar de fala? Um lugar de questionar-se e de pôr
questionamento onde não há, de propor interrogações onde sobram vazios?
Quanto mais desligada está a pulsão de morte, menos contamos com a angústia
como recurso para proteger o psiquismo que, sem um sinal de alarme, queda adormecido. O
sono letal desse silêncio sem angústia nos dificulta encontrar ponto de apoio para nossa
função de ligar o que se movimenta em direção ao Nirvana, estado de absoluta quietude,
lugar da morte.
Franzini (2010) descreve uma situação como essa, com uma de suas analisandas:
“Sessão após sessão, mantém-se um silêncio pesado, inamovível, difícil de classificar, a
não ser talvez por uma aproximação negativa. Não se trata nem de um silêncio carregado da
presença do outro, nem de um silêncio à beira da ação; não se trata de nenhuma retenção,
nenhum mal estar, e aproxima-se mais de uma posição vegetativa, vegetal mesmo, do
tratamento. Se há mal-estar na sessão, ele aparece mais como uma consequência desse
silêncio, tanto para a analisanda quanto para mim mesmo, que fico sujeito a irritações,
esmorecimentos, ao sentimento de estar reduzido a intervenções inadequadas” (p. 104).
Ferreira (2009) alerta para o cuidado de, por angústia, não se adiantar na função de
analista, nem oferecer um cuidado excessivo, nem tentar demonstrar conhecimento, nem
cair na armadilha das perguntas concretas – desmentidos da escuta neutra. O que fazer,
então? Como cumprir esta tarefa quando – como no caso de Virginia – não sabemos o que
o analisando quer falar, e quando seu silêncio nos deixa inativos? Como saber o que
perguntar, sem transformar a sessão analítica em uma sessão de tortura, ou um inquérito?

O Analista como uma Palavra Libidinizada no Silêncio do Analisando


“De fato, depois que fixei os olhos nela,
tive a impressão de que ela é minha tábua de salvação (...)
Da mesma forma, quando acordamos no meio de um horrível pesadelo,
nos apressamos a acender a luz e recobramos a serenidade
bendizendo a cômoda, bendizendo a realidade tangível,
bendizendo a impessoalidade das coisas
que atestam uma existência diferente da nossa”.
(Virgínia Woolf).

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21

O que podemos fazer como analistas? Em primeiro lugar – e que já não é pouco –
sobreviver. Sobreviver ao convite que nos fazem estes analisandos para compor um pacto
de morte, à pressão deste repuxo para um estado de letargia, a esta demanda de que
atuemos em seus fantasmas, repetindo com eles a destruição de seu direito à existência e
expressão. Sobreviver, porque o convite é de viver de mãos dadas – ou atadas – com a
morte.
Diferente de um neurótico, uma analisanda como Virginia nos impõe, o tempo todo,
a verdade de que não sabemos, que não podemos, que não damos conta, que não somos
tudo isso. A Sua Majestade, o Analista, é colocada em seu lugar de insuficiência.
Em segundo lugar, afinar nossa escuta a tal ponto que ela chegue a captar aquilo que
não é falado, nem em voz alta, nem em voz baixa; nem na palavra, nem em sua ausência;
nem no relato do analisando nem em seu silêncio. E quando ele começa a gritar,
discriminarmos de que tipo de silêncio e de grito se trata: se é por desespero, ou se é para
despertar-nos e despertá-lo; se é um ataque ou defesa; se é vazio ou se está pleno, pleno de
comunicações, ou pleno de destruição, se fala de si ou se denuncia um outro.
Leclaire (1977) define que o analista só subsiste na medida em que escuta o
analisando por uma brecha que não se fecha nunca ao nascimento e renascimento da fala, e
através da qual surge o espaço do desejo. “É somente neste lugar que a voz sincopada do
sujeito pode fazer-se ouvir, e no qual se manifesta a singularidade da cena primitiva do
analisando: sua origem, isto é, as modalidades particulares de seu aprisionamento na ordem
das palavras, o encadeamento singular de sua relação com os silêncios dos objetos
primeiros. Ser psicanalista é permanecer nesta brecha para mantê-la aberta; conservar,
efetivamente vivo, como um desejo, o interesse que nos faz ‘entrar em análise’: como isso
fala? Como isso deseja?” (p. 78).
Em terceiro lugar, fazer valer nossa capacidade de transformar a letalidade do
analisando em energia viva, ligada e investida. De um bebê natimorto em meu divã – com
este paradoxo que é “nascer morto” – retirá-lo deste estado-útero para uma vida com
pessoas e com palavras, palavras que podem ser ditas, não mais caladas...
Para isso, valemo-nos de nossa potencialidade criativa, de nossa capacidade de
conter, em um estado de abstinência, a dor vivida, mas não sentida, do analisando.
Usaremos a libido para criar a possibilidade de ligações vitalizantes. Como o silêncio de

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22

Virginia, o silêncio de analisandos como ela há de ser significado, e é o que faremos, como
analistas: colocar metáfora lá onde não há. Para isso, faremos uso de nossa pulsão de morte,
em seu potencial disruptivo, para interromper o traumático da compulsão à repetição que os
deixa inertes. A pulsão de morte é pulsante e não nos deixa dormir e, bem acordados,
podemos fazer barulho onde sobra quietude. No reverso do que encontramos na melancolia
de Freud (1917a), o analista terá que ser luz quando o objeto é sombra.
Será através da atenção flutuante, por seu duplo vértice4, que nos convoca a
desligarmo-nos, para nos conectar com esse arcaico; ligar para criar sentido onde não há.
Ao emergir do encontro dos inconscientes, nossa palavra poderá inscrever, transcrever e
retranscrever marcas que viabilizem, a seu analisando, forjar uma narrativa para o mal-estar
que o habita – produzir o silêncio da privacidade, da individualidade, com toda a sua
singularidade – em substituição ao silêncio sinistro e sepulcral de seguir sendo o eterno
duplo de seu ancestrais. Teremos a função de dar fala ao traumático, para restituir o sujeito
falante de seu próprio texto.
Paim Filho (2012) propõe que a destrutividade seja pensada em sua duplicidade:
como destruição tanática, que impede a construção de novos significados; e como
destruição vitalizante, que possibilita, com a desconstrução do estabelecido, a criação de
condições para o advir de novas ligações. Retomando a ideia de Freud (1938), de que o
objetivo da pulsão de morte é desfazer conexões e, assim, destruir coisas, ele sugere que
esta é, justamente, uma das funções da intervenção do analista. Assim, a pulsão de morte
estaria implicada diretamente na construção do caminho da cura, na medida em que
modifica o jeito repetitivo de ser, rompendo conexões e podendo criar novos nexos. Em
termos pulsionais, significa “instrumentalizar o potencial desorganizador da destruição com
o potencial organizador da libido”.
Se o silêncio grita por palavras, temos de estar ali, vivos, presentes e atentos; atentos
ao que não chama a atenção, mas que se faz ver pela ausência; ausência da fala,
anunciador/denunciador de algo; algo que caberá a nós darmos significado, darmos
palavras. Se também nós silenciarmos, simplesmente, esperando que o analisando saia
deste claustro, ele ficará mais uma vez abandonado a suas sombras, em sua solidão muda,

4
A atenção é tributária de Eros, enquanto a flutuação o é da pulsão de morte (PAIM FILHO, I. A.; LEITE, L.
2012).

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23

que não muda. Muda quando, dela, se fizer voz e, para fazer da mudez uma voz, talvez ele
precise de alguém que fale com ele – e não mais por ele – até que ele mesmo possa falar
por silêncio. Anunciaremos, em alto e bom tom, que o analisando tem aquilo que ele supõe
não ter: a possibilidade de ter uma voz, uma fala e o que dizer.
Para McDougall (2000), a tarefa da análise é sempre uma história recriada por duas
pessoas. É recriar e até criar as palavras e os elos que faltam. Quando o tema dessa peça
muda consegue sel relatado pela primeira vez na hipótese do indivíduo e pode passar a
participar da situação psicanalítica, a mente pode finalmente encarregar-se da tarefa de
modificar a história psíquica.
Quando não imagina que alguém queira escutar, o registro da sessão não é de que
ali há alguém exatamente para isso: para escutá-la. Levará algum tempo até que recupere
(ou crie), na análise, a crença de que sua fala interessa a alguém – ainda que não seja à mãe
ou ao pai –, de que existe alguém que está disponível para escutar, longa e demoradamente,
por dias, semanas, meses e anos e, se isso está posto, ela deve ter o que dizer. Alguém que,
por mais que por vezes se sinta desinstrumentalizado, nunca vai desistir. Neste dia, pode
voltar a falar. Ou pode, pela primeira vez, verdadeiramente, começar a falar.

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Referências

FERREIRA, Palavras do silêncio. Cadernos de Psicanálise (CPRJ), Rio de Janeiro, ano


31, n. 22, p. 13-36, 2009.
FLIESS, Robert. Silêncio e verbalização: um suplemento à teoria da ‘regra analítica’”. In:
NASIO, Juan-David. (Org.). O silêncio na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 59-
80.

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JR., Osmyr. Notas a projeto de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise. Rio
de Janeiro: Imago, 2003. p. 173-218.

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Obras completas de Sigmund Freud. 4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
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FREUD, Sigmund (1895c). Estudos sobre a histeria Caso 2 – Sra. Emmy Von N. (Freud).
In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. 4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
(Obras Completas, 1).

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Freud. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras Completas, 12).

FREUD, Sigmund (1917a). Luto e melancolia. In: _____. Obras completas de Sigmund
Freud. 4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras Completas, 2).

FREUD, Sigmund (1917b). Lecciones introductorias al psicoanalisis. Leccion XIX:


Resistencia y represión. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. 4. ed. Madrid:
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