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HERMENÊuTICA E ENSINO JURÍDICO EM TERRAE BRASILIS

Lenio Luiz Streck*

RESUMO: A discussão acerca do ensino RÉSUMÉ: The discussion concerning the


jurídico deve ser feita no contexto das juridical education must be done in the context
duas grandes revoluções copernicanas que of the two big Copernicans revolutions that
atravessaram o direito e a filosofia no século have crossed the law and the philosophy in
XX: o constitucionalismo e o ontologische the twentieth century: the constitutionalism
and the ontologische Wendung (ontological-
Wendung (giro lingüístico-ontológico).
linguistic turn). One denounces, thus, that
Denuncia-se, assim, que a dogmática jurídica
the legal dogmatic remains refractory to
continua refratária a essa ruptura paradigmática,
this paradigmatic disruption, carrying on
continuando a reproduzir um ensino jurídico
reproducing a standardized juridical education,
estandardizado, que contribui para a ineficácia which contributes for the ineffectiveness of the
da Constituição. A hermenêutica filosófica Constitution. The philosophical hermeneutic
pode ser um importante contributo para a can be an important contribute for the
construção de um discurso apto a superar as construction of a speech able to overcome the
insuficiências teóricas do senso comum teórico theoretical insufficiencies of the theoretical
dos juristas. common sense of jurist.

1 A N Ã O - R E C E P Ç Ã O D A revoluções alteraram significativamente


REVOLUÇÃO COPERNICANA estes dois ramos do conhecimento científico.
PROPORCIONADA PELO GIRO Com efeito, no campo jurídico, o direito
LINGÜÍSTICO-ONTOLÓGICO público assume um lugar cimeiro, a partir da
incorporação dos direitos de terceira dimensão
O século XX mostrou-se generoso para com
ao rol dos direitos individuais (primeira
o direito e a filosofia. Ao menos duas grandes
dimensão) e sociais (segunda dimensão).
Às facetas ordenadora (Estado Liberal de
* Pós-Doutor em Direito; Professor Titular da Direito) e promovedora (Estado Social de
Unisinos/RS; Professor da Unesa-RJ; Procurador de Direito), o Estado Democrático de Direito
Justiça/RS; Coordenador do Acordo Internacional
CAPES-GRICES (Universidade de Coimbra-Unisinos). agrega um plus (normativo-qualitativo),

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representado por sua função nitidamente discussão acerca da crise do conhecimento
transformadora, uma vez que os textos e do problema da fundamentação, própria
constitucionais passam a institucionalizar um do início do século XX. Veja-se que as
“ideal de vida boa”, a partir do que se pode várias tentativas de estabelecer regras ou
denominar de co-originariedade entre direito cânones para o processo interpretativo
e moral (Habermas). a partir do predomínio da objetividade
Os conteúdos compromissórios e dirigentes ou da subjetividade ou, até mesmo, de
das constituições – e a do Brasil é típico conjugar a subjetividade do intérprete com a
exemplo – apontam para as possibilidades objetividade do texto, não resistiram às teses
do resgate das promessas incumpridas da da viragem lingüístico-ontológica (Heidegger-
modernidade, questão que assume relevância Gadamer), superadoras do esquema sujeito-
ímpar em países de modernidade tardia como
objeto, compreendidas a partir do caráter
o Brasil, onde o welfare state não passou de
ontológico prévio do conceito de sujeito e
um simulacro. Essa revolução copernicana
da desobjetificação provocada pelo circulo
atravessou o direito público em todos os
hermenêutico e pela diferença ontológica. A
seus ramos, fazendo com que as relações
viragem hermenêutico-ontológica, provocada
privadas perdessem a autonomia que haviam
por Sein und Zeit (1927) de Martin Heidegger,
adquirido no modelo formal-burguês de
e a publicação, anos depois, de Wahrheit und
direito e de Estado.
Methode (1960), por Hans-Georg Gadamer,
No campo filosófico, operou-se uma
foram fundamentais para um novo olhar
verdadeira invasão da filosofia pela
linguagem, proporcionando uma revolução sobre a hermenêutica jurídica. Assim, a
no modo de compreender o mundo. Supera- partir dessa ontologische Wendung, inicia-
se, assim, o pensamento metafísico que se o processo de superação dos paradigmas
atravessou dois milênios. Afinal, se no metafísicos objetivista aristotélico-tomista
paradigma da metafísica clássica os sentidos e subjetivista (filosofia da consciência), os
“estavam” nas coisas e na metafísica moderna, quais, de um modo ou de outro, até hoje têm
na mente (consciência de si do pensamento sustentado as teses exegético-dedutivistas-
pensante), nessa verdadeira guinada pós- subsuntivas dominantes naquilo que vem
metafísica os sentidos passam a se dar na e sendo denominado de hermenêutica jurídica.
pela linguagem. As conseqüências dessa revolucionária
Em outras palavras, é possível dizer que, viragem lingüístico-ontológica 2 são
desde logo, a crise que atravessa a hermenêutica
jurídica1 possui uma relação direta com a
2
A reviravolta lingüística vai se concretizar como
uma nova concepção da constituição do sentido. Esse
sentido não pode mais ser pensado como algo que uma
1
O presente texto não prescinde de leituras prévias consciência produz para si independentemente de um
ou conjuntas, em especial com outras pesquisas que processo de comunicação, mas deve ser compreendido
venho desenvolvendo, especialmente constantes em como algo que nós, enquanto participantes de uma
Hermenêutica Jurídica E(m) Crise, 7. ed. Porto Alegre, práxis real e de comunidades lingüísticas, sempre
Livraria do Advogado, 2007 e Verdade e Consenso, comunicamos reciprocamente, assinala D. Böhler,
2.ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007. Neles estão citado por Araujo, que acrescenta que essa virada rumo
desenvolvidos os conceitos aqui trabalhados. à explicitação de um caráter prático, intersubjetivo e

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incomensuráveis para a interpretação do Entretanto, os juristas não se deram
direito. De terceira coisa que se interpõe entre conta do fato de que o direito – espaço
um sujeito e um objeto, a linguagem passa simbólico das relações de poder – expressa-
condição de possibilidade. Para além dos se pela linguagem (os fenômenos são
objetivismos e subjetivismos, a hermenêutica levados à representação). Mas a relevante
filosófica abre um novo espaço para a questão está no fato de que, embora direito
compreensão do direito e tudo o que representa seja “linguagem”, portanto, “texto”, este
a revolução copernicana proporcionada pelo texto é sempre um evento. Não se interpreta
novo constitucionalismo. Em outras palavras, em abstrato. Por isso, a tese hermenêutica
essa segunda revolução é condição de da applicatio. Por isso, a hermenêutica
possibilidade para o acontecer da primeira. é faticidade; não é método: é filosofia, é
Passamos, pois, do fundamentar (metafísico) condição de ser no mundo.
para o compreender (fenomenológico). No campo jurídico, ocorre uma espécie
de fusão/imbricação entre o paradigma
histórico da linguagem humana tem forte sustentação (neo)liberal-individualista e o paradigma da
em Wittgenstein, cuja posição é próxima da nova
filosofia da consciência, que têm um terreno
hermenêutica de matriz heideggeriana. Tanto em
Wittgenstein como em Heidegger, a linguagem passa a fértil para se concretizarem, mormente em
ser entendida, em primeiro lugar, como ação humana, uma sociedade como a brasileira, em que
ou seja, a linguagem é o dado último enquanto é uma
a) o Código Civil é proveniente de uma
ação fática, prática. Precisamente enquanto práxis
interativa, ela não pode ser explicada como produto sociedade pré-liberal e urbana;3 b) o Código
de um sujeito solitário, como ação social, mediação Penal é produto de uma sociedade que há
necessária no processo intersubjetivo de compreensão.
É justamente aí, diz Araújo, que ocorre a mudança de pouco ingressara no liberalismo, voltado a
paradigma: “o horizonte a partir de onde se pode e deve uma (nova) clientela fruto da mudança da
pensar a linguagem não é o do sujeito isolado, ou da
economia ocorrida a partir da revolução
consciência do indivíduo, que é o ponto de referência
de toda a filosofia moderna da subjetividade, mas a liberal de 1930; c) o Código Comercial
comunidade de sujeitos em interação. A linguagem, é do século XIX (agora “alterado”, em
enquanto práxis, é sempre uma práxis comum realizada
de acordo com regras determinadas. Estas regras não
são, contudo, convenções arbitrárias, mas são originadas
historicamente a partir do uso das comunidades 3
Em janeiro de 2003 entrou em vigor o “novo”
lingüísticas; são, portanto, costumes que chegam a Código Civil. Uma das características mais marcantes do
tornar-se fatos sociais reguladores, ou seja, instituições. novo Código – pelo menos, a mais festejada – é a opção
Tantas são as formas de vida existentes, tantos são os pelas cláusulas gerais, constituindo-se como uma espécie
contextos praxeológicos, tantos são, por conseqüência, de “Código do Juiz”. Isso, no entanto, apenas demonstra
os modos de uso de linguagem, numa palavra, os a prevalência do paradigma da filosofia da consciência
jogos de linguagem. As palavras estão, pois, sempre (sujeito solipsista – Selbstsüchtiger), no interior do
inseridas numa situação global, que norma seu uso e é qual o juiz “preenche” as “aberturas hermenêuticas”
precisamente por esta razão que o problema semântico, proporcionadas pelo texto. E isso, como se sabe, é
o problema da significação das palavras, não se resolve repristinar o velho positivismo, em que os casos “difíceis”
sem a pragmática, ou seja, sem a consideração dos são resolvidos por delegação ao juiz que, discricionária
diversos contextos de uso. Poder falar significa ser capaz e decisionisticamente (Hart e Kelsen), soluciona esses
de inserir-se um processo de interação social simbólica “hard cases”. Registro, aqui, para evitar mal-entendidos,
de acordo com os diferentes modos de sua realização”. que, no paradigma hermenêutico, não se pode distinguir
Cf. OLIVEIRA, Sobre fundamentação, op. cit., p. 53 casos simples de casos difíceis. Essa distinção, típica da
e 54. (grifei) teoria da argumentação, é metafísica.

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parte, pelo Código Civil); e, d) o Código demais Códigos, estabelece mecanismos que
de Processo Civil,4 na mesma linha dos protegem explicitamente os direitos reais em
detrimento dos direitos pessoais. A (dupla)
crise se instala, pois, na emergência de novos
4
A discussão em torno da efetividade do processo
é de cunho paradigmático. Veja-se que as teses conflitos e novos mecanismos de resolução de
instrumentalistas do processo continuam apostando conflitos e no papel que o direito assume no
na “delegação” em favor do juiz da tarefa de “dar
agilidade ao processo”. Trata-se da afirmação do
interior de um novo modelo de Estado.
paradigma da filosofia da consciência, enfim, do Tudo isto passa a ter influência e
solipsismo de um sujeito (juiz) que carrega sobre os importância na análise do direito em nosso
ombros a “responsabilidade” de “bem conduzir” o
processo. Isso, no fundo, nada mais é do que repristinar
país. Como os juristas pensam o mundo
a discricionariedade positivista (lembremos do debate e o direito? Como se inserem e como têm
Dworkin-Hart). acesso ao mundo? Com efeito, do Estado
Em outras palavras, a interpretação (aplicação)
do direito fica nitidamente dependente de um sujeito Liberal já passamos – formalmente – por um
cognoscente, o julgador. Essa dependência do juiz Estado Social (não realizado) e, a partir de
pode ser vista também no campo da assim denominada 1988, passamos a ter uma Constituição que
instrumentalidade do processo. É nessa linha que José
Roberto dos Santos Bedaque, prestigiado processualista, instituiu o Estado Democrático de Direito.
procura resolver o problema da efetividade do processo Este é o cerne de uma crise do modelo
a partir de uma espécie de “delegação” em favor do
liberal-individualista-normativista, fundado
julgador, com poderes para reduzir as formalidades que
impedem a realização do direito material em conflito. no paradigma solipsista.5 Ideologicamente,
E isso é feito a partir de um novo princípio processual – essa (dupla) crise de paradigma se sustenta
decorrente do princípio da instrumentalidade das
em um emaranhado de crenças, fetiches,
formas – denominado princípio da adequação ou
adaptação do procedimento à correta aplicação da valores e justificativas por meio de disciplinas
técnica processual. Por este princípio se reconhece específicas, denominado por Warat de sentido
“ao julgador a capacidade para, com sensibilidade e
comum teórico dos juristas.6
bom senso, adequar o mecanismo às especificidades
da situação, que não é sempre a mesma” (BEDAQUE, O sentido comum teórico sufoca as
José Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e possibilidades interpretativas. Quando
Técnica Processual. São Paulo, Malheiros, 2006, p. 45 –
submetido à pressão do novo, (re)age
grifei). Ou seja, “deve ser o juiz investido de amplos
poderes de direção, possibilitando-lhe adaptar a técnica
aos escopos do processo em cada caso concreto, mesmo
porque a previsão abstrata de todas as hipóteses é não se confunde com a ‘discricionariedade judicial’,
praticamente impossível” (Idem, ibidem, p. 64-65). mas implica ampliação da margem de controle da
E como a previsão legislativa não comporta todas técnica processual pelo legislador” (idem, ibidem,
hipóteses de aplicação, “observado o devido processo p. 109). Veja-se, portanto, que o problema possui um
legal, deve ser reconhecido ao juiz o poder de adotar fundo paradigmático. Continua-se a apostar no sujeito
soluções não previstas pelo legislador, adaptando solipsista. Assim tem ocorrido com as diversas reformas
o processo às necessidades verificadas na situação e mini-reformas no processo civil no decorrer dos
concreta” (idem, ibidem, p. 571). Em sua – refira-se – últimos anos.
sofisticada tese, embora demonstre preocupação em 5
O texto preocupa-se em abordar a assim denominada
afastá-la da discricionariedade, Bedaque termina por
crise do paradigma liberal-individualista de produção de
sufragar (ainda que implicitamente) as teses hartianas e
direito, agregada à crise do Estado e à crise decorrente da
kelsenianas, quando admite que as fórmulas legislativas
não-superação, pela dogmática jurídica, do paradigma da
abertas favorecem essa atuação judicial: “Quanto mais
prevalência da lógica do sujeito cognoscente.
o legislador valer-se de formas abertas, sem conteúdo
jurídico definido, maior será a possibilidade de o juiz 6
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito I.
adaptá-la às necessidades do caso concreto. Esse poder Porto Alegre, Fabris, 1994, p. 57.

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institucionalizando a crítica. Para tanto, “coerência” do seu próprio discurso. Por isso,
abre possibilidades de dissidências apenas esse processo de justificação não prescinde,
possíveis (delimitadas previamente). Ou para sua elucidação, do entendimento
seja, no interior do sentido comum teórico, acerca do funcionamento da ideologia. Em
permite-se, difusamente, (apenas) o debate outras palavras, ainda é necessário estudar o
periférico, mediante a elaboração de respostas (velho) conceito de ideologia, que parece ter
que não ultrapassem o teto hermenêutico sido esquecido nas salas de aula das tantas
prefixado (horizonte do sentido). faculdades de direito existentes pelo país
Daí a dificuldade para a obtenção de afora. Talvez porque, como ensina Zizek, a
algumas respostas que exsurgem de perguntas eficácia de uma ideologia é apreendida pelos
do tipo “o que significa o dispositivo mecanismos da identificação imaginária e
constitucional da igualdade de todos perante da identificação simbólica. E, à primeira
a lei” para a imensa maioria da população vista se poderia dizer que o que é pertinente
brasileira? O que significa pacta sunt numa análise da ideologia é somente a
servanda em um conflito sociojurídico entre maneira pela qual ela funciona como
incluídos e excluídos (socialmente)? discurso, em suma, pela maneira como os
O jurista tradicional, inserido em uma mecanismos discursivos constituem o campo
tradição jurídico-social inautêntica (veja- da significação ideológica. No entanto, o
se a proximidade, neste ponto, da noção derradeiro suporte do efeito ideológico (ou
de tradição inautêntica com o conceito de seja, a maneira como uma rede ideológica
senso comum teórico), não se dá conta dessa nos “prende”) é o núcleo fora de sentido,
problemática. Observe-se, por exemplo, que pré-ideológico do gozo. Na ideologia “nem
não é gratuita a colocação do crime de estupro tudo é ideologia (isto é, sentido ideológico)”,
no capítulo dos crimes contra os costumes, mas é precisamente esse excesso que constitui
em vez de inseri-lo no capítulo dos crimes o derradeiro esteio da ideologia”.7
contra a vida ou contra a integridade corporal! O ideológico não pode ser simbolizado
Por isso não pode surpreender o fato de que
enquanto ideológico, ou seja, usando as
o Código Penal “protege-pune” com mais
palavras de Sizek, o indivíduo submetido à
rigor os crimes contra a propriedade do que
ideologia nunca pode dizer por si mesmo
os contra a vida. As comparações chegam
“estou na ideologia”. Esse não-poder-
a ser teratológicas, por exemplo, entre
dizer é decorrente do fato de que o discurso
lesões culposas (crimes de trânsito) e furto,
do “outro” o aliena dessa possibilidade
estelionato e omissão de socorro, sem falar na
simbolizante. É possível dizer, assim, que
comparação entre o tratamento conferido aos
o discurso ideológico enquanto tal não
crimes de sonegação de tributos e ao furto...
é realidade para o indivíduo submetido/
Inserido em um habitus dogmaticus,
assujeitado. Se simbolizar é tratar pela
o jurista não se dá conta das contradições
do sistema jurídico. Estas não “aparecem”
aos olhos do jurista, uma vez que há um
7
Cf. ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem.
O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar,
processo de justificação/fundamentação da 1992. p. 122.

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linguagem, e se o inconsciente é estruturado graças às barreiras criadas pelo discurso
como uma linguagem, o discurso ideológico (censor) produzido pela dogmática jurídica
só pode vir à tona no sujeito se este não tiver dominante. Nesse sentido, pode-se dizer
as condições de possibilidade de dizê-lo, de que ocorre uma espécie de “coisificação”
nomeá-lo, isto é, de estabelecer a surgição (objetificação) das relações jurídicas.
de que fala Lacan no Seminário II. Nesse Embora esse processo ocorra cotidiana
sentido, é possível fazer uma analogia do e difusamente no interior dessa tradição
discurso ideológico com o discurso do mito. inautêntica que forja os pré-juízos inautênticos
A ideologia – vista/entendida segundo os (falsos) dos juristas, alguns exemplos mais
parâmetros aqui estabelecidos – permite que contundentes põem à prova até mesmo a
se diga que o mito só é mito para quem não relação “sentido comum teórico dos juristas”
sabe que é mito, ou seja, o mito só é mito versus “senso comum da sociedade”. Assim,
para quem nele acredita. O desvelar do mito v.g, graças ao modo de fazer/interpretar o
é a instituição de uma ruptura, através de direito balizado pelo sentido comum teórico
um simbólico não atravessado/sitiado pelo e pelo habitus por ele instituído, é (foi)
discurso mitológico. “permitido” que, no âmbito do direito penal,
No plano dessa justificação discursiva, em face de um conflito de dispositivos legais
objetivando a perenização desse corpus (Lei 8.069 v. Lei 8.072), defender a tese de
ideologicus, a dogmática jurídica utiliza-se que quem estupra uma criança pode ter uma
de um artifício que Ferraz Jr. denomina pena mais branda do que aquele que estupra
de astúcia da razão dogmática, que atua uma mulher adulta (existiram posições
mediante mecanismos de deslocamentos doutrinárias e até mesmo julgamentos
ideológico-discursivos.8 Ou seja, a partir desse nesse sentido, sim!). Na verdade, nesse
deslocamento, não se discute, por exemplo, o caso, em vez de discutirem a lei, os juristas
problema dos direitos humanos e da cidadania, discutiram sobre a e a partir da lei, como
mas sim, sobre (e a partir) deles. se esta (a lei) fosse fruto de um legislador
Graças a isso, no contexto da dogmática racional. Sobre a Constituição, ninguém
jurídica, os fenômenos sociais que chegam falou. Esse deslocamento discursivo, de
ao Judiciário passam a ser analisados como cunho ideológico, é próprio do sentido
meras abstrações jurídicas, e as pessoas, comum teórico dos juristas, que produz os
protagonistas do processo, são transformadas standards a serem utilizados pela comunidade
em autor e réu, reclamante e reclamado, e, jurídica. Resulta disso uma interpretação
não raras vezes, “suplicante” e “suplicado”, totalmente alienada/afastada das relações
expressões estas que, convenhamos, deveriam sociais, ou seja, pouco importa ao jurista,
envergonhar (sobremodo) a todos nós. Mutatis inserido na tradição inautêntica do direito, o
mutandis, isto significa dizer que os conflitos conteúdo das relações sociais. Pouco importa
sociais não entram nos fóruns e nos tribunais a teratologia resultante do paradoxo que é a
imposição de uma pena mais branda a quem
estupra uma criança em comparação com
8
Consultar FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Introdução
ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 1987. p. 280. aquele que estupra uma mulher adulta...

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Não se pensou em aprofundar a matéria, a magistrado, não se tratava de um conflito
partir de um olhar em outra tradição jurídica, social, mas apenas de um problema decidível
como, por exemplo, o direito alemão, a no âmbito da juridicidade. Veja-se como
partir dos princípios da proibição de excesso foi esquecida a revolução copernicana do
(Übermassverbot) e da proibição de proteção direito público; a decisão mostra nitidamente
insuficiente (Untermassverbot). 9 O que a prevalência do positivismo, que objetiva
parece que importa mesmo é fazer uma “boa exorcisar o mundo do direito dos fatos que “o
hermenêutica”; o importante é “resolver, com atrapalham”. Talvez o problema, em um país
competência dogmática, ‘neutralmente’, as como o Brasil, seja, efetivamente, o excesso
antinomias” do sistema... E as antinomias de realidade...!
obscurecem (escondem) o exame da Os exemplos são intermináveis, sendo
parametricidade constitucional (veja-se o mais importantes por seu aspecto simbólico
problema recorrente no direito: ainda não do que pela sua significação “real”. Como
conseguimos elaborar uma adequada teoria bem diz Cornelius Castoriadis, o gesto
das fontes). Enfim, tamanha foi a dimensão da do carrasco é real por excelência, mas é
crise, que o establishment jurídico-dogmático imediatamente também simbólico em outro
não conseguiu “resolver o problema” no plano nível. Ou seja, um sistema de direito, que se
da hermenêutica. Ou seja, tão forte é o corpus constrói a partir de doutrina, jurisprudência,
introduzido pelo sentido comum teórico, legislação, etc, existe socialmente enquanto
que, na impossibilidade de ver resolvido o sistema simbólico. As coisas não se esgotam
“problema hermenêutico”, o “sistema” teve no simbólico (os atos reais, individuais ou
que recorrer ao “legislador racional” que, coletivos, o trabalho, o consumo, a guerra,
mediante a edição da lei federal n. 9.291, de o amor, a natalidade, não são, nem sempre,
4 de junho de 1996, revogou os parágrafos nem diretamente, símbolos); mas elas só
únicos em questão. podem existir no simbólico e são impossíveis
No mesmo rumo, preso às amarras dessa fora de um simbólico. E o estado da arte
da operacionalidade do direito se agrava,
tradição inautêntica, um juiz de direito
agora, com a institucionalização das súmulas
concedeu liminar de reintegração de posse
vinculantes, mecanismo que representa um
em favor de fazendeiro que ocupava terras
visível retrocesso hermenêutico, porque
de propriedade do governo, para desalojar
promove um retorno do direito à metafísica
centenas de sem-terras, sem examinar se
clássica. Com as súmulas, parece que o senso
eram ou não particulares. Resultado disso
comum teórico atinge o seu apogeu: uma
é que morreram várias pessoas... Para o
volta ao mundo das regras e às “facilidades
objetivistas” oferecidas pela metodologia
9 Sobre a Übermassverbot e a Untermassverbot, subsuntiva-dedutiva. Ou seja, quando o
ver meu artigo Bem jurídico e Constituição: da
Proibição de Excesso (Übermassverbot) à Proibição de
sistema se encontra em face de incertezas
Proteção Deficiente (Untermannverbot): de como não significativas (“casos difíceis” e tudo o
há blindagem contra normas penais inconstitucionais. que isso representa), basta elaborar uma
Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, v.80, ano
2004, pp. 303-345. súmula “apta” a resolver os “casos futuros”.

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Retorna-se, de forma sofisticada, ao modelo comum teórico. De todo modo, como sempre
formal-burguês, isto é, na medida em que as tem ocorrido, o positivismo discricionário,
súmulas antecipam o discurso de validade, darwinianamente, saberá se adaptar às
a tarefa dos aplicadores estará restrita ao novas/velhas circunstâncias, contornando
“encaixe” da situação fática (subsunção), com o problema sem precisar abandonar a
uma agravante: na medida em que súmulas tese central que o sustenta: o máximo
são textos e na medida em que o positivismo de subjetivismo para preservar as suas
interpreta textos sem coisas, também as “reservas de sentido”, que serão utilizadas
súmulas serão vitimadas pelo positivismo. sempre que for necessário impor a wille zur
Não esqueçamos novamente o problema Macht. Em outras palavras, na medida em
presente na – aparente – contradição existente que se constituem em um projeto de poder,
em Dworkin ao propor a sua tese da one right as súmulas serão “obedecidas” enquanto
answer em um sistema de direito avançado, estiverem em conformidade com esse projeto;
isto, com forte e consistente mecanismo de aquelas que forem “desviantes” terão seus
vinculação jurisprudencial como é o norte- próprios “limites semânticos” ultrapassados.
americano. É que até mesmo o sistema de E tudo começará novamente...!
precedentes necessita de “blindagens” contra
discricionariedades interpretativas...! Para
2 D og m ática e ensino
tanto, basta ver a aplicação da “fórmula”
jur í dico : o dito e o
de aplicação de precedentes proposta pelo
não-dito – o universo do
Justice Scalia.10
silêncio (eloqüente) do
Destarte, de um lado ter-se-á – como de
imaginário dos juristas
há muito vem ocorrendo – aplicações das
súmulas no atacado, com o sacrifício dos casos Em face do que foi analisado anteriormente,
concretos, os quais, lembremos da metáfora uma pergunta se torna inevitável: que
do Leito de Procusto, serão confinados a um tipo de visão têm os operadores jurídicos,
espaço de sentido previamente delimitado mergulhados nessa “inautenticidade” (no
(afinal, a súmula é uma resposta a priori); sentido hermenêutico da palavra), acerca
de outro, no varejo, apreciações de cunho da aplicação do direito? Evidentemente, os
meramente analítico-conceitual procurarão exemplos antes delineados apontam apenas
construir os desvios ou atalhos interpretativos em direção à ponta do iceberg. É também
necessários para a manutenção do sentido evidente que a (con)formação desse sentido
comum teórico tem uma relação direta com
10
Para tanto, ver TRIBE, Laurence e DORF, o processo de aprendizagem nas escolas
Michael. On reading the Constitution. President and de direito. Com efeito, o ensino jurídico
Fellows of Harward College, 2005, assim como a
continua preso às velhas práticas. Por mais
apresentação que fiz à edição brasileira (“Interpretando
a Constituição: Sísifo e a tarefa do hermeneuta. Um que a pesquisa jurídica tenha evoluído a partir
manifesto de Laurence Tribe e Michael Dorf em favor do crescimento do número de programas
da proteção substantiva dos direitos fundamentais”.
In: Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte, Del
de pós-graduação, estes influxos reflexivos
Rey, 2007). ainda estão distantes das salas de aula

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dos cursos de graduação, não se podendo em boa parte dos manuais) considera o
olvidar, nesse contexto, que o crescimento direito como sendo uma mera racionalidade
da pós-graduação é infinitamente inferior à instrumental. Em termos metodológicos,
explosão do número de faculdades instaladas predomina o dedutivismo (sic), a partir da
nos últimos anos. reprodução inconsciente da metafísica relação
A cultura calcada em manuais, muitos de sujeito-objeto (registre-se: tanto a metafísica
duvidosa cientificidade, ainda predomina na clássica como a metafísica moderna).13 Nesse
maioria das faculdades de direito.11 Forma-se, contexto, o próprio ensino jurídico é encarado
assim, um imaginário que “simplifica” o como uma terceira coisa, no interior da qual
ensino jurídico, a partir da construção de o professor é um outsider do sistema.
standards e lugares comuns, repetidos nas A doutrina que sustenta o saber jurídico
salas de aula e, posteriormente, nos cursos de resume-se a um conjunto de comentários
preparação para concursos (hoje já existem resumidos de ementários de jurisprudência,
cursinhos de preparação para ingresso nos desacompanhados dos respectivos contextos.
cursinhos), bem como nos fóruns e tribunais. Cada vez mais, a doutrina doutrina menos;14
Essa cultura alicerça-se em casuísmos
didáticos. O positivismo12 ainda é a regra, 13
Nesta quadra do tempo, não é mais possível
calcado, de um lado, em um objetivismo defender o método dedutivo, a subsunção etc. Pensar
que não diferencia texto e norma e, de outro, assim é fazer uma profissão de fé no esquema sujeito-
objeto. Remeto o leitor, mais uma vez, ao meu
em um subjetivismo que ignora os limites Hermenêutica Jurídica E(m) Crise.
semânticos do texto jurídico (portanto, 14
Despiciendo lembrar que as críticas aqui lançadas
desconfie-se tanto do professor que diz dizem respeito à dogmática jurídica tradicional,
ainda refém de um senso comum teórico positivista-
que a lei contém um sentido em si mesmo
normativista. Em contrapartida, a esse “saber congelado”,
como daquele que, pensando ser crítico, diz há no Brasil frutífera produção doutrinária que aponta
para os alunos: “a lei não importa muito, para um Direito de feição transformadora, perfeitamente
engajada na construção de um Estado Democrático
pois ela é apenas a ponta do iceberg...” – os (e Social) de Direito. Dito de outro modo, a crítica
dois são positivistas). A dogmática jurídica à dogmática jurídica não significa, a toda evidência,
qualquer pregação no sentido de que a dogmática jurídica
trabalhada nas salas de aula (e reproduzida seja despicienda. A dogmática jurídica pode ser crítica.
E deve ser crítica. Afinal, não há direito sem dogmática,
como bem assevera Jacinto Coutinho. É exatamente a
11
Pela “simploriedade” e nível de estandardização partir de uma dogmática jurídica consistente e crítica
de alguns livros jurídicos, deveria ser colocada uma que se pode construir as condições para evitar – ou
tarja como aquelas que se põem nos maços de cigarro: minimizar – os decisionismos e as discricionariedades.
“o uso constante deste material fará mal a sua saúde Na arguta observação de Jacinto Coutinho, “não há
mental”...! direito sem uma dogmática onde as palavras tenham
um sentido aceito pela maioria, ainda que elas
12
O positivismo é entendido, aqui, principalmente a
escorreguem e, de tanto em tanto, mereçam – e tenham –
partir daquilo que considero a sua principal caracterísitica uma alteração de curso. Metáforas e metonímias (ou
e que deu azo às críticas de Dworkin à Hart: a condensações e deslocamentos, como queria Freud), a
discricionariedade, que é antidemocrática. Por isso é partir da demonstração de Lacan, esvaziam de sentido
que, à luz da hermenêutica filosófica – retrabalhada por (ou conteúdo) preestabelecido qualquer palavra que
mim como uma Nova Crítica do Direito –, proponho ganhe um giro marcado pela força pulsional e, portanto,
não somente a possibilidade de construirmos respostas determinada pelo inconsciente. Falar de dogmática –
corretas em direito, mas também a necessidade de enquanto descrição das regras jurídicas em vigor
atingirmos tal desiderato. (Haesaert) –, contudo, não é falar de dogmatismo;

35
isto é, a doutrina não mais doutrina15 – é, sim, doutrinada pelos tribunais. É nisto
que se baseia o casuísmo didático: a partir
da construção de “categorias”, produzem-
e isto é despiciendo discutir. Sem embargo, não são
poucos os que confundem – e seguem confundindo – os se raciocínios “dedutivos”, como se a
dois conceitos, com efeitos desastrosos para o direito. realidade pudesse ser aprisionada no
Quando se fala de dogmática e o interlocutor pensa
em dogmatismo, a primeira reação, invariavelmente,
“paraíso dos conceitos do pragmatismo
é de desprezo; e por que não de medo, mormente se se positivista dominante”.
quer algo que possa suportar uma postura avançada, de Não é desarrazoado afirmar, destarte,
rompimento com o status quo. Sem embargo do erro
grosseiro, a situação cria embaraços e constrangimentos, que a hermenêutica praticada nas salas de
exigindo uma faina dissuasiva elaborada e complexa, com aula continua absolutamente refratária ao
efeitos duvidosos porque se não tem presente os reais
resultados.(...) A dogmática, então, precisa ser crítica (do
giro lingüístico-ontológico (ontologische
grego kritiké, na mesma linha de kritérion e krisis) para Wendung); em regra, continua-se a estudar
não se aceitar a regra, transformada em objeto, como uma
os métodos tradicionais de interpretação
realidade. Isso só é possível, por evidente, porque se tem
presente que o real é impossível quando em jogo a sua (gramatical, teleológico etc.), como se o
apreensão e, com muito custo, que a parcialidade a que processo de interpretação pudesse ser feito
se chega depende, no seu grau (embora difícil mensurar
o quantum), de muitos saberes que não aquele jurídico. em partes ou em fatias. A teoria do Estado,
Trata-se, portanto, de uma linha média, que não abdica, condição de possibilidade para o estudo
de forma alguma, da dogmática (dado ser imprescindível
do Direito Constitucional (para ficar nesta
o seu conhecimento, sob pena de se não ter juristas, mas
verdadeiros gigolôs), a qual deve estar sempre atenta ás disciplina fundamental, que, aliás, não ocupa,
arapucas ideológicas do positivismo e, assim, abre-se, na maioria dos cursos jurídicos, mais do que
por necessidade, por ser imperioso, a outros saberes, a
serem dominados na medida do possível”. Cf. Coutinho, dois semestres), não vem acompanhada da
Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites necessária interdisciplinariedade.
lingüísticos da lei. Revista do Instituto de Hermenêutica
Jurídica – Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos
à prática dos tribunais, n.º 3. Porto Alegre, IHJ, 2005,
este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração
pp. 37 e segs.
de que temos notável saber jurídico – uma imposição
15
Para ilustrar a dimensão dessa problemática, veja- da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em
se contemporânea decisão do Superior Tribunal de Justiça, relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos
na qual o Ministro Humberto Gomes de Barros, no AgRg constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar
em EREsp n.º 279.889-AL, assim se pronunciou: “Não que assim seja” (grifos meus). Guardado o contexto
me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto no qual foi proferida, a assertiva do magistrado não
for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a pode ficar isenta de uma crítica à luz dos pressupostos
autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles filosóficos que sustentam as contemporâneas teorias
que não são Ministros deste Tribunal importa como do direito. De efetivo, é preciso dizer, de pronto, que
orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa o direito não é aquilo que os Tribunais dizem que é,
conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos como se estívessemos a sufragar a velha tese do realismo
Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. norte-americano. Só que não é bem assim, ou, melhor
Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para dizendo, não pode ser assim. Com efeito, o direito é algo
que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar bem mais complexo do que o produto da consciência-
o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco de-si-do-pensamento-pensante (Selbstgewissheit des
Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem denkenden Denken), que caracteriza a (ultrapassada)
assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, filosofia da consciência, como se o sujeito assujeitasse
porque a maioria de seus integrantes pensa como esses o objeto. O ato interpretativo não é produto nem da
Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de objetividade plenipotenciária do texto e tampouco
Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental de uma atitude solipsista do intérprete: o paradigma
expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não do Estado Democrático de Direito está assentado na
somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para intersubjetividade.

36
Em síntese: é preciso compreender que de necessidade” constante no art. 24 do
a crise do ensino jurídico é, antes de tudo, Código Penal, não sendo incomum encontrar
uma crise do direito, que na realidade é professores (ainda hoje) usando o exemplo
uma crise de paradigmas, assentada em uma do naufrágio em alto-mar, em que duas
dupla face: uma crise de modelo e uma crise pessoas (Caio e Tício, personagens comuns
de caráter epistemológico. De um lado, os na cultura dos manuais) “sobem em uma
operadores do direito continuam reféns tábua”, e na disputa por ela, um deles é
de uma crise emanada da tradição liberal- morto (em estado de necessidade, uma vez
individualista-normativista (e iluminista, que a tábua suportava apenas o peso de um
em alguns aspectos); e, de outro, a crise deles...!).16 Cabe, pois, a pergunta: por que
dos paradigmas epistemológico da filosofia o professor (ou o manual), para explicar a
da consciência – metafísica moderna – e excludente do estado de necessidade, não
aristotélico-tomista, da metafísica clássica). usa um exemplo do tipo “menino pobre
O resultado dessa(s) crise(s) é um direito
entra no Supermercado Carrefour e subtrai
alienado da sociedade, questão que assume
um pacote de bolacha a mando de sua
foros de dramaticidade se compararmos o
mãe, que não tem o que comer em casa?”
texto da Constituição com as promessas da
Mas isto seria exigir demais da dogmática
modernidade incumpridas.
tradicional. Afinal de contas, exemplos deste
Os próprios exemplos utilizados em sala
tipo aproximariam perigosamente a ciência
de aula ou em determinadas obras jurídicas
jurídica da realidade social...!
estão descontectados do que acontece no
Tudo isto serve para demonstrar/ilustrar
cotidiano da sociedade. Isto decorre de uma
a histórica dificuldade da dogmática jurídica
cultura estandardizada, no interior da qual
em lidar com os fenômenos sociais. Vários
a dogmática jurídica trabalha com prêt-à-
fatores tiveram e têm influência nessa
porters significativos. Há uma proliferação de
problemática. Como muito bem diz Ferraz
manuais, que procuram “explicar” o direito a
partir de verbetes jurisprudenciais ahistóricos Jr., “é preciso reconhecer que, nos dias
e atemporais (portanto, metafísicos).
Ocorre, assim, uma ficcionalização do 16
Na mesma linha, em importante concurso público
mundo jurídico, como se a realidade social realizado no Rio Grande do Sul, perguntou-se: Caio
quer matar Tício, com veneno; ao mesmo tempo, Mévio
pudesse ser procustianamente aprisionada/
também deseja matar Tício (igualmente com veneno!).
moldada/explicada através de verbetes e Um não sabe da intenção assassina do outro. Ambos
exemplos com pretensões universalizantes ministram apenas a metade da dose letal (na pergunta,
não há qualquer esclarecimento acerca de como o
(lembremos das súmulas vinculantes, agora
personagem Tício – com certeza, um idiota –, bebe as
instituciozalizadas pela EC 45/04). Não é duas porções de veneno). Em conseqüência da ingestão
necessário repisar os inúmeros exemplos – das meia-doses, Mévio vem a perecer... Encerrando, a
questão do aludido concurso indagava: Caio e Mévio
parte dos quais beiram ao folclórico – que respondem por qual tipo penal??? Em outro concurso,
povoam os livros jurídicos utilizados nas de âmbito nacional, a pergunta dizia respeito à solução
salas de aulas (e nos fóruns e tribunais). jurídica a ser dada ao caso de um gêmeo xifópago ferir o
outro (com certeza, gêmeos xifópagos andam armados e,
Veja-se o caso da explicação do “estado em cada esquina, encontramos vários deles...!).

37
atuais, quando se fala em Ciência do Direito, milimetricamente” (RT 604/327) (sic); ainda,
no sentido do estudo que se processa nas que “abraço configura o crime de atentado
Faculdades de Direito, há uma tendência em violento ao pudor, cuja pena – ressalte-se,
identificá-la com um tipo de produção técnica, varia de seis a dez anos de reclusão, além de
destinada apenas a atender às necessidades ser crime hediondo” (RT 567/293; RJTJSP
do profissional (o juiz, o promotor, o 81/351) (sic). São citados, geralmente,
advogado) no desempenho imediato de tão-somente os ementários, produtos, em
suas funções. Na verdade, nos últimos cem expressivo número, de outros ementários (ou
anos, o jurista teórico, pela sua formação da fusão destes). Raramente a ementa citada
universitária, foi sendo conduzido a esse tipo vem acompanhada do contexto histórico-
de especialização, fechada e formalista”. 17
temporal que cercou o processo originário.
Escrita há tantos, a advertência/denúncia de Conseqüência disso é que o processo de
Ferraz Jr. ainda continua atual. interpretação da lei passa a ser um jogo de
Em outras palavras, estabeleceu-se cartas (re)marcadas (Ferraz Jr., Bairros de
uma cultura jurídica standard, no interior Brum, J. E. Faria e Warat). Ainda se acredita
da qual o operador do direito vai trabalhar, na ficção da vontade do legislador, do espírito
no seu cotidiano, com soluções e conceitos do legislador, da vontade da norma (sic).18
lexicográficos, recheando, desse modo, suas É relevante frisar, destarte, que toda esta
petições, pareceres e sentenças com ementas problemática se forja no interior do que se
jurisprudenciais, citadas, quase sempre, pode chamar de establishment jurídico, que
de forma descontextualizada, afora sua atua de forma difusa, buscando uma espécie
atemporalidade e ahistoricidade. Para tanto, de “uniformização de sentido”, que, segundo
os manuais jurídicos põem à disposição dos Bourdieu e Passeron, 19 tem uma relação
operadores uma coletânea de prêts-à-porter direta com um fator normativo de poder, o
significativos, representados por citações de poder de violência simbólica. E é inegável
resumos de ementas e verbetes doutrinários o poder de violência simbólica que tem o
(extraídos, na sua maioria, de acórdãos),
ensino jurídico.
normalmente uma a favor e outra contra
Apesar de tudo isso, o Direito,
determinada tese.
instrumentalizado pelo discurso dogmático,
Com um pouco de atenção e acuidade,
consegue (ainda) aparecer, aos olhos do
pode-se perceber que grande parte de
usuário/operador do Direito, como, ao
sentenças, pareceres, petições e acórdãos
mesmo tempo, seguro, justo, abrangente,
é resolvida a partir de citações do tipo:
sem fissuras, e, acima de tudo, técnico e
“Nessa linha, a jurisprudência é pacífica”
funcional. Em contrapartida, o preço que se
(e seguem-se várias citações padronizadas
de número de ementários); ou: “Já decidiu o
Tribunal tal que legítima defesa não se mede 18
Ver meu Hermenêutica Jurídica E(m) Crise.
19
Cf. BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean
Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do
17
Cf. FERRAZ Jr., Introdução ao estudo do direito, sistema de ensino. São Paulo: Ed. Francisco Alves,
op. cit., p. 49. 1975. p. 19-24.

38
paga é alto, uma vez que ingressamos, assim, comum teórico dos juristas, interpretações
“num universo de silêncio: um universo do despistadoras, tornando inócuo/ineficaz o
texto, do texto que sabe tudo, que diz tudo, texto constitucional. Isto porque o “discurso-
que faz as perguntas e dá as respostas. Nestes tipo” (Veron) da dogmática jurídica estabelece
termos, conclui Legendre, os juristas fazem os limites do sentido e o sentido dos limites do
um trabalho doutoral no sentido escolástico processo hermenêutico. Conseqüentemente,
da palavra. Em outras palavras, fazendo seu estabelece-se um enorme hiato que separa
trabalho, eles não fazem o Direito; apenas os problemas sociais do conteúdo dos textos
entretêm o mistério divino do Direito, ou seja, jurídicos que definem/asseguram os direitos
o princípio de uma autoridade eterna fora do individuais e sociais.
tempo e mistificante, conforme as exigências Por isso, insisto na importância da
dos mecanismos de controle burocrático num relação entre o modo-de-fazer-Direito e a
contexto centralista”.20 concepção de Estado vigente/dominante.
Isto porque a inefetividade de inúmeros
3 A fetichização do discurso e dispositivos constitucionais e a constante
o discurso da fetichização: redefinição das conquistas sociais através de
a dog m ática jur í dica , interpretações despistadoras/redefinitórias
o discurso jurídico e a feitas pelos Tribunais brasileiros têm uma
interpretação da lei – direta relação com o modelo de hermenêutica
ainda a “estandardização jurídica que informa a atividade interpretativa
do Direito” da comunidade jurídica.
Esse hiato (hermenêutico) entre a
À evidência, o Judiciário e as demais concepção de direito vigorante no modelo
instâncias de administração da justiça são de Estado Liberal e no Estado democrático de
atingidos diretamente por essa crise. Com Direito e a (conseqüente) crise de paradigma
efeito, o sistema de administração da justiça de dupla face (crise do paradigma liberal-
(Magistratura, Ministério Público, Advocacia individualista-normativista e crise dos
de Estado, Defensoria Pública e Polícia) paradigmas epistemológico-subjetivista
consegue enfrentar, de forma mais ou menos da filosofia da consciência e objetivista-
eficiente, os problemas que se apresentam aristotélico-tomista), retratam a incapacidade
rotinizados, sob a forma de problemas histórica da dogmática jurídica em lidar com
estandardizados. Quando, porém, surgem os problemas decorrentes de uma sociedade
questões macrossociais, transindividuais, e díspar/excludente como a brasileira.21
que envolvem, por exemplo, a interpretação
das ditas “normas programáticas”
constitucionais, tais instâncias, mormente o 21
Pesquisa de Sérgio Adorno acerca da história
do ensino jurídico no Brasil dá conta de que, já no seu
Judiciário, procuram, nas brumas do sentido
nascedouro, o “segredo” do ensino jurídico decorre da
síntese entre patrimonialismo e liberalismo. Destarte,
desde o início o Brasil privilegiou a autonomia da ação
20
Cf. FERRAZ Jr., Função Social da Dogmática individual em lugar da ação coletiva; conferiu primazia
Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 178. ao princípio da liberdade em lugar do princípio da

39
Do que foi dito, penso que, sem modificar anos e em pleno paradigma do Estado
o nosso modo de compreender o mundo, Democrático de Direito, do giro lingüístico
sem superar o esquema sujeito-objeto, sem e do neoconstitucionalismo,
superar a cultura manualesca que assola e
a) ainda não se construiu um modelo de
domina o imaginário dos juristas, sem superar
ensino que “supere” a leitura de leis e
a discricionariedade positivista e a falsa
códigos comentados (na maioria das vezes,
impressão de que são críticas determinadas
reproduzindo conceitos lexicográficos e
posturas subjetivistas-axiologistas que
sem nenhuma sofisticação teórica);
desconsideram o texto (inclusive da
Constituição), parece temerário falar no b) a doutrina, a cada dia, doutrina menos,
resgate do papel transformador do direito, estando dominada por produções que
entendido como aquele que exsurge do papel buscam, nos repositórios jurisprudenciais,
dirigente e compromissório da Constituição. ementas que descrevem, brevissimamente,
Disso tudo, é possível extrair a seguinte o conceito do texto enquanto “enunciado
assertiva: ou se acaba com a estandardização lingüístico”;
do direito ou ela acaba com o que resta da
c) uma simples decisão de tribunal vira
ciência jurídica.22 Afinal, passados tantos
referência – plenipotenciária – para a
atribuição de sentido do texto, perdendo-
igualdade e colocou, no centro da gravitação do agir e
se a especificidade da situação concreta
do pensar a coisa pública, o indivíduo em lugar do grupo
social. Com isto, proporcionou condições para promover que a gerou;
um tipo de político profissional forjado para privatizar
conflitos sociais, jamais para admitir a representação d) em muitos casos, interpretam-se as leis
coletiva. Um político liberal; seguramente, não um e os códigos com base em julgados
democrata. As Escolas de Direito, continua Adorno,
sempre ensinaram aos bacharéis um modo específico anteriores à Constituição, o que faz com
de representar as relações sociais: como relações que determinados dispositivos, mesmo
individualizadas, nascidas do mercado e das quais
que sob um novo fundamento de validade,
resultavam tanto o dever político como as obrigações
morais. Cf. Adorno, Sérgio. Os aprendizes do poder. sejam interpretados de acordo com a
O bacharelismo liberal na política brasileira. São Paulo, ordem jurídica anterior;
Paz e Terra, 1988.
22
É evidente que estou me referindo à cotidianidade e) a doutrina especializada em comentários
das práticas jurídicas, representado pelo universo das de legislação não tem efetuado uma
centenas de faculdades de direito, os inúmeros cursos de
filtragem hermenêutico-constitucional
preparação para concursos e a operacionalidade do direito
massificada e sufocada pelo excesso de processos e pela dos Códigos e leis, com o que casos
desfuncionalidade do sistema processual. Despiciendo nítidos de aplicação direta da Constituição
registrar a importância da crescente produção teórica
(também em qualidade) ocorrida nos últimos anos, acabam soçobrando em face de legislação
mormente no campo do direito constitucional, fruto produzida há mais de cinqüenta anos,
principalmente da expansão da pós-graduação stricto
sensu (há, hoje, 62 programas de mestrado e 17
como foi o caso da presença (obrigatória)
programas de doutorado em funcionamento). Essa do advogado no interrogatório do acusado,
benéfica influência já se faz notar nas decisões judiciais,
à qual a doutrina e os tribunais resistiram
proporcionando relevantes avanços doutrinários e
jurisprudenciais. até o advento da lei no ano de 2004;

40
f) até mesmo em determinados setores da h) o modelo de decisão judicial continua
pós-graduação stricto sensu (mestrado e o mesmo há mais de um século: a
doutorado) continua-se a fazer descrições fundamentação restringe-se à citação
de leis e casos (há dissertações e teses da lei, da súmula ou do verbete,
tratando de temáticas monográficas, mais problemática que se agrava com a
apropriadas para cursos de especialização, institucionalização da súmula vinculante.
para dizer o menos) – a maior parte Daí a (correta) exigência Dworkin de uma
desvinculada das linhas de pesquisa dos “responsabilidade política” dos juízes. Os
cursos, como, v. g., limitação de fim de juízes têm a obrigação de justificar suas
semana na lei de execução penal, cheque decisões, porque, com elas afetam, os
direitos fundamentais e sociais, além da
pré-datado, saídas temporárias na lei
relevante circunstância de que, no Estado
de execução penal, inquérito policial,
Democrático de Direito, a adequada
recurso de ofício, perda de bagagem em
justificação da decisão constitui-se em
transporte aéreo, sistema postal, análise
um direito fundamental. O sentido da
jurídica do lixo, o papel do oficial de
obrigação de fundamentar as decisões
justiça, o papel do árbitro, suspensão
previsto no art. 93, IX, da Constituição
condicional da pena em ação penal
do Brasil implica, necessariamente, a
privada, embargos infringentes, embargos
justificação dessas decisões;
declaratórios, união homossexual (em um
Programa de Pós-Graduação que trata de i) um dos indicadores da prevalência das
meio-ambiente), embargos de execução, posturas positivistas – e, portanto, da
agravo de instrumento, exceção de pré- discricionariedade judicial que lhe é
inerente – está no escandaloso número
executividade, infanticídio, além de uma
de embargos de declaração propostos
tese que, em pleno Estado Democrático de
diariamente no Brasil. Ora, uma decisão
Direito, arrasa com o poder constituinte e
bem fundamentada/justificada (nos
uma outra que propõe a “inversão do ônus
termos de uma resposta correta-adequada-
da prova penal” em crimes do colarinho
à-Constituição, a partir da exigência
branco etc;
da máxima justificação) não poderia
g) por outro lado, nem sequer conseguimos demandar “esclarecimentos” acerca da
elaborar um novo modelo de provas holding ou do dictum da decisão. Os
de concursos públicos, continuando embargos de declaração – e acrescente-
com a tradicional múltipla escolha – se, aqui, o absurdo representado pelos
espaço (indispensável) para personagens “embargos de pré-questionamento”
fictícios como Caio, Tício e Mévio – (sic) – demonstram a irracionalidade
e com questões dissertativas sobre positivista do sistema jurídico;
casos jurídicos (no mais das vezes, sem j) registre-se o componente simbólico
qualquer sentido “prático”) ou sobre (lembremos Lacan e Castoriadis) desse
conceitualizações jurídicas; problema: somos, provavelmente, o único

41
país do mundo que mantém um “recurso” O juiz, por exemplo, deve expor as razões
(embargos declaratórios) para compelir que lhe conduziram a eleger uma solução
um juiz ou tribunal a fundamentar determinada em sua tarefa de dirimir
(explicitamente) aquilo que decidiu, conflitos. A motivação/justificação está
muito embora a própria Constituição vinculada ao direito à efetiva intervenção
determine que todas as decisões sejam – do juiz, ao direito de os cidadãos obterem
obrigatoriamente – fundamentadas. Ora,
uma tutela judicial, sendo que, por esta
parece óbvio que uma decisão carente de
razão, o Tribunal Europeu de Direitos
adequada (e necessária) fundamentação
Humanos considera que a motivação
não enseja embargos de declaração.23
integra-se ao direito fundamental a um
É, sim, nula, írrita, nenhuma;
processo eqüitativo, de modo que “as
k) as decisões devem estar justificadas e
decisões judiciais devem indicar de
tal justificação deve ser feita a partir
maneira suficiente os motivos em que
da invocação de razões e oferecendo
argumentos de caráter jurídico, como bem
assinala David Ordónez Solís.24 O limite
nas valorações e princípios dela emanantes, ou nas
mais importante das decisões judiciais
valorações sociais e culturais dominantes no seio da
reside, precisamente, na necessidade da coletividade, enfim, no direito como totalidade, para
motivação/justificação do que foi dito. 25 que tudo não redunde a final em puro arbítrio” (Do
formalismo no processo civil, 2.ed., São Paulo, Saraiva,
2003, p. 216). Em outro texto, Alvaro de Oliveira alerta
contra a arbitrariedade judicial (O formalismo-valorativo
23
Para registrar a dimensão do problema: depois
no confronto com o formalismo-excessivo. In: Revista da
de dizer que o pedido de respeito à hierarquia das leis
era um “argumento singelo”, o juiz do processo n.º AJURIS. Ano XXXIII n. 104, dezembro de 2006, pp. 55
023/1.05.0006047-6, do Estado do Rio Grande do Sul, e segs). Já Tereza Arruda Wambier faz uma contundente
respondendo aos embargos declaratório interpostos crítica à discricionariedade: “o Poder Judiciário não
por uma das partes, acrescentou: “Todavia, não há tem discricionariedade quando interpreta (e aplica ao
que se exigir respeito a lei e praticar injustiça”. E não caso concreto) norma que tenha conceito vago, seja
“conheceu” os embargos. proferindo liminares, seja proletando sentenças. Também
não o tem quando se trata de verificar quais fatos
24
Cf. ORDÓNEZ SOLIS, David. Derecho y
ocorreram e como ocorreram, analisando o conjunto
Política. Navarra, Aranzadi, 2004, pp. 98 e segs.
probatório. E tampouco na atividade preliminar, relativa
25
A temática relacionada à discricionariedade à formação deste quadro” (Omissão Judicial e embargos
e (ou) arbitrariedade não parece ter estado na pauta de declaração. São Paulo, Revista dos Tribunais,
das discussões da doutrina processual-civil em terrae 2005, pp. 350 e segs.; também, Controle das decisões
brasilis. Entretanto, alguns autores, como Ovidio judiciais por meio de recursos de estrito direito e de
Baptista da Silva, mostram-se contundentes contra ação rescisória. São paulo, Revista dos Tribunais, 2001).
qualquer possibilidade de decisionismo judicial Na linha de Ovidio Batista, a tese de Tereza Wambier
(Processo e Ideologia: o paradigma racionalista. Rio fundamenta-se – muito acertadamente – na absoluta
de Janeiro, Forense, 2004). Em linha similar, Carlos necessidade de fundamentação/justificação das decisões,
Alberto Alvaro de Oliveira acentua que a solução entre aproximando-a da exigência da integridade (direito como
justiça e formalismo concreto – decorrente de o juiz prática interpretativa) de Dworkin. A autora dá, assim,
estar diante de lei injusta ou iníquia, “deve encontrar importante contribuição ao Processo Civil brasileiro,
encaminhamento dentro do discurso jurídico, proferido ainda fortemente influenciado e calcado no paradigma
este com a linguagem que lhe é própria. E o discurso racionalista, preocupação constante nos textos mais
jurídico só obriga até onde conduza sua força de recentes de Ovidio Baptista da Silva, mormente em seu
persuasão, força vinculante que há de assentar na lei, Processo e Ideologia.

42
se fundam. A extensão deste dever pode decisão pode ser do tipo: “Defiro, com base
variar segundo a natureza da decisão e na lei x ou na súmula y”, valendo lembrar
deve ser analisada à luz das circunstâncias que esse problema ficará agravado com a
de cada caso particular”.26 institucionalização das súmulas vinculantes
introduzidas pela EC 45/04. Para tanto, basta
Daí a necessidade de ultrapassar o “modo-
ver decisão do Supremo Tribunal Federal,
positivista-de-fundamentar” as decisões
entendendo como válida decisão que se
(perceptível no cotidiano das práticas dos
restringe à invocação de jurisprudência
tribunais, do mais baixo ao mais alto); é
pacífica corroborada posteriormente em
necessário justificar – fenômeno que ocorre
enunciado de súmula. Segundo o STF, nesse
no plano da aplicação – detalhadamente o que caso, não se aplica a exigência contida no
está sendo decidido. Portanto, jamais uma art. 93, IX, da Constituição (Ag.Reg. no RE
359.106-1-PR). Veja-se o problema decorrente
do entendimento do que é fundamentação/
26 Sentenças de 9.12.1994 – TEDH 1994, 4,
Ruiz Torija e Hiro Balani-ES, parágrafos 27 e 29; de
justificação/motivação de uma decisão: para
19.02.1998 – TEDH 1998,3, Higgins e outros –Fr, o Supremo Tribunal Federal, basta a citação
parágrafo 42; e de 21.01.99 – TEDH 1999,1, Garcia do enunciado sumular, que é, assim, alçado à
Ruiz-ES. No mesmo sentido, ressalte-se a posição do
Tribunal Constitucional da Espanha (sentença 20/2003, categoria de “conceito abstrato”, com caráter
de 10 de febrero): “Este Tribunal, con carácter general, de universalidade, “mantendo-se” no sistema
ha reiterado que el derecho a la tutela judicial efectiva,
à revelia de qualquer situação concreta
en su dimensión de necesidad de motivación de las
resoluciones, implica que las decisiones judiciales deben (reduz-se, pois, a problemática relacionada
exteriorizar los elementos de juicio sobre los que se aos discursos jurídicos aos discursos sobre
basan y que su fundamentación jurídica ha de ser una
a validade). No referido acórdão, o Tribunal
aplicación no irracional, arbitraria o manifestamente
errónea de la legalidad (por todas, STC 221/2001, de decidiu que não só a decisão que apenas cita
31 de octubre, FJ 6); haciéndole especial incidencia en a súmula é legítima, como o recurso deve
reforzar esa obligación de motivación en los supuestos
de resoluciones judiciales en el ámbito penal por la
ser dirigido contra a fundamentação dos
trascendencia de los derechos fundamentales que quedan precedentes em que se alicerça a súmula. Essa
implicados en ese tipo de procedimientos (por todas, tese desborda daquilo que deve ser entendido
SSTC 209/2002, de 11 de noviembre, FFJJ 3 y 4, o
5/2002, de 14 de enero, FJ 2). El fundamento de dicha como jurisprudência e sua consolidação.
exigencia de motivación se encuentra en la necesidad, Além disso, fica a pergunta: se uma decisão
por una lado, de exteriorizar las reflexiones que han
que apenas cita a lei é nula, por qual razão
conducido al fallo, como factor de racionalidad en el
ejercicio de la potestad jurisdiccional, que paralelamente uma que cite apenas uma súmula não o é?
potencia el valor de la seguridad jurídica, de manera Para além da crise aqui denunciada e
que sea posible lograr el convecimiento de las partes
procurando permanecer fiel às coisas mesmas,
en el proceso respecto de la corrección y justicia de la
decisión; y, de otro, en garantizar la posibilidad de control à intersubjetividade, ao mundo prático, à
de la resolución por los Tribunales superiores mediante faticidade, à busca da construção de um
los recursos que procedan, incluido este Tribunal a través
del recurso de amparo (por todas STC 139/2000, de 29
“comportamento constitucional” já referido
de mayo, FJ 4)” [TC (Sala 2ª), sentencia 20/2003, de anteriormente, torna-se necessário superar
10 de febrero (amparo parcial por falta de motivación as diversas posturas que ainda percebem o
de sentencia condenatoria por delitos de imprudencia
temeraria y omisión del deber de socorro]. direito a partir de hipóteses, categorias, de

43
construções imaginárias ou de quaisquer sensu do direito, mergulhada em uma crise
outras herdadas da tradição filosófica de de efetividade qualitativa e quantitativa,27
índole metafísica (Villalibre).

27
As constantes reformas processuais vem se
4 À guisa de considerações restrigindo a busca de “efetividades quantitativas”, com
finais: um decálogo para a institucionalização de mecanismos que “delegam” aos
juízos mocráticos a decisão, além da possibilidade da
evitar m al - entendidos “reunião” de um número ilimitado de processos para
sobre o papel da serem julgados “em julgamento único”. Como exemplo,
vale referir a decisão do Supremo Tribunal Federal do dia
hermenêutica (filosófica)
09/02/2007, julgando um conjunto de 4908 processos de
pensão por morte. Por maioria, o Tribunal conheceu e deu
Nesta quadra da história, algumas provimento aos REs 416827 e 415454, interpostos pelo
teses tornaram-se lugar-comum no campo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O Plenário
analisou todos os recursos em conjunto. Os ministros
jurídico, a partir da formação de uma
relatores (Sepúlveda Pertence, Gilmar Mendes, César
espécie de unanimidade teórica em torno de Peluzo, Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski
assertivas como a de que vivemos a era da e Cármen Lúcia) fizeram uma triagem em todos os
processos sob sua responsabilidade, que tratavam do
concretização dos direitos constitucionais, tema e se enquadravam na decisão dos recursos julgados
a norma (somente) se realiza no “caso no dia anterior. O julgamento em bloco tornou-se
possível após a alteração instituída pelo artigo 131 do
concreto”, todo o direito privado está Regimento Interno do STF. A emenda altera o tempo de
“atravessado” pelo público (publicização do sustentação oral, de 15 minutos para as causas normais,
para 30 minutos nos casos de recursos idênticos ou
direito privado), além da cotidiana ode aos
causas conjuntas. Esse tempo será compartilhado entre
princípios e à jurisdição constitucional. os advogados presentes interessados na causa. No início
Isso deveria ser alvissareiro, não fosse a da sessão, o ministro Marco Aurélio levantou questão de
ordem, para que os processos fossem retirados de pauta
visível crise que decorre da distância entre, e cada relator, ante o precedente do plenário, atuassem
de um lado, os direitos proclamados por esse de forma individual. Ele revelou sua preocupação
“quanto à inserção em pauta de 4908 processos”. Para
novo paradigma constitucional e, de outro,
ele, o INSS advoga para fazer frente a uma avalanche de
as demandas decorrentes de uma sociedade processos. E que por vezes pode surgir um descompasso
carente de atendimento dos mais básicos entre os fundamentos da decisão e as razões recursais,
bem como a falta de oportunidade de observância do
direitos fundamentais sociais, assim como, prazo recursal. “Jamais a corte fez inserir em pauta
até mesmo, dos próprios direitos de primeira processos a revelarem Recursos Extraordinários para
serem apreciados sem sequer o pregão específico do
dimensão (basta verificar como são tratados
processo, mediante remissão a listas”. O Min. Marco
os pobres no plano da justiça criminal). Aurélio afirmou que há situações diversificadas em cada
Do mesmo modo, de um lado, a produção um dos recursos, além de situações anteriores diferentes.
Por isso a questão de ordem. Ele disse que o julgamento
acadêmico-doutrinária apontando para o em massa pode provocar a interposição desenfreada de
papel transformador do direito e da jurisdição embargos declaratórios. “É um procedimento inédito,
que poderá ter desdobramentos nefastos”, finalizou o
constitucional, sustentada em potentes teorias ministro. A ministra Ellen Gracie asseverou que o ato
que têm na interpretação o locus privilegiado de pautar esses processos resultou de uma iniciativa da
de ação, e, de outro, o “bater de frente” presidência da Corte, e contou com a concordância da
maioria dos ministros. “Considero que se alguma questão
com a cotidianidade do ensino jurídico há, perante esse STF, que mereça o título de questão
(estandardizado e refém de uma cultura de massa, homogênea e absolutamente uniforme, é
exatamente a questão que ontem decidimos nos dois REs
manualesca) e a operacionalidade stricto chamados a julgamento”. Ela ressaltou que tratar como se

44
a ponto de se buscar, dia a dia, para além “com força de lei” impeditivos de reexame
da súmula vinculante, outros mecanismos da matéria).
que “acelerem” e “desafoguem” a prestação Assim, se é verdade que o direito assume,
jurisdicional (veja-se, v. g., para além do definitivamente, nesta quadra da história,
poder monocrático conferido ao relator nos um caráter hermenêutico, decorrente de um
recursos – art. 557 do CPC –, a nova Lei efetivo crescimento no grau de deslocamento
n.º 12.277/06, que institui o julgamento da do pólo de tensão entre os poderes do Estado
ação sem a ouvida da outra parte; registre- em direção à jurisdição (constitucional),
se a edição, por parte de Turmas Recursais também é verdade que, em plena era da
de Juizados Federais, 28 de enunciados “sociedade aberta de intérpretes”, do triunfo
do constitucionalismo, da argumentação
jurídica e da viragem lingüística, a teoria do
fossem casos individuais, com peculiaridades extremas,
uma questão que é absolutamente homogênea, “seria direito vem sendo dominada por uma crescente
uma perda de tempo”. E concluiu dizendo que a proposta sincretização de cunho a-paradigmático.
de Marco Aurélio, de julgamentos monocráticos por
parte dos relatores de cada processo, atrairia, da mesma
Conseqüentemente – para aquilo que
forma, o agravo regimental (www.stf.gov.br). Mas interessa aos objetivos destas reflexões –
essa questão não fica restrita ao judiciário (lembremos,
expressões como “caso concreto”,
nesse ponto, os poderes conferidos aos relatores nos
tribunais através de várias mini-reformas levadas a “hermenêutica”, “interpretação”, “discurso”,
cabo no Código de Processo Civil). Com efeito – e para “argumentação” e “concretização” vêm
demonstrar que essa questão é (também) um problema
decorrente da formação de um determinado imaginário
sofrendo de forte anemia significativa. Em
jurídico (lembremos aqui as antigas, porém ainda atuais, face desse estado d’arte e na medida em
noções de ideologia) – registro notícia publicada no
que a problemática acerca da interpretação
Informativo da Ordem dos Advogados do Brasil (seção
Distrito Federal, ano 27, n. 196, novembro de 2005), é uma questão que envolve concorrência
dando conta de o secretário-geral, durante exercício de ou entre paradigmas de direito, de pré-
da Presidência, “deu especial atenção aos processos
disciplinares pendentes. Em 48 horas, ele proferiu compreensões acerca de como se deve
despachos justificados e fundamentados determinando o interpretar e aplicar direito, na feliz assertiva
arquivamento de aproximadamente 520 representações,
de Marcelo Cattoni,29 algumas advertências se
após receber os processos, devidamente instruídos, de
vários membros do Tribunal de Ética e Disciplina”.
28
Por todos, o RE 418.918-6-RJ, que afastou, por 29
Isso significa dizer, por exemplo, que a opção
inconstitucional, o enunciado n.º 26, pelo qual “decisão
pela teoria do discurso habermasiana torna incompatível
monocrática proferida pelo relator não desafia recurso a utilização da ponderação de princípios de que fala
à Turma Recursal”, motivando o seguinte comentário Alexy. Já a opção pela hermenêutica filosófica implica
do Min. Marco Aurélio Mello: “Mas, aí, verifica-se trabalhar, mais do que com a viragem lingüística, com o
que as turmas recursais acabam por criar um sistema giro ontológico (ontologische Wendung), com o que ser e
que é um terceiro gênero, tendo em conta o texto do ente (na adaptação que fiz para a hermenêutica jurídica,
Código de Processo Civil: o relator pode acionar o norma e texto) somente subsistem a partir da diferença
art. 557 e chegar, até mesmo, ao julgamento de fundo, ontológica, o que implica igualmente evitar qualquer
reformando a decisão do juízo especial, mas fazendo-o, tipo de dualismo metafísico (palavras e coisas, questão
contrariando uma sistemática que é da tradição do de fato e questão de direito, essência e aparência, para
direito brasileiro, a parte prejudicada não tem acesso ao referir apenas estas). Optar pelo paradigma hermenêutico
colegiado; fazendo-o, deixa o art. 557 capenga, no que (fenomenologia hermenêutica, de matriz heidegero-
a Turma Recursal afasta o agravo previsto no parágrafo gadameriana) implica abandonar qualquer possibilidade
segundo do art. 557. Foi justamente isso que ocorreu no de uso de métodos, metamétodos ou metacritérios
caso, neste processo”. interpretativos ou a ponderação (em etapas ou não).

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impõem desde o paradigma da hermenêutica destas;31 também não é possível sustentar
filosófica, isto é, é preciso ter claro que que a ponderação (feita em etapas ou não)
a “opção” por um paradigma implica seja uma “atividade hermenêutica”, uma
uma série de compromissos teóricos, com vez que o círculo hermenêutico aponta
os quais não se pode transigir.30 Assim, a exatamente para a superação de qualquer
hermenêutica não se pretende “imperialista” atividade interpretativa ligada ao esquema
ou “invasora” de outras teorias, do mesmo sujeito-objeto, rejeitando, ipso facto, toda
modo que não pretende substituir qualquer e qualquer possibilidade de subsunções
outra teoria (epistemológica ou não) ou ter ou deduções;
a última palavra. • segundo, quando se diz que a Constituição
Nessa linha de raciocínio, chamo a e as leis são constituídas de plurivocidades
atenção para o seguinte decálogo, no sentido
sígnicas (textos “abertos”, palavras vagas
de que:
e ambíguas etc), tal afirmativa não pode
• primeiro , não se pode confundir
dar azo a que se diga que sempre há
hermenêutica com teoria da argumentação
várias interpretações e, portanto, que
jurídica, isto é, hermenêutica (filosófica)
não é similar a nenhuma teoria da
argumentação (e suas derivações); 31
De ressaltar o que parece evidente: a tese
portanto, não é possível com ela habermasiana é bem mais sofisticada que a teoria da
argumentação stricto sensu. Portanto, as críticas à teoria
(con)fundir – por mais sofisticadas e
argumentação não podem ser estendidas, tabula rasa,
importantes que sejam – as teses de Alexy, à teoria do discurso. As críticas à teoria do discurso
Atienza e Günther, para falar apenas assumem outra perspectiva, exaustivamente por mim
examinada em Verdade e Consenso, op.cit. Mas, ao
dizer que os participantes de uma situação discursiva
tematizam uma pretensão de validade que se tornou
Também não se pode confundir hermenêutica filosófica
problemática e verificam, num enfoque hipotético e
com as teorias ligadas à tópica jurídica, como as de
apoiados apenas em argumentos, se a pretensão do
Perelman e Viehweg.
oponente tem fundamento, parece que, para Habermas,
30
Como referido no decorrer da presente obra, a obtenção da resposta estará dependente da obediência
entendo que há uma série de aproximações e pontos da forma da argumentação, podendo soçobrar a
comuns entre a teoria interpretativa-integrativa de conteudística, problemática que assume especial
Dworkin e a hermenêutica filosófica de Gadamer. relevância quando se tratar da discussão de direitos
Seu caráter não epistemológico, a não-cisão entre fundamentais prestacionais. E, com isso, pode soçobrar
interpretação e aplicação (caráter unitário do a Constituição. Observe-se que a “substituição” da tese
compreender), a incorporação da reflexão moral como do consenso por uma “praxis argumentativa”, conforme
elemento necessário da decisão judicial (o aspecto Habermas em Verdade e Justificação, implica colocar
normativo incorpora a reflexão moral, perceptível toda a ênfase na argumentação, que “permanece o único
em Gadamer na relação entre o geral e o particular), meio disponível para se certificar da verdade”, porque
o rechaço de ambos à arbitrariedade interpretativa, a não há outra maneira de examinar pretensões de verdade
incompatibilidade com as teorias da argumentação, por tornadas problemáticas. Tal circunstância permite uma
serem procedurais e a superação do esquema sujeito- aproximação da teoria do discurso habermasiana da
objeto, entre outras questões. De modo que, embora as teoria da argumentação, pela qual, ao fim e ao cabo,
observações se relacionem à hermenêutica filosófica, somente é verdadeiro um enunciado se estiver em
também podem ser válidas para a teoria interpretativa conformidade com um determinado procedimento, isto
dworkiana, pelos pontos em comum entre ambas e pelas é, os procedimentos que regram a argumentação (em
incompatibilidades com as teorias realistas, analíticas e Habermas, a resposta estará dependente da obediência
discursivo-procedurais. da forma da argumentação).

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o direito permite múltiplas respostas, (liberdade) interpretiva em favor dos
circunstância que, paradoxalmente, juízes, circunstância que recoloca, no
apenas denuncia – e aqui chamo à paradigma neoconstitucionalista, a
colação as críticas de Dworkin à Hart – principal característica do positivismo: a
as posturas positivistas que estão por discricionariedade;
trás de tais afirmativas; por isso, também • terceiro, quando, por exemplo, Gadamer
são incompatíveis com a hermenêutica confronta o método, com o seu Verdade e
as teses que sustentam que o advento Método, não significa que a hermenêutica
dos princípios e das cláusulas gerais seja relativista e permita interpretações
possibilitam uma (maior) “abertura”32 discricionárias/arbitrárias; portanto,
a hermenêutica é incompatível com
32
Malgrado tais esforços, entendo que, com o discricionariedades e arbitrariedades
advento do constitucionalismo principiológico, não há interpretativas;
mais que falar em “princípios gerais do Direito”, pela
• quarto, quando se fala na invasão da
simples razão de que foram introduzidos no Direito
como um “critério positivista de fechamento do sistema”, filosofia pela linguagem, mais do que
visando a preservar, assim, a “pureza e a integridade” do a morte do esquema sujeito-objeto, isso
mundo de regras. Nesse sentido, basta observar algumas
questões que, pelo seu valor simbólico, representam o quer dizer que não há mais um sujeito
modo pelo qual a instituição “positivismo” assegura a que assujeita o objeto (subjetivismos/
sua validade mesmo em face da emergência de um novo
paradigma. É o caso de três dispositivos que funcionam
axiologismos que ainda vicejam no
como elementos de resistência no interior do sistema campo jurídico) e tampouco objetivismos;
jurídico, como que para demonstrar a prevalência do
também por isso não é mais possível falar
velho em face do novo. Vejamos: mesmo com a vigência
de um novo Código Civil desde 2003, continua em vigor em subsunções ou deduções e dualismos
a velha Lei de Introdução ao Código Civil de 1942. Um (cisões) entre regra e princípio, casos
dos pilares da Lei é o artigo 4º, que, ao lado do artigo
126 do Código de Processo Civil, funcionam como uma simples e casos difíceis;
espécie de fechamento autopoiético do sistema jurídico. • quinto, quando se popularizou a máxima
Segundo o artigo 4º, quando a lei for omissa, o juiz
de que “interpretar é aplicar” e de que
decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes
e os princípios gerais do direito. Em linha similar, tem- “interpretar é confrontar o texto com
se o artigo 3º do Código de Processo Penal, também a realidade”, não significa que texto e
da década de 40 do século passado, segundo o qual a
lei processual penal admitirá interpretação extensiva realidade sejam coisas que subsistam
e aplicação analógica, bem como o suplemento dos por si só ou que sejam “apreensíveis”
princípios gerais do direito. Já o artigo 335 do Código
de Processo Civil, fruto do regime militar, acentua
isoladamente, sendo inadequado sustentar,
que em falta de normas jurídicas particulares, o juiz portanto, que interpretar é algo similar a
aplicará as regras de experiência comum subministradas
“fazer acoplamentos entre um texto
pela observação do que ordinariamente acontece e
ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, jurídico e os fatos” ou, como numa
quanto a esta, o exame pericial. Os dispositivos, a par metáfora que circula nas salas de aula,
de sua inequívoca inspiração positivista (permitindo
discricionariedades e decisionismos), e sua frontal “entre um parafuso e uma porca” (sic),
incompatibilidade com uma leitura hermenêutica do em que o parafuso seria o texto e a porca,
sistema jurídico, superadora do esquema sujeito-objeto
a realidade, sendo a aplicação, ipso facto,
(filosofia da consciência), mostram-se tecnicamente
inconstitucionais (não recepcionados). Ver, para tanto, o resultado dessa “junção”;
Verdade e Consenso, op.cit.

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• sexto , de igual maneira, quando se ser constatado nas práticas tribunalícias
popularizou a assertiva de que o texto (decisões que tão-somente reproduzem
não é igual à norma e de que a norma ementários), retroalimentadas pela
é o produto da interpretação do texto, doutrina (“cultura” dos manuais),
nem de longe quer dizer que o texto não que vem assumindo, dia-a-dia, um
vale nada ou que norma e texto sejam conceitualismo que a joga de volta ao
“coisas à disposição do intérprete”, realismo filosófico.
ou, ainda, que depende do intérprete
Se é certo que essa corrida em direção
(solipsista) a “fixação da norma”; em
à hermenêutica jurídica (nas suas diversas
realidade, esquece-se que a “norma”
formas e vertentes), isto é, essa “viravolta
deve ser compreendida como o texto em
concretizadora”, propiciou efetivos
forma de enunciados, em que o conteúdo
avanços no campo da efetivação dos
veritativo não é nada mais do que a
direitos (lato sensu), também é certo
dimensão predicativa, isto é, aquilo que
que algumas posturas fomentaram uma
se diz sobre ele;
verdadeira “ideologia decisionista”, em que
• sétimo, se texto e norma não são a mesma
a situação concreta desaparece no interior da
coisa, tal circunstância não implica a
“conceitualização” (conceitos doutrinários,
afirmação de que estejam separados
ementas jurisprudenciais descontextualizadas
(cindidos) ou de que o texto contenha a
etc.). Ou seja, é a pretensão universalizante
própria norma (as súmulas e os verbetes
dos conceitos prévios, sempre feita a partir
“proto-sumulares” são a prova disso),
da justificativa de que a lei não pode abarcar
mas, sim, que apenas há uma diferença
todas as hipóteses de aplicação. O paradoxal
(ontológica) entre ambos;
• oitavo, é um equívoco pregar que o texto é que, por exemplo, a institucionalização
jurídico é apenas “a ponta do iceberg” e que da súmula com efeito vinculante aponta
a tarefa do intérprete é a de revelar o que na direção contrária, isto é, parece que os
está “submerso”, porque pensar assim é dar juristas “descobriram” um modo de “abarcar
azo à discricionariedade e ao decisionismo, as múltiplas hipóteses de aplicação de uma
características do positivismo; lei...”.
• nono , a fundamentação de decisões Na verdade, a alusão ao “caso concreto”
(pareceres, acórdãos etc.) a partir de transformou-o em álibi teórico, a partir do
ementas jurisprudenciais sem contexto qual se pode atribuir qualquer sentido ao
e verbetes proto-lexicográficos apenas texto e qualquer decisão pode ser produzida.
reafirma o caráter positivista da Nesse rol, podem ser elencadas as diversas
interpretação jurídica, pois esconde a posturas positivistas, que, de um modo ou
singularidade dos “casos concretos”; de outro, trabalham com a possibilidade
• décimo, é preciso ter em mente que a de múltiplas respostas, ou transferindo o
reprodução de ementas e verbetes sem problema da indeterminabilidade do direito
contexto apenas enfraquece a reflexão para os conceitos elaborados previamente
crítica, fenômeno que pode facilmente pela dogmática jurídica (pautas gerais,

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súmulas, verbetes jurisprudenciais) ou dogmática jurídica (que continua) refratária
deixando a cargo do sujeito-intérprete a a uma reflexão mais aprofundada acerca do
tarefa de “descobrir os valores ocultos do papel do direito no século XX. De qualquer
texto”. Volta-se, pois, ao velho problema: o modo, é possível afirmar, com base na
positivismo e sua principal característica: a tradição (autêntica) da teoria do direito, que
discricionariedade, que leva à arbitrariedade a viragem lingüístico-hermenêutica tem
e ao decisionismo. apontado para a superação da metafísica
Em reduzida síntese: parece não haver clássica e da metafísica moderna. E o
dúvida de que o positivismo – compreendido direito, locus privilegiado do processo
lato sensu – não conseguiu aceitar a viragem hermenêutico – porque os textos necessitam
interpretativa ocorrida na filosofia do direito sempre de interpretação, questão que a
(invasão da filosofia pela linguagem) e suas própria dogmática jurídica reconhece –,
conseqüências no plano da doutrina e da não pode caminhar na contramão desse
jurisprudência. Se isto é verdadeiro – e penso rompimento paradigmático. Tais conclusões,
que é – então como é possível continuar exatamente porque sustentadas no paradigma
a sustentar o positivismo nesta quadra da da hermenêutica filosófica, não são, por
história? Como resistir ou obstaculizar o isso, definitivas. Como já referido acima,
constitucionalismo que revolucionou o direito a hermenêutica, por ser crítica, está
no século XX? Entre tantas perplexidades, inexoravelmente condenada à abertura e ao
parece não restar dúvida de que uma diálogo. E, como alerta Gadamer, não quer
resposta mínima pode e deve ser dada a ter a última palavra!
essas indagações: o constitucionalismo –
nesta sua versão social, compromissória REFERÊNCIAS
e dirigente – não pode repetir equívocos
Adorno, Sérgio. Os aprendizes do poder.
positivistas, proporcionando decisionismos O bacharelismo liberal na política brasileira.
ou discricionariedades interpretativas. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
Isto é, contra o objetivismo do texto Bedaque, José Roberto dos Santos.
(posturas normativistas-semânticas) e o Efetividade do Processo e Técnica Processual.
subjetivismo (posturas axiológicas que São Paulo: Malheiros, 2006.
desconsideram o texto) do intérprete, cresce Bourdieu, Pierre; Passeron, Jean Claude.
o papel da hermenêutica de cariz filosófico, A reprodução: elementos para uma teoria do
sistema de ensino. São Paulo: Ed. Francisco
que venho trabalhando sob a denominação
Alves, 1975.
de uma Crítica Hermenêutica do Direito,
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda.
com a denominação inicial de Nova Crítica
Dogmática crítica e limites lingüísticos da lei.
do Direito. Daí a tarefa fundamental de Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica –
qualquer teoria jurídica nesta quadra da Crítica à dogmática: dos bancos acadêmicos à
história: concretizar direitos, resolvendo prática dos tribunais, n.º 3. Porto Alegre, IHJ,
2005.
problemas concretos. Nitidamente, ainda há
uma resistência à viragem hermenêutico- Ferraz Jr, Tércio Sampaio. Introdução ao
estudo do direito. São Paulo: Atlas, 1987.
ontológica, instrumentalizada em uma

49
Ferraz Jr, Tércio Sampaio. Função Social STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica
da Dogmática Jurídica. São Paulo: Revista dos E(m) Crise, 7. ed. Porto Alegre: Livraria do
Tribunais, 1980. Advogado, 2007.

HABERMAS, Jürgem.Verdade e justificação. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso,


2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
São Paulo: Loyola, 2004.
STRECK, Lenio Luiz. Interpretando a
Oliveira, Carlos Alberto Alvaro de. Do
Constituição: Sísifo e a tarefa do hermeneuta.
formalismo no processo civil, 2.ed. São Paulo: Um manifesto de Laurence Tribe e Michael
Saraiva, 2003. Dorf em favor da proteção substantiva dos
Oliveira, Carlos Alberto Alvaro de. direitos fundamentais. In: Hermenêutica
Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
O formalismo-valorativo no confronto com o
formalismo-excessivo. In: Revista da AJURIS. Tribe, Laurence; Dorf, Michael. On reading
Ano XXXIII n. 104, dezembro de 2006. the Constitution. President and Fellows of
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Ideologia: o paradigma racionalista.
Wambier, Tereza Arruda. Controle das
Rio de Janeiro: Forense, 2004. decisões judiciais por meio de recursos de
STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e estrito direito e de ação rescisória. São Paulo:
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(Übermassverbot) à Proibição de Proteção Warat, Luis Alberto. Introdução geral ao
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não há blindagem contra normas penais Zizek, Slavoj. Eles não sabem o que fazem.
inconstitucionais. In: Boletim da Faculdade de O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro,
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