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Ciberaxé:

contribuições para um campo em construção


LÚCIO ANDRÉ ANDRADE CONCEIÇÃO*

RESUMO: O texto, na primeira parte, levanta uma série de reflexões sobre a


delimitação do campo da pesquisa sobre religiões afro-brasileiras que, embora
seja amplamente debatido nas ciências sociais, será investigada no ciberespaço
em função do fenômeno da difusão de saberes nas redes sociais. Na segunda
parte apresento exemplos de pesquisas relacionando candomblé e ciberespaço,
destacando nuances na delimitação de campo nestas pesquisas. Em seguida,
trago as minhas implicações com o tema em tela; por fim caracterizo o
facebook como um espaço onde tudo pode ser encontrado e mostro dados
preliminares demostrando, a princípio, alguns elementos estruturantes do grupo
do Facebook pesquisado.
Palavras-chave: religião; candomblé; cibercultura; difusão; saberes.
Ciberaxé: constructions for a field under construction
ABSTRACT: The text, in the first part, raises a series of reflections on the
delimitation of the field of research on Afro-Brazilian religions that, although
widely debated in the social sciences, will be investigated in cyberspace due to
the phenomenon of the diffusion of knowledge in social networks. In the
second part I present examples of research relating candomblé and cyberspace,
highlighting nuances in the field delimitation in these surveys. Then I bring my
implications to the theme on screen; finally I characterize facebook as a space
where everything can be found and show preliminary data showing, at first,
some structuring elements of the searched facebook group.
Key words: religion; candomblé; cyberculture; diffusion; knowledge.

*
LÚCIO ANDRÉ ANDRADE CONCEIÇÃO é doutorando pelo Programa de Pós-
Graduação Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC/UFBA);
professor do IFBA – campus Valença (BA), Ogan e Assogbá no Terreiro Vintem de Prata (BA).

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Delimitar como campo de pesquisa o tese fazendo a crítica a percepção
espaço de uma rede social na internet clássica da antropologia, produzida a
que trata de candomblé é uma proposta partir dos trabalhos de Bronislaw
arriscada, por se referir a um assunto Malinowski, no qual o etnógrafo busca,
amplamente estudado e debatido pelas preferencialmente, um campo de
ciências sociais, mas especificamente a pesquisa que lhe seja estranho, exótico,
antropologia, onde muito de seus para observações participantes e
estudiosos delinearam o que hoje produção de representações sobre o
chamam de estudos sobre religiões afro- outro estranho, sem maiores reflexões a
brasileiras. Mas, porque a opção de ir respeito deste tema. O autor aponta o
para as redes sociais quando se mora em descompasso desta visão com as
Salvador/BA, considerada por muitos, mudanças ocorridas nos estudos
como matriz ou origem de inúmeras antropologias mais atuais que “não são
casas de culto de candomblé existentes mais produzidas apenas por homens
no Brasil? O mais lógico seria encontrar brancos que desembarcam com seus
lacunas nos estudos existentes e/ou equipamentos em praias tropicais ou
reinterpretações, e fazer o recorte a descobrem aldeias isoladas” (p.24).
partir das diferentes experiencias Neste sentido, ele explica que os antigos
religiosas locais. Não que isto seja povos considerados “objetos” do
tarefa fácil, porém encontra sim uma conhecimento antropológico vem
maior quantidade de referências assumindo esta atividade acadêmico-
teórico/metodológicas para tal profissional, e cidades, bairros,
empreendimento. habitantes e estilos de vidas passaram
também a ser estudados pela
A questão é que mudanças na antropologia, tudo isto em função de
compreensão da própria antropologia, mudanças políticas, culturais entre
que é pioneiro nos estudos sobre continentes que antigamente só
candomblé, sobre a forma como vêm forneciam “sujeitos” e outros eram só os
produzindo conhecimento em uma “objetos” de pesquisa, e agora
sociedade que a cada dia precisa experimentam uma situação totalmente
repensar sua existência, em função do nova.
reconhecimento reivindicado por vozes
historicamente invisibilizadas, faz com Tratando ainda da singularidade
que o marcação deste “campo”, que atribuída ao trabalho de campo, na
servirá de fundamento do novo saber a constituição do projeto etnográfico,
ser cunhado, deixe de ser pautada Silva dirá que expressões como
apenas pela objetividade no processo, “delimitar o campo” e “fazer o campo”
pela estranheza e neutralidade que o é um “jargão antropológico”, sinônimo
“eu-pesquisador” possa ter com o foco para o tema ou grupo social a ser
do estudo. Um olhar e uma escuta mais investigado e seu processo de
sensível, passam a ganhar relevância observação. Mas é também, uma
sobre este outro investigado, assim singularidade contrariada quando se
como os sentidos e as interpretações que verifica as etapas de pesquisa
produzirei na minha relação com os estabelecidas, formalmente, pela
indivíduos e grupos relacionados com academia que costuma colocar o campo,
na pesquisa. entre o momento de proposição da
pesquisa em si e a análise de dados
Um exemplo desta preocupação está em encontrados. Na visão deste autor, é
Silva (2000) que começa o texto de sua uma concepção linear da produção

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etnográfica, frutos dos cursos e manuais E as religiões afro-brasileiras de fato
padronizados de metodologia, estão no ciberespaço. Há casos em que
elaborados por instituições de fomento à esta presença é individual, noutras a
pesquisa, mas que não condizem com a participação é da casa de candomblé.
realidade em desenvolvimento. E Estes diferentes espaços na web, em
completa: minha pesquisa estarei chamando de
ciberaxé, fazendo outro neologismo, tal
O “campo” não é somente a nossa qual fez Levy (1999) ao criar a
experiencia concreta (mesmo se
cibercultura. O ciberaxé são as
esta fosse mensurável de forma tão
objetiva) que se realiza entre o homepages, os blogs, os espaços online
projeto e escrita etnográfica. Junto a em plataformas digitais (de vídeo,
esta experiencia, o “campo” (no imagem e texto) que veiculam serviços
sentido amplo do termo) se forma religiosos, compartilham as atividades
através de livros que lemos sobre o do terreiro (fotos e vídeos dos rituais,
tema, dos relatos de outras dos membros, das festas, das comidas,
experiencias que nos chegam por dos objetos e vestuários sagrados, etc.),
diversas vias, além dos dados que propiciam interação com outros
obtemos de “primeira mão”. membros e simpatizantes, troca de
(SILVA, 2000, p. 27) saberes do culto, denuncia e
Em minha pesquisa o “campo”, de fato combaterem violências, discuti temas
não é concreto, é virtual, embora seja diversos, etc. O ciberaxé são, portanto,
real. O estudo é sobre redes sociais na os diferentes espaços online, nos quais
internet, mas especificamente a se dá a difusão de sons, imagens, vídeos
plataforma facebook, e dentro deste, em e textos com conteúdo sobre
um grupo que trata de candomblé. Este candomblé1.
é, portanto, um “campo” formado a E como se estabelece a relação entre o
partir das mudanças e inovações terreiro de candomblé, situado no tempo
tecnológicas, conseguidas com o e no espaço, e o ciberespaço? A internet
desenvolvimento da internet, que afetou passa a ser objeto de estudo, a partir de
todos os lugares de domínios de nossa dois modelos de abordagem, sugeridas
vida. O virtual, na concepção filosófica por Hine (2000) como cultura e como
de Levy (1999, p. 47), é real, porém não artefato cultural. Enquanto cultura
é atual, ou seja, não está concretizado tende a ser compreendida como um
em um espaço/tempo único. O virtual espaço distinto da realidade concreta
representa uma dimensão importante da (offline). Estes estudos investigam os
realidade. O virtual é desterritorializado, fenômenos culturais em comunidades
é capaz de gerar diversas manifestações e/ou mundo virtuais, abordando funções
concretas, em momentos e locais e formações sócias, tipos de
distintos, sem prender-se localmente. organizações, conflitos, cooperações,
Portanto, é legítimo chamar um grupo fortalecimento de comunidades virtuais
do facebook, de “campo de pesquisa” e outras narrativas possíveis de ocorrer
na medida em que vários segmentos da nestas redes (FRAGOSO et al., 2015,
sociedade têm se utilizado deste novo p.41). As críticas a visão da internet
ambiente, como uma nova extensão
para ações em sociedade, gerando,
portanto, a transformação ou a criação 1
Embora a difusão aconteça também de outras
de novos fenômenos para investigação formas de religiosidade afro-brasileira como
umbanda e batuque, para esta pesquisa o foco
científica.
será apenas sobre o candomblé.

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como cultura, levantadas por Fragoso, do campo afro-religioso, a partir da
são que esta concepção leva a entender popularização do acesso às tecnologias
a cultura e o comportamento produzido digitais pelas classes populares
neste espaço, como um mundo fechado brasileiras e, mais especificamente,
em si mesmo. Neste sentido, os autores pelos adeptos das religiões brasileiras.
citados por Fragoso, para compor esta Ele diz ter sido motivado pelas
crítica, sugerem ao invés de “cultura da transformações ocorridas nestas
internet”, propõe pensarmos em religiões centradas na tradição oral,
“culturas da internet”, o que nos remete após processo de midiatização e
a outra perspectiva, como artefato hipertextualização do sagrado. Este
cultural. Na condição de artefato, trabalho chama atenção porque a
Fragoso dirá que a percepção analisa a internet, na época da pesquisa, era
inserção da internet em nosso cotidiano, restrita às camadas sociais com maior
como um elemento da cultura, capaz de poder aquisitivo, portanto um
integrar a vida online e offline, mecanismo de comunicação ainda não
admitindo que a internet adquire popularizado. A pesquisa foi feita
diferentes significados culturais em usando as antigas listas e fóruns de
diferentes contextos de uso, assumindo discussão de discussão que abrigavam
formato multifacetado e com inúmeras sacerdotes e pessoas no Brasil,
apropriações. brasileiros/as e estrangeiros/as de fora
Pesquisas relacionando cibercultura e do país, mas que possuíam alguma
candomblé são poucas no cenário relação/afinidade com o candomblé. O
acadêmico nacional, e concentram-se campo, nesta pesquisa, eram as
em programas de pós-graduação em comunidades virtuais que se formavam,
sem necessidade de contato, fora do
antropologia, comunicação e
interdisciplinar. Todos que encontrei online, com pessoas ou com os terreiros
foram publicados a partir do ano 2000, de candomblé.
período quando acontece A trabalho de Tramonte (2001) busca
desenvolvimento da internet no Brasil. suprir uma lacuna nos estudos sobre
Neste sentido as pesquisas se valeram religiosidade afro-brasileira, na grande
dos espaços virtuais que estavam mais Florianópolis, trazendo a trajetória
evidentes naquele momento, isto histórica destas manifestações no final
significa que a dinâmica, a fluidez e as do século XIX até o ano 2000, e o perfil
mudanças neste “campo virtual” lhe são que elas assumiram e de seus
característicos e podem interferir na praticantes desde então. A autora dedica
investigação dos fenômenos estudados. uma parte deste trabalho para estudar
Isto é que procuro destacar nestes nas religiões afro-brasileiras na Grande
trabalhos coletados, algumas nuances Florianópolis, a atualidade de suas
sobre os campos de pesquisa escolhidos. práticas, concepções e desafios, e assim
Nuances na delimitação dos busca traçar um perfil destes, tanto nos
“campos” aspectos físicos e especificamente
territoriais, quanto simbólicos e
A tese de Freitas (2014)2 analisa o lugar religiosos. A autora identifica três
ocupado pela mídia para reconfiguração terreiros possuidores de homepages na
internet, nas quais são disponibilizadas
2
Este trabalho foi publicado em 2014, como
informações diversas, tais como: rezas,
consta nas referências bibliográficas, porém a preces, deveres de um médium,
tese foi defendida em 2002. conhecimentos visando aprofundamento

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religioso, listas de participantes por e- trabalho de campo sofre
mail, com os quais trocam mensagens. constrangimentos relacionados não só a
Neste caso, o campo da pesquisa foram méritos científicos, mas também as
os terreiros offline, que ofereciam influências políticas acadêmicas,
serviços online também. Atualmente, escolha de temas, regiões geográficas,
algumas casas de culto ainda mantem grupos sociais, etc.
sites, reflexo constantes transformações Em Lopes (2012), que faz sua pesquisa
no ciberespaço3. Mas adotam também o nas casas de candomblé do estado do
facebook e no Instagram cujos links Ceará, que buscam através da
para ingressarem nestas plataformas, tecnologia digital, sacerdotes mais
costuma aparecer sinalizados nestes experientes em outros estados, para
antigos sites. suporte na realização de seus rituais, a
Outra pesquisa é a de Santos (2002), sua referência para construção dos
que investigou o processo de relações dados foi as comunidades do Orkut4,
entre candomblé, tecnologia, história e mais influentes entre os terreiros de
comunicação, para desenvolver uma Fortaleza (CE). Foram usados nesta
compreensão do imaginário desta pesquisa as postagens, que geravam
religião e de suas deturpações. Com isto maior numero de interações e diálogos
o autor pretendeu apreender os presenciais, fora da esfera virtual, mas
meandros que conduziram uma religião que algumas vezes se iniciaram no
de origem “aldeã”, baseada em formas espaço online. Neste caso, o “campo” é
sociais solidárias e de estrutura a mistura das esferas offline e online, o
comunitária, a adaptar-se ao ambiente que não significa uma dicotomia. O
da metrópole contemporânea, antigo Orkut, o Facebook, Instagram
absorvendo para si expressões da lógica são os novos contextos situacionais de
capitalista, da mídia, do mercado e dos comunicação, que não substituem a vida
meios de comunicação. Ele analisou os offline pela online, são sim práticas
símbolos, mitos, ritos e discursos dos sócias contemporâneas que se
adeptos sobre formas religiosas entrelaçam e se articulam, sem
presentes nas postagens em fóruns separação (BARTON; LEE, 2015).
virtuais, a partir de uma interpretação A pesquisa de Silva (2013) objetivou
hermenêutica destas linguagens. Ao que ampliar os estudos sobre religiões afro-
parece, a delimitação deste “campo” foi
brasileiras no ciberespaço. Como ela
providencial para fazer emergir sentidos está interessada nas possibilidade
e significados das postagens, advindas com estes novos canais
corroborando com as perspectivas virtuais, capazes de promover debates
teóricas apresentadas pelo autor. Isto intramuros do terreiros, ampliando o
equivale ao que Silva (2000) nos diz, diálogo com estudiosos sobre religiões
sobre as regras acadêmicas que definem afro-brasileiras, tomará como campo, o
a forma de conhecimento na youtube, os sites e blogs de sacerdotes
antropologia, que é sua área específicas, no qual a sociabilidade e transmissão de
mas é semelhante nas demais áreas conhecimento são a tônica, além da
cientificas. Este autor afirma que o páginas oficiais dos terreiros na web,
3
compondo o que a autora chama de
A necessidade de constante atualização dos
sites, fez que com os usuários migrassem para
4
outras plataformas virtuais de divulgação, mas Plataforma virtual de comunicação, uma rede
dinâmicas, interativas e de melhor manuseio das social, filiada ao Google, criada em 2004 e
postagens. desativada em 2014.

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“panorama do ciberespaço afro- pessoais, tanto objetivas como
religioso”. Há, portanto, uma ampliação subjetivas. No caso de Silva, esta valeu-
do campo, se comparado as pesquisa se de diferentes canais virtuais, para não
anteriores. Mas estas escolha não são ao correr o risco de não chegar ao final de
acaso, tanto no que se refere aos seu trabalho, ciente que as “regras de
objetivos definidos para pesquisa, como trabalho de campo”, sobretudo religioso
na escolha dos vários meios virtuais. afro-religioso, exigem prescrições
Esta pesquisadora assume, em seu desafiadoras.
trabalho, sua condição de abiãn ou
iniciante no candomblé, um aspecto Minhas implicações na delimitação do
marcante e bastante debatido pelos campo
estudiosos sobre religiões afro- Vimos nas secção anterior uma série de
brasileiras, pelas obstáculos que isto nuances com relação à definição dos
pode trazer durante a interlocução com campos de pesquisa apresentados, como
o povo-de-santo e no acesso ao universo a não separação entre as esferas online e
sagrado, para produção da pesquisa. O offline; que fenômenos pesquisados em
posicionamento desta autora fez com certos espaços virtuais estão a mercê
que alguns dos desafios citados acima das mudanças continuas no ciberespaço
aparecessem em seu percurso, mesmo e das inovações tecnológicas
sendo mais amenizados por tratar-se de comunicacionais, que afetam as formas
uma etnografia virtual. Ela conta de que como agimos no mundo, como visto na
adotou, nas interações com internautas pesquisa de Freitas (2014), onde
do axé, um pouco da etiqueta contexto foi de uma internet ainda não
apreendida na convivência nos popularizada e com Tramonte (2001),
terreiros5: onde os terreiros ainda usavam os sites,
“[...] evidenciar meu pertencimento e não existiam as redes sociais; que as
e lugar na religião, demonstrar delimitações de campo estão amarradas
curiosidade discreta acerca dos a fatores que vão além do mérito
conhecimentos rituais, reverenciar cientifico, para que se mantenha o
os internautas mais velhos no santo, alinhamento com as escolhas teórico-
silenciar quando as discussões metodológicas; e por fim que as
esbarravam em fundamentos eram escolhas que fazemos na pesquisa não
alguns dos vários itens que nos tiram dela, ao contrário são
compõem o que chamo de netiqueta
extensões daquilo que somos e do lugar
do povo de santo.” (SILVA, 2013,
p.18-19)
que ocupamos no processo
investigativo.
Em contrapartida, Silva narra que em
alguns momentos precisou romper com Diante disso, ao definir o facebook
esta conduta, em função de assegurar como meu campo de pesquisa precisava
sua posição no campo da pesquisa, justificar o porquê desta plataforma,
travando diálogos e disputas com os diante das opções existentes no
demais internautas do axé. Vejo, ciberaxé. Como o objetivo da pesquisa
portanto, que as definições do campo é investigar as estruturas formativas e
não deixam de lado nossas condições de difusão do conhecimento sobre
candomblé, penso que estas estruturas
5
sejam semelhantes, no youtube, no
Ela conta que conviveu, vários anos, em casas
de candomblé, por conta de seus laços de
Instagram, ou em um site. Assim, optei
parentesco sanguíneo, embora não tenha pelo facebook pois possuo mais
passado pelo ritual de iniciação. domínio no manuseio desta. Dentro do

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facebook, um outro recorte feito foi lugar de fala, ao mesmo tempo em que
entre as inúmeras paginas e grupos que interrogo este protagonismo para a
tratam da temática do candomblé e que produção deste fenômeno sob análise.
fazia acompanhamento. Escolhi, aquele Tenho acompanhado tensões no
que possuía maior número de cotidiano das relações internas das roças
seguidores, o grupo AZUL6. de candomblé, tanto na que sou
Ainda considerando minhas membro, como em outras com as quais
possibilidades e limitações preciso tenho laços de amizade. Acredito que
destacar meu lugar de inquietação estas tensões sejam produzidas por
perante a pesquisa, como sujeito fatores diversos, dentre eles a difusão de
implicado. Ao falar de estudos saberes virtual. Neste caso mais
envolvendo sujeitos implicados, Merhy específico, são frequentes as queixas de
(2004) dirá que o problema para estes sacerdotes mais antigos, com relação ao
interlocutores é a inexistência de perfil daqueles que se iniciam, em
objetos nítidos e isoláveis; e não é função de seus questionamentos, por
também como estar diante de sujeitos resistirem às regras dos rituais e as
que reconhecem que seus etapas seguidas dentro do culto,
posicionamentos teóricos são variáveis conforme ensinamentos adquiridos das
nos estudos que buscam compreensão gerações anteriores. Da parte dos que se
iniciam, aparece outra perspectiva de
dos atos de sujeitos sociais, enquanto
fenômeno social ou histórico. Este críticas: eles/as questionam as formas
autor acredita que estamos diante de tradicionais de aprendizagem e
situações nas quais não é possível ter sociabilidade do candomblé, por
tão nítido a possibilidade de construção considerarem elas antagônicas ao modo
de vida na sociedade atual. Não se trata
do sujeito epistêmico como um a priori,
como garantia da cientificidade do apenas de um conflito de gerações ou da
empreendimento que busca construir diferença entre modos de vida de dentro
um saber. da roça “versus” de fora da roça;
suspeito que tenha a ver com o fato
“o sujeito que interroga é ao mesmo destas pessoas (os/as iniciantes) terem a
tempo o que produz o fenômeno possibilidade acessarem os saberes do
sob análise e, mais ainda, é o que culto virtualmente, de maneira
interroga o sentido do fenômeno
indiscriminada, em qualquer tempo,
partindo do lugar de quem dá
sentido ao mesmo, e neste processo
sem qualquer tipo de mediação pelos/as
cria a própria significação de si e do mais antigos/as no culto, de forma
fenômeno” (MERHY, 2004, p.12). autônoma e, em muitos casos distantes,
do espaço físico da roça. Eles/as (em
sua maioria mais jovem
Na minha condição de sujeito cronologicamente) chegam trazendo
implicado, pois pertenço também a uma “informações” pesquisadas não só da
roça de candomblé,7 evidenciando meu literatura acadêmica sobre religiosidade
afro-brasileira, mas também no ciberaxé
6
Alterei o nome original do grupo e atribui este e problematizam os fazeres instituídos,
fictício, visando preservar a identidade dos sobretudo se diferem do “apreendido”
membros.
7
Sou iniciado como ogan, a mais de vinte anos,
teoricamente, em suas “pesquisas”. Se
pela Iyá Marlene de Nanã, do Terreiro Vintém no passado, as possibilidades de acesso
de Prata e sou neto da Casa de Oxumaré, ao saber litúrgico do candomblé, fora
atualmente conduzida por Babá Pecê, ambas dos procedimentos tradicionais destas
localizadas em Salvador/BA.

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comunidades, só aconteciam através das aves, peixes, quadrúpedes, bois
publicações acadêmicas, por alguns inteiros, e até um búfalo velho da
poucos que conseguiam atingir os níveis carne bem dura trouxeram, pra ver
escolares universitários e/ou acessavam se aplacava a fome sobrenatural do
literatura tão peculiar; atualmente com recém nascido.
Mas nada saciava a fome de Exu, o
as diferentes publicações no ciberespaço
arado!
envolvendo o sagrado, qualquer pessoa Já sem alimentos, o povo viu
pode se arvorar a expressar opiniões assombrado Exu avançar sobre os
sobre este assunto, mesmo sem nunca telhados, as paredes das casas, as
ter cruzado, de fato, os limites físicos da árvores, os matos e próprio chão. A
porteira de uma roca de candomblé. E o tudo tragava com uma avidez que
mais interessante, um internauta afro- só parecia aumentar, na medida em
religioso8 pode conseguir seguidores que engolia o que encontrava pela
virtuais, sejam eles/as pertencentes ao sua frente (...)
povo-de-santo ou não! A ideia de trazer este trecho do itan de
No grupo AZUL, tenho visto inúmeras Exu, para descrever o que foi
postagem que traduzem este sentimento encontrado durante um período de
dos membros do candomblé, sobretudo acompanhamento mais sistemático, no
entre os/as mais novos/as, de grupo do facebook, intitulado: AZUL, é
inquietação as regras impostas no para expressar o que esta página pode
aprendizado cotidiano das roças de significar, com base em suas
candomblé. Mas verifico também outros publicações e compartilhamentos entre
direcionamentos e proposições valendo- seus mais de 170.000 seguidores9. No
se das possibilidades que as ferramentas itan, a fome ensandecida de Exu segue
virtuais disponibilizam. É o que me numa dinâmica crescente, a ponto de as
proponho a apresentar na próxima pessoas a sua volta começarem a prever
secção. que ele comerá tudo e todos. De forma
semelhante o facebook, como rede
Os grupos do Facebook: “a boca que social, segue gradativamente
tudo come” “devorando” o lugar ocupado pelas
E diz que Exu, quando nasceu, teve outras mídias sociais (TVs, rádios,
uma fome sem fim. jornais impressos), na medida em que
E seus pais, Orunmilá e Iemanjá, além de ser um meio de relacionamento
lhe davam de um tudo para aplacar entre pessoas, assume também a tarefa
a fome, mas sem sucesso. de veicular informações, promover
De primeiro sugou todo o leite dos entretenimento, comercializar produtos,
peitos de Iemanjá e continuou
etc. No caso das páginas e grupos do
berrando de fome:
-Cumê, quero cumê! facebook, dedicadas às religiões
Orunmilá trouxe o que havia de afrobrasileiras, verifiquei que as
mantimento na despensa e ofereceu possibilidades e formas de uso são
ao filho que, escancarando uma definidas a partir da criatividade, das
bocarra de jacaré, engoliu tudo sem inovações, das reinvenções e do
nem mastigar e continuou: crescente domínio técnico adquiridos
-Cumida! Tenho fome! pelos usuários sobre as TICs e o
Veio gente de todo canto trazendo ciberespaço. Ou seja, o facebook é a
grãos, frutas, verduras. Ofertaram boca que tudo come!
8
Expressão usada na dissertação de mestrado de
9
Silva (2013) Estes dados são de 10/07/2018

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A minha entrada no grupo AZUL, Esta vinculação entre orixás e dias da
aconteceu em março de 2017. Desde semana faz parte de um amplo processo
então fui sendo notificado quando as de associações simbólicas e reinvenções
publicações mais relevantes culturais produzidas, a partir do contato
aconteciam10, ou seja, aquelas com das entre as três matrizes civilizatórias
maior número de interações, através das formadoras da sociedade brasileira: as
opções fornecidas pelo facebook populações negras, trazidas de
(visualizações, compartilhamento, diferentes regiões do continente
comentários e curtidas). Neste período Africano; os europeus que dominaram o
de um ano (de março/2017 a processo de colonização do Brasil; e os
março/2018), além do grupo AZUL, povos indígenas, habitantes naturais
acompanhei outras páginas e grupos desta terra. Estas associações resultaram
semelhantes do facebook, de onde em práticas e costumes assumidos
também recebia delas as notificações cotidianamente, associadas a cultura
das publicações mais relevantes. popular, mas vistos também como
Contudo, após as orientações adquiridas manifestação sincrética, ou ainda como
no momento da qualificação, escolhi um uma estratégia negra de africanização
único grupo para um acompanhamento do catolicismo europeu. O fato é que
diário. O critério utilizado nesta escolha este simbolismo permanece
foi o escolher aquele que tivesse maior representado nas postagens do AZUL,
número de membros. associando datas e meses santificados
Fiz o acompanhamento do CCK durante pelo catolicismo, com os orixás; mas
sete dias seguidos. Entrava sempre as não só isso, as cores, os elementos da
21:00h, recuperava as postagens natureza, objetos ritualísticos
característicos de cada orixás
anteriores, que aconteceram mais cedo
durante o dia, depois seguia verificando complementam estas representações.
e registrando as mais recentes até as No facebook, de um modo geral, o
00:00h, quando me desconectava. Antes material publicado está em formato de
de iniciar esta sequência de observação, texto, de imagem, em foto e em vídeo;
suspeitava que o dia da semana o som normalmente faz parte deste
determinaria para qual orixá seria a último, porém acontece de estar
maior demanda de publicações11. De associada com os demais formatos. A
fato, meu palpite se confirmou. Por isto, diferença entre imagem e foto adotada
restringi esta observação sistemática em aqui é quanto ao conteúdo: as fotos
uma semana apenas: na segunda-feira a contêm pessoas, lugares e objetos; já as
maioria das postagens faz referência a imagens são desenhos, pinturas e
Omolú, Nanã e Exu; na terça para gravuras. As publicações podem conter
Ogún; quarta-feira Xangô, Iansã, Obá e texto com imagem ou imagem com
Ibeji; quinta-feira Oxossi; e sexta-feira vídeo; ou aparecerem em formato único,
Oxalá; no sábado para Oxum, Iemanjá e por exemplo, só o texto. No caso do
demais Iabás; no domingo não tinha grupo AZUL, estes formatos de
uma especificidade. publicação se repetiram durante a
semana em que fiz o acompanhamento,
10
perfazendo a seguinte classificação:
Trata-se de uma das várias ferramentas,
disponíveis no Facebook.
11
Desenvolvi esta suspeita, durante o ano de
 Textos: Crônicas e
observação (entre março de 2017/2018), no poemas; propaganda (produtos,
CCK e nas outras páginas e grupos. eventos, serviços, cursos);

71
relatos de experiencias; entidade, ou em momento de
questionamentos, explicações e transe; Artísticas: montagem de
opiniões sobre o sagrado; cenários com pessoas e
narrativa de lendas; interjeições elementos ligados ao sagrado.
(saudações, pedidos de ajuda, Ex.: homem deitado com milho
manifestações de sentimentos, branco ao redor de sua cabeça/
expressões de desejos close de trilho de trem com uma
individuais/coletivos inspiradas espada depositada sob o trilho;
na crença no candomblé, nos propaganda: de terrenos para
orixás e demais entidades que construção de roças, de espaço
compõem este universo físico de roças para realização
religiosos). de festas, de produtos usados no
candomblé (roupas, utensílios,
 Vídeos: De afazeres contas, instrumentos, bichos,
cotidianos dentro da roça, de etc.), utensílios inspirados nos
festas e de evento; pessoas orixás (joias, camisas, etc.).
incorporadas com entidades
(orixás, caboclos, pretos-velhos,  Imagens: Das entidades
padilhas, etc.) em rituais; Live do candomblé/umbanda; De
de pai-de-santo, tratando de símbolos relacionados com as
assuntos diversos sobre entidades do
candomblé, dando orientações candomblé/umbanda (espelhos,
aos/as seguidores/as, fazendo espadas, fogo, raios, rios,
jogo de búzios; pessoas tridente, homem negro com
cantando cantigas de diferentes chapéu, terno e calça branca,
nações e de MPB (com tema mulher com roupa de cigana,
sobre candomblé), em rituais e etc.); cartazes de propaganda de
fora destes (em casa, indo para cursos e serviços relacionados
escola, na rua, etc.); com candomblé
Declamando poemas e narrando Tratando ainda do critério de escolha do
textos sobre candomblé, etc. grupo AZUL, é possível ver que a
página Casa de Oxumaré é a de maior
 Fotos: De afazeres
cotidianos dentro da roça, de número de seguidores. Entretanto, levei
festas e de eventos; de pessoas em consideração que as publicações
incorporadas com entidades dela estariam sobre o clivo dos/as
(orixás, caboclos, pretos-velhos, administradores/as do terreiro Oxumaré,
padilhas, etc.) em rituais; de por se tratar de uma página oficial do
paisagens e símbolos mesmo (esta informação consta na
relacionados com as entidades página) e não é qualquer membro
cultuadas no seguidor/a que está autorizada a fazer
candomblé/umbanda; de pessoas publicações. Os/as seguidores/as ficam
sozinhas ou em grupo (selfs) restritos/as a interagirem com o que for
vestidas de roupa de candomblé postado pelo terreiro. Diferente do que
ou de torço, ou ainda com vi no grupo AZUL, onde todos os
contas, dentro do espaço do membros podem fazer publicações,
terreiro ou fora; “self de transe”: desde quando se sigam as regras
pessoas quando elas estão estabelecidas pelos/as
incorporadas com alguma administradores/as do grupo:

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Descrição três línguas, sugere o conhecimento de
Itáns, Cantigas e Curiosidades um princípio exercido nas roças,
sobre os Orixás!!! sobretudo no momento das celebrações
públicas, dos xirês, quando o terreiro se
Regras: NÃO É PERMITIDO abre para acolher a todos/as, independe
FALTA DE RESPEITO NÃO É
da nação em você tenha se iniciado.
PERMITIDO PROPAGANDA
QUE NÃO TENHAM HAVER Considerações finais
COM A RELIGIÃO. NÃO É
PERMITIDO POSTS Pesquisa ainda se encontra em
OFENSIVOS E andamento, mais análises investigando
PRINCIPALMENTE ESTAMOS possíveis bases estruturantes e
AQUI PARA PODERMOS categorizações do material publicado
ENSINAR E APRENDER UNS ainda precisam ser feitas, a percepção
COM OS OUTROS. AO FAZER de permanências, inovações e
UMA PERGUNTA FAÇA DE transformações com relação ao que é
MANEIRA ORGANIZADA E
difundido sobre o candomblé, carece de
BEM EXPLICADA PARA QUE
POSSAMOS RESPONDER! reflexão mais aprofundada. Digo isto
KOLOFÉ, MUKUIÚ e porque, ainda que o ciberespaço tenho
MOTUMBÀ... propiciado a desenvolvimento de novas
práticas sociais, e que elas já estejam
Adms: Leandro de Ayra, Marcia de
impregnadas em nosso cotidiano, isto
Yoba, Paulo de Ayra e Roberval
Sousa.
não significa dizer que certas condutas
atribuídas a existência das redes sociais
Tipo de grupo não ocorriam antes, talvez não
Equipe (Facebook, Grupo AZUL, acontecessem da mesma dimensão e
em 27/03/2018) forma, contudo, não são
necessariamente novidades. Para dentro
Este é um grupo democrático, em que
do âmbito do candomblé, cabe este
todos fazem publicações. Isto me
mesmo questionamento: será que a
permitiu constatar, por exemplo, que a
circulação de fotos e textos sobre o
ideia de interdição, de limite, do que é
sagrado começou com a internet? E as
proibido, exagero ou o contrário de tudo
gravações de cantigas e rezas, só
isto, é diversificada, pois passa pela
começaram agora?
compreensão e pelos olhares e vivências
dos sujeitos autores das publicações. Eis Outra questão a saber é se as postagens
um aspecto já conhecido neste campo, possibilitam ao sujeito expressar tudo e
das especificidades que caracterizam os de muitas formas, que reflexo isto pode
espaços afro-religiosos e formas de ter nestas pessoas? Será que vai
manuseio do sagrado. Outro dado interferir na forma como enxergam e se
relacionado com a diversidade do grupo relacionam com o candomblé? No que
AZUL, pode ser visto no texto da tange a preparação do solo de pesquisa,
própria descrição que encerra com o na delimitação deste campo, acredito
pedido de “benção” em três línguas chegou em um ponto razoável de
distintas, oriundas de etnias africanas aceitação, ao menos, enquanto novas
trazidas para o Brasil no período da configurações não apareçam no
escravidão: kolofé – Jêje; mukuiu – ciberespaço alterando as ocorrências no
Bantu; e motumbá – Ketu. Esta atenção Facebook.
dos/as administradores, no sentido de
“tomar a benção” aos/as seguidores nas

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Referências assistencial, com base no processo de trabalho.
São Paulo: Hucitec, v. 1, p. 21-45, 2004.
BARTON, David; LEE, Carmen. Linguagem
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do sujeito implicado: o desafio de reconhecê-lo
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como saber válido. In. FRANCO, T. B. e
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uma experiência de mudança do modelo
Recebido em 2018-06-20
Publicado em 2018-08-07

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