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Esmerilhando Côco - Memórias e apontamentos de um futuro do passado

Cristiano Figueiró - IHAC/UFBA - cristianofigueiro@ufba.br


Henrique de Souza Lima - NuSom/USP - hrsouzalima@gmail.com
José Balbino de Santana Junior - PPGM/UFPB - zebbdj@gmail.com

Neste artigo apresentamos um trabalho de análise, edição e remixagem de


gravações de uma performance realizada pelo grupo brasileiro Côco de Umbigada
(CdU). A gravação foi realizada em 2010 no contexto do Semussum, um projeto
contemplado no edital Interações Estéticas: Residências Artísticas em Pontos de Cultura
da Funarte/MinC. Ao longo do texto fazemos o resgate da memória do contexto das
políticas culturais brasileiras daquela época e dos impactos dessas políticas nas relações
entre a cultura tradicional e tecnologia. Junto a isto contextualizamos o CdU como um
agente cultural e político na cidade de Olinda, destacando o protagonismo da líder Beth
de Oxum. A gravação original apresenta uma hora de performance do grupo completo
com participações de mestres do Côco pernambucano, gravada ao vivo em 7 canais
separados. Neste trabalho desenvolvemos uma análise e remixagem de trechos do
material original utilizando o Esmeril, uma plataforma desenvolvida em software livre para
compartilhamento e re-criações em tempo real de áudios gravados. Descrevemos as
escolhas que fizemos ao trabalhar com o material gravado, de forma que o processo
criativo que apresentamos aqui é contextualizado por meio de nossa compreensão ética
e política de atuar nas interseções entre som, tecnologia e patrimônio cultural.

Sem separar militância e diversão

Localizado no bairro de Guadalupe, em Olinda-PE, o centro cultural Côco de


Umbigada (CdU) é um espaço dedicado à preservação do patrimônio cultural negro local.
Fundado em 1998 por Mãe Beth de Oxum (* 1964), o centro promove atividades que
integram tecnologia, comunicação, arte e educação como meios de revitalizar o
patrimônio cultural afro-brasileiro, através de estratégias de promoção da auto estima e
inclusão sobretudo voltadas à juventude negra. Mãe Beth de Oxum é uma artista com
uma trajetória multifacetada, tendo iniciado sua trajetória como percussionista, e
diversificou suas atividades ao longo do tempo, tornando-se cantora, ativista e líder
religiosa. Sua compreensão politizada da cultura a levou a se tornar uma ativista
reconhecida no contexto cultural brasileiro, inclusive por instituições federais, como por
exemplo, o agora extinto Ministério da Cultura, que a agraciou com a Ordem do Mérito
Cultural em 2015, período em que também atuava como conselheira do Colegiado de
Cultura Afro-Brasileira do Conselho Nacional de Política Cultural.
O alcance sociocultural do Centro Cultural Côco de Umbigada pode ser entendido
de modo mais abrangente através da compreensão da atuação política expressa na
atividade cultural multifacetada de Mãe Beth de Oxum, com o suporte de sua família de
artistas/ativistas, bem como o respaldo de outros mestres e mestras da cultura popular
que por ali circulam, seja em eventos, seja no próprio dia-a-dia do centro cultural ou do
do terreiro Ilê Axé Oxum Karê.
O Centro Cultural Côco de Umbigada é hoje um complexo que abriga além do
terreiro de candomblé, um estúdio multimídia, e uma rádio livre, a rádio amnesia1 Olinda,
em atividade desde 2009. Classificado pelo ministério da cultura como Ponto de Cultura
na primeira edição do edital do Programa Cultura Viva, o centro cultural desenvolve uma
série de projetos que têm envolvido sobretudo a juventude local utilizando
prioritariamente a questão identitária como foco em seu trabalho. Apesar da grande
abertura da comunidade e de sua juventude para contextos externos, é possível entender
o envolvimento da juventude com essas iniciativas a partir de um processo de
identificação onde a presença de um rastro-resíduo (GLISSANT, 2005) no imaginário
dos jovens se manifesta na necessidade de relacionarem-se com a cultura afro-
diaspórica ali cultuada. Para Glissant, o rastro-resíduo é uma espécie de complexo
identitário adormecido, uma opacidade* cuja manifestação não depende de nossa
vontade. Quando os atabaques tocam no terreiro da Umbigada2 muita gente sem relação
direta com as religiões de matriz africana chega para ver. São movimentos motivados a

1
https://radioamnesia.org/olinda/
2
Nome como a Mãe Beth de Oxum eventualmente se refere ao Ilê Axé Oxum Karê, terreiro de candomblé instalado no
complexo do Centro Cultural Côco de Umbigada
partir de um imaginário "subconsciente" e de uma memória coletiva (HALBWACHS,
2013).
Partindo da perspectiva de Glissant, que classifica comunidades entre atávicas e
compósitas, quando se refere à forma com que essas comunidades se desenvolvem e
constroem as relações que garantem sua própria sobrevivência é interessante perceber
o hibridismo do comportamento do côco enquanto grupo humano, que ora se comporta
na perspectiva atávica de voltar-se às raízes, num movimento radical e contundente, e
ora se comporta de maneira mais rizomática, propondo atividades, projetos e ações
voltadas à troca com outros grupos exteriores.
Consciente de seu lugar em meio às tensões políticas e coloniais da sociedade
brasileira, sua batalha cultural se concentra, não na violência, mas em manter o
patrimônio cultural afro-diaspórico através de reuniões e projetos que fazem convergir
aspectos festivos, estéticos políticos e religiosos. Tal é o caso das sambadas de côco,
festa que resgata uma tradição familiar, com um tambor centenário feito de madeira da
macaíba, pertencente à família de Quinho Caetés (marido de Beth de Oxum e
cofundador do CdU), e representou a memória de seus antepassados. Nas sambadas,
o som desempenha um papel de vital importância em meio à convergência de fatores
lúdicos, estéticos e políticos em uma situação que se configura como festa. Sob este
aspecto, podemos entender as sambadas como sendo um caso particular daquilo que
Steve Goodman (2010) chamou de “tecnologias de mobilização afetiva”. Esta leitura
pode ser confirmada nas palavras da própria Beth de Oxum, quando descreve as
sambadas como um tipo de evento que opera de maneira a não separar militância e
diversão (SAVAZONI, 2018).

Transculturação sônica da herança negra

O CdU tem suas origens como um encontro de negros no período escravista


brasileiro. Beth de Oxum entende e mobiliza o Cdu como um patrimônio cultural que vive
um processo simultâneo de preservação e recriação. Com esse entendimento, ela
preserva a tradição por meio da ativação do patrimônio cultural afro-diaspórico nos
circuitos digitais de informação de hoje. A mídia digital é usada como plataforma para
difundir a posição política do CdU sobre a cultura. Isso se reflete, por exemplo, na
iniciativa de formar parceria com pessoas para ensinar programação à população negra
local, o que resultou no desenvolvimento de um jogo virtual com narrativa religiosa afro-
diaspórica3. Nesse movimento contíguo e simultâneo entre preservação e recriação, um
exemplo que implica particularmente o som é o das apresentações em grandes palcos
com sistemas de som, nos quais a expressão musical do CdU é transposta de seu
contexto original de terreiro para passarem através de processamentos de sinal
analógico e digital de som. Nesses contextos, zabumbas, atabaques, pandeiros, ganzás
e vozes são mesclados à maquinaria textual do Dub e da cultura afro-diaspórica do
SoundSystem, plena de reverbs, delays, chorus, flangers e phasers. Inevitavelmente,
são propostas também novas formas de tocar o côco, a integração de outros
personagens ao grupo, como o técnico de som (ativo na aplicação desses recursos), e
numa nova dimensão performática tanto do grupo que toca como do grupo que ouve e
dança um novo som.
Sob este aspecto, o CdU pode ser entendido, não como um caso isolado de
música negra, e sim como um caso particular de uma música do Atlântico Negro
(GILROY, 1993), que faz convergir diferentes aspectos e vertentes de uma prática
musical cujas raízes estão, não na África, mas na Diáspora Africana, isto é, nos fluxos
culturais em transculturação transcontinental. No setting de palcos de festivais, e ao se
misturar com os circuitos analógicos e digitais de processamento de sinal sonoro, o CdU
expressa uma sonoridade que nos permite escutar ali uma convergência transcultural,
em vez de raízes puras de uma suposta brasilidade ou africanidade. A este respeito,
podemos considerar a expressão sônica do CdU, quando mediada por Sistemas de Som
em palcos de festivais, sob a ótica daquilo que a antropóloga Ana María Ochoa (2006)
chamou de processo de transculturação sônica. Tal processo se caracteriza por uma
troca mais evidente entre a cultura sônica dos tambores e a cultura sônica dos sistemas
de som, em particular, aquela desenvolvida na Jamaica a partir da década de 1970.

3
http://contosdeifa.com/
Neste processo, ambos o côco e o Dub entram em processo de transculturação. No
vídeo a seguir, você pode perceber com maior evidência esse argumento incorporado
em forma de prática sonora.
Show da Banda Côco de Umbigada no 28º Festival de Inverno Garanhuns, palco
Mestre Dominguinhos, sexta feira dia 27/08/2018:

https://youtu.be/J6j7bit6c0U?t=1409

Considerando a proposta de pensar os movimentos de transculturação sônica na


América Latina, entendemos o côco de umbigada como uma prática cultural que implica
simultaneamente um processo de preservação e transculturação sônica. Neste sentido,
o Cdu se configura como um híbrido entre os dois pólos de que Ochoa Gautier descreveu
como sendo, de um lado, o da “purificação”, e de outro, o da “transculturação” sônica.
No que diz respeito ao pólo da transculturação, entendemos que o CdU se mescla à
cultura do Dub Jamaicano, em sintonia com as teses de Kodwo Eshun e Edward George
(2002) no ensaio Ghostlines: Migration, Morphology, Mutations. Neste texto Eshun e
George descrevem o Dub como uma prática cultural diaspórica em pleno processo de
migração, mutação e “fragmentação proliferativa” (Ibid., p. 101).
Segundo esta perspectiva, o Dub é entendido como um modo de pensar
sonicamente que se espalha pelo globo terrestre ao mesmo tempo em que se infiltra em
espaços diversos, tais como, por exemplo, uma diversidade músicas eletrônicas com
origem no Norte Global, e mesmo galerias de arte, já nos anos 1990. A partir desta
descrição do Dub como prática cultural dotada de um altíssimo potencial de proliferação,
mutação e adaptação levou Steve Goodman (2010, pp. 155-162) a descrever o que ele
chama de “Dub Vírus”, uma espécie de “áudio vírus” que se infiltra em diversas culturas
musicais, do pop global às periferias locais. A partir desta perspectiva, entendemos que,
das sambadas de côco no terreiro do ponto de cultura às apresentações mediadas por
processamento de sinal de áudio em palcos de festivais, o côco de umbigada se
reterritorializa ao mesmo tempo em que é mediado pela e mesclado à cultura do Dub
Jamaicano, com suas câmaras de eco e seus Sistemas de Som.
Neste movimento de transculturação sônica, o Dub se reterritorializa no nordeste
brasileiro, e o côco de umbigada se reinventa junto ao processo diaspórico do Dub como
música do Atlântico Negro. Tendo em vista este modo de compreender a intersecção
entre duas expressões culturais afro-diaspóricas - o Côco de Umbigada pernambucano
e o Dub Jamaicano - elaboramos, no contexto do aplicativo Esmeril, uma proposta de
multiplicação das possibilidades de mutação sônica da herança do Côco de Umbigada.
Este experimento, ao mesmo tempo, se conecta à “história da fonografia deslocada”
(Eshun; George, p. 101) típica Dub Virus como fênomeno cultural. A sequência deste
texto se dedica a descrever o experimento.

O Projeto Semussum

Esse projeto surgiu em 2006 na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, por


participantes do “Encontro de conhecimentos livres” que aconteceu no ponto de cultura
“Terreiro Cultural”. Surgiu como um desdobramento do encontro com uma proposta de
imersão em produção musical com software livre. A documentação dessa primeira
edição ainda pode ser encontrada no site do Estúdio Livre4. No site, a chamada do
projeto já dá o tom do evento e sua proposta:
“SeMuSSum - Semana Mundial do Som com Software Livre - Largue tudo o que você
está fazendo, escolha sua distribuição favorita, deixe tudo rodando bonito e grave um
som num sistema livre!”
Essa frase contém a idéia de um laboratório de configuração e teste de software
livre para produção musical ao lado da interação com músicos locais e ensino de música
e tecnologia simultâneos que deu o tom do evento. Essa primeira edição funcionou muito
bem com a produção de boas faixas de áudio mostrando um pouco da riqueza musical
dos pontos de cultura de Cachoeira e levando a fundo o uso estrito de software livre para
produção musical.
A segunda edição do Semussum foi um projeto de pesquisa proposto por Ronaldo
Eli, realizado em 2010, com o objetivo de gravar áudio de práticas musicais afro-
indígenas com base em pontos de cultura nas cinco regiões do Brasil. O projeto foi

4
http://www.estudiolivre.org/semussum
selecionado no edital “Interações Estéticas: Residências Artísticas em Pontos de Cultura”
com financiamento do Ministério da Cultura, que na época tinha um interesse específico
por projetos de cultura digital. Naquela época, havia uma forte idéia de interação entre
as práticas de software livre e a cultura popular da tradição oral. Foi um movimento que
ganhou bastante força nas políticas públicas de cultura do Brasil na primeira década do
século XXI e foi a base da formação de muitos artistas, produtores e desenvolvedores
de tecnologia.
O CdU foi o grupo convidado a participar do projeto Semussum na região
nordeste. A sessão de gravação do CdU em Olinda ocorreu em fevereiro de 2010.
Conseguimos reunir músicos lendários da tradição do Côco, como a mãe Lucia de Oya,
o mestre Zeca do Rolete e o mestre Pombo Roxo (falecido em 2015), além da base grupo
de CdU liderado por Mãe Beth de Oxum nos vocais e pandeiro, Oxaguiã no ganzá,
Quinho Caetés no congas e Daniel Albuquerque no zabumba.

Fig.1 : Equipe técnica no CdU posicionando microfones para gravação.

O trabalho de gravação foi feito usando o software Ardour, executado no Linux,


com uma interface M Audio fast track 8x8. Naquela época, o driver linux para essa
interface ainda era muito experimental e, alguns minutos antes da gravação, ainda
estávamos compilando os módulos do driver e do kernel linux para sua operação. Esse
era o espírito do Semussum, pesquisa e documentação de código aberto diretamente
conectado à musicalidade dos mestres da cultura oral ancestral. A configuração do
equipamento de gravação foi feita por Ricardo Ruiz, José Balbino, Ricardo Brazileiro,
Ronaldo Eli, Cristiano Figueiró e Sérgio Melo.

Fig. 2: Mestres coquistas Zeca do Rolete, Mãe Lucia de Oya e Mestre Pombo Roxo.

A gravação foi feita ao vivo com todo o grupo. A estratégia na gravação era tentar
encontrar um equilíbrio entre o desempenho natural dos músicos e o melhor áudio
isolado de cada microfone. O resultado da gravação foi anexado ao relatório ao Ministério
da Cultura, mas permaneceu inédito para um público mais amplo. Aqui, estamos
compartilhando um trecho de 2,15 minutos com as faixas separadas da gravação original
como um convite para ouvir e conhecer a música do CdU.

Links pro material:

● Trecho original:
https://soundcloud.com/cristianofigo/cocodeumbigada_donamaria
● Trecho original com os canais separados:
https://drive.google.com/file/d/1uawV5E0ekG-
l6B9_4c58fhwWrkc6p8uz/view?usp=sharing

Estudando o Côco com análise e edição de áudio

A primeira etapa do estudo foi analisar o áudio gravado para extrair informações
de variação rítmica para criação de uma estrutura de remix aberto com canais separados
e organizados para re-criações. Uma das principais características do côco são suas
flutuações de andamento, uma vez que os músicos costumam tocar sem metrônomo.
Para lidar com isso, fizemos uma quantização manual nos loops que selecionamos para
manter grandes amostras em diálogo com as batidas seqüenciadas. No processo de
edição, ajustamos as flutuações do andamento de uma maneira que alterasse o mínimo
possível a estrutura rítmica. No remix, evitamos colocar os ritmos originais como
ornamentos de uma composição e assumimos a estrutura musical do material original
como pilares de um trabalho aberto, eletrônico, de dança e experimental. Enquanto
estudávamos o áudio original, prosseguimos com a criação de trechos sonoros
sequenciados, respondendo ao material gravado. Batidas, acordes e texturas criam uma
paleta eletrônica para encaixar nos ritmos ancestrais.
O estudo do material original passou pela análise rítmica das variações e dos
acentos dos toques. Entendemos que nesse caso a zabumba cumpre a função de
fornecer o pulso e equalizar as flutuações de tempo do grupo e por isso tomamos a
zabumba isolada como base para a segmentação e análise rítmica. No primeiro
momento usamos o software Sonic Visualiser5 para extração da estimativa de pulso em
bpm e segmentação da divisão dos tempos.

5
https://www.sonicvisualiser.org/
Fig. 3: Resultado do plugin “Tempo and Beat Tracker: beats” mostrando a análise da
oscilação do bpm.

Na figura 3 podemos ver a segmentação automática realizada pelo plugin “Tempo


and Beat Tracker: beats” do pacote de plugins de análise de áudio “QM Vamp Plugins”67.
Esse plugin devolve uma análise com a estimativa de início e fim de cada compasso e
as oscilações de bpm entre os diferentes compassos. Essa análise permite uma visão
geral das sutis mudanças de pulso durante a execução musical. Na figura 4 observamos
o resultado do plugin “Bar and Beat Tracker: beats”8 do mesmo pacote de plugins. Essa
função mapeia os segmentos rítmicos e busca localizar os tempos de cada compasso
de acordo com a fórmula de compasso fornecida pelo usuário.

6
https://vamp-plugins.org/plugin-doc/qm-vamp-plugins.html#qm-tempotracker
7
https://github.com/c4dm/qm-vamp-plugins
8
https://vamp-plugins.org/plugin-doc/qm-vamp-plugins.html#qm-barbeattracker
Fig. 4: Tela do sonic visualiser mostrando os segmentos de tempos.

A informação de cada segmento resultante das análises desse plugins pode ser
copiada e colada em uma camada de notas (notes layer) e ser exportada em formato
MIDI. Esse arquivo MIDI por sua vez pode ser sincronizado ao áudio original como
podemos ver na figura 5 onde o áudio original e o arquivo midi estão sincronizados
utilizando o software Reaper9. Essa técnica permite uma configuração da linha do tempo
de um sequenciador MIDI sem alterar nenhuma característica do áudio original.
Utilizando ainda as variações de bpm mapeadas pelos plugins transpostas para
mudanças de bpm no sequenciador é possível desenvolver arranjos que se encaixam no
material gravado como se tivessem sido gravados ao vivo.

Fig. 5: Áudio e Midi extraído da análise de beats, sincronizados no software Reaper.

9
https://www.reaper.fm/
Uma técnica mais “invasiva” de edição do material seria o corte de cada toque e
reposicionamento de cada fatia de áudio em uma matriz de tempo com um bpm fixo.
Essa é uma técnica amplamente utilizada na criação de música eletrônica com tempo
fixo. Nesse estudo utilizamos o software Ardour10 para automaticamente recortar cada
toque do áudio da zabumba. Esse recorte foi feito com a função “Rhythm Ferret” que
detecta cada “onset” (ataque de nota) em uma região de áudio e fatia cada segmento em
um áudio individual como podemos ver na figura 6. Essa técnica funciona bem e mantém
as características do timbre original, entretanto pode distorcer completamente o
resultado musical e descaracterizar o sentido musical de notas fora do tempo.

Fig. 6: Segmentação automática de áudio com a função Rhythm Ferret no Ardour.

A capacidade de "quantizar" ritmicamente o áudio do Côco em um andamento


fixo vem do desejo de abrir um espaço de diálogo dessa música com uma produção de
música eletrônica dançante. Esse espaço de diálogo emerge na forma de um remix ou
de um tratamento e manipulação do áudio para criação de um pacote de loops para remix
ou remix aberto. Uma outra maneira de encaixar o ritmo em um andamento fixo é
trabalhar com stretch, esticando e encolhendo segmentos do áudio. No Reaper existe a
possibilidade de inserir “stretch markers” na linha do tempo, onde podemos esticar ou

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https://ardour.org/
encolher pequenos segmentos de áudio sem alteração no que vem antes nem no que
vem depois desse marcador. Com a ajuda de um script11 12 conseguimos exportar as
stretch markers para todos canais mantendo assim uma coerência rítmica.

Figura 7: Edição com stretch markers em multi-pistas no reaper.

Na figura 7 podemos observar que cada segmento é alterado para se encaixar em


um desenho rítmico de andamento fixo. Cada segmento tem um cursor visual próprio
que pode permanecer igual (cinza), ser encolhido (azul) ou ser esticado (vermelho) para
se encaixar no grid. Apesar de ser um método extremamente eficiente ele distorce as
características tonais e de timbre do trecho em questão. Essa distorção deve ser levada
em conta e pode ser assumida em uma proposta de remixagem ou não, vai depender de
cada proposta.
Devemos levar em conta que essa quantização pode ser entendida de duas
maneiras: como a busca por um espaço de diálogo ou como uma deturpação e

11
https://reapack.com/
12

https://github.com/ReaTeam/ReaScripts/blob/master/Stretch%20Markers/spk77_Copy%20stretch%20markers%20f
rom%20selected%20item%20to%20other%20items%20in%20group.eel
enquadramento da riqueza musical de uma cultura na visão de outra cultura. A intenção
aqui é o estabelecimento de um espaço de troca musical através da análise mediada por
software, sob a base do respeito e admiração por uma cultura musical que sobreviveu e
sobrevive a séculos de opressão dentro de uma lógica dominante de racismo cultural.
Dessa maneira reforçamos que o tratamento desse áudio deve ser feito com base na
análise minuciosa seguindo um critério de ser não invasivo e sem alterar a característica
original dos ritmos e do aspecto tonal e tímbrico de cada instrumento.

Criando ritmos complexos com o aplicativo Esmeril

Primeiro, discutimos cuidadosamente como gostaríamos de ativar essa música no


contexto de um remix. Queríamos trabalhar com essa música de maneira respeitosa,
mantendo suas características originais e preservando sua vitalidade, enquanto a
relacionamos com o processamento de sinais digitais no Esmeril13. Embora o Esmeril
permita intervenções radicalmente transformadoras no som gravado, queríamos
respeitar o côco como uma expressão cultural muito particular. Nosso desafio foi conciliar
os dois fatores.
Além do material sonoro das gravações Semussum, criamos um remix
colaborativo para o aplicativo Esmeril. Combinamos partes da gravação com outros
materiais, como sintetizadores com acordes, texturas de fundo e loops rítmicos
sequenciados. Algumas seções do áudio original foram quantizadas ritmicamente e
processadas com filtros e compressores.
Esmeril é um reprodutor de áudio expandido que possui uma interface projetada
para remixagem e performances ao vivo. A plataforma é desenvolvida e hackeável com
Pure data e está disponível sob uma Licença Pública Geral (GPLv3). Esmeril ainda está
em estágio inicial de desenvolvimento e representa um projeto de pesquisa em
andamento conduzido por um dos autores deste artigo, Cristiano Figueiró, e seus
colegas Guilherme Soares e Bruno Rohde, da Universidade Federal do Recôncavo
Baiano (UFRB).

13
www.esmeril.ufba.br
Figura 8: tela do menu de cenas do Esmeril.

O aplicativo usa a idéia de fatias simétricas para definir regiões de loop. A


possibilidade de definir loops de diferentes tamanhos permite a criação de ritmos
complexos com ciclos não sincronizados. A interface permite alternar entre os modos
beatslice e multigranular, permitindo sobrepor ritmos complexos entre grãos
sequenciados e multi-touch arranhados diretamente na forma de onda.

Figura 9: Sessão de remix do CdU.


O design da interface foi feito de maneira a mostrar todas as possibilidades de
remixagem em uma única tela. A idéia era criar uma plataforma que permitisse a inserção
de áudios criados em outras plataformas e configurações criativas, através de uma certa
padronização do formato para remixagem e compartilhamento. Do ponto de vista do
software livre e do aprimoramento das práticas artísticas culturais e autônomas, o
Esmeril é uma plataforma aberta tanto em código quanto na produção do conteúdo que
será disponibilizado. Podemos pensar no Esmeril como parte de um ciclo de estudo,
ensino e pesquisa onde se entrecruzam a sonologia, a musicologia e o desenvolvimento
de tecnologia.
Em vez de publicar um trabalho musical experimental concluído, o objetivo de
compartilhar esse material é criar um espaço para experimentação. O principal objetivo
desse remix aberto foi criar uma paleta de sons que pudesse dialogar com uma
perspectiva experimental de criação de sons eletrônicos, mantendo a identidade
ancestral e a riqueza musical do CdU.

Futuros

Das técnicas de análise e segmentação do áudio apresentadas aqui defendemos


que o ajuste manual ponto a ponto é o melhor método pois qualquer técnica automática
de sincronização rítmica dessa música irá distorcer muito a identidade sonora original.
Entretanto, algumas ferramentas de análise apresentadas aqui aceleram o trabalho de
edição extraindo dados quantitativos das flutuações de tempo ajudando a organizar o
processo de ajuste.
Para além do esmeril e das outras plataformas que foram apresentadas nesse
estudo é importante que se afirme que as escolhas pelas plataformas obedeceu ao
critério de serem licenciados como software livre. Com exceção do reaper que é um
programa proprietário mas que distribui seu software sem custo, sem restrições e
rodando em Linux. Isso permite que exista uma comunidade grande ao redor desse
projeto engajada na construção de conhecimento livre, seja em tutoriais e documentação
como em desenvolvimento de plugins e scripts.
Para além das licenças apontamos a necessidade de uma ecologia do
compartilhamento da informação e uma atitude de exercício de contra-memória.
Consideramos que esse estudo é uma atitude de contra-memória pois traçamos um
plano de análise científica, extraindo dados quantitativos do áudio, com um estilo musical
que durante muito tempo foi entendido como menor e não digno de ocupar o lugar de
conteúdo de ensino e pesquisa nas escolas de música.
Por último julgamos fundamental pontuar que ao fim da escrita deste artigo, o
Brasil continua sem ministério da cultura a 1 ano e 6 meses e que essa lacuna provoca
um apagamento de iniciativas que impulsionam ações de preservação, estímulo e
reparação cultural. A lacuna de um ministério da cultura e uma falta de visão de
perspectiva estratégica se configura como o maior retrocesso no campo da cultura nos
últimos 40 anos.

Bibliografia

ESHUN, Kodwo; GEORGE, Edward. Ghostlines: Migration, Morphology, Mutations. In


Sonic Process: a new geography of sounds. Barcelona: Actar, 2002.
FIGUEIRÓ, Cristiano; SOARES, Guilherme; ROHDE, Bruno. ESMERIL – An
Interactive Audio Player and Composition System for Collaborative Experimental
Music Netlabels. In Proceedings of the International Conference on New Interfaces for
Musical Expression, 2019, edited by Marcelo Queiroz and Anna Xambó Sedó, 170–
173. Porto Alegre: UFRGS.
https://www.nime.org/proceedings/2019/nime2019_paper034.pdf.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora (MG):
UFJF, 2005
GILROY, Paul. 1993. The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness.
London: Verso Books.
GOODMAN, Steve. 2010. Sonic Warfare: Sound, Affect and the Ecology of Fear.
Cambridge: MIT Press.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São
Paulo: Centauro, 2013.
OCHOA GAUTIER, Ana Maria. 2006. «Sonic Transculturation, Epistemologies of
Purification and the Aural Public Sphere in Latin America.» Social Identities: Journal
for the Study of Race, Nation and Culture 12(6): 803–825.
SAVAZONI, Rodrigo. 2018. The Commons Among Us: From Digital Culture to 21st
Century Democracy. São Paulo: Edições Sesc.
TURINO, Célio. 2019. «Point of Culture: the Construction of a Public Policy.» V!rus,
Sao Carlos 18. Translated from Portuguese by Marcelo Tramontano.
http://www.nomads.usp.br/virus/virus18/?sec=5&item=100&lang=en.

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