Você está na página 1de 156

Sebenta de

Direito das Obrigações


Aulas Teóricas da Turma 1
Prof. Dr. Miguel Pestana de Vasconcelos

Faculdade de Direito da Universidade do Porto


Nota introdutória:

Esta sebenta respeita às aulas teóricas da turma 1 de Direito das Obrigações do ano letivo de
2019/2020, lecionadas pelo docente Miguel Pestana de Vasconcelos. A sebenta foi realizada com os
apontamentos das vogais do Departamento de Pedagogia Inês Vale de Amorim e Joana Moreira.

A sua elaboração foi realizada com o objetivo de auxiliar os estudantes para o exame de
Direito das Obrigações. Relevamos ainda que, a leitura desta sebenta não substitui a leitura da
bibliografia obrigatória ou recomendada, sendo apenas um instrumento de auxílio ao estudo.

Caso sejam detetados alguns erros, agradecemos que estes sejam comunicados através do e-
mail da CC3: cc3fdup1920@gmail.com de modo, a que o documento seja aperfeiçoado

Bom estudo!

A Comissão de Curso do 2º ano de Direito


Direito das Obrigações aulas teóricas – 1º semestre (turma 1)

17/09/2019

I. INTRODUÇÃO
1. Noção de Direito das Obrigações

O Direito das Obrigações pode ser entendido de 2 distintos modos:

 enquanto ramo de direito objetivo – conjunto de normas jurídicas que regulam


as relações jurídicas nas quais a um direito subjetivo atribuído a um sujeito
corresponde um dever de prestar, a que fica adstrito o outro sujeito.
 enquanto ramo de direito subjetivo – disciplina jurídica que tem por objetivo
dispor de modo sistemático as normas jurídicas reguladoras das relações jurídicas
obrigacionais.

Segundo Antunes Varela, o cerne de noção de direito das obrigações reside na


existência de uma relação de crédito, sendo que são relações de crédito aquelas em que,
ao direito subjetivo atribuído a um sujeito – o credor –, corresponde um dever de prestar
especificamente imposto a outro sujeito – o devedor. Assim, no âmbito das relações de
crédito, o credor está legitimado a exigir do devedor uma dada prestação. É este dever de
prestar que permite a destrinça entre a relação creditória de outros vínculos jurídicos,
correspondendo à adstrição do devedor a adoção/abstenção de uma ação ou
comportamento.

2. Importância das Obrigações

A disciplina obrigacional destaca-se pela omnipresença, recorrendo-se a esta


frequentemente no dia-a-dia, nomeadamente a algumas espécies contratuais típicas, como
o contrato de compra e venda, o contrato de trabalho, etc.
As obrigações regulam o trato económico privado dirigido à satisfação das
necessidades. Pode dizer-se que é no direito das obrigações que se regula e desenvolve o

1
importantíssimo fenómeno da colaboração económica entre os homens. A cooperação
económica entre os homens, assente na livre iniciativa, pode revestir diversas
modalidades:

a) circulação de bens (alienação/oneração de coisas móveis, imóveis ou imateriais);


b) colaboração entres os homens e as empresas na organização social (contratos de
trabalho, de prestação de serviços, de empreitada);
c) prevenção de riscos individuais (contratos de seguro);
d) reparação patrimonial dos danos sofridos (responsabilidade civil).

São 3 as características fundamentais do Direito das Obrigações:

 Cariz tendencialmente patrimonial (a sanção associada ao direito das


obrigações é a indeminização);
 Prevalência da autonomia privada (o conjunto de normas que constitui o direito
das obrigações é essencialmente supletivo: prevalece aqui, com alguns limites, a
vontade das partes. No entanto, essas normas visam colmatar as faltas de
regulamentação, bem como, um equilíbrio dos interesses das partes);
 Tendencial uniformidade no globo e estabilidade ao longo do tempo.

Quais as características deste ramo do direito que, ao contrário de outras disciplinas


jurídicas, permitem assegurar tal permanência espácio-temporal?

Se o DO é, essencialmente, supletivo, ele tem por finalidade principal substituir-se aos


próprios particulares, regendo os seus interesses da forma como eles os regeriam. Para
além disto, os interesses dos homens são relativamente constantes, não havendo a
necessidade de o DO se encontrar em permanente mudança. É um direito muito menos
sujeito que os outros do direito (como o direito da família ou os direitos reais) a alterações
decorrentes de fatores políticos, morais, sociais e religiosos.
Antunes Varela destaca a perfeição com que os jurisconsultos romanos clássicos
desenvolveram o Direito das Obrigações, tendo em conta o pragmatismo que sempre
marcou aquela civilização.

2
As principais alterações ao Direito das Obrigações decorreram da I Guerra Mundial,
destacando-se: os institutos dos negócios usurários, o alargamento da responsabilidade
civil fundada no risco, o princípio da boa fé no momento pré-negocial e no cumprimento
da obrigação, a figura das obrigações naturais, o enriquecimento sem causa, a tutela da
confiança, o direito do consumo, as cláusulas contratuais gerais, etc.

3. O Direito das Obrigações no seio do Direito Civil

A divisão do CC assenta numa classificação germânica idêntica à do BGB: uma parte


geral e quatro especiais. Os critérios de distinção entre as partes são de natureza diferente.
Quanto à distinção entre Direitos Reais e Direitos das Obrigações utiliza-se um
critério estrutural: as obrigações são direitos relativos, oponíveis só a uma parte (o
devedor), enquanto que, os direitos reais são absolutos, ou seja, oponíveis erga omnes.
Quanto à distinção entre Direitos da Família e Direitos Sucessórios utiliza-se um
critério funcional: no direito da família temos um conjunto de relações jurídicas às quais
subjaz um nexo teleológico, ou seja, o facto de se enquadrarem no instituto da família
tem influência no seu regime; o direito das sucessões tem por objetivo a devolução do
património do de cujus.

4. Conceito de obrigação

Art.397º CC – “Obrigação é o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica
adstrita para com outra à realização de uma prestação”.

Obrigação consiste numa relação jurídica entre pessoas determinadas, ou pelo menos
uma delas determinada, tutelada pelo Direito através da atribuição ao sujeito ativo do
direito de crédito (direito a uma prestação) e ao sujeito passivo do dever jurídico (dever
de realizar a prestação). Consiste no vínculo jurídico que abrange tanto o crédito (lado
ativo) como o débito (lado passivo) e tem por objeto uma conduta específica, a prestação
(ex: realizar um serviço, entregar uma coisa, não fazer algo, etc.).
Para Antunes Varela, a obrigação é a relação jurídica por virtude da qual uma (ou mais)
pessoa pode exigir de outra (ou outras) a realização de uma prestação.

3
A relação obrigacional desenrola-se, portanto, em torno de dois polos indissociáveis:
o direito subjetivo de uma das partes de exigir o cumprimento da prestação, associado ao
dever jurídico de prestar, imposto à contraparte.

A obrigação e figuras afins

 Dever jurídico:

O dever jurídico é a necessidade imposta pelo direito (objetivo) a uma pessoa de


observar determinado comportamento. É uma ordem, um comando, uma injunção
dirigida à inteligência e vontade dos indivíduos. À imposição feita pelo direito está
geralmente associada uma qualquer sanção em caso de incumprimento.
Pode ser estabelecido no interesse da coletividade, de uma generalidade de pessoas ou
no interesse de pessoas determinadas. Relacionados com os deveres jurídicos estão os
direitos subjetivos – poder conferido pela ordem jurídica a certa pessoa de exigir
determinado comportamento de outrem, como meio de satisfação de um interesse próprio
ou alheio.

O dever jurídico é uma categoria mais abrangente do que os deveres de prestação,


associados às obrigações.

No dever jurídico podemos distinguir:

o deveres de caráter público;


o deveres de caráter privado:
 específicos: existem no âmbito de uma relação especial entre pessoas
determinadas (como nas obrigações, pretendendo-se um
comportamento específico do devedor);
 absolutos: são oponíveis erga omnes, isto é, a uma pluralidade
indefinida de sujeitos. Sobre os sujeitos passivos recai uma obrigação
passiva universal que consiste num dever geral de respeito (ex:
direitos de personalidade) ou de abstenção (direitos reais). Corresponde

4
a um dever de não perturbar o exercício do direito absoluto do seu
titular.

 Estado de sujeição:

Corresponde ao lado passivo do direito potestativo. O direito potestativo corresponde


ao poder conferido ao titular, mediante um ato unilateral, de introduzir uma modificação
na esfera jurídica de outra pessoa, criando, modificando ou extinguindo uma relação
jurídica, sem a cooperação desta. Assim, o sujeito passivo deste direito encontra-se na
contingência de ter de suportar na sua esfera jurídica a produção de efeitos jurídicos, sem
nada poder fazer para o evitar, estando, portanto, num estado de sujeição.

Por oposição ao que acontece no estado de sujeição, a obrigação é, por natureza,


violável, dependendo da colaboração do devedor para a realização da prestação.

 Ónus jurídico:

Corresponde à necessidade de adotar uma determinada conduta para obter ou manter


uma vantagem ou não incorrer numa desvantagem. Assim, existem certos atos ou a sua
omissão, a que a ordem jurídica atribui certos efeitos, mas tal é deixado inteiramente à
discrição do interessado e não legalmente imposto sob pena de sanção.
O ato a que o ónus se refere não é imposto como um dever (“dever livre”), não
constituindo o seu desrespeito um ilícito. Para além disso, o ónus não visa satisfazer o
interesse alheio, mas o interesse do próprio onerado no ato. Já no caso da obrigação a
violação acarreta sanção e a prestação visa, também, satisfazer o interesse do credor.

É importante distinguir entre:

 Obrigações autónomas – aquelas que se estabelecem entre pessoas entre as


quais não existia um vínculo anterior.
 Obrigações não autónomas – aquelas que ligam pessoas já unidas por uma
relação anterior. Essa relação pode ter natureza:

5
 real: A e B são coproprietários e têm obrigação de contribuir, na medida
da sua quota, nas despesas geradas pela coisa.
 familiar: os pais estão obrigados a prestação de alimentos aos filhos.
 sucessória: o cumprimento do legado, na falta de disposição em
contrário, cabe aos herdeiros.

O regime destes dois tipos de obrigações é o mesmo, a não ser que o regime geral das
obrigações venha a colidir com os vínculos específicos estabelecidos entre as partes. A
ligação funcional das obrigações não autónomas à relação base (real, familiar ou
sucessória) pode conduzir à fixação de um regime diferente. Tal regime pode ser fixado
diretamente pela lei ou decorrer da atividade hermenêutica do intérprete.
Ex: A obrigação de alimentos (não autónoma), ao contrário do regime geral, não é
transmissível, não é renunciável e o seu montante pode ser sujeito a alteração posterior,
logo, sai do âmbito do regime geral das obrigações.

5. Distinção entre Direito das Obrigações e Direitos Reais

Desde logo, há 3 tipos de diferenças:

1) Os direitos de crédito são direitos relativos, enquanto que os direitos reais são
direitos absolutos.

Quanto às características:

A relatividade das obrigações decorre diretamente do facto de estas se tratarem de


um vínculo entre duas partes. Se essas partes se adstringiram uma à outra no uso da
sua autonomia privada, compreende-se que a relação constituída apenas as vincule a
elas (eficácia inter partes). Admitir a relatividade das obrigações é admitir que o credor
apenas pode exigir o cumprimento da prestação do devedor e não de terceiro e, por sua
vez, o devedor tem de cumprir perante o credor não sendo o cumprimento perante
terceiro exoneratório, exceto em casos previstos na lei.

6
Os direitos absolutos podem fazer-se valer contra todos os que com ele interfiram
(eficácia erga omnes). Os direitos reais resultam do exercício, para o seu titular, de
uma posição isolada, ao passo que para o lado passivo supõem uma espécie de “relação
universal”. Nos direitos reais, o titular pode obter a restituição da coisa de qualquer
terceiro ou exigir o seu respeito de qualquer terceiro.

 Princípio da prevalência/preferência – vale a regra da prevalência do 1º direito


real constituído. Desdobra-se em duas manifestações:

 os direitos reais prevalecem sobre os direitos de crédito,


independentemente de terem sido constituídos antes ou depois destes;
 prevalece sobre toda a situação jurídica constituída posteriormente sobre
a coisa sem que para tal tenha concorrido a vontade do seu titular, se as
duas situações não forem conciliáveis, a primeira constituída. Na prática,
significa que prevalece o direito real primeiramente constituído sobre
situação incompatíveis posteriormente criadas.

Ex: A vende a B um imóvel, depois vende a C em data posterior, esta segunda venda é
nula e prevalece o primeiro direito (imóvel pertence a B). A maioria da doutrina defende
que nestes casos não chega a haver conflito de direitos pois há um direito e um não direito.

Ex: A empresta o seu automóvel a B. Se mais tarde o quiser vender prevalece o direito
real de A sobre o direito de crédito de B. A é o dono do automóvel, assim sendo, pode
retirar propriedades (utilidades da coisa) do mesmo. Por outro lado, B precisa da atuação
de A para poder utilizar o automóvel. B não pode retirar qualquer propriedade ao
automóvel (não o pode danificar, vender – obrigação passiva universal).

Contudo no que diz respeito à locação isto não acontece. Se A arrendar a B um imóvel
e depois o vender a C, o contrato de arrendamento não cessa.

A entrega a B um imóvel como garantia do seu crédito. Mais tarde hipoteca esse
mesmo imóvel a D. Prevalece a hipoteca primeiramente constituída (art.713º CC).

7
Colocam-se duas exceções ao princípio da prevalência dos direitos reais:

o Efeito do registo de bens móveis e imóveis – quando estejam em causa bens


sujeitos a registo, prevalece o direito real primeiramente registado (art.6º nº1
do Código do Registo Predial), e não o primeiro a ser constituído.
o Garantias reais das obrigações – estas prevalecem sobre as restantes
independentemente da data da sua constituição. É o caso dos privilégios
(arts.733º e 734º CC). Podem ser imobiliários ou mobiliários, gerais (um bem) ou
especiais (vários bens).

Art.751º CC – Privilégios imobiliários especiais: o direito real mesmo que constituído


posteriormente prevalece sobre qualquer outro direito real previamente constituído
(casos poucos comuns, têm que estar previstos na lei e são maioritariamente atribuídos
aos credores tributários).

Ex: um trabalhador tem um privilégio imobiliário especial sobre o imóvel onde


trabalha. Se não lhe pagarem o salário, o seu crédito tem preferência face a outros
credores. Se esse imóvel estiver hipotecado, uma vez que o privilégio se tinha constituído
anteriormente, prevaleceria sobre todos os outro direitos reais. Acontece que mesmo que
o privilégio seja constituído anteriormente, ele excecionalmente prevalece.

 Princípio sequência/sequela – traduz-se na faculdade conferida ao titular do


direito de crédito de fazer valer o seu direito sobre a coisa, onde quer que esta se
encontre.

Ex: Se B vende um imóvel alvo de hipoteca a favor de C a D, e D, por sua vez, vende
o imóvel a E, C pode exercer a sua hipoteca sobre E, visto que a hipoteca segue o bem. O
que significa que, em caso de incumprimento da obrigação garantida, o credor titular da
hipoteca (direito real) poderá fazê-la valer, executar a coisa, mesmo sendo esta
propriedade, não do seu devedor, mas do adquirente.

8
 Direitos pessoais de gozo – são aqueles direitos de crédito que proporcionam ao
seu beneficiário o gozo (uso/fruição) de uma coisa corpórea, o que os torna
particularmente próximos de um direito real.

Nos termos do art.407º CC, “quando, por contratos sucessivos, se constituírem, a favor
de pessoas diferentes, mas sobre a mesma coisa, direitos pessoais de gozo incompatíveis
entre si, prevalece o direito mais antigo em data, sem prejuízo das regras próprias do
registo”.

Os direitos pessoais de gozo assentam na relação entre o titular pessoal de gozo e o


titular do direito real que permite o gozo. Assim sendo, eles não são verdadeiramente
absolutos, mas relativos, porque relacionais.

2) Os direitos reais conferem um poder direto (por atingirem a coisa) e imediato (por
prescindirem de intermediários) sobre uma coisa, enquanto que, os de crédito
constituem um direito a uma prestação que, eventualmente, pode consistir na
entrega de uma coisa.

Quanto ao conteúdo:

O titular de um direito real não carece da colaboração de outrem para retirar utilidade
da coisa, pode fazê-lo diretamente. Para os créditos é sempre necessária a colaboração do
devedor através da realização da prestação para que o credor tenha acesso à coisa/satisfaça
o seu interesse (quando tem por obrigação a prestação da coisa). Os direitos reais são
direitos reais sobre uma coisa, enquanto que as obrigações, mesmo que não tenham por
objeto a prestação da coisa, são sempre meros direitos à coisa, à entrega.

3) Nos direitos de crédito vigora o princípio da atipicidade (numerus apertus),


enquanto que, nos reais vigora o princípio da tipicidade (numerus clausus).

Quanto à forma:

Nas obrigações verifica-se a atipicidade – art.398 nº1 CC – a prestação é livremente


fixada pelas partes. Nos direitos reais as partes estão limitadas pela tipicidade – art.1306º

9
CC –, não podendo criar direitos reais para além dos previstos, nem podem alterar o seu
conteúdo tal como ele está definido na lei, a não ser que a lei o permita (não é possível
quanto à propriedade), não sendo possível, por analogia, atribuir natureza real a novas
figuras.

A atipicidade decorre da especialidade: se uma obrigação se estabelece entre duas


pessoas é, pois, natural que devam ser elas a decidir a configuração mais adequada à
gestão dos seus interesses.

23/09/2017

6. Eficácia externa das obrigações

Os direitos de crédito caracterizam-se por serem relativos, isto é, são meramente


eficazes face ao devedor e face ao credor – o credor só do devedor pode exigir a prestação
e só este a pode incumprir (eficácia inter partes), não produzindo efeitos para terceiros.
Já os direitos reais são absolutos – o contra polo é a obrigação passiva universal, o
dever genérico de respeito. Os direitos reais podem ser feitos valer por qualquer pessoa
(eficácia erga omnes).

Como se coloca a questão da eficácia externa das obrigações?


Muitas vezes terceiros estranhos à relação obrigacional interferem com ela, impedindo
o credor de ver cumprida a prestação. Para a doutrina, o próprio direito de crédito podia
ser feito valer em determinadas circunstâncias face a terceiros.
Este é um dos temas mais fraturantes da doutrina portuguesa. Mota Pinto, Antunes
Varela, Almeida Costa, Ribeiro Faria e Rui Alarcão têm uma postura muito cautelosa de
tendencial rejeição da eficácia externa das obrigações, mantendo uma visão tradicional
destas. Pelo contrário, Menezes Cordeiro, Galvão Teles, Santos Júnior e Pinto Oliveira
têm uma postura mais permissiva perante o instituto. A jurisprudência tem caído para os
dois lados, havendo decisões nos dois sentidos.

1) “Ataque” ao substrato do direito – verifica-se quando um terceiro pratica um


facto ilícito contra a pessoa do devedor ou o objeto da prestação, conduzindo à

10
impossibilidade da prestação. Ex: A, cantor, acorda com B a realização de um
espetáculo no ano novo no estabelecimento de B. No dia anterior, A é atropelado
logo não pode realizar o espetáculo. Há uma impossibilidade de prestação. Pode B
demandar o lesante já que o seu crédito foi indiretamente por ele “danificado”? O
mesmo sucede mutatis mutandi com o objeto da coisa danificada.

2) “Ataque” ao crédito em si – são os casos em que o terceiro induz o devedor ao


não cumprimento celebrando com ele um contrato incompatível com o primeiro.
Ex: A, cantor, obriga-se face a B, dono de uma sala de espetáculos, a realizar lá
um espetáculo de ano novo. Mais tarde, C, dono de outra sala de espetáculos,
celebra um contrato com A para realizar um espetáculo no seu estabelecimento no
mesmo dia e à mesma hora do acordado no contrato anterior. Este segundo contrato
é incompatível com o primeiro. A poderá cumprir um ou outro. O segundo contrato
é, em princípio, mais favorável. Na hipótese de A cumprir o contrato com C, B
poderá demandar A por incumprimento do contrato. Poderá demandar C?

Até que ponto tem um terceiro o dever genérico de não perturbar direitos de crédito
alheios? Pode o credor exigir a reparação dos danos (indemnização) ao terceiro que
tenha tornado impossível o cumprimento da prestação pelo devedor ou tenha instigado
ou cooperado com ele nesse incumprimento?

A responsabilidade de terceiros só é aceite, quer pela doutrina que a defende, quer pela
doutrina que a afasta, se este conhecia o vínculo anterior. Nos casos em que conhecia
um vínculo anteriormente constituído, é responsável.

Quem defende a eficácia externa das obrigações é a Escola de Lisboa, nomeadamente


Galvão Teles e Menezes Cordeiro. No que toca ao direito de crédito haverá que distinguir
um lado interno, que respeita ao poder de exigir a prestação que só é oponível face ao
devedor, e um lado externo, oponível face a todos e que se consubstancia no dever de
todos respeitarem o direito de crédito, em particular, não impedindo o cumprimento e não
colaborando com o incumprimento, nomeadamente não celebrando contratos
incompatíveis. Quanto ao dever de respeito, inclui-se no art.483º CC – responsabilidade
extracontratual. Isto é, para a Escola de Lisboa, este artigo quando se refere a “interesses

11
alheios”, refere-se também, ao contrário da interpretação da Escola de Coimbra, a direitos
de crédito. Nestes termos, para que haja uma obrigação de terceiro em indemnizar o
credor teriam que estar reunidos os pressupostos da responsabilidade aquiliana que são a
ocorrência de:

i) um facto;
ii) ilícito;
iii) danoso;
iv) com culpa por parte do agente;
v) nexo de causalidade entre o facto e o dano.

A ilicitude, difícil de provar, preenche-se quando o terceiro tem vontade de violar o direito
de crédito de outrem ou, pelo menos, o dever jurídico de cuidado face ao autor do crédito.

Esta posição tem sido alvo de críticas, entendendo a generalidade dos autores que o
art.483º CC apenas se aplica a direitos absolutos e não às obrigações, cujo incumprimento
se rege pelo regime da responsabilidade contratual (art.796º e ss).
Contudo, admite o Menezes Cordeiro um caso especial: o terceiro que contrate com o
devedor em termos incompatíveis com o crédito que esse mesmo devedor tenha
previamente constituído (ex: E promete vender a F, mas G, conhecedor da promessa,
oferece um preço mais alto, acabando E por vender a G). Nestas situações, o terceiro
exerce a liberdade contratual que a ordem jurídica lhe reconhece, não havendo ilicitude,
requisito necessário à aplicação do art.483º CC. O simples ato de contratar com o devedor
conduzindo ao incumprimento do vínculo inicial não constitui ilicitude. Aqui o dever
geral de respeito não teria alcance. Então, há que recorrer ao abuso de direito (art.334º
CC) que não depende da ilicitude. Não deixa de assinalar que se trata de uma
responsabilidade excecional, apesar do seu entendimento de “excecional” ser muito lato.

Assim, no caso em que B estabeleça com C um contrato-promessa, D é livre de


contratar com B, o que implicaria o incumprimento da promessa previamente constituída.
D não pode ser responsabilizado, porque agiu dentro da sua permissão geral de contratar.
Todavia, se D interferir intencionalmente com a relação de B-C, instigando ao
incumprimento, obtendo informações privilegiadas, usando, no fundo, “manobras

12
circundantes”, violando-se os valores fundamentais da confiança e da boa fé, estamos
perante abuso de direito, havendo, por esta via, responsabilidade extracontratual.

Toda a doutrina da Escola de Coimbra entende que as obrigações não têm qualquer
eficácia externa e que, quanto muito, embora varie com os autores, será possível
responsabilizar ao terceiro ao abrigo do abuso do direito (art.334º CC) ou,
eventualmente, das regras relativas à concorrência desleal ou, sancionando
penalmente a atuação daquele.

No que diz respeito ao direito comparado, nomeadamente em França, Itália, Inglaterra


e EUA, é aceite com alguma amplitude esta eficácia externa das obrigações. Só na
Alemanha é que a doutrina dominante se continua a opor (Larenz).
.
Em Portugal, a questão colocou-se nos anos 60: o sujeito era titular de um lote de ações
de uma sociedade. Havia um pacto de preferência celebrado entre o titular dessas ações e
o sujeito C. Acontece que, na violação do pacto, A vendeu o lote a D, frustrando o crédito
do titular do direito de preferência. Esse sujeito veio demandar o terceiro (D) por ter sido
agredido o seu crédito. Há volta deste caso a doutrina dividiu-se.

Ferrer Correia entendia que, neste caso seria possível responsabilizar o terceiro por
abuso de direito (abuso da faculdade de contratar) porque havia circunstâncias muito
específicas que levavam a configurar o exercício desta faculdade por parte do terceiro
como um autêntico abuso (o terceiro conhecia o pacto de preferência e sabia também que
o vendedor só lhe realizava a venda a ele, sem cumprir o pacto de preferência, porque
pretendia prejudicar o titular daquele). Isto porque, este não vendeu o lote a um preço
superior ao anteriormente acordado, logo, não havia vantagem patrimonial. O ato era um
simples ato emulativo destinado a prejudicar C. Logo, D pratica um abuso de direito.
Concluindo, incorre em abuso de direito o terceiro que tinha conhecimento da vinculação
contratual e não tinha um interesse que justificasse a violação dela.

Antunes Varela, tal como a quase totalidade da Escola de Coimbra, apenas admite a
eficácia externa das obrigações em casos muito contados. Entende que, em princípio, só
será possível responsabilizar o terceiro quando este exceder a sua margem de
liberdade, caindo no abuso de direito (art.334º CC) e, eventualmente, na concorrência

13
desleal ou quanto muito incorrerá em responsabilidade penal. O art.483º CC aplica-se
apenas a direitos absolutos. Ou seja, não basta que o terceiro conhecesse a existência do
crédito para que, impedindo ou perturbando o exercício da relação obrigacional, possa ser
responsabilizado. Entende que só pode aplicar-se este artigo aos casos em que o terceiro
dolosamente se intitula credor da prestação como tal se deixa tratar, porque a titularidade
é um direito absoluto.

Ribeiro de Faria defende que, não é possível falar em eficácia externa das obrigações.
Todavia, viola um princípio ético-jurídico o terceiro que voluntariamente pretende
causar prejuízo ao credor ou tem consciência do prejuízo que causará com a sua
conduta (ex: o credor que sabe que o devedor não tem condições para indemnizar).
Nestes casos, e excecionalmente, o ordenamento jurídico deverá atuar através do instituto
do abuso de direito. Ribeiro de Faria diz que Antunes Varela não inclui no art.334º CC a
possibilidade de contratar. Esta é também a posição do prof..

Vaz Serra tem uma posição intermédia. Ele entendia que era possível responsabilizar
o terceiro ao abrigo do abuso de direito incluindo o abuso da faculdade de contratar,
mas só quando o terceiro, tendo conhecimento do vínculo anterior, tenha agido com
fraude.
Do ponto de vista do direito constituído, é difícil sustentar a tese da eficácia externa
das obrigações, isto porque decorre do art.406º nº2 CC que o contrato só produz efeito
em face de terceiros nos casos previstos na lei. Aqueles casos em que o contrato-promessa
e o pacto de preferência são oponíveis a terceiros, são casos de eficácia real – art.413º e
art.421º CC.
O art.495º nº3 CC, pelo qual se estabelece que os credores de alimentos do lesado
podem demandar o lesante, é uma norma excecional portanto não é suscetível de
aplicação analógica.
O art.794º CC, relativo ao “commodum” da representação, constitui/confere
indicações contra a eficácia externa das obrigações, pelo seguinte: este artigo permite a
um credor substituir-se ao devedor num crédito que este tenha adquirido face a um
terceiro e que decorra do facto que tornou impossível a prestação. Ou seja, se a realização
da prestação devida se tornar impossível por facto imputável a terceiro (que destrói a
coisa devida) ou ao próprio devedor e, em consequência disso, o devedor adquirir algum
direito (de crédito) contra terceiro, pode o credor substituir-se ao devedor no exercício do

14
direito (relativo) que este tiver obtido contra terceiro. Ex: A, obriga-se a entregar um
automóvel a B. Há transmissão da propriedade e do risco. Entretanto o automóvel é
destruído, mas encontrava-se seguro num contrato contra todos os riscos. A destruição
torna impossível a entrega e impede que o devedor adquira um crédito face à companhia
seguradora. O credor pode substituir-se ao devedor nesse crédito face à companhia. Não
há uma responsabilidade direta de terceiro.

7. Função da Obrigação

Qual a função da obrigação e, mais especificamente, o papel de interesse do credor no


vínculo obrigacional?

A obrigação não é um fim em si mesma, ou seja não contém em si mesma o próprio


fim a que se destina, mas consiste num meio/instrumento destinado a assegurar a
satisfação do interesse do credor. Este resultado obtém-se através da
realização/cumprimento da prestação a que o devedor está adstrito. O sacrifício ou
desvantagem imposto ao devedor pelo vínculo obrigacional (e prestacional) permite a
satisfação do interesse concreto do credor. O credor depende da atuação do devedor para
ver o seu interesse satisfeito, sendo que, a importância do interesse permeia todo o regime
obrigacional. A noção de interesse compõe-se de três elementos essenciais:

a) Existência de uma situação de carência ou necessidade;


b) Existência de bens (corpóreos ou não) que sejam aptos a satisfazerem essa
carência ou necessidade;
c) Relação de apetência ou desejo de recorrer a esses bens para satisfazer a dita
necessidade.

O interesse do credor não é necessariamente patrimonial, pode ser espiritual (ex: ida
ao cinema). O interesse consiste no fim a que a obrigação se destina, mas não faz parte
da sua estrutura, condiciona no entanto o seu regime. De que forma?

 O art.398º nº2 CC explicita que a obrigação, para ser validamente constituída,


tem de corresponder a um interesse digno de proteção legal;

15
 A lei permite que um terceiro, que o deseje, possa realizar a prestação em
lugar do devedor, estando o credor obrigado a aceitar essa prestação (art.767º
nº1 e 2 CC). Só pode recursar se houver acordo prévio das partes nesse sentido
ou se essa substituição trouxer prejuízo para o seu interesse. Caso contrário, o
credor não pode exigir que seja o devedor a cumprir, porque o que está em
causa não é a pessoa que cumpre, mas sim o interesse a satisfazer. Recusando,
entra-se numa situação de mora do credor, que é o caso em que o credor não
cria as condições necessárias para que o devedor cumpra a obrigação;

 Como uma obrigação se destina à satisfação do interesse do credor, em certos


casos ela extingue-se com a extinção do interesse. É isso que justifica que a
obrigação possa ser cumprida por terceiro e que se possa extinguir através de
uma causa de extinção das obrigações, para além do cumprimento, como a
dação em pagamento (art.837º CC; ex: A deve a B 1000€, mas entrega-lhe um
automóvel para pagar a dívida) ou compensação (art.847º CC);

 Nos contratos bilaterais, a essência de uma obrigação sinalagmática é a


satisfação mútua de interesses, logo, na medida em que uma das partes não vê
o seu interesse satisfeito, pode recusar-se a satisfazer o interesse da outra, desde
que verificados os respetivos pressupostos, recorrendo à exceção do não
cumprimento do contrato (art.428º CC) ou à própria resolução do contrato
(art.801º nº2 CC). A insatisfação do interesse de um credor permite o
retardamento do cumprimento da prestação ou a desvinculação do contrato.

A determinação/delimitação do interesse do credor tem um grande relevo no que


respeita ao regime das obrigações. Ora, neste contexto, é com base no interesse do credor
que podemos determinar se uma prestação é fungível (ex: prestação pecuniária) ou
infungível (ex: operação), isto é, se pode ser realizada por outrem sem prejuízo do
interesse do credor e será também de acordo com o caráter fungível ou infungível da
prestação que o regime da possibilidade de a prestação ser realizada por terceiros variará.
Ex: A, cirurgião, obriga-se a operar B. A prestação é infungível. Na eventualidade do
cirurgião cegar, há uma impossibilidade subjetiva que é equiparada à objetiva (art.791º
CC), com a consequente extinção da obrigação. Não seria assim se estivéssemos perante

16
uma prestação fungível. Se esta pode ser realizada por terceiro não devedor, não é pelo
facto do devedor não a poder realizar que ela se extingue, sob pena de o próprio devedor
incorrer em mora.
É também a manutenção do interesse do credor que define se o incumprimento é
definitivo ou temporário, permitindo também equiparar o incumprimento parcial ao total.

Em que termos podemos considerar o programa individual e subjetivo do credor, isto é,


como delimitamos o seu interesse com relevância jurídica?

As motivações individuais específicas dos contraentes não pertencem aos elementos


estruturais do negócio, a não ser que seja incluído como parte do conteúdo contratual.
Convém distinguir, se a prestação não for suscetível de uso alternativo, tipicamente,
neste caso a satisfação do interesse objetivo do credor ou o desaparecimento deste gera
impossibilidade de cumprimento, conduzindo à satisfação da obrigação. Assim é
porque, se causa superveniente intervier que faça desaparecer o interesse (objetivo) do
credor na prestação, não há mais razão de ser do vínculo obrigacional. Ou seja, apesar do
cumprimento ser possível, a sua realização não permite ao devedor cumprir o programa
obrigacional a que se vinculou e do qual faz parte o interesse que desapareceu.
Ex: Um navio encalha e é contratado um rebocador para o desencalhar. Antes de ele
chegar, o movimento das areias e a maré leva a que o barco desencalhe. Há uma satisfação
do interesse, extinguindo-se – art.790º nº1 CC (esta solução é a mesma para os casos em
que as partes incluem, por acordo, o interesse específico do credor no conteúdo do
contrato, ex: fim da locação – habitação, exercício de atividade profissional, etc.).

Batista Machado chama-lhes “obrigações finalizadas”, enquanto que Ribeiro Faria


chama-lhes “obrigações afetas a um fim essencial”.

Num segundo grupo de hipóteses, há a possibilidade de uso alternativo da prestação


(caso não haja a prestação é impossível). Há que considerar a exteriorização ou
transparência da motivação do credor e, em face dela, avaliar as alternativas da utilização
da prestação. Face ao nosso direito, a questão é encarada de forma diferente nos casos
dos arts.793º e 802º CC.

17
 Art.793º: no caso de impossibilidade parcial da prestação, sem que esse
facto seja imputável ao devedor, em princípio, há uma redução da
contraprestação, mantendo-se o contrato. Todavia, o credor pode resolver o
contrato alegando que justificadamente perdeu o interesse. Ora, esta perda
residirá na ausência de uso alternativo para a prestação parcial.
 Art.802º: neste caso, há uma impossibilidade parcial imputável ao devedor.
O credor pode resolver o contrato não podendo o devedor obstar a esta,
alegando o uso alternativo da prestação, a não ser dentro do limite do nº2 deste
artigo.

30/09/2019

8. O crédito como elemento no património do credor

O direito de crédito, assim como os outros direitos patrimoniais, integra o património


do seu titular. Frequentemente, os créditos são os principais bens patrimoniais de um
sujeito. Quais os elementos que integram o património de uma pessoa média? O principal
elemento é o crédito salarial, mas há também a casa, o carro…
As empresas que, frequentemente, não têm direitos reais (imóvel, máquinas), têm
créditos (dinheiro que lhes é devido) e que são utilizados como fonte de crédito.

Um crédito é diferente de um direito real, na medida em que, um crédito depende dos


elementos em que se destaca o património do devedor e as garantias reais ou pessoais
que revistam o crédito. O credor tem o poder de disposição sobre o seu património,
incluindo sobre o crédito, logo tem a possibilidade de ceder o crédito a outrem,
constituindo-se um novo credor.

O que determina o valor do crédito?


A tem um crédito sobre B de 1000€ com prazo de pagamento de 30 dias. Se A quiser
dispor/vender o crédito, quanto vale o crédito? 1000€ euros é o seu valor nominal, o valor
do crédito em si mesmo é diferente do seu valor nominal, isto é, A não vai obter 1000€,
vai obter um valor diferente. A titularidade do crédito em si tem ela própria valor
económico, diferente do nominal. Se o devedor tiver uma capacidade patrimonial menor,

18
o risco de incumprimento é menor. O crédito pode ter garantias, os créditos dos bancos
sobre os devedores têm normalmente uma hipoteca, se não pagar o bem pode ser
hipotecado, vendido judicialmente. A capacidade do devedor e a existência ou não de
garantias relativamente ao pagamento do crédito condicionam o valor do mesmo.
Há certos créditos que estão incorporados em documentos, créditos que estão
incorporados em letras de câmbio, por exemplo (um sujeito que emite um cheque
endossado ou um cheque ao portador).

No mundo empresarial, este valor patrimonial do crédito pode ser mobilizado através
da cessão do crédito. Há um conjunto de esquemas financeiros que assentam na
transmissão do crédito:

 Venda do crédito (pouco habitual);


 Cessão financeira (consiste em créditos pecuniários);
 Titularização (transmissão de créditos dos bancos que são depois enviados para
a emissão de valores mobiliários).

Estes esquemas são muito utilizados. Quando pensamos em obrigações temos de ter
presente que elas podem ser mobilizadas.

9. Estrutura da Obrigação

Na perspetiva de Ribeiro Faria, são 3 os elementos que compõem a estrutura da


obrigação:

1) Sujeitos: titulares da relação (credor e devedor, no entanto, podem ser mais);


2) Objeto: a prestação debitória (entrega da coisa, realização de serviço, etc.);
3) Vínculo jurídico: nexo que liga os poderes conferidos ao credor com os
correlativos deveres impostos ao devedor.

Esta perspetiva afasta da estrutura a fonte, que gera o nascimento da relação


obrigacional. Muitas vezes, é um contrato (ex: contrato de compra e venda), mas não se

19
questiona que esse facto tenha uma importância conformadora da obrigação. A relação
obrigacional, em termos de conteúdo, depende do seu facto constitutivo, ou seja, o
conteúdo da própria obrigação é definido na fonte.

9.1. Sujeitos

Os sujeitos da relação obrigacional são, pelo lado ativo, o credor e, pelo lado passivo,
o devedor.

 Credor: pessoa (singular ou coletiva) que retira a vantagem que resulta da


prestação, sendo o titular de um interesse (patrimonial ou ideal) que a prestação
do devedor visa satisfazer. Para a tutela do seu interesse, dispõe de um verdadeiro
direito subjetivo (o direito à prestação) – tem o poder de exigir do devedor um
comportamento (positivo ou negativo), isto é, que cumpra a prestação a que está
obrigado, mas essa tutela só é ativada se e quando o credor assim desejar.

 Devedor: pessoa (singular ou coletiva) sobre a qual impende o dever de realizar


a prestação. Por estar do lado passivo da relação, o devedor está adstrito ao
cumprimento da prestação, estando, por isso num estado de subordinação jurídica
perante o credor, que o direito a exigir a prestação. Em caso de incumprimento é
sobre o devedor que recaem as sanções. Hoje tais sanções recaem sobre o
património do devedor (art.817º CC).

O sujeito passivo da obrigação (o devedor) tem que estar sempre determinado.


Contudo, nos termos do art.511º CC, o sujeito ativo (o credor), no momento da
constituição da obrigação, pode não estar determinado, mas tem que ser
determinável, o que significa que têm que haver critérios que permitam determinar quem
é o credor. A indeterminação pode acontecer porque a identificação do credor está
dependente de um facto futuro e incerto ou porque é indireta a ligação entre o sujeito ativo
e a relação obrigacional. Ex: promessa pública (art.459º e ss CC). A, promete 1000€ a
quem encontrar o seu gato que fugiu. Quem é o credor? É o sujeito que encontrar o gato.

20
Há uma outra forma indireta de determinação do credor, a determinação real. É o que
se verifica com os títulos ao portador. Ex: bilhete de cinema – o credor, ou seja, quem
podem exigir a prestação (ver o filme) é o proprietário, o dono do bilhete.
Naqueles casos em que sujeito não esteja determinado logo desde o início, mas seja
determinável, diz-se que estamos face a um puro estado de vinculação de bens.

Quanto aos sujeitos, a obrigação pode dizer-se singular, quando de cada um dos lados
da relação há apenas uma pessoa (um só credor e um só devedor) ou plural, havendo de
um dos lados, ou dos dois, mais do que um sujeito.

A obrigação depende, à partida, da existência de dois sujeitos, mas tal não significa
que durante o tempo em que a obrigação persista seja necessária a manutenção desses
sujeitos originários para que a relação creditória permaneça inalterada. Assim, a
obrigação pode persistir com todos os seus atributos fundamentais ainda que um ou
ambos os seus sujeitos da relação mudem. Ex: Se B morrer e lhe suceder um único
herdeiro, este ocupará o lugar de B na relação creditória, sendo que essa relação se
mantém inalterada. Para além da sucessão de créditos agora vista, a transmissão (art.577º
e ss CC) da obrigação (pela venda, troca ou doação) é, também, um fenómeno frequente.
Cunhou-se, a este propósito, e para destacar a facilidade com que a obrigação muda e os
sujeitos, a expressão “ambulatoriedade” da obrigação.

9.2. Objeto

O objeto da obrigação é a prestação devida ao credor, ou seja, é o comportamento


positivo (facere) ou negativo (non facere) a que o devedor se encontra adstrito com vista
a satisfazer o interesse do credor. Assim, é o objeto da obrigação que proporciona ao
credor a vantagem a que ele tem direito. Note-se que é o objeto que, dentro dos elementos
da relação jurídica, confere identidade à obrigação e a distingue de outros vínculos
jurídicos.

O conteúdo da obrigação é, dentro dos limites da lei, livremente fixado pelas partes –
art.398º nº1 CC.

21
Nos termos do art.400º CC, o objeto não tem de estar determinado, mas tem de ser
determinável.

A prestação pode ainda consistir, para além de um comportamento de conteúdo


positivo ou negativo, numa obrigação de tolerância ou suportação, na medida em que
o devedor se sujeita a uma atuação à qual, à partida, se poderia opor. Chamam-se
prestações de pati (ex: F celebra contrato pelo qual deixa G abrir uma via de acesso no
seu prédio, sem atribuir a esse encargo a qualidade de uma autêntica servidão).

O dever de prestar resulta ou do próprio negócio jurídico (se é B que vende a casa a C,
tendo, por tal, o dever de a entregar) ou da lei (quem lesa um direito tem a obrigação de
indemnizar os danos causados pela lesão).

Sobretudo no âmbito das prestações de coisa, é comum distinguir-se entre objeto


imediato (atividade/conduta devida, no comportamento em si; prestação em si) e objeto
mediato (coisa em si mesmo considerada). Diz-se, por conseguinte, que o objeto imediato
é o objeto da obrigação e o objeto mediato o objeto da prestação. Ex: Na compra por B
de um automóvel a C, o ato da entrega do automóvel será o objeto imediato da relação
obrigacional e o automóvel em si mesmo o objeto mediato.
Há prestações que não têm objeto mediato, como por exemplo, a prestação de serviços.

Divisão das prestações de acordo com as coordenadas da doutrina:

o Prestações de facto e prestações de coisa;


o Prestações instantâneas e prestações duradouras;
o Prestações fungíveis e prestações infungíveis.

9.2.1. Prestações de facto e de coisa

Nas prestações de facto, não há objeto mediato, o objeto da obrigação esgota-se num
simples comportamento positivo ou negativo, material (ex: reparar um automóvel) ou
jurídico (ex: A confere a B um mandato com procuração para praticar atos em seu nome
e por sua conta).

22
Nas prestações de coisa, a coisa (quid) constitui o objeto mediato da relação.

As prestações de facto podem ser classificadas como:

 Prestações de facto positivo – o devedor obriga-se à realização de uma dada ação


(facere, ex: contrato de trabalho, contrato-promessa, pacto de preferência,
contrato de mandato, etc.);

 Prestações de facto negativo:


› Não fazer - o devedor obriga-se a uma não ação (non facere), isto é, a uma
abstenção ou omissão (ex: obrigações de não concorrência – B obriga-se
durante 2 anos a não abrir outro estabelecimento comercial na zona de A).
› Tolerância (pati) – o devedor obriga-se a tolerar, a aceitar um
comportamento da outra parte a que esta não tinha direito não fosse a
obrigação (ex: A permite a B atravessar o seu terreno – não é um direito
real, simplesmente o acordo entre as partes que permite que um passe pela
propriedade do outro).

 Prestações de facto de terceiro/outrem – nas prestações de facto e, via de regra,


o devedor obriga-se a um comportamento pessoal ou próprio. Todavia, é possível
que o devedor se obrigue a um comportamento de terceiro, ou seja, um sujeito se
obrigue a que seja um terceiro, alheio ao negócio, a praticar um determinado ato
(ex: A obriga-se face a B, a que C, sua mulher, lhe venda um imóvel ou preste o
seu consentimento para a venda do imóvel de A).
A prestação de facto de terceiro (res inter alios) não obriga ou vincula o terceiro
a quem ela se refere (art.406º nº2 CC), apenas temos um determinado vínculo do
devedor que envolve um terceiro. Assim sendo, o único obrigado na prestação de
facto de terceiro é o próprio devedor, consistindo a prestação na adoção por
terceiro de um dado comportamento. As prestações são válidas pois celebradas ao
abrigo da liberdade contratual.

O compromisso assumido pelo devedor de conseguir o facto de terceiro tem


vinculatividade de grau variável conforme a intenção das partes contraentes. Qual o
significado da obrigação contraída pelo devedor, qual o seu conteúdo preciso?

23
 Obrigação de meios: o devedor pode ter contraído uma obrigação de meios,
ou seja, obriga-se apenas a procurar, desenvolvendo todos os esforços, que o
terceiro pratique o dito ato/adote o comportamento. Na eventualidade de o
terceiro não querer ou não poder praticar o ato, o devedor exonera-se, não
sendo responsabilizado, desde que tenha atuado com a diligência exigível. Ex:
A obriga-se a desenvolver os seus esforços para que B, jogador de futebol,
celebre contrato com o clube C. Se o devedor desenvolver esses esforços, ele
cumpre, independentemente de o jogador não querer ou não poder celebrar o
contrato. O que está em causa é o facto próprio do devedor.

 Obrigação de resultado: o devedor vincula-se mesmo a que o objetivo que


envolve terceiro seja efetivamente alcançado, há uma promessa de resultado.
Assume o risco/a responsabilidade de o terceiro não querer praticar o ato,
tendo, nessa medida, que indemnizar a outra parte. Não se responsabiliza, na
eventualidade de o terceiro, sem culpa, não poder celebrar o contrato (o
resultado se tornar impossível por causa que não lhe seja imputável – art.790º
CC).

 Obrigação de garantia: o devedor assegura resultado em todas as


circunstâncias. Responsabiliza-se integralmente pela adoção do
comportamento de terceiro, tendo que indemnizar/ressarcir o credor se o
terceiro não quiser ou não poder praticar o ato. Este tipo de obrigação organiza-
se num sentido de gradação na responsabilidade de terceiro.

Esta distinção é comum a todas as obrigações, derivando da questão de saber se a


prestação se reporta a uma conduta humana ou ao resultado dessa conduta. As obrigações
de resultado são a regra.
A contraposição entre obrigações de meios e obrigações de resultados tem efeitos,
sobretudo, no domínio do ónus da prova da culpa do devedor. É que nos termos do
art.799º CC é ao devedor que “incumbe provar que a falta de cumprimento ou o
cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua”, logo a sua culpa
presume-se. Isto nas obrigações de resultado parece ser lógico.

24
Nas obrigações de meios a presunção de culpa mantém-se, cabendo ao devedor provar
que adotou todos os meios necessários e razoáveis tendentes à obtenção do resultado e
que a não obtenção não foi culpa sua.

Relativamente às prestações de coisa, a obrigação tem por objeto imediato a prestação


de uma coisa e por objeto mediato a própria coisa.
O comportamento do devedor pode traduzir-se num:

 dar (dare);
 entregar;
 restituir.

As prestações de dar ocorrem quando a prestação ou o ato de entrega da coisa visa


transferir ou constituir um direito real definitivo sobre a coisa, ou seja, transmite-se a
propriedade da coisa. É pelo ato de entrega que se alcança o efeito real (constituição ou
transferência do direito real). Ex: entrega da coisa feita pelo mutante ao mutuário
(art.1144º CC), para conclusão ou aperfeiçoamento do contrato de mútuo.

As prestações de entrega, em que a entrega da coisa não se destina a transferir ou


constituir um direito real, no fundo não visa a aquisição do domínio da coisa, mas apenas
a mera fruição ou uso, conservação ou guarda da coisa. Não se transfere o direito real (a
propriedade já se transmitiu), mas a posse objetiva da coisa. Ex: entrega da coisa ao
locatário, ao comodatário, ao mandatário ou ao depositário.

Nas prestações de restituir, o credor recupera a posse objetiva da coisa ou o domínio


sobre coisa equivalente, de igual qualidade e género (há uma simples transmissão). É o
que se passa, por exemplo, com um comodatário ou depositário, decorrido o período
contratual ele tem que devolver a coisa à outra parte.

No nosso sistema, dado o princípio da transmissão imediata de direitos reais (de


propriedade) por mero efeito do contrato (art.408º CC), a maioria das obrigações
(prestações) são de entrega, visto que aquilo que se pretende transferir é apenas a posse
da coisa para a esfera do adquirente, visto que a transferência do domínio ou a
constituição do direito real se obteve com a mera celebração do contrato.

25
No direito alemão, que assenta no direito romano, a transmissão do direito real implica
sempre, para além do contrato obrigacional, um contrato real subsequente ao qual se junta
a entrega da coisa para se transmitir a propriedade. Quando se tratar de coisa imóvel, para
além do contrato, é necessário o registo.

Em regra, a prestação de coisa refere-se a uma coisa já existente. A lei, não obstante,
admite a prestação de coisa futura (art.399º CC). Uma coisa futura não tem ainda
existência ou consiste numa coisa a que o credor não tem direito aquando da celebração
do contrato – art.211º CC. Será aquela que ainda não tem existência em si (ex: A vende
a B a produção de cortiça do ano seguinte; A vende a B as ações que irá adquirir de C),
ou aquelas que tendo já existência, não são autónomas (ex: frutos, enquanto estiverem
ligados à árvore não podem ser negociados autonomamente, mas sim como coisas futuras,
dando-se a transmissão quando estes se desprenderem – art.408º nº2 CC), ou que ainda
não estão na titularidade do disponente, embora ele espere vir a obtê-las (ex: a venda de
bens alheios feita na qualidade de bens futuros, art.893º CC).

É importante distinguir a venda de coisa futura da venda de coisa alheia (que é


nula). Em ambos os casos, sempre que se trata de uma coisa que tem existência, mas que
o devedor não tenha direito no tempo da declaração negocial, a coisa não pertence ainda
ao devedor. Contudo, na venda de coisa futura, o credor sabe disto, sabe que a coisa não
pertence ao devedor e que ela é negociada como futura, isto é, é necessário que as partes
alberguem a perspetiva ou a suposição de que a coisa venha a entrar no património do
alienante (caso típico do comerciante que negoceia bens de que ainda não é proprietário).
No caso do exemplo da cortiça, ou seja, de coisas que ainda não existem, a venda só pode
ser perspetivada como venda de coisa móvel futura. Os negócios de venda de coisa futura
têm uma importância económica muito grande.

No que respeita ao regime da prestação de coisa futura, ele vem definido quanto à
venda no art.880º CC. Daqui decorre, desde logo, para o devedor uma obrigação de
meios, isto é, sobre ele impende a necessidade de adotar/realizar as diligências necessárias
para que a outra parte adquira a coisa, de acordo com o estipulado. Assim, por exemplo,
no caso do comerciante, este deverá realizar os esforços necessários para que o comprador
adquira a coisa, ou então, se a coisa não tiver existência, realizar os esforços necessários
para que ela venha a ter.

26
O verdadeiro problema das prestações de coisa futura coloca-se quando a coisa não
chega a adquirir existência. Há que ter em conta a responsabilidade ou não do devedor
alienante na eventualidade de se verificar uma impossibilidade total ou parcial de prestar.
Ex: A vende a B a totalidade das laranjas do seu pomar que ainda estão na árvore. Trata-
se da venda de coisa móvel futura. Supondo que essas laranjas são furtadas, há um
impedimento de prestar.
Para resolver este problema importa conhecer a vontade das partes expressa no negócio
(art.880º CC). O regime geral diz que, por causa que não seja imputável ao devedor,
quando a coisa futura não chegue a existir, a obrigação extingue-se com a respetiva
extinção da contraprestação por parte do credor (nos contratos bilaterais) – art.795
nº1 CC (e quanto ao devedor o art.793º nº1 CC).
Mas há casos em que as partes negoceiam a própria esperança, expectativa (emptio
spei), atribuindo caráter aleatório ao contrato – art.880º nº2 CC. O adquirente corre o
risco da impossibilidade da realização da prestação. Neste caso, a obrigação extingue-se,
mas a contraprestação não, continuando o preço a ser devido, ou seja, ele terá que pagar.
Estes negócios são vantajosos pois permitem a venda de bens a um preço mais baixo do
que no caso da emptio rei speratae (venda de coisa esperada, estando aqui em causa a
quantidade prometida/desejada, e não a existência da coisa – art.880º nº1 CC).

9.2.2. Prestações instantâneas e duradouras

Esta classificação atende ao tempo da realização das prestações.

São prestações instantâneas aquelas que possam ser realizadas/cumpridas de uma só


vez. Nestes casos, o comportamento exigível do devedor esgota-se num só momento ou
num período de tempo de duração praticamente irrelevante (ex: entrega do quadro
devido, pagamento do preço numa só prestação). Não há uma conformação da prestação
pelo tempo.
As prestações duradouras são aquelas que se prolongam no tempo, em termos tais
que a sua extensão ou o seu montante dependem dos limites temporais por que duram,
não bastando que a relação contratual se prolongue no tempo – o decorrer do tempo tem
de modelar a própria prestação (ex: nos contratos de compra e venda as prestações não

27
constituem prestações duradouras). A duração temporal da relação creditória tem
influência decisiva na conformação global da prestação. Ex: contrato de
arrendamento; contrato de trabalho; contrato de fornecimento de energia – haverá
fornecimento maior ou menor, consoante o tempo que dure o contrato de fornecimento;
empréstimo oneroso, etc.

As prestações duradouras podem ser:

 Continuadas/de execução continuada – aquelas que se prolongam


ininterruptamente no tempo (ex: prestações típicas do locador (o senhorio que
entrega o imóvel ao arrendatário), do fornecedor de serviço/bem essencial, do
depositário, do comodante e, de um modo geral, as prestações de facto
negativo);
 Reiteradas ou com trato sucessivo – conjunto de prestações singulares que se
vão sucedendo no tempo (sucessivas). Via regra, estas prestações reiteradas
são periódicas, ou seja, sucedem no tempo com alguma periodicidade (ex:
rendas, alugueres), mas podem ser reiteradas não periódicas (são uma exceção,
ex: a obrigação de fazer reparações a um certo imóvel à medida que elas se
tornem necessárias é reiterada, mas não periódica).

O exemplo do contrato de arrendamento permite clarificar convenientemente a diferente


entre estas duas modalidades de obrigações duradouras: por um lado, a obrigação do
senhorio (locador) de entregar o bem imóvel é uma obrigação continuada; por outro lado,
a obrigação do arrendatário (locatário) de pagar mensalmente o valor da renda é uma
obrigação reiterada.

As prestações duradouras são conformadas pelo tempo e materializam-se,


frequentemente, em prestações singulares instantâneas (ex: vencimento da renda,
salário devido, etc.) que surgem lado a lado com aquelas prestações continuadas ou
reiteradas que dão forma à relação global. Assim, o que dá identidade à relação não é a
prestação singular em cada momento, mas o facto de a prestação como um todo se
prolongar no tempo.
Diferentes destas são as prestações fracionadas ou repartidas. Não são conformadas
pelo tempo (o seu conteúdo está definido desde o início e a duração da relação não o

28
influencia), e nessa medida, são instantâneas, sendo porém acordado que o cumprimento
irá ser realizado ao longo do tempo (através de prestações instantâneas sucessivas). Ex:
pagamento do preço a prestações.

O fator distintivo entre as obrigações duradouras e as fracionadas reside no facto de,


nas primeiras, o tempo influenciar/moldar decisivamente o objeto da prestação, ao passo
que, nas obrigações fracionadas o tempo em nada afeta a determinação do objeto da
prestação, apenas é relevante para o modo de execução da prestação.

Ex: A aluga um automóvel a B: é uma prestação duradoura, reiterada. Na


eventualidade de o automóvel ser destruído, não há dever de pagar as restantes prestações.
Todavia, se se tratar da venda de um automóvel, em que se acorda o pagamento do preço
em prestações, uma vez que já houve transmissão da propriedade e do risco, se o
automóvel for destruído tem que pagar.

É possível encontrar diferenças de regime entre as prestações duradouras e as


prestações fracionadas:

 Resolução do contrato – se for resolvido um contrato que seja fonte de


obrigações que tenham por objeto prestações duradouras, a resolução do
contrato não tem efeitos retroativos, não atingindo o tempo já decorrido e,
portanto, as prestações já realizadas (art.277º nº1 CC; art.434º nº1/2 CC). Pelo
contrário se se tratar de obrigações que tenham por objeto prestações
fracionadas, a resolução do contrato atinge as prestações já realizadas que têm
que ser restituídas, por força da resolução do contrato, ou seja, tem efeitos
retroativos (art.433º CC - regime regra; art.289º CC).

 Perda do benefício do prazo – se estivermos face a uma prestação duradoura


reiterada, o não cumprimento de uma delas (ex: falta de pagamento de um mês
de renda) não dá lugar à perda do benefício do prazo em relação às outras
e o credor não poderá exigir de imediato o pagamento das restantes
prestações. Nas prestações fracionadas o não pagamento de uma delas permite
que o credor possa de imediato exigir as prestações, pois as obrigações
constituem-se com o decurso do tempo. O credor, segundo o regime geral, pode

29
exigir desde logo as 10 prestações em falta, por exemplo. O devedor tem um
benefício do prazo que perde após incumprimento de uma prestação –
art.781º CC (exceção art.934º CC).

Regime particular da venda a prestações com reserva de propriedade (art.934º CC):

Nas vendas a prestações, por razões de tutela do adquirente, é fixado um regime que é
mais favorável a este último do que o regime geral que vimos. Este regime diz que, no
que diz respeito à perda do benefício do prazo, se estiverem face à venda a prestações,
com entrega de coisa, o adquirente só perde o benefício do prazo numa das 2 hipóteses
seguintes:

1. Se tiver deixado de cumprir mais do que uma prestação;


2. Se a prestação não cumprida for superior a um oitavo do preço.

No que diz respeito à resolução, sempre que estiver face a uma venda a prestações com
reserva de propriedade e tenha havido entrega de coisa, o credor só poderá resolver o
contrato se o devedor tiver deixado de cumprir mais do que uma prestação, ou se a
prestação incumprida for superior a um oitavo do preço.

No que toca ainda há distinção entre prestação instantânea e duradoura, há que ter em
conta os atos preparatórios da prestação. Ex: Contrato de empreitada (art.1207º e ss
CC), pelo qual o sujeito se obriga a realizar uma obra por um preço. Estamos perante uma
realização de uma obrigação com prestação instantânea, uma vez que ela só é cumprida
aquando da entrega. Todavia, a realização de uma obra implica um trabalho prévio de
realização da obra, ou seja, atos prévios. A prestação do empreiteiro em si é instantânea
e realiza-se com a entrega da coisa (construída ou elaborada).
Assim, entende a doutrina que a empreitada é um contrato de execução prolongada,
mas em que a prestação devida não é duradoura (portanto, não se aplica o art.434º nº2
CC).

Devido ao facto de as prestações duradouras se estenderem no tempo, elas são


especialmente aptas a limitarem a liberdade das partes. Por esse motivo, estabelecem-se

30
causas particulares de cessação de relações duradouras, não podendo haver prestações
perpétuas. Ex: Se um contrato tiver sido celebrado por tempo indeterminado, qualquer
uma das partes pode pôr-lhe um fim, tendo embora que observar um pré-aviso. As partes
não têm que ficar vinculadas indeterminadamente. Nos contratos que são celebrados a
termo, a lei estabelece frequentemente limites materiais, como acontece com a locação –
art.1025º CC.

As prestações duradouras inserem-se em relações obrigacionais que assentam numa


relação de confiança entre as partes, isto é, o nível de confiança entre as partes num
contrato que tinha por objeto prestações duradouras é mais intenso do que o que se
verifica nos contratos com prestações instantâneas. Há aqui uma causa muito particular
de cessação do contrato duradouro – a resolução com fundamento de justa causa, que se
entende que se verifica quando a continuação da relação contratual é inexigível a uma das
partes, tendo em conta a natureza do vínculo, os interesses de ambas as partes e a sua
conduta global.

9.2.3. Prestações fungíveis e infungíveis

As prestações fungíveis são aquelas em que, ou por acordo das partes ou pela sua
própria natureza, a prestação pode ser realizada por terceiro, sem prejuízo do interesse
do credor (ex: pagamento de um preço) – art.767º nº1 CC.
As prestações infungíveis são aqueles em que, ou por acordo das partes
(infungibilidade convencional) ou pela sua natureza (infungibilidade material), a
prestação não pode ser realizada por terceiro, portanto só o devedor a pode cumprir,
considerando as suas características especiais. Nestas obrigações o credor não está apenas
interessado na prestação em si, mas também em certas qualidades pessoais do devedor
(ex: prestação de um arquiteto) – art.767º nº2 CC.
Não tendo as partes nada estabelecido quando ao caráter fungível ou não da prestação,
será necessário recorrer aos usos da vida, que indicam que, por exemplo, a prestação de
um cirurgião é infungível (possui a habilidade para tal, o saber).

Em certos casos pode falar-se em fungibilidade relativa, o que significa que o


devedor pode ser substituído no cumprimento da obrigação, mas apenas por um círculo

31
restrito de terceiros com determinadas características (ex: um sujeito está com uma ligeira
gripe e contrata com um médico de clínica geral. Em princípio, a prestação terá uma
fungibilidade relativa, isto é, para o credor não há perigo do seu interesse se ele for
assistido por um outro de clínica geral). Esta classificação tem particular relevo no que
diz respeito às prestações de facto.

O regime da prestação é diferente consoante ela seja ou não fungível:

› Sendo a prestação de facto fungível, se o devedor não cumprir, o credor poderá


ainda recorrer à via executiva uma vez que é possível que, neste quadro, a
prestação seja realizada por outrem, à custa do devedor (art.828º CC). O objetivo
da via executiva é obter o mesmo resultado, mas por terceiro. Se se tratar de uma
prestação de facto infungível não há tutela executiva, já que a prestação não
pode ser realizada por terceiro, o credor só pode exigir o cumprimento do devedor
(art.817º CC) e, caso este não cumpra, recorrer à indemnização do prejuízo que
daí resulte. Naqueles casos em que a obrigação tenha por objeto facto infungível,
seja a prestação positiva ou negativa, desde que a prestação não exija especiais
qualidades de vertente artística ou científica, o tribunal poderá, a pedido do credor,
condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de
incumprimento – art.829º-A CC (sanção pecuniária compulsória). Não se trata,
porém, da via executiva já que não há o cumprimento da prestação.

› Verificada a impossibilidade subjetiva (apenas aquele devedor não consegue


cumprir a prestação), se ela for definitiva, e tratando-se de uma prestação
infungível, ela é equiparada à impossibilidade objetiva (ninguém pode cumprir
a prestação), com a consequente extinção da obrigação – art.790º nº1/2 CC. Ex:
A contrata com B, um pintor famoso, a pintura do seu retrato. B cega. A prestação
é infungível, a impossibilidade é subjetiva. Equipara-se à impossibilidade
objetiva. A impossibilidade subjetiva no caso das prestações fungíveis não gera
extinção da obrigação. O devedor fica obrigado a encontrar terceiro que o
substitua na realização da prestação, sendo apenas exonerado se não o conseguir
encontrar – art.791º CC. Se ele não for substituído e tiver culpa, responde por tal
(ex: A, médico, contrata com B consultá-lo por causa da tosse. A prestação será

32
relativamente fungível. Se A adoecer terá que procurar um terceiro que o
substitua. Se não o fizer, a sua atuação será culposa e logo há responsabilidade).

A patrimoniabilidade da prestação

Originariamente, a obrigação correspondia a uma ligação entre pessoas, pelo que o


problema da patrimoniabilidade não se colocava. Contudo, a partir do momento em que
o devedor passa a responder perante o credor com o seu património e não com a sua
pessoa, a situação inverteu-se.

A prestação pode ou não ter caráter patrimonial, sendo que a regra é que tem. Ex: A,
cantor, compromete-se a realizar um espetáculo no casino de B. A sua prestação tem um
caráter patrimonial. Contudo, A, vizinho de B, cai e canta mal. A sua prestação não tem
qualquer valor pecuniário.
É possível que as prestações tenham caráter patrimonial, mas sirvam interesses ideais.
Por outro lado, pode ainda suceder que as prestações não tenham valor patrimonial, mas
sirvam interesses patrimoniais (ex: A paga a B, seu vizinho, para que este não cante
durante uma tarde para que A possa estudar. A prestação de B não tem valor patrimonial,
mas serve um interesse de natureza económica que visa satisfazer).

A questão que se colocava no início do séc.XX era que a prestação tinha que ter
necessariamente um caráter patrimonial. Isto porque se entende que do incumprimento
de uma prestação sem valor patrimonial só podiam resultar danos não patrimoniais (danos
morais) e esses, no âmbito contratual, não eram suscetíveis de serem
indemnizados/ressarcíveis. Essa assunção de que uma prestação sem valor patrimonial só
pode gerar danos não patrimoniais foi contraposta, nomeadamente, por Manuel de
Andrade.
A prestação não precisa de ter valor patrimonial porque, mesmo que só gere danos
morais, estes são compensáveis. Defende ainda que o interesse não precisa de ter caráter
patrimonial, ou seja, ser suscetível de avaliação pecuniária, bastava que servisse um
interesse real do credor digno de tutela legal (isto é, suscetível de proteção jurídica). Esta
posição é particularmente relevante, sendo consagrada no atual CC – art.398º nº2.

33
Pode tratar-se de um simples interesse espiritual, mas exige-se que se trate de um interesse
digno de tutela legal. Isto não significa que só estejam tutelados interesses objetivos e
socialmente úteis, pois interesses subjetivos podem ser tutelados. No fundo, só se exclui
aquilo que se designa por “mero capricho” do devedor (ex: usar cabelos compridos) ou
matérias que mereçam tutela por outros ordenamentos (ex: moral, religião).

9.3. Vínculo jurídico

O vínculo jurídico corresponde ao elemento central da relação obrigacional e é


constituído pela ligação dos poderes conferidos ao credor com os correspondentes
deveres impostos ao devedor. É central porque os sujeitos da relação podem ser alterados
e a própria prestação também.
A sua juridicidade consiste na existência de medidas dotadas de força coercitiva que
visam assegurar, na prática, a sua realização. Ex: A deve a B mil euros, isto é, uma
prestação pecuniária. O credor (B) poderá interpelar o devedor (A), o que significa que
se vence a obrigação e, caso o devedor não cumpra, poderá recorrer a uma ação
declarativa de condenação, onde se declara o direito do credor e se condena o devedor à
realização da prestação. Dotado de um título executivo, se já não o tivesse antes, o credor
pode então, mantendo-se o incumprimento recorrer à via executiva, através de uma ação
de execução para pagamento de quantia certa. No âmbito dessa ação serão penhorados os
bens do devedor, materialmente apreendidos e tirados da sua disponibilidade jurídica,
pendendo sobre eles uma preferência do credor da execução. Alienados esses bens, será
então pago, com o dinheiro obtido, o credor. No seio desta ação de execução têm de ser
citados os credores com garantia real sobre os bens penhorados para que estes possam
participar na execução. De facto, os bens são vendidos, livres dos direitos reais que os
oneram – art.824º nº2 CC.

Existem, então, três elementos que integram o vínculo existente entre os sujeitos da
relação:

 Direito à prestação – poder detido pelo credor, titular do direito, de exigir a


realização da prestação ao devedor. Apenas o credor pode exigir o
cumprimento da prestação ao devedor e, por sua vez, apenas ao devedor pode

34
ser exigida. A não realização da prestação pelo devedor consiste num ato
ilícito.
 Dever de prestar – necessidade imposta pela lei ao devedor de adotar a
conduta devida, com vista à satisfação de um interesse do credor, sob pena de
sanções no caso de incumprimento. Consiste num verdadeiro dever jurídico.
 Garantia – para assegurar a realização da prestação, prevê-se o mecanismo da
ação creditória, através da qual o credor exige judicialmente o cumprimento da
obrigação, quando o devedor não cumpra voluntariamente, e executa o seu
património (art.817º CC). Pelo lado do credor, a obrigação traduz-se na
responsabilidade do seu património pelo cumprimento da prestação, estando os
seus bens sujeitos à execução específica. O património do devedor responde
previamente pela obrigação.

01/10/2019

10. Distinção entre relação obrigacional simples e relação


obrigacional complexa

A relação obrigacional simples vem definida no art.397º CC. Esta é constituída por
um único direito de crédito, isolado, do credor face ao devedor (ex: A obriga-se a entregar
1000€ a B).
A relação jurídica complexa tende a ser definida como a relação global que um
determinado tipo contratual cria. Geralmente, a fonte destas obrigações são contratos.
Esta relação obrigacional complexa consiste num quadro onde se englobam um conjunto
de posições jurídicas cujo centro/núcleo são os deveres principais de prestação, mas que
pode compreender posições jurídicas de natureza diferente. É constituída não só por
direitos à realização de prestações principais, mas também por deveres, ónus,
expectativas e sujeições. Esta relação tem um sentido final, só podendo compreender-se
devidamente na sua relação ao fim, isto é, à satisfação do interesse do credor.
A doutrina alemã diz que, a relação obrigacional complexa consiste num organismo
atendendo à variabilidade e à alteração/desenvolvimento dos elementos que a constituem
(ex: o dever de prestar pode passar, em certos casos, ao dever de indemnizar). Por outro

35
lado, no desenvolvimento da relação contratual, uma das partes pode adquirir direitos
potestativos face à outra (ex: o direito à resolução do contrato). Este direito pode ou não
ser exercido.
Estas relações são particularmente ricas quando sejam relações duradouras (ex: as que
decorrem de um contrato de trabalho).

Existem três tipos de deveres que emergem da relação obrigacional complexa:

 (1) Deveres principais – O CC constrói principalmente as relações


obrigacionais a partir de deveres principais a que correspondem direitos
principais. É com base nesses elementos que se caracterizam as figuras
contratuais. Por exemplo, o contrato de empreitada é a realização de uma coisa
contra o pagamento do preço – deveres principais que caracterizam o contrato.
No que respeita ao contrato de compra e venda este tem 3 efeitos, um efeito
real (transferência de propriedade) e dois obrigacionais (dever de entregar a
coisa e pagar o preço).

Para além destes, temos os (2) deveres secundários que podem ser:

 Deveres secundários acessórios – são aqueles que, decorrendo da lei ou de


contrato, são necessários para a correta e integral realização da prestação
principal. Estão ao serviço do interesse na prestação (instrumentais). Ex: Se A
vender um automóvel a B terá que o entregar – dever principal, mas terá
também que entregar os documentos do automóvel – dever secundário
acessório da prestação principal. A mera entrega da coisa sem a entrega dos
documentos tem interesse reduzido para o credor uma vez que não poderá
circular com ele. Nesta medida, surge este dever secundário que está ao serviço
da realização do interesse na prestação. Estes deveres, frequentemente, estão
incluídos no sinalagma, ou seja, é possível utilizar relativamente a eles, quer a
exceção do não cumprimento do contrato, quer o direito de resolução – art.801º
CC.

 Deveres secundários com prestação autónoma – ex: A deve a B mil euros e


não os paga na data acordada, fica então constituído o dever de pagar juros de

36
mora. Estamos perante um dever secundário com prestação autónoma
complementar da prestação principal, dever esse que se mantém.

Ex: A obriga-se a entregar um automóvel a B, mas por facto que lhe é


imputável, destrói o automóvel. A obrigação de entregar o automóvel torna-se
impossível, substituindo-se por uma obrigação indemnizatória. Esta
indemnização, na perspetiva da doutrina de Coimbra, continua a inserir-se no
seio da relação obrigacional complexa, substituindo o dever de entregar o
automóvel (alterando-se apenas o objeto da prestação). Trata-se, assim, um
dever secundário com prestação autónoma substitutivo da prestação principal.

 (3) Deveres laterais – assentam no princípio normativo da boa fé. Têm em


vista a realização do fim do contrato ao contrário do que se passa com os
deveres secundários acessórios que visam assegurar o interesse na realização
da prestação. Também se podem designar por deveres acessórios de conduta.

Ao contrários dos outros deveres, estes estendem-se a terceiros estranhos à relação


contratual.
Estes deveres laterais podem surgir antes (fase pré-contratual, art.227º CC) ou mesmo
independentemente da relação contratual, na fase contratual (ou seja, durante a execução,
art.762º nº2 CC) e podem estender-se na fase pós-contratual (depois de extintas as
obrigações principais decorrentes do contrato, responsabilidade pós-contratual ou culpa
post pactum finitum). Quer na fase de negociação, quer na fase da própria preparação do
contrato, as partes deixam de ser estranhos, há uma relação de confiança mínima que se
cria, por isso caem sobre ambas as partes deveres laterais. Estes não permitem,
frequentemente, o recurso à ação de incumprimento, ou seja, da sua violação decorre
meramente o dever de indemnizar. Na verdade, só em concreto será possível determinar
o surgimento destes deveres.

Vejamos agora, estes pontos mais a fundo:

a) Os deveres laterais estendem-se a terceiros, são eficazes em relação a terceiros


que não são meramente partes contratuais. Como se delimitam estes terceiros

37
abarcados pelo círculo de tutela destes deveres? Estes terceiros serão aquelas
pessoas em relação às quais o credor confia na sua segurança, como se fosse ele
próprio (ex: no círculo de proteção do contrato de locação estão abrangidos as
pessoas da família do locatário com ele habitante). Ex: contrato de locação, A
arrenda um andar a B. Por defeito de conservação da escadas, C, filho do locatário,
tropeça e parte uma perna. As partes são A e B, C não é parte do contrato. Estes
deveres laterais só se estabeleceriam reciprocamente às partes. Dada a proximidade
entre o locatário e C que vive com ele, o dever de proteção do locador abrange
também C. Este aspeto é importante porque a responsabilidade aqui do locador
face a C não será meramente extracontratual (art.483º CC), mas será obrigacional,
o que é mais favorável para o lesado. Estes contratos costumam denominar-se
contratos com eficácia de proteção para terceiros.

b) Estes deveres laterais podem existir ainda antes da celebração do contrato (pré-
contratual) ou mesmo independentemente da celebração, no sentido em que,
tendo embora as partes entrado em negociações, o contrato pode não vir a ser
concluído. Nesta fase, estes deveres decorrem do art.227º CC - responsabilidade
pré-contratual ou culpa in contrahendo. Isto é, tanto na fase de negociação
(preliminares) como na fase decisória (formação), as partes devem adotar a
conduta imposta pela boa fé, ou seja, neste caso, estabelece-se entre as partes uma
relação obrigacional sem deveres de prestação, só com deveres laterais
conformados pela boa fé, destinados a prevenir danos nas esferas das partes. Esses
são também os ditos deveres de proteção que abarcam não só a pessoa ou o
património do outro “contraente”, mas também pessoas particularmente ligadas a
este sujeito.

Os deveres laterais subdividem-se em:

 Deveres de proteção – são deveres de proteção da pessoa e do património da


outra parte e terceiros. Têm em vista uma função negativa, que consiste em evitar
que uma das partes provoque danos na pessoa ou património de outrem. Ex: A
dirige-se com a filha, B, a um estabelecimento comercial que vendia rolos de
linóleo. A determinada altura, quando A e B estavam a escolher o que levar, um
empregado do estabelecimento deixou cair um rolo em cima da filha, tendo

38
provocado danos. Estamos aqui na fase pré-contratual. A pessoa lesada, ou seja,
a filha, não era parte desta relação. No entanto, os deveres de proteção abrangem
também a filha dada a especial conexão com a mãe (pré-contratante). Neste caso,
havia uma violação do dever de proteção incorrendo o dono do estabelecimento
comercial em responsabilidade obrigacional face à filha. Este aspeto é importante
porque o regime da responsabilidade obrigacional é mais favorável para o lesado
do que o regime da responsabilidade extracontratual, uma vez que o devedor se
presume culpado, não tendo o lesado que fazer prova da culpa como em geral
acontece na responsabilidade extracontratual.
Imaginemos que uma senhora da limpeza lava o chão do lobby de um prédio e
não sinaliza devidamente. A filha de um dos inquilinos entra e cai, partindo uma
perna. Esta espera um nível de proteção idêntico ao que seria aplicado ao seu pai.
O responsável pela empresa de limpeza responde pelos atos dos auxiliares nos
termos do art.800º CC, como se esses atos tivessem sido praticados por ele.
Sendo uma relação obrigacional aplicam-se as regras desta, nomeadamente no que
diz respeito à responsabilidade dos atos dos auxiliares – 3ª via da responsabilidade
civil, sendo esta uma responsabilidade específica.

 Deveres de informação – têm uma função positiva de manter os laços de fides


em que a relação assenta, sendo mais intenso quanto mais intensa for a relação de
confiança. Cada uma das partes deve informar a outra de todos os elementos
atinentes ao vínculo (ex: se um dos sujeitos detetar que a outra parte está a agir
em erro, deve informá-lo desse facto), ou seja, toda as informações que sejam
necessárias para a formação de uma vontade livre e esclarecida.

 Deveres de lealdade – têm uma função positiva. Se um sujeito está a negociar


com outrem e se as negociações já atingiram tal desenvolvimento em termos tais
que levem à criação de uma confiança legítima na celebração do contrato, uma
das partes não deve entrar em negociações paralelas com outro sujeito, com quem
venha a celebrar depois contrato. Ao proceder assim viola um dever de lealdade,
assim como, aquele que no decurso das relações pré-contratuais obteve
conhecimentos secretos da outra parte e depois os divulga.

39
Extintas as obrigações principais, há deveres laterais que se mantém. Por exemplo, A,
médico, arrenda um edifício a B onde estabelece o seu consultório. Cessado o contrato,
muda-se para um outro local. Se um cliente seu se dirigir ao antigo consultório, B tem o
dever de o informar da mudança.

Os deveres laterais de boa fé são tanto mais intensos quanto a relação de confiança
envolvida, a colaboração exigida entre as partes e a duração da relação contratual. Em
alguns casos, pode falar-se mesmo de uma causa particular de cessação dos contratos
duradouros por violação de deveres decorrentes da boa fé. Assim, uma das partes terá
uma justa causa de resolução do contrato quando a outra tenha, ao violar estes deveres,
posto em causa a relação de confiança entre as partes. Ex: Um sujeito contrata outro para
o ajudar numa experiência. Embora seja um excelente trabalhador, o facto é que violou
deveres de segredo quanto a conhecimentos que obteve no âmbito da relação contratual.
Um comportamento destes atinge a relação de confiança entre as partes, tornando exigível
ao credor a manutenção da relação contratual que, nessa medida, a pode resolver com
base em justa causa.

07/10/2019

II. FONTES DAS OBRIGAÇÕES

As fontes das obrigações são os chamados factos constitutivos das obrigações, ou


seja, o facto jurídico de onde nasce a obrigação. São bastante importantes porque não só
levam ao surgimento das obrigações como o próprio conteúdo destas é marcado pela sua
fonte (atipicidade). Isto não acontece com os direitos reais pois, por força do princípio da
tipicidade, as partes não podem criar outros direitos reais diferentes dos previstos na lei.

São cinco as fontes:

 Contratos;
 Gestão de negócios;
 Enriquecimento sem causa;
 Negócios jurídicos unilaterais;

40
 Responsabilidade civil.

Fora destas figuras ficam a responsabilidade extracontratual, certas relações familiares ou


reais, que geram obrigações não autónomas e os pactos lícitos. As mais importantes fontes
são os contratos e a responsabilidade civil.

1. Os Contratos

Pode ser definido como um acordo juridicamente vinculativo assente sempre em pelo
menos duas declarações de vontade (proposta e aceitação) contrapostas, mas
convergentes, articuladas na comum intenção de produzir um resultado jurídico
unitário, uma composição unitária de interesses (noção de Antunes Varela).

1.1. Teoria geral do contrato

Os princípios que enformam o direito dos contratos:

› Princípio da liberdade contratual – princípio basilar do direito dos contratos.


Desdobra-se em liberdade de celebração e liberdade de fixação do conteúdo do
contrato – art.405º CC. Podem, assim, recorrer a contratos nominados ou
tipificados no CC ou celebrar contratos diferentes, nomeadamente fundindo
elementos dos tipos regulados no CC ou fora dele (contratos mistos) ou
simplesmente adicionando cláusulas aos contratos regulados (condição, termo,
etc.). Podem, finalmente, as partes celebrar contratos de todo distintos daqueles
previstos e tutelados no CC – contratos atípicos puros. O reverso deste
princípio é o princípio da responsabilidade contratual, ou seja, as partes são
livres de se vincularem, de fixar o conteúdo do contrato, mas uma vez
celebrado esse contrato vão ter que o cumprir, ponto por ponto (pacta sunt
servanda). O contrato só se pode modificar por acordo ou nos casos previstos
na lei – art.406º CC.

As várias dimensões do princípio da liberdade contratual sofrem limitações:

41
 Liberdade de celebração: as partes, em princípio, podem livremente decidir
contratar ou não.
Contudo, existem casos em que são obrigados a contratar, há um dever jurídico
quando se verifiquem certos pressupostos:

 Hipótese em que as partes se vincularam previamente à celebração de um


ou mais contratos futuros, por exemplo, contrato promessa (art.410º e ss
CC);
 Contratos ditados. Há certos casos em que o tribunal determina o conteúdo
dos contratos. Na eventualidade de divórcio, em que a casa de morada de
família pertence a um dos cônjuges, o tribunal pode ao abrigo do art.1793º
CC dar de arrendamento esse imóvel ao outro cônjuge;
 Hipótese em que há a prestação de um serviço essencial (água, luz, etc.)
em regime de monopólio, de exclusividade. Estas entidades são obrigadas
a colocar o seu serviço à disponibilidade de qualquer pessoa desde que
estas satisfaçam determinadas condições;
 Hipóteses em que não se trata de um serviço essencial, mas de uma
atividade importante em termos económicos, em que há uma situação de
exclusivo (ex: única discoteca ou um único hotel na localidade). A questão
não é comparável à hipótese anterior, embora a recusa de contratar possa
configurar um abuso de direito ou até a violação de um direito de
personalidade da outra parte;
 Profissões de exercício condicionado, geralmente liberais, em que a lei e
os estatutos profissionais exigem uma determinada habilitação. É o que
acontece com os médicos, salvo caso de força maior, quando a sua atuação
for urgentemente requerida, havendo um acidente e estando um médico
por perto, ele é obrigado a atuar. O pagamento destas é efetuado pelo
Estado.

Há casos em que existe a proibição de contratar com determinadas pessoas:

 Venda de coisas feita por pais a filhos ou por avós a netos (art.877º CC);
 Doações a favor de pessoas abrangidas por indisponibilidades relativas
(art.953º, 2192º a 2198º CC);

42
 Cessão e venda de direitos ou coisas litigiosas (art.579º e 876º CC).

Casos que dizem respeito a situações em que se impõe a renovação do contrato:

 Arrendamento urbano, pois de acordo com as regras de locação, o contrato


renova-se automaticamente (art.1054º CC). O inquilino pode opor-se à
renovação do contrato fazendo-o cessar, enquanto que o senhorio só o
pode fazer em casos contados, isto é, naquelas situações em que a lei o
preveja.

Casos de necessidade de consentimento de terceiros (arts.1682º nº3 al.a), 1889º,


1938º CC; ex: pessoa em comunhão de adquiridos precisa do consentimento do
outro cônjuge).

 Liberdade de fixação do conteúdo:

 Requisitos do objeto negocial, não pode, por exemplo, atingir os bons


costumes e a ordem pública (arts.280º/281º/282º e 398 nº2 CC);
 Necessidade de proteção da parte mais fraca (normas de proteção do
consumidor);
 Normas imperativas, como o respeito pelo princípio da boa fé (art.762º nº2
CC);
 Normas resultantes do diploma das Cláusulas Contratuais Gerais (DL
nº446/85).

Modalidades contratuais

Contratos com eficácia real (quoad effectum):

Os contratos não têm meramente eficácia obrigacional. São fontes de direitos reais, ou
seja, a constituição ou a transferência de direitos reais sob coisa certa e determinada dá-
se por mero efeito do contrato – art.408º nº1 CC. Em regra, dá-se também no momento

43
da celebração do contrato, embora, por vezes, não seja necessariamente assim (é possível
que as partes acordem não transmitir a propriedade no momento da celebração do
contrato). Ex: B vende a C uma casa, ficando as partes obrigadas à entrega do imóvel
contra a entrega do preço. Porém, por força do art.408º nº 1 CC (combinado com o art.
879º CC), a propriedade da casa foi desde logo transferida aquando da celebração do
contrato. Radicando, embora, a transferência do direito real no contrato, ela só se faz
posteriormente à conclusão deste. Assim, tratando-se de uma coisa futura ou
indeterminada, ela só se transfere quando a coisa for adquirida pelo alienante ou
determinada com o conhecimento de ambas as partes. Tratando-se de frutos naturais ou
de partes componentes ou integrantes, para a transmissão do direito real é necessária a
colheita ou a separação – art.408º nº2 CC.
Esta é uma regra geral no nosso Direito. Não é necessário um ato posterior ou futuro
para haver eficácia real – é um sistema de título.

Estes contratos não devem ser confundidos com os contratos reais quoad
constitucionem – a perfeição do contrato depende de um certo ato material, que é
geralmente a entrega da coisa (contrato de mútuo, por exemplo). A estes opõem-se os
contratos consensuais – a perfeição do contrato alcançasse pela simples emissão das
declarações negociais, prescindindo-se a entrega da coisa, isto é, formam-se só com
acordo entre as partes.

Diferença entre eficácia real e eficácia obrigacional:

No sistema alemão, que é oposto ao nosso, o contrato tem eficácia meramente


obrigacional e não eficácia real e obrigacional. Assim, por exemplo, enquanto que entre
nós o contrato de compra e venda tem uma eficácia real (leva à transmissão de um direito
real), o contrato tem também eficácia obrigacional. Ou seja, nascem também as
obrigações principais de entregar a coisa e de pagar o preço. No sistema alemão, o mesmo
contrato de compra e venda tem efeito simplesmente obrigacional, integrando-se aqui o
dever do devedor de, mais tarde, por negócio subsequente, transmitir a propriedade sobre
a coisa. A transmissão do direito real opera por contrato subsequente entre as partes a que
se junta a entrega se se tratar de um móvel ou o registo se se tratar de um imóvel (o registo
tem efeitos reais constitutivos e não declarativos como no nosso sistema).

44
A adoção de um sistema ou outro tem consequências relevantes em termos de regime:

1) No nosso sistema, se A vender a B e depois vender a C temos uma venda de bem


alheio (art.892º CC) e a segunda venda é nula. No sistema alemão, como o negócio
obrigacional não transmite a propriedade, a segunda venda é válida.
2) No sistema português, a transmissão do direito de propriedade está acompanhada
da transmissão do risco. Transmitindo-se a propriedade por efeito do contrato
transmite-se também o risco. No sistema alemão, uma vez que do contrato não
resulta a produção do efeito real, o risco, enquanto não for celebrado o dito contrato
real, continua a correr por conta do alienante e não do adquirente.
3) Entre nós a declaração de nulidade do contrato tem efeitos retroativos (art.289º
CC). A anulação tem também estes efeitos, se bem que se produzem mesmo que
provisoriamente os efeitos do negócio. Anulado o negócio, transmite-se a
propriedade e depois tem que ser restituída. No direito alemão, a nulidade ou a
anulação do negócio obrigacional não atinge o negócio real, uma vez que, este é
abstrato e portanto não depende, no que toca à sua validade, do negócio
obrigacional (princípio da abstração). A reposição da situação inicial opera, no
direito alemão, do enriquecimento sem causa. É por esta via que se faz a
transmissão do bem em sentido contrário. Por isso é que ele tem uma importância
maior no direito alemão do que no nosso.

O efeito real do contrato constitui uma regra supletiva que pode ser afastada pelas
partes através da aposição ao contrato de uma cláusula de reserva de propriedade –
art.409º CC. Isto é, o alienante pode reservar para si a propriedade da coisa (manter na
titularidade o domínio da coisa) até que o adquirente cumpra aquilo a que se obrigou ou
até que se verifique um outro acontecimento. A propriedade só se transmite verificado
um evento previsto no contrato.

Qual a importância da reserva?

Para adquirir a reserva de propriedade é necessário ter em conta o regime geral do


contrato de compra e venda por falta de pagamento do preço. É que, sendo transmitida
a propriedade, se tiver sido feita também a entrega da coisa, o vendedor já não
poderá resolver o contrato por falta de pagamento do preço – art.886º CC. Se um

45
sujeito vender uma coisa a outrem, caso o outro não pague o preço, ele não poderá nos
termos gerais resolver o contrato, readquirindo a coisa, terá que se limitar a exigir o
cumprimento de pagar o preço à outra parte.
Para evitar este resultado, ou o vendedor não entrega a coisa, o que é inconveniente
nas vendas em que a coisa é logo entregue, mas o preço só tem que ser pago decorrido
determinado tempo, ou fixa uma cláusula em contrário que o art.886º CC admita. No
entanto, a hipótese mais segura é a de recorrer à reserva de propriedade, fazendo a
transmissão do direito depender do pagamento do preço (condição suspensiva).
Consequentemente, enquanto o preço não for pago totalmente, a propriedade nunca sai
da esfera do devedor.
Em caso de incumprimento, este continua a poder resolver o contrato e exigir a
restituição da coisa que nunca deixou de ser dele. O vendedor pode, com toda a
segurança, vender com espera de preço, o que é extremamente vulgar no comércio quando
aliada à reserva de propriedade. Favorece a concessão de crédito por parte do vendedor.

A questão que se coloca é a da eventual proteção de terceiros que tiram a coisa ao


comprador (que ainda não é proprietário). Neste caso, se estivermos face a imóveis ou
móveis sujeitos a registo, é necessário também o registo desta cláusula para que ela
seja oponível a terceiros – art.409º nº2 CC. Se estivermos face a bens não sujeitos a
registo a cláusula é sempre oponível a terceiros, isto é, naqueles casos em que, por
exemplo, A vende a B um computador com reserva de propriedade e faz-lhe a entrega da
coisa, se B, por seu lado, vender o bem a um terceiro, que não sabia nem deva saber da
existência da reserva de propriedade a favor de A, este sub adquirente nada adquire,
embora de boa fé.
No nosso sistema, não vigora a regra “posse vale títulos” se os sub adquirentes
estiverem de boa fé. A poderá reivindicar a sua coisa ao terceiro. Há, no entanto, um
regime particular muito relevante – art.1301º CC. Assim, aquele que exigir a terceiro
coisa que este tenha adquirido de boa fé a comerciante que negoceie em coisas do mesmo
género ou de género semelhante, terá que restituir o preço que o adquirente pagou
pela coisa, ficando com o direito de regresso sobre aquele que deu causa ao prejuízo,
ou seja, o revendedor. Ex: A vende a B com reserva de propriedade um computador. B
é comerciante de material informático. C dirige-se ao estabelecimento de B e compra
aquele computador. Em virtude da reserva, a venda de B a C é a venda de um bem alheio.
C não adquire o computador. O proprietário é, enquanto o preço não for pago, o A. Se o

46
B utilizar o dinheiro para pagar a A, a propriedade transmite-se de A para B e deste,
posteriormente, para C. Se não for pago o preço, ele poderá resolver o contrato com B e
reivindicar a coisa face a C. No entanto, para o efeito, uma vez que C está protegido pelo
art.1301º CC e o adquirente não conhecia a reserva, o A para obter a restituição tem de
entregar a C o que ele pagou pelo computador a B.
Trata-se de um instituto de garantia de enorme importância prática.

Contratos unilaterais e contratos bilaterais:

São contratos unilaterais aqueles de onde só emergem obrigações para uma das partes
(ex: doação).
São contratos bilaterais aqueles de onde emergem obrigações para ambas as partes
(ex: contrato de compra e venda).

Dentro dos contratos bilaterais, faz-se a seguinte distinção:

a) contratos bilaterais perfeitos – nexo entre a obrigação de uma das partes e a


obrigação da outra (obrigação de entregar a coisa e obrigação de pagar o preço). É
possível a qualquer uma das partes recorrer à exceção do não cumprimento, bem
como, resolver o contrato.
b) contratos bilaterais imperfeitos – inicialmente, só há obrigações para uma das
partes. No decurso da relação contratual, podem surgir obrigações para a outra
parte. Todavia, falta o nexo de ligação sinalagmático entre as obrigações de ambas
as partes. Ex: contrato de depósito – haverá só obrigações para o depositário
(guardar), mas se ele tiver que fazer despesas para conservar a coisa, o depositante
fica obrigado a pagar esses montantes. Não há uma ligação entre as obrigações,
logo não é possível recorrer à exceção de não cumprimento do contrato. O
mecanismo de tutela que a lei cria para a tutela da posição da outra parte é o direito
de retenção (art.755º CC). Ex: A pede a B que lhe guarde o seu cavalo durante 15
dias. Trata-se de um depósito gratuito. Supondo que o cavalo adoece gravemente
e é necessário contratar um veterinário e comprar medicamentos (o que implica
custos). Isto não torna um contrato sinalagmático e a parte pode recusar-se a
entregar o animal. Para a tutela deste crédito, ele não pode recorrer à exceção. Ele

47
pode é recorrer ao direito de retenção, ou seja, pode recusar-se a restituir o cavalo
enquanto ele não lhe pagar essas despesas.
c) contratos bilaterais sinalagmáticos – há um vínculo de reciprocidade
(sinalagma) entre as obrigações contraídas pelas partes. Há um nexo que liga as
obrigações de ambas as partes. Cada uma delas só contrai a obrigação porque a
outra contrai uma outra obrigação ligada à primeira. Ex: compra e venda – entre a
obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço.

Contratos sinalagmáticos e contratos não-sinalagmáticos:

Os contratos sinalagmáticos geram obrigações para ambas as partes, obrigações essas


unidas por um vínculo de reciprocidade: o sinalagma (ex: contrato de compra e venda,
locação, empreitada).
Os contratos não-sinalagmáticos são contratos dos quais resultem obrigações apenas
para um das partes (ex: doação, o comodato, o mútuo).

Dentro dos contratos sinalagmáticos distingue-se:

 sinalagma genético – o vínculo verifica-se no momento do nascimento do


contrato, das obrigações. A obrigação assumida por uma das partes constitui a
razão de ser da obrigação assumida pela outra. Se por qualquer motivo uma das
prestações se tornar impossível dada a sua ligação à outra prestação, ficamos logo
com um caso de nulidade pró contrato. A nulidade de um dever principal alastra
a todo o contrato. Ex: se atentar contra a ordem pública ou bons costumes.
Imediatamente todo o negócio é atingido – art.401º CC – impossibilidade
originária. A impossibilidade superveniente leva simplesmente a um determinado
regime consoante seja culposa ou não.
 sinalagma funcional – o vínculo projeta-se na fase de cumprimento do contrato,
ou seja, opera durante toda a vida do contrato. Só se compreende o cumprimento
de uma obrigação em função do cumprimento da outra. Assim, as obrigações têm
que ser exercidas em paralelo, porque uma é pressuposto lógico da outra. Ex:
contrato de trabalho.

48
Os deveres principais de prestação estão incluídos no sinalagma, deixando de fora os
deveres secundários acessórios. Os deveres secundários acessórios da prestação principal
só integram o sinalagma naqueles casos em que, eles estejam de tal forma ligados ao
dever principal de prestação, que o cumprimento deste sem o daquele, nada valha (ex:
venda de um automóvel sem a entrega dos seus documentos). Face ao não cumprimento
do dever secundário, a outra parte pode valer-se da exceção do não cumprimento do
contrato.
Os deveres laterais não fazem parte do sinalagma. O que pode acontecer é que o seu
não cumprimento por uma das partes pode lesar de tal forma a expectativa e confiança na
outra parte, que dê fundamento de resolução do contrato com base em justa causa.

Manifestações do sinalagma funcional

o Exceção de não cumprimento do contrato – art.428º CC. Nos contratos


sinalagmáticos, as obrigações estão ligadas e, via de regra, devem ser
cumpridas simultaneamente. Caso não o sejam qualquer uma das partes pode
recusar o cumprimento enquanto a outra não cumprir ou não se oferecer para
o fazer ao mesmo tempo. Ex: A vende um automóvel a B. B pode recusar-se a
entregar o dinheiro enquanto não for entregue o automóvel. Isto se não se
estabelecerem prazos diferentes para as prestações. Se se fixarem, então não se
pode recorrer a esta figura. As partes renunciam a esta vantagem com a
consideração de prazos para cumprimento.

o Insolvência ou diminuição das garantias – por força da lei ou acordo entre


as partes, decorrendo o que estiver estabelecido no contrato, uma pode estar
obrigada a cumprir antes da outra. Ex: A vende a B um automóvel obrigando-
se a entregá-lo daí a um mês, sendo que B paga o preço daí a 6 meses. Trata-
se de um caso em que uma das partes está obrigada a cumprir antes da outra,
não podendo valer-se o vendedor da exceção de não cumprimento do contrato,
não podendo recusar-se a entregar o automóvel. Contudo, poderá fazê-lo se se
verificar o previsto no art.429º CC, isto é, se se verificar alguma das

49
circunstâncias que importam a perda do benefício do prazo. Estas
circunstâncias são as que constam do art.780º CC:

∙ Insolvência do devedor mesmo que ainda não judicialmente declarada.


Consiste na impossibilidade de o devedor cumprir pontualmente as
obrigações vencidas. Nesse caso ou o devedor se apresenta em
insolvência ou o credor pode deduzir um pedido de declaração de
insolvência.
∙ Diminuição das garantias do crédito por facto imputável ao devedor ou
a não prestação pelo devedor das garantias a que se tinha vinculado (ex:
A vende a B um imóvel e é concedido um prazo de um ano para se fazer
o pagamento. O vendedor tem portanto uma garantia. É constituída uma
hipoteca do imóvel para garantir o pagamento do preço. O imóvel por
causa do devedor arde e fica parcialmente destruído. Há uma
diminuição do valor da garantia por facto imputável ao devedor).

Qualquer um destes casos leva à perda do benefício do prazo e, pelo art.429º CC,
permite-se que o outro contraente recorra à exceção de não cumprimento do
contrato. Assim, no caso da venda do automóvel, o vendedor poderia recusar-se a
entregar o carro se, por exemplo, o comprador se tornasse insolvente. Este
resultado só podia ser afastado pelo devedor caso desse garantia do cumprimento
ou efetivamente cumprisse.

Coloca-se a questão na doutrina de saber se a lei, quando se refere à insolvência,


exige que se verifique uma verdadeira situação de insolvência, ou seja, a
impossibilidade de cumprir as obrigações ou se também deverá ser admitida uma
degradação da situação patrimonial do devedor, em termos de fazer perigar o seu
cumprimento. Não deverá ser admitida, o legislador pretendeu falar em verdadeira
insolvência e não num agravamento acentuado da situação patrimonial do
devedor.

Admite-se a invocação da exceção de não cumprimento nos casos de cumprimento


defeituoso ou parcial da prestação, desde que tal não seja contrário ao princípio da boa fé

50
(art.º 762º nº2 CC). É necessário ter em atenção a importância do defeito, se este for de
pouca relevância, contrariaria a boa fé recorrer ao instituto da exceção.

Cláusula resolutiva tácita

Se num contrato bilateral sinalagmático uma das prestações se tornar impossível por
facto não imputável ao devedor, esta obrigação extingue-se – art.790º CC. O credor
fica, ao mesmo tempo, desobrigado de realizar a sua contraprestação – art.795º CC. Não
há qualquer direito de recorrer à exceção do não cumprimento do contrato. Trata-se de
uma manifestação de nexo sinalagmático. Na eventualidade de uma das prestações se
tornar impossível por facto imputável ao devedor (ex: venda de automóvel e é o
vendedor que conduz em excesso de velocidade para entregar o automóvel e acaba por
destruí-lo) o credor pode resolver o contrato – art.801º CC. Esta faculdade de resolver o
contrato é uma manifestação do sinalagma funcional.

Contratos gratuitos e contratos onerosos:

Se o critério da distinção anterior era o da articulação jurídico-psicológica das


obrigações das partes, neste caso o critério é o da função económica do contrato.

São contratos gratuitos (ou liberalidades) aqueles em que haja meramente uma
atribuição patrimonial de uma das partes à outra. Uma das partes retira do contrato
apenas sacrifícios e a outra vantagens (ex: doação).
São contratos onerosos aqueles em que haja atribuições patrimoniais realizadas por
cada uma das partes à outra, sendo que, na perspetiva das partes (subjetiva), essas
atribuições se equivalem. Há, então, esforços económicos simultâneos com vantagens
correlativas (ex: contrato de compra e venda).

Dentro dos contratos onerosos podemos ter:

51
 contratos comutativos – aqueles em que as vantagens patrimoniais para cada
uma das partes podem ser adquiridas logo no momento da celebração do
contrato, porque as atribuições derivam daí (ex: contrato de compra e venda).
 contratos aleatórios – há um risco, uma alea, o que significa que as partes,
ambas ou apenas uma, se sujeitam a um ganho ou a uma perda, isto porque,
essa avaliação, o próprio conteúdo ou existência da prestação, só se verificará
no futuro (ex: contrato de jogo e aposta, contrato de seguro no respeitante ao
segurador).
 contratos parciários – um contrato em que uma das partes faz prestação à
outra para que ela a aproveite, correndo o risco desse mesmo aproveitamento
(ex: parceria pecuária – o sujeito entrega animais a um outro sujeito para que
ele cuide deles para partilharem os benefícios decorrentes. Corre o risco de
doenças de animais e consequentemente preços mais baixos do que se estavam
a contar).

Há casos híbridos, como é o caso da doação com encargos: A doa B, que se obriga a
realizar qualquer coisa; doação mista: isto é, contrato em que se faz uma venda e o preço
corresponde, porque as partes assim o pretendem, a um valor bastante inferior. Desta
forma, através da fixação do preço mais baixo, beneficia-se a outra parte, mas sem se
prejudicar.

Os contratos bilaterais são, em regra, onerosos e os contratos unilaterais gratuitos. No


entanto, há alguns contratos unilaterais que são onerosos, como o contrato de mútuo
oneroso. Neste contrato, só há obrigações para o mutuário, que consistem em restituir a
quantia e pagar os juros. Não há qualquer obrigação para o mutuante porque o contrato
de mútuo típico é um contrato real quanto à constituição. Isto é, para a formação do
contrato não basta o simples consenso, mas é também necessário a entrega da coisa, regra
geral, dinheiro. A entrega não consiste no cumprimento da obrigação do contrato,
emergente, mas sim de um ato necessário para a própria formação/conclusão do contrato.
Daí que, formando-se o contrato, já só haja obrigações para o mutuário e, nessa medida,
é um contrato unilateral. Agora é oneroso, porque há atribuições patrimoniais de ambas
as partes.

52
08/10/2019

1.2. Contrato-Promessa

Consiste num contrato pelo qual uma ou ambas as partes se obriga/obrigam, no


futuro, à celebração de um novo contrato, dentro de curto prazo ou verificadas
certas condições. Tem, portanto, como objeto, a celebração futura de um outro contrato
(contrato definitivo). Encontra-se previsto no art.410º CC e tem um regime muito
detalhado. Parte da doutrina considera que pode ter também por objeto a celebração de
um negócio jurídico unilateral.

Em termos gerais, um contrato-promessa pode ser:

 unilateral – quando só uma das partes se vincula/obriga a celebrar o contrato


definitivo (art.411º CC).
 bilateral – quando ambas as partes se vinculam/obrigam a celebrar o contrato
definitivo.

O objeto do contrato-promessa pode ser um conjunto muito vasto de tipos contratuais (ex:
a compra e venda, locação, trabalho, franquia, etc.). Em termos de designação das partes
contratuais, estaremos face a um promitente-vendedor e um promitente-comprador (no
caso da compra e venda, que é o contrato-promessa mais comum).

Quais são as razões que levam as pessoas a celebrar este tipo de contratos?

 Razões de ordem jurídica: os contraentes, ou pelo menos um deles, teriam


interesse numa vinculação definitiva, se não existissem obstáculos de natureza
jurídica. Por exemplo, a escritura pública não se pode realizar porque não
foram efetuados determinados registos.
 Razões de ordem material: muitas vezes o imóvel a vender não está ainda
construído ou podem ainda não ter dinheiro suficiente para o adquirir, mas
querem vincular-se imediatamente. Se um sujeito pretender adquirir um imóvel
e necessitar de crédito, tecnicamente o que faz é, no momento em que celebra

53
a escritura de compra e venda com o vendedor, celebra ao mesmo tempo um
contrato de mútuo com o banco e adquirindo o imóvel, hipoteca-o a favor do
banco.

No contrato-promessa não há ainda contrato definitivo, ele em si é definitivo, o que


implica é depois a celebração do outro contrato que é definitivo. Se celebramos um
contrato de compra e venda, permitindo ao vendedor depois resolver o contrato, não é um
contrato-promessa.

O contrato-promessa distingue-se de figuras afins:

o Venda a retro – possibilidade de resolução da venda;


o Direito de preferência – no caso de venda de imóvel o vendedor terá de dar
preferência a outro sujeito, consoante a preferência seja legal ou convencional;
o Direito de opção – neste já há uma declaração negocial de uma das partes, a outra
tem o direito potestativo de concluir ou não o contrato (ex: A celebra um contrato
de prestação de serviços durante um ano, concedendo à outra parte a opção de
mais um ano. B tem o direito potestativo de prolongar a prestação de A por mais
um ano, basta a sua declaração negocial). No contrato-promessa exige-se a
emissão das declarações negociais por ambas as partes, embora possa só uma
delas estar vinculada, celebrando depois um contrato definitivo, não havendo
nenhum direito potestativo.

Regime do contrato-promessa

A regra básica prevista no art.410º CC é o princípio da equiparação, ou seja,


aplicam-se ao contrato-promessa as mesmas regras que no contrato definitivo (ex: se se
tratar de um contrato-promessa de compra e venda, aplicar-se-ão as regras da compra e
venda, em princípio). Contudo, existem 2 exceções (art.410º nº1 CC):

1) As regras relativas à forma;


2) As disposições legais do contrato definitivo, que pela sua natureza, não possam
ser aplicadas ao contrato-promessa. Por exemplo, se estivermos face a um
contrato-promessa de compra e venda, não são aplicáveis a este todas as

54
disposições da compra e venda, nomeadamente as que dizem respeito à eficácia
constitutiva ou translativa do contrato. Assim, não se aplicam os arts.879º al. a);
796º; 886º; 892º; 1682º-A CC.
Se for contrato-promessa que diga respeito à constituição dos direitos reais de gozo
ou à sua transmissão, as suas regras não se aplicam ao contrato-promessa.

Galvão Teles estabelece esta distinção:

 Se o contrato definitivo for subjetivamente impossível não há obstáculo à


celebração do contrato-promessa;
 Se o contrato definitivo for objetivamente impossível, também o é o contrato-
promessa.

No que respeita à forma (uma das exceções), estabelece-se como regra geral de
requisito de forma o que consta no art.219º CC (princípio da liberdade forma). Contudo,
colocam-se aqui duas exceções:

 art.410º nº2 CC: sempre que um contrato definitivo estiver sujeito a forma, o
contrato-promessa exige um documento assinado por ambas as partes (bilateral)
ou por uma das partes (unilateral). Ex: na compra e venda de um imóvel, uma vez
que a lei exige escritura pública para a venda em si, o contrato-promessa terá que
ser celebrado por documento assinado por uma ou ambas as partes.
 art.410º nº3 CC: nos contratos-promessa relativos à constituição ou transmissão
de um direito real sobre edifício ou fração autónoma dele, para além do
documento particular assinado pelas partes (nº2), é exigido o reconhecimento
presencial da(s) assinatura(s) do(s) promitente(s) e a certificação notarial da
existência de licença de construção ou utilização. Há uma maior solenidade,
pretendendo-se obstar à celebração de contratos-promessa relativos à construção
clandestina.

Consequências da falta de observância dos requisitos:

 Art.410º nº2 CC – pode dar-se o caso de as partes pretenderem celebrar um


contrato-promessa bilateral, mas em que só a assinatura de uma das partes (em

55
regra, o promitente-vendedor) conste no documento. Uma vez que pretendem
celebrar um contrato bilateral, falta aqui um requisito de forma: uma
assinatura. Logo, este contrato é nulo. A questão que se coloca aqui é se este
contrato poderá valer como contrato-promessa unilateral.

O assento de 29/11/89 do STJ respondeu afirmativamente nos seguintes termos: o


contrato-promessa celebrado por documento assinado só por uma das partes é nulo
por violação dos requisitos de forma (art.220º CC), mas pode considerar-se válido
como unilateral se essa tiver sido a vontade das partes. Porém, o STJ não explicita
se se aplicam aqui as regras de redução ou as de conversão.

 Na redução (art.292º CC), o negócio é parcialmente inválido, mantendo-


se a outra parte válida. A redução é mais favorável para o sujeito que
pretenda a vinculação de ambas as partes, devido ao ónus da prova pois, a
parte não interessada na redução, é quem tem que provar que se as partes
estivessem cientes da unilateralidade, não haviam celebrado o contrato.
 Na conversão, há uma nulidade total, podendo porém valer como negócio
sucedâneo, verificados os pressupostos do art.293º CC. Aqui tem de fazer
prova quem nela está interessado, provando que as partes quiserem o novo
negócio.

A doutrina apresenta duas soluções:

∙ Antunes Varela, defende a aplicação da conversão, ou seja, ele é totalmente


inválido (nulo) e só poderá valer como contrato-promessa unilateral através da
conversão;
∙ Almeida Costa e Ribeiro Faria, a nulidade do contrato é meramente parcial,
valendo o contrato como promessa unilateral nos termos do regime da redução.

Mais tarde, o acórdão do STJ de 25/03/93 veio admitir que o assento de 29/11/89 deve
ser interpretado no sentido de consagrar a nulidade parcial do contrato-promessa, e,
logo, a sua redução.

56
 Art.410º nº3 CC – a assinatura tem que ser reconhecida pelo notário. O
promitente-alienante só pode invocar a falta de requisitos quando ela tenha sido
culposamente provocada pela outra parte. O promitente-adquirente já tem
legitimidade para invocar a nulidade. Colocam-se as seguintes questões:

1. Os terceiros têm legitimidade?


2. O tribunal pode declarar ex oficio a nulidade?

Segundo Antunes Varela, tanto os terceiros como o Tribunal podem, porque, em


primeiro lugar, é a solução decorrente do art.220º CC no que diz respeito à inobservância
de forma legal. Em segundo lugar, é a solução decorrente do art.286º CC. A nulidade
pode ser invocada por terceiro interessado e de conhecimento oficioso pelo tribunal, logo
seria uma nulidade típica.

Calvão da Silva entende que, aqui, a nulidade é atípica, não podendo ser invocada
pelo terceiro interessado, nem pode ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal. Só
pode ser invocada pelo promitente-adquirente e, com as devidas exceções do art.410º
CC, pelo promitente-alienante. Para ele, no art.220º CC estabelece-se, em termos gerais,
a possibilidade de explicação de outro regime para além da nulidade. O art.285º CC
prevê também, ao lado dos regimes típicos de nulidade e anulabilidade, as chamadas
invalidades mistas, regime este especial. O art.410º nº3 CC é uma norma de ordem
pública de proteção, é uma norma que materialmente tem por finalidade proteger o
promitente-comprador, consumidor (embora a lei não se refira ao consumidor). A norma
deve ser interpretada atendendo à finalidade de proteção que está na sua base, devendo
entender-se que está aqui consagrada uma nulidade atípica pois esta atua
automaticamente (não é necessária uma ação para esse efeito), mas é atípica dada a
restrição de legitimidade para a invocar e é suscetível de ser sanada, o que, em princípio,
a nulidade típica não pode ser.
Dois assentos do STJ consagram esta posição:

 Assento de 28/06/94: nulidade não pode ser invocada por terceiro;


 Assento de 01/02/95: nulidade não pode ser reconhecida oficiosamente pelo
Tribunal.

57
14/10/2019

Incumprimento do contrato-promessa bilateral

1) Contrato-promessa com eficácia obrigacional (regra);


A. Promessa obrigacional sinalizada;
B. Promessa obrigacional não sinalizada;
2) Contrato-promessa com eficácia real;
C. Promessa com eficácia real sinalizada;
D. Promessa com eficácia real não sinalizada.

Ou seja, quando estamos perante o não cumprimento de um contrato-promessa temos


de analisar se se trata de um contrato-promessa com eficácia obrigacional ou com eficácia
real e, consequentemente, se se trata de um contrato-promessa com ou sem sinal.

Um sinal (art.442º CC) consiste numa cláusula acessória do negócio jurídico onde se
insere, que pode ter por objeto dinheiro ou outra coisa fungível (ou mesmo não fungível),
que um dos contraentes entrega a outro no momento da celebração ou num momento
posterior, como prova da seriedade do compromisso e de garantia do cumprimento (sinal
confirmatório) ou como antecipação da indemnização devida em caso de incumprimento
(hipótese em que o sujeito que constitui o sinal se arrepende do negócio e pretende voltar
atrás; sinal penitencial).
Se o contrato-promessa for cumprido, ou seja, celebrado depois o contrato definitivo,
o sinal é imputado na prestação (ex: A obriga-se a pagar 1000 euros, tinha entregue 200
euros de sinal, portanto, apenas paga 800 euros).
Em regra, no contrato-promessa funciona o regime do sinal penitencial.

Nos termos do art.440º CC, a simples entrega antecipada do objeto da prestação por
uma das partes não é tida como sinal, mas meramente como antecipação do cumprimento.
Contudo, estamos perante o sinal quando as partes atribuam essa natureza a uma
antecipação do cumprimento por uma das partes.

58
Nos termos do art.441º CC, tratando-se de um contrato-promessa de compra e venda,
a entrega de uma quantia por parte do promitente-comprador ou promitente-vendedor,
presume-se ser um sinal (presunção ilidível).

Quando estamos perante um contrato-promessa bilateral, podemos distinguir entre o


promitente fiel (cumpre a promessa) e o promitente faltoso (viola a promessa).

A. PROMESSA OBRIGACIONAL SINALIZADA

Nos casos de incumprimento de um contrato-promessa com eficácia obrigacional e


sinalizado, o promitente fiel tem duas opções:

 Crédito resolutório/indemnizatório – nos casos em que se torna impossível a


celebração do contrato definitivo, por facto não imputável a nenhuma das partes,
o sinal deverá ser restituído em singelo. Em caso de incumprimento do
promitente-comprador, ele perde o sinal. Se estivermos face ao incumprimento do
promitente-vendedor, ele terá de restituir o sinal em dobro – art.442º nº2 CC. O
sinal funciona como cálculo antecipado do montante indemnizatório. Na
eventualidade de haver sinal e se ter verificado a entrega/tradição da coisa (pode
ser material ou ficta), o promitente fiel (comprador) poderá optar por uma
indemnização calculada de outra forma (pelo aumento do valor da coisa, em vez
do dobro do sinal). Naqueles casos em que, entre a data de celebração do contrato-
promessa e a data da celebração do contrato, a coisa aumenta de valor, poderia
compensar em termos económicos ao promitente-vendedor recusar-se a cumprir
e pagar o sinal em dobro (ex: Imóvel que vale 100 mil euros, sendo entregues 20
mil euros como sinal. O contrato será celebrado daí a um ano. Decorrido um ano
o imóvel subiu de valor e vale 130 mil euros. O promitente-vendedor pode ser
tentado a vender o imóvel a terceiro por 130 mil euros, devolvendo o sinal em
dobro, 40 mil euros. Mas ele só terá que juntar 20 mil porque os outros 20 mil o
comprador já lhe tinha dado e ao vender o imóvel por 130 mil euros, ainda fica a
lucrar 10 mil euros). Para evitar isto, a lei permite ao promitente-comprador optar
por uma indemnização cujo montante é fixado do seguinte modo: o valor objetivo
da coisa na data do incumprimento menos o preço convencionado, mais a
restituição do sinal prestado. Ex: A celebra com B um contrato-promessa de

59
compra e venda de um imóvel. Acordam que o contrato é celebrado daí a um ano.
Fixaram o valor de 100 mil euros para o imóvel e o sinal logo entregue foi de 20
mil euros. Entretanto, foi construída uma estrada ao lado do imóvel, e este passou
a valer 130 mil euros. Caso tenha havido entrega do imóvel, se o promitente-
vendedor se recusar a vender, a outra parte pode optar pelo dobro do sinal (40 mil)
ou então pela indemnização fixada assim em 130 mil euros menos os 100 mil
euros mais 20 mil euros (50 mil euros) – art.442º nº2 in fine. Isto é para haver
maior probabilidade de cumprir o contrato do que não cumprir. A lei acredita que
quando tenha havido entrega da coisa, há uma expectativa acrescida do
promitente-comprador em adquirir o imóvel.

Tendo a coisa sido entregue, qualquer um destes créditos indemnizatórios tutela


um direito de retenção – art.755º nº1 f). Confere ao promitente-comprador,
sempre que a promessa seja sinalizada e tenha havido tradição da coisa, um direito
de retenção em caso de incumprimento da outra parte. Consiste num direito real
de garantia particularmente energe/forte, sendo que em caso de incumprimento
ele tem duas virtualidades: (1) o beneficiário deste direito pode recusar-se a
entregar a coisa que está em posse dele (2) e pode executar o bem (recorre ao
processo executivo para este efeito). É um forma legítima de não cumprimento,
tendo características excecionais relativamente aos outros direitos reais. Quando
o direito de retenção incida sobre imóveis, é particularmente sólido, uma vez que
prevalece sobre a hipoteca (direito real), mesmo que anteriormente
constituída, nos termos do art.759º nº2 CC (o que não é a regra – princípio da
prevalência). Significa que havendo uma ação executiva e venda judicial do bem,
o titular do direito de retenção é primeiro ressarcido em relação aos titulares da
hipoteca. É por esta razão que um banco pode ser prejudicado ao constituir
empréstimo sobre dado imóvel, se esse contrato-promessa foi constituído.
Temos aqui um direito especialmente tutelado, sempre que tenha havido tradição
da coisa. Na prática, um dos principais mecanismos de proteção do promitente-
comprador é a tradição da coisa. Se ele o fizer, a sua posição fica especialmente
garantida. Ex: A é empreiteiro e para assegurar o financiamento hipoteca o
imóvel. Celebra depois um contrato-promessa sinalizado com B e entrega o
imóvel. Mais tarde, A incumpre o contrato. B tem direito ao sinal em dobro e no
momento em que A incumpre o contrato, B adquire o direito de retenção, que

60
neste caso é o direito de crédito do sinal em dobro, que se vai impor sobre a
hipoteca do bem. O que prevalece é o direito de retenção, a hipoteca fica em
segundo lugar, mesmo tendo sido anteriormente constituída. A banca em geral é
avessa a este direito de retenção e ele é alvo de várias críticas por porque prejudica
a posição de A.

O prof. defende que esta norma só se aplica quando o promitente-comprador for


um consumidor, pois isto é uma norma de proteção de consumidor e só esse é que
é carente de tutela. Se o promitente for uma empresa não tem a mesma carência,
então não há razão para pôr em causa a posição do credor hipotecário.

Se um sujeito tiver uma dívida face a outro, tendo ele património, pode recusar-
se a cumprir. O outro sujeito tem um crédito e a garantia do crédito é o património
do sujeito. O problema e o caso mais grave é caso em que o promitente-vendedor
seja declarado insolvente. Ele não tem património para satisfazer todas as
obrigações.
Muitas vezes o promitente-vendedor é o empreiteiro. Sucedia-se que o contrato
era celebrado, a coisa era entregue, os empreiteiros declaravam insolvência.
Quando assim é, estamos face ao regime de insolvência que está previsto no CIRE
(Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) – art.106º. Esta norma
expõe que sempre que tiver havido tradição da coisa e o contrato-promessa tiver
eficácia real, o administrador da insolvência, que é quem gere a massa, é obrigado
a celebrar o contrato definitivo. Todavia, nos outros casos, aparentemente, o
administrador podia escolher. A questão é que sempre que estejamos face a um
contrato-promessa sinalizado e tenha havido entrega da coisa, se o administrador
da insolvência optar por não cumprir o contrato não vai vender o imóvel e aqui
não restam grandes dúvidas que esse sujeito terá direito a uma indemnização.

 Execução específica – qualquer um dos promitentes pode recorrer à execução


específica. Este regime encontra-se previsto no art.830º CC. Consiste na
possibilidade recurso a tribunal para que o tribunal supra a declaração do
promitente inadimplente prolatando uma sentença que produza os mesmos efeitos
da declaração negocial do faltoso, dando o contrato por celebrado. No fundo, tudo
se passa como se ambos os promitentes tivessem celebrado o contrato prometido.

61
Não são passíveis de execução específica os casos em que:

o Haja convenção em contrário, o que se verifica expressamente quando


as partes afastam o recurso à execução específica, ou então, presume-se
quando as partes constituam sinal ou convencionem uma cláusula penal.
Estes são presunção ilidível (admite prova em contrário) da execução
específica (art.830º nº2 CC).

o Assim o impeça a natureza da obrigação assumida:

a) sempre que haja contrato real quanto à constituição (ex: contrato de


mútuo, depósito), isto porque se entende que a entrega da coisa é um
ato de confiança, tendo de ser feita pessoalmente;
b) casos em que o contrato definitivo tem por objeto uma prestação não
fungível (ex: contrato de trabalho), ou seja, sempre que tenha um
caráter pessoal. O juiz não se pode substituir ao cumprimento da
prestação;
c) casos em que é necessário um ato de terceiro que o Tribunal não pode
suprir (ex: consentimento do cônjuge);
d) casos de violação do contrato-promessa, sempre que o promitente-
vendedor transmite a coisa a um terceiro quando se tenha obrigado a
fazê-lo ao promitente-comprador (ex: A promete vender a B, mas
vende a C). O tribunal não pode vender uma coisa alheia.

Se estivermos perante os casos do art.410º nº3 CC, o direito à execução específica não
pode ser afastado pelas partes (art.830º nº3 CC). Mesmo que tenha sido constituído sinal,
nunca se pode afastar a via da execução específica, mesmo que tenham estipulado
convenção em contrário. A lei permite que o promitente faltoso peça a modificação do
contrato com base em modificação ocasional das circunstâncias apesar de estar em mora
(art.830º nº3 in fine CC), contrariando o regime regra previsto no art.438º CC que proíbe
a modificação dos contratos em caso de mora.

62
Nos termos do art.830º nº4 CC, estando em causa um contrato-promessa a que se
refere o art.410º nº3 CC, e estando o bem a transmitir hipotecado, uma vez que o direito
segue a coisa (sequela), o promitente-comprador irá adquiri-la, por via da execução
específica, hipotecada. Nestes casos, a lei permite que o promitente-comprador possa
pedir a condenação do promitente-vendedor, à entrega do montante necessário à
expurgação da hipoteca – art.721º CC. Ex: A celebra um contrato-promessa com B, que
deve ser cumprido no dia 1/06/2019. O promitente-vendedor (A) hipoteca o imóvel a C.
É possível recorrer à execução específica. Havendo execução específica, o imóvel passa
para o património de B. Por força da regra da sequela, ele vai transmitir-se hipotecado,
visto que, a hipoteca segue o imóvel. Suponha-se que é dito que esta hipoteca tem o valor
de 100 mil euros. Se B não paga, o imóvel pode ser executado, é uma dívida de 100 mil
euros. O promitente-comprador (B) pode exigir que A seja condenado a pagar os 100 mil
euros necessários para ele expurgar a hipoteca (pega nos 100 mil euros e entrega a C, o
credor hipotecário extingue a hipoteca). Se A celebrar um contrato-promessa com o
imóvel hipotecado está a incumprir. Se o imóvel ainda estiver hipotecado na data anterior
a 1/06/2019, aí pode colocar o A em incumprimento definitivo e exigir o sinal em dobro.
Nestes casos, a sentença tem uma dupla natureza: (1) constitutiva, leva à transferência do
direito, e (2) de condenação, execução específica.

Conforme o art.830º nº5 CC, o promitente contra quem é intentada a execução


específica pode invocar a exceção de não cumprimento se preenchidos os seus requisitos.
Nestes casos, a contraparte tem de consignar em depósito o valor relativo à sua
contraprestação para a ação proceder. Este regime não funciona se não se poder recorrer
à exceção.

As duas classificações mais importantes do incumprimento da obrigação são a mora e


a falta de cumprimento. Estamos perante uma situação de mora quando a prestação
debitória, apesar de não ter sido realizada no tempo devido, ainda é possível e o credor
mantém o interesse fundamental na prestação (art.804ºCC). Temos incumprimento
definitivo quando a prestação não for mais possível ou o credor perder objetivamente o
interesse na sua realização por via do atraso do cumprimento (art.808ºCC).

Na promessa sinalizada questiona-se se será necessário que a mora seja transformada


em incumprimento definitivo, com a consequente resolução do contrato, através do

63
mecanismo da interpelação cominatória (art.808º CC). Ex: A obriga-se a celebrar um
contrato definitivo de um contrato-promessa de compra e venda a ser celebrado no dia 1
de outubro. Nesta data não comparece no cartório – incumprimento culposo temporário
imputável ao promitente-vendedor (está em mora), o cumprimento é possível ainda, mas
não foi realizada na data de vencimento da obrigação, havendo responsabilidade pelos
danos. Se o incumprimento temporário não for imputável ao devedor estamos então
perante uma possibilidade temporária não culposa (não há responsabilidade). B, faz a
marcação de nova escritura e A continua sem aparecer. Este sujeito não pode ficar
eternamente à espera de que o contrato seja cumprido. Qual o mecanismo que a lei
consagra para A se desvincular do contrato? Interpelação cominatória – dar um prazo
adicional dado pelo credor ao devedor em mora para ele cumprir, advertindo
expressamente que se ele não cumprir dentro daquele período de tempo, não pode mais
cumprir, ficando em incumprimento definitivo, passando o credor a poder resolver
o contrato e pedir uma indemnização pela totalidade dos danos sofridos.

Discutia-se, no âmbito do art.442º nº3 CC, se seria ainda necessário, neste caso
específico, em que haja tradição da coisa, promessa sinalizada e o devedor não cumpre,
o regime da interpelação cominatória ou se, a partir da letra da lei, estaríamos face a uma
exceção em que não seria necessário e que ele através do incumprimento pudesse logo
resolver o contrato. Este regime aplicar-se-ia não só a esta figura específica de
indemnização pelo aumento do valor da coisa, mas também a outros casos de
incumprimento, ou seja, os casos de exigência do sinal em dobro ou em caso paralelo de
perda do sinal. Há uma divergência doutrinal neste sentido, alguns queriam que se
aplicasse o regime geral e outros sustentavam que este regime era excecional.

i) Antunes Varela, Ribeiro de Faria e Almeida Costa entendem que,


excecionalmente, na promessa sinalizada não é necessário recorrer ao art.808º CC,
que consiste principalmente na interpelação cominatória, para transformar a
mora em incumprimento definitivo. De acordo com o regime geral, em regra, é
necessário o recurso à interpelação cominatória para transformar a mora em
incumprimento definitivo. No que diz respeito ao contrato-promessa sinalizado,
estamos face a uma hipótese excecional que se desvia do regime geral. Não é
necessário nestes casos o recurso à interpelação cominatória para

64
transformar a mora em incumprimento definitivo, resolver o contrato e exigir
uma das indemnizações previstas no art.442º nº2 CC. Face à simples mora, o
promitente-comprador pode, desde logo, exigir uma destas indemnizações. Esta
posição resulta da interpretação do art.442º nº3 CC: o contraente fiel pode optar
pelo aumento do valor da coisa, a outra parte pode opor-se ao exercício desse
direito, oferecendo-se para cumprir, salvo o disposto no art.808º CC. Antunes
Varela, daqui retira o seguinte:

 se a lei permite que o promitente não faltoso exija uma indemnização pelo
aumento do valor da coisa sem ter que recorrer ao art.808º CC, daí resulta
que basta a simples mora para o promitente fiel exigir a indemnização pelo
aumento do valor da coisa e, por igualdade de razão, em alternativa o dobro
do sinal. Assim, na perspetiva deste autor, qual a importância do recurso
ao art.808º CC? Tal não é necessário, mas facilita a prova do
incumprimento da outra parte e impede que a outra parte, se lhe for exigida
uma indemnização pelo aumento do valor da coisa, se possa opor,
oferecendo-se para cumprir – art.847º nº3 CC.

ii) A outra posição, ou seja, a da necessidade de transformação da mora em


incumprimento definitivo, é sustentada por Calvão da Silva. Este entende que, no
âmbito da promessa sinalizada, não há aqui qualquer exceção ao regime geral,
sendo sempre necessário o recurso ao art.808º CC para transformar a mora
em incumprimento definitivo e, assim, resolver o contrato, acompanhado de
umas das indemnizações previstas no art.442º CC. Interpretando o art.442º nº3
CC, entende que essa parte da norma é contraditória em relação aos restantes
números desse artigo, devendo fazer-se uma interpretação ab-rogante dessa parte
da disposição. Uma interpretação ab-rogante só se faz em último recurso: qualquer
das sanções/indemnizações do art.442º nº2 CC está ligada ao incumprimento
definitivo e consequente resolução do contrato, e não à mora. Quando a lei refere
no art.442º nº3 CC, que quando o promitente fiel exige uma indemnização pelo
aumento do valor da coisa, a outra parte pode ainda opor-se, oferecendo-se para
cumprir, ela está a incorrer em contradição. De facto, para se exigir uma
indemnização pelo aumento do valor da coisa, é necessário converter a mora em
incumprimento definitivo, acompanhado da resolução, o que significa que cessa o

65
contrato e o devedor não pode mais oferecer-se para cumprir (exceção do
cumprimento). Assim, se para exigir indemnizações pelo aumento do valor da
coisa é necessário extinguir o contrato, este deixa de se exigir e não mais se pode
cumprir. Esta posição tem tido algum acolhimento jurisprudencial.

Não sendo o contrato-promessa sinalizado, a questão não coloca dúvidas, é sempre


necessário o recurso ao art.808º CC.

O sinal pode ser constituído aquando da celebração do contrato e muitas vezes é,


mas por vezes pode ser constituído depois da celebração do contrato e não deixa de ser
uma promessa sinalizada, ou então aquilo que se sucede também é que o sinal pode ser
reforçado ao longo do tempo. O incumprimento da obrigação de reforçar o sinal é o
incumprimento de uma obrigação decorrente do contrato-promessa, pelo que nos termos
gerais, a outra parte pode colocar em incumprimento definitivo e resolver.

B. PROMESSA OBRIGACIONAL NÃO SINALIZADA

Nesta situação há 2 hipóteses (regime duplo):

 Via resolutória indemnizatória, isto é, o promitente fiel, poderá por via do


recurso ao art.808º CC, colocar a outra parte em incumprimento definitivo, com a
subsequente resolução do contrato. Nesta hipótese, terá direito a uma
indemnização calculada nos termos gerais.

 O promitente fiel pode optar pelo recurso à execução específica (art.830º CC). Só
não o poderá fazer se houver convenção em contrário (note-se que aqui não há
sinal, que é presumido como convenção em contrário) ou se tal se opuser à
natureza da obrigação assumida. O recurso à execução específica não pode ser
afastado no caso do art.830º nº3/4 CC.

15/10/2019

66
C. PROMESSA COM EFICÁCIA REAL SINALIZADA
D. PROMESSA COM EFICÁCIA REAL NÃO SINALIZADA

Para a promessa ser de facto de eficácia real é necessário que se preencha os requisitos
do art.413º CC:

o é necessário que se trate de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo;


o tem de haver uma declaração expressa das partes nesse sentido, no contrato;
o é necessária a inscrição da promessa no registo, tendo de ser celebrada por
escritura pública ou documento particular autenticado, a não ser que o contrato
definitivo não esteja sujeito a esta forma, hipótese em que bastará um
documento particular, com reconhecimento da assinatura da parte(s) que se
vincula(m).

A promessa com eficácia real constitui, de acordo com a maioria da doutrina, um


direito real de aquisição, prevalecendo sobre os direitos reais posteriormente registados.
Na hipótese de violação da promessa, ou seja, quando o promitente-alienante, ao invés de
vender a coisa ao promitente-adquirente, não cumpre o contrato e transfere essa coisa a
um terceiro, estamos face ao que se chama uma violação do contrato-promessa.
Se estivermos face a uma promessa obrigacional, o promitente fiel tem de se contentar
com uma indemnização, nos casos em que não pode recorrer à execução específica. Se a
promessa tiver sido dotada de eficácia real, mesmo nos casos de violação do contrato-
promessa e uma vez que promitente fiel tem um direito oponível erga omnes, ele pode
recorrer à execução específica e, portanto, adquirir o bem. A eficácia real da promessa
tem efeitos, sobretudo, nestes casos, acautelando a hipótese de o promitente-alienante não
querer realizar o contrato definitivo.

A promessa com eficácia real pode ser ou não sinalizada. Se for sinalizada, as opções
do promitente fiel, em caso de incumprimento da outra parte, são:

› restituição do sinal em dobro – art.442º nº2 CC;


› indemnização pelo aumento do valor da coisa, no caso de haver tradição da
coisa – art.442º nº2 CC;

67
› alternativamente, recurso à execução específica – art.830º CC.

Já quanto às promessas não sinalizadas:

› via resolutória ou indemnizatória, com indemnização fixada nos termos gerais


– art.808º CC;
› regime especial, por via da execução específica – art.830º CC.

A especialidade, em termos de efeitos, da promessa com eficácia real, opera nos casos
de violação da promessa. Nesta hipótese, o promitente fiel tem o direito potestativo à
celebração do contrato prometido, que é oponível a terceiros.

Como se processa a aquisição do bem pelo promitente-comprador, nestes casos?

Tem de recorrer a uma ação de execução específica, interposta contra o promitente-


vendedor, sendo que a sentença produz efeitos que retroagem até à data do registo da
promessa. Isso leva a que a subsequente venda a terceiro seja uma venda de bens alheios
e, portanto, nula (art.892º CC). Do mesmo modo, o promitente-adquirente consegue
adquirir o bem. O promitente-comprador pode, ao mesmo tempo que propõe a ação de
execução especifica, pedir a nulidade da venda e a entrega da coisa por parte do terceiro,
nesta medida, tem que demandar/interpor ação contra o promitente-vendedor e terceiro.

O Dr. Henrique Mesquita entendia que, a venda de bens a terceiros por contrato-
promessa não é nula, nos termos do art.892ºCC, mas ineficaz face ao adquirente (ou seja,
o terceiro), quando o registo da promessa seja anterior à alienação ou oneração a favor de
terceiro, embora a execução específica seja posterior. O Dr. Antunes Varela sustentava
que, em termos de legitimidade passiva, a ação tem de ser interposta contra o promitente-
alienante e o promitente-adquirente (por causa dos efeitos da nulidade). Já o Dr. Mesquita
entendia que, não era necessário que a ação fosse interposta contra o promitente-
adquirente, sendo a segunda venda ineficaz, a ação de execução específica só tem de ser
interposta contra o promitente-alienante.

68
1.3 Pacto de Preferência

15/10/2019

Um pacto de preferência é uma convenção nos termos da qual alguém se obriga a


dar preferência a outrem na transmissão de uma determinada coisa. O seu regime está
previsto nos artigos 414º e seguintes do Código Civil.

“O pacto de preferência consiste na convenção pela qual alguém assume a obrigação de


dar preferência a outrem na venda de determinada coisa.” – artigo 414º

Apesar do que o 414º possa indicar, esta regra não se aplica exclusivamente à
compra e venda, ainda que seja o caso mais relevante e frequente neste domínio. Aplica-
se a todos os contratos onerosos nos quais faça sentido conferir a um sujeito prioridade
relativamente a outros potenciais concorrentes.

“As disposições dos artigos anteriores relativas à compra e venda são extensivas, na
parte aplicável, à obrigação de preferência que tiver por objeto outros contratos com ela
compatíveis” – artigo 423º

De um pacto de preferência resulta uma obrigação de preferir, como já se viu, e, ainda,


um direito de preferência que se consubstancia num regime complexo nos termos do qual,
em igualdade de condições, o obrigado à preferência está vinculado a celebrar o contrato
com o titular do direito de preferência (preferente), se este o exercer.

Para que se compreenda melhor esta figura e o seu âmbito, será pertinente distingui-la
face a outras, de alguma forma próximas, e com as quais possa ser erroneamente
confundida.

 Pacto de preferência versus Contrato-promessa unilateral

Enquanto que da celebração de um contrato-promessa unilateral surge, desde logo,


um vínculo de celebração de um contrato no futuro, do pacto de preferência não nasce
nenhuma obrigação de contratar: se o obrigado à preferência decidir efetivamente
contratar, e logo que haja um projeto de contrato com terceiro previsto, tem de preferir
o titular do direito de preferência e comunicar-lhe os detalhes do dito contrato.

Apenas quando é exercido o direito de preferência é que o obrigado à preferência


está obrigado a contratar com o preferente, estando este último sujeito aos termos do
contrato previamente desenhado. Resumindo, enquanto no contrato de promessa

69
unilateral há já um vínculo presente, no pacto de preferência a obrigação de contratar
só nasce depois do exercício do direito de preferência pelo seu titular.

 Pacto de preferência versus Pacto de Opção

No pacto de opção, uma das partes já emitiu a declaração negocial e a outra, exercendo
o direito potestativo, leva à conclusão do contrato. Isto não acontece no pacto de
preferência, pois o obrigado não emite inicialmente qualquer declaração inicial.

Requisitos de forma

No que toca aos requisitos de forma que vinculam o pacto de preferência, o artigo
415ºCC remete para o artigo 410º/2 - se o contrato objeto de preferência exigir
documento autêntico ou particular, é necessário que haja documento assinado pelo
obrigado à preferência; porém, esta remissão não abrange o nº3 do 410º.

Além disto, se as partes pretenderem dotar o direito de preferência respeitante a bens


imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, de eficácia real, podem fazê-lo se, de acordo
com o plasmado no artigo 421º/1 CC, observarem os “requisitos de forma e publicidade
exigidos no artigo 413º”.

Modalidades de preferência

A preferência pode ter naturezas diferentes:

 Natureza legal, quando a preferência é atribuída pela própria lei.


 Natureza convencional, quando a preferência decorre de contrato, ou seja, de
acordo ou convenção entre as partes.
 Dentro das preferências de carácter convencional, e à semelhança do que acontece
no contrato-promessa, a preferência pode ser meramente obrigacional ou pode
ser-lhe conferida eficácia real.

O regime aplicável e as consequências desencadeadas são diferentes conforme a


natureza da preferência, por isso a identificação da modalidade da mesma é um aspeto de
elevada relevância prática. Quer as preferências legais, quer as que gozam de eficácia real
são oponíveis a terceiros. Em qualquer um dos casos, o preferente adquire o direito
potestativo de se sub-rogar na posição do terceiro com quem foi celebrado o contrato em
violação do seu direito de preferência. Por outras palavras, imagine-se que C é o titular

70
do direito de preferência e A é o obrigado à preferência, no entanto celebrou com B um
contrato que viola o direito de C. Se a preferência for legal ou dotada de eficácia real, C
tem o direito potestativo de se substituir a B no contrato, no âmbito da ação de preferência
(que analisaremos infra).

Ainda no que toca às preferências legais e às de eficácia real, note-se que o direito de
preferência pode ser exercido não só no âmbito puramente contratual, mas ainda nos
âmbitos da execução singular e da insolvência. Nos termos do 819º do CPC, é necessário,
em qualquer um destes casos – da execução ou da alienação insolvencial - notificar o
preferente para que, se ele assim o quiser, exerça o seu direito de preferência.

Em caso de conflito, há sempre prevalência da preferência de base legal, precisamente


por ser atribuída pela lei. Enumeremos algumas das preferências legais mais relevantes:

 Do arrendatário, na venda ou dação em pagamento do local arrendado há mais de


3 anos (artigo 1091º CC)
 Do comproprietário, no caso de venda ou dação em pagamento da sua cota a
terceiros (artigo 1409º CC)
 Nos casos de trespasse do estabelecimento comercial. Artigo 1112º/4 CC - no
caso da venda ou dação em pagamento (caso menos frequente) do estabelecimento
comercial, o titular do estabelecimento tem direito de preferência.

Questão da renúncia à preferência: tratando-se de preferência de base legal, não é


admissível uma renúncia geral. Pode, no entanto, haver lugar a uma renúncia especial,
quando o titular do direito de preferência, sendo notificado para preferir, comunique que
renuncia a esse direito.

Exemplo - um inquilino não pode, num contrato de arrendamento, incluir uma


cláusula nos termos da qual renuncia em termos gerais ao seu direito de preferência,
por se tratar de uma preferência legal. Porém, se o senhorio lhe comunicar acerca
de um projeto de venda do apartamento onde reside a terceiro, o inquilino pode
renunciar ao direito de preferência específico, que já se concretizou.

No que toca às preferências convencionais, dada a sua natureza, já pode haver renúncia
geral ao direito de preferência por parte do seu titular.

71
Mecânica do direito de preferência

Através de via judicial ou extrajudicial, o obrigado à preferência tem de comunicar


ao preferente as cláusulas do contrato projetado com terceiro e de identificar o mesmo,
para que o titular do direito de preferência possa, se assim entender, exercê-lo. Para tal, e
nos termos do artigo 416º/2 CC, o preferente dispõe de oito dias, sob pena de caducidade,
salvo se outro prazo tiver sido convencionado.

A comunicação de preferência tem, portanto, de conter o projeto de contrato com


terceiro (incluindo-se aqui todas as cláusulas, ou pelos menos as mais relevantes para a
opção de contratar) e a indicação do próprio terceiro. Caso contrário, a comunicação não
é eficaz como tal. Por isso se distingue a comunicação de preferência da proposta
contratual, na qual não há indicação do projeto contratual com terceiro - o obrigado à
preferência simplesmente propõe à outra parte a celebração de um contrato nos termos
definidos na proposta.

Exemplo 1: o senhorio envia uma carta ao inquilino a perguntar se quer comprar o


imóvel que por 150.000 euros, pagos a pronto – isto não constitui uma comunicação
de preferência, pois o senhorio não informa o inquilino acerca de um contrato
projetado com terceiro, das cláusulas nele contidas e não identifica o terceiro. A
carta traduz-se numa mera proposta contratual. Se o inquilino recusar a proposta e
o imóvel for posteriormente vendido a terceiro, estamos perante uma violação do
direito de preferência por inobservância do nº1 do artigo 416º.

Exemplo 2: o inquilino é comunicado de que o arrendatário pretende vender o


imóvel a terceiro, C, por 150.000 euros pagos a pronto. Isto já é uma comunicação
de preferência, pois preenche os requisitos necessários para tal, e o inquilino pode
invocar e exercer o seu direito de preferência. Se escolher não o fazer, o senhorio
pode celebrar o contrato projetado com C sem que viole o direito de preferência do
preferente.

Na eventualidade de o preferente exercer o direito de preferência de que é titular, a


outra parte fica obrigada a contratar com ele, nos termos previamente determinados com
terceiro.

Por isso, pelo menos nos casos em que a comunicação de preferência e a aceitação
revestem a forma exigível para um contrato-promessa, a generalidade da doutrina defende

72
que se deve aplicar diretamente o regime do contrato-promessa. Há ainda autores que
defendem que, mesmo não estando verificados esses requisitos de forma, o regime do
contrato-promessa é aplicável por analogia. Esta equiparação é muito relevante,
principalmente nos casos em que o obrigado à preferência se recusa a contratar com o
preferente - aplicando-se o regime do contrato-promessa, o último pode defender-se
através do recurso ao mecanismo da execução específica, plasmado no artigo 830º. Na
perspetiva do Professor, não há efetivamente motivos para que este regime não se aplique.

Há ainda a hipótese de, para a celebração do contrato definitivo entre o titular do direito
de preferência e o obrigado à preferência, não ser necessária a observância de forma mais
exigente. O entendimento é que o próprio contrato definitivo se dá por celebrado com o
exercício do direito de preferência por parte do seu titular .

Exemplo: A (obrigado â preferência) comunica a B, titular do direito de


preferência, que pretende vender dois quadros a C, terceiro, por 1000 euros. B
pretende adquirir os quadros e por isso decide exercer o seu direito. Não será,
neste caso, necessário vir a celebrar-se o contrato de compra e venda, porque a
comunicação para preferência serve como proposta e o exercício do direito de
preferência serve como aceitação, ficando o contrato concluído. Se,
posteriormente, houver alienação dos quadros a terceiro, já se tratará de uma
alienação de coisa alheia. Se em vez de quadros estivesse em causa um imóvel,
isto já não valeria, porque a compra e venda de imóveis exige uma forma mais
solene.

Consequências do incumprimento da preferência

Como se mencionou supra, a natureza da preferência tem grandes implicações


práticas, nomeadamente neste domínio. Se o incumprimento for relativo a uma
preferência convencional com efeito meramente obrigacional, o preferente que viu o seu
direito violado tem apenas direito a uma indemnização.

Todavia, estando em causa uma preferência de base legal ou uma preferência


convencional com eficácia real, é possível que o preferente, vendo o seu direito violado
e o contrato celebrado com terceiro, recorra à chamada ação de preferência.

73
A ação de preferência consiste no exercício de um direito potestativo que permite
que o preferente se sub-rogue ao terceiro no contrato, ou seja, que o substitua parte
contratual. Encontra-se regulada no artigo 1410º CC, e vale a pena destacar dois aspetos:

- Prazo de interposição - o preferente dispõe de 6 meses para interpor a ação, contados a


partir da data em que conheceu os elementos essenciais da alienação que violou o seu
direito (e não a partir do simples conhecimento da alienação)

- Prazo para o depósito do preço – Interposta a ação, é necessário que o preferente faça o
depósito do preço fixado no contrato no prazo de 15 dias.

Exemplo: A vende B um imóvel, por 150.000 euros, violando o direito de


preferência de que C é titular. C, tomando conhecimento da venda e dos seus
elementos essenciais, pretende interpor uma ação de preferência de modo a
substituir B no contrato celebrado, tendo seis meses para o fazer. Proposta a ação,
C dispõe de 15 dias para depositar os 150.000 euros que B havia pago a A.

O mérito desta solução é duvidoso, e há autores que a criticam e dela discordam (é o


caso de Almeida Costa, que defende o pagamento de mera caução). No entanto, é a
solução legalmente determinada.

Outra questão que se levanta e que é alvo de divergência doutrinal é a da


legitimidade passiva da ação da preferência. Ou seja, contra quem deve ser interposta
a ação de preferência?

 A posição de Antunes Varela é a de que se trata de um caso de litisconsórcio


necessário passivo, devendo a ação ser interposta quer contra o adquirente, quer
contra o obrigado à preferência. Há um conjunto de razões que fundamentam esta
tese:
 Em primeiro lugar, porque do ponto de vista material a relação controvertida
envolve os três sujeitos – o preferente, o obrigado à preferência e o terceiro
adquirente. O exercício do direito de preferência é potestativo, que tem
obrigatoriamente de ser exercido contra o terceiro adquirente dado que o titular
do direito se vai sub-rogar no seu lugar; mas também contra o obrigado à
preferência, pois foi ele que violou o direito do preferente e é contra ele que se
vai pedir uma indemnização pelos danos causados.

74
 Outro argumento que sustenta esta posição é o de que deve haver uma unidade
dos julgados. Se a ação de preferência apenas puder ser interposta contra o
terceiro adquirente, e pretendendo-se pedir uma indemnização por danos
causados, tem de se interpor uma segunda ação, desta feita contra o obrigado à
preferência. Assim, embora a questão seja a mesma, as ações são distintas, e
corre-se o risco de haver uma diferença de julgamentos.
 Por fim, há a questão das custas judiciais, que na perspetiva do Dr. Antunes
Varela devem recair apenas sobre o sujeito que violou o direito de preferência,
logo ação tem de ser interposta também contra ele.

 Porém, a posição maioritária (Almeida Costa e maioria da doutrina, com algum


apoio jurisprudencial) é no sentido de bastar a ação contra o adquirente
(eventualmente demandando-se o obrigado à preferência, mas só se se pretender
exercer o direito à indemnização por violação da preferência).

Na ótica de Henrique Mesquita, podemos entender que toda esta mecânica se


traduz num conjunto de relações creditórias articuladas.

Em suma, e tomando por base o exemplo de uma preferência relativa à venda de


determinada coisa:

 A é o obrigado à preferência. Se pretender vender a coisa a terceiro, tem o dever


de comunicação.
 B é o preferente, e tem o direito a que A lhe faça a comunicação para preferência.
Após a comunicação por parte de A, B adquire o direito de exercer a
preferência.
 Se B exercer o direito de preferência:
 A adquire um dever de alienação da coisa
 B adquire um crédito sobre a coisa
 Chegando aqui, temos uma situação semelhante à do contrato promessa.
 Se for exercido o crédito da alienação e tiver sido realizada a alienação e nos
termos devidos, podemos ter um contrato definitivo.
 no caso de ser violada a preferência – ou por não ser cumprido dever de
comunicação ou por alienação a terceiro:

75
 se se tratar de preferência convencional obrigacional, há apenas lugar a
indemnização;
 nos casos em que a preferência for legal ou com eficácia legal, há aquisição,
por parte do preferente, do direito potestativo de se sub-rogar ao terceiro no
contrato, sendo esse direito exercido por via judicial (ação de preferência).

Caso específico da simulação do preço

Pode acontecer que, na venda a terceiro que viola a preferência, o preço fixado no
contrato não corresponda ao preço efetivamente pago - estamos a falar de casos de
simulação do preço em negócios que violam a preferência.

Se o preço fixado no contrato for superior ao preço pago, o titular do direito de


preferência pode invocar a nulidade do negócio simulado, e exercer a preferência nos
termos do artigo 241º CC, pelo valor dissimulado (ou seja, mais baixo). Ou seja, se o
obrigado à preferência e o terceiro adquirente declararem 200.000 € no contrato, apesar
de o bem ter sido, na verdade, vendido por apenas 150.000€, o titular do direito de
preferência pode invocar a nulidade do negócio e, ao substituir o terceiro no contrato,
pagar apenas os 150.000€.

Muitas vezes motivada por motivos fiscais (entre outros), a situação inversa também
se verifica, e o preço dissimulado é superior ao preço simulado. Por outras palavras, o
preço declarado no contrato é inferior ao peço efetivamente praticado. Pode o titular do
direito de preferência exercer o seu direito relativamente ao valor simulado? E se o fizer,
pode ser-lhe oposto, pelos simuladores, o valor do negócio dissimulado? No fundo,
pergunta-se se o preferente pode preferir pelo preço mais baixo. A solução para este
caso não é tão simples. Por força do artigo 243º CC, a nulidade decorrente de simulação
não é oponível a terceiros de boa fé, e o titular do direito de preferência é terceiro de boa
fé em caso de ignorância da simulação ao tempo em que foi constituído o direito.
Aparentemente, os simuladores não podem, então, invocar a nulidade da simulação e opô-
la contra o preferente, o que seria do seu interesse se este quisesse exercer o seu direito
potestativo.

Todavia, Mota Pinto faz uma interpretação do nº3 do 243º CC, atendendo à finalidade
de proteção da norma, segundo a qual esta visa impedir prejuízos para o terceiro, mas não

76
deve conduzir a um locupletamento (vantagem indevida). Através desta interpretação
restritiva do 243º, com a qual a o Professor concorda, torna-se possível que o preço
dissimulado (ou seja, o mais elevado) seja oposto ao titular do direito de preferência.
Contudo, sendo o preferente de boa-fé e tendo acreditado nos termos fixados no contrato,
a simulação configura uma situação de violação de confiança. Assim, Ribeiro de Faria
sustenta que o valor real pode, sim, ser oposto ao preferente, no entanto acrescenta, e bem,
que se este vier a sofrer danos recorrentes das despesas que tenha realizado na expectativa
da aquisição, terá direito a ser indemnizado pelo dano de confiança. Trata-se de um caso
de responsabilidade por violação da confiança.

Nota: o facto de os simuladores poderem opor o preço dissimulado ao preferente não torna a
simulação em si inócua, nomeadamente do ponto de vista do Direito Fiscal e de outros ramos do
Direito, podendo ser-lhes aplicadas graves sanções nesse âmbito. Porém, lembre-se que estamos
a fazer uma análise meramente na ótica do Direito das Obrigações.

Casos especiais de direito de preferência

Venda de uma coisa juntamente com outrem ou outras – artigo 417º CC

Como sabemos, diversas coisas podem ser alienadas conjuntamente, por um preço
global. Pode ocorrer que o preferente apenas tenha direito de preferência sobre uma das
coisas do conjunto. Quais as soluções?

Imagine-se que está em causa uma valiosa coleção de livros antigos sobre os
Descobrimentos. O titular do direito de preferência quer exercer o seu direito de
preferência só quanto a um dos livros. Embora à partida o possa fazer, também há
situações em que o obrigado à preferência pode exigir que ele prefira, mas sobre todo o
conjunto de bens, se estes não puderem ser separados sem um prejuízo separável. Isto
acontece porque a coleção valerá mais do que a soma do valor individual dos livros.

O mesmo se aplica aos casos em que o direito de preferência tem eficácia real e a
coisa sobre a qual incide tiver sido vendido conjuntamente com outras, de acordo com o
nº2 do artigo 417º. O terceiro adquirente pode exigir também que o preferente exerça o
seu direito sobre a globalidade do conjunto.

Pode dar-se o caso de se vender a coleção total a terceiro, mas com


individualização de preços: o livro A foi vendido por X, o livro B foi vendido por Y.

77
Ainda assim, se o terceiro que comprou não tivesse realizado o negócio separando a coisa,
ou seja, se a integralidade da coleção foi condição de celebração do negócio, o terceiro
pode também exigir que o direito de preferência seja exercido sobre o conjunto.

Venda a terceiro mediante prestação acessória que titular da preferência não pode
satisfazer – artigo 418º CC

Há aqui três cenários possíveis com soluções diferentes:

 se a prestação acessória for avaliável em dinheiro e não tiver sido acordada para
afastar o direito de preferência, o titular do direito de preferência poderá entregar
em dinheiro a quantia equivalente.
 se se puder determinar que a prestação acessória foi fixada com o intuito de afastar
o direito de preferência, o preferente não tem sequer de satisfazer essa prestação
acessória, nos termos do nº2 do 418º.

Exemplo: suponha-se que se vende um imóvel por 100 mil euros e um jaguar. No primeiro
caso, se o preferente pretender exercer o direito de preferência, pode, em vez do jaguar
(que à partida não tem), entregar em conjunto com os 100 mil euros o valor monetário do
carro; no segundo caso, o preferente apenas tem de pagar os 100 mil euros.

 Há ainda o caso em que a prestação acessória não é avaliável em dinheiro nem


não foi fixada para afastar o direito de preferência. Foi fixada porque há um
verdadeiro interesse em que o negócio seja celebrado nesses termos. Assim sendo,
exclui-se a preferência, a não ser que seja demonstrável que, mesmo sem a
prestação, a venda teria sido efetuada.

Pluralidade de titulares do direito de preferência – artigo 419º CC

Se a preferência couber simultaneamente a diversos titulares, só puder ser exercida


pelos titulares em conjunto e um deles declarar que não quer exercer a preferência, o
direito acresce aos outros.

Pode acontecer que, embora a preferência tenha vários titulares, apenas possa ser
exercida por um deles. Se não houver indicação de qual dos titulares a pode exercer e
mais do que um o quiser fazer, abre-se licitação entre eles.

78
Natureza jurídica do direito de preferência

A preferência em si tem uma estrutura de carácter obrigacional que pode conduzir,


nos casos da preferência com eficácia real e da preferência legal, ao exercício de um
direito potestativo por via judicial, através do qual o titular da preferência se sub-roga na
posição de terceiro.

Geralmente, quando se fala na natureza do direito de preferência a melhor solução


é esta, mas é incompleta porque esquece toda a estrutura anterior apenas se foca no núcleo
da preferência.

1.4 Contrato a Favor de Terceiro

22 e 28/10/2019

Quando duas pessoas celebram um contrato em nome próprio com a finalidade de


proporcionar uma vantagem a um terceiro estranho ao negócio, estamos perante um
contrato a favor de terceiro. Desta modalidade contratual, plasmada no artigo 443º, surge
um direito que é imediatamente atribuído ao terceiro, sem que haja necessidade de
aceitação por parte deste. Esse direito pode ser de crédito, mas pode ter outras naturezas.

Exemplo 1: A se dirige a um estabelecimento comercial, B, e compra uma televisão


para o seu filho, C. O contrato de compra e venda é celebrado entre A e B, mas dele
emerge um direito de propriedade que vai surgir na esfera de C. É um contrato a
favor de terceiro, terceiro esse que adquire direta e imediatamente o direito. É
necessário que do contrato emirja mesmo um direito, que as partes queiram mesmo
transmitir um direito. Note-se que o negócio poderia ter sido estruturado de outra
forma, nomeadamente através de um contrato de compra e venda e de posterior
doação, e ter-se obtido, ainda assim, o mesmo resultado. Veja-se, então, outro
exemplo;

Exemplo 2: D vende a E uma mercadoria e compromete-se a entregá-la no


estabelecimento comercial de E. Para esse efeito, D celebra um contrato de
transporte com a transportadora F, a favor de E. Desse contrato com a
transportadora decorre um direito de crédito de que E é titular, apesar de não ser
parte no contrato de transporte. Por efeito do contrato entre D e F, emergiu um
direito de crédito na esfera de um terceiro, E.

79
Distinção face a figuras próximas

Importa não confundir o contrato a favor de terceiro com os terceiros


especialmente protegidos no âmbito contratual, ou seja, com os direitos de proteção que
se estendem a terceiros.

Temos depois os casos dos contratos com prestação a terceiro. Numa das suas
modalidades, o devedor pode cumprir a terceiro, extinguindo a obrigação se o fizer. Note-
se que em princípio o sujeito só pode cumprir face ao credor, mas por força do contrato é
possível que ele possa cumprir também face a terceiro. No entanto, isto não configura um
contrato a favor de terceiro porque o terceiro não adquire o direito. Noutra modalidade
dos contratos com prestação a terceiro, o devedor só poder fazer o pagamento a terceiro.
Esta é uma figura especialmente próxima do contrato a favor de terceiro, mas que se
distingue pelo seguinte: o terceiro não é titular de um direito, apenas o credor o é. Só o
credor é que pode exigir o cumprimento, apesar de o cumprimento ter de ser feito a
terceiro.
O contrato a favor de terceiro distingue-se também daqueles contratos que são
celebrados recorrendo-se à representação voluntária. Distingue-se também do mandato
sem representação. no contrato a favor de terceiro, A celebra com B um contrato e desse
contrato resulta a constituição ou transmissão do direito. Há um único negócio. No
mandato, há dois negócios - C transmite a B e B transmite a A.

Que elementos caracterizam o contrato a favor de terceiro?

Em primeiro lugar, temos as partes contratuais, que são o promitente –


aquele que se obriga – e o promissário – aquele a quem a promessa é feita. Depois,
temos o terceiro, que é o sujeito que adquire o direito emergente do contrato. Reforce-
se o terceiro não faz parte do contrato e que a entrada do direito na sua esfera jurídica
é imediata e independente da sua aceitação.

No contrato a favor de terceiro temos de distinguir duas relações. A relação de


cobertura, ou de provisão, é a que se estabelece entre o promitente e o promissário e
é a base do contrato a favor de terceiro. No entanto, tem sempre de existir uma relação
prévia entre quem faz a promessa e o terceiro, justificativa da atribuição patrimonial e

80
até do próprio contrato. Trata-se da relação de valuta, subjacente à de cobertura, e
que se estabelece entre o promissário e o terceiro. É a causa da atribuição do direito ao
terceiro.

Diferentes sistemas jurídicos admitem diferentes amplitudes ao regime do


contrato a favor de terceiro. Entre nós, confere-se-lhe uma enorme amplitude. É
possível remitir dívidas (A celebra um contrato com B, através do qual se extingue um
crédito de B sobre C). Recorre-se também a este tipo de contrato para constituir,
modificar ou extinguir direitos reais – é possível ser celebrado um contrato de
hipoteca a favor de terceiro, ou ainda fazer-se a transmissão de um direito de
propriedade a favor de terceiro.

O contrato a favor de terceiro pode ser realizado donandi causae, credendi


causae ou solvendi causae. Ou seja, a causa da sua celebração pode ser doar, conceder
crédito ou extinguir uma dívida. Tecnicamente, por força do artigo 444º/3 CC, o
último caso não consubstancia um verdadeiro contrato a favor de terceiro. Por outras
palavras, quando se visar indiretamente, através da atuação do promitente, a extinção
de uma dívida do promissário face a terceiros, não estaremos face a um verdadeiro
contrato a favor de terceiros, na medida em que só o promissário (e não o terceiro)
pode exigir o cumprimento da obrigação. Todavia, nada obsta a que as partes, ao abrigo
da liberdade contratual, configurem o contrato como verdadeiro contrato a favor de
terceiro. No fundo, pode decorrer da vontade das partes que elas efetivamente tenham
querido, mesmo nesses casos, atribuir esse direito a terceiros, e se isso acontecer
estamos perante um verdadeiro contrato a favor de terceiro.

Enquanto a relação de valuta é, como já vimos, a causa da atribuição


patrimonial a terceiro, a relação de cobertura é fundamental para o promitente receber
o contravalor da sua prestação a terceiro. Se se tratar de um contrato compra e venda
a favor de terceiro, o contravalor corresponde ao pagamento do preço.

É desta relação – de cobertura ou de provisão - que nascem os direitos do


promitente face ao promissário. É também dela que decorrem os direitos do promitente
face a terceiro. Suponha-se que o contrato é nulo: o promitente pode opor a nulidade ao
terceiro e à outra parte; se o promitente gozar da exceção de não cumprimento do contrato,
ele pode opor este direito quer ao terceiro quer ao promissário; se o contrato for resolvido,
também pode ser oposto a terceiro.

81
Todavia, há meios de defesa de que o promitente não se pode fazer valer:

 Não pode opor a terceiro meios de defesa decorrentes de outras relações com o
promissário, de outro eventual contrato que tenha com ele. Só pode recorrer aos
meios de defesa daquele contrato que constitui a relação base.
 Não pode recorrer a quaisquer meios de defesa decorrentes da relação de valuta,
pois é um negócio entre outros sujeitos.

No fundo, o promitente só se pode socorrer dos meios de defesa resultantes do


contrato que configura aquela relação de cobertura.

O terceiro pode ou não aderir ao direito - pode aceitar ou rejeitar o mesmo. A adesão
não é necessária, dado que o terceiro adquire o direito ainda antes de ter aderido ao
contrato. Todavia, a posição do terceiro fica mais sólida depois dele ter aderido ao
contrato, tendo de o fazer mediante declaração ao promitente e ao promissário (artigo
447º/3 CC). O direito consolida-se esfera jurídica do terceiro – já estava nela integrado
anteriormente, mas fortalece-se pela adesão. A partir do momento da aceitação pelo
terceiro, não é possível revogar a atribuição do direito. O promissário só a pode revogar
antes da aceitação, nos termos do artigo 448º/1 CC.

É possível também que o terceiro rejeite o direito (artigo 447º, nº1 CC), tendo de o
comunicar ao promitente que depois deve comunicar ao promissário. Se o terceiro
rejeitar, há lugar à saída do direito da sua esfera jurídica.

Posição jurídica do terceiro

Vimos anteriormente os direitos do promitente face ao terceiro e face ao


promissário. Analisemos agora a posição jurídica do terceiro.

O terceiro adquire, independentemente da sua aceitação, o direito à prestação, tal


como nos indica o artigo 444º/1 CC. Excetuam-se os casos em que a promessa se destina
a produzir efeitos depois da morte do promissário (artigo 451º CC). Aí, a lei presume que
só após esse momento é que o terceiro adquire o direito à prestação. É o que acontece
com os seguros de vida.

O contrato a favor de terceiro faz recair sobre o promitente todos os deveres de


conduta relativamente a terceiro. No âmbito da relação complexa, o terceiro é titular de
todos os deveres secundários acessórios ou substitutivos da relação principal.

82
Note-se que o terceiro não é contraente, por isso não pode exercer os direitos
inerentes à posição de parte contratual. É apenas titular do direito à prestação, o que
significa que o terceiro pode, por acordo, alterar o objeto da prestação; significa também
que a indemnização substitutiva da prestação principal cabe ao terceiro; significa
finalmente que a mora do terceiro tem os mesmos efeitos da mora do credor. Sempre que
seja necessária a colaboração do credor para se cumprir a prestação e este não colaborar,
nos termos dos artigos 803ºss, há um conjunto de consequências que incorrem para o
credor. Neste caso, sendo o terceiro o credor, é ele que pode incorrer em mora de credor.

Posição jurídica do promissário

O terceiro tem direito à prestação, mas o promissário tem o direito de exigir o


cumprimento do contrato pois ele é que é parte contratual. Cabe-lhe, por isso, exercer os
direitos inerentes a essa posição. Contudo, pode dar-se o caso de esses mesmos direitos
conflituarem com o direito do terceiro. Quando isso aconteça, será necessário, em
primeiro lugar, aferir qual é a vontade das partes definida no contrato; na falta desse
elemento, é preciso considerar que o direito de terceiro é um direito preferencial e, a essa
luz, devem ser dirimidos os eventuais conflitos que possam surgir. Um dos aspetos em
que pode haver um conflito entre o promissário como contraente e o terceiro tem a ver
com a resolução do contrato. O direito de resolução do contrato é um direito potestativo
que integra a posição de parte contratual, portanto apenas pode ser exercido pelo
promissário. No entanto, se o promissário exercer esse direito, está a destruir o direito a
favor de terceiro. Por isso, entende-se que o promisssário não pode exercer este direito
sem o consentimento do terceiro. Note-se que para resolver o contrato, estando o sujeito
em mora, é necessário transformar essa mora em incumprimento definitivo por via da
interpelação cominatória do artigo 808º CC. Isso já cabe ao terceiro, e não ao
promissário. Assim, o promissário não pode resolver o contrato sem consentimento do
terceiro e, em caso de mora do promitente, é ainda necessário que o terceiro converta a
mora em incumprimento através do mecanismo do artigo 808º CC. É uma articulação
absolutamente necessária.

Se o terceiro pode acordar uma alteração do objeto da prestação, o promissário


não dispõe desta faculdade. Depois da aceitação do terceiro, o promissário deixa de poder
influir quer no objeto, quer nas condições de cumprimento da prestação.

83
Relação entre o promissário e as pessoas estranhas ao benefício – artigo 450º CC

No nº 1 do artigo 450º, aquilo que está irregular é a necessidade que por vezes, no
âmbito da impugnação pauliana, diz respeito de reintegrar o património do promissário.
É o caso do contrato de seguro a favor de terceiro, em que não há coincidência entre a
atribuição a terceiro e os bens que para esse efeito saem do património do promissário. O
que sai do património são os prémios de seguro, mas aquilo que o terceiro adquire é o
direito de indemnização posterior. No âmbito da impugnação pauliana, o que há a ser
reintegrado são os prémios de seguro.

Quanto aos casos em que do contrato a favor de terceiro resulta um direito que
não é somente atribuído ao terceiro, mas também a outros entes, apenas aquele conjunto
de entes a quem é atribuído o direito é que pode dispor do direito à prestação. Nem os
herdeiros do promissário nem as entidades competentes para prosseguir os interesses em
causa podem produzir alterações ao objeto da prestação.

Nota final: o contrato a favor de terceiros é particularmente importante e tem uma


enorme aplicação prática no âmbito do direito comercial.

1.5 Contrato para pessoa a nomear

22/10/2019

“Ao celebrar o contrato, pode uma das partes reservar o direito de nomear um terceiro
que adquira os direitos e assuma as obrigações provenientes desse contrato” – artigo
452º CC

Com um contrato para pessoa a nomear, uma das partes reserva o direito de
nomear um terceiro que a substituirá enquanto parte contratual, adquirindo os direitos e
assumindo as obrigações decorrentes desse mesmo contrato. Em rigor, não estamos
perante um contrato, mas sim perante uma cláusula inserida num contrato.

Em que contexto é que se recorre a este mecanismo? Muitas vezes, acontece que
o terceiro, C, não quer inicialmente aparecer no contrato, daí que este seja celebrado entre

84
as partes originárias, A e B, com uma cláusula para pessoa a nomear, adquirindo A o
direito potestativo de nomear. Isto pode acontecer por múltiplas razões, nomeadamente
más relações entre B e C, ou o facto de se querer evitar que B pratique um preço superior
a C. Celebrado o contrato, A nomeia C, sendo que o último substitui integralmente o
primeiro enquanto parte do negócio, deixando A de participar no mesmo.

Exemplo: D quer comprar o veículo de E, contudo tem um historial de más relações


com o dono do mesmo e teme que isso o prejudique no negócio; de modo a evitar
que tal aconteça, acorda com F que este concluirá com E o contrato de compra e
venda do veículo, integrando no contrato uma cláusula para pessoa a nomear. Uma
vez celebrado o contrato, F adquire o direito potestativo de nomear D, que assim
ocupará retroativamente o seu lugar enquanto parte contratual e adquirirá os direitos
e deveres inerentes a essa posição, como se o contrato tivesse sido desde logo
celebrado com ele.

Distinção face a figuras próximas

Note-se que não estamos a tratar de um contrato a favor de terceiro, pelo qual,
imediatamente, emerge um direito na esfera de um terceiro. Neste caso, não há qualquer
atribuição de direitos a terceiro; simplesmente, a uma das partes do contrato reserva-se o
direito de, sem necessidade do consentimento do outro contraente, indicar o terceiro que
a substitui enquanto parte contratual, sendo que todos os direitos e deveres adquiridos
pelo terceiro são inerentes à posição de contraente que passa a ocupar. Lembre-se que, no
âmbito do contrato a favor de terceiro, o terceiro nunca chega a ser parte contratual.

Ao contrário do mandato sem representação, não há no contrato para pessoa a


nomear uma transferência de posição do sujeito. Há sim uma verdadeira substituição,
porque o nomeante sai a partir do momento em que o nomeado entre, deixando de
participar definitivamente na relação contratual.

No que é atinente ao mandato com representação, o mandatário atua em nome do


mandante e os efeitos das suas ações produzem-se automaticamente na esfera do último.
É por isso diferente do contrato para pessoa a nomear, na medida em que o nomeante atua
em nome próprio, produzindo-se os efeitos das suas ações também na esfera deste.
Apenas se se fizer nomeação de terceiro, e por efeito desta, é que o nomeado, enquanto
parte contratual, vê surgir esses efeitos na sua esfera.

85
Regime do contrato para pessoa a nomear

Nos termos do artigo 453º/1 CC, a nomeação do terceiro poderá ser feita por
escrito dentro do prazo dos cinco dias posteriores à celebração do contrato (salvo
disposição convencionada em contrário). A declaração de nomeação tem sempre de ser
acompanhada, sob pena de ineficácia, de um instrumento de ratificação por parte do
nomeado, ou então de uma procuração anterior para esse efeito (também do nomeado) –
453º/2 CC.

A ratificação do contrato tem de constar de documento escrito. No entanto, se o


contrato estiver sujeito a forma mais solene, a própria ratificação tem de obedecer a essa
mesma forma, por força do nº2 do 454º.

Sendo realizada a nomeação nos termos do artigo 453º CC, o nomeado adquire
“os direitos e assume as obrigações provenientes do contrato a partir da celebração dele”
– artigo 455º/1 CC. Ou seja, os efeitos do contrato repercutem-se retroativamente na
esfera do nomeado. Todavia, a nomeação não é obrigatória. Não sendo feita, o contrato
mantém-se simplesmente entre as partes originárias (455º/2), salvo estipulação em
contrário.

Nem todo os contratos são suscetíveis de integrar esta cláusula. Não se pode
recorrer à reserva de nomeação naqueles contratos em que seja essencial, desde logo, a
determinação dos contraentes. Também não se pode recorrer a esta cláusula nos contratos
que atendem às especiais qualidades da outra parte (por exemplo, o casamento).

Quando se trate de contratos sujeitos a registo será, logicamente, necessário o


registo da cláusula e do prazo para a nomeação, assim como será posteriormente
necessário o registo da nomeação.

O que acontece nos casos em que haja uma colisão entre os atos praticados pelo
nomeante e a posição do nomeado?

Suponhamos que se trata da compra e venda de um imóvel entre A e B e que, antes


de fazer a nomeação, o nomeante – A - hipoteca o imóvel. Depois, nomeia C. Sendo o
imóvel sujeito a registo, a cláusula para pessoa a nomear também o é, para que possa ser
oponível a terceiros. Uma vez registada a cláusula, os atos celebrados pelo nomeante não
produzirão efeitos face ao nomeado. No caso apresentado, prevalece a posição do
nomeado, ou seja, a partir do momento que se substitua o nomeante, não lhe é oponível a

86
hipoteca. Também não há proteção do negociante da hipoteca, porque este estava ciente
da cláusula de nomeação, mais uma vez por via do registo.

Imagine-se agora uma compra e venda de móvel não sujeito a registo, que o
nomeante penhora antes da nomeação. Quando for feita a substituição das partes
contratuais por via da nomeação, o nomeado adquirirá o bem, mas adquiri-lo-á
empenhado. Isto porque, aqui, não há a proteção do registo, havendo prevalência dos
direitos que foram constituídos primeiro.

Natureza jurídica do contrato para pessoa a nomear

Esta cláusula está sujeita a uma condição resolutiva, atinente ao contrato inicial
com as partes originárias, cujos efeitos se desencadeiam com a nomeação do terceiro; por
outro lado, está sujeita a uma condição suspensiva da aquisição do terceiro no que toca
ao contrato entre as partes finais, pois só produz efeitos se houver nomeação de terceiro
e só a partir desse momento.

O Professor ressalva o facto de estarmos perante um direito potestativo de uma


das partes se fazer substituir por terceiro sem consentimento da outra parte.

1.6 Gestão de Negócios

28 e 29/102019

“Dá-se a gestão de negócios, quando uma pessoa assume a direção de negócio alheio
no interesse e por conta do respetivo dono, sem para tal estar autorizada” – artigo
464º CC

Estamos face a uma gestão de negócios quando alguém, sem que esteja autorizado para
esse efeito, assume a direção de um negócio que não é seu e o faz no interesse e por conta
do dono do mesmo. A situação muda de figura sempre que houver uma autorização, que
pode decorrer, por exemplo, de mandato, e que impede desde logo que uma atuação se
configure como gestão de negócios.

Exemplos: suponhamos que A vai de férias, está incontactável e há uma tempestade


no seu local de residência. A tinha deixado uma janela estragada aberta e,
consequentemente, a sua casa ficou inundada. Apercebendo-se da situação, B,

87
vizinho de A, contrata com um empreiteiro que arranje a janela. Temos então B a
assumir a gestão de negócio alheio, no interesse de A; suponhamos agora que C
está ferido e inconsciente na estrada; C leva-o ao hospital e ainda lhe compra os
medicamentos necessários. É outro caso de gestão de negócios.

A gestão de negócios é uma atuação que visa tutelar interesses do dono do negócio.
Todavia pode, simultaneamente, tutelar interesses do gestor do negócio, tratando-se assim
de uma situação de gestão mista. A possibilidade da gestão mista alarga muito o âmbito
da gestão de negócios, pois são-lhe aplicáveis as regras desta última.

Exemplo: D e E são vizinhos, e ambos têm uma moradia. Inicia-se um incêndio na


casa de E e, de modo a evitar que o fogo alastrasse a sua casa, D compra três
extintores para o apagar. Apesar de estar a agir em interesse próprio, pois não quer
que a sua casa arda, D não deixa de atuar no interesse de E, pois apaga o fogo na
moradia deste e minimiza os danos.

Regime da Gestão de Negócios

No âmbito da gestão de negócios, temos sempre dois interesses a considerar e a


conjugar: por um lado, favorecer uma intervenção altruísta e louvável na esfera de
outrem; por outro, impedir uma intromissão abusiva da parte de terceiros no negócio do
dono.

Requisitos:

1. Direção de negócio alheio

A expressão “negócio” não está aqui empregada no seu sentido técnico, dado que não
abrange apenas negócios jurídicos. Tem antes por significado “interesse ou assunto
alheio”. Inclui negócios jurídicos, mas também pode traduzir-se em simples atos jurídicos
ou mesmo em meros atos materiais. Este é outro fator que alarga o âmbito de aplicação
do regime da gestão de negócios.

2. Atuação no interesse e por conta do dono do negócio

Os interesses tutelados não têm de ter um carácter exclusivamente patrimonial; podem


tratar-se de interesses pessoais.

A atuação do gestor tem de se realizar intencionalmente em proveito alheio, o que


não exclui a possibilidade de estar simultaneamente em jogo o interesse próprio. O que

88
está em causa e verdadeiramente importa é transferir os efeitos práticos e úteis da gestão
para a esfera do dono do negócio.

Assim, não há gestão de negócios se:

 Alguém tratar de assuntos próprios convencido de que são alheios


 Alguém intervier em negócios alheios, mas estiver convencido de que são
próprios. Esta hipótese não configura uma verdadeira gestão de negócios. Neste
caso, há dois resultados possíveis:
 se o dono aprovar a gestão, podemos aplicar o regime da gestão de
negócios;
 se não houver essa aprovação, aplicam-se exclusivamente as regras do
enriquecimento sem causa – artigo 472º/1 CC
 Houver intervenção em negócios alheios, sabendo que são alheios, para daí retirar
benefícios próprios. Aplicam-se aqui as regras da responsabilidade civil (artigo
474º/2 CC).
3. Ausência de autorização

Tanto há ausência de autorização quando esta não tenha sido dada como quando o
contrato em que tenha sido dada seja nulo. Também não há autorização quando o sujeito
excede os limites da mesma.

Verificados cumulativamente estes requisitos, inicia-se uma gestão de negócios, da


qual decorrem deveres para as partes.

Note-se ainda que a gestão de negócios pode ser representativa ou não representativa.
Quando for representativa, teremos o gestor a atuar em nome do dono do negócio; quando
for não representativa, o sujeito atua em nome próprio. No exemplo da inundação
previamente exposto, o gestor pode ter contratado com o empreiteiro em nome do dono
da casa – gestão representativa – ou em nome próprio – gestão não representativa.

Deveres do Gestor – artigo 465º CC

Iniciando-se a gestão nos termos previamente expostos, há um conjunto de


deveres que recaem sobre o gestor do negócio.

Em primeiro lugar, tem de se conformar com a vontade, real ou presumível, do


dono do negócio, exceto quando esta for contrária à lei, à ordem pública ou aos bons

89
costumes (por exemplo, se dono pretender que se plante marijuana). Pode dar-se o caso
em que haja uma discrepância entre aquilo que é o interesse objetivo do dono do negócio
e aquela que é a sua vontade (real ou presumível).

Exemplo: imagine-se que o negócio alvo de gestão se trata de uma plantação


em campo alheio e que o gestor do negócio sabe que, atendendo às
características do terreno, será mais rentável cultivar o produto X do que o
produto Y. Porém, sabe também que o dono do negócio prefere que ele cultive,
ainda assim, o produto Y. O gestor tem de o fazer. Todavia, se o cultivo do
produto Y fosse totalmente improdutivo, o interesse objetivo do dono do gestor
– ter o seu terreno produtivamente cultivado- não seria satisfeito, logo o gestor
não seria obrigado a optar por Y.

Se houver uma desconformidade entre a atuação do gestor e o interesse ou vontade


real ou presumível do dominus, a gestão é considerada culposa por força do artigo 466º/2
CC.

Cabe ainda ao gestor um dever de aviso de que assumiu a gestão ao dono do


negócio. Por exemplo, no caso em que o gestor mandou arranjar a janela, deve contactar
o dono da casa logo que possível. Caso este dever não seja cumprido, podem daqui
decorrer consequências relevantes: o gestor passa a ser responsável pelo prejuízo que
possa causar e a gestão passa a ser ilegítima, consequentemente cessando as obrigações
do dono do negócio face ao gestor. Feito o aviso, a gestão deve continuar até haver
instruções em contrário vindas do dono do negócio. Manifestando-se o dominus em
concordância com a manutenção da gestão, esta passa a ter base contratual.

O gestor deve prestar contas da sua atividade, logo que cesse a gestão ou logo que
o dono do negócio assim o exigir. Para além disso, deve prestar todas as informações
relevantes acerca da gestão que efetua ao dono do negócio.

Logicamente, o gestor tem de entregar ao dono do negócio tudo aquilo que tenha
recebido de terceiros no âmbito e no exercício da gestão. Se o negócio se tratar da
cobrança de uma dívida, por exemplo, o gestor tem obrigatoriamente de entregar ao dono
o montante cobrado.

90
Finalmente, o gestor tem o dever de prosseguir a gestão até concluir o ato ou até
que o dono do negócio possa prover à gestão. Se, injustificadamente, o gestor interromper
a gestão, responde pelos danos causados.

Qualquer responsabilidade em que o gestor possa vir a incorrer depende sempre


de culpa. A questão é: como se afere a culpa neste caso? Podemos fazer um juízo de culpa
em concreto ou um juízo de culpa em abstrato. O modelo previsto no Código Civil, no
âmbito da responsabilidade civil extracontratual, é o modelo da culpa em abstrato, que
toma por medida a ação de um “bom pai de família face às circunstâncias do caso
concreto”. Pai de família é aqui tido no sentido de “bom operador de determinado dano”,
correspondendo na prática a um sujeito diligente numa determinada área de atividade.
Este modelo pretende estabelecer um padrão de conduta.

Exemplo: se a área em apreço for a medicina, o sujeito diligente – “o bom pai


de família” - será um médico, e o juízo de culpa far-se-á consoante as
diligências que um médico deverá tomar atendendo às circunstâncias e
variáveis condicionantes daquele caso concreto (entenda-se por variável, por
exemplo, a indisponibilidade de recurso a uma máquina.)

As circunstâncias do caso concreto são de extrema importância, no entanto este


modelo parte sempre da abstração. Já no que toca à culpa em concreto, o modo de aferição
é diferente. Temos de comparar a atuação do gestor no exercício da gestão do negócio
com a conduta que ele normalmente adotaria para os seus negócios. Ou seja, determina-
se se a gestão é culposa ou não através da comparação entre a capacidade do gestor e o
esforço e diligências que dedicou àquela gestão em concreto. Este modelo já parte da
figura concreta do gestor e das suas competências específicas.

Apesar da previsão da culpa em abstrato no Código Civil, questiona-se: no âmbito


da gestão de negócios, é mais pertinente aplicar-se o critério previsto no âmbito da
responsabilidade extracontratual ou recorrer-se a um critério de culpa objetiva?

A generalidade da doutrina tem vindo a sustentar o último critério, atendendo ao


tipo de atividade do gestor. Aquilo que temos de ver em termos de culpa é, portanto, se o
gestor adotou na gestão o nível de esforço que desempenha normalmente nas suas
restantes atividades.

91
Ainda no âmbito da responsabilidade do gestor por interrupção culposa da gestão,
é necessário que se determine o nexo entre a interrupção culposa da gestão e os danos que
daí advieram. Se os danos verificados não estão relacionados, em termos de nexo causal,
com a interrupção culposa da gestão, o gestor não responde.

Aprovação ou não aprovação da gestão pelo dono do negócio

Face a atuação do gestor, o dono do negócio pode aprovar a gestão ou não aprovar
a gestão.

Se ele aprovar a gestão, o gestor adquire os direitos previstos no artigo 468º/1 CC,
ou seja, o direito a ser indemnizado pelo prejuízo que sofreu e o direito a receber os
valores decorrentes das despesas que fundadamente tenha considerado indispensáveis;
além disso, se o gestor exercer aquela atividade no âmbito da sua atividade profissional,
tem direito a uma remuneração (artigo 470º CC). A aprovação tem ainda por efeito a
renúncia por parte do dono do negócio a uma eventual indemnização a ser paga pelo
gestor e vale como conhecimento dos direitos ainda agora mencionados (artigo 469º CC).

No caso da gestão não ser aprovada, cabe ao gestor provar a regularidade da


gestão, isto é, que ela se fez atendendo à vontade e interesse presumíveis do dono do
negócio. Se o gestor conseguir esta prova, são-lhe concedidos os direitos supra referidos.
Se não o conseguir provar, a gestão é considerada irregular e o gestor só terá direito a
uma restituição ao abrigo do enriquecimento sem causa, de acordo com o artigo 468º/2
CC.

A aprovação em si consiste num juízo de concordância genérica por parte do dono


do negócio com a gestão realizada. Coisa diferente, é a ratificação dos atos praticados
pelo gestor em nome do dono do negócio, que consiste num ato através do qual o dono
do negócio torna seus os negócios celebrados pelo gestor em seu nome. Isto é
especialmente relevante na gestão representativa, em que o gestor atua em nome alheio,
mas sem poderes para tal. Necessita, portanto, de ratificação. Se a gestão for ratificada,
os atos passam a produzir efeitos face ao dono do negócio retroativamente, ou seja, desde
a data em que foram praticados.

Não há uma necessária coincidência entre aprovação e ratificação. É possível que


dono aprove a gestão, mas não concorde com um ou outro negócio que o gestor haja

92
praticado e, por isso, não os queira ratificar; pode dar-se ainda o caso inverso, em que o
dono não aprova a gestão, mas quer ratificar um ou outro negócio.

É possível a circunstância em que o gestor do negócio, nesses negócios, tenha


atuado em nome próprio, e nesse caso os efeitos produzem-se desde logo na sua esfera.
Quando assim é, no caso de a gestão vir a ser aprovada, o gestor terá de transferir para o
dono do negócio os atos por si praticados - os efeitos dos negócios - nos termos idênticos
dos do mandato sem representação (artigo 471º CC)

São estas as regras básicas da gestão de negócios que, como vimos, tem um âmbito
de aplicação mais vasto do que a intuição nos diz. No que toca ao seu regime, a análise
tem de incidir nos deveres do gestor.

Nota*- em relação à ratificação, é relevante o artigo 268º CC

93
04/11/2019

3. Enriquecimento Sem Causa

O enriquecimento sem causa é uma figura com relevo bastante grande, sendo
considerado uma válvula de escape. Em termos genéricos, do enriquecimento sem causa
nasce uma obrigação de restituição, ou seja, este é fonte desta. Permite corrigir um
conjunto de deslocações patrimoniais, quando não haja um outro instrumento a que se
possa recorrer para o efeito, uma vez que, esta figura entre nós, tem um caráter
subsidiário.

Esta figura implica sempre o enriquecimento, que pode provir de um ato da outra parte,
mas também de um ato do próprio enriquecido ou ainda um ato de terceiro. Fala-se, então,
numa deslocação patrimonial, que engloba qualquer ato pelo qual se verifica sempre a
existência de uma vantagem patrimonial. Sempre que essa vantagem decorra de um ato
da outra parte, fala-se numa atribuição patrimonial.

Assim, pode resultar:


 do cumprimento de um contrato. Tratando-se de um contrato bilateral, a
impossibilidade de prestação de uma das partes (art.790º nº1) leva a que, se a
outra parte já tiver cumprido a sua contraprestação, haja lugar à sua restituição
ao abrigo do enriquecimento sem causa – art.795º nº1.
 de um ato jurídico não negocial, por exemplo, o pagamento de uma dívida
inexistente, nos termos do art.476º.
 de uma operação material, de um ato simplesmente material, como é o que se
verifica com a gestão de negócios não aprovada, não se vê aprovada a sua
regularidade.

Essa vantagem patrimonial pode decorrer, não apenas de um ato da outra parte, mas
também de um ato de terceiro. Por exemplo, quando a dívida é extinta por terceiro, ou
seja este paga a dívida de outrem, julgando erradamente que estava obrigado a cumpri-la
– art.478º. Pode decorrer de um ato do próprio enriquecido, por exemplo, A utiliza
durante 1 mês, sem autorização, o apartamento de B.

Todos estes atos englobam-se no conceito mais geral de deslocação patrimonial, ou


seja, ela compreende todos estes atos, quer a atribuição patrimonial, quer uma atuação de
terceiro ou do próprio enriquecido. Este conceito permite abranger qualquer acréscimo
patrimonial de um sujeito à custa do património de outrem.

Como é que a lei estrutura o regime do enriquecimento sem causa?

94
A lei começa por fixar uma cláusula geral no art.473º. Estabelece os requisitos gerais
do enriquecimento sem causa, que são: o enriquecimento; o empobrecimento; a
ausência de causa.
Todavia, no art.473º nº2 são estabelecidos casos específicos de enriquecimento sem
causa (arts.476º a 478º). É uma enumeração exemplificativa:

 Cumprimento indevido: conjunto de diversos casos previstos no art.476º e ss.

 Art.476º nº1 – é o caso do cumprimento de uma obrigação inexistente em


termos objetivos (ou indevido objetivo). Verifica-se quando um sujeito
cumpre uma obrigação que não existe, sendo a outra parte obrigada a
restituir. Ex: O sujeito cumpre uma obrigação relativa a um contrato que
não chegou a ser celebrado ou então a obrigação efetivamente existiu, mas
já se extinguiu por qualquer motivo. Neste caso, haverá restituição. Não
diz respeito ao cumprimento de um contrato nulo ou anulado, os efeitos
são retroativamente extintos, pois neste caso não aplicamos estas regras
do enriquecimento sem causa, mas as regras da anulabilidade e nulidade.
Nesta hipótese, não poderemos estar face a uma obrigação natural, porque
na obrigação natural o credor pode reter a prestação.
 Art.476º nº3 – caso em que a obrigação existe, o sujeito a quem a
prestação foi cumprida é, efetivamente, o credor, mas o devedor, por erro,
cumpre antes do vencimento. Neste caso, sendo o erro desculpável, o
devedor só tem direito àquilo com que a outra parte (o credor) se
enriqueceu, em virtude do cumprimento antecipado (aqui não tem
qualquer direito de repetição). O que significa que, tratando-se de uma
obrigação pecuniária, ele tem direito à aquilo que se chama o interusurium
(juros de mora naquele período de tempo).
 Art.476º nº2 – é o caso do indevido subjetivo, isto é, a obrigação
objetivamente existe só que o devedor cumpre face a um terceiro, ou seja,
um sujeito que não é credor (há um equívoco por parte do devedor) e, por
isso, se diz que é subjetivamente indevido. A obrigação em si não extingue
e, nessa medida, haverá direito à repetição/restituição da prestação. O
recetor da prestação tem de devolver, ele não é o credor, mas isto enquanto
a prestação não se tornar liberatória face a terceiro porque, nos termos do
art.770º, há um conjunto de casos em que a prestação a terceiro tem efeitos
liberatórios. Tornando-se o cumprimento liberatório, não há lugar à
restituição.
 Art.477º nº1 – trata-se também de um caso de indevido subjetivo, mas
consiste numa hipótese inversa à anterior, sendo na perspetiva do autor da
prestação e não do recetor. Isto é, o autor da prestação que não é o devedor,
por erro desculpável, cumpre uma obrigação alheia face àquele que é
mesmo o credor. A obrigação existe, a prestação foi realizada ao credor,
mas aquele que a realiza, o autor, não é o devedor. Ele crê, erroneamente,
que é o devedor, que a obrigação é sua, quando não o é. Se o erro do autor

95
da prestação for desculpável, há um direito de repetição. O verdadeiro
credor vai ter que repetir, represtar. Todavia, se o erro não for desculpável,
ou então sendo desculpável, o credor, desconhecendo o erro, se tiver
privado, ou do título ou das garantias, ou deixado prescrever o crédito, não
há um dever de repetição, mas aquele sujeito (o autor da prestação) fica
sub-rogado, adquire os direitos do credor (nº2). Aqui, ao contrário da
primeira hipótese, ele não pode exigir a restituição, mas adquire o direito
do credor por sub-rogação e irá depois exigir a prestação ao verdadeiro
devedor.
 Art.478º – trata-se do cumprimento de uma obrigação alheia, que se sabe
que é alheia. O autor da prestação está convencido, embora erroneamente,
que está obrigado a cumpri-la, portanto, o autor da prestação sabe que não
é devedor, sabe que a obrigação é de outro, mas crê que está obrigado a
cumprir. Por exemplo, ele acha que tem uma obrigação de garantia e,
portanto, tem de cumprir. Qual é a consequência? Neste caso, há um
enriquecimento por parte do devedor que foi exonerado, cuja obrigação se
extinguiu, portanto, ele terá que restituir, mas ao abrigo do enriquecimento
sem causa. Só há lugar à restituição (devolver face ao autor da prestação)
quando o credor conhecia o erro no momento da realização da prestação e
a aceitou, aí ele tem de devolver. Quando o credor não conhecia o erro,
aplicam-se as regras da restituição ao abrigo do enriquecimento sem causa,
mas face ao devedor exonerado, o que significa que o credor não terá que
restituir. Nessa medida, o sujeito que realiza a prestação só pode dirigir-se
ao devedor exonerado e não ao credor.

 Extinção da razão causal da prestação efetuada: a prestação é realizada com


base numa causa que deixou de existir. Por exemplo, num contrato bilateral, um
sujeito realiza a sua prestação, sendo a sua causa a contraprestação.

 Art.795º nº1 – Se a contraprestação se tornar impossível e, como tal, se


extinguir por facto não imputável ao devedor, cessa a causa da prestação
e haverá lugar a uma restituição ao abrigo do enriquecimento sem causa.
Ex (1): A vende a B um automóvel e entrega o preço deste. O automóvel
é destruído por causa não imputável ao devedor. A obrigação de entrega
extingue-se. Contudo, o preço já foi pago, só que a razão causal de entrega
do preço não se verifica mais, e o preço terá que ser restituído ao abrigo
do enriquecimento sem causa.
Ex (2): Um sujeito, por via de um contrato de seguro, acaba por pagar a
outro o valor de um bem que foi furtado. Entretanto, o bem é encontrado,
cessa a razão causal da entrega da indemnização e há lugar à restituição
ao abrigo do enriquecimento sem causa.
 Caso em que não há verificação do efeito pretendido com a prestação –
por exemplo, o pagamento antecipado do preço de uma venda que não se
vem a realizar. O sujeito entrega a outro o preço com vista a realizar uma

96
venda futura, o efeito pretendido acabar por não se verificar. Isto só deixa
de ser assim se o autor da prestação soubesse que ela era impossível, ou
então, se ele agindo contra a boa-fé impediu a sua verificação. Nestes
casos nos termos do art.475º, não há lugar a restituição (casos muito
específicos).
 Conjunto de casos relacionados com a segurança jurídica e a boa-fé. No
âmbito de uma cessão de créditos, o pagamento efetuado pelo devedor ao
cedente antes de ter sido notificado da cessão (ex: crédito de A (banco)
sobre B (cliente) de 10 mil euros. A precisa de dinheiro e vende o crédito
por 8 mil euros a C. O preço de compra foi de 8 mil, logo o A recebe 8
mil euros. B tem que saber a quem vai pagar, portanto se o crédito foi
cedido a C, este tem que notificar B que tem que lhe pagar a ele. Se B não
for notificado pode cumprir liberatoriamente face ao A. O que aconteceria
é que o banco iria receber os 10 mil euros, sendo que já recebeu 8 mil. A
enriqueceria à custa de C).
 Casos da impugnação pauliana (art.610º nº1) – este é um instrumento para
atingir um negócio que diminua a garantia patrimonial de um sujeito, em
termos do credor depois não conseguir obter a satisfação patrimonial do
seu crédito. É um meio de conservação da garantia patrimonial. Sendo
impugnada a venda/o negócio, o credor tem direito à restituição desses
bens do património do devedor, na medida do seu interesse. Ex: A vende
a B um automóvel. C, credor de A, recorre à impugnação pauliana, o que
significa que ele pode atingir o automóvel, em termos de execução, que
está no património de B ou pode levar a que o carro volte a integrar o
património de A, para depois o executar. Acontece que, em ambos os
casos, B fica sem o automóvel através da impugnação pauliana interposta
por C, tendo contudo pago o preço a A. Assim, há um enriquecimento
sem causa de A à custa de B. Também é este o caso da dupla venda e
aquisição por força do registo pelo segundo adquirente. O vendedor
enriquece sem causa à custa do primeiro adquirente que não regista.

3.1. Requisitos gerais do enriquecimento sem causa

 Enriquecimento – consiste numa vantagem patrimonial que pode decorrer de um


aumento do ativo patrimonial, de uma diminuição do passivo, ou ainda de uma
economização de despesas (ex: A, pensando que é pai de B, presta-lhe alimentos.
Há uma economização de despesas daquele que é verdadeiramente pai). Pode
ainda consistir na intromissão ou ingerência em bens ou direitos alheios. Temos
aqui, neste caso, duas modalidades: (1) o uso ou a fruição de coisas alheias (ex: A
utiliza o apartamento de B; A come os chocolates de B); ou (2) a disposição/venda
de bens a outrem (o sujeito tem bens de outra pessoa pensando que são dele). Em
todos estes casos ocorreu uma deslocação patrimonial.

O enriquecimento pode ser medido de duas formas:

97
 em abstrato (enriquecimento real). Consiste na avaliação do benefício
patrimonial desligado do enriquecido, isto é, avaliado objetiva e
isoladamente (valor objetivo dos bens, no caso do apartamento ou dos
chocolates, temos o preço real do bem no mercado);
 em concreto (enriquecimento patrimonial). Determina-se através de uma
comparação entre a situação em que o enriquecido se encontra (situação
real) e aquela em que se encontraria se não se tivesse verificado o
enriquecimento (situação hipotética). Enriquecimento efetivo e atual.

O enriquecimento implica a consideração das despesas que o enriquecido estaria


disposto a fazer se não se tivesse verificado o enriquecimento (situação hipotética) e
também o efetivo destino que o enriquecido deu ao enriquecimento patrimonial auferido.
É também atual, ou seja, à data em que ele soubesse que o enriquecimento não tem causa,
em que a restituição é devida. Ex: Por engano entregam a A uma caixa de chocolates que
se destinavam a B. A adora chocolates e pensa que se trata de uma oferta de um
admirador. Os chocolates valem 20€ e se A não os tivesse recebido teria comprado, mas
a um valor de 10 euros, então, em termos de enriquecimento real, este é de 20€ e o
enriquecimento patrimonial é de 10€. Suponhamos que A não gosta desta marca de
chocolates e oferece-os a C, chocolates esses que A não teria comprado. Neste caso, o
enriquecimento real é de 20€ e o enriquecimento patrimonial é de 0€.

 Empobrecimento – tem de se verificar um nexo entre a vantagem obtida por um


sujeito e a desvantagem ou sacrifício suportado pelo outro, tem que haver uma
ligação imediata. Ou seja, ao enriquecimento de uma pessoa tem de corresponder
o empobrecimento de uma outra. Contudo, há casos em que pode haver um
enriquecimento, sem que haja qualquer empobrecimento em sentido patrimonial
(ex: A instala-se no apartamento de férias de B, durante o verão, por engano sem
que B saiba. B não iria ocupar nem arrendar a casa nesse período de tempo. Se A
não o tivesse feito teria gasto mil euros. Há aqui um enriquecimento de A
traduzido no montante que poupa por não ter de arrendar a casa, mas não há um
empobrecimento, em termos patrimoniais, de B. Este não ia dar destino nenhum
ao bem, portanto, a sua situação patrimonial não se alterou).
Esta ausência de empobrecimento, nestas circunstâncias, é corrigida pela chamada
doutrina do conteúdo da afetação ou da destinação. Verifica-se quando um
sujeito usa um bem que pertence a outrem, ou seja, quando há intromissão em
bens alheios. O enriquecimento é realizado à custa de outrem se foi lesado o
direito exclusivo ao uso e fruição daquele bem, havendo um aproveitamento
económico. Ou seja, o enriquecimento não se faz à custa de um património, mas
de uma esfera absolutamente protegida, o que significa que todas as vantagens
económicas retiradas desse bem estão reservadas ao seu titular. O sujeito está a
atuar sob uma esfera protegida e, nessa medida, há sempre empobrecimento que
corresponde ao valor patrimonial desse bem/uso que foi dado ao bem. Há uma
vantagem decorrente do uso durante aquele período de tempo, significa que há um

98
empobrecimento pelo valor dessa vantagem, da utilização do bem. Direitos de
autor, de propriedade intelectual, por exemplo, são esferas protegidas, qualquer
vantagem cabe única e exclusivamente ao seu titular.

Não basta o enriquecimento e o empobrecimento, torna-se necessário que haja uma


ligação entre uma coisa e outra, um nexo de causalidade direta, em termos tais, que se
possa falar de uma unidade de procedimento de enriquecimento. Este nexo de
causalidade só tem lugar nos casos de enriquecimento por via da prestação, ou através de
um único procedimento que leva a que a deslocação patrimonial seja direta. Se houver
uma intromissão de um terceiro no processo, faltará este elemento. Ex: A, gestor de
negócios de C, utiliza bens de B no exercício da gestão por conta de C. Aqui, B, titular
do bem, não poderá dirigir-se ao C, dono do negócio, ao abrigo do enriquecimento sem
causa (pelo enriquecimento que C obteve e pelo seu próprio empobrecimento), porque
falta aqui esta imediação entre uma coisa e outra, há aqui uma intromissão do gestor. Por
isso, nestes casos, é de toda a relevância saber quem realiza a prestação e quem é o
beneficiário desta. Tudo se vai decidir no âmbito do quadro da gestão de negócios.
Todavia, há casos em que sendo a atribuição patrimonial realizada de forma indireta,
devem ser resolvidos no âmbito do enriquecimento sem causa, mesmo não se verificando
este requisito. Há dois tipos de casos:

 Contrato a favor de terceiro: a atribuição a terceiro por parte do promitente na


relação de cobertura visa indiretamente realizar a prestação decorrente da relação
de valuta (por exemplo, realizar uma doação);
 Caso da delegação: acordo pelo qual um sujeito realiza uma prestação a outrem
para extinguir uma obrigação de um terceiro relativamente ao credor. Ex: A deve
a B mil euros. A dá uma ordem a C para que entregue a B esses mil euros por
forma a extinguir a obrigação perante ele. Nestes casos, embora haja a intervenção
de um terceiro, dispensa-se a imediação.

 Ausência de causa justificativa – O conceito de causa é muito amplo e tem que


ser preenchido, tanto pela doutrina, como pela jurisprudência. É um conceito
bastante indeterminado e que permite cobrir um vasto leque de situações. No
entanto, de forma analítica, distinguimos a causa da prestação da causa da
obrigação. No que diz respeito à causa da prestação temos de distinguir dois
sentidos:

 objetivo: consiste na relação jurídica da qual resulta a necessidade de


realização da prestação e a legitimidade do credor para reter essa
prestação. No contrato de compra e venda, a causa em termos objetivos, é
o contrato em si, do qual decorre essa obrigação de pagamento do preço.
 subjetivo: consiste no fim imediato, por via do qual a prestação é realizada,
por exemplo, a prestação pode ser realizada para extinguir uma obrigação,
para conceder crédito, para realizar uma doação.

99
Não há uma coincidência necessária entre a causa em sentido objetivo e subjetivo. Ex:
A entrega a B uma quantia com a vista a extinguir uma obrigação (causa subjetiva
verificada) e a obrigação não existia.

A causa da obrigação consiste na finalidade típica do negócio do qual resulta essa


obrigação. Por exemplo, no contrato de compra e venda, é uma troca de coisa por
dinheiro. No contrato de locação é a disponibilização de uma coisa mediante o pagamento
de quantias pecuniárias. Havendo impossibilidade de entrega da coisa verifica-se a
ausência de causa.
Pode dar-se o caso desta ausência de causa da obrigação não se verificar
subsequentemente à celebração do contrato, ou seja, a falta de causa ser originária,
coexistir com a celebração do contrato. Muitas vezes, há aqui coincidência com o regime
da nulidade ou anulabilidade e, como o enriquecimento sem causa tem um caráter
subsidiário, o regime aplicável é o da nulidade ou anulabilidade. A correção da deslocação
da atribuição patrimonial faz-se por aplicação destes regimes e já não do enriquecimento
sem causa, embora ainda efetivamente exista uma causa.
No direito alemão, o enriquecimento sem causa tem um relevo muito mais amplo do
que nosso direito, por força do princípio da abstração. Ou seja, temos um negócio
obrigacional que não transmite a propriedade e depois celebra-se um negócio real abstrato
para transmitir essa propriedade. Se o negócio obrigacional de compra e venda for nulo
ou anulado, não há transmissão da propriedade. Contudo, a correção da deslocação
patrimonial tem de se fazer ao abrigo do enriquecimento sem causa. Pelo contrário, entre
nós isto não acontece, sendo nulo ou anulado o negócio, decorre dos efeitos da nulidade
ou anulabilidade a atribuição patrimonial.

05/11/2019

Particularidades da intromissão em direitos alheios no âmbito da causa: quando há uma


intromissão no uso de bens alheios ou até na disposição de bens alheios, a ausência de
causa traduz-se na perturbação da correta/adequada ordenação dos bens, ou seja, de
acordo com a correta ordenação jurídica dos bens aquelas vantagens devem pertencer
única e exclusivamente ao titular desses bens, a essa esfera jurídica absolutamente
protegida e não a outra. Quando essa ordenação for perturbada esse enriquecimento não
tem causa, é indevido. No exemplo do sujeito que passa férias na casa de outrem,
anteriormente referido, verifica-se que a causa de enriquecimento deste indivíduo decorre
de ter auferido uma vantagem/benefício que, de acordo com a correta ordenação de bens
e, uma vez que, sobre essa casa incide um direito de propriedade de outrem, deveria caber
ao proprietário.

O enriquecimento sem causa no sistema português tem um caráter subsidiário, o que


significa que só atua na ausência de outro meio jurídico que possa recompor a situação
em termos patrimoniais, há uma subsidiariedade da obrigação de restituir – art.474º.
A lei, em certas causas, permite mesmo o enriquecimento:

100
a) Por exemplo, no caso do usucapião, que é uma forma de aquisição de propriedade.
Pode também acontecer nos casos de caducidade ou casos de prescrição. Por
exemplo, se prescrever um direito de crédito, a obrigação transforma-se numa
obrigação natural e isso significa que o devedor não é obrigado a cumprir. Se for
um crédito pecuniário não tem de entregar a quantia. A lei atribui-lhes causa
justificadora ou legitimadora, logo não estamos face ao enriquecimento sem causa.

Temos outros meios que permitem recompor a situação do enriquecimento sem causa:

b) A lei cria um regime específico para corrigir as deslocações patrimoniais, é o que


acontece no regime das benfeitorias – art.1273º. Há uma indemnização
relativamente às benfeitorias necessárias e depois há um direito de levantamento
das benfeitorias úteis. Só no caso em que não se possa fazer levantamento das
benfeitoras úteis sem detrimento da coisa, sem a danificar é que estamos face ao
regime do enriquecimento sem causa.
c) Outro meio de reparação da deslocação patrimonial são os regimes da nulidade e
anulação. Estes recolocam a posição das partes tal como ela existia antes da
celebração do contrato (status quo ante), ou seja, têm efeitos retroativos. A
obrigação de restituição ao abrigo do enriquecimento sem causa determina-se de
forma diferente da obrigação de restituição ao abrigo da nulidade a anulação. O
enriquecimento sem causa tem sempre um caráter atualista e não retroativo.
d) Casos de resolução do contrato (art.434º), que em princípio tem efeitos retroativos,
embora não face a terceiros.
e) O regime da gestão de negócios tem mecanismos que permitem compensar as
deslocações patrimoniais, por exemplo, o pagamento de uma indemnização ao
gestor, o pagamento das despesas, o pagamento de uma remuneração relativamente
ao exercício de uma atividade profissional.
f) O regime da responsabilidade civil não é fonte de uma obrigação de restituir, mas
sim de indemnizar. Não há um concurso necessário entre o enriquecimento e a
responsabilidade civil, as regras destas duas fontes não são necessariamente
cumulativas. Pode ser causado um dano, sem que o autor tenha enriquecido.
Também pode haver enriquecimento sem haver dano, ou seja, sem existir
responsabilidade civil (ex: o sujeito que utiliza o apartamento de um familiar que
não iria arrendar sem que tenha causado qualquer dano ao apartamento). Mas há
ainda situações em que pode haver concurso. O sujeito enriquece, mas também
causa um dano. Estão aqui verificados os pressupostos de ambos os institutos e,
quando assim for, tem de se verificar qual é o superior, se o dano, se o
enriquecimento. Se for o dano, atendendo ao caráter subsidiário do
enriquecimento, aplica-se o regime da responsabilidade civil somente. Porém,
pode não se aplicar se não houver culpa. O que é que acontece naqueles casos em
que o valor a obter, por via da indemnização, é inferior ao valor que se obteria ao
abrigo de uma restituição com base no enriquecimento sem causa? Entende-se,
nestes casos, relativamente a esta diferença, que se pode recorrer ao regime do
enriquecimento sem causa. O empobrecido, não obstante o princípio da

101
subsidiariedade, deve poder pedir a diferença entre o dano e o enriquecimento. Um
outro caso é, quando o dano é superior ao enriquecimento, mas o juiz pode fixar
uma indemnização abaixo do dano, nos termos do art.494º. O tribunal não pode
fixar uma indemnização abaixo do valor do enriquecimento, que funciona como
limite mínimo (ex: se o dano for de 100, se o enriquecimento for de 80, o tribunal
vai aplicar o art.494º, não pode fazer descer a indeminização abaixo dos 80).
Verificados todos estes pressupostos temos a constituição da obrigação de restituir
ao abrigo do enriquecimento sem causa.

11/11/2019

3.2. Objeto da obrigação de restituir

O objeto da obrigação de restituir implica os arts.479º e ss. A regra fundamental é a


restituição em espécie, que é o que decorre do art.479º. Se a coisa ou bem foi entregue ao
enriquecido ele deve devolver a coisa em si, exatamente o que recebeu.
Pode acontecer é que essa restituição integral não seja possível ou seja insuficiente.
Ex: A utiliza a coisa de B, tem que devolver. Para além do enriquecimento, houve
utilização do bem. Quando não seja possível a restituição em espécie, deve fazer-se a
restituição em valor. Esta está sujeita à doutrina do duplo limite (o enriquecimento em
sentido patrimonial e o empobrecimento/dano em sentido patrimonial) – art.479º nº1/2.
Este regime aplica-se quando o enriquecido estiver de boa fé. Se o enriquecido estiver de
má fé aplica-se o regime do art.480º, ou seja, ele conhece a falta de causa do
enriquecimento.

O duplo limite assenta primeiro no dano (empobrecimento) em sentido patrimonial,


isto é, a situação patrimonial em que ele está à data da restituição da obrigação e a situação
em que ele estaria se não tivesse ocorrido o facto que gerou o empobrecimento e, em
segundo, na medida do enriquecimento ou locupletamento (art.479º nº2). O
enriquecimento em sentido patrimonial diz respeito ao enriquecimento efetivo e atual, ou
seja, o enriquecimento mede-se por uma comparação das situações patrimoniais do
sujeito, como já foi referido. Para calcular temos de ter em conta a desvalorização dos
bens, a eventual alienação gratuita dos bens e as eventuais despesas que o enriquecido
estaria na disposição de fazer, não fosse o enriquecimento. Há ainda que deduzir as
despesas que o enriquecido tenha feito para cumprir a sua obrigação de restituir (ex:
despesas de transporte). O enriquecimento verifica-se num dado momento e há que
verificar se, no momento em que se opera a restituição, há ou não enriquecimento. Ex:
um sujeito é ator e o admirador envia-lhe uma caixa de chocolates. Por erro, esta é
entregue a uma atriz que pensava que era para ela. A caixa vale 100€. Se isto não tivesse
acontecido, a atriz teria comprado uma caixa de chocolates e só teria gasto 50€. O
enriquecimento em sentido patrimonial será só de 50€. A atriz comeu os chocolates, mas
senão fosse aquela caixa que chegou, não teria comprado chocolates. O enriquecimento

102
em sentido patrimonial é 0€. Ou então, não gosta de chocolates e ofereceu a um sobrinho.
Também aqui o enriquecimento patrimonial é 0€. Temos de ver qual o limite do
enriquecimento e o limite do dano em sentido patrimonial. Se a caixa de chocolates
valesse 100€, o dano em sentido patrimonial era de 100€. Todavia, se o sujeito só
estivesse disposto a gastar 50€ numa caixa de chocolates, o enriquecimento em sentido
patrimonial era de 50€. Se estes valores não forem idênticos, a restituição faz-se pelo mais
baixo destes valores, neste caso, seria 50€.

A aplicação do duplo limite leva a resultados desajustados na eventualidade de se


verificar uma intromissão em bens alheios, sempre que o seu titular não mencionasse
dar-lhes qualquer uso (ex: casa que é ocupada por um sujeito sem que o dono pretenda
usá-la ou arrendá-la, situação em que o dano seria de 0€).
Segundo Antunes Varela, quanto ao limite do dano, sempre que haja intromissão em
bens alheios, a restituição não deve estar limitada ao dano em sentido real, mas deve
estender-se a tudo aquilo que foi obtido pelo enriquecimento através da utilização de bens
alheios, pois não se pode beneficiar o enriquecido que se intrometeu, exceto naquela
parte em que sejam decisivas as qualidades pessoais do enriquecido para a obtenção
daquele valor. Ex: B utiliza o apartamento de C. Ele consegue arrendá-lo. O valor de
mercado do arrendamento daquele apartamento é de 200€, todavia, o enriquecido
consegue arrendá-lo não por 200, mas por 300€. Qual o valor de restituição, neste caso?
Segundo a correção de Pereira Coelho, o valor da restituição é o valor de mercado do
bem, neste caso 200€. Ou seja, a restituição deve fazer-se utilizando o dano real como
limite do dano. De acordo com a correção de Antunes Varela, este sujeito ao intrometer-
se em bens alheios terá que restituir a totalidade daquilo que recebeu, portanto, teria que
restituir os 300€. Se não fosse assim, um sujeito podia intrometer-se em bens alheios, se
conseguisse dessa forma obter uma rentabilidade superior àquela que é o seu valor de
mercado. Na medida em que tenham sido decisivas as qualidades pessoais do enriquecido
para a obtenção daquele valor, então esse montante, o enriquecimento, já não cabe ao
titular dos bens, mas ao enriquecido. Ex: O arrendamento do apartamento tem o valor de
mercado de 200€. O enriquecido consegue obter o valor de 325€ porque, por um lado,
tem uma boa oportunidade de negócio, mas também porque é um bom negociador ou tem
contactos que permitem obter esse valor superior, uma rede de interessados que o permite.
Segundo Antunes Varela, quando a este último aspeto, isso não teria que ser restituído.
Suponhamos que, em virtude de uma boa oportunidade de negócio, em vez de conseguir
200€ conseguia 275€, mas em virtude das suas qualidades pessoais, em vez de obter 275€
obtém 325€ (diferença de 50). Esta diferença, ou seja, os 50€, já não teriam que ser
restituídos, mas os 275€ sim.
Este regime de tutela do enriquecido existe se ele está de boa fé. Se estiver de má fé
tem de se restituir tudo.

O professor Menezes Cordeiro introduziu um terceiro limite. Sempre que o dano


concreto (empobrecimento patrimonial) seja superior ao dano apresentado
(empobrecimento real), o cálculo do dano deve fazer-se pelo mais elevado destes valores.
Ex: A extrai areia do terreno de B, areia essa com valor de mercado de 200€. Pouco tempo

103
depois, o rio repõe a reia. O dano patrimonial é 0€, pois o rio repôs a areia, e o dano em
sentido real, é o valor da areia (200€). Para extrair a areia, o sujeito causa prejuízos no
valor de 300€. O dano patrimonial é de 300€. Neste caso, o dano em concreto é superior
ao dano real, sendo que calculando o limite do dano pelo valor mais alto, o limite do dano
é dado pelo dano em concreto. Portanto, o valor da restituição é de 300€.
Para se aplicar esta correção do triplo limite, implica que tenha sido causado um dano
em sentido patrimonial e que esse dano seja superior ao dano em sentido real. Sempre
que não se verifique um dano em sentido patrimonial ou que não seja superior tem
aplicação, mas em casos limitados.

3.3. Agravamento da obrigação de restituir

O enriquecido, de acordo com o duplo limite, é tratado muito favoravelmente


(restituição pelo valor mais baixo). Este tratamento favorável só se justifica quando o
enriquecido estiver de boa fé. Se o enriquecido não estiver de boa fé esse tratamento
favorável é afastado. O enriquecido está de má fé quando:

 tenha sido citado judicialmente para a restituição;


 tenha conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento;
 tenha conhecimento da falta de efeito que se pretendia obter com a
prestação.

Posto isto, desaparece o tratamento favorável do art.479º e a obrigação de restituir é


agravada. O enriquecido passa a responder pelos frutos que, por sua causa, deixaram de
ser obtidos, pelos juros legais da quantia a que o empobrecido tem direito e responde pelo
perecimento ou pela deterioração culposa da coisa. Estando de má fé tem, então, uma
responsabilidade agravada.

O que é que se passa naqueles casos em que o enriquecido tenha alienado gratuitamente
o objeto de enriquecimento?

É preciso distinguir consoante esteja de boa fé ou de má fé. Se o adquirente do bem


estivesse de boa fé, ficaria obrigado a restituir, mas só no limite do seu enriquecimento,
sendo que temos que verificar o enriquecimento desse sujeito (adquirente). Ex: A envia
chocolates a B. B está de boa fé e oferece a C. É preciso determinar aqui o enriquecimento
de C. O enriquecimento de B é 0, dado que dispõe do bem. C consumiu os chocolates e
não teria comprado nenhuns chocolates, o enriquecimento é então 0. Contudo, se não
tivessem sido transmitidos gratuitamente e ele gastasse 10€ na aquisição dos chocolates,
então este seria o seu enriquecimento face ao empobrecido e ele responde pelo seu
enriquecimento, ocupando a posição do enriquecido original, havendo restituição, esta
será feita por ele.

104
Nos casos em que existe má fé, tanto do alienante, como do adquirente, e sabem da
falta de causa do enriquecimento, respondem nos termos do art.480º, ou seja, respondem
agravadamente pela restituição. Se o alienante estiver de má fé, responde tal como
adquirente – art.481º. Nos termos do art.482º, a obrigação de restituir tem um prazo
prescricional de 3 anos, contando-se da data em que o titular do crédito teve conhecimento
do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, embora não tenha que saber a
extensão integral da obrigação de restituir.

4. Negócios Jurídicos Unilaterais

No nosso sistema estes negócios são fonte de obrigações? Pode uma pessoa,
voluntariamente, constituir uma obrigação sem ser necessário consentimento daquele
face a quem se vincula?

Em princípio não. No nosso sistema a regra é o princípio do contrato, ou seja,


naqueles casos em que não decorra da própria lei a constituição de obrigações, como
sucede com a gestão de negócios, enriquecimento sem causa ou outra qualquer fonte de
obrigação (ex: obrigação legal de preferência), as obrigações dependem do contrato.
Podia dizer-se que seria possível, ainda assim, o sujeito constituir obrigações a favor da
outra parte, desde que, esta última tivesse a possibilidade de rejeitar, mas o modelo da lei
não é esse.
O modelo da lei assenta na ideia de que não é razoável o sujeito vincular-se e nessa
medida manter-se irrevogavelmente obrigado por simples declaração unilateral –
art.457º. As promessas unilaterais só vinculam nos casos previstos na lei. Nos outros
casos, os negócios jurídicos unilaterais não são constitutivos obrigacionais. Em relações
jurídicas já constituídas, o sujeito pode, por via do negócio jurídico unilateral, alterar as
posições jurídicas, como é o que sucede no exercício de direitos potestativos. Ex: direito
de resolução do contrato; direito de renúncia de um contrato, mas também no âmbito da
gestão de negócios, o exercício do direito de aprovar a gestão. Trata-se de um direito
potestativo exercido por via de um negócio jurídico unilateral, mas integrado numa
relação base, numa relação obrigacional pré-existente. São negócios
auxiliares/instrumentais. A lei determina casos muito delimitados em que há,
efetivamente, a constituição de obrigações por ato unilateral (ex: a promessa pública).

Não constituem negócios jurídicos unilaterais, quer a promessa de cumprimento, quer


o reconhecimento da dívida. Ex: A promete pagar a B 200€ ou A reconhece que é devedor
de B no valor de 200€. Estes negócios não são unilaterais, mas simplesmente negócios
com causa presumida – art.458º. Isto é, a lei presume que há uma causa, que existe uma
relação jurídica base para estes negócios e a sua fonte é neste negócio presumido, e não
a promessa de cumprimento em si ou o reconhecimento da dívida. O devedor poderá
demonstrar a inexistência de causa, tendo que provar a inexistência da relação base que
justifique essa obrigação. Por exemplo, demonstrar que aquela obrigação, aquela

105
promessa de cumprimento decorre de um contrato nulo ou anulado, ou de uma obrigação
que já foi cumprida.
Esta situação é diferente dos negócios jurídicos abstratos. Nesses negócios há um
negócio independentemente da causa, ou seja, não têm causa. Contudo, aqui não há
qualquer negócio independente, mas sim um negócio com causa presumida.
A lei estabelece requisitos tanto para a promessa de cumprimento como para o
reconhecimento da dívida – art.458º nº2. É necessário a forma escrita, a não ser que a
relação base exija forma mais solene. É possível que certos documentos assinados pelo
devedor valham com título executivo.

4.1. Negócio jurídico unilateral constitutivo de obrigações

 Promessa Pública – art.459º nº1. Declaração feita mediante um anúncio que é


divulgado pelos interessados e no qual o autor se vincula a dar uma recompensa
ou gratificação a quem se encontrar numa determinada situação (ex: quem nasce
num determinado dia, ou a quem praticar um determinado ato, ato esse que pode
ser positivo (quem encontrar o cão) ou negativo (quem tiver menos faltas)). Tem
que ser dirigida a pessoas incertas ou indeterminadas. Esta tem, em regra, o
sentido de um prémio/recompensa. Como se dirige a pessoas indeterminadas, a
lei exige sempre que lhe seja dada publicidade – art.459º nº2. A lei não exige o
seu conhecimento pelos eventuais destinatários (ex: A encontra o cão de B,
oferecendo um prémio a quem encontrasse o cão. A não sabia da existência dessa
promessa, mas funciona face a ele).

Da promessa pública distingue-se a oferta ao público – art.230º. São propostas


negociais dirigidas ao público, mas que só levam à conclusão do contrato se forem aceites.
Na promessa pública, que é unilateral, a obrigação nasce logo com a promessa em si, não
propõe nada, faz a promessa e constitui-se a obrigação.

Em termos de regime da promessa pública importa sublinhar o prazo:

 Nos casos em que a promessa não tenha prazo pode ser revogada a todo o tempo,
desde que proceda para a revogação a mesma publicidade que foi dada à sua
constituição;
 Nos casos em que a promessa tenha prazo, quando ele tiver sido fixado pelo
promitente ou imposto pelo fim ou natureza da promessa, não pode ser revogado
dentro do prazo. Isso só pode acontecer, ou seja, haver revogação dentro do prazo,
se houver justa causa para esse efeito – art.461º nº1.

A forma da revogação tem que ser a mesma da promessa e da publicidade também. Se já


se tiver verificado a situação prevista a que promessa se dirige ou o facto já tiver sido
praticado, a revogação não é eficaz (ex: aquele que encontrar o gato tem um prémio de

106
mil euros. Há uma revogação da promessa, mas nesse momento, o gato já foi encontrado.
Quando assim for, então a revogação não tem efeito).

Quanto ao caráter da promessa:

o Gratuita – quando inexista uma vantagem económica para aquele que faz a
promessa, ou seja, o promitente. Visa meramente individualizar uma pessoa a
quem se quer fazer uma liberalidade;
o Onerosa – quando exista uma vantagem económica para o promitente. É o
caso das promessas públicas feitas em jornais e revistas, cujo objetivo é
aumentar a sua circulação.

Suponhamos que, para a obtenção daquele resultado, o gato foi encontrado por duas
pessoas. Nesse caso, o prémio deverá ser distribuído atendendo à participação que cada
uma das pessoas teve para o resultado – art.462º.

No art.463º encontram-se previstos os concursos públicos. Não estamos face a


concursos públicos do direito administrativo, mas sim de direito privado. Aquilo que se
visa é beneficiar apenas um dos concorrentes (ex: o prémio para quem escrever o melhor
livro, é um concurso de direito privado e não de direito público).

Importa resolver 2 questões:

1) Admissão ou exclusão dos concorrentes;


2) Regras de atribuição dos prémios, ou seja, quais os critérios.

Para além de terem que estar definidos estes elementos, é necessário também fixar um
prazo para a apresentação das candidaturas – art.463º nº1. As decisões quanto à admissão
das candidaturas e quanto à atribuição do prémio pertence unicamente às pessoas
designadas no anúncio ou então se o anúncio não designar, ao próprio promitente –
art.463º nº2. Se houver divergências de opinião, prevalecerá a decisão da maioria.

Concluindo, a regra é que, os negócios jurídicos unilaterais não são fonte de


obrigações. Há casos em que a lei permite que assim se suceda, mas são casos limitados.

11/11/2019
5. Responsabilidade Civil
A responsabilidade civil é a fonte da obrigação de indemnizar. No nosso sistema,
pode ser do tipo contratual ou do tipo extracontratual.

A responsabilidade civil é contratual se decorrer da violação de uma obrigação,


a qual tanto pode resultar de um contrato, de um negócio jurídico unilateral ou da própria

107
lei. Assim sendo, este é um dos casos em que a parte significa o todo, pois quando usamos
o termo “responsabilidade civil contratual” estamos tecnicamente a usá-lo no sentido de
“responsabilidade civil obrigacional”.

No que respeita à responsabilidade civil extracontratual, verifica-se quando


ocorre uma violação de direitos absolutos ou de condutas que, não obstante a sua licitude,
causam danos a alguém. Por causa das várias e distintas situações que podem estar na sua
base, subdivide-se em três modalidades - responsabilidade extracontratual por factos
ilícitos, por factos lícitos e pelo risco.

Relacionamento entre a responsabilidade civil extracontratual e contratual

Pode haver casos em que passamos de uma responsabilidade civil extracontratual


para uma responsabilidade civil contratual, no sentido amplo e obrigacional.

Exemplo 1: A causa um dano a B, verificando-se todos os pressupostos da


responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos. Nasce assim uma
obrigação – a de indemnizar. Há uma relação obrigacional entre o lesante o
lesado porque já se constituiu a obrigação, sendo que, se o devedor não pagar
a indemnização, estará a incumpri-la.

Exemplo 2: A obriga-se contratualmente a transportar B. Todavia, atuando A


com culpa, o seu automóvel despista-se e B sofre um traumatismo craniano.
Temos responsabilidade contratual, por incumprimento do contrato, mas
simultaneamente há responsabilidade extracontratual por factos ilícitos visto
que A atinge um direito absoluto de B, que é a sua integridade física.

Estes casos são relativamente comuns. Aquilo que temos é um concurso entre as
regras das duas modalidades de responsabilidade civil. A mesma situação de facto leva
ao preenchimento dos requisitos de ambas as modalidades. A obrigação de indemnizar é
só uma, não há duas. Porém, as regras aplicáveis são diferentes conforme o tipo de
responsabilidade em causa, desde logo no que diz respeito à culpa (há uma presunção de
culpa na responsabilidade contratual). Também no âmbito da responsabilidade contratual,
há regras específicas no que é atinente aos auxiliares, que genericamente não existem na
responsabilidade extracontratual.

Como é que se resolve esta situação? A lei não resolve estas questões, porém
temos duas teses desenvolvias pela doutrina:

108
1. Sistema de cúmulo, que tem dois modelos:
 Tese de ação híbrida: em que se recorre às normas de um e de outro regime.
 Tese da escolha do lesado: o lesado opta por um sistema ou por outro.
2. Sistema não cúmulo – tese da consumpção: não se aplicam ambos os regimes,
sóse aplica um visto que o regime da responsabilidade contratual consome o regime
da responsabilidade extracontratual. Este é um aspeto importante, porque há
inúmeros casos em que, no âmbito do incumprimento de um contrato, pode
verificar-se que estejam preenchidos também os pressupostos da responsabilidade
civil extracontratual.

Uma nota muito importante a que vale a pena atender é o facto de que, apesar de a
lei estabelecer regimes diferentes para as duas modalidades da responsabilidade civil, ela
estabelece um tratamento unitário no que toca à obrigação de indemnizar – artigos 562ºss
CC

5.1 Responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos – artigos


483ºss, CC

“Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer
disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o
lesado pelos danos resultantes da sua ação” – artigo 483º CC

Se analisarmos este artigo, concluímos que dele resultam cinco pressupostos


cumulativos que se têm de verificar de modo a que se desencadeie uma responsabilidade
civil extracontratual por factos ilícitos:

1. Facto voluntário do agente


2. Ilicitude
3. Culpa
4. Dano
5. Nexo de causalidade entre o facto ilícito culposo e o dano causado

Estudemos, um a um, estes requisitos.

5.1.1 Facto voluntário do agente


O primeiro pressuposto da responsabilidade por factos ilícitos é que haja um facto
voluntário praticado pelo agente. Quer isto dizer, nas palavras de Ribeiro Faria, que é

109
necessário que haja uma “conduta humana pensável como controlada pela vontade e
que, nessa medida, pode ser imputada objetivamente”.

Tendo isto em conta, há desde logo situações que ficam fora do âmbito da vontade do
agente, e que não verificam por isso este pressuposto. Excluem-se todos os casos naturais
e/ou de força maior e todos os factos acidentais. Excluem-se também todas as condutas
praticadas em estados de inconsciência ou sob coação.

Lembre-se que uma pessoa pode agir voluntariamente por omissão, logo este facto
voluntário pode traduzir-se, naturalmente, numa ação, mas também numa omissão.

12/11/2019

5.1.2 Ilicitude
A ilicitude é, logicamente, o requisito central da responsabilidade por factos ilícitos,
pelo que nos merecerá uma grande atenção. Corresponde a um juízo de desvalor da ordem
jurídica, relativo àquela ação. Para se aferir concretamente a ilicitude, esta definição é
insuficiente, por isso há a necessidade de se recorrer ao critério plasmado no artigo 483º,
CC. Segundo este, a ilicitude configura-se se houver:

a) Violação de um direito alheio, que segundo a maioria da doutrina tem de ser


absoluto. Excluem-se, nesta ótica, os direitos de crédito.
b) Violação de uma norma cuja finalidade é a proteção de interesses alheios .

A este propósito, vale a pena analisar a proteção do património de um sujeito. Em


certa medida, podemos falar na tutela de bens que integram o património como créditos,
mas que são protegidos somente por via do abuso do direito (forma de ilicitude, ao abrigo
do artigo 483º, CC). Depois, temos um número de disposições em particular de carácter
penal que protegem o património. Um sujeito que seja burlado, terá direito a ser
indemnizado, mas também há aqui uma sanção de carácter público (pena ou medida de
segurança). Contudo, não há nenhuma norma em si que proteja o património como tal, e
lesões de património que não sejam protegidas pelas vias mencionadas não são
indemnizáveis. É a isto que chamamos de lesões patrimoniais puras.

Para melhor compreender este tópico, analisemos a situação conhecida por “Cable
Cases”, que é a tipicamente usada para explicar esta matéria dos danos patrimoniais
puros:

110
Havia uma fábrica que era servida por um sistema elétrico. A, um sujeito, trabalhador
de uma empresa de construção e que estava a fazer fundações para um prédio, cortou
acidentalmente os cabos que levavam energia à fábrica, gerando grande prejuízo para a
mesma. A principal questão que se levanta é se este prejuízo é indemnizável e em que
medida. Do prisma do nosso sistema, temos de enquadrar a figura no âmbito da ilicitude
legalmente prevista. Não há nenhuma dúvida de que a fábrica sofreu um grande prejuízo
patrimonial. Analisemos as várias relações do caso:

1. Poderia a fábrica demandar a empresa de energia elétrica por incumprimento do


contrato de fornecimento de energia? É evidente que há incumprimento das obrigações
decorrentes do contrato, mas a responsabilidade contratual depende de culpa. É também
evidente que o incumprimento não é culposo, logo a empresa não responde ao abrigo da
responsabilidade contratual.
2. Teria a empresa elétrica direito a ser indemnizada (supondo que os cabos lhe
pertenciam)? Considera-se que foi praticado um ato ilícito relativamente à empresa dona
dos cabos, uma vez que foram danificados. A Empresa tem sobre os cabos um direito
absoluto – o direito de propriedade, que foi atingido. Há uma ilicitude, logo há o direito
a que seja paga a reparação dos cabos. A Empresa terá, assim, direito a uma indemnização
pela destruição dos cabos e por aquilo que deixou de ganhar em consequência da mesma.
3. A única dúvida que resta é acerca dos direitos da fábrica. Suponha-se que
estavam em produção peças que ficaram estragadas. Relativamente a essas peças, está
preenchido o requisito da ilicitude, pois a fábrica tem sobre elas um direito de
propriedade, que é um direito absoluto e que foi atingido. Quanto a isto não há também
dúvidas; porém, o problema maior foi que a fábrica deixou de produzir, deixou de poder
satisfazer encomendas e sofreu outros prejuízos diretamente decorrentes do corte dos
cabos. No que é atinente a este aspeto, não há nenhum direito absoluto atingido, apesar
de haver lesões ao património. São danos patrimoniais puros.

Em suma, não é atingida nenhuma das figuras utilizadas pela lei para delimitar a
ilicitude, que no nosso sistema não abrange todo o tipo de dano. Há da nossa parte uma
grande precisão no que toca ao âmbito da ilicitude, o que faz sentido visto ser necessária
alguma previsibilidade em termos de responsabilidade civil. No entanto, em termos de
resultado, não é uma solução brilhante, pois há grandes danos patrimoniais sem que haja
direito a indemnização. Para contornar isso e resolver a questão, foi sustentada a

111
existência de um “direito à empresa”, que implica o exercício da atividade normal por
essa mesma empresa. Não é unívoco, mas é uma forma de resolver a questão.

Casos específicos de ilicitude previstos na lei


O abuso do direito
Há casos específicos de ilicitude previstos na lei, para além dos tipificados a seguir
ao artigo 483º, CC. Um deles é o abuso do direito. O nosso Código Civil, como sabemos,
consagra com grande amplitude a figura do abuso do direito e fá-lo em termos objetivos,
na medida em que não é preciso consciência do abuso, mas é preciso que o abuso seja
manifesto. A lei alarga o âmbito deste instituto, uma vez que inclui no seu seio quer o
exercício do direito contra a boa fé, quer contra os bons costumes quer contra a finalidade
económico-social do direito.

Mas quais as consequências do abuso do direito? Na verdade, a lei não impõe uma
consequência específica para a atuação de um sujeito em abuso do direito; como veremos,
pode ser uma forma de ilicitude a par das outras previstas nos artigos 443º e seguintes, e
ser, portanto pressuposto, da responsabilidade por factos ilícitos, dando lugar a
indemnização; Para além disto, pode levar à colocação da situação em causa na sua fase
prévia (status quo ante). Pode ainda conduzir à paralisação do direito, como acontece, por
exemplo, nos casos de venire contra factum proprium ou então de invocação das
nulidades. Como vemos, não há uma consequência específica do abuso de direito, nem
ele é somente fonte de obrigações de indemnizar. Por isso podemos incluir no abuso de
direito os casos de eficácia externa das obrigações, não porque elas têm eficácia externa,
mas por se configurar um exercício abusivo de uma faculdade primária- a de contratar.

Para que um comportamento seja abusivo, entende a generalidade da doutrina que é


necessário que o sujeito tenha atuado com dolo. O Professor é menos exigente e considera
que uma atuação com negligência consciente também pode ser abusiva. O abuso tem
necessariamente de ser manifesto. Note-se que estamos perante um alargamento do abuso
de direito, porque incluímos nele o abuso de faculdades primárias. Para o que diretamente
nos interessa agora, o abuso de direito é uma forma de ilicitude. Consequentemente, e
verificando-se os outros pressupostos, dá lugar à obrigação de indemnização.

O instituto do abuso de direito funciona como válvula de escape do nosso sistema,


para resolver situações de injustiça que não estejam contempladas. Tem pressupostos
específicos e requisitos próprios. Muitas vezes, está ligado à criação das ligações de

112
confiança. Há até casos tipificados de abuso de direito, sendo um dos mais relevantes o
do venire contra factum proprium (o sujeito pratica um ato que gera confiança justificada
na outra parte no sentido do não exercício de um direito, sendo que mais tarde vem
efetivamente a exercer esse direito). Outro exemplo importante é atinente à invocação de
nulidades.

Exemplo: no desenrolar de um processo, uma das partes indica um perito; suponha-


se que é possível a invocação de um impedimento específico contra esse perito, no
entanto a parte que tem esse direito colabora na peritagem. Mais tarde, invoca o
impedimento. A consequência deste venire contra factum proprium é a paralisação
do direito.

No fundo, a figura do abuso do direito tem uma grande plasticidade, podendo conduzir
a resultados diferentes de uma simples ilicitude. Como quase todas as válvulas de escape
do sistema, é muito comum que no dia a dia o abuso de direito seja invocado
inadequadamente e sem qualquer fundamento. No entanto, é uma figura técnica que visa
regular situações específicas, logo há pressupostos que têm de ser verificados para que
seja aplicada.

18/11/2019

A justificação da ilicitude
Causas gerais de exclusão de ilicitude

Há circunstâncias que permitem excluir a ilicitude, naquele caso concreto. Em


primeiro lugar, temos os casos em que um sujeito atua no exercício de um direito, seja
esse público ou privado. É evidente que as autoridades policiais podem deter um sujeito,
não estando com isso a violar um direito de personalidade. É possível que um sujeito
exerça um direito de forma lícita, embora decorra daí uma compressão jurídica da outra
parte. Vejamos o exemplo do penhor: exige-se a entrega das coisas por parte do autor ao
beneficiário – essa entrega é um elemento constitutivo do contrato. O beneficiário pode
recusar-se a devolver a coisa enquanto a obrigação não for cumprida, exercendo um
direito seu. Não há ilicitude.

Note-se ainda que a lei prevê casos de conflitos de direitos; em princípio, deve haver
uma cedência proporcional adequada quando os direitos forem de nível idêntico. Porém,

113
se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o direito que se deva
considerar superior nos termos do artigo 365º/2, CC.

Para além disto, que são causas de ordem geral de exclusão de ilicitude, temos um
conjunto de causas de natureza especial previstas na lei, que estudaremos de seguida.

Causas especiais de exclusão da ilicitude

a) Ação direta – artigo 336º, CC

Em termos genéricos, consiste no recurso à força própria para exercício de um direito


quando não for possível recorrer, em tempo útil, aos meios públicos de exercício desse
direito. Note-se que esta figura tem um carácter excecional, pois a lei não permite a
autotutela do direito - não permite o recurso à força própria. A regra é a da hétero-tutela
por recurso às forças públicas. Assim, o recurso à ação direta só é admissível em casos
muito limitados, daí que os pressupostos do artigo 336º sejam muito restritos:

1. Realização ou proteção de um direito próprio, não sendo possível recorrer à ação


direta para proteger um direito alheio;
2. Ação indispensável pela indisponibilidade de recurso em tempo útil aos meios
coercivos normais;
3. Só é admissível dentro do estritamente necessário, para se evitar o prejuízo;
4. O agente não pode sacrificar interesses superiores aos que visa proteger.

Repare-se que a ação direta pode consistir na destruição de um determinado bem (por
exemplo, quando um sujeito fura os pneus do automóvel de um assaltante para evitar a
sua fuga). Também pode ser usada para afastar um ato de resistência ilícita. Veremos que
um sujeito pode usar e mesmo destruir bens de outrem em estado de necessidade, atuando
licitamente. A resistência a esse ato será ilícita e, verificados os pressupostos, poder-se-á
recorrer à ação direta.

Exemplo: a casa de A está a arder, e B quer ir buscar um extintor à casa de C para


apagar o fogo. C impede-o. B pode recorrer à ação direta e empurrar C, afastando
a sua resistência, pois esta é ilícita.

Atuando um sujeito em ação direta, o ato é lícito e não há dever de indemnizar. Agora,
se o sujeito que recorrer à ação direta estava em erro sobre os pressupostos da mesma,
sendo que afinal não estavam preenchidos, é obrigado a indemnizar. Só deixa de o ser se
esse erro for desculpável (por exemplo, um sujeito pensa que pode recorrer à ação direta

114
porque desconhece que existe esquadra da polícia na rua ao lado. Se o sujeito não for
daquela zona, o erro é desculpável e ele não é obrigado a indemnizar).

Uma vez mais, reforce-se que a ação direta é admitida em casos muito limitados.

b) Legítima defesa – artigo 337º CC

Genericamente, consiste numa defesa contra uma agressão humana, seja contra o
próprio ou contra terceiro. Vejamos quais os seus pressupostos:

1. Agressão humana, não sendo necessário que sujeito seja imputável.


2. Agressão contrária à lei. A propósito disto, note-se que, verificados os
pressupostos, a legítima defesa é lícita, logo não pode haver legítima defesa contra
legítima defesa. Imagine-se que A agride B, e que B recorre à legítima defesa. Se
C, amigo de A, agredir B para defender A, não o estará a fazer licitamente e a sua
ação não configurará uma legítima defesa, pois para tal a agressão contra a qual
reage teria de ser ilícita. Isso não se verifica porque C reage contra B, que atua em
legítima defesa.
3. Atualidade da agressão. A agride B e foge. A partir do momento da fuga, a
agressão deixa de ser atual. Por quanto tempo perdura a agressão? – enquanto for
de recear a repetição do ataque. Se B fugiu para ir buscar uma arma, a agressão é
perdurante e continua a ser admissível a legítima defesa. O que não se permite é
um ato de retribuição. A partir do momento em que cessa a agressão, o lesado
terá de tutelar os seus direitos recorrendo aos meios coercivos de hétero-tutela.
4. Agressão contra a pessoa ou contra o património, não só relativamente ao agente,
mas também relativamente a terceiro.
5. Necessidade de reação. Se for possível o recurso aos meios de defesa públicos,
não há lugar a legítima defesa.
6. O prejuízo causado ao agressor não pode ser manifestamente superior ao que
resulta da agressão. Por exemplo, A vê B a tentar cortar as escovas do limpa-para-
brisas do seu carro. Poerá empurrá-lo e parar o seu ato, mas se lhe bater com um
pau e lhe causar lesões cerebrais já há, claramente, um excesso.

c) Estado de necessidade – artigo 339º, CC

É mais uma situação de exclusão da ilicitude, dado que se um sujeito atuar em


estado de necessidade não está a agir ilicitamente. Permite-se que o sujeito danifique uma

115
coisa alheia, com vista a evitar um dano superior (quer para o agente, quer para o terceiro).
Se na ação direta é possível recorrer à força própria para exercer um direito e na legítima
defesa é possível responder a uma agressão humana, aqui aquilo que se permite é a
danificação, destruição ou simples uso de uma coisa alheia de modo a evitar que se
verifique ou consume um perigo para o agente ou para o terceiro.

Exemplo: a casa de A está a arder, e A arromba a porta de B para tirar dela o


extintor e uma mangueira. É um ato lícito pois A está em estado de necessidade.
Ele danifica e usa uma coisa alheia para evitar a destruição de algo maior, que é a
sua casa.

Exemplo: A sofre um acidente e precisa de ser transportado para o hospital. B


utiliza para esse efeito o carro de C. Utiliza uma coisa alheia, para evitar a
consumação de um perigo, dano, para terceiro.

Exemplo: o cão de B ataca A, que para se defender dá com um pau no cão. Não
se trata de uma agressão humana, logo não é uma legitima defesa, mas antes um
estado de necessidade.

Quais os pressupostos do estado de necessidade?

1. Perigo atual de dano para o agente ou para terceiro.


2. Superioridade dos danos que se viriam a produzir para a pessoa ou património se não
houvesse a atuação em estado de necessidade. A ideia é que não se podem causar danos
superiores relativamente àqueles que se pretendiam evitar.
3. Não se podem atingir bens de natureza pessoal, apenas bens patrimoniais. Pode se
atingir, destruir ou danificar uma coisa alheia. Mas tem que ser uma coisa.

Verificados estes pressupostos é possível que um sujeito licitamente pratique este


ato de destruição, uso ou danificação de coisa alheia. Não significa, porém, que não
decorra para o agente a obrigação de indemnizar. A questão é que se trata de uma
responsabilidade diferente, por atos lícitos.

Quem é obrigado a indemnizar?

Em primeiro lugar, o autor do dano, quando o perigo se ficar a dever a um ato de sua
culpa exclusiva.

116
Exemplo: um sujeito faz uma fogueira no quintal, que leva a que depois haja um
incêndio. Por causa disso, vê-se obrigado a danificar a porta do vizinho para usar
o extintor. O ato em si é lícito, mas o sujeito terá de indemnizar o vizinho.

Também pode ser condenando a indemnizar aquele que tenha sido o beneficiário da
atuação.

Exemplo: a casa de A está a arder, e B arromba a porta de C para pegar no


extintor. Aqui quem deve ser condenado não é o autor da lesão, mas quem
beneficia da danificação da porta e do uso do extintor - A.

A lei, devidamente interpretada nos termos do artigo 339º/2, CC, permite que a
indemnização seja só imposta ao autor do dano, mas também ao beneficiário do dano ou
eventualmente a ambos, cumulativamente, se se provar que contribuíram para a situação
de perigo que gerou o dano.

d) Consentimento do lesado - artigo 340º, CC

Sempre que um sujeito for titular de um direito disponível, o exercício do direito ou


a própria renuncia a este está na disponibilidade do seu titular, logo não há ilicitude se o
titular consentir na lesão.

Por exemplo, um sujeito consente na publicação de fotografias, tiradas em sua casa


ou mesmo a si próprio, numa revista. Estamos a falar em direitos de personalidade, e
havendo consentimento, o ato em si não é ilícito.

Exemplo: A necessita de intervenção cirúrgica, a qual consente e que implica


que se atinja um direito de personalidade seu- o direito à integridade física. No
entanto, a intervenção é lícita, porque A consentiu.

Um sujeito pode também consentir que outro utilize uma coisa sua.

O consentimento não será válido, nos termos do artigo 340º CC, se for contrário à
disposição legal ou aos bons costumes – regras morais comuns de uma determinada
sociedade, num determinado momento e em determinado lugar. É preciso determinar
aquilo que são os bons costumes para verificar se o consentimento os atinge ou não.

O consentimento é dispensado, nos termos do artigo 340º/3 CC, se o agente não


estiver em condições de o prestar, nomeadamente se estiver inconsciente.
Num caso desses, e numa aplicação a este caso dos princípios da gestão de negócios, um

117
terceiro pode atuar desde que de acordo com o interesse e a vontade real ou presumível
do sujeito. Imagine-se que um sujeito está inconsciente e necessita de uma transfusão de
sangue. O médico, de acordo com a vontade presumível do sujeito e atuando no interesse
do mesmo, tem de realizar a transfusão, não sendo preciso que o paciente preste
consentimento. Porém, se o médico souber que o sujeito não quer receber transfusões de
sangue – que é a sua vontade real -, não a pode efetuar, mesmo que esta seja necessária
para o salvar. Em suma, o que acontece é que, muitas vezes o médico, atua de acordo com
a vontade presumível do sujeito. No entanto, quando conhecer a vontade real do sujeito,
é essa que tem de seguir.

No que toca aos menores, pode haver uma autorização judicial para suprir a ausência
de uma autorização parental.

É ainda pertinente referir os consentimentos tácitos. Verificam-se muito na prática


desportiva, por exemplo. É lícito que um jogador lesione outro, desde que sejam
observadas as regras do jogo e a atuação se encontre dentro das margens das mesmas.
Outra coisa é quando se extravasam essas margens - por exemplo, uma rasteira num jogo
de futebol que leva a que um jogador parta uma perna. Aí não há consentimento tácito –
só contam para esse efeito as eventuais lesões que possam ocorrer dentro das leis do jogo,
além de que depende sempre do caso concreto.

19/11/2019

5.1.3 Culpa
Noção; autonomia dos conceitos de ilicitude e culpa
A ilicitude é um juízo de carácter objetivo, sempre um facto em si sobre o qual a
lei faz um juízo negativo. A culpa não é isso, já que assenta no agente e na conduta deste.
O ato pode ser ilícito, mas o agente não ter culpa. É necessário que a sua conduta seja
efetivamente censurável, ou seja, que se confirme que nas circunstâncias do caso concreto
aquele agente podia e devia ter atuado de outra forma.

Assim, é importante perceber bem a diferença entre uma coisa e outra e ter
presente que no nosso sistema, que é muito analítico, há autonomia dos conceitos de culpa
e ilicitude e ambos são pressupostos da responsabilidade civil. No sistema francês, esta
distinção já não é tão clara.

Imputabilidade

118
A imputabilidade abrange dois elementos: um intelectual e um volitivo. O
elemento intelectual significa que o sujeito tem de estar em condições de valorar a sua
própria conduta, ou seja, tem de poder conhecer o desvalor da sua conduta, aquilo é
errado. Segundo o elemento volitivo, o sujeito tem de ter a possibilidade de se determinar
de acordo com a sua avaliação. São dois pressupostos cumulativos, e na falta de um deles
não há culpa.

A imputabilidade está prevista no artigo 488º, CC. Não responde aquele sujeito
que não estava em posição ou estava incapacitado de entender que quer aquele ato.
Acontece, por exemplo, com uma criança que pega num fósforo e provoca um incêndio,
ou que destrava um carro. Coisa diferente é se o agente culposamente que colocou naquele
estado, mas esse estado for transitório, como no caso do consumo de drogas, por exemplo.
Aqui, o agente responde, desde que se tenha colocado culposamente nessa posição. Se
porventura A beber rápido a bebida branca que B colocou no seu copo sem saber que não
era água, não tem culpa. Mas se beber demais ou misturar bebidas, tem culpa.

A lei estabelece algumas presunções de inimputabilidade. Desde logo,


menores de 7 anos presumem-se inimputáveis. Esta é, no entanto, uma presunção relativa,
na medida em que o menor pode ter mais do que 7 anos e demonstrar-se que é inimputável
(pode ser uma criança com uma capacidade menor do que a considerada normal naquela
idade); por outro lado, o menor pode ser precoce e ser considerado imputável antes de
atingir os 7 anos. Se for o menor a praticar o ato, e mantendo-se a presunção, há duas
hipóteses:

a) o vigilante responde, nos termos do artigo 491º, CC;

b) Se não se preencherem todos os requisitos da responsabilidade civil, o dano mantém-


se, sem ser indemnizado – sem reparação.

A lei permite, em certos casos, responsabilizar o inimputável em termos


atenuados. Pode ser imposto ao inimputável (o menor) o dever de indemnizar, em todo
ou em parte, se não for possível obter a indemnização do vigilante. Isto acontece por
razões de equidade, visto que um sujeito pode ser inimputável, mas ter património. Se o
inimputável satisfizer a obrigação nestes termos, ele vai ficar sub-rogado face ao
vigilante. O que não faz sentido é que o lesado não seja indemnizado, dado que não
ia conseguir obter a indemnização do vigilante. Porém, há limites. Essa indemnização
nunca pode levar a que o inimputável fique privado dos meios necessários a obter os

119
alimentos necessários ou então de prestá-los quando a isso estiver obrigado (artigo
489º/2, CC). Em princípio, a indemnização calcula-se pelo limite do dano, ou seja, não
pode ser superior a este. O inverso já não se verifica. Em certos casos, e atendendo à
culpa, a indemnização pode ficar abaixo do dano. Se um sujeito tiver atuado com mera
culpa, o juiz pode fixar uma indemnização que seja inferior ao dano – artigo 494º CC.

Sempre que houver coautoria, os autores respondem solidariamente face ao


lesado, na medida das respetivas culpas – artigo 497º, CC.

Como podemos ver, a culpa tem muito relevo na fixação do montante de


indemnização. Isso é ainda notável nos casos em que o lesado tenha contribuído ou
agravado o dano culposamente. A indemnização pode ser reduzida ou até mesmo
afastada.

Excecionalmente, há efetivamente casos em que a indemnização pode ficar acima


dos danos. Acontece no que diz respeito ao sinal, quando este tiver um carácter de fixação
prévio; ou no caso das indemnizações moratórias das obrigações pecuniárias, porque se
calculam em função dos juros de mora, cujos valores são relativamente elevados.

Modalidades da culpa – dolo e negligência


Dolo

Há um elemento que é pressuposto do dolo, que é a consciência da ilicitude. É necessário


que o agente saiba que o ato que está a praticar é ilícito. Se o agente não tiver consciência
da ilicitude e se esse facto for desculpável, ele atua sem culpa; se a falta de consciência
de ilicitude não for desculpável, o agente atua com dolo. Um professor deve saber que
aplicar corretivos físicos aos alunos é ilícito. Assim, se bater a um dos seus alunos e alegar
que não sabia que não podia, considera-se que atua com dolo, pois não é um erro
desculpável.

Verificado este elemento, há que distinguir 3 modalidades de dolo:

a) Dolo direto: o sujeito prefigura um resultado ilícito e quer esse mesmo resultado ilícito.
Exemplo - A prefigura a morte de B e dá-lhe um tiro para esse efeito.

b) Dolo necessário: o sujeito prefigura o resultado ilícito como efeito necessário da sua
conduta e, embora não o queira, sabe que ele se irá verificar. Exemplo - A coloca uma
bomba numa embaixada para atingir embaixador B; sabe que nessa altura lá estarão os

120
seguranças do embaixador, e que todos serão atingidos pela explosão. Relativamente aos
seguranças, configura-se um caso de dolo necessário. O agente prefigura a morte deles
como efeito certo da sua conduta, embora pretenda diretamente outra coisa (dolo direto
quanto a B).

c) Dolo eventual: o sujeito prefigura o resultado ilícito como possível, mas não como
necessário, e não confia que esse resultado não se irá produzir. Exemplo - A pretende
matar o embaixador com a bomba; sabe que a essa hora, a da explosão, poderá também
lá estar o secretário do embaixador e ser também atingida pela mesma. No entanto, não
tem a certeza que tal se venha a verificar. É-lhe indiferente se tal acontecer.

Negligência

Consiste sempre na falta da diligência normativamente exigível. Há a negligência


consciente e a inconsciente. A primeira significa que o sujeito prefigura o resultado ilícito
como possível, mas confia que esse resultado não se irá produzir (A coloca a bomba na
embaixada e sabe que é possível que a secretária do embaixador lá esteja, porém, violando
o cuidado que devia ter, confia que esse resultado não se produzirá); quanto à negligência
inconsciente, são os casos em que o agente, por falta de cuidado, não prefigura sequer o
facto ilícito (A não pensa sequer na possibilidade de o secretário do embaixador se
encontrar na embaixada).

25/11/2019
Nos termos da lei, o que determina se um sujeito se comporta diligentemente ou
negligentemente? Nos termos do artigo 487º/2, CC, a culpa apura-se em abstrato e
atendendo a dois elementos:

1. A diligência que um bom pai de família teria adotado. Trata-se de um critério


proveniente do direito romano. Significa em concreto que temos de considerar a atuação
de um bom especialista numa determinada área de atividade, portanto carece sempre de
concretização. Se estivermos a falar no dever de vigilância, trata-se de um vigilante
cuidadoso; se estivermos a falar de responsabilidade médica, trata-se de um médico, da
especialidade em apreço, cuidadoso. Um “bom pai de família” consiste, no fundo, num
bom operador de determinado ramo. Temos depois de ver o nível de diligência que lhe é
exigível, considerando-se dois elementos – o esforço e a competência técnica. Ambos
integram a diligência exigível. No que toca ao esforço, um “bom pai de família” será
então um bom operador de ramo que desenvolve os esforços exigíveis para a sua atividade

121
(por exemplo, um condutor que respeita as regras de trânsito e que conduz de forma atenta
e vigilante). Porém, um sujeito pode fazer um esforço muito grande e não ter o nível de
competência técnica para desempenhar competentemente aquela função. É o caso de um
médico que atue fora da sua área de especialidade, ou de um condutor com problemas de
visão que conduz à noite. Quando falamos em competência técnica, falamos de requisitos
técnicos necessários para o desenvolvimento de determinada atividade, sendo uma
questão que ultrapassa o âmbito do esforço.
2. Face ao caso concreto – é necessário verificar as condições em que o agente
exerce a sua atividade, no caso concreto. Suponha-se que um médico está a realizar
cirurgias seguidas há 24 horas, por causa de uma vaga de acidentes e de falta de médicos.
Se atendermos apenas ao critério anterior, a culpa ser-lhe-ia imputada. No entanto, as
circunstâncias do caso concreto fazem com que tal culpa não lhe seja atribuída. Dando
um exemplo mais extremo, imagine-se que um passageiro de um avião precisa de uma
cirurgia imediatamente, e que há um cirurgião a bordo que o opera dispondo apenas dos
precários meios que há no avião. Se o cirurgião usasse esses meios num hospital, seria
despedido por negligência, no entanto, nas circunstâncias descritas, não lhe é imputada
culpa.

A prova de culpa incumbe geralmente ao lesado, ao contrário do que sucede na


responsabilidade obrigacional (em que há presunção de culpa). Ainda assim, mesmo no
âmbito da responsabilidade extracontratual, porém, a lei estabelece uma série de casos de
presunção de culpa.

Casos de presunção de culpa


a) Presunção de culpa que incide sobre pessoas obrigadas á vigilância de
outrem – artigo 491º CC
As pessoas que, por força da lei ou de negócio jurídico, estão, em virtude da
incapacidade natural de outrem, obrigadas a um dever de vigilância, respondem pelos
danos causados pelo vigilado. A incapacidade natural está ligada à própria menoridade
ou a uma incapacidade de outra natureza. No que toca à menoridade, é evidente que, à
medida que um sujeito vai avançando na idade, os deveres dos pais se vão limitando, ao
ponto de quase se extinguirem. Os obrigados à vigilância só deixam de responder se
demonstrarem:

1) que cumpriram o seu dever de vigilância ou

122
2) que os danos se tinham produzido mesmo que o tivessem cumprido (relevância
negativa da causa virtual)

Temos aqui o incumprimento de um dever de vigilância, sendo que se traduz em


ilicitude, e temos também uma presunção de culpa relativamente ao dever de vigilância.
Temos ainda os danos causados pelo incapaz. Estabelecendo-se o nexo entre o ilícito e o
dano, o lesado tem direito a indemnização pelo obrigado à vigilância.

Da parte da jurisprudência, há quase uma objetivação desta responsabilidade, no


sentido em que, sendo o dano causado pelo menor, os pais respondem logo por violação
do dever de vigilância por presunção de culpa. Praticamente, nem se exige que se prove
que houve violação do dever de vigilância. De qualquer dos modos, é muito difícil afastar-
se a presunção de culpa.

Relativamente aos menores – o dever de vigilância face a uma criança de 5 anos não
é, evidentemente, o mesmo do que face a uma de 14. Praticamente se extingue. Imagine-
se que um pai deixa a chave da sua mota acessível ao filho de 15 anos, e que o filho
conduz a mota ilicitamente sem que o pai saiba, causando um acidente. Haverá
incumprimento do dever de vigilância por parte do pai? - depende do caso concreto. Se o
jovem tem uma obsessão por motas e estava à espera da primeira oportunidade para andar
de mota, tendo já havido tentativas, pode considerar-se que sim. Porém, em situações
normais, aos 15 anos uma pessoa já tem autodeterminação e responsabilidade, e supõe-se
que não haverá necessidade de comportamentos extremos por parte dos pais (como
esconder uma chave). No entanto, este caso aconteceu e o tribunal entendeu que o pai
violou o dever de vigilância.

Suponha-se que se considera que a responsabilidade é do menor. Ele responde, mas


terá meios para efetivar a responsabilidade? Na maioria dos casos não, por isso é que os
tribunais são tão exigentes no que toca a este assunto (no entendimento do professor).
Talvez seja o único meio de assegurar as garantias do lesado.

b) Danos causados por edifícios ou outras obras – artigo 492º CC


Podem ocorrer em várias situações, nomeadamente quando uma varanda cai sobre
uma pessoa ou uma bancada se desmorona, por exemplo. O proprietário ou possuidor de
um edifício ou de uma outra obra responde se ela ruir no todo ou em parte, por vício de
construção ou defeito de conservação.

123
Em primeiro lugar temos um edifício que pode ruir no todo ou em parte. No caso da
varanda, um edifício ruiu parcialmente; já com “outra obra” pretende-se referir a uma
construção fixa ao prédio ou ao solo, como muros, viadutos, pontes, canais, mas também
andaimes, antenas e caleiras. Já não se abrangem coisas acessórias, como um vaso, por
exemplo. O elemento determinante aqui é a ligação fixa.

O proprietário do edifício ou da obra só deixa de responder se demonstrar que agiu


sem culpa ou que, mesmo que tivesse atuado diligentemente, não se teriam evitado os
danos – caso de relevância negativa da causa virtual.

Coloca-se a questão de saber se o lesado que tem de demonstrar os pressupostos da


responsabilidade civil (exceto quando haja presunção de culpa) tem também de
demonstrar o vício ou defeito de construção, só depois havendo presunção de culpa. O
entendimento genérico é que sim. Todavia, quer MENEZES LEITÃO quer o Professor
entendem que, face à ruína, não é necessário provar o vício ou defeito de construção – a
presunção abrangeria os dois elementos. Caso contrário, a posição do lesado ficaria mais
débil, dada a dificuldade da prova do defeito de construção. Além disso, a própria ruína
o indicia.

Temos os casos em que a ruína se deve a defeito de conservação. Quando assim for,
quem responde é aquele obrigado à conservação. O dever de conservação pode decorrer
da lei ou de negócio jurídico. Isto não significa que não possa haver, simultaneamente,
responsabilidade por parte do proprietário na escolha do vigilante, mas já se trata de outra
responsabilidade (responsabilidade solidária face ao lesado, mas em termos diferentes)

Note-se que pode haver culpa do arquiteto ou do engenheiro na construção do edifício.


Pelo facto de o haver, não se afasta necessariamente a presunção de culpa do dono do
edifício ou outra obra, podendo este responder solidariamente face a terceiros e depois
haver responsabilidade interna na medida das respetivas culpas.

Relevância negativa da causa virtual

Em certos casos, como forma de afastar a responsabilidade, recorre-se à relevância


negativa da causa virtual. Para compreendermos isto, é pertinente distinguir a causa
virtual da causa real.

A causa real é a que efetivamente produziu o dano, como por exemplo a queda de
uma antena que provoca uma lesão craniana em A. A causa virtual é aquela que teria

124
produzido o dano não fosse a causa real. Suponha-se que cai uma antena de um prédio
sobre um automóvel parado na rua (causa real), todavia, se isso não se tivesse verificado,
uma hora depois um terramoto teria levado à queda da antena e obter-se-ia o mesmo
resultado (causa virtual). Também a título de exemplo, podemos imaginar que A
envenena B, em termos tais que é seguro que B morrerá dentro de 3 horas. Contudo, B
morre antes disso porque C lhe dá um tiro. O tiro é a causa real da morte, porém o
envenenamento é a causa virtual.

A existência de uma causa virtual gera duas questões, tendo a primeira a ver com a
responsabilização do sujeito (relevância positiva) e a segunda com a possibilidade de
afastar a responsabilidade do autor da causa real. Essa possibilidade é que configura a
relevância negativa da causa virtual. No caso da antena e do terramoto, ao conceder-se
uma relevância negativa à causa virtual afastava-se a responsabilidade do dono do edifício
por causa da causa virtual (terramoto). Configura um caso excecional de afastamento de
responsabilidade. Assim, a causa virtual só releva nos casos em que está prevista na lei,
pois as normas excecionais não são suscetíveis de aplicação analógica.

26/11/2019

c) Danos causados por coisas, animais e atividades perigosas – artigo 493º/2, CC


Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com a obrigação de vigiar, responde
pelos danos que esta(s) causar(em). Normalmente isto é relevante quando se trate de
coisas perigosas (por exemplo, depósitos de combustível, árvores secas, elevadores,
máquinas industriais, armas, venenos, balizas, etc). Se houver danos, o obrigado à
vigilância tem obrigação de indemnizar.

Aquele que estiver obrigado a vigiar um animal, responde pelos danos causados
pelo mesmo animal. É óbvio que esta responsabilidade depende da perigosidade dos
próprios animais – um Hamster não implica, em princípio, o mesmo dever de vigilância
que um cavalo. Mas se o animal causar danos, há presunção de culpa. Pode acontecer,
por exemplo, que um sujeito esteja a passear com o seu cão e o animal morda alguém.
Nesta situação, há uma presunção de culpa de que o dono não cumpriu o dever de
vigilância.

O obrigado à vigilância não é necessariamente o dono – um tratador de animais


ou mesmo uma pessoa contratada para passear um cão está também obrigado à vigilância.
O dono do animal também é responsável pelo risco. Pode haver cumulação de

125
responsabilidades – a presunção de culpa não afasta a responsabilidade pelo risco do
artigo 502º, CC.

Nos termos do artigo 570º/1, CC, a presunção de culpa do obrigado à vigilância é


afastada pela culpa do lesado. Quer isto dizer que se for o lesado o culpado pelo ataque
do animal, porque o provocou, por exemplo, o dono do cão do exemplo dado já não está
obrigado a indemnizar. Já se tiver havido uma atuação de terceiro que tenha provocado o
animal, essa atuação de terceiro não afasta a presunção de culpa. Face ao lesado,
respondem os dois solidariamente.

No fundo, no que toca à responsabilidade de pessoas obrigadas à vigilância de


animais, só pode ser afastada ilidindo a presunção de culpa ou demostrando-se que,
mesmo com a diligência indevida, os danos se teriam verificado (relevância negativa da
causa virtual)

Temos depois os casos do artigo 493º/2, CC, que estabelecem uma presunção de
culpa que recai sobre sujeitos que exerçam atividades perigosas. Temos como
exemplo a manipulação de líquidos explosivos, o transporte de combustível, o transporte
de matérias perigosas, etc. Sendo que a atividade pode ser perigosa por si mesma ou pelos
meios utilizados, a responsabilidade só pode ser afastada se se demonstrar que o lesante
teve todas as diligências exigidas pelas circunstâncias, com vista a prevenir os danos. Não
há relevância negativa da causa virtual nestes casos, e há uma carga probatória pesada
que recai sobre o obrigado à indemnização (lesante).

Exemplo 1 - Exploração de autoestradas por parte dos concessionários: muitas


vezes, há ocorrência de acidentes na autoestrada, em virtude da entrada de
animais para a autoestrada. Isto pode fazer com que os carros embatam nos
animais, ou que se despistem ao tentar desviarem-se deles. Há uma vedação com
rede na autoestrada, porém os animais conseguem passar a rede, que não estaria
devidamente segura. A questão que se coloca é se haveria responsabilidade do
acidente por parte da autoestrada. E havendo responsabilidade, a quem
cabe a prova da culpa? Numa situação destas, é fulcral saber se há
presunção de culpa. Se não existir, o que sucede é que é o lesado que terá de
demonstrar a culpa da concessionária na entrada do animal para a autoestrada;
terá de demonstrar que há uma má conservação da rede num determinado sítio,
por onde o animal se infiltrou. Por outro lado, pode sempre recorrer-se ao

126
argumento de que os animais podiam ter saído das viaturas onde eram
transportados nas estações de combustível. Deste modo, a empresa
concessionária não teria culpa nenhuma. É uma prova difícil de se conseguir.
Foi este panorama que levantou a discussão acerca de se há não presunção de
culpa, que por sua vez implicaria a exploração das autoestradas como atividade
perigosa.

O legislador recorreu, no que respeita a esta matéria, a conceitos


indeterminados, e não fez o elenco das atividades e coisas perigosas. Limitou-se
a dizer que elas o eram, em si mesmas ou pelos meios utilizados. Conferiu-se,
deste modo, uma abertura ao Código para que possa ser preenchido pela
evolução da vida e da sociedade. O que é preciso fazer é aferir casuisticamente
se determinada atividade ou coisa se insere nesses conceitos, que são
indeterminados e amplos. Para isso, temos de ter em consideração os elementos
histórico, sistemático e a teleológicos da norma. Qual é a finalidade desta norma?
Trata-se de uma presunção de culpa, ou seja, no âmbito da responsabilidade civil
extracontratual, tem o intuito de facilitar a prova do lesado em determinados
casos. Para isso, selecionaram-se determinadas circunstâncias que devem fazer
inverter esses ónus. Uma autoestrada serve para os carros circularem depressa
(até 120 Km/h), facto que acarreta uma certa perigosidade. Há outros fatores de
perigo que estão ligados ao facto de os carros andarem rapidamente. A
autoestrada em si comporta perigos específicos, dado os animais entrarem na
autoestrada onde circulam carros a alta velocidade e o condutor poder facilmente
perder o controlo. O concessionário da autoestrada tem deveres (destacando-se
o dever de vigilância e proteção) cujo objetivo é evitar que isso aconteça.

Considerando tudo o que foi dito, pode incluir-se a exploração da autoestrada


como atividade perigosa no âmbito do artigo 493º/1, CC? Pode sim, dado os
riscos que comporta. A questão foi levada ao STJ e foi muito discutida. Em
última instância, o que houve foi uma alteração da lei pelo legislador, que a
passou a considerar abrangida pelo âmbito do artigo em apreço.

Exemplo 2 - condução sob efeito de álcool: Discutiu-se também, durante muito


tempo, se a condução sob o efeito de álcool era uma atividade perigosa abrangida
pelo artigo 493º/3, CC. Há um assento do STJ que entende que não é; o

127
entendimento é que esta responsabilidade já estaria salvaguardada pela
responsabilidade pelo risco, nos termos dos artigos 503ºss, CC. A
responsabilidade pelo risco é menos exigente em termos de requisitos,
dispensando a culpa. Não seria, portanto, necessário incluir a condução sob
efeito de álcool no artigo 493º/3, CC. Isto é essencialmente verdade, todavia o
que se passa é que a responsabilidade pelo risco tem limites patrimoniais
impostos pelo artigo 508º CC. À data, estes limites eram relativamente baixos,
portanto, naquela altura, a decisão não foi a melhor; no entanto, atualmente, estes
limites são extremamente amplos, pelo que a posição do lesado estará
efetivamente tutelada nos termos da responsabilidade pelo risco automóvel dos
artigos 503ºss CC.

Exemplo 3 - atividade de um dentista: se um dentista furasse ou arrancasse o


dente errado, recairia sobre ele alguma culpa? Os meios utilizados são perigosos
(brocas, parafusos), implicando um perigo para terceiro. Nesse sentido, a
atividade de um dentista é considerada perigosa.

128
03/12/2019

5.1.4 – O dano

O dano consiste no prejuízo ou na perda causada em bens jurídicos legalmente


tutelados, que tenham caráter patrimonial ou não.

A primeira grande distinção a fazer é entre o dano real e o dano patrimonial. O dano
real diz respeito ao prejuízo que o lesado sofreu diretamente nos bens em si próprios (ex:
se um veículo bater noutro, o dano em sentido real é a destruição do veículo). O dano
patrimonial é o reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado.
O dano patrimonial mede-se, em princípio, por uma diferença: a diferença entre a
situação real atual do lesado e a situação hipotética em que ele se encontraria, se não fosse
a lesão. Este dano abrange não só o dano emergente, que compreende o prejuízo causado
nos bens ou direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão, traduzindo-se
na diminuição do ativo, como o lucro cessante, que abrange os benefícios que o lesado
deixou de obter por causa do facto ilícito, mas a que ainda não tinha direito à data da
lesão, não fazendo parte do seu património. Ambos são indemnizáveis de acordo com o
art.564º nº1.

Como se faz a avaliação do dano?

A avaliação em abstrato do dano tem que ver com o valor de mercado do bem em
termos objetivos ou as despesas que, normalmente, se fariam para uma determinada
aquisição. A avaliação em concreto do dano tem que ver com o reflexo deste dano no
património do sujeito. A este propósito coloca-se a questão de saber se tendo sido
danificada uma coisa usada, o lesante terá de entregar uma coisa nova. Por exemplo, ao
destruir um casaco com alguns anos, há a questão de saber se o lesante teria que comprar
um casaco novo para entregar e, caso comprasse, se teria direito à diferença, ou então não
teria direito a nada e apenas tinha que entregar o novo. Em termos patrimoniais, o sujeito
só tem direito a uma coisa com valor idêntico, daí que, em princípio, ele terá direito a
esse valor. Apenas em casos excecionais e muito específicos, é que se pode exigir a
entrega de um bem novo, com um valor superior àquele que o bem danificado ou

129
destruído tinha. Quando tal suceda não é possível determinar, em termos genéricos, qual
o valor que deverá ser entregue pelo lesado ao lesante. O professor Ribeiro de Faria
resolve a questão, que não pode ser dada em termos genéricos, deixando-a a cargo da boa
fé e da equidade. Temos a destruição de um bem que é um bem usado, a questão que se
coloca é se terá que ser entregue um bem com valor idêntico ou um bem novo com valor
superior. Em princípio, terá que ser entregue um bem com valor idêntico, porém, quando
não seja possível fazê-lo aquilo que os tribunais têm entendido é que a restauração natural
não é possível e, portanto, a indemnização calcula-se em termos patrimoniais, por
diferença de património, ou seja, pelo valor patrimonial do bem lesado. O que Ribeiro de
Faria sustenta é que, em certos casos, pode ser necessário, ainda assim, entregar um bem
novo. A questão é saber se há direito à compensação do lesante pela diferença de valor,
que terá que ser decidida mais tarde à luz da boa fé. Em princípio, na destruição de um
automóvel, há um conjunto de automóveis em 2ª mão, ou então podemos entregar o valor
do automóvel à pessoa, sendo que esta poderá depois com o dinheiro recebido comprar
um carro semelhante.

Devemos distinguir:

 Danos patrimoniais e danos não patrimoniais/morais: os primeiros


correspondem aos prejuízos que, sendo suscetíveis de avaliação pecuniária,
podem ser reparados ou indemnizados. A regra é a da restauração natural,
contudo não sendo esta possível, insuficiente ou demasiado onerosa, passámos
para a restauração por equivalente. Por outro lado, os danos não patrimoniais
são insuscetíveis de serem indemnizados porque atingem bens não
patrimoniais (dores físicas, sofrimento moral, prestígio), não sendo possível
retirar o dano. São meramente compensáveis nos termos do art.496º. Nesta
relação entre danos patrimoniais e não patrimoniais, podemos ter a lesão de um
bem não patrimonial que, todavia, se reflete no património do lesado, ou seja,
um dano patrimonial indireto. Suponhamos que é atingido o crédito de um
determinado comerciante ou de um profissional liberal. Se daqui decorrer uma
consequente diminuição da clientela, esta diminuição em si é um dano
patrimonial indireto, porque começa com um dano de natureza não patrimonial
que, posteriormente, gera um dano patrimonial.

130
 Danos diretos e danos indiretos: na categoria do dano cabem não só os danos
diretos, que são os efeitos imediatos do facto ilícito no património do lesado,
mas também os danos indiretos, que em virtude do dano direto têm lugar no
património do lesado. Ex: A por descuido destrói o vidro do estabelecimento
de B. Devido a isto há um conjunto de assaltantes que acabam por furtar parte
da mercadoria. O dano patrimonial direto é o vidro partido, já o dano
patrimonial indireto é o furto da mercadoria.

 Danos resultantes do defeito da coisa e danos subsequentes provocados


por esse defeito: no que diz respeito ao primeiro caso, por exemplo, é vendida
uma mercadoria defeituosa e, por esta razão, o comprador já não a vai puder
vender. Já no segundo caso, trata-se de danos causados no património existente
do lesado por essa coisa defeituosa. Por exemplo, é vendido gado que está
infetado. Esse gado acaba por contaminar os restantes animais do credor.
Temos aqui danos decorrentes do defeito da coisa, que atingem o património
existente do próprio credor.

Em termos históricos, inicialmente, os danos não patrimoniais não eram reparados.


Entendia-se que não sendo o bem pecuniariamente avaliável não podia ser indemnizado.
Para além disto, a prova do dano moral seria especialmente difícil. Outro argumento com
caráter imoral era de se compensar em dinheiro bens de natureza não patrimonial. A
verdade é que estes argumentos eram bastante frágeis. É claro que o dano não patrimonial
não pode ser indemnizado, mas pode ser compensado em termos monetários. O CC veio
admitir a compensação dos danos não patrimoniais com grande amplitude. São
compensáveis desde que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, ou seja, tem que
ser um dano grave e não pode ser um simples “incómodo” da vida. Na aferição destes
danos devemos recorrer a um critério objetivo. Em 2017, o legislador introduziu o
art.493º-A que diz respeito ao caso de morte de um animal, mas apenas se se tratar de um
animal de companhia. Nestes casos, seja em caso de morte ou lesão grave o proprietário
do animal tem direito a uma indemnização adequada pelo desgosto e esta indemnização
deverá ser fixada com base na equidade, atendendo às circunstâncias do caso concreto.

131
Há uma indemnização pelos danos não patrimoniais que, em rigor, é uma
compensação. Este montante deverá ser fixado nos termos do art.496º nº3 e art.494º. Este
último permite a fixação de uma indemnização em que é possível que o julgador atenda
em concreto às circunstâncias económicas, tanto do lesante, como do lesado. Significará
que a compensação pode ser mais elevada, se o lesante tiver mais bens patrimoniais. Com
o decurso do tempo a indemnização por danos não patrimoniais tem vindo a subir de
valor.

09/12/2019

A ideia de sofrimento psicológico não era uma ideia tão clara há uns anos, eram aspetos
pouco revelados. A depressão como doença, por exemplo, não era conhecida. Hoje em
dia, há um conjunto de conhecimentos de caráter médicos que nos ajudam a compreender
que este sofrimento deve ser indemnizado. Por exemplo, o marido vê a mulher ser
atropelada, o que o leva a cair numa forte depressão. Esse sofrimento tem de ser
compensado. Hoje o direito vê o sofrimento de forma diferente, porque a nossa cultura
também evolui nesse sentido. O Direito tem de ser aberto à realidade sociológica no
momento, bem como à ciência e, em especial à ciência médica, para perceber os valores
a consagrar na lei. Neste sentido, em 2017, foi consagrado na indemnização do sofrimento
que uma pessoa sofre pela morte de um animal, ou se este ficar lesado. Há uns anos era
possível indemnizar, mas não havia uma indemnização específica, entrava no âmbito
art.496º, possivelmente. Isto tem que ver com a grande sensibilidade da nossa época aos
animais que, por diversas razões que não existiam no passado, têm uma relevância maior
na vida dos sujeitos.

A lei pretende atender, no que diz respeito aos danos não patrimoniais, ao grau de
culpabilidade (sendo mais severo quando o grau de culpabilidade for superior), bem
como atender às circunstâncias económicas do lesante e do lesado, ou seja, pretende
equilibrar a compensação às circunstâncias económicas de ambas as partes.
O Dr. Antunes Varela defendeu que a responsabilidade por danos não patrimoniais se
limitava aos casos de responsabilidade extracontratual, mas esta ideia é ultrapassada. Não
há nenhuma razão para não aplicar a compensação por danos patrimoniais à
responsabilidade contratual. Ex (1): uma senhora que vai casar no sábado, encomenda um
vestido de noiva, pelo que o vestido deve ser-lhe entregue na sexta. Porém, o seu alfaiate

132
atrasa-se e, no dia do casamento, a senhora não tem vestido de noiva. Isto gera danos não
patrimoniais, porque lhe estraga o casamento e, contudo, há responsabilidade contratual.
Ex (2): A contrata com B, cirurgião, para a realização de uma operação. A operação fica
mal realizada. A sofre dores e tem de ser operado outra vez. Há aqui danos não
patrimoniais que resultam também de um incumprimento contratual.

O dano da morte

O dano da morte é o dano pelo qual o sujeito perde a vida, o qual está previsto no
art.496º nº2.
Durante muito tempo, entendeu-se que o dano da morte não seria indemnizável, visto
que o sujeito, no momento em que morre, perde a personalidade jurídica (art.68º CC) e,
com efeito, não pode adquirir direitos. Portanto, se o sofrimento prévio à morte seria
indemnizável por danos não patrimoniais, o dano da perda da vida em si já não seria.

O direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto e em primeiro


lugar, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros
descendentes. Na falta destes, aos pais ou outros ascendentes e, por último, se não os
houver, aos irmãos ou sobrinhos que os representem. Esta norma foi complementada com
o nº3 para incluir as situações de união de facto. Portanto, em primeira linha, caso a
pessoa não esteja casada, mas viva em união de facto, esse direito cabe, em conjunto, à
pessoa que vivia em união de facto com essa, e aos filhos ou outros descendentes.

Em suma, toda a questão radica em saber se o direito de indemnização a que o art.496º


nº2 se refere é um direito que radica na vítima, sendo depois transmitido, por via
sucessória, para as pessoas nele indicadas; ou se, diferentemente, a morte da vítima é, em
si, um facto suscetível de gerar diretamente um dano moral nessas mesmas pessoas, sendo
indemnizadas pelo sofrimento que sentiram. Quanto a esta questão, há essencialmente
duas posições doutrinais:

 Aqueles que consideram que o direito pelo dano da morte não poderia radicar
na vítima e depois transferir-se, por via sucessória, para os seus descendentes.
Acreditavam que, a partir do momento em que o sujeito perdia a sua

133
personalidade jurídica, não poderia adquirir nada. Só existiria indemnização
para os efeitos do dano da morte nos familiares que lhe eram mais próximos,
que são os previstos nos números 2/3 do art.496º.

 Almeida Costa e Menezes Cordeiro: a posição que sustenta a impossibilidade


da indemnização pelo facto de um sujeito perder a personalidade jurídica, em
si conceitualista, leva a que tenhamos um sistema de responsabilidade civil que
permite indemnizar todo o tipo de danos, mas que depois não permite
indemnizar o dano máximo, a perda de vida.

Segundo o prof., a primeira posição é inconsistente em termos valorativos. A morte


deve, com efeito, ser indemnizada como dano autónomo, o qual se transmite depois aos
descendentes por via das regras sucessórias, neste caso, por aplicação do art.2024º CC.
O dano da morte não é, então, mais do que um crédito indemnizatório que se transmite
por via sucessória. Os números 2 e 3 do art.496º trata-se de um reflexo do dano da morte,
isto é, do sofrimento causado aos familiares mais próximos pela morte da pessoa.

O art.496º nº4 permite cobrir o sofrimento da vítima antes da sua morte, por um dano
que resultará apenas depois da morte em si. Ex: A é atropelado e vai para o hospital. São
realizadas intervenções cirúrgicas que lhe causam sofrimento. A acaba por morrer. Temos
danos diferentes: o sofrimento prévio à morte e, só depois, a perda da vida. Além disso,
permite ainda indemnizar os danos sofridos pelos familiares previstos nos nº2/3 do
mesmo artigo pelo sofrimento que estes experimentam em virtude do sofrimento que
experimenta a própria vítima.

Há ainda os casos em que o sujeito não morre, mas fica com uma deficiência
incapacitante para o resto da vida (ex: A fica paraplégico). Geralmente, essa pessoa acaba
por ter de ficar a cargo de outra, normalmente os próprios pais. Essa pessoa receberá uma
indemnização por danos patrimoniais e por danos não patrimoniais, que poderá ser fixada
em termos de renda. Contudo, a questão que se coloca é se a pessoa que fica a tomar conta
do sujeito, que muitas vezes tem que se desempregar, tem direito a ser indemnizada. A
doutrina refere-se a esta situação como um dano por ricochete. Existem danos não
patrimoniais quanto a esta pessoa? Isto é, tem esta pessoa direito a ser indemnizada?

134
Evidentemente que, é possível haver um dano psicológico por ver uma pessoa a sofrer. A
questão é, se esse dano, em si, tem cobertura em termos indemnizatórios. As normas do
nº2/3 não são suscetíveis de aplicação analógica, pois são excecionais e, como tal, não
cobrem estes danos. Todavia, segundo o entendimento pessoal do prof., não parece que
estas situações estejam afastadas dos danos patrimoniais do art.496º nº1, embora se possa
dizer que este cobre apenas os danos sofridos pelo próprio lesado, não por outros. Mesmo
seguindo este entendimento, o prof. crê que é possível interpretar o art.496º nº2/3 no
sentido de que, naqueles casos em que não se verificou a morte da vítima, mas há um
dano de uma enorme gravidade para a mesma com um reflexo definitivo na sua vida
futura e, tendo em conta, que isso implicará também a necessidade de um familiar
próximo o acompanhar, sofrendo esse familiar danos não patrimoniais graves pelo
sofrimento que experimenta a ver outra pessoa muito próxima a sofrer, nestas
circunstâncias, bastante restritas por sinal, há lugar a indemnização.

Nota 1: Art.496º nº2: danos sofridos por aquelas pessoas que lidam com a morte do
sujeito (ex: o pai morre, o filho sofre com isso. Há um sofrimento pessoal do filho, além
do sofrimento do pai, que morre. O filho é indemnizado pelo seu sofrimento pessoal e,
por via sucessória, pelo facto da morte do pai). Nº4: danos sofridos antes da morte. Cabe
neste artigo o caso da pessoa que sabe que vai morrer. Há aqui um dano, uma agonia
passada por quem está à espera da morte.

Nota 2: O prof. referiu ainda o dano pela perda de chance que não será objeto de
avaliação em exame. A Dra. Rute Pedro escreveu tese de mestrado sobre isto.
Ex (1): B morre. O seu médico, negligentemente, não lhe fez um exame que, se tivesse
realizado, a hipótese de sobrevivência daquele sujeito teria aumentado substancialmente.
Não é certo, contudo, que mesmo com o exame realizado, B tivesse sobrevivido. Porém,
a não realização do mesmo, certamente, levou à diminuição da possibilidade de que ele
sobrevivesse. Poderá B (neste caso os seus familiares) ser indemnizado?
Ex (2): Um advogado de C não interpõe uma ação dentro do prazo requerido
legalmente. Não era certo que, interpondo-a, C viesse a ganhar a causa, mas ao não
interpor, diminuiu as chances de tal.
Foi, basicamente, à volta disto que se desenvolveu a teoria da perda de chance. Mesmo
que fosse aceite esta posição, a indemnização nunca seria pela totalidade (totalidade do
ganho de causa, p.ex.). Em segundo lugar, não há nenhum bem que tenha sido atingido,

135
daí que a doutrina diga que é necessário que exista já uma vantagem económica radicada
no sujeito.
Aquilo que os juízes fazem muitas vezes é um chamado “julgamento entre
julgamentos”. No caso do advogado, eles procuram ver, de acordo com aquele caso, qual
seria a probabilidade de o sujeito ter sucesso na ação. Desta forma, procuram algo
substancial para indemnizar. A jurisprudência vai aceitando esta hipótese, mas apenas
quando haja uma vantagem patrimonial já bastante consolidada na esfera do lesado. A
indemnização, nesse caso, terá um caráter proporcional a isso.

5.1.5. - Nexo de causalidade entre o facto e o dano

Tem sempre obrigação de reparar um dano aquele o causa, ou seja, o lesante. Por
sua vez, a reparação deve operar-se por via de uma reconstituição (não do estado anterior
à lesão, mas sim do estado em que o lesado se encontraria não fosse a lesão).
As questões que se colocam são: como é que se delimitam os danos decorrentes do
facto ilícito culposo que o lesante terá de indemnizar e em que moldes se fará a sua
reparação. Ex: A atropela B e, em consequência do atropelamento, B vai parar ao
hospital. Por erro médico, é dada a B uma transfusão de sangue errada que o infeta com
uma doença contagiosa. Doente, B acaba por ser conduzido a casa por uma ambulância
do hospital. Pelo caminho, a ambulância é atingida por um camião, que leva B a ficar sem
uma perna. Face a estas circunstâncias, a mulher de B divorcia-se dele. Desesperado, B
atira-se do andar de casa e morre. Deixa dois filhos menores. Temos vários danos (cadeia
causal). Responderá A por todos?
É a esta a questão que visa dar resposta o nexo de causalidade, ou seja, quais os danos
pelos quais terá de responder. Para este efeito foram-se desenvolvendo várias teorias:

 Teoria da equivalência das condições (ou “teoria da conditio sine qua non”)
– serão causa do dano todas as circunstâncias cuja falta determinaria a não
produção deste. Ou seja, seria causa a circunstância necessária para a produção
desse mesmo dano, em termos tais que, se esta não existisse, o dano não se
verificaria. Daí que, se não pudermos retirar nenhum dos elementos do
processo causal sem perda do efeito do resultado, então é porque cada um deles
é causa.

136
Contudo, esta é uma posição demasiado extensa e que levaria a uma
indemnização por demasiados danos, não podendo ser aceite. No exemplo
acima, nos termos desta teoria, A seria culpado judicialmente pelo suicídio de
B.

Posto isto, procurou-se circunscrever a teoria da equivalência das condições:

 Teorias seletivas:

o Teoria da última condição/condição mais próxima do dano: seria causa


do dano a condição mais próxima do mesmo;
o Teoria da condição mais eficiente: seria causa do dano aquela que fosse
mais eficaz para a sua produção.

Qualquer uma destas teorias acabou por ser rejeitada, sendo consideradas insuficientes.
Tornou-se, então, necessário analisar a noção de causa num sentido normativo e não
simplesmente num sentido naturalístico. Foi este pensamento que deu lugar à teoria da
causalidade adequada, sendo hoje genericamente adotada. O ponto de vista a partir do
qual se há de escolher a noção de causa, será assim, um ponto de vista jurídico.

Esta teoria parte de duas premissas:

 Causalidade em concreto – o facto que se pretende como causa de um dano


tem de ser, no caso concreto, condição necessária/“sine qua non” desse dano,
isto é, aquela causa tem de ter provocado aquele dano em termos tais que, se
tivesse sido reiterada, o dano não se teria produzido. É preciso demonstrar em
concreto que foi aquele facto que provocou aquele dano ou aquela sequência
de danos. A causa adequada é, pois, uma condição necessária.

Nota: Cabe ao credor a prova de que o dano não teria tido lugar sem o facto que dá origem
à indemnização (cabe-lhe provar a condição “sine qua non”). Por outro lado, caberá à
outra parte a prova de que aquele facto, pela sua natureza geral, era de todo indiferente
para a produção do dano, o qual só surgiu devido a circunstâncias completamente
extraordinárias.

137
Todavia, é também necessário que se possa fazer um juízo de causalidade em abstrato:

 Juízo de adequação – uma condição só é juridicamente causa de um dano


quando seja adequada (em abstrato) para a produção desse dano.

Acontece que, há condições que, se é certo que são condições necessárias para um
dado resultado, não são, em abstrato, suas causas adequadas.

Quando é que uma determinada causa é, em abstrato, causa adequada de um


determinado resultado? Como se faz este juízo de adequação?

Como resposta surgiram duas formulações:

 Formulação positiva (ou de Larenz) – é causa adequada de um resultado toda a


condição apropriada para a sua produção, segundo um critério de normalidade,
isto é, de regular curso das coisas. Deixa de ser um resultado adequado quando o
dano se vem a produzir devido a circunstâncias especialmente particulares, de
todo estranhas e improváveis ao regular (normal) curso das coisas. Ex: A dispara
uma espingarda de pressão de ar e, com falta de cuidado, atinge B. Atendendo ao
tipo de arma e à distância que A se encontrava de B, aquele tiro é adequado a ferir,
embora ligeiramente (a não ser que atinja um olho, por exemplo). Todavia, B tinha
um problema de coração, pelo que morreu de susto com o impacto. Aqui já não
estamos no âmbito do regular curso das coisas, estamos a falar de uma
circunstância excecional, não abrangida pela causa adequada em abstrato, nos
termos da formulação positiva.

 Formulação negativa (ou de Enneccerus Lehmann) – a inadequação de uma dada


causa para um determinado resultado deriva da sua total indiferença para a
produção do dano, que só ocorreu devido a circunstâncias extraordinárias. Esta
hipótese, muito mais ampla que a anterior, já permite cobrir os casos em que o
dano se tenha verificado devido a características específicas e particulares do
lesado. Portanto, permite abranger a hipótese anterior de A e de B (sujeito que
morre apesar de, de acordo um juízo de normalidade, esse resultado não ser

138
provável ou previsível mediante a causa). De acordo com esta formulação,
também será causa adequada da morte de uma pessoa o ferimento por via do qual
ela foi internada num hospital, onde apanhou uma gripe que redundou na infeção
pulmonar que a vitimou.

Se nos fixarmos na formulação positiva, temos ainda um segundo ponto a considerar,


que tem que ver com as circunstâncias em que devemos considerar um juízo de
adequação. Há quem entenda que no juízo abstrato de adequação se devem incluir apenas
as circunstâncias reconhecíveis à data do facto por um observador experiente, mas
que, além dessas, devem ser ainda consideradas as circunstâncias efetivamente
conhecidas do lesante na mesma data, embora ignoradas ou desconhecidas da
generalidade das pessoas. Diferentemente, há teses que não aceitam um juízo a partir do
lesante, mas antes, e apenas, na base de uma previsibilidade objetiva. Em princípio, é a
segunda que devemos adotar (os outros não conheciam da causa, mas o lesante conhecia,
por isso, estamos dentro da adequação).

Concluindo, temos aqui duas formulações da teoria da causalidade adequada. A


questão é: qual é que aplica?
Segundo o prof. Ribeiro de Faria, devemos recorrer à formulação negativa da teoria
da causalidade adequada no caso da responsabilidade por factos ilícitos, pelo que é a
formulação mais ampla. Todavia, no caso da responsabilidade por factos lícitos ou pelo
risco, é necessário recorrer á formulação positiva, que é mais restrita.

Hoje, a generalidade da doutrina e da jurisprudência aceita a consagração da teoria da


causalidade adequada, prevista no art.563º, sendo esta que deve ser aplicada. Embora
este artigo esteja redigido em termos tão latos que nele podia caber sem dificuldade a
teoria da equivalência das condições, não se pensa que se tenha pretendido com essa
disposição quebrar a linha doutrinária.

Vejamos, agora, algumas precisões à teoria da causalidade adequada. Esta teoria


funciona bem, porém, há determinado tipo de danos nos quais é difícil aplicá-la para
efeitos de indemnização, o que leva a que ela tenha sofrido algumas precisões.

139
Por exemplo, há um derrame de petróleo no mar. Nesse local marítimo, passaram 3
barcos. Neste caso, não era possível saber qual deles é que efetivamente fez o derrame de
petróleo e atingiu aquela costa.

a) Em primeiro lugar, não exclui sempre, a natureza causal adequada de uma


dada condição, o facto de, mediante a verificação de uma outra, o resultado
não se produzir. Não é necessário que o facto, tido como causa jurídica do dano,
dê, só por si, lugar a este, bastando que seja condição do mesmo dano e satisfaça
o requisito da adequação. Ex: A dispara contra B. Em termos abstratos, aquele tiro
era suficiente para matar B. Todavia, ele tinha uma constituição particularmente
forte e ficou apenas ferido. Isto não exclui a natureza causal adequada para matar
do tiro de A.

b) A previsibilidade pelo autor da causa de um dano não condiciona a adequação


dessa causa em relação ao conjunto dos danos provocados. Ou seja, não é
necessário que o autor tenha previsto o dano, basta praticar o facto ilícito culposo
e que esse, em abstrato (além de em concreto), seja também adequado a produzir
aquele dano. Ex: Um sujeito atira uma pedra que, parte o vidro de uma casa de um
sujeito. Atrás do vidro estava um vaso de cristal, que foi partido também. O dano
não é previsível pelo sujeito, mas é adequado ao facto.

c) O simples juízo de adequação em abstrato não legitima a imputação objetiva


de um dano que em concreto não se insere no quadro de riscos envolvidos pelo
juízo de adequação. Isto é, a um determinado facto ilícito e culposo há um
conjunto de riscos inerentes. Ex: A deu uma pancada em B, adequada em abstrato
para causar a morte de um homem comum, mas B não morre. B foi para o hospital,
havendo aí o risco de ele ser lá infetado, ou de o tratamento ser deficiente.

Na verdade, não se exige que o nexo causal seja imediato, porque podemos estar
no âmbito de uma causalidade mediata. Ou seja, basta que o ato ilícito e danoso
dê lugar a uma condição posterior que provoque imediatamente o dano, salvo
se esta segunda condição, que provocou o dano de forma imediata, não estiver em
relação adequada com o facto que deu lugar à primeira. Esta segunda causa, a causa
imediata, pode resultar de um ato de terceiro, ou eventualmente de um ato do

140
próprio lesado, e pode vir a ser imputável ao agente, se se puder ainda qualificar
como um efeito adequado do facto gerador da responsabilidade. Ex (1): A é
atropelado por B e, em consequência, vai para o hospital. No hospital contrai um
vírus, ficando a sofrer de uma doença. Há aqui uma causalidade mediata
imputável/atribuível/relacionada ao primeiro facto, que é o atropelamento. Ex (2):
Uma criança parte o vidro de uma loja. Posteriormente, face à falta de vidro, os
objetos que estão dentro da loja acabam por ser furtados. O furto é uma causalidade
mediata e depois há uma atuação de terceiro que provoca o dano. Mas ainda é
possível considerar o furto subsequente. Note-se ainda que, como já vimos, se a
criança fosse menor de 7 anos, os pais da mesma teriam uma presunção de culpa e
teriam de pagar uma indemnização à loja.

Pode também ser o próprio lesado a causar o dano imediato, só que, nesse caso,
esse ato do lesado não comporta necessariamente o nexo de causalidade. Por
exemplo, o lesado que não cumpre as ordens do hospital e apanha um vírus. Cabe
ao tribunal determinar aqui, com base na gravidade das culpas de ambas as partes
e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve existir e em que
termos, por força do art.570º. A indemnização pode ser reduzida ou até mesmo
excluída devido à culpa do lesado.

10/12/2019

A causalidade adequada, assim como os pressupostos da responsabilidade civil,


permitem-nos determinar a constituição da obrigação de indemnizar. Os danos têm de ser
reparados. Esta matéria, embora regulada no seio da responsabilidade civil
extracontratual, aplica-se também à responsabilidade contratual.
Os danos causados obrigam o lesante, regra geral, à sua reparação (art.562º).
Segundo este artigo, a forma de reparação é a reconstituição natural, que é preferível à
indemnização por equivalente, fixada em dinheiro. Quando é que nós aplicamos a
reconstituição natural (art.566º)?

 quando ela não seja possível;


 quando seja insuficiente, isto é, quando não repare integralmente o dano;

141
 quando ela seja excessivamente onerosa para o devedor (ex: A destrói um bem
pelo valor de 10€ e para mandar fazer um bem igual, o custo é de 100€).

Nos dois primeiros casos, manda a lei que se proceda à restituição por equivalente, que
é uma restituição por dinheiro (art.566º nº1). Neste caso, a indemnização calcula-se
segundo a teoria da diferença: atende-se à situação patrimonial do lesado no momento
mais recente que possa ser atendido pelo tribunal (não é a situação à data do dano) e
aquela em que o lesado estaria, também nessa data, se não tivesse ocorrido o dano
(art.566º nº2). O juiz pode também atender, e isso não está diretamente previsto nesta
teoria, aos danos futuros (art.564º nº2).

Nem o pedido de indemnização a fazer no tribunal necessita de indicar a importância


exata dos danos, nem o facto de se ter pedido determinado valor impede que, no decurso
da ação, se reclame quantia mais elevada (art.569º). Isto é, naqueles casos em que não se
consigam determinar ainda o valor dos danos, o juiz pode começar por condenar no valor
que se considerar já como provado e depois pode deixar a fixação da indemnização mais
para a frente, nomeadamente para a execução da sentença (art.564º nº2). No entanto, pode
condenar logo numa indemnização provisória (art.565º). É possível também uma pessoa
deduzir um pedido indemnizatório por um determinado valor e, se no decurso da ação se
somarem danos, pode aumentar a quantia pedida inicialmente.

A aplicação da teoria da diferença implica uma avaliação em concreto do dano (valor


que a coisa tem no património do lesado) e não uma avaliação em abstrato. Implica
também que essa avaliação seja feita num período mais recente, que é o momento em que
puder ser atendida pelo tribunal, o que implica verificar a totalidade de danos nessa data
(embora possa depois ser fixada em execução de sentença), o que pode significar tomar
em conta uma eventual mudança de valor dos bens, seja uma elevação ou uma
diminuição. Ex: À data do dano o bem lesado valia 500€. Todavia, à data em que o
tribunal apura esta diferença (data mais recente), o bem valorizou-se por algum motivo,
valendo 700€. É aos 700€ que se tem de atender, não aos 500€. Logo, a diferença é apenas
200€, sendo esse o valor de indemnização. Por outras palavras, a indemnização por
equivalente calcula-se por via de uma diferença.

142
Temos, depois, os casos específicos de danos, nos quais não atendemos aos critérios
gerais de fixação da indemnização:

o Danos com natureza continuada: por exemplo, um sujeito sofre um dano que
afeta a sua capacidade de trabalho, pois acarreta uma incapacidade parcial.
Vamos supor que fica sem um órgão. Nesse caso, a forma mais completa de
indemnização é fixar um valor global numa determinada data onde é possível
incluir os danos futuros, mas é possível ainda, em alternativa, e apenas a
requerimento do lesado (não pode ser fixada oficiosamente), a indemnização
ser fixada no valor mensal de uma renda ao longo do tempo (art.567º). Não tem
de ser totalmente indemnizado em renda, pode-o ser apenas em parte. O outro
aspeto específico é que este valor poderá ser alterado com o decurso do tempo,
mediante pedido. Isto acontece sempre que as circunstâncias em que assentou
o estabelecimento do montante ou duração da renda sofrerem uma alteração
sensível (p.ex., se o sujeito piorar, ficou com uma saúde ainda mais frágil).
Neste tipo de danos é a melhor de indemnização porque acompanha a duração
do dano, podendo ser adequada à sua evolução.

o Compensação dos lucros com dano: se um sujeito, em virtude do dano,


acabou por ter alguma vantagem económica, essa vantagem tem de ser retirada
da indemnização. Ex: A atropela B. Em consequência, B esteve no hospital
durante o período de 2 meses. A sua alimentação foi assegurada pelo hospital,
logo B, não teve de fazer esse dispêndio. Com efeito, tem este valor de ser
retirado do sumo indemnizatório.

Nem sempre o Direito Civil é estritamente reparatório. Há situações em que não é justo
proceder de acordo com a paridade da indemnização em relação ao dano. Uma destas
situações é, desde logo, quando há um certo grau de culpa do lesado, ou quando há uma
certa desculpabilização da conduta do lesante. Estas situações levam à necessidade de
nos desviarmos desta teoria.

 Quanto ao grau de culpa do lesado (art.494º): se a responsabilidade se fundar


em mera culpa, a indemnização pode (não tem de) ser fixada equitativamente

143
em montante inferior aos danos. Por isso, atende-se, em primeiro lugar, ao grau
de culpabilidade do agente, às circunstâncias económicas do lesante e do lesado
e às demais circunstâncias do caso.

No que diz respeito à negligência, dentro desta, existem determinados graus de culpa:

 Culpa leve – é o padrão de culpa. Atendemos a um critério de culpa leve quando


um sujeito pratica um ato ilícito e, na averiguação da sua culpa, atendemos a um
grau médio de exigibilidade, que é um bom operador no que toca à competência
técnica e esforço. É este o critério de aferição da culpa previsto no CC.
 Culpa levíssima – o grau de exigibilidade seria o de uma pessoa extremamente
cuidadosa e um excelente operador do dano (e não apenas um bom operador). Ou
seja, o sujeito só teria culpa levíssima quando não tivesse a competência técnica
ou não fizesse o esforço que teria sido adotado por um profissional especialmente
competente e diligente naquele âmbito.

Por outras palavras, nós temos um padrão para definir a culpa, que consiste na conduta
do “bom pai de família”, o que significa, em termos técnicos, um bom operador dentro
das circunstâncias do caso concreto.
O que é que o sujeito, para o caso concreto, teria de saber a nível de competência
técnica, e quais os esforços que ele deveria ter atingido? Atingiu o padrão do bom
operador? Então, não tem culpa. Não atingiu? Então, há culpa. Ex: um advogado tem de
saber da lei e da doutrina geral. Se não o conhecer, no respeitante à competência técnica,
não sabe o exigido. Atendemos a um critério de culpa leve.

Porém, no âmbito financeiro, o critério é mais apertado. Aí o critério não é o de um


bom profissional do ramo, mas de um excelente profissional do ramo. O critério é o da
culpa levíssima. Este é um grau especialmente estrito de culpa e usado apenas em
determinados setores, onde o grau de exigência técnica e de esforço é extremamente
elevado. Para haver culpa levíssima, o critério teria de ser um advogado que dominasse
toda a jurisprudência e toda a doutrina nacional e estrangeira que se aplicasse ao caso. Aí,
um advogado que não tivesse essa competência técnica, teria culpa levíssima. Mas isso,
naturalmente, não é o padrão geral exigido. Se fosse, todos os advogados teriam culpa.

144
 Culpa grave ou negligência grosseira – o grau de falta de competência
técnica e de esforço é extremamente elevado. É uma conduta considerada de
todo inadmissível. Ex: um sujeito engana-se na entrada da autoestrada e entra
em sentido contrário. Não há dolo, apenas se engana. É, ainda assim, uma
conduta especialmente grave.

Dito isto, há uma zona de fronteira/cinzenta entre a culpa leve e a culpa grosseira, que
os tribunais muitas vezes têm dificuldade em precisar. Na opinião do prof., a culpa
grosseira só deve ser admitida em casos escandalosos, isto é, extremamente graves face
àquela pessoa e àquele caso concreto. Ex: uma pessoa com 70 anos e com um nível de
instrução muito baixo. Podemos dizer que age com culpa grave quando não há dolo? Crê
o prof. que não, mas é uma zona cinzenta, porque nós, jovens instruídos, já teríamos culpa
grave pelo mesmo dano.

Aula de 16/12/2019

Titularidade do direito de indemnização

Quem é o titular do direito de indemnização? Será aquele que é o titular do direito


absoluto atingido ou aquele sujeito que é protegido no âmbito da norma de proteção.
Aqueles que são atingidos reflexamente na sua posição jurídica em virtude de um facto
ilícito e danoso não estão tutelados.

Exemplo: A atropela B com culpa. A é evidentemente responsável pelos


danos causados. Vamos supor que B é jogador de futebol e por causa do
acidente não vai poder cumprir o contrato com o clube C. O clube C não é
titular de um direito a indeminização face ao lesante, não obstante o vínculo
contratual, pelo que não há eficácia externa desta obrigação (o crédito sobre
o jogador). Neste caso, é um dano indireto que atinge uma posição jurídica
relativa de um terceiro (relativa porque é um crédito).

Outra coisa são os sujeitos que podem ser atingidos em termos de posições
absolutas em certos casos, em virtude de um dano causado a outrem. São os chamados
danos de ricochete. É o caso de um sujeito que seja atingido no seu direito à integridade
física, que é um direto absoluto, sofrendo graves danos que implicam que um familiar

145
tenha que reduzir ou fazer cessar a sua atividade profissional para o acompanhar. Neste
caso, é atingida a posição do terceiro, e é um dano de ricochete porque o atinge
indiretamente. O entendimento da doutrina e da jurisprudência é que há dever de
indemnizar. São situações específicas e muito limitadas. E se se tratar de um dano não
patrimonial na esfera desse terceiro? O Professor também entende este dano como um
dano de ricochete e, embora a jurisprudência não seja tão clara na sua posição, o Professor
entende que também devem ser indemnizados. O Dr. Ribeiro de Faria aborda este assunto
através do exemplo do marido que assiste ao atropelamento da mulher e, com efeito, sofre
grande desgosto e sofrimento. Aqui, por força do 496º, nº1, é atingida uma posição
absoluta e direta. O Dr. Ribeiro de Faria interpreta este exemplo como um dano causado
a outrem que atinge a sua dimensão psicológica de forma direta.

Temos depois um conjunto de casos de natureza excecional em que o responsável


é obrigado a indemnizar terceiros - artigo 495º/1, CC. O lesante é obrigado a indemnizar
aqueles que socorreram o lesado, assim como todas as despesas adicionais em caso de
morte da vítima (inclui-se o funeral). Esta regra aplica-se também aos casos de lesão
corporal que não levem à morte do sujeito. Portanto, os que socorreram o lesado
(hospitais, médicos e qualquer outro pessoal que tenha contribuído para a assistência do
lesado) têm diretamente direito a indemnização pelo lesante.

Têm também direito a ser indemnizados aqueles que podiam exigir alimentos ao
lesado, ou mesmo aqueles a quem o lesado prestava alimentos em cumprimento de uma
obrigação natural – artigo 495º/3 CC. A obrigação de alimentos traduz-se num crédito
sobre o lesado, que é atingido pela lesão da qual decorreu a morte. Nestas circunstâncias
específicas, a lei impõe ao lesante que indemnize também os sujeitos que eram titulares
desse crédito. Evidentemente que a melhor forma de reparação desses danos é por via de
renda. Esta tem de ser pedida, não é automática. Trata-se de uma obrigação civil, no
entanto a lei estende essa proteção aos casos de obrigações naturais, que apesar de não
poderem ser exigidas judicialmente, fundam-se num dever de justiça.

Exemplo: um sujeito que beneficiou durante muito tempo de apoio


financeiro e emocional por parte de um vizinho. Mais tarde, esse vizinho
fica com dificuldades financeiras, e o anterior benificiário do seu auxílio
presta-lhe alimentos. Esta não é uma obrigação civil, mas funda-se num
dever de justiça. Assim, a lei protege o credor da obrigação natural,

146
concedendo-lhe o direito de indemnização. Note-se que se trata de uma via
de tutela excecional.

Há outras circunstâncias, no âmbito dos danos não patrimoniais, em que a lei


protege diretamente danos causados a terceiro - casos do dano da morte previstos no
artigo 496º/2 CC. São danos diretamente sofridos por terceiros. Sobre a formação deste
dano e do direito a ser indemnizado, já vimos todas as divergências: o Professor entende
que temos um dano da morte sofrido pela própria vítima que, por via hereditária, é
transferido para as outras pessoas previstas; depois, há ainda o outro dano sofrido por elas
próprias.

Prescrição do direito à indemnização -artigo 498º

A obrigação de indemnização no caso da responsabilidade civil extracontratual,


não só por factos ilícitos, mas também por factos lícitos e pelo risco, tem um prazo
prescricional curto, de três anos. Esse prazo conta-se desde a data em que o sujeito teve
conhecimento do direito que lhe compete. Depois, é necessário que seja respeitado um
outro prazo – o prazo prescricional comum, que é de vinte anos contados a partir da data
do facto. Os dois têm de estar preenchidos

Voltando ao prazo de três anos, a lei estabelece o critério da data do conhecimento


do direito por parte do lesado. Porém, note-se que não se exige, para que o prazo comece
a contar,

1) o conhecimento da pessoa do lesante

2) o conhecimento da extensão integral do dano.

Repare-se que, a propósito do último ponto, basta um pedido genérico para


interpor a ação, não sendo necessário indicar o valor total dos danos. Acresce que é
possível pedir uma indemnização provisória, e pedir que o valor indemnizatório seja
fixado em execução de sentença.

Outra coisa é o desconhecimento da pessoa do lesante. Acontece que o sujeito


sabe que tem o direito, começando a contar o prazo, mas não sabe quem é a pessoa que
provocou os danos. Sabe que foi atropelado, por exemplo, mas não sabe por quem.
Quando isso acontecer, o entendimento correto da doutrina é o de que se aplica aqui o
artigo 321º, CC, nos termos do qual, em casos em que o sujeito, por motivos de força

147
maior, esteja impedido de exercer o seu direito nos três últimos meses do prazo, leva à
suspensão do prazo até que conheça. É a tese de Menezes Leitão e Ribeiro de Faria.

Note-se que, sempre dentro do prazo prescricional geral, se o sujeito vier a


conhecer novos danos posteriormente, pode sempre reclamar o seu direito dentro do prazo
de 3 anos.

Pode dar-se o caso de o facto ilícito e danoso ser crime. Nos termos do artigo
498º/3, CC, sempre que o prazo prescricional da lei penal for mais extenso, é esse prazo
que se aplica.

Pode haver mais que um responsável pelos danos. Nesse caso, como vimos, nos
termos do artigo 497º, CC, são todos responsáveis, e a responsabilidade é solidária.
Haverá depois direito de regresso entre eles, nos termos do mesmo artigo, que se
determina em função das respetivas culpas. Este direito de regresso também tem um prazo
prescricional, que corresponde a três anos contados da data do cumprimento (data de
pagamento ao lesado).

Nos termos do 498º/4, CC, aquilo que sucede é que, se já tiver decorrido o prazo
prescricional da responsabilidade civil, mas por algum motivo não tiver decorrido, por
exemplo, o prazo prescricional do enriquecimento sem causa, nos casos de cumulação
pode-se intentar o enriquecimento sem causa. Geralmente, como já vimos, em casos de
cumulação, prevalece a responsabilidade civil em relação ao enriquecimento sem causa.
Aliás, um dos requisitos do enriquecimento sem causa é que o dano não se possa inserir
na indeminização a título de responsabilidade civil. Contudo, ela aqui já prescreveu. Com
efeito, é já possível recorrer ao enriquecimento sem causa, tal como é possível recorrer a
uma ação de reivindicação.

Uma nota muito importante é que devemos ter sempre presente a distinção entre
prescrição e caducidade. A prescrição tem de ser alegada, é suscetível de suspensão e não
está na disponibilidade das partes. A caducidade é de conhecimento oficioso, não se
suspende, não se interrompe e está na disponibilidade das partes; normalmente está ligada
a direitos potestativos.

Uma outra nota é que há o prazo geral de prescrição e depois há prazos mais curto
de prescrição. Por exemplo, no que diz respeito aos juros, o prazo é de 5 anos. Há ainda

148
prescrições presuntivas – o crédito de um comerciante sobre um não comerciante tem
uma prescrição presuntiva de 2 anos.

O que acontece quando o facto ilícito danoso seja também crime? Aplica-se o
princípio da adesão - tem de se deduzir o pedido da ação penal (artigo 71º CPP; há
exceções).

5.2 Responsabilidade pelo Risco

Antes de começarmos a tratar da responsabilidade pelo risco, vale a pena reforçar


alguns aspetos importantes. A determinação da obrigação de indemnizar que vimos no
âmbito da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos vale para toda a
responsabilidade civil, incluindo para a responsabilidade pelo risco. Há um tratamento
unitário no que toca a este aspeto. Quanto ao nexo de causalidade, aplica-se também à
responsabilidade contratual, ainda que noutros termos, e ainda às responsabilidades por
factos lícitos e pelo risco. Os critérios e modalidades da culpa também serão fundamentais
para a responsabilidade contratual, não obstante aí haja uma presunção de culpa. No
fundo, como podemos ver, apesar de se tratarem de regimes diferentes, há pontos em que
convergem.

Quanto à responsabilidade pelo risco, comecemos por referir o seu carácter


excecional, que decorre do artigo 483º/2, CC. Quer isto dizer que só existe nos casos
previstos na lei. Há um conjunto de casos de responsabilidade pelo risco que estão
previstos no Código Civil – artigos 500ºss. São esses os casos que veremos doravante.
Porém, note-se que há, atualmente, muitos casos de responsabilidade pelo risco previstos
em legislação avulsa (por exemplo, a responsabilidade do condutor).

Quando surgiu a responsabilidade pelo risco? A ideia emergiu essencialmente no


século XIX, estando intimamente relacionada com o Direito do Trabalho, que também
nasceu nessa altura. O que desencadeou o surgimento da responsabilidade pelo risco foi
o desenvolvimento da revolução industrial. Um conjunto amplíssimo de operários
passaram a lidar com máquinas perigosas, às vezes não tanto em si, mas pelo hábito e
descuido que geravam. Havia danos graves, mas muitas vezes não se conseguia
demonstrar a culpa da empresa. Em certos casos, essa culpa não existia, sequer. Deste
modo, apenas baseando-nos na culpa, não haveria dever de indemnizar. Foi neste contexto
que se desenvolveu o princípio da responsabilidade pelo risco – aquele que retira
vantagens decorrentes de uma determinada atividade, da qual decorre um potencial de um

149
dano para terceiro, deve acarretar também com os prejuízos daí advindos. Não porque
tem culpa, mas porque quem recolhe as vantagens decorrentes desse risco deve também
recolher as desvantagens, traduzidas, agora, num dever de indemnizar pelos danos
causados a terceiros. Fixado o princípio, foi aplicado e alargado a outras áreas de
atividade.

Nos termos do artigo 499º, CC, A lei manda aplicar à responsabilidade pelo risco as
regras da responsabilidade por factos ilícitos, na parte aplicável e sempre que não haja
norma em contrário – princípio da extensão.

Vejamos agora os casos de responsabilidade pelo risco previstos no nosso Código


Civil.

5.2.1. Responsabilidade do comitente - artigo 500º

No nosso sistema, esta é uma responsabilidade pelo risco. Não assenta, como
poderia e como acontece no sistema alemão, numa presunção de culpa. É independente
de culpa do comitente, não querendo isto dizer que o comitente não possa atuar com culpa.
Pode ter culpa in eligendo (na escolha do comissário), in vigilando (na vigilância sobre o
comissário) ou in instruendo (na formação e nas informações/instruções que dá ao
comissário). Nesses termos, pode responder.

Exemplo: um sujeito contrata um comissário que não tem o conhecimento


necessário para determinada atividade. Podemos estar a falar, p.e., do dono
de uma estação de serviço que contrata um funcionário sem conhecimento
para meter combustível e que também não o instrui nesse sentido. Depois,
o comissário causa danos. Além da responsabilidade pelo risco, há também
lugar a responsabilidade com culpa do comitente, na escolha e na instrução.

Face a terceiros, haja ou não culpa do comitente, a responsabilidade é sempre


solidária entre ambos. No entanto, no que respeita ao direito de regresso, o artigo 500º/3,
CC, manda aplicar o artigo 497º/2, CC, o que significa que nas relações internas, no
âmbito do direito de regresso, é necessário determinar as culpas para se fixar o crédito
daquele que pagou face a outro responsável. No âmbito das relações internas, havendo
culpa, há um direito de regresso completo do comitente sobre o comissário.

Analisemos os aspetos fundamentais para aplicação desta norma:

150
Em primeiro lugar, temos de definir Comissão: consiste num serviço de qualquer
natureza, de facto ou de direito, de qualidade superior ou inferior, permanente ou
transitória. Esta é uma noção ampla, mas o importante é que o comissário atue

1) por conta do comitente (no interesse do comitente e não em interesse próprio) e

2) sob direção do comitente.

O comitente responde objetivamente se verificados estes pressupostos. Não há


comissão na relação entre o dono da obra e o empreiteiro, porque o dono da obra não tem
poder de dar ordens ao empreiteiro. Assim como o cliente não pode dar ordens ao taxista,
não havendo uma comissão. O fator decisivo é a existência de um poder de direção
por parte do comitente. Este aspeto é menos claro em algumas profissões, em que este
poder é muito diluído (por exemplo, na relação entre o médico e a clínica, visto que clínica
não pode dizer ao médico como proceder). Entende-se que neste caso basta que haja o
poder de dar instruções genéricas, porque se não fosse assim não seria possível
responsabilizar o comitente (clínica, neste caso) pelos atos do comissário autónomo
(médico).

É também necessário que seja o comitente a escolher o comissário? Em princípio não


é absolutamente necessário. Basta que o comitente aceite dirigir o comissário, que até lhe
pode ser imposto. Tem é de aceitar dirigi-lo.

Quais os atos praticados pelo comissário que responsabilizam o comitente? Nem


todos os atos o fazem. Uma coisa é um sujeito indicar um operário para realizar uma obra
e esse operário negligentemente deixar cair um tijolo em cima de um transeunte. Num
caso destes, o ato é praticado no âmbito da comissão. Mas suponhamos agora que temos
um empregado bancário, que é comissário do banco, e que aproveita para furtar a carteira
ao cliente. Neste caso, a ligação entre a função e o ato praticado é puramente ocasional.
Qual o critério adotado pela lei? Temos de atender ao artigo 500º/2, CC – o comitente
responde pelos atos do comissário praticados no quadro abstrato das suas funções, mesmo
que esses atos tenham sido realizados intencionalmente ou mesmo contra as instruções
dadas pelo comissário.

Exemplo 1 –o operário deixa cair propositadamente um balde de cimento


em cima do carro de B, que estava estacionado ao lado do andaime, porque

151
tinha um conflito com esse sujeito. Está no quadro abstrato das suas
funções, logo o comitente responde.
Exemplo 2 – um bancário que burla um cliente do banco usando as
ferramentas de que dispõe enquanto bancário – está no quadro abstrato das
suas funções. Há responsabilidade do comitente.
Exemplo 3- sujeito que aproveita para furtar o telemóvel ao cliente do
banco; ou funcionário do empreiteiro que agride um sujeito com quem tem
conflitos e que por acaso está a passar em frente à obra. Já não estão no
quadro abstrato das suas funções. Há uma ligação puramente ocasional.

Por que é que temos uma responsabilidade objetiva do comitente face aos atos do
comissário? Esta responsabilidade visa tutelar os lesados. Eles deixam de ter um único
responsável, que seria o comissário, e passam a ter dois sujeitos solidariamente obrigados,
o que significa que podem fazer valer os seus direitos sobre dois patrimónios e não sobre
só um. Na maior parte das vezes, o comitente tem mais meios do que o comissário para
responder. Nas relações internas, responde só depois o comissário, o que quer dizer que
o risco de o comissário não ter bens suficientes para satisfazer totalmente a indemnização
corre por conta do comitente. A função desempenhada pelo comitente é uma função
de garantia, ele é um garante do pagamento da indemnização. O lesado pode
demandar o comitente, o comissário, ou ambos.

Aula de 17/12/2019

5.2.2. Responsabilidade do Estado pelos atos praticados pelas outras pessoas


coletivas públicas - artigo 501º

O Estado e as demais pessoas coletivas públicas respondem face a terceiros pelos


atos praticados pelos seus órgãos, agentes ou representantes, desde que se trate de atos de
gestão privada. Não estão aqui incluídos os atos de gestão pública, que se caracterizam
por um poder de imperium e que têm um regime específico e diferente no âmbito do
direito público. (que tem um regime específico diferente desde, no âmbito do direito
público).

Órgãos deliberativos: em regra são órgãos internos, como uma assembleia geral
de uma sociedade; mas também pode haver outros órgãos, como um conselho de
administração de uma sociedade, etc. Esses são normalmente órgãos executivos, pelo que
representam a pessoa coletiva externamente.

152
Uma pessoa coletiva funciona por via dos seus órgãos, que são de onde decorre a
vontade da pessoa coletiva, através da deliberação, e são quem estabelecem a sua relação
com terceiros. Outra coisas são os agentes da pessoa coletiva (trabalhadores, etc.).

A responsabilidade é solidária, o que significa que a indeminização pode ser


exigida a ambos e depois, internamente, uma das partes terá um direito de regresso
(normalmente o Estado) em relação à outra.

5.2.3. Responsabilidade dos atos causados por animais - artigo 502º


Quem utilizar animais no seu interesse, responde pelos danos causados desde que eles se
fiquem a dever ao perigo específico que envolve a utilização daquele animal. Temos aqui
dois pressupostos:
1. A “utilização no seu próprio interesse”: em regra, quem utilizará no seu próprio
interesse será o proprietário do animal. Depois temos os casos específicos do comodato
do animal e da locação do animal (por exemplo, sujeito que aluga cavalos para terceiro;
ou sujeito que aluga um cão durante determinado período de tempo para o cão fazer a
guarda de uma casa). No primeiro caso (comodato), o entendimento da doutrina (Dr Vaz
Serra e Dr. Antunes Varela) vai no sentido de que só o comodatário é que responde. Isto
porque sendo o empréstimo gratuito, o interesse na utilização é todo do comodatário, ou
seja, só ele é que beneficia do risco criado pelo animal. Situação é diferente é a locação,
porque aqui há dois interesses: um na utilização do animal (locatário, que o está a utilizar),
mas também o do locador, que receberá um aluguer. Portanto, são corresponsáveis, ambos
respondem pelo risco.
Exemplo: A tem uma exploração de cavalos e aluga um cavalo a B para ele
o utilizar durante dois dias. Enquanto B passeava o cavalo, este acaba por
dar um coice a C. Ambos (A e B) respondem pelo risco.

2. É necessário também que os danos se incluam nos riscos próprios causados por
aquele animal. Diferentes animais acarretam riscos diferentes. Nós podemos utilizar um
gato como uma arma (atirá-lo contra uma pessoa, por exemplo), mas os danos que ele
provocar nestas situações não são os seus riscos próprios.
O facto de haver responsabilidade pelo risco não afasta, sempre que se verifiquem
os respetivos requisitos, a responsabilidade do vigilante nos termos do artigo 493º
(presunção de culpa). Basta que não seja afastada a presunção de culpa. A presunção recai

153
sobre aquele que tem o dever de vigiar ou sobre aquele que assumiu o dever de vigilância.
Muitas vezes haverá uma confluência na mesma pessoa, e aí será o proprietário a
responder, mas noutros casos não. Imagine-se que B vai passear o cão de C e que nesse
passeio o cão morde a D. Haverá aqui responsabilidade pelo risco pelo proprietário do
animal? Sim, mas há também uma presunção de culpa com base no 493º que recai sobre
B, que assumiu o dever de vigilância. Isto significa que a responsabilidade face a terceiros
é solidária. Porém, internamente, temos de ver o risco específico do animal e a culpa do
vigilante, de modo fixarem-se as quotas do direito de regresso. Se estivermos a falar num
caniche, o risco específico do animal é diminuto e pesará mais a culpa do vigilante.

Exemplo: o vigilante não prende o animal de forma correta e o caniche foge


e causa um acidente de viação. O caniche não é perigoso, a culpa é do
vigilante. Agora, se falarmos de um dobermann, esse já é um cão de perigo
elevado, logo, a culpa não será totalmente do vigilante.

Temos depois casos em que a culpa é do lesado. Por exemplo, se estivermos a


falar do cão, são as situações em que o lesado provoca o animal. Pelo facto de haver culpa
do lesado, nem por isso fica excluída a responsabilidade pelo risco. Haverá depois é de
se determinar qual a culpa do lesado e qual o risco específico do animal. Evidentemente,
a indemnização será fixada em conformidade com o risco específico do animal e retirando
a culpa do lesado. Aqui, não há responsabilidade solidária face a terceiros, o lesado não
tem de pagar uma indeminização - isso não faria sentido porque ele é que sofreu o dano.

Temos ainda o caso em que a culpa é do terceiro. A culpa de terceiro em si também


não afasta a responsabilidade pelo risco, mas ela implica uma responsabilidade solidária
face ao lesado. Nas relações internas, mais uma vez, haverá de se determinar o peso da
culpa do terceiro e do risco específico do animal na produção do dano.

Por fim, temos aqueles casos de força maior. Por exemplo, uma tempestade ou um
relâmpago que assustam o animal e que levam a que este provoque uma lesão em alguém.
Isto enquadra-se na responsabilidade pelo risco específico daquele animal, não a afasta.

Claro que em todos estes casos, além do risco específico em abstrato do animal,
temos de fazer uma análise em concreto da situação do animal e do animal em si. Mesmo
animais da mesma espécie têm níveis de perigosidade diferentes.

154

Você também pode gostar