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Personagens:
SEGISMUNDO - Sei. Um pouco. Melhor... Deixa eu ver: a gente vai ter que
preencher isto aqui. (COLOCA UM PAPEL NA MÁQUINA DE ESCREVER) Por
que mudaram a fórmula do depoimento outra vez?... Esse pessoal não sabe o que
quer. (DATILOGRAFANDO) Distrito Federal... (PARA SI) Que dia é hoje?
SEGISMUNDO - Como?
SEIGISMUNDO - Segismundo.
CLAUSEWITZ – Segismundo?
SEGISMUNDO – Meus pais morreram eu ainda era de colo. Nunca vou saber
porque ganhei esse nome.
CLAUSEWITZ - Eu falo.
CLAUSEWITZ - Latim.
SEGISMUNDO - Não.
SEGISMUNDO - Deve ser. (TEMPO) Escute, o senhor chegou num dia um pouco
agitado. Precisamos resolver esta confusão logo. O senhor sabe que pela lei
ainda estamos em guerra. Eu sei, eu sei... Na Europa a coisa parou. Logo vem o
armistício. Mas para nós, aqui na Imigração, tudo continua o mesmo. Estamos
esperando novas diretrizes para tempos de paz. Enquanto não chegam: continua
o mesmo. Se quer ficar no país, como estrangeiro, o senhor precisa de um salvo-
conduto. O senhor quer ficar no país, não é?
CLAUSEWITZ - Eu quero.
SEGISMUNDO - Sei. Então nós temos que esclarecer algumas dúvidas a seu
respeito. Se isso não for possível, o senhor será obrigado a voltar ao cargueiro, e
seguir viagem.
CLAUSEWITZ - O cargueiro vai para as Ilhas Fauklands... E que eu vou fazer lá?
SEGISMUNDO - O meu país precisa de muita coisa. Posso ver suas mãos?
CLAUSEWITZ - Clausewitz.
SEGISMUNDO - Então. Foi o que mais me chamou a atenção. Mais do que todo
resto. Um agricultor. Eu fiquei pensando o que um agricultor faz na Europa,
nestes dias. O senhor fazia o quê, lá?
CLAUSEWITZ - Nada.
CLAUSEWITZ - Não.
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SEGISMUNDO - Isso é muito estranho. Quase todos que tem desembarcado aqui,
nos últimos tempos, vêm trazendo móveis, tapetes, pianos... Alguns até trazem
carros.
CLAUSEWITZ - Eu sei. Essas pessoas vão vender esses objetos para pagar por
uma vida nova. Me falaram em construir fábricas, em comprar fazendas. E depois
vão comprar outros objetos outra vez. Outros tapetes, outros pianos. Objetos.
Parece que estão se preparando para fugir de novo. E quando isso acontecer vão
precisar de objetos para vender.
O cargueiro apita.
SEGISMUNDO - Em todo lugar. O senhor diz que é agricultor, mas não tem um
calo na mão. Nunca veio ao Brasil, mas fala Português muito bem.
SEGISMUNDO - Por favor... Não tenho nada contra o senhor. Mas agora nós
vencemos uma guerra contra o nazi-fascismo. É o que estão falando. O senhor
não imagina a confusão que foram estes últimos anos... Uma hora diziam para
barrar os judeus, outra hora para barrar os alemães. Enquanto não chegam as
novas diretrizes para tempos de paz tenho que resolver tudo por mim mesmo.
CLAUSEWITZ - Maldades?
CLAUSEWITZ - (TEMPO) Ah... Quem disse isso foi uma senhora ruiva, com um
cicatriz aqui?
SEGISMUNDO - Conhece?
CLAUSEWITZ - Faz uns... uns quinze meses. Quando eu desisti de se ator, tinha
que escolher uma profissão. Agora sou agricultor.
SEGISMUNDO - Eu nunca fui ao teatro. Ouvi pelo rádio, uma vez. Uma história
de uma mulher que assina umas promissórias. Depois vai embora de casa. Não
entendi muito bem. Não tinha a ver com a minha vida.
SEGISMUNDO - Os estrangeiros.
SEGISMUNDO - Isso não vai ajudar o senhor. Para mim não quer dizer nada a
sua guerra. Todos vocês querem me fazer chorar.
CLAUSEWITZ - O teatro não pode tocar o senhor. Estou de acordo. Não, depois
desta guerra. Mas as lembranças... Eu vivi estas lembranças. Foi... foi um tempo
difícil.
SEGISMUNDO - O Brasil mandou tropas. Fizeram tanto escarcéu nas ruas que o
Presidente mandou. Estamos com as contas em dia.
SEGISMUNDO - Está bem. Ainda temos uns dez minutos antes do seu navio
zarpar. Eu já estou atrasado, mesmo. (PARA SI) Tanto faz se eu encontrar um
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daqueles na rua... (TEMPO) Vamos fazer um trato. O senhor tem esses dez
minutos para me fazer chorar.
SEGISMUNDO - Fica.
CLAUSEWITZ – Eu não sei as palavras... Não sei como colocar em... palavras...
É difícil contar essa coisa em Português.
CLAUSEWITZ - É difícil!
Tempo.
SEGISMUNDO - E aí?
CLAUSEWITZ - O senhor?
SEGISMUNDO - Fazer aquele pessoal falar. Às vezes não queriam nem que
aquele pessoal falasse. Era só dar um susto. Sabe, eu sempre gostei de dar um
bom susto. (TEMPO) É... Enquanto precisaram de mim eu fiz muita coisa para
eles. (SEM QUALQUER EMOÇÃO) Cansei de ver o sujeito chegar de cinqüenta
dias sem ver o sol, mijando na mesma bacia esse tempo todo, e ainda ter de ficar
mais vinte horas de joelhos. Os meus rapazes raspavam os pelos do corpo do
sujeito, davam uns beliscões e se divertiam atirando uma lata no topo da cabeça
dele. Quando caía de cara no chão, aí sim, aí era hora de começar. Eu puxava o
sujeito pelos cabelos e não deixava ele dormir. Queimava o corpo inteiro do
sujeito com ponta de cigarro, até no saco. Depois jogava óleo de rícino em cima.
Batia com o cassetete até não enxergar mais o rosto do detido. Enfiava pimenta
no cu dele com um clister deste tamanho. E o sujeito ainda tinha que limpar toda a
bosta do chão. Ou eu batia mais com o cassetete. Para os mais difíceis eu tinha
um expediente: enfiava no canal do pênis um arame. Depois eu esquentava a
ponta que ficava para fora com um maçarico. O sujeito parecia um leitão na hora
da matança. Quando acordava pedia para assinar o depoimento. (TEMPO) No
Brasil tudo tem que terminar num depoimento assinado. Com este aqui.
CLAUSEWITZ - Não. Eu estou espantado porque nunca imaginei que essa coisas
pudessem ser ditas no seu idioma. Para mim o Português era um latim falado por
bebês, velhinhos... pessoas que não tivessem dentes! Se essa gente tivesse
dentes, como poderiam ter perdido tantas consoantes?
CLAUSEWITZ - (TEMPO) Eu que achava que o Português era uma língua falada
pôr gente com dotes de análise e síntese.
SEGISMUNDO - Que sujeito? Ah, aquele sujeito... Nada. Eu fazia tudo o que me
mandavam fazer. Foi assim desde o tempo do orfanato. Eu era forte para a idade.
Para o coral eu não servia, mas para quebrar o pescoço das galinhas eu servia.
Pelo menos me deixaram ficar junto com a minha irmã... Eu sempre fiz tudo o que
me mandaram fazer.
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SEGISMUNDO - “Vocês”?...
CLAUSEWITZ - De teatro!
CLAUSEWITZ - (TEMPO) Meu professor de latim dizia que o Português era uma
língua falada por passarinhos... Tão doce, tão alegre...
SEGISMUNDO - O quê?!
SEGISMUNDO - A viúva era uma estancieira que estava criando problemas para
o meu padrinho. Já tinham mandando matar o marido dela, mas a viúva
continuava. Meu padrinho me disse para dar um susto na viúva. Isso aconteceu!
Silêncio.
CLAUSEWITZ - Vocês!
CLAUSEWITZ - Não. Eu sei que eu sou pior que o senhor. Eu escapei. Eu estou
vivo. E todos estão mortos: meus amigos, meus pais, meu país... minha mulher...
Se eu estou vivo é porque eu errei. É porque eu era pior que eles. Eu sou pior
que o senhor, tenho certeza.
SEGISMUNDO - (TEMPO) Deve ser difícil pensar que nós somos iguais. O
senhor pode aceitar que é pior do que eu. Mas não pode aceitar que nós somos
iguais.
SEGISMUNDO - Sem pestanejar. Sem nem cobrir o rosto. (TEMPO) Só uma vez
eu cobri o rosto. É, uma vez eu cobri o rosto com uma máscara... (TEMPO) Minha
irmã. Aí na foto... É a minha família, sabe? Um dia eu viajava com ela para o Rio
Grande, quando um caminhão cortou a minha frente. Quando eu acordei já estava
no hospital. Bem. Não aconteceu nada comigo, o carro escapou de lado com a
freada e foi colhido pelo caminhão que vinha na outra direção. O lado do
passageiro. O lado onde estava sentada minha irmã. Ela ficou entre a vida e a
morte. Se não fosse um médico... Um cirurgião... Um rapaz, um rapaz simpático...
Fez de tudo para salvar minha irmã e conseguiu. Uns anos depois me mandaram
quebrar os ossos da mão de um cirurgião que estava preso conosco. (TEMPO) E
era ele. O médico que salvou minha irmã.
SEGISMUNDO - Eu disse: foi a única vez em que usei uma máscara. (TEMPO)
Quebrei osso por osso das mãos do médico que salvou a vida da minha irmã.
Silêncio.
Silêncio.
Tempo longo.
SEGISMUNDO - De uns tempos para cá eu não posso olhar para minha irmã que
eu vejo nos olhos dela os olhos daquele médico. Que raiva que eu tenho dele,
senhor Clausewitiz... Que raiva...
CLAUSEWITZ - Ele morreu na minha frente, sim. Mas os nazistas não bateram no
professor. O oficial encarregado tinha trabalhado todo o dia. Estava cansado.
Sabia que nenhum daqueles homens torturados tinha alguma coisa para falar. E
sabia que nenhum deles podia resistir. Para simplificar tudo, resolveu dar um tiro
no professor Cracowiack e acabar com ele de uma vez. Como o oficial tinha
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batido muito nos outros prisioneiros, sua mão estava trêmula e ele acabou
acertando o professor Cracowiack num lugar que não o matou imediatamente.
Acho que o oficial estava mesmo muito cansado porque nem deu outro tiro.
Mandou jogar a mim e ao professor em uma cela. O professor Cracowiack
sangrou por quinze horas. Eu fiquei do lado dele até a morte. Pude observar seus
olhos ficarem de louça, senti o calor e a umidade do seu último bafo. Morreu com
uma certa calma, depois de uma noite falando quase sem parar. Repetiu a
primeira aula que ouvi dele; citou a Eneida; corrigiu meu latim. Eu vi aquele
homem morrer na minha frente aos poucos. Eu estava presente. Ele falava
dezessete línguas e o último som que emitiu não foi nem uma palavra. Parecia
mais um móvel sendo arrastado na madrugada. (TEMPO) Seria bonito se o
professor Cracowiack tivesse morrido dizendo Docta Ignorantia...
Tempo.
SEGISMUNDO - E aí?..
Tempo.
do campo aberto à sua fuga. E tendo eu mais vida, tenho menos liberdade? Assim
chegando a esta paixão, um vulcão, qual o Etna, quisera arrancar do peito
pedaços do coração. Que lei, justiça ou razão pôde recusar aos homens privilégio
tão suave, exceção tão única, que Deus deu a um cristal, a um peixe, a uma fera
e a uma ave?”
Silêncio. Segismundo está chorando. E deixa cair uma lágrima sobre o salvo-
conduto.
CLAUSEWITZ - Teatro.
SEGISMUNDO - Teatro?
SEGISMUNDO – Isso não está certo. Eu disse que o senhor tinha que me fazer
chorar com as suas lembranças.
SEGISMUNDO - Isto não está certo, senhor Clausewitz ! Eu não devia deixar o
senhor sair desta sala.
SEGISMUNDO - Foi o seu Teatro que me fez chorar! Foi a merda do seu Teatro
que me fez chorar!
CLAUSEWITZ - Nada. Para o senhor eu não provei nada. Eu provei para mim
mesmo. Olha, eu sei que o Brasil precisa de braços para a agricultura, mas eu
sou ator. Esta é a minha profissão. Eu ainda não sei para que serve o Teatro no
mundo depois da Guerra. Só sei que eu tenho que continuar a fazer o que eu sei
fazer. Um dia alguém vai saber para que serve. Se serve. Para mim me basta
fazer. Fazer teatro. É como a receita do mingau do professor Cracowiack. Alguém
precisa saber como se faz esse mingau...
CLAUSEWITZ - Sim.
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E CAI O PANO.