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Sumário

Apresenta çã o
9
Introduçã o
— 15

PARTE I TRANSFORMAçõES CARISMáTICAS


1 A Retórica da Transformação no Ritual de Cura
29
2 A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia 101
3 A História da Aia 147
4 A Aflição de Martin 165

PARTE II TRANSFORMAçõ ES NAVAJOS


5 Cura Ritual e a Política de Identidade
na Sociedade Navajo Contemporânea 223

6 Fale com Eles para que Entendam 259

7 A Ferida que nã o Cura 299

8 Palavras do Povo Santo 337

PARTE III MODULAçõES DA CORPOREIDADE


367
9 Modos Somáticos de Atenção
Realidade Virtual 395
10 Sombras da Representação e Ser na
431
Bibliografia
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Apresenta çã o

Carlos Alberto Steil'


Luis Felipe Rosado Murillo"

A contribuição de Thomas Csordas à antropologia brasileira se mostra


hoje como um fato inconteste. Em diversas áreas de pesquisa, da antropo-
logia da sa úde à antropologia da religião, as referências a este autor se im-
põem como uma interlocução fecunda e instigante. A sua relaçã o com o
Brasil, no entanto, vai bem mais longe do que a de simples referência literá-
ria e se traduz em outras formas acadêmicas e pessoais de interação como
projetos de pesquisa e intercâmbio com pesquisadores brasileiros, além de
sua participação em eventos científicos no país. Csordas esteve diversas ve-
zes no Brasil como professor visitante no Museu Nacional/UFRJ e como
coordenador do Projeto de Pesquisa Capes/ Fipse, que integra a Universida-
de Federal do Rio Grande Sul (UFRGS) e a Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Seu interesse pelo Brasil está marcado por uma relação de respeito

* Carlos Alberto Steil é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e fez seu pós-
doutorado na Universidade da Califórnia, San Diego, sob a supervisão de Thomas Csordas.
** Luis Felipe Rosado Murillo é estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e realizou intercâmbio
na Universidade da Califó rnia , San Diego, no Projeto Capes/ Fipse, coordenado na época
por Thomas Csordas e Carlos Alberto Steil .
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
m
I; c reconhecimento, o que o torna um interlocutor central no di á logo Brasil-
Estados Unidos na á rea da antropologia.
Csordas pertence a uma tradi ção de pesquisa que o situa no â mbito da
I
antropologia psicológica, onde se destaca por su íyfabordagem fcnoincnoló-

F \ ^
gica especialmente pela proposta de uma antropologia da corporcidadc*
cinbodimcni) , apresentada como um paradigma complementar à antropo-
logia simbólica e interpretativa. Atualmente é professor na Universidade da
Califórnia, San Diego, no Departamento de Antropologia. Suas pesquisas
í sobre os carism á ticos católicos e sobre os navajo o têm projetado no campo
da etnologia e da religião. Mas é, com certeza, por sua abordagem teó rica e
metodol ógica que ele alcan çou reconhecimento e prest ígio nos Estados
Unidos e fora daquele país.
Thomas Csordas situa-se, por certo, entre os autores contemporâ neos
que, com diferentes orientações e em disdntas direções, se colocaram a tare-
fa de ultrapassar um certo limite encontrado nas abordagens interpretativa e
semiótica, as quais fizeram dojfsignnTcadõ/ o ponto de chegada da an álise
antropológica. Sua perspectiva , por sua vez, procura ir além do significado,
estabelecendo como horizonte de pesquisa a compreensão da experiência
/ j
“do que significa ser humano” , enquanto “um corpo no mundo”, entre
outros corpos e objetos, por meio de uma tentativa reiterada, ao longo de
toda sua obra, de responder a questão de “como nos tornamos humanos”.
A sua força argumentativa está em juntar consistentemente uma for-
mulação filosófico-metodológica com a riqueza do relato etnográfico, ela-
borado a partir de contextos diversificados de pesquisa de campo. Essa /

* A tradução do termo “embodiment” foi alvo de inúmeras discussões entre o tradutor, os


revisores técnicos e alguns pesquisadores que trabalham na área da antropologia do corpo
e da saú de no Brasil . Em outros trabalhos, o termo fora livremente traduzido por
“incorporação”, “corporificação” e “encorporificação”. Estes termos não são os mais adequados.
Resolvemos, então, recorrer às traduções brasileiras ( Francisco Alves — Reginaldo Di Piero,

1971 ; Martins Fontes Carlos A . R. de Moura , 1994) da Fenomenologia da Percepção de
Merleau-Ponty para decidirmos qual seria a tradução que iríamos adotar. Pelas referências à
corporeidade em ambas as traduções, acabamos por optar por esse termo. Tanto o autor
como o tradutor julgaram a escolha como a mais adequada . A tradução inglesa de Colin
Smith (Roudedge & Kegan Paul , 1962) citada por Csordas também foi consultada .

10
Apresenta çã o

combinaçã o , cm que os dados etnográ ficos vê m complementar as intui ções


filosóficas da fenomenologia , permite-nos partilhar de um novo campo de
possibilidades investigativas abertas pelo paradigma da corporeidade '
^
Corpo /Sigtiificado/Cura é um livro-sí ntese dessa proposi ção, daí sua
importâ ncia como o primeiro livro de Thomas Csordas a ser traduzido
para o portugu ês brasileiro. Ao mesmo tempo em que apresenta o que o
autor define como o paradigma da corporeidade, fio condutor do livro,
tamb é m oferece uma sé rie de experiê ncias etnográficas que permite ao lei-
tor avaliar a importâ ncia de sua contribui ção para a realização de pesquisas
antropológicas que, de alguma maneira, respondem às suas inquietações de
ordem teórica, metodol ógica e pol ítica.
jAo dirigir o seu foco para a experiê ncia corpó rea, Thomas Csordas
defende que a abordagem da corporeidade está para al é m da representação e
do discurso, sem, contudo, deixar de incluir essas dimensões. Essa é a pedra
de toque da sua abordagem do corpo, que n ã o é mais nem o corpo como
mero instrumento, corpo significado, nem o corpo como lugar de inscrição
(para fazermos uso da metáfora textualista) da cultura, mas é o corpo feno-
mênico, o corpo como locus da cultura, meio de sua experimenta çã o do
“fazer-se humano” em suas m últiplas possibilidades /
Sua reflexão sobre o corpo desdobra-se em diversos vetores que sã o
inventiva e rigorosamente explorados em vista do colapso das dicotomias
mente-corpo, sujeito-objeto e estrutura-prá tica. Para levar a cabo tal tareíà,
são combinados, de forma bastante produtiva, los trabalhos de Merleau-
Ponty sobre o corpo e a percepção e os de Bourdieu sobre o habitus, en-
quanto sistema de disposições feitas corpo/ Se a tarefa do pesquisador, na
perspectiva da antropologia psicológica, é a de investigar a forma como os
sistemas objetivos de símbolos e significados são experimentados pelos in-
divíduos, a contribuição de Csordasje a de situar o corpo como o solo

^
existencial do sujeito e da cultura Ao dar essa formulação à sua abordagem,
Csordas estabelece, em suas pró prias palavras,Jj3 paradigma da corporeida-
de como um parceiro dial é tico ao paradigma da cultura enquanto texto” e
nos permite investigar o quanto o mundo nos é constitutive^
Na á rea da religião, o paradigma da corporeidade traz consigo a aposta
de que a experiência religiosa é um observató rio privilegiado das relações
entre corporeidade e significação. A pesquisa de Csordas sobre os carismá ti-

11
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

í
: cos católicos fornece elementos etnográficos muito ricos para pensar os
mecanismos e os dispositivos acionados na constituição do sujeito, enquan -
to um processo pelo qual nos tornamos humanos. Sua pergunta sobre “o
£
que é realmente ser curado pela performance do xam ã, do m édico ou do
curador religioso”, traz para o centro da sua investigação a questão da cura ,
1 como um elemento integrador de diferentes campos do conhecimento e da
experiê ncia humanã|Essas aproximações são realizadas em muitos dos capí-
i tulos que compõem este livro, com o objetivo de apontar para uma dimen-
! são da existência humana que ultrapassa os sistemas particulares de
significação. Seu tratamento da religião devolve-lhe a função heurística que
ela desempenhou na tradi ção clássica das ciê ncias sociais, retomando o di á-
logo da antropologia com a filosofia, em grande parte interrompido por
um certo particularismo interpretativista que dominou o pensamento an-
I tropológico contemporâneo.
[ No que diz respeito à busca pela saúde e a cura, o vetor de desenvolvi-
mento do trabalho de Csordas está també m referido ao campo de estudos
da antropologia médica O autor parte do conceito de Kleinman de “siste-
^ /
ma de saúde” para analiticamente tratar das diferentes respostas culturais
/ [’O' para manifestações de doença e enfermidade de diferentes grupos. A ênfase
é colocada não em um corpo individual, substrato biológico universal so-
bre o qual atua a cultura, mas em um corpo fenomênico, que é a sede de
diferentes formas de ser/estar no mundo, como condição para diferentes
formulações culturais de enfermidade/doença e de procedimentos de cur| ã
/ Cabe perguntar sobre o sentido complementar que Csordas reconhece
entre o paradigma da corporeidade e o paradigma da linguagem, na relação
entre corpo e texto. Ainda que reconhecidamente a abordagem discursiva
seja extremamente eficaz em seu propósito de desvelar os processos pelos
quais a linguagem é animada por relações de força , algo sempre escapa do
discurso, uma dimensão subjetiva que é da emoção, da intuição, do movi -
mento em suma, de elementos da experiência corp ó rea que n ão se reduzem
ao discurso. Ao invés de postular que a ú nica possibilidade de contato dos
sujeitos com o mundo é através da mediaçã o da linguagem , o paradigma da
/
corporeidade afirma que os sujeitos humanos só podem se conectar ao
mundo sob a condição de, anteriormente, trazerem a experiência de “estar
no mundo” para a linguagem/ Ou seja, é essa condição pré-objetiva, dir ía-

12
Apresenta çã o

mos pré-discursiva , que é trazida à tona pelo paradigma da corpore í dade e


que cumpre ser igualmente investigada como complementar aos processos
de objetivaçã o. Eis que no campo da antropologia da linguagem o paradig-
ma da corporeí dade deixa a sua contribui çã o por meio do deslocamento da
concepção instrumental e da fun çã o representativa da linguagem para uma
/
abordagem em que a linguagem é pensada como uma dimensão do corpo
socialmente informado e n ã o pura e simplesmente a capacidade de uma
mente apartada do mundo
^
Cabe ao leitor, portanto, avaliar, na sequ ê ncia das páginas deste livro-
s ntese do pensamento de Thomas Csordas, as possibilidades e potenciali
í -
dades que o paradigma da corporeí dade abre para o repensar crítico das
premissas e das formulações da hermenê utica e da semió tica como pensa-
mento hegem ó nico na antropologia brasileira. Menos como uma ruptura e
mais como uma interlocução privilegiada com o paradigma da linguagem e
do texto, o paradigma da corporeí dade se apresenta, entre outras aborda-
gens atuais, como uma contribui çã o importante para o desenvolvimento
do pensamento antropol ógico. E convida-nos a dotar o nosso oficio de
antropólogos de maior sensibilidade para com a riqueza da experi ência que
escapa do texto, escrito ou ritual, por meio do retorno aos processos primá-
rios da base existencial e corpórea da cultura.

13
\

I
Introdu çã o

Quando crian ça, na d écada de 1950, eu ficava mesmerizado na frente


da televisão, vendo a primeira geração de curandeiros da TV, como Oral
Roberts e Kathryn Kuhlmann , levar ao ar suas preces. Algo da musicalidade
e da cadência de linguagem deles, algo da sua invocação do poder divino e
da compaixão, algo da exultação e da dor de seus auditórios ardentes, algo
da diferen ça entre aquilo tudo e as coisas que eu conhecera em meu pró prio
ambiente de católico romano enchia-me de encantamento. A questão de o
que estava realmente acontecendo na experiência dos suplicantes de seus
corpos devastados pela doença e o sofrimento me deixava constantemente
intrigado. Dezenas de anos depois, quando resolvi me tornar antropólogo,
fiz questão de ficar profissionalmente fascinado com a multiplicidade de
respostas do mundo à pergunta “o que significa ser humano?” Mais uma
vez eu me vi atraído para[o problema de como a religi ão tenta fornecer
) significadq[ através da cura/ O deslumbramento inicial foi renovado com a
observação de que tantos povos do mundo tentavam responder a questão
de o que significa ser humano invocando poderes ou entidades que por
definição eram tudo, menos humanos.
Meus estudos levaram a um mundo de curadores incluindo xam ãs,
remedistas, benzedores, médicos feiticeiros, curandeiros, médiuns espiritas,
lamas, charlatães e médicos. Com alguma ironia, quando em 1973 eu esta-
va pronto para iniciar, em primeira m ão, o meu pró prio estudo desses fenô-
menos, a cura pela fé, tal como eu assistira quando criança, começava a ser
praticada em um movimento chamado Renovação Carismática, no qual os
CORTO / SIGNIFICADO / CURA

participantes eram católicos de formação cultural bastante semelhante à


minha. Decidi começar a investigação por esse tipo de cura, que era, de
: algum modo, familiar para mim e a partir do qual eu poderia mais tarde
I avançar para formas de cura menos familiares.

JEste livro descreve a trajetória dessa investigação sobre o significado de
\ f - ser humano, o significado de nossa existência como seres corp ó reos
maneira como

o significado é algumas vezes criado na experi ência do sagra-
a

U 'do - e o significado das transformações que podem ocorrer em tal experiên-


,

r . ~ cia do sagrado Baseados nessa preocupação central , os capítulos que se seguem


^
desenvolvem duas agendas intimamente relacionadas, uma mais empírica e
outra mais teórica.[Ã agenda empí rica deve apresentar uma análise de cura
religiosa com o objetivo de articular uma compreensão do processo tera-
pêutico generalizável através das tradições de cura, fiel à experiência tanto
dos pacientes quanto dos curadoresjEssa é uma agenda comprometida não
apenas com a idéia de que tais formas de cura são análogas àquelas da medi-
cina formal e da psicoterapia, mas de quejhá também algo explicitamente
religioso na ciura religiosa, algo que possui uma profunda capacidade de
efetuar ajtrãnsformaçãõ/da cultura e do sujeito|A agenda teórica relacionada
é a de elaborar a noção de corporeidade1 conio uma base para compreender
a natureza da experiência humana na cultura. Ela emergiu em um momen-
to da teoria antropológica em que a “experiência” estava sob a suspeição de
ser indefinível ou inacessível. Ao resistir a essa tendência, vim ajcompfeen-
der a experiência comofsigruficância do significádõTÁmediata tanto no sen-
/ tido de sua concretude, sua abertura subjundva, sua desobstrução da realidade
Jr - sensorial , emocional e intersubjetiva do momento presente como também
no sentido de ser a rica ascensão não-mediada, impremeditada, espontânea
/ •

ência como a significância do significãcfe^|


^ ^
ou não-ensaiada da existência primeira Consequentemente , o desafio an-
tropol ógico não é o dejgp/wmrã éxpef íência mas o dejjdar acesso à experi-

Minha agenda empírica para o estudo da cura partiu de três observa-


ções sobre a maneira como esse tópico foi discutido na literatura acadêmica.

Embodiment no original ( N. deT.).

16
Introdu çã o

Primeiro, era comumcnte afirmado que havia uma analogia entre as vá rias
formas de cura religiosa e a psicoterapia. Seria possível tornar específica tal
analogia através de um estudo detalhado? Em um n ível existencial, quais
atributos os fen ômenos religioso e m édico compartilham, e o que os dis-
tingue um do outro ? Segundo, boa parte da literatura antropol ógica focava
no que diziam e faziam os curadores, presumir que isso tinha um efeito
sobre os pacientes sem tentar realmente entender a experiê ncia deles. Seria
possível documentar essa experiê ncia dando conta de quaisquer efeitos dos
rituais de cura executados?, Terceiro,j boa parte da literatura preocupava-se
em propor mecanismos psicol ógicos pelos quais a cura surtia efeito, tais
como a catarse, a sugestão, o efeito placebo e o transe ou a hipnose. O que
havia então de explicitamente religioso na cura religiosa ? Assumi essas ques -
tões desde o ponto de vista de que a cura religiosa poderia ser vista como
um tipo d ^ performance cultural altamente persuasiva] Quando comecei
esses estudos nos anos 1970, a definição mais influente de cultura era a de

que ela é um sistema de símbolos sem d úvida, naquela época era comum
entre antropólogos o uso do termo “cura simbólica” em referência à cura
religiosa. Infelizmente, por um lado, esse termo tinha, às vezes, a conotação
de que o que era simbólico não era, portanto, real. Por outro lado, ele
sugeria que, se a cura girava basicamente em torno da manipulação de sím-
bolos, então havia pouca necessidade de examinar a experiência real dos
participantes. Felizmente, havia um, nexo entre símbolo e exper
/ íênciã)na
noção de que h á um?' retó rica na performancf r ã.vé s da quãT os símbolos
~ ~
j
^
moldam o significado paxa õs participantes. A retó rica nesse sentido é~o
poder de persuasão imanente na ação simbólica e nã performance ritual
^
~

A agenda teó rica que subseq ú entemènte se desenvolveu foi o~produto


de uma sensação de desconforto que persistiu ao longo de meus estudos
sobre o processo terapê utico na cura religiosa. Embora eu continuasse con-
vencido de que esses estudos se encaminhavam para a apreensão da especifi-
cidade da experiência humana na cura, incluindo a experiência do sagrado,
eu temia que a abordagem n ão avan çasse o suficiente aó ponto de dirigir-se
à questão mais ampla do que significa ser humano. Meu desconforto to-
mou forma no contexto de várias mudan ças fundamentais no pensamento
e na teorização antropológicos sobre a natureza da etnografia que estavam
acontecendo nos anos 1980. Uma delas foi a crítica da cultura conceituali-

17
s
1 Couro / SIGNIFICADO / CURA

! zada cm termos de coerê ncia , padrã o c holismo desde a pcrspectiva de uma


consciência virai de margens, bordas e limites na vida cultural. Outra foi o
1'
^
deslocamento da interpretação do sigtrif í cadoyiava. a cr ítica defrodereomo
figura central a animar a vida sociaLUma terceira mudan ça foi a da reflexã o
da cultura e do sujeito que se deslocou da ênfase nt( vída simbólica^ para a
~
ênfase na corporeidadeV7fa experiênçiajcofpó reã é essa última mudan ça
^ ^
que é a mãis vis íveTrlêsreTivro. Através dessas mudanças, adjetivos como
"compartilhado” e “significativo”, nas descri ções da cultura, foram substitu -
ídos por outros como “cambiante” e “fragmentado”. Os fenô menos cultu-
rais não eram mais interpretados, mas interrogados; não mais compreendidos
em termos de comunidade, mas em termos de contestação. A recé m-desco-
berta imediação da corporeidade oferecia à teoria antropológica uma apreci-
[ ação específica da dialética perpétua entre representa ção e ser-no-mundo,
indeterminação e objetivação, continuidade e transformação, subjetividade
e intersubjetividade.
/
Minha partida em direção à corporeidade começou com duas compre-
ensões. Uma foi a de que o ponto inicial de minhas análises fora a linguagem
— símbolos, retó rica, performance, persuasão, narrativa e fala ritual eram as
substâncias das curas rituais e dos informes reflexivos destas pelos pacientes.
! Basicamente, todas eram formas de representação e paravam logo antes de
- -
apreender a riqueza existencial do ser no mundofCompreender ãTcura efritêr-
mos de representação n ão é adequado porque, embora conceitos como perfor -
mance e persuasão tenham uma substancial força experiencial, a representação
acaba por apelar para o modelo do textos) Não importa quão bem-sucedidos
possam ser os estudiosos da literatura em animar os textos, ao trazê-los à vida,
a interpretação textual(ista) continua sendo a inflexão da experiência, um pouco
ao lado da imediação. O ingrediente que falta é fornecido pela noção de ser -
no-mundo, da filosofia fenomenológica, conquanto fale de imediação, in-

determinaçã o, sensibilidade tudo o que tenha a ver com o cará ter vívido e
urgente de experiência. Minha tentativa de colocar essas id éias em diálogo
repousa na proposiçã o de que se os estudos da representação são feitos desde
a perspectiva de textualidade, ent ã c ôTestudos complementares do ser no- -
^
mundo podem ser realizados a partir da perspectiva da corporeidade
^
/ Eu também percebi que o objeto da cura n ão é a eliminaçã o de uma
V coisa ( uma doen ça, um problema, um sintoma, uma desordem ) , mas a

18

I
Introdu çã o

transformaçã o dc uma pessoa, um sujeito que é um ser corpó reo. Reconhe - . •

cer que o nosso ser corpó reo n ã o é menos um produto da cultura que da
biologia tem o potencial de transformar nossa compreensão tanto de corpo / !/
quanto de cultura / Por um lado, se o corpo pode ser mostrado como base
existencial da cultura e do sujeito em vez de o simples substrato biol ógico
de ambos, o caminho estaria livre para a compreensã o do corpo como n ão
apenas essencialmente biol ógico, mas igualmente religioso, lingu ístico, his-
tó rico, cognitivo, emocional e artístico. Por outro lado, se até a linguagem
pode ser apresentada como o surgimento da corporeidade e n ão apenas da
fun ção representativa do cogito cartesiano, o caminho estaria aberto para
definir cultura n ã o só em termos de símbolos, esquemas, traços, regras,
costumes, textos ou comunicação, mas, igualmente, em termos de sentido,
movimento, intersubjetividade, espacialidade, paixã o, desejo, h á bito, evo -
cação e intuição/
/ -
Reunir essas duas percepções levou me a uma conceituação do sujeito
com base na corporeidade. O argumento é o de que ao desfazer a distin çã o
« (
entre mente e corpo, sujeito e objeto, os processos orgânicos end ógenos,
um tanto misteriosos que são retoricamente controlados na cura ritual (Ca -
-
pítulo Um), tornam se compreensíveis como processos do self baseados na
-
corporeidade (Capítulo Dois). A pró pria linguagem torna se compreensí - ' *

vel como processo do self quando é entendida n ão como representação, mas


como desempenho de um modo de estar-no-mundo Se esses movimentos
/
são bem-sucedidos ou n ão resta ao leitor julgar. Em todo caso, o resultado
/
geral é que através desses ensaios o status de cura ritual oscila entre ser mais
um exemplo de caso nos termos através dos quais é abordado o problema
do significado humano pela elaboração da noção de corporeidade e ser de
fato o foco primá rio, às vezes um meio para um fim do que um fim em si
mesrn õ Sendo assim, um espaço considerável nos ensaios aqui incluídos é
^
dedicado à elaboração dessas percepções naquilo que eu chamo de fenome
nologia cultural, uma tarefa que, ainda que desafiadora, traz a promessa de
-
informar a análise cultural para muito além do campo da cura ritual.
Preparar uma sequ ê ncia de capítulos escritos ao longo de quase duas
décadas é por si só um ato retó rico. Eu evitei uma simples cronologia e
resolvi n ão separar os ensaios entre os que concernem mais à retó rica do
processo terapê utico e os que concernem à corporeidade, em reconheci -

19
I
CORTO / SIGNIFICADO / CURA

mento ao fato de que esses dois temas estão relacionados n ão apenas como
i uma progressão, mas continuam a reagir dialeticamente um ao outro du -
rante todo o desenvolvi mento de meu trabalho. Escolhi começar com capí-
tulos sobre meus estudos etnográficos da cura carismá tica cat ólica. Prossigo,
então, para o meu trabalho sobre a cura navajo , no qual , mais uma vez, os
temas do processo terapê utico e da corporeidade estão intimamente entre-
i laçados. Por fim, eu induí dois capítulos sobre as modulações da corporeida-
de, um que propõe um constructo com a intenção de avançar os estudos
comparativos da cultura e da experiência corpórea; e outro que dá uma nova
guinada empírica ao colocar questões sobre representação e ser-no-mundo.
O Capítulo Um formula um modelo retó rico ou um quadro de refe-
rência para a compreensão do processo terapê utico como experiê ncia trans-
formativa, baseado em dados de curadores carismáticos e relatos retrospectivos

^
de experiências de cura Na primeira parte desse capítulo, eu sugiro que a
retórica da prática de cura evoca uma variedade de processos endógenos que

v
v\ ^
são o locus de qualquer eficácia que a cura religiosa possa tery Em minfiã
formulação, essa retórica possui três componentes que incluem predisposi-
ção, empoderamento e transformação, e sugiro que juntos eles formam um
modelo de processo terapêutico que poderia ser aplicado a qualquer forma
de cura para determinar sua eficácia: se todos esses três componentes forem
completados ou desempenhados de forma convincente, pode-se dizer que a
cura acontecõjyfNa segunda pane do capítulo, eu refino essa idéia de pro-
cesso terapê utico baseado em relatos experienciais de pacientes à medida
que eles passam por uma série de sessões de cura. Ao traçar aquilo que os
— -
pacientes ou suplicantes, pois o processo terapê utico predica se na suplica
-
divina através da prece identificaram como os eventos mais significativos
nessas sessões e como eles integraram os resultados em suas vidas, concluo
que a idéia de uma cura milagrosa deixa necessariamente de capturar os
tipos de efeito que observei, e o que ocorreu de fato foi um processo de
[ wud ãnçalincrèmêntãll í Curar é muito mais parecido com plantar uma se -
mente ou com tocar uma bola em movimento mudando ligeiramente a sua
trajetória para que ela termine em um outro lugar do que com raios que
caem ou montanhas que se movimj 1
O Capítulo Dois é uma tentativa de formular a noção de corporeida -
de, traçando várias linhas de trabalho teórico para assentar a base conceituai
.
I ?

! 20
; i

II Ji
Introdu çã o

com vistas à compreensã o da corporeidade como uma abordagem para a


an á lise da cultura e do sujeito./ Argumento que é essencial colapsar as duali -
dades metodol ógicas, mas, ao contrá rio de grande parte da literatura acad ê-
mica contemporâ nea que destaca a dicotomia cartesiana de corpo e mente,
eu focalizo as rela ções entre sujeito e objeto e entre estrutura e prá tica Insa-
tisfeito com a explicaçã o abstrata que n ã o é levada à cabo na an álise empíri -
ca, eu adoto a estratégia hermen ê utica de desenvolver essas ideias em discussões
_
específicas de cura ritual carism á tica e linguagem ritual. Retorno, pois, a
uma discussão mais geral sobre a implica ção desse tipo de análise para o
estudo da experiê ncia religiosa e das relações entre mente e corpo, pensa -
mento e emoção, sujeito e Outro e subjetividade e objetividade nas ci ências
humanas. Eu concluo, ironicamente talvez, com a observa ção de que/come-
çar com a corporeidade n ão conduz à realidade objetiva irredutível /de um
corpo biológico, tampouco à indeterminaçã o da subjetividade incessante-
/
mente iterada, mas à realidade objetiva necessariamente indeterminada/
No Capítulo Três, eu aplico o quadro de referência para compreender

o processo terapê utico introduzido no Capítulo Um agora real çado por
uma compreensão teó rica mais completa da experiência corpó rea a um

caso específico. Ao trabalhar novamente com os carism áticos católicos, exa-
mino um tipo de prece curativa feita por mulheres que se submeteram a
abortos. Aqui a experiência vívida do imagético corporificado desdobra-se
numa situação em que os significados culturais em torno da vida e do corpo
são vigorosamente contestados.yOs objetos pessoais da cura ritual desta-
cam-se em relação à sua significação cultural mais ampla, uma vez que a
natureza controversa do aborto na sociedade contemporânea permite ob-
servar como a política de gênero assim como o sofrimento pessoal acabam
na arena da cura ritual |Eu explicito a importância de temas culturais na
experiência corpórea ao esboçar uma comparação entre esse ritual carismá ti-
co e um aborto ritual praticado por budistas no Japão.
Através de um estudo de caso detalhado, o Capítulo Quatro mostra
como a fenomenologia cultural aplicada à an álise da experiência corpórea
pode servir como um valioso metadiscurso sobre o sofrimento. Esse caso
altamente perturbador é o de um curador e um paciente presos a uma lura
agonizante contra o que eles estão convencidos de ser um dem ó nio ou espí-
rito maligno. Baseado em entrevistas exaustivas, meu mé todo foi o de apre-

21
f
CORTO / SIGNIFICADO / CURA

sentar uma descri çã o completa do caso para dois grupos dc comentadores,


um formado por curadores carism á ticos católicos, outro por psicotcrapeu -
tas de forma çã o secular. Comparo os relatos religiosos focalizando a exis-
tê ncia indubitá vel ou n ão de um dem ó nio em açã o com os relatos cl í nicos,
centrados na existê ncia ou n ão de uma doença específica afligindo o pacien-
te. Onde a fenomenologia cultural vem a calhar é ao colocar a questão dc
como tais relatos podem ter tanto em comum e ainda assim serem t ã o
: diferentes, oferecendo uma terceira avaliação cujo objetivo é o de revelar a
maneira pela qual o significado cultural é objetivado em um terreno exis-
tencial indeterminado.
O Capítulo Cinco estende a discussã o da cura para um novo cen á rio
etnográfico, e também busca uma compreensão social mais ampla da rela-
ção entre cura ritual e política identitária na forma como elas interagem em
três n íveis na sociedade navajo contemporânea: a representação da identida-
de navajo em relação à sociedade euro-americana dominante, a interação
entre tradições de cura religiosa dentro da sociedade navajo e a transforma-
ção da experi ência individual relacionada à dignidade e auto-estima enquan-
to navajo. Eu ilustro o primeiro nível a partir de uma epidemia de hantavirus
e uma grave seca; o segundo, no que diz respeito à coexistência de vá rias
f ôrmas de cura; e o terceiro com os estudos de caso de pacientes navajos que
usaram essas formas de cura. Esses níveis constituem um quadro de referên-
cia para analisar a relação entre cura e política identitá ria que tem potencial-
f mente mais nuanças do que a posição de que a cura ritual é uma f ú til expressão
de frustração (o que podemos chamar de interpretação “ópio do povo”) ea
de que a cura ritual é uma forma sutil de resistência pol ítica (o que pode-
mos chamar de interpretação “pós-moderna de liberta ção da voz indígena”).
Eu sugiro que os futuros estudos que se utilizem de tal quadro de referência
comecem a distinguir de forma mais clara entre uma política pessoal de
identidade coletiva, na qual atores individuais com compromissos claros
lutam para afirmar uma identidade compartilhada, e uma política coletiva
de identidade pessoal, na qual cada ator em um grupo de atores com com-
promissos ambíguos luta para obter uma identidade individual.
/ lJm modelo de processo terapê utico verdadeiramente ú til deve ser apli -
cá vel em mais de um cen ário cultural e com mais de uma forma de curafO
Capí tulo Seis passa pelo material navajo uma segunda vez com um esforço

:
22
i
Introdu çã o

concertado para ampliar o quadro de referê ncia esboçado nos capítulos pre-
cedentes, n ã o apenas mudando o foco para uma cultura diferente, mas tam-
bé m abordando a diferen ça e similaridade cultural do processo terapê utico
cm três formas de cura coexistentes. Eu examino casos da sociedade navajo
contemporâ nea representando o uso de cerim ó nias tradicionais navajos,
-
encontros de ora çã o da Igreja Nativa Americana e a cura pela fé cristã nava
jo, todos os quais são recursos na busca cotidiana de sa ú de e bem -estar. Eu
documento como essas três formas de cura diferem em relação aos seus
princípios terapê uticos e filosofias subjacentes, ao mesmo tempo em que
possuem um cará ter e um apelo distintivamente navajo. Os quatro compo-
nentes do processo terapê utico servem como uma heurística para dar senti -
do a como um vasto leque de interesses de sa ú de navajo entra em jogo na
experiê ncia de pacientes em cada uma dessas três formas de cura.
O Capítulo Sete coloca a questão de como as pessoas experimentam e
d ão sentido à doen ça grave, nesse caso o câncer, dado o meio cultural em
que vivem. Eu dou ênfase especial ao raciocínio causal, isto é, as compreen-
sões de pacientes sobre como surgiu a doen ça. Um elemento central do
capítulo é a comparação entre as idéias expressadas por pacientes de câncer
navajo e por grupos comparáveis de pacientes euro-americanos com a mes-
ma doen ça, dentre os quais parece haver um padrã o intrincado de diferen ças
e semelhan ças. Apresento também uma extensa discussão do que os pacien-
tes navajos querem dizer quando atribuem seu câncer à sua exposi ção a
rel âmpagos, na qual a importâ ncia da corporeidade torna-se espantosamen-
te evidente. O capítulo termina com uma discussão das dificuldades meto- _

^
dológicas inerentes a dar especificidade experiencial adequada à an álise de
questões como a compreensão causal nos sistemas médicos de diferentes
culturas, focalizando as distinções conceituais entre causa e sintoma feitas
em diferentes culturas, entre a compreensão da doença como entidade ou
processo, entre sistemas biomédicos e tradicionais de raciocínio causal e,
finalmente, entre corpo e mente/
O Capítulo Oito disseca o caso de um dos pacientes que participou
do estudo do câ ncer navajo, um jovem que padecia dos efeitos de um tu-
mor temporal- parietal esquerdo no cé rebro. A discussão mostra como ele
fez uso dos recursos simbólicos de sua cultura navajo a fim de criar signifi-
cado a uma vida mergulhada em uma crise existencial profunda, interpre-

23
I CtoRro / SIGNIFICADO / CURA

tando suas experiências de perder e recuperar a capacidade de falar e dc sen-


tir-se inspirado com as palavras da oração de profunda espiritualidade como
um chamado para tornar-se médico-feiticeiro. Ao analisar o caso, eu justa-
; : ponho entendimentos derivados dos estudos neurológicos de lesões do lobo
temporal com interpreta ções alinhadas com a fenomenologia cultural para
tratar de duas questões de grande importância, com o intuito de saber se a
úldma pode ser elaborada definitivamente com sucesso JA primeira é clari-
ficar a relação entre a corporeidade, enquanto compreensão experiencial de
nossa existência no mundo, e a biologia, enquanto forma de conhecimento

^
objetivado sobre nosso ser corpó reo A segunda é definir o sentido no qual
n ós já estamos sempre no mundo social como seres corpó reos, mesmo
antes de sermos capazes de simbolizar ou objetivar nossa experiê nci /
O Capítulo Nove promove a viabilidade da corporeidade como uma ^
posição metodológica coerente ao elaborar o constnicto dos modos somáticos
de atenção, os quais defino como formas culturalmente elaborados de aten-
der a e com o corpo em um meio que inclui a presença corporificada de
outros. Mais uma vez, eu adoto a estratégia hermenê utica de começar com

1
um argumento teó rico, mais abstrato, esgotando-o nos termos de exem-
plos empíricos concretos, e retornando finalmente a um argumento concei-
tuai mais geral. Os exemplos empíricos, nesse caso, são de fenômenos
reveladores redrados de uma série de formas religiosas e não-religiosas de
cura, inclusive as da Renovação Carism ática Católica, do espiritismo porto-
riquenho, da medicina siddha sul-asiádca e da psicoterapia norte-america-
na. Isso nos leva de volta à discussão da indeterminação de categorias analíticas
tais como intuição, imaginação, percepção e sensação como ferramentas
para compreender tais fenômenos; daí para a importâ ncia de apreender a
indeterminação essencial da existência no que se refere à relação entre textu-
alidade e corporeidade.
Finalmente, o Capítulo Dez passa a um outro tópico, embora mante-
nha a preocupação teórica com a relação entre representação e ser-no-mun-
do do ponto de vista da corporeidade. Minha principal motivação ao fazer
essa passagem é a de enfrentar o desafio bastante ó bvio de que se a fenome -
nologia cultural baseada na corporeidade vai ter ampla relevâ ncia para a
antropologia, ela precisa ser capaz de oferecer interpretações distintas para
outras esferas de cultura além da cura ritual. Como vem sendo cada vez

li
i \ 24
li
l íiL
Introdu çã o

mais observado por estudiosos, na sociedade contemporânea a biotecnolo -


gia está profundamente envolvida em transformar as pró prias condições
corpóreas para se ter e habitar qualquer mundo, e muito mais ainda quando
incorpora sofisticadas aplica ções de computador. Pensando nisso, examinei
o Projeto Humano Visível , da Biblioteca Nacional de Medicina , e o seu
uso de realidade virtual gerada por computador para recriar os chamados
cad áveres virtuais. A discussão aborda os tipos de seres encontrados em uma
etnografia do ciberespaço, o lugar de tal inovação no imagin á rio cultural
contemporâneo e as implicações experienciais concretas do uso da tecnolo-
gia no treinamento em anatomia para estudantes de medicina e nas cirurgias
auxiliadas por computador, sempre com a aten çã o voltada à questão teórica
mais ampla da relação entre representa ção e ser-no-mundo.
Por fim, há provavelmente pelo menos duas maneiras de ler este livro.
Os capítulos podem ser abordados separadamente como uma série de estu-
dos que documentam os sofrimentos e os esforços de pessoas aflitas tentan-
do tornarem-se sãs e, em muitos casos, santas. Ao mesmo tempo, é possível
-
seguir as trajetórias intercaladas dos estudos como passos em direção à com
preensão da especificidade experiencial da existência humana, uma fenome-
nologia cultural baseada na corporeidade. Em minha maneira de pensar, os
dados culturais e os detalhes da experiência são inseparáveis dos conceitos
metodológicos e das reflexões teóricas. Eles constituem um diálogo do con-

creto e do abstrato um diálogo sobre o que significa ser humano.

25
PARTE I
Transforma ções Carism á ticas
í
CAP ÍTULO UM
A Retó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

A cura em sua acepção mais humana não é uma fuga para a irrealidade
e a mistificação, mas uma intensificação do contato entre o sofrimento e a
esperança no momento em que encontra uma voz, onde o choque angusti-
ado da vida nua e da existência primeira emerge da mudez para a articula-
ção.ytjma compreensão da cura como um processo existencial requer a
descrição dos processos de tratamento e especificação dos efeitos sociais e
psicológicos concretos de práticas terapêuticas, bem como a determinação
do que é considerado doença com necessidade de tratamento em contextos
culturais específicos, e quando se pode dizer que a cura foi realizada. Embo-
ra complexa, essa tarefa constitui um problema de significado essencial em
antropologia, pois diz respeito à questão fundamental do que significa ser
um ser humano, inteiro e são, ou angustiado e doente A dimensão inter-
/
_
pretativa do problema é destacada pelo fato de que muitas formas de cura
são_ religiosas por natureza, o que exige considerar o papel de entidades e
forças divinas (Csordas; Lewton, 1998). Dadas a prevalência da cura religi-
osa e a inter-relação global da religi ã o e da cura ã categoria do santo pode,
^
em sua própria forma, ser fundamental para nossa compreensão da sa úde e
dos problemas de sa ú dêT)Uma abordagem completa da cura religiosa per se
teria então de examinarn ão apenas a construção da realidade clínica relacio-
nada a motivos m édicos, mas também a construção da realidade sagrada
relacionada a motivos religiosos.
CORTO /SIGNIFICADO / CURA

Para colocar a questão de outra forma: quando levantamos o proble-


ma de como compreender a cura religiosa, sob qual rubrica seria mais corre-
to lançar nosso empreendimento, a da religião comparada ou a da ci ê ncia
m édica? Essa questão, por mais senso comum que possa soar, é, talvez, um
artefato da tend ência cultural ocidental de compartimentar a experiê ncia c
reificar categorias como religião e medicina. Cada categoria difunde sua
própria ciência, a qual pretende, pois, assumir que o seu campo de conheci-
mento é analiticamente distinto de todos os outros. Em muito do que foi
escrito sobre o assunto, o que se presume implicitamente é que, embora os
fen ômenos de cura religiosa, transe extá tico ou possessão de espírito pos-
sam ser reconhecidos como religiosos do ponto de vista nativo, do ponto
de vista científico eles devem ser vistos em termos psiquiá tricos ou m édi-
cos. Nessa disposição metodológica, as questões relevantes muitas vezes
têm sido se a própria experiência religiosa é patológica ou terapê utica e se a
cura religiosa pode ser entendida como an áloga à psicoterapia.2
Na verdade, o ponto de convergência entre religião e medicina n ão é
difícil de localizar: ambas se dirigem, em um sentido ou outro, ao sofri-
am ento (Kleinman, 1997) e à salvação (Good, 1994). Essas categorias são
amplas, sem d úvida, pois o sofrimento pode incluir tanto as aflições sociais
da pobreza, opressão e desigualdade quanto o peso doloroso da doen ça; e a
salvação como solução para o sofrimento pode ser procurada neste mundo
ou no próximo como uma breve suspensão da dor ou uma recompensa
para a eternidade. Não surpreende que modos de ação social tão distintos
aparentemente como a religião e a medicina tenham evolu ído para tratar
dessas dimensões profundamente diversas da condição existencial da huma-
nidade, nem que eles convirjam na esfera da cura religiosa. Ainda assim,

2
Alguns escudos foram feitos sobre a compatibilidade de sistemas de crença científicos e
religiosos no tratamento de afli ção emocional (Cox, 1973) e sobre o efeito da crença
religiosa no trabalho de psicoterapeutas praticantes (Gaines, 1982b) . Ao contrá rio dos
informantes de Gaines, que eram psiquiatras introduzindo idéias religiosas nas suas terapias,
o informante nesse exemplo é uma curadora religiosa introduzindo seus conhecimentos de
psicoterapia em seu trabalho ritual . Sobre essas questões, veja também Csordas ( 1990),
SchumaJcer (1992) e Koenig ( 1998).

30
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

qualquer leitor com uma sensibilidade antropológica suspeitará que essa


resposta n ã o chega a ser adequada, pois “sofrimento” e “salvação” t ê m o
cunho cultural das religi ões monoteístas (cristianismo, judaísmo, islamis-
mo) para as quais a escatologia e a soteriologia sã o quest ões centrais./ Uma
compreensã o verdadeiramente comparativa da cura religiosa deve ser con -
ceitualmente fundada de modo que seja pass ível de generalizaçã o para al ém
dessas religiões, e o menos culturalmente endividada poss ível com elas, que
são tão influentes e poderosas / O presente capítulo e vá rios dos que se se-
guem sã o destinados a servirem de degraus em direção a tal compreensã o
comparativa.
Para começar, o problema da eficácia aparece repetidamente no centro
do debate sobre prá ticas de cura religiosa. Ainda que outros revisores te-
nham decidido tratar a diversa e volumosa literatura sobre esse problema
(veja Bourguignon, 1976; Dow, 1986b; Moerman, 1979; Waldram, 2000),
meu propósito aqui é o de desenvolver uma abordagem que seja sensível
aos efeitos incrementais e inconclusivos que definem o limite mais baixo de
eficácia, de forma que comece a remediar uma falta de especificidade analí-
tica que impossibilita qualquer compreensão da eficácia. Um primeiro pas-
so é ter bem claro qual dos três aspectos, implícitos na maioria das discussões
da prá tica de cura, é o foco da análise. O primeiro é o procedimento-, ou
quem faz o que a quem em relação aos medicamentos administradosTora-
ções recitadas, objetos manipulados, estados alterados de consciência indu-
zidos ou evocados. O segundo aspecto da prá tica de cura é o que podemos
chamar de processo, referindo à natureza da experiência de participantes em
relação aos encontros com o sagrado, episódios de insight ou mudan ças de
pensamento, emoção, atitude, significado, comportamento. O terceiro é a
conclusão, ou a disposição final dos participantes tanto em relação ao seu
n ível declarado de satisfação com a cura quanto à mudan ça (positiva ou
negativa) de sintomas, patologia ou funcionamento.
Desses três elementos, o procedimento terapê utico tem sido exausti-
vamente tratado em muitos estudos empíricos e trabalhos comparativos. O
resultado terapê utico começou apenas recentemente a ser tratado de forma
sistemá tica por antrop ó logos. No entanto, o processo terapê utico como é
definido aqui foi virtualmente negligenciado e relegado ao estatuto de “cai-
xa preta”. Essa negligência pode ter origem na falha em distinguir entre

31
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

conservador e aos movimentos radicais como a Teologia da Libertação no


Terceiro Mundo. Eu escrevi etnografias inteiras sobre o sistema carism á tico
católico de cura (Csordas, 1994a) e sobre o uso da linguagem ritual para
forjar um modo de vida comunitá rio nesse movimento (Csordas, 1997).
Assim , farei apenas um breve resumo das prá ticas de cura ritual carism á ti-
cas. Eu prossigo com exame de dois conjuntos de casos, representando as
discussões de dois artigos anteriores nos quais desenvolvi duas formulações
sucessivas do quadro de referê ncias experiencial para a compreensão do pro-
cesso transformativo na cura religiosa.
Os carism á ticos católicos participam, no final do século XX, da mu-
dan ça da ênfase entre os cristãos no sofrimento e na automortificação como
imitação de Cristo para a ê nfase na possibilidade e no benefício da cura
divina como praticada por Jesus nos evangelhos ( Favazza, 1982). Os pro-
/
cessos de cura e crescimento espiritual estão ligados porque a doen ça é nor-
/
malmente vista como um obstáculo ao crescimento espiritual A cura é,
portanto, considerada necessária para todas as pessoas no processo de cresci-
mento espiritual, que, por sua vez, conduz à boa sa úde/ O sistema de cura é
t holístico no sentido em que busca integrar, em princípio, todos os aspectos
a da pessoa, concebida como um compósito tripartite de corpo, mente e
h espírito.
I
/O conceito tripartite de pessoa é a base para três tipos distintos mas
i- inter-relacionados de cura: a curafí sica da doença corporal, a cura interior da
{ perturbação e da doença emocional, e a liberação dos efeitos adversos de
C dem ó nios e espíritos malignos. A cura física é a de forma mais simples, na
qual a imposição de mãos e, em alguns casos, a unção com óleos bentos
í
l acompanham a oração. Os ministros de cura oram pelo alívio da doença, o I>'
i
sucesso do tratamento médico, a diminuição dos efeitos colaterais da medi-
cação, ou a libertação do sofrimento através da morte. Esse é o tipo de cura
*K
í pela fé mais amplamente conhecido na cultura religiosa americana e está
associado com evangelistas populares como Oral Roberts e Kathryn Kuhl-
man. A cura interior pode ter o objetivo de remover os efeitos de algum
trauma da vida ou pode ser uma revisão e reinterpretação de toda a história
de vida do indivíduo à luz da “presença curativa de Jesus” , tratando as feri-
*b das emocionais ou cicatrizes do passado que, os carismá ticos admitem , po-
dem perdurar em um indivíduo mesmo depois de ele ter recebido a Espírito

33
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

casos prototípicos para a análise do ritual , tais como os ritos de passagem


(Turner, V. , 1969) e a cura ritual . O que é normalmente chamado de pro-
cesso nos estudos antropológicos de tais ritos ajusta-se melhor ao que esta-
mos chamando de procedimento. Ao seguir essa convenção , os estudos de
cura religiosa foram baseados em descri ções de rituais de cura e entrevistas
com especialistas em ritual , e incluíram pouca atenção expl ícita à fenome-
nologia_do processo transformarivo como foi vivido pelos participantes . 3
No que vem a seguir, eu apresentarei um quadro de referências para a coin-
preensão do processo transformarivo usando o caso etnográfico da cura
carismática católica. Em capí tulos posteriores, examinarei a utilidade com-
parativa desse quadro de referências na etnografia de cura religiosa navajo.

Pentecostalismo e cura
O ano de 1967 foi um divisor de águas na história da religião Na aclue "

le ano foi feita uma síntese de duas formas de cristianismo que antes esta-
vam tão separadas quanto se poderia imaginar no espectro da experiên '
da prática religiosas. O catolicismo romano tem a maior e mais velha
do mundo, altamente litúrgica e hierárquica, caracterizada por uma
lidade europ éia, na qual os pontos relevantes da espiritualidade
*” semibT
tomaram a
forma de um misticismo e monasricismo altamente cultivados O movi
mento pentecostal começou na virada do século XX nos Estados UnbdoYe
se caracteriza por congregações independentes cujos participantes recebem o
“Batismo no Espírito Santo” que preenche o indivíduo com poder divino e
dons espirituais, tais como a glossolalia (falar em línguas) e a cura pela fé
Os jovens católicos com educação universitária que criaram o “pentecosta-
lismo católico” e o institucionalizaram como a Renovação Carismática Ca-
tólica iniciaram um movimento que se tornou global em seu escopo, uma
força poderosa para o evangelismo em oposição ao evangelismo protestante

3 Uma notável exceção a essa tendência é a discussão em Good et al . ( 1982) da transferê ncia
e da contratransferéncia em uma colaboração entre curadores tradicionais e profissionais da
sa úde mental .

32
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

conservador e aos movimentos radicais como a Teologia da Liberta çã o no


Terceiro Mundo. Eu escrevi etnografias inteiras sobre o sistema carism á tico
católico de cura (Csordas, 1994a) e sobre o uso da linguagem ritual para
forjar um modo de vida comunitá rio nesse movimento (Csordas, 1997).
Assim , farei apenas um breve resumo das prá ticas de cura ritual carism á ti-
cas. Eu prossigo com exame de dois conjuntos de casos, representando as
discussões de dois artigos anteriores nos quais desenvolvi duas formulações
sucessivas do quadro de referê ncias experiencial para a compreensão do pro-
cesso transformativo na cura religiosa.
Os carism á ticos católicos participam, no final do século XX, da mu-
dan ça da ênfase entre os cristãos no sofrimento e na automortificaçã o como
imitação de Cristo para a ênfase na possibilidade e no benefício da cura
divina como praticada por Jesus nos evangelhos (Favazza, 1982). Os pro-
/
cessos de cura e crescimento espiritual estão ligados porque a doen ça é nor -
/
malmente vista como um obstáculo ao crescimento espiritual A cura é,
portanto, considerada necessária para todas as pessoas no processo de cresci-
mento espiritual, que, por sua vez, conduz à boa sa ú de/ O sistema de cura é
holístico no sentido em que busca integrar, em princípio, todos os aspectos
da pessoa, concebida como um compósito tripartite de corpo, mente e
espírito.
/O conceito tripartite de pessoa é a base para três tipos distintos mas
-
inter relacionados de cura: a curafísica da doença corporal, a cura interior da
perturbação e da doen ça emocional, e a liberação dos efeitos adversos de
dem ónios e espíritos malignos. A cura física é a de forma mais simples, na
qual a imposição de m ãos e, em alguns casos, a unção com óleos bentos .
acompanham a oração. Os ministros de cura oram pelo alívio da doença, o
sucesso do tratamento médico, a diminuição dos efeitos colaterais da medi-
I
cação, ou a libertação do sofrimento através da morte. Esse é o tipo de cura ,f '

pela fé mais amplamente conhecido na cultura religiosa americana e está


associado com evangelistas populares como Oral Roberts e Kathryn Kuhl-
man. A cura interior pode ter o objetivo de remover os efeitos de algum
trauma da vida ou pode ser uma revisão e reinterpretação de toda a histó ria
de vida do indivíduo à luz da “presen ça curativa de Jesus”, tratando as feri-
das emocionais ou cicatrizes do passado que, os carism á ticos admitem, po-
dem perdurar em um indivíduo mesmo depois de ele ter recebido o Espírito

33
CORPO / STGNIPICAOO / CURA

Santcj/ Muitas vezes os suplicantes são exortados a perdoar o próximo por


erros passados. Um imagético vívido acompanha com frequência a cura
interior, seja como revela ção de alguma experi ê ncia reprimida , seja como
confirmação de que a cura está em andamento. Na liberação, o suplicante é
aliviado da opressão de espíritos malignos. Os dem ó nios, nesse caso, nor-
malmente n ã o têm controle completo sobre o indivíduo a ponto de tornar
necessário o rito de exorcismo formal da Igreja, mas são considerados mes-
mo assim prejudiciais à vida, inclusive ao comportamento, à personalidade
e ao crescimento espiritual. Espíritos malignos identificados ou “discerni-
dos” pelo ministro de cura ou pelo suplicante são despachados através de
uma “oração de comando” em nome de Jesus Cristo (o melhor resumo
geral por um escritor carismá tico é MacNutt, 1974). Ao elaborarem esse
sistema, os católicos pentecostais acreditam estar servindo à inten ão de6
Deus de “curar o homem todo”: corpo, alma, psique e relacionamento ntos
com os outros. Ainda que os ministros de cura tendam a se especial
maioria deles reconhece a necessidade, às vezes, de usar todas as t " ^ a
rnas
em combinações variadas.

, entre ses riP s de cura' 2 cura fei é essencialmente uma cateaoria
“ ° “
descritiva, enquanto as outras duas são etiológicas. Isto é, a cura física 1Ca é
indicada para queixas e sintomas somáticos específicos, enquanto as outras^
são indicadas quando se distingue uma causa espiritual, psicológica ou de "

/
mon íaca na raiz do problema A técnica de cura física consiste simplesmen
te na imposição de mãos acompanhada de oração para que a doença seja
curada, embora, em casos como os de recuperação de ossos quebrados ou
de remissão do câncer, a visualização do processo de cura possa ser incluída
A cura í f sica é com frequência o primeiro tipo de cura encontrado pelos
carismáticos, e, com frequência, ela se dá no contexto de grandes grupos
Em alguns casos ela pode ser acompanhada, ou até tida como condiciona-
da, por um dos outros tipos. Apesar de sua importância, n ão vou considerar
a cura f ísica aqui pelas razões que apresento a seguir ( mas veja Csordas,
1994a). Primeiro, embora sua estrutura de significado seja essencialmente a
mesma , como forma de discurso ritual, ela não foi elaborada no mesmo
nível de outros tipos de cura e, assim , é menos acessível à interpreta çã o.
Segundo, dada a natureza dos problemas de doença abordados, ela não pode
ser adequadamente analisada à parte de uma avaliação dos resultados que

34
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

documente tanto os efeitos biom édicos como as expectativas religiosas (con-


fira Ness, 1980; Young, 1976).
-
Na Cura das Mem ó rias, reza se pela vida inteira de um indivíduo por
etapas, desde o momento da concepção até o presente. Quaisquer eventos
ou relacionamentos irreconciliados que surjam nessa revisão da histó ria de
vida recebem aten ção especial; suspendem-se os procedimentos para um
período de ora çã o e se pede à pessoa que perdoe aqueles que a machucaram.
Pode-se solicitar ao suplicante para visualizar qualquer incidente doloroso
que seja descoberto. Um elemento essencial da imagem é a presen ça curati-
va de Jesus em forma humana. Como explica um curador, “ O que você está
fazendo quando está orando por algu é m , você está rogando a presença de
Cristo nos momentos de sua vida , que podem ser momentos agrad áveis ou
momentos dolorosos”. O curador é auxiliado por meios sobrenaturais: ele
pode declarar uma “profecia”, a qual é uma mensagem inspirada por Deus a
fim de encorajar ou admoestar o suplicante; ou ele pode receber uma “pala-
vra de conhecimento”, que é uma intuição de origem divina sobre a situa-
ção do suplicante que n ão poderia ser conhecida por meios naturais. O
curador é praticamente o ú nico que fala, guiando as reflexões do suplicante
enquanto “faz Jesus passar” pela sua vida. Dependendo do indivíduo e da
seriedade de seu problema, uma ou várias sessões de oração podem ser ne-
cessárias. Além disso, os carism á ticos referem-se freqiientemente à Cura dos
Relacionamentos, a qual, ainda que n ão associada com uma técnica sua em
particular, implica o reconhecimento de que as tensões no ambiente inter-
pessoal podem contribuir para a etiologia dos males descritos de outra for-
ma como físicos, espirituais, emocionais ou demon íacos.
A Oração de Libertação exige o reconhecimento de um problema cró-
nico, que é interpretado como a presen ça do mal na vida de uma pessoa.
Uma distin ção é feita entre possessão, um estado raro no qual o demó nio
ganha total controle das faculdades de uma pessoa, e opressão, na qual o
efeito do demónio é sentido numa á rea limitada da vida da pessoa.-* Os

4
A Libertação é considerada apropriada apenas em casos de opressão demoníaca; os casos de
possessão completa devem ser levados ao conhecimento de um sacerdote para tratamento
com o rito de exorcismo oficial da Igreja e também , possivelmente, a um psicoterapeuta
profissional .

35
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

espíritos malignos tem nomes que geralmentc são os dos vá rios pecados,
há bitos ou tra ços desfavoráveis de comportamento, e tendem a aparecer cm
erupos. Assim um indivíduo pode abrigar um grupo de sexualidade ( por
exemplo, Lascívia, Perversão, Masturbação, Adulté rio) ou um grupo de
falsidade (por exemplo, Falsidade, Mentira, Engano, Exagero) A tropa de .
demó nios muitas vezes é chefiada por um “espírito gerente” que é compara
-
do por analogia à raiz principal de uma em mais difícil de arrancar, mas
-
^
ue se sai, as menores acompanham. O curador começa o processo de
libertação “amarrando” o demó nio em nome de Cristo de forma que ele
'ão se manifeste e desarranje o procedimento, como costuma fazer (os pen -
;
:
^ costais “clássicos” ou fundamentalistas discordam nesse ponto - eles exi
Tmalgum tipo de manifestação como sinal de que o espírito foi embora).
Ordena-se então ao espírito que diga o seu nome, o que é feito pela boca do
licante. Alguns pentecostais católicos, no entanto, fazem tanta questão
-

i
levitar
C o sensacionalismo e a teatralidade na libertação que impedem o
'rito até mesmo de fazer isso, valendo-se do curador para identific
^OT meios á-lo
sobrenaturais, através dos dons espirituais de “discernimento”. O
emónio então é mandado embora em nome de Nosso Senhor Jesus Cris-
dem
to, uma autoridade a que ele não pode resistir. Todavia, se essas três coisas
n ão forem feitas - amarrar o espírito, chamá-lo pelo nome e falar em nome
epor autoridade de Jesus - o dem ónio pode causar problemas recusando-se
! a sair, falando algum ripo de abuso verbal através de seu anfitrião ou aba
* lando o anfitrião fisicamente.
5

A cura ritual carismá tica ocorre numa variedade de cenários Os eran-


-
des serviços de cura originaram se em encontros periódicos nos quais os
participantes do movimento se reúnem nacional ou regionalmente para
I mostrar sua força e unidade e também para cultuar e ensinar. Do final da
década de 1970 até o final da década de 1980 essas sessões de encontro se
transformaram em serviços de cura p ú blicos nos quais os ministros de cura

5 Os pentecostais católicos também usam o sacramento dos enfermos (antiga extrema-unção)


em conjunção com a cura e encorajam os participantes a recorrerem à Eucaristia como fonte
de bem -estar espiritual .

36
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

com certa fama atra íam os católicos que, sem isso, poderiam n ã o ter parti -
cipado da Renovação Carism á tica. As orações de cura ou petições para si e
para outros podem ocorrer també m num segmento de encontros de oraçã o
semanais menores. Depois desses encontros de oração, pode haver orações
para suplicantes individuais em “salas de cura” separadas, conduzidas por
uma equipe de ministros de cura especialmente escolhida dentro do grupo,
que fazem imposi ção de m ãos nos suplicantes e oram por qualquer proble -
ma que eles possam ter. Grupos de cura mais intensivos ocorrem também
em retiros menores de um dia ou de fim de semana e em “dias de renova-
ção”. Sessões particulares podem ser organizadas com um ministro de cura
experiente ou uma equipe de cura, e as curas mais sérias e profundas aconte -
cem em tais sessões. Alguns daqueles que praticam no cen á rio privado tam -
bém possuem formação profissional em aconselhamento ou psicoterapia e
integram essas prá ticas com a cura ritual. Além disso, a oração de cura par -
ticular às vezes ocorre pelo telefone. As comunidades mais altamente orga -
nizadas tamb ém incorporam formas de aconselhamento pastoral em suas
atividades diárias. Finalmente, a oração de cura para si pró prio ou para os
outros pode ser praticada na solid ão da devoção privada.

Curadores nessa tradição ou seja, aqueles que “oram com os outros

para curar” são vistos como depositários de um carisma especial, ou “dom
do Espírito Santo”, para esse fim. Um padre que seja membro de um grupo
de oração provavelmente receberá pedidos de oração de cura em virtude do
seu status ritual. Da mesma forma, uma pessoa com treinamento em acon -
selhamento ou uma forma convencional de psicoterapia pode ter, aos olhos
do grupo, um papel a desempenhar nas orações de cura. (Pentecostais cató -
licos não rejeitam sumariamente a medicina ocidental e estão dispostos a
indicar médicos convencionais quando necessário). O dom de curar não se
manifesta necessariamente de maneira espontânea ou dram á tica, e não se
exige uma experiência de cura do futuro curador como parte de uma inici -
ação. À medida que o grupo se desenvolve, seus membros podem decidir
instituir uma equipe de cura ou “ministério” como fun ção de grupo, em
cujo caso os membros serão solicitados a orar pedindo orientação para saber
-
se sentem se chamados para participar desse trabalho. As equipes de cura
-
re ú nem se regularmente para cultivar os seus dons e conhecimentos de cura
e podem até viajar a outros locais para oficinas de cura ritual. Os curadores

37
CoRro / SiGNincAno / CURA

bem conhecidos que conduzem essas oficinas frcqucntcmcnte publicam


livros e artigos sobre cura c às vezes viajam para conduzir servi ços dc cura cm
i regi ões onde os dons dos curadores locais não são altamente desenvolvidos.
Um indivíduo pode resolver buscar a Libertação ou a Cura de Mem ó -
rias por conra própria , ou a conselho de algum parente, amigo ou orienta-


dor pastoral . O que se segue é o relato de um curador sobre como uma
pessoa que apresenta uma queixa é recebida na ‘ sala de cura” do seu grupo
depois de cada encontro de ora ção regular:

r r ' : tszz dificuldades


,tbd; s


'1
L Í ,
-
g que voten P splicer, velhos pecãdos veihas
c os atormentam; um monte de culpa. E uma das prune , tas coisas
que a sala de cura perguntaria a eles e como ,sso esta acontecendo; é um

Memo

°U 3C flutuação que entra e sai, geralmente é o Senhor, se é a
is

estã
Vest
!ãõ lTrealmenre
C
condenação,
Gcralmente eles estão passando por períodos em que muitas
ão retornando e eles estão sendo atormentados por elas, e
se sentindo bem com Cristo. Então, o que eles fa
é alguém da sala de cura, um amigo ou uma pessoa qualquer diz,
“Olha aqui , eu acho que o Senhor está preparando você para a Cura de
ê
órias você precisa consultar a sala de cura”. De alguma maneira
e cs enten
,
-

o reca(j0. Ou eles ouviram falar da sala de cura e dizem ao


eu acho que Q Senhor pode querer que eu faça a Cura de
^^
Memórias: é isso que está acontecendo.. . ”.

Esse relato sugere que o critério principal que determina o uso da psi-
coterapia ritual é a disponibilidade de uma interpretação de certos elemen-
tos da experi ência como sinais indicativos de uma necessidade de oração de
cura. É importante reconhecer, num movimento em que mesmo os cura-
dores mais experientes estão trabalhando há pouco mais de uma década ,
que a habilidade de fazer tal interpretação é produto da socialização secun-
dária. Ao contrário da consciênciapresumida em certas sociedades tradicio-
nais de que o xamã é um recurso de cuidado à saúde , o recruta do
pentecostalismo católico aprende uma maneira nova e não-familiar de in-

38

J
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

terpretar c catalogar a experi ê ncia como saud á vel ou em necessidade da cura.6


O curador, entã o, leva o diagn óstico um pouco adiante, julgando com base
no tom afetivo (presen ça ou ausê ncia de sentimentos de culpa , condenação,
falta de liberdade interior) , se as experi ê ncias são causadas por Deus ou Sata -
n ás. A origem com Deus indica a relevâ ncia da t écnica de Cura de Mem ó ri-
as, ao passo que a origem com Satan ás indica o uso de Libertaçã o.
A relação dessas formas de cura na prá tica é, poré m , um tanto ambígua,
e elas se sobrepõem muitas vezes no que concerne ao tipo de problema abor -
dado. Alguns curadores se especializam apenas na Libertaçã o; especialmente
entre os que são influenciados por neopentecostais fundamentalistas não-ca-
tólicos, a Cura de Mem ó rias é frequentemente considerada como “prá tica de
-
psicoterapia sem licen ça” ou, pior ainda, “n ão bíblica”. Por outro lado, alguns
curadores praticam apenas a Cura de Mem órias, evitando o misterioso, pou-
co compreendido e, portanto, perigoso reino dos espíritos e dem ó nios. Já
outros fazem uso de ambas as técnicas; por exemplo, em certo ponto da
oração pela Cura de Memó rias podem verificar a presença de um dem ó nio e
lidar com isso pela Libertação, depois da qual a Cura de Mem órias é retomada.

O controle ret órico de processos end ó genos

/ Na medida em que a cura é eficaz, há certos elementos comuns a todas


as formas, sejam elas religiosas ou biom édicas. É geralmente aceito
que um
aspecto interpessoal primordial do tratamento é o apoio emocional do in-
divíduo que sofre e a reafirmação de seu valor numa comunidade ou socie-

6
Bourguignon ( 1976) , para fazer uma ampla revisão, prefere não distinguir entre movimentos
de cura religiosa e cura religiosa em outros contextos. Mesmo assim , na prá tica , o fàto de a
participação num movimento de cura ser produto de socialização secundária pode
representar uma diferença significativa em relação a situações em que uma forma espec ífica
de cura religiosa seja uma opção naturalizada na hierarquia de recursos terapê uticos de uma
sociedade. Além disso , o fato de movimentos religiosos ( nos termos de Kroeber) formarem
“sociedades- parte” , com técnicas de cura relevantes apenas para os participantes do
movimento , pode representar uma diferença significativa em relação a situações em que a
cura religiosa esteja dispon ível para sociedades inteiras.

39
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

dade, enquanto um resultado intrapsíquico primá rio é a reorganização da


orienta ção presumida da pessoa para a experiê ncia ou mundo supositivo”
(Frank; Frank, 1991)/ Em relação a como esses efeitos são alcançados, uma
visão enfoca o impacto da técnica terapêutica ou do ambiente sobre o paci-
ente, enfatizando processos "exógenos” c mecanismos tais como a persuasão
\ (Frank; Frank, 1991) ou a sugestão (Calestro, 1972) , enquanto outra enfo-
ca a resposta do/ da paciente ao seu pró prio sofrimento, enfatizando proces-
sos “end ógenos” tais como o sono e o descanso, busca de intuições, sonhos,
dissociação ou episódios psicó ticos agudos (Prince, 1976, 1980). Esses pro-
cessos endógenos (e às vezes espontâneos ou inconscientes) podem em al-
\ guns casos ter um resultado “terapêutico” positivo. Prince registra o efeito dos
; processos exógenos argumentando que vánas formas de psicoterapia, sejam
elas associadas com o consultório, com altares, com cultos, ou com xamãs,
são de fato técnicas para facilitar ou manipular os processos endógenos.
Comecemos com vários exemplos de casos específicos que demons-
i tram a mobilização retórica e a manipulação de processos endó genos na
cura. A curadora que relatou os dois primeiros exemplos era uma mulher de
1
26 anos de idade que tinha também um diploma de mestrado em psicolo-
3 gia clínica. Ela era uma das duas ou três pessoas mais respeitadas entre os
curadores do seu grupo, o qual era o maior grupo de oração numa grande
cidade do Meio-Oeste norte-americano.
:
Exemplo Um

Eu estava orando por um homem que tinha uma verdadeira histó ria de
L ; dor. Ele devia ter uns 55 anos de idade e se entregara completamente ao
I Senhor uns três anos antes, mas não tinha crescido muito. Ele resolveu
realmente que precisava de alguma cura para muita dor. Nós acabamos
; fazendo umas seis ou sete sessões com esse homem, e ainda não termina-
!
mos. A cura continua, já dura um ano. Algumas visões realmente espe-
ciais ocorreram naquela situação específica, e o Senhor vem trabalhando
Jentamente. Numa visão, me veio a figura de um garotinho num beco -
i í o homem não rinha me dito nada, mas tive a visão de um menino de uns
li dez anos, num beco, que estava amedrontado e estava escuro.
E eu a mandei - eu chamo isso de “mandar de volta ao Senhor”: antes de
testar alguma coisa com a pessoa, eu geralmente a testo com o Senhor e
pergunto ao Senhor se aquilo é Ele [mandando a visãó]. Se n ã o é eu

40
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

mando embora; se é Ele, cu peço que [a visã o] apenas seja ampliada em


mim. Então eu a jogo para o indivíduo com quem estou orando e digo
(o que eu fiz com ele foi apenas dito): “Alguma vez você já esteve num
beco escuro, você se lembra de qualquer coisa parecida ? Isso significa
alguma coisa para você como pessoa ? ” E ele simplesmente me olhou
espantado e disse, “Sim , cu n ã o tinha pensado nisso, mas...”. E ele
contou que quando tinha uns dez anos um homem aproximou-se dele
num beco atrás de uma igreja.
Ele tinha vá rios problemas sexuais, e um dos problemas sexuais tinha
sido com um relacionamento homossexual no passado, e ele jamais en-

tendera aquilo muito bem embora tivesse sido casado e tivesse vários
filhos. Mas isso [a visão] foi como o Senhor abrindo uma porta, uma
chave para entender como Ele gostaria de passar pela vida do homem ,
sem d ú vida, porque aquilo foi como o começo de muitos dos seus pro-
blemas sexuais. Aquela mesma pessoa, eu tive uma imagem dele numa
igreja, muito irado, sacudindo o punho, e perguntei-lhe o que aquilo
significava. E ele uma vez tinha considerado o sacerdócio, tinha ido para
o semin á rio, e deixara o semin ário porque estava envolvido com uma
mulher e o confessor dele disse, “Você deve se casar”. Então ele deixou o
seminá rio e se casou, mas na época ele balan çou o punho para o Senhor,
dizendo que seria padre de uma maneira ou de outra. Aquilo foi outra
coisa muito significativa, porque na vida particular ele ainda vinha en-
frentando um bocado de culpa pelo fato de ter largado o sacerdócio. E
aquela culpa estava indo para os relacionamentos sexuais e problemas
que ele tinha. Tudo ia se juntando num grande emaranhamento. Havia
uma grande necessidade de Libertação na vida daquele indivíduo, tam-
bém; através de diferentes coisas com que ele tinha se envolvido na vida,
ele só tinha realmente se aberto para muita atividade demon íaca.

Vários pontos deste relato merecem atenção. Primeiro, observe a su-


bordinação de todo o processo de cura ao valor do crescimento espiritual na
vida do homem; voltaremos a esse elemento importante mais tarde na dis-
cussão. Segundo, observe novamente o cuidado da curadora para saber se a
experiência espiritual se origina com Deus ou com Satan ás. Terceiro, os
processos psicológicos end ógenos são ativados em ambos, curadora e supli-
cante. O processo experimentado pela curadora (visão/visualização) dá forma
e significado à experiência do suplicante (memó ria/ intuição); assim como o

41
Couro / SIGNIFICADO / CURA

xamã serve de condutor da alma, guiando o seu cliente numa jornada ao


mundo dos espíritos, o curador pcntccostal católico por meio de dons de

submundo

revelação guia o sofrimento individual pelo mundo dos espíritos n ão o
m ítico do xamanismo, mas o submundo pós-freudiano de me-
mórias suprimidas, rcmitologizadas ao serem submetidas a técnicas religiosas.
A cura ritual n ão fica completamcntc registrada com essas observa-
ções, entretanto, pois a curadora notou que alé m da Cura de Memó rias o
suplicante rinha necessidade de Libertação. Observe que o suplicante é visto
como algu é m que se tornou suscetível à influencia de demonios “através de
diferentes coisas com que ele tinha se envolvido na sua vida”; isto é, várias
ações ou experi ê ncias no passado tinham produzido nele uma condição de
fraqueza espiritual que permitira aos espíritos malignos conquistar uma
posição da qual eles o assediavam ou oprimiam (mas n ão o “possu íam” no
sentido estrito da palavra). Esses demó nios era “discernidos” ou diagnostica-
.
dos pela curadora como pertencentes a dois "grupos” O primeiro inclu ía
Lascívia, Masturbação e Homossexualidade/Adulté rio ("/ ” indica dois ou
mais espíritos intimamente entrelaçados dentro de um grupo); o segundo
inclu ía Amargura/ Ressentimento/Raiva, Culpa, Rebeldia, Vaidade/ Orgu -
lho / Inseguran ça. Nesse caso, n ão está claro até onde a identificação dessas
forças demon íacas envolve um processo endógeno (externalização) na psi-
que do suplicante, pois parece que alguns dos nomes foram discernidos pela
curadora. Entretanto, acontece que o suplicante também precisa discernir,
ou admitir a presen ça de, um espírito maligno. O que é significativo é a
maneira pela qual os grupos de demonios são usados como significadores
para definir uma condição espiritual-psicodinâmica, ou como “sintomas”
espirituais para definir uma “síndrome” espiritual.
É interessante, considerando-se os antecedentes da info rmante como
psicóloga clínica, os grupos de demónios terem sido interpretados como
circunscritivos de conflitos de personalidade específicos: o primeiro grupo
representando um “conflito bissexual” e o segundo (descrito como “grupo
de personalidade”) representando um “conflito de autoconfiança”. A cura-
dora interpretou o último conflito da seguinte maneira:

:! Eles trabalhando um contra o outro. Ele tinha


estavam, aparentemente,
-
um espírito de Insegurança: o indivíduo sentiu se muito inseguro em

42

!
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

quase tudo que fez. E ainda assim , ao mesmo tempo, havia um espírito
dc Orgulho c Vaidade. Num minuto, ele podia estar orgulhoso e vaido-
so c ficar com raiva se algu é m pisasse nele e o chamasse, por exemplo, de
in ú til. E isso é uma coisa muito comum.

Embora nem todos os curadores pentecostais cat ólicos tragam o mes-


mo grau de sofistica çã o psicol ógica ao seu trabalho, a prá tica de lidar com
esp íritos malignos em grupos permite aos curadores confrontar problemas
em dois n íveis simultaneamente: pode-se ordenar que os esp íritos nomea-
dos saiam, através da técnica religiosa relativamente simples da Libertaçã o, e
o problema subjacente representado pelo grupo como um todo pode ser
tratado através de oração e aconselhamento mais prolongados. Ambos são
meios vitais para a ret ó rica de transformação empregada na psicoterapia
ritual pentecostal católica.

Exemplo Dois

[Há uma] pessoa que andava,7 e continua andando, com um problema


de peso, mas no meio daquilo ela precisou realmente de Libera ção e
resistiu com todas as forças. Algu ém lhe tinha dito que ela precisava de
Liberação, e ela achava que n ão. Então, finalmente ela me procurou e
disse, “Eu acho que preciso de Cura de Mem ó rias e Liberação em rela -
ção a comida”. Ela tinha lutado bravamente na batalha da ingestã o de
alimentos. Quando começamos a orar era bastante evidente que havia
ali um grupo verdadeiro de Gula, Lascívia (lascívia por comida, você

entende), havia Inseguran ça veja bem, a pessoa se sentia insegura com

ela mesma, então ela comia para se sentir mais segura o ciclo inteiro de
estar acima do peso estava ali. Mas além disso havia um grupo de seis ou
sete demó nios se aproveitando daquela situação... [inclusive] Culpa...
Bem, o que aconteceu depois não foi uma s ú bita e total perda de peso,
até porque a pessoa tinha esses h á bitos já consolidados, mas o que acon-

Nesse contexto o termo “andar” é uma contração da frase “andar com o Senhor , que, no
14
7

vernáculo carismá tico, é sinónimo de “viver a vida cristã” .

43
teceu foi
Urri • , .verdadeira liberdade, um in ício
U a
ac
° Um dc consciência sobre o que consciente

. .
come• p E ela ainda não perdeu todo o peso, mas está ^ mcsm
I
L
daquela liberdade; csri tomando «ais tolerante cona go mesma ^ cm
diferentes coisas. Agora, uma das coisas que seriam mu to utets nesse caso
;
que
eu fiz ,sso com outras pessoas) seria sugerir que ela olhe as comidas
r
í 7
ela come agora e adote um sistema dc recompensa para si mesma cm ,
termos de comidas que são boas para ela contra aquelas que nao sao. essa
>
recompensa seria realizada pelo encorajamento através do mando dela ou
de membros da fkm ília, ou encorajamento através de outras pessoas.
í Há um espírito de Manipulação nisso, também, onde ela manipula ou-
tras pessoas e a si própria, por meio de comentários que ela fez a si
mesma a respeito de comida. Por exemplo, “Vou comer só um pedaço de
bolo. Ora , um pedaço de bolo de aniversário não pode fazer mal . Você
acha errado comer um pedaço de bolo de aniversário, quer dizer, é uma
comemoração!?” Você sabe, esse ripo de coisa que as pessoas costumam
dizer para elas mesmas; elas tendem a racionalizar cada grama de ali-
mento que ingerem.

;
í O primeiro elemento digno de nota nesse relato é a presença de uma
resistência inicial, ou negação do problema, que é superada quando a pessoa
aceita a necessidade de terapia ritual. Segundo, o curador admite explicita-
mente que a terapia ritual lida com as dimensõ es espiritual e psicológica do
problema psicossomá tico. A cura não remove o excesso de peso, mas ativa
os processos endógenos, inclusive uma transformação de atitude em uma
: de auto-aceitação positiva, e a geração de certa intuição por parte do supli-
cante. Terceiro, os grupos de demónios cujos nomes constituem o meio
i principal de persuasão, nesse caso, incluem dois tipos distintos: aqueles que
i rotulam v/cios, pecados, ou sintomas, e correspondem a nomes na demo -
nologia cristã tradicional, tais como Lascívia e Gula; e aqueles que rotulam

: elementos afetivos e psicológicos, como Culpa e Insegurança, ou traços


comportamentais, como Manipulação. Finalmente, um quarto ponto é
que, embora os demónios sejam tratados ritualmente e vistos, na verdade,
como entidades espirituais distintas que agem como agentes aflitivos exter -
nos, o curador n ão hesita, ao lidar com os efeitos deles na pessoa, em fazer
uso das técnicas de an álise e tratamento comuns na psicoterapia secular con -
M
I :

44
:
I
I T
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

vcncional .8 O importante aqui 6 que as t écnicas seculares são subordinadas


ao significado religioso. A noçã o de um “esp írito de Manipulaçã o” n ão tem
rela çã o com um tipo de disposi çã o comportamental como teria, por exem -
plo, a frase “um esp írito de boa vontade” em discurso n ã o-ritual; em vez
disso, tem relaçã o com um sistema de forças cosmol ógicas e morais que
constituem um universo de discurso radicalmente diferente.
O exemplo que se segue é retirado do relato por um homem de
— —
trinta e poucos anos de uma cura que ele próprio experienciou. A impor-
tâ ncia do processo end ógeno nesse relato é indiscutível, pois a cura ocorreu
totalmente sem auxílio de um curador. A Parte A descreve um incidente de
uma noite em que o homem experienciou vários episódios de cura vision á-
ria, enquanto a Parte B descreve uma experiência de cura pelo mesmo ho -
mem numa data posterior. Ambos os exemplos são de Cura de Mem órias.

Exemplo Três

Parte A

[N]aquela noite eu tive provavelmente quatro ou cinco [visões] sucessi-


vas. A coisa toda aconteceu no espaço de poucos minutos. Vinha uma,
outra, e depois outra. E uma das maiores coisas de tudo que aconteceu é
que fui levado de volta à experiê ncia do nascimento. É sabido, é um fato
m édico que eu fui um natimorto. Nasci sem vida. O médico tem os
registros e tudo. E toda aquela cena me veio à mente a de nascer. Na—
O leitor familiarizado com as técnicas de psicoterapia reconhecerá a referência da informante
com treinamento cl ínico tanto à modificação comportamental como, no sentido do que ela
afirma para si mesma , a elementos da terapia racional-emotiva de Albert Ellis. Uma visão
intrigante da interface do sagrado e do secular é oferecida na explicação dela de por que, ao
mesmo tempo, ela não gosta das técnicas da Gestalt: “eu a questiono [ Gestalt ] por causa de
alguns de seus frutos. Grande parte dos frutos dela acaba beirando o pecado ou sendo
pecado; [isto é,] em termos de como muita gente que trabalha com terapia Gestalt entra
muito nessas coisas de sensitividade onde tem um monte de liberdade, que na verdade
chega muito perto desses grupos de encontro, pode até chegar perto da Meditação
Transcendental . Muitos terapeutas Gestalt entraram nisso. Eles entram num monte de
coisa que é transcendental por natureza e que não ‘testa o espírito’ para saber se é realmente
o espí rito de Jesus ou um outro espírito”.

45
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

verdade, eu podia me ver saindo da minha mãe, c o doutor me lcvantan -

.
do e dizendo claramcnrc, "Este <5 o segundo que perdi hoje” . Ele me pôs
“ rodos lã trabalhando 11a minha mãe. E era um
!
h Sp í“
< nh, uma ftch* U bem , cu csreu pulando „a
-
pam baixôqvcndõ «do nos menores deta-
lhei
„5o na minha cabeç c disse Voei va. «ver porque eu tenho co.sas
E o Senhor em cena
entrou
a ,'
vez
outra de pd
, ao meu lado. Ele pos a

iara você fizerfiz. Euumquero


P
ou
que você
movimento úsbito
,
. E naquele
viva
alguma
msrante eu chora-
coisa assim. E aquela
i • "
11 5
f -
freira nuc estava l á viu e veio correndo. Na verdade , as palavras dela
q
foram , Deus cic está vivo!” O doutor veio e me pôs a funcionar
;j0 foi uma Cura tremenda. Porque para muita
^^
^sabemosjuees
Ut
° iência do nascimento é traumática. É duro passar por
gente a
tudo aquilo.
E n ós sabemos o que se passa na sua cabeça - você não pode lembrar,
mas como isso lhe afeta quando voce é
natimorto?
negativo, porque você ouve falar
Acho que o
resto dC
^ durante os anos de crescimento.
disso pelo
^ vem à tona de qualquer
SlUnJcimento Sempre que
o assunto maneira. Sempre se men-
jantar, “Você nasceu morto e eu
ciona isso na
muito di ici ,
^a sua m ãe [diz isso]. E o que isso
tive um parto
diz é que você
foi muito duro com Você ed$a de uma cura; vQcê
fez a sua
mãe sofrer dor. E você passou por uma dor tremenda; VQcê até morreu.
Havia um claro sentimento de culpa por causa de ouvi -1 A -

°
°nfmcnte
n
anos, [causado] inconscientemente - ela a n
nao f
ão fez
^ isso
Mas os pais fazem isso; eu mesmo fiz isso , tenho certeza, em
30
mtenci-

outras circunstâncias, com meus próprios filhos . Mas a verdade é que a


cura era necessária, e eu fui capaz de obtê-la, e simplesmente tive uma
perspectiva inteiramente nova sobre ela. Acho que a maior coisa de todas
foi ver o Senhor, o fato Dele estar visível, e ser capaz de retornar àquilo
me fez apreciar mais a minha mãe. Ela e eu nunca nos t ínhamos dado
muito bem - um relacionamento dif ícil. Ver aquela cena toda realmente
I ajudou aquele relacionamento. . .
!
Parte B

r —
Eu diria que uma das maiores que eu já tive foi uma cura bem , primei -
ro eu posso lhe dar algumas estatísticas. Entre os homens a masturbação
'

46
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

é um verdadeiro problema. A maioria dos caras passam a vida toda com


o problema. Eles acham que tem alguma coisa errada com eles, ou que
são esquisitos ou algo assim. Eles jamais falam disso com ningu ém e t ê m

cos — —
problemas muito dif íceis com a culpa principalmente homens católi
porque sempre lhes ensinaram que isso era pecado, uma coisa
-
muito ruim para estar envolvido. Mesmo assim , é uma coisa muito nor -
mal. Não tem nenhum homem por aí que n ão tenha. Bem , eu andei por
— —
a í desde que eu tinha 14 12, 13, 14 anos até mais ou menos um ano
atrás com aquele problema. E orei logo que descobri que a cura era
verdadeira; e també m li uma coisa no livro do padre MacNutt. Ele ape-
nas mencionou por alto que tinha visto homens curados daquilo, e do

alcoolismo ele simplesmente juntou as duas coisas. Bem, eu orei pela
cura. Acho que orei duas semanas, sem parar. E finalmente uma noite

caiu a ficha eu estava curado e eu sabia disso. E nunca mais; nem
vontade, nem nada. Tinha passado. A culpa é a grande coisa que passou;
acabou a culpa... [e] tinha aquela imagina ção. Eu n ão diria imagina ção
— é real. Ele estava bem ali e Ele me tocou e disse, “Eu estou aqui e
acabou”. Ele levou aquilo embora. Foi a maior cura da minha vida, até
aquele momento. Eu estava apenas caminhando nas nuvens. Eu estava
aliviado. Foi fantástico. Isso foi há um ano, e eu aguentei. Veja só, quan -
do eu estava envolvido em outras atividades religiosas, cursilho e vá rias
outras coisas, o problema ainda estava lá. Quando se aproximava a data
de algum evento do qual eu estava encarregado ou tinha alguma fun ção
a desempenhar, eu podia ficar afastado daquilo por duas ou três sema-
nas, mas a tentação era horrível. Eles eram impiedosos e eu ficava lutan -
do para afastá-los. Agora acabou. Com a cura, n ão tem mais tentação,
nada. Simplesmente acabou. Grande cura.

O primeiro ponto relevante nesse relato é que o informante, sendo ele


próprio um curador, orou por sua própria cura depois de consultar livros
sobre o assunto; no episódio da Parte A foi o texto de Agnes Sanford , a
especialista em Cura de Memó rias da Igreja Episcopal, e na Parte B foi o
trabalho do curador católico Francis Mac Nutt.9 Segundo, a Parte A é ape-

9 O fato de esse suplicante ser também um curador pode explicar a sua vontade de tentar a
autocura, mas não diminui a significação da natureza solitária dela.

47
í
CORPO / SIGNIFICADO

nas um episódio dc uma experiê ncia mais longa de um fim de tarde que
incluiu, al ém da cena do nascimento revivida , uma cura de mem ó rias res -
sentidas de uma freira que tinha sido professora dele na escola fundamental ,
e a cura de uma fobia sobre espanadores de pena enraizada nas lembran ças
de um certo espanador agitado por uma empregada doméstica na casa de

-
1
sua inf ância. Terceiro, observe a relevâ ncia da culpa enquanto estado afetivo
que precisa de cura: na Parte A o suplicante atribui peso igual ao al ívio da
culpa instilada por sua m ãe c os vestígios emocionais da experiência traum á
-
tica de proximidade com sua própria morte, sendo a melhora do seu relaci
onamento com a mãe no momento vista aparentemente quase como efeito
-
colateral da cura; na Parte B o suplicante dá maior importância ao alívio de
sua culpa a respeito da masturbação do que à sua libertação da vontade de
masturbar-se. Quarto, deve-se chamar a atenção para a definição cultural-
mente específica na Parte B de masturbação como um problema que preci-
sa ser curado, pois em algumas sociedades, e em segmentos da pró pria
sociedade do informante, a auto-estimulação eró tica n ão é considerada nem
pecaminosa nem má para a sa úde. Finalmente, observe a importância da
visualização vívida e específica, inclusive da presença de Jesus como curador,
l como um processo end ógeno crucial para o impacto terapêutico da cura.
A idéia da importância dos processos endógenos em terapia ocorreu a
Prince (1980) a partir de sua observação de um ritual de cura em que não
havia curador, realizado diante do túmulo de um santo muç ulmano em
Lucknow, na índia. O ponto de Prince e reforçado pelo nosso pró prio
Exemplo Três, no qual uma experiência de cura normalmente dirigida por
um terapeuta ritual acontece ao suplicante em solidão. Os dois casos suge-
rem que um relato abrangente de eficácia terapê utica deve ter o seu locus em
algum lugar que n ão seja a transferência ativada na interação diádica pacien-
te-terapeuta. Todavia, a identificação de processos endógenos n ão fornece
por si só um locus adequado para interpretação, pois é preciso perguntar
como os processos são ativados em terapia, e por que diferentes processos
li endógenos são prevalences em diferentes cenários. Por exemplo, no caso
que Prince observou, a dissociação era o processo terapêutico principal, en-
!
: quanto na cura pentecostal católica a dissociação tem apenas um papel se-
cundário e na verdade é vista com certa desconfiança. Além disso, os mesmos
processos podem se manifestar de formas significativamente diversas se -
48
y
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

gundo as culturas e os tipos de terapia. Três desses processos foram identifi -


cados nos exemplos dados acima: mem ória/ intui ção e visão /visualização
predominaram na Cura de Memórias , enquanto a externalização foi essen-
cial para a Libertação. Esses três processos básicos de cura não são exclusivi-
dade do pentecostalismo cat ó lico . A mem ó ria / intui çã o é o
componente-chave da psicanálise; a visão/ visualização é o componente-cha-
ve do xamanismo e encontra-se também em certas formas de psicoterapia
humanista, como a psicoss íntese (Assagioli , 1965) ; a externalização é co-
mum em outras formas de cura por exorcismo, como o exemplo tailandês
discutido por Tambiah ( 1977) , e encontra-se também em forma contem-
porânea na terapia Morita japonesa ( Kleinman , 1980) .
JA
força do meu argumento é que o lociis da eficácia terapêutica está nas
formas e nos significados particulares — isto é, o discurso — através dos quais
os processos endógenos são ativados e exprimidosjyReconhecer esse papel
do discurso resolve o paradoxo criado pela ativação de processos endógenos
na ausência de um curador. Como sugere Foucault ( 1970, 1972) o discurso

10
Discurso pode ser definido simplesmente como desempenho linguístico contrastando com
competência, ou parole contrastando com langue, embora inclua modos e formas semi ó ticos
-
não lingiiísticos de comunicação (Ricoeur, 1979). Na sua formulação mais forte, a estrutura
do discurso é o locus das próprias condições de possibilidade do conhecimento (Foucault,
1970, 1972). As noções de discurso elaboradas por Ricoeur e Foucault são derivadas da
análise de texto e não da an álise de tradução oral ou prá tica cultural; assim a autonomia do
discurso é baseada na observação da independência entre texto e autor após a composição.
Os antropólogos que desconfiam das analogias provenientes da análise textual deveriam se
lembrar de que, em todas as formulações, exceto as mais rigidamente mentalisras, a cultura
é pensada como possuidora de propriedades sistémicas que a tornam semi-autônoma em
relação aos portadores de cultura individuais. Nesse aspecto, a contribuição do discurso
para o estudo da cultura é dupla: 1) sem deixar de enfatizar a cultura como um sistema
semi-autô nomo, o discurso é por definição um tipo de processo, superando assim a tendência
da cultura de ser concebida como um sistema está tico e as dificuldades conceituais decorrentes
de explicar a mudança cultural e permitir uma análise n ão-forçada da cultura em ação; 2)
como o discurso é por definição um produto (comunicativo) social que por sua vez influencia
a ação social de uma maneira dialé tica, a semi-autonomia do discurso pode ser postulada
sem apelar para um n ível ontológico “superorgânico” à la Kroeber. O conceito de cultura
associado com a noção de discurso não é nem superorgânico nem mentalista, mas é mais
• próximo do de Sapir, para quem o locus de cultura estava na interação entre indivíduos.

49
Couro / SIGNIFICADO /
^, , A

é um processo semi -aurônomo que tanto pode ser ajudado como aprovei -
tado por quem está familiarizado com suas convenções. Levado adiante

^
pela sua própria estrutura de implicações, próprio discurso incorpora a
eficácia terapêutica c o poder m ístico do divino “outrçTj
Para compreender a natureza específica dessa eficácia á preciso cons-
truir uma hermenêutica da retórica cultural cm funcionamento no discurso
da cura." A noção de retórica, comparada às noções de sugestão , de apoio e
de sustento, ou efeito placebo, ajuda no reconhecimento de queja cura
depende de um discurso significativo c convincente que transforma as con-
Tv dições fenomenológicas sob as quais o paciente existe e experiencia sofri -
/ í ' /
mento ou afli ção Pode-se demonstrar que essa retórica redireciona a atenção
do suplicante para novos aspectos de suas ações e experiências , ou o persua-
de a lidar com os aspectos habituais da ação e da experiência a partir de
novas perspect • Secundo
b Schutz (1967), para quem a maneira particu
/
experiências constitui o significado
-
lar de as dessas
expenências, jes redirecionamento da atenção equivale à criação de signi-
medida em que esse novo significado
"
3

,
«
°
peri
^ P“soa' 3 ““ ‘ CIÍar Para Cla uma
abrange
nova reali -

Como um aspecto do discurso, a retórica pode ser entendida como o seu “fio de corte” o
-

elo qual os participantes no discurso são convencidos de sua validade e relevâ ncia.
tT ^'0o reocupa ção com a retórica foi introduzida nas ciências humanas em parte através do
de Kenneth Burke (1970a, 1970b), e está evidente na abordagem “centrada no
desempenho” em folclore (Abrahams, 1968), sociolingii ística (Hymes, 1975) e na
, rA rrm
-O81973 do “desempenho cultural” na antropologia cultural (Fernandez, 1972, 1974;
Geercz ; Singer, 1958; Turner, V., 1974; confira Csordas, 1997).
É melhor resumir a abordagem de Schutz (1967, p. 63) do significado nos seus próprios
-
ermos “ É errado dizer que as experiências tê m significado. O significado não reside na
experiência Ao invés disso, as experiências significativas são aquelas que são apreendidas
reflexivamente O significado é a maneira pela qual o ego considera a sua experiê ncia [. .
.
;
“ f Um] significado n ão está realmente anexado a uma ação. Se dissermos que est á, devemos
entender essa afirmação como uma maneira metafórica de dizer que direc o namos -nossa - - ---
aten ção às nossas experiências de forma a constituir a partir delas uma açao unificada
. / .
(Schtritz 1967 p. 63) “0 significado é apenas a maneira especial pela qual o suje to lida
com sua experiência viVida; é isso que eleva a experiê ncia em uma açao. É incorreto, pois,
olhar o significado como se fosse um tipo de predicado que pudesse ser anexado a uma
.
ação ” (Schultz, 1967, p 215 . y
50

J
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

cladc ou um novo mundo fenomenol ógico. /Ao começar a habitar nesse


novo mundo sagrado, o suplicante é curado n ã o no sentido de ser restitu ído
ao estado no qual ele existia antes da instalação da doen ça, mas no sentido
dc scr “transportado” retoricamente para um estado dissimilar das duas rea-
lidades , de pré-doen ça e de doen ça. A tarefa interpretativa crucial é mostrar
como essa realidade constitui-se como uma transforma çã o das realidades de
pré-enfermidade e de enfermidade
^
Ao fazer a ligação do aspecto ret ó rico do discurso com os processos
end ógenos de cura, essa abordagem sugere que a transformação ocasionada
pela cura opera em m ú ltiplos n íveis./A experiê ncia de cura é uma experiê n -
cia de totalidade até onde os processos end ógenos ocorrem em n íveis fisio-
lógicos e intrapsíquicos, e a ret ó rica age tanto no n ível social de persuasã o e
influ ê ncia interpessoal quanto no n ível cultural de significados, símbolos e
estilos de argumento jA discussão a seguir assentará as bases para a identifi-
cação dos componentes fundamentais da retó rica através dos quais os pro-
cessos endógenos são controlados e a transformação da cura é alcan çada.
Esta fase do argumento começa com a comunidade prim ária de refe-
rência na qual um indivíduo é reconhecido como doente e tratado com a
terapia apropriada. A comunidade primária de referência desempenha dois
papéis cruciais em qualquer sistema psicoterapê utico: ela define os tipos de
problema que exigem tratamento e estabelece os critérios segundo os quais
ela aceitará um de seus membros como algué m que foi curado. A chave
para a retó rica da transformação na cura religiosa é que tanto a defini ção de
problemas como a de curas estejam de acordo com a agenda da comunida-
de religiosa. Vários estudos conclu íram que os problemas apresentados nem
sempre são de natureza psiquiátrica (Monfouga-Nicolas, 1972; Pressel,
1973) , e minha curadora-informante clinicamente treinada confirma isso
para os católicos pentecostais. Isso não significa que a comunidade religiosa
necessariamente cria problemas que vem a curar depois, mas sim que ela
trata dimensões espirituais e psicológicas de problemas não considerados
|
por nenhum outro m é todo de cura. Com relação à definição de cura, des-
cobriu-se que em movimentos cujo objetivo primordial é curar, e especial-
mente casos que envolvem possessão de esp írito religiosa, a cura se d á em
grande parte através da aceitação daÇ jjliação no grupcjT(Crapanzano, 1973;
Messing, 1959; Monfouga-Nicolas, 1972). Entre Tcatólicos pentecostais,
^
51

rrw\
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

a ocorrência da cura é entendida em termos de integração da pessoa curada


na comu nidade religiosa, embora o objetivo da comunidade vá alé m da
cura. A cura bem sucedida e duradoura é vista como um processo cont í nuo
-
com a ajuda e o apoio da irmandade cristã no dia a dia.--13

Para o pentecostalismo em geral, esse reconhecimento do papel desta -


cado do grupo levou à conclusão de que a cura pela fé não trata a patologia,
mas o modo de vida (Pattison, 1974). Por mais verdadeira que seja essa
afirmação, ela pode ser facilmente distorcida para sugerir que tal cura deixa
de lado os verdadeiros problemas redefinindo-os em um novo contexto ou
os subordinando a metas religiosas. Uma tal abordagem suscitaria a questão
da, nas palavras deTambiah (1977) / eficácia performativa” incorporada na
retó rica da cura ri tuay O relato de Tambiah do culto budista tailandês de
cura pela meditação fornece nesse aspecto um util paralelo ao pentecostalis -
mo católico, apesar das noções muito diferentes de sujeito encontradas no
budismo e no cristianismo. Tambiah (1972, p. 123) escreve que “no con -
texto budista os aspectos individuais e pessoais da enfermidade são assimila -
dos a um resistente paradigma cósmico de teodicéia e tranquilidade”
encontrado na noção de karma e constituindo uma "explicação para tudo”
através da qual os pacientes transcendem suas condições atuais. Mas, diz
|
Tambiah (1977, p. 122), isto é só a metade da história, pois “a experiência
de enfermidade, dor e sofrimento é vista como uma manifestação verdadei -
j
ra do emaranhado ‘substancial e corpóreo de alguém" e o professor (achati)
é considerado como possuidor de poderes m ísticos concretos (iddhi ) que
são exercidos nos discursos de meditação que descrevem realisticamente as
-
doen ças e as técnicas para curá las... (Tambiah, 1977, p. 123). A doutrina
assegura que o estado espiritual mais alto pode ser atingido apenas pela
pessoa que estiver em um perfeito estado de saúde física e mental; e a reli-
gião oferece meios de alcançar ambas as condições. Uma retó rica semelhan-
te prevalece no pentecostalismo católico, onde o processo de cura no seu
conjunto é subordinado ao de “crescimento espiritual” do indivíduo, a ponto

Ness (1980, p. 178) faz a importante observação de que essa forma de interação pode
come 13 ter
pohi .
maior efeito terapêutico a longo prazo do que os próprios rituais de cura
plcsn
sede li -
.
52
U
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

de algumas pessoas acreditarem que todos deveriam em algum momento


submcter-sc à Cura de Memórias, tendo ou não um problema específico.
Ao mesmo tempo, os poderes místicos concretos invocados nas vá rias téc -
nicas de cura dirigem-se també m ao sofrimento real no âmbito temporal.
Isso corresponde às a ções do Jesus bíblico, que, enquanto pregava a tremen-
da importância da preparação para entrar no Reino dos Céus, ainda assim
utilizava o Seu poder espiritual para trazer al ívio aos aflitos através da cura.
Desse modo, embora os informantes reconheçam a importância primordi-
al de efeitos como mudanças de atitude, afeto, ou imagens de si que perten-
cem ao crescimento espiritual, existe também o sentimento de certeza de
que queixas específicas estão sendo diretamente tratadas pela cura.
Essa discussão nos permite fazer uma formulação preliminar, sugerin-
do que a retórica de transformação precisa completar três tarefas infima-
mente relacionadas:

j\. Predisposição - dentro do contexto da comunidade primária de


referência, o suplicante deve ser persuadido de que a cura é possível,
que as alegações do grupo a esse respeito são coerentes e legítimas.
2. Empoderamento - o suplicante deve ser persuadido de que a terapia
é eficaz - que ele está experienciando os efeitos curativos do poder
espiritual.
3. Transformação - o suplicante deve ser persuadido a mudar - isto é,
ele deve aceitar a transformação comportamental cognitiva/afetiva que
constitui a cura dentro do sistema religioso /
Vamos examinar como a cura católica pentecostal completa essas tare-
fas, uma por vez, sob os títulos respectivos de “Retórica de predisposição”,
“Retórica de empoderamento” e “Retórica de transformação”. Na segunda
parte deste capítulo, apresentarei um material adicional que permitirá um
refinamento dessa formulação preliminar.

Retórica de predisposição

Antes das tarefas de empoderamento e transformação, existe um n ível


de força de persuasão imbricado no cená rio social da cura carismática que

53
"I

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

predispõe os suplicantes em potencial ao tipo de experiê ncia que a cura


proporciona. Duas características contextuais são de relevâ ncia imediata.
Primeiro, a cura carismática é esotérica no sentido de estar dispon ível ape-
nas para aqueles que já tiveram pelo menos um m ínimo grau de participa-
ção no movimento. Assim, ela n ão se assemelha às formas terapê uticas como
o espiritualismo mexicano descrito por Finlder (1980, 1981) ou o exorcis
mo cingalês descrito por Kapferer (1979a, 1979c, 1983) , cujo apelo é exo-
-
térico no sentido de ser orientado para as necessidades da sa úde p ú blica em
geral. Segundo, ao contrá rio de muitas terapias religiosas encontradas na
literatura etnopsiquiátrica (Finlder, 1980, 1981; Jilek, 1974; Messing, 1939;
Monfouga-Nicolas, 1972), os participantes no pentecostalismo católico
raras vezes se envolvem basicamente em função da busca da cura. Outras
razões pessoais ou religiosas levam a maioria dos participantes para os
gru-
pos de oração ou comunidades; o encontro de oração é o primeiro cená rio
ritual ao qual a maioria dos católicos pentecostais são expostos, e somente
aprofundando o seu envolvimento eles experimentam as formas de cura
aqui descritas. Esses dois fatos- a natureza esotérica da cura católica pente-
costal e o seu papel secundário no início do envolvimento com o movi
-
mento - indicam que a retórica de cura é derivada do campo de discurso
mais amplo que define o movimento como um todo. Sendo assim , farei
aqui uma breve apresentação da linguagem ritual católica pentecostal (veja
Csordas, 1997 para uma análise mais detalhada).
No fundo o discurso ritual pentecostal católico é um conjunto distin-
to de termos que constituem um “vocabulá rio de motivos” (confira Mills,
1940) para o movimento.14 Esses motivos são complexos de significado
que orientam a ação de participantes tanto no cenário ritual como no dia-a-
dia. Os motivos são manddos em permanente circulação no discurso cató-
lico pentecostal através de seu uso na apresentação de gêneros específicos de

M Mills ( 1940, p. 905 ) define motivos da seguinte forma: “Motivos são palavras. Geralmente,
eles se referem a quê? Eles não denotam elementos cm’ indiv í duos . Eles representam
consequências situacionais antecipadas de conduta . A intenção ou o propósito (como
apresentados como um ‘programa’) é a consciência de consequências antecipadas; motivos são
nomes para situações conseqlienciais, e substitutos para as ações que levam até elas [. . .].

54
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

linguagem ritual. O vocabul á rio pode ser analisado em várias categorias


como segue: Formas de Relaçã o tais como Autoridade, Pacto, Promessa,
Filiação/ Irmandade; Formas de Coletividade, tais como Comunidade, Povo,
Exé rcito, Reino; Qualidades, tais como Luz, Coração, Poder, Ordem; Ati-
vidades, tais como Serviço, Louvor, Guerra, Crescimento; e Negatividades,
tais como Mundo, Carne, Dem ó nio, Escurid ão. Os gê neros sã o modos de
fala comandados por regras de uso específicas e identificáveis em termos de
caracter ísticas prosódicas específicas. Destacam-se entre eles: Oração, Ensi-
namento, Partilha (confirmaçã o ou testemunho) e Profecia. Uma relação
dialé tica existe entre o vocabul á rio de motivos e o sistema de gê neros sagra-
dos. Os motivos orientam a ação de elocução nos gêneros. Por exemplo,
enquanto uma elocução é considerada inspirada, ela é vista como uma ma-
nifestação irresist ível de “ Poder” divino. També m, elocuções nos gêneros de
linguagem ritual supostamente se originam e atendem as necessidades da
“Comunidade” de companheiros cristãos. O vocabulário de motivos é, por
sua vez, influenciado por uma constante circulação pelo sistema de gêneros.
Isto é, o significado de cada motivo é elaborado, relacionado aos significados
de outros motivos e aplicado às situações da vida cotidiana (Csordas, 1997).
jh.força de persuasão neste nível está no fato de que as técnicas de cura
são aplicações específicas de motivos e gêneros com os quais, num contexto
mais amplo, o suplicante já está pelo menos minimamente familiarizado.
No plano psicológico, isso equivale a uma predisposição a ser curado; no
n ível fenomenológico, significa que o suplicante está consciente de que a
sua cura faz parte de algo maior do que ele pró prio. Para os pentecostais
católicos, a possibilidade de cura está infimamente articulada numa teia de
motivos. Assim, estar impregnado com o Poder do Espírito Santo não ca-
pacita simplesmente uma pessoa a falar em línguas, mas dá início a um
processo de Crescimento espiritual que a torna cada vez mais capaz de Servir

^
à Comunidade [de crentes] A Comunidade é o instrumento através do qual
o Plano de Deus pode ser realizado e o Seu Reino alcançado, precisando
portanto ser composta de membros EspiritualmenteMaduros.fCurar é uma
função da Comunidade que promove a Maturidade Espiritual, removendo
os obstáculos à continuação do Crescimento e pondo Ordem na vida de
uma pessoa. Sem o apoio da Comunidade, considera-se muito difícil atin-
gir a meta de Crescimento e Ordení j

55
CORTO / SIGNIFICADO / CUPA

A consciê ncia da possibilidade de Dons Espirituais c da elocu ção de


gêneros rituais no contato do grupo prepara o suplicante para ser profun
damente tocado quando esses recursos forem utilizados especificamente em
-
seu benefício. Por acmplo, a profecia ocorre em vá rios contextos entre os
católicos penrecostais. Vista como uma mensagem direta de Deus , a profe
cia c declarada na primeira pessoa gramatical. Ela é cspecialmente persuasiva
-
e peremptória , tanto como uma manifestação da presen ça divina quanto
como meio de guiar e dirigir grupos e indivíduos, e raramente é usada para
predizer o futuro (veja Csordas, 199 / ). O impacto retórico da profecia é
amplificado quando, dentro da cura ritual, um indivíduo acostumado a
ouvir a profecia dirigida a grupos depara-se com a atenção divina focalizada
diretamente nele, através de uma mensagem profética de encorajamen ,
to
admoesta ção ou exorta ção. Da mesma forma, a existê ncia de esp í ritos ma
lignos é dada como certa no dia-a-dia dos carism áticos. Um sentimento de
-
disforia ou de ansiedade pode ser atribuído a um espírito maligno e “liber
tador a qualquer momento; e, no contexto do grupo, a demonologia
-
pode

servir de linguagem - um tipo de taquigrafia semiológica para a articu
ção da tensão interpessoal (Csordas, 1997). Novamente, o impacto retó
la-
ri-
co da atividade demoníaca é realçado quando o suplicante em cura se á
d
conta de que a sua própria vida é o locus de tal atividade demon
íaca. Ele é
-
realçado ainda mais quando volta a referir se ao cenário cosmológiço esta
-
belecido pelo vocabulário de motivos, tornando-se compreensível como
uma batalha na cont ínua guerra espiritual entre as forças da Luz e das Trevas.
Em resumo, a retórica contextual do ritual terapêutico cria na pessoa
uma predisposição para curar-se e uma consciê ncia de um propósito mai
or para a sua cura. A importância de cultivar tal predisposição é reconhe
-
cida entre os pentecostais católicos; ela é designada no vocabulário de
-
motivos por um termo que, apagando a distin ção analítica entre êmico e
ético, é id êntico àquele empregado por Frank, J. (1973) na sua explicação
yts-- de como funciona a cura pela fé: Fé Expectante. o que o presente argu
f /
i j mento demonstrou até agora é que, quer seja reconhecida explicitamente
-
A' num nível êmico ou posta como uma categoria operacional no n ível éti -
i co , essa fé expectante é constituída de uma retó rica específica para o con -
/
texto no qual acontece a cura Nesse caso , essa retó rica é determinada pela
natureza esot érica da cura carism á tica e tamb é m pela subordina ção da

56
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

cura a um discurso cnglobante composto de um vocabul á rio de motivos


c um sistema de gê neros.
Qual processo end ógeno, se houver algum , é ativado pela retó rica de
predisposição na cura ritual ? De uma forma indireta, é a “conversão”, cujo
processo como um todo é controlado retoricamente pelo aparato inteiro de
linguagem ritual acima descrito. A noção de conversão deve ser qualificada
para os católicos pentecostais, pois ela não é necessariamente uma s ú bita e
dram á tica reestruturação cognitiva; enquanto alguns participantes reconhe -
cem que sua integração aconteceu depois de uma forte crise pessoal ou ex-
periência de conversão, outros a vêem como um passo perfeitamente natural
num dado momento de suas vidas (Csordas, 1997; McGuire, 1982). Ao
mesmo tempo, o grau de socialização secundária necessário pode ser relati-
vamente insignificante para muitos católicos já predispostos a esse tipo de
espiritualidade. A retó rica de predisposição na cura é, então, uma elabora -
ção específica sobre o processo de conversão. Isso foi mostrado nos exem-
plos acima descritos. No Exemplo Um, três anos separam o envolvimento
inicial do suplicante e sua percepção da necessidade de uma cura; no Exem -
plo Dois, uma resistência inicial à cura recomendada por outra pessoa é
superada; no Exemplo Três, o suplicante é levado à cura através de leituras
de material motivacional impresso do movimento. Assim, o impacto retó-
rico nesse nível serve para assentar as bases de ativação dos processos endóge-
nos através dos quais o trabalho principal da cura é realizado.

Q Retórica de empoderamento

Sob este título,consideramos aqueles componentes da terapia ritual


por meio dos quais o suplicante é persuadido de que está experienciando os
efeitos do poder divino. Poder é um motivo-chave para os pentecostais
católicos. O movimento é chamado de Renovação Carism ática exatamente
por causa de seu uso ritual de “carismas”, ou “Dons do Espírito Santo”,
entendidos como modos para a expressão de poder espiritual. O impacto
retó rico do tema poder é uma função da maneira como ele é baseado na
experiê ncia concreta. Para a cura ritual, dois aspectos principais de empode-
ramento são considerados /o papel de símbolos somá ticos, o processo fisio-
^
l ógico e a interpretação de expressão espontânea dos processos endógenos/

57
T

CORPO / SIGNIFIC DO / CURA


^

/ Basta que se recorde a noção de Mauss (1950a) de les techniques du


corps, na qual o corpo humano c simultaneamente o objeto primordial e a
15

ferramenta da a ção cultural, para compreender quejorneio mais concreto e


imediato de persuadir as pessoas da realidade do poder divino é envolver
seus corpos? Simbolicamente um microcosmo e fisiologicamente o limite
da experiência humana, corpo recrutado para a causa da cura simbólica
invoca um senrimenrode totalidade poderoso, abrangendo a pessoa inteirã j
É nessa perspecriva que a tradicional “imposição de m ãos” pentecostal é
melhor compreendida enquanto técnica retórica. Esse gesto é interpretado
com demasiada frequência simplesmente como uma transferê ncia m á gica
de poder. No entanto, do ponto de vista que acaba de ser apresentado, em
quejã experiência da realidade sagrada é entendida como fundamental para a
cura religiosã jele surge como um símbolo-chave com (nas palavras de Vic-
tor Turner) significa ção “mulrivoca]”. A implicação verdadeira da imposi
-
ção de mãos então emerge dagn álise do significado comunicado pelo toquej
Esta an álise começa com o reconhecimento de que (nas palavras de Wit-
tgenstein) o/festo carrega uma “semelhança de família” com o tapinha de
felicita ções nas costas ou com a simpá tica mão no ombrq |[o desempenho
do gesto no contexto ritual indui uma amplificação mimética do seu signi-
ficado em dois aspectòsJlPrimé jru é uma imitação do toque curador de
)
/
Jesus descrito na Bíblia SegundoJ) é uma metonímia da solidariedade da
comunidade cristã; a umda3T3edois corpos que se tocam é a unidade da
igreja como Corpo Místico de Cristo. A importância do toque como um
locus retórico critico no estabelecimento dessa unidade está subentendida na
obseraçã o de Terence Turner (1980, p. 112)]3e que “a parte superficial do
corpo parece ser tratada, em todos os lugares, n ão apenas como linha divi-
sória do indivíduo enquanto entidade biol ógica e psicológica, mas també m

^
como fronteira do self social Um exemplo concreto disso é a situação na
qual um grupo está “orando sobre” um indivíduo. É necessário que apenas
duas ou três pessoas estejam em contato físico com o suplicante; as que
estão em volta podem manter as m ãos nos ombros daquelas que estiverem
entre elas e o suplicante. Não há qualquer evid ê ncia de que o conceito pen-

15
Em francês no original (N. deT.).

58
A Retórica da Transforma çã o no Ritual de Cura

tecostal católico de poder inclua sua transmissibilidade ao seu objeto atra-


vés de outras pessoas. Do ponto de vista êmico, é provavelmente mais cor-
reto dizer que /o poder espiritual desencadeia-se antes de tudo pela oração
que o acompanha , especialmente quando essa oração é entoada na forma
espiritualmente poderosa da glossolaliaj É mais no apelo à totalidade incor-
porada na união física do que na transferência mágica de poder que reside
grande parte da força de persuasão do gesto. 16 Também nesse aspecto, o
gesto tem a conotação de escudar e proteger o suplicante aflito. 17
Duas outras linhas de significado podem ser desenroladas desse sím-
bolo complexo, uma histórica e uma genética. A primeira tem a ver com a
direta semelhança de fam ília entre a imposição de mãos e o “toque real” da
Idade Média, quando os monarcas europeus punham as mãos sobre os seus
súditos num gesto ritual de cura para doenças como a escrófula ( Bloch ,
1973) . Essa prática terminou no século XVIII, aproximadamente na mes-
ma época em que a tradição wesleyana que difundiu o pentecostalismo
começava a entrar no cenário religioso. Em um certo sentido, a imposição
de mãos pentecostal pode ser considerada como a protestantização ou de-
mocratização do toque de cura atribuído aos monarcas em virtude do seu

16 Isso não serve para argumentar que o elemento mágico está completamente ausente (confira
McGuire, 1982), mas que o gesto é muito mais complexo do que uma transferência
m ágica. Mesmo quando um carism á tico põe as m ãos no capô do seu carro quando ele não
pega de manhã, o gesto “mágico” vem acompanhado do ato de oração “religioso”. Pode
parecer que a pessoa nessa situação careça de conhecimento técnico sobre o seu carro numa
forma semelhante a dos pensadores “mágicos” de sociedade tradicional descritos por
Malinowski. Mesmo assim , a inten ção da oração tanto pode ser que as atividades do dia
não sejam prejudicadas pela necessidade de chamar um mecânico como que se desencadeie
um processo milagroso no misterioso motor. Além disso, fazer um gesto como esse tem o
significado de uma exibição de fé de quem chega a ser abertamente “tolo pelo Senhor”.
17 Agradeço a Jay Geller por sua observação a respeito das m ãos como um escudo. Geller
também sugere que parte da força retó rica da imposição de m ãos pode vir de uma inversão
na qual o gesto, que normalmente é marginal e ancilar do discurso estritamente definido
como palavra falada, torna-se central no cenário ritual. Na verdade, isso pode contribuir
para o sentido do poder m ístico dado pelo gesto. Não é necessariamente o caso de a
linguagem perder o seu lugar central , todavia; e h á ao mesmo tempo uma inversão
retoricamente poderosa dentro do próprio componente linguístico, a saber, a inversão de
inteligibilidade alcançada na glossolalia.

59
T
1

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

direito divino dc ligação com Deus. A conexão com o toque real é evidente
também no complexo motivacional definido pelos termos Realeza , Senho-
ria, Autoridades Submissão. Os pentecostais católicos enfatizam constante-
mente a natureza Régia de Deus, sendo eles pró prios construtores e s úditos
em Seu Reino. A Autoridade exercida por l íderes da comunidade, bem
como a Autoridade sobre espíritos malignos reivindicada na Libertação , são
captadas diretamente dessa fonte Régia. A submissão à Autoridade e ao
desejo e Plano de Deus é um motivo altamente articulado , presente tam-
bém em frases como "submeter-se ao dom de falar em línguas” e “dar [um
problema] ao Senhor”. Assim a mensagem retórica comunicada pelo con-
sentimento de que as mios sejam postas sobre alguém é de Submissão à
Autoridade divina e também de recepção do Poder divino. No gesto de
imposição de mios, o suplicante é colocado, e coloca-se, nas mãos do Senhor.
A linha gen ética de significado tem a ver com a experiência do
toque
como intimidade. Os l íderes do movimento reconhecem a possibilidade da
intimidade fora de lugar ao recomendarem que os curadores trabalhem em
equipes e nunca a sós com um membro do sexo oposto. O toque quebra
uma barreira interpessoal culturalmente construída com base numa noção
do indivíduo como uma entidade distinta e independente, no conceito de
privacidade e na ordem de “não tocar” embutida na maioria das situações
sociais (Montagu, 1978; Shweder; Bourne, 1982). Montagu (1978) rese-
nha um conjunto considerável de pesquisas que indica a importância da
estimulação tátil adequada na infância para o desenvolvimento sadio e, ao
mesmo tempo, mostra a relativa falta de tal estimulação entre crianças ame-
ricanas numaperspectiva transcultural. Além disso, ele cita a literatura que
indica o valor terapê utico do toque no tratamento de problemas de pele,
asma e até de esquizofrenia. Essas considerações sugerem que, como uma
technique du corps, imposição de mãos pode ter significação mais do que
simbólica, ajudando realmente a compensar uma deficiência de desenvolvi-
mento/ A pesquisa transcultural, ao correlacionar o grau de estimulação tá til
na infância com a prevalência de terapias tácteis de várias intensidades, da
imposição de mãos superficial à massagem corporal completa (veja Finkler,
5! 1980), seria ú tiJ para esclarecer esse ponto. Ao restringir por enquanto o
nosso olhar ao pentecostalismo católico, bastará observar como as imagens
tácteis básicas são metaforicamente ampliadas na cura. Alguns curadores

60
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

carismáticos usam uma oração de imersão na qual o toque vem acompa-


nhado por uma verbalização efusiva , com a linguagem desempenhando li-
teralmcnte o papel de uma substâ ncia ritual (confira Gossen, 1976) na qual
o suplicante é imerso.18 Esta prá tica está provavelmente relacionada à prá ti-
ca mais antiga de ser “ lavado no Sangue do Cordeiro” (o sangue redentor
derramado por Jesus na cruz), alcançada metaforicamente como, usando o
termo de Austin,jum “ato performativo” verbal} Também está relacionada
com esse complexo de significado a noção básica de que no “ Batismo no
Espírito Santo” uma pessoa é impregnada pelo Espírito e o seu Poder.
Outra das techniques du corps pentecostais católicas é uma sensação
física que pode ser um formigamento nas mãos, mas també m pode mani-
festar-se em outro lugar do corpo, como em um aperto no peito. Essas
sensações não ocorrem em todos os casos de cura, nem entre todos os cura-
dores; tampouco são ocorrências exclusivas da cura, manifestando-se tam-
bém em conjunção com a elocu ção de profecia. Ainda assim, essas sensações
têm um lugar específico na retó rica de empoderamentojpenominadas un-
ções, elas são um sinal, não de que esteja havendo transferência de poder
entre indivíduos, mas uma afirmação de que o poder está de fato se mani-
festando e uma garantia, tanto para o curador como para o suplicante, de
que o ritual está sendo desempenhado corretamentê j É bem provável que
'
estejam, com graus de separação entre elas, relacionadas numa mesma escala
com as experiências também chamadas de unções dos irmãos carism áticos
mais exibicionistas dos pentecostais, que lidam com fogo e pegam serpen-
tes. Kane (1982) sugere que essas unções podem envolver a ativação do
mecanismo opióide endógeno (endorfina) do sistema nervoso central, com
a consequente perda de sensibilidade para a dor e para o medo. Embora os
pentecostais católicos de classe média tendam a evitar o que consideram
histriónico na prática ritual, pode-se presumir que os mesmos mecanismos

18
Uma curiosa digressão histórica é a forte crença de um dos iniciadores da imersão literal
(hidroterapia) , no começo do século XVIII , na sua eficácia simultânea como tratamento
médico e espiritual: “ Eu tornei a Imersão praticamente um Remédio Universal para nossos
Corpos enfermos, bem como um miraculoso Purificador e Limpador da Alma por sua
virtude Sobrenatural . . . As Instituições Divinas têm Virtudes tão amplas e difusas para
remediar as Desordens tanto do Corpo como da Mente” (Floyer apud Gabbay, 1982, p. 38).

61
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

fisiol ógicos estejam disponíveis quando eles desempenham a retórica dc


empoderamenro.19
jpepois dc techniques du corps, o segundo aspecto importante do em-
poderamento é o significado atribu ído à “espontaneidade” . No decorrer da
oração para a cura podem ocorrer memórias de eventos passados e imagé ti-
co visual , tanto por evoca ção intencional como por emergência espontânea
do pré-consciente. A retórica de empoderamento estabelece esses processos
endógenos como manifestações de poder milagroso de duas maneiras prin-
cipais. Primeiro, a espontaneidade desempenha um importante papel en-
quanto motivo no sistema do discurso pentecostal católico como um todo.
Acredita-se que a espontaneidade é um efeito qualitativo da experiência do
“Batismo no Espírito Santo”. Em tese, ela caracteriza a dinâmica
dos encon-
tros de ora ção , a interação entre os indivíduos (como , por exemplo , o ato

19 Sem rela ção direta com a Cura de Mem ó rias ou a Libertação, mas um exemplo importan
te
do elo entre a experi ência do sagrado e a do bem-estar í
f sico/emocional, a technique du corps
è conhedda como Sacrificar no Espírito” ou “ Repousar no Esp írito”. Uma pessoa
sacrificada
no Espírito está num estado de dissociação motora, definida pela perda de controle das
atividades musculares voluntárias por um período de dez minutos a meia hora , seguido de
uma sensa çã o de relaxamento e rejuvenescimento. Na libera ção do poder do Esp írito
Santo acionado pela imposição de mãos o tão citado mecanismo de sugest ão (Calestro,
1972) é sem d ú vida convocado a entrar em cena para ativar o processo end ógeno de
dissociação. Pelas descri ções de informantes desse maravilhoso estado de êxtase, parece que
o seu correlato fisiológico pode ser a liberação de endorfina no sistema nervoso central
(confira Prince [1982] para a an álise do papel das endorfinas nas religiões extá ticas). Ainda
assim , nem o mecanismo psicológico de sugestão nem o mecanismo fisiológico de endorfinas
são suficientes para uma interpretação de como o Sacrificar no Espírito contribui para a

cura isto é , por que as pessoas são suscetíveis a essa experiê ncia e que benefício elas retiram
dela. Na verdade, a experiê ncia é entendida como uma infusão gratuita de poder divino
destinada a aumentar o bem-estar geral. A extensão do controle retó rico sobre o processo
fisiológico endógeno está evidente na alegação dos suplicantes de que, apesar da dissociação,
eles nunca perdem a consciê ncia. As razões, consistentes com as noções pentecostais católicas
de pessoalidade e espiritualidade, são que a experi ê ncia é para ser apreciada e gozada , e que
Deus jamais privaria de suas faculdades aqueles que Ele quer como Servos. Um Sacrif ício
no Espírito em que a pessoa perdesse a consciê ncia seria interpretado como de inspiração
demon íaca. A experi ê ncia som á tica total é uma simboliza çã o fisiológica da uni ão m ística ,
na qual o suplicante é litcralmente engolido pelo poder divino.

62
A Retórica da Transforma çã o no Ritual de Cura

dc abra çar, ou “santo abraço” como saudação) e a vida espiritual interior de


uma pessoa quando ela está “certa com o Senhor”7 Para o suplicante em
^
cura, a intuição espontâ nea, imagem visual, memó ria ou pron ú ncia do nome
de um demónio é motivada ou orientada como uma manifesta ção de po-
der divino; não é uma conquista humana, mas um dom espontâ neo de
Deus para um de Seus fiéis.
Com relação à força de persuasão, uma retórica cultural que traduz
assim os processos end ógenos como experiência do sagrado pode ser produ-
tivamente contrastada com uma que não o faz. Na terapia Naikan japonesa
descrita por Murase (1982), muitas vezes os clientes experimentam o surgi-
mento inesperado de mem ó rias esquecidas; mas n ão h á nenhuma indicação
de que a espontaneidade desempenhe por si só qualquer papel na validação
da experiência, ou na obtenção dos resultados desejados. Na verdade, Nai-
kan é antes de tudo uma psicoterapia secular, cuja retórica invoca direta-
mente valores culturais tradicionais, em vez de uma psicoterapia ritual que
opera direcionando a atenção dos suplicantes para sua ação e experiência de
forma a constituir um mundo essencialmente sagrado.
Segundo, a ativação espontânea de processos end ógenos ganha forma
retórica concreta quando seus resultados são definidos como frutos dos
distintos “dons espirituais” mencionados. Uma Palavra de Conhecimento é
um fato sobre a vida do suplicante desconhecido anteriormente pelo cura-
dor; por exemplo, as visões experienciadas pelo curador no Exemplo Um
são Palavras de Conhecimento sobre as causas de sua aflição. A “Profecia”
(discutida acima) pode ser entoada como uma mensagem direta de Deus ao
suplicante expressando encorajamento, admoestação ou exortação. Dois
outros importantes dons espirituais são vistos como intensificação divina
de qualidades humanas comuns. Uma Palavra de Sabedoria é uma fala com
conselhos ao suplicante experienciada espontaneamente como instru ção do

20
Um elemento da retórica facilmente observado, mas n ão tão facilmente explicado, é a sua
extraordiná ria imunidade à contradi ção. No presente caso a Espontaneidade continua
sendo um motivo poderoso apesar dos fatos de os encontros de oração terem” ficado sujeitos
se tornado
h conformidade com normas cada vez mais autoritá rias, e o santo abraço ter

uma saudação ritual .

63
Cortro / SIGNIFICADO / CURA

alto c considerada pelo curador como além daquilo onde ele poderia chegar
através de seus próprios processos mentais. O Discernimento é concebido
tanto como um tipo de sexto sentido espiritual para intuir a presen ça con-
creta do mal quanto como um tipo de bom senso espiritualmente intensi-
ficado para dirigir os trabalhos c chegar à raiz do problema do suplicante.
jTÊnglobando esses dons está o dom da “Cura” per se, que é visto como uma
intensificação divina do poder comum da oraçab|
O impacto retórico imediato no contexto de uma sessão de cura varia
entre esses dons. Uma determinada visão irresist ível ou uma profecia
fará
provavelmente um grande efeito na sessão, ao passo que o curador pode
nem se dar conta de que o conselho dado por ele foi fruto de uma
Palavra
de Sabedoria até que os eventos posteriores provem ter sido esse o
caso. A
vantagem principal dessa bateria de técnicas espirituais tomadas em
conjun-
to, todavia, é que ela d á ao curador acesso ao divino reservató rio
de Conhe-
cimento, Sabedoria, Discernimento - resumindo, de onisciência
suplicante. Dessa forma, o exercício dos dons espirituais tem o — sobre o
mesmo
impacto retó rico da “ jornada” do xamã: ele permite ao curador partici
par
misticamente da vida interior do suplicante e permite ao suplicante
partici-
par dos resultados de processos endógenos experimentados pelo
curador.

^ Essa participação m útua n ão é fruto de uma interpenetração de mentes


o componente fenomenológico da co-participação no projeto social
rar um discurso que é convincente, uma retó rica que cria a experiê ncia
creta do poder divinç j

de ge-
con-
Restam ainda dois elementos de empoderamento que podem ser tra
-
tados rapidamente. O primeiro é o uso da glossolalia (falar em línguas) em
i conjunção com a oração de cura. Como a imposição de mãos, a glossolalia
é um importante símbolo multivocal.jEla é, em primeiro lugar, um dom
espiritual e, portanto, uma manifestação direta de poder místico como uma
'
linguagem de inspiração divina que capacita o orador a louvar a Deus com
- um poder inexistente numa língua que é meramente uma criativa compe-
tência human ãfjEm segundo lugar, no n ível do pró prio discurso, a sua força
retórica provém exatamente da sua “falta de sentido”: ela quebra os cânones
de inteligibilidade naturalizados no discurso cotidiano, criando assim a pos-
sibilidade para novos tipos de significado (Csordas, 1997| J
) Em terceiro
lugar, à medida que se concorda que o critério essencial da doença mental

64
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura

extrema é a falta de inteligibilidade (confira Inglcby, 1982) , com a glossola -


lia carismá tica a cura desafia as forças do caos no seu pró prio dom ínio onto-
l ó gico, afirmando que por trás de sua elocu ção aparentemente sem
significado reside uma ordem moral c cosmol ógica inabal ável e divinamen-
te motivada/
Um ú ltimo elemento da força de persuasão na retó rica de empodera-
mento é a qualidade extremamente vívida ou eid é tica de algumas das ima-
gens visuais cxperienciadas por suplicantes e curadores. Essa ocorrê ncia do
imagé tico cid é tico intensifica a percepçã o do poder espiritual, como ficou
evidente na declaração do suplicante no Exemplo Três de que a “ imagina-
ção” não era “ imaginada” , mas real. Poré m, o esclarecimento desse aspecto
do empoderamento tem de aguardar mais pesquisas do imagético eidético
entre pentecostais católicos, tanto em relação às visões na cura quanto às
visões na profecia.

Retórica de transformação

£0 movimento retórico de transformação está completo quando o su-


plicante é persuadido a mudar padrões básicos cognitivos, afetivos e com-
portamentais. Em termos da discussão de Kapferer (1979c) a isso relacionada,
sobre o exorcismo cingalês, esse movimento equivale a uma reconstru ção
do sujeitoTyA Cura de Memó rias e a Libertação têm modos complemen-
tares de redirecionar a atenção do suplicante para a sua ação e experiência a
fim de chegar à construção de um sujeito que seja saudável, integral e santo.

21
Kapferer ( 1979c) constrói um relato igualmente convincente de transformação na cura,
começando na direção oposta da que foi tomada neste capí tulo.jEmbora nosso foco esteja
nos meios de transformação retóricos, e a análise mostre como a atenção é redirecionada e
um novo mundo e um novo eu são criados, o foco de Kapferer está no sujeito da
transformação , e sua análise meadiana mostra como o self em enfermidade e cura entra
numa variedade de relacionamentos com o Outro e o Outro generalizado. As diferenças i, // )"

\[
r
básicas são sua ênfase maior na interação frente à nossa ênfase maior nos processos endógenos
e a recriação do mundo fenomenológico (predisposi ção e empoderamento) , bem como do /
self ( transformação) . A última diferença pode ser menos uma questão de metodologia do
que de cenário de pesquisa: movimento social transformativo para nós, prática social cotidiana
para Kapferer
^
65
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

\Õ elemento retórico mais poderoso na visualização da Cura de Me-


mó rias ó a figura de Jesus. A imagem de Jesus ó levada a percorrer toda a
vida pregressa do suplicante a fim de demonstrar concretamente que Ele
realmcntc sempre cstei>c nli, embora jamais fosse percebido na antiga con-
cepção de si. Nesse processo, o sentido da vida inteira do indiv íduo é trans-
formado pela inserção concreta da presença de Jesus. Ao mesmo tempo, no
interior de várias sessões, toda a vida da pessoa é revista (em contraste com

^
o longo tratamento da psican á lise A configuração temporal de uma vida é
reduzida de tal forma que pode ser experienciada como um todo no presen
te. Essa combinação concreta de presença divina e de construção de uma
-
vida nova (ou passado novo) no presente é a chave retó rica para a transfor
ma ção pessoal na Cura de Memó rias.22 A cura não é efetuada por m ãos
-
humanas, mas pelo próprio Jesus, em pessoa. Em um meio religioso onde
o abraço, ou “santo abraço”, é uma saudação convencional e a imposição de
m ãos é um gesto ritual comum, é significativo que a figura de Jesus nessas
visualizações seja percebida muitas vezes curando com um toque ou um
abraço. Há poucas imagens tão simbolicamente carregadas quanto a de ser
tocado pela mão de Deus. Ao mesmo tempo, o papel do suplicante não é
inteiramente passivo. Ao enfatizar a necessidade do perdão para os respon-
sáveis por danos emocionais passados, a retórica de transformação exige a
participação ativa do suplicante e o seu compromisso declarado de “mudar
as ideias”.
O processo endógeno básico ativado na Libertação é a externalizaçlo.
Como foi observado acima, os nomes de demó nios de cuja influê ncia as
pessoas são liberadas indicam que eles são entidades espirituais que contro-
lam pecados, vícios, desvios de cará ter, fraquezas pessoais ou negatividades
particulares. Embora o curador às vezes perceba a presença de espíritos ma-
lignos e faça a interpretação da ação deles em grupos, geralmente os espí ri-
1 tos são identificados pelo próprio suplicante. Na verdade, é o dem ó nio que
supostamente se identifica pela boca do suplicante, em um tipo de profeda

22 A importância de presença e presente na prá tica pentecostal católica foi originalmentf


í apontada numa dissertação por Mawn ( 1975) , e num contexto muito diferente daquclf
em que eles são apresentados neste trabalho.

66
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

invertida ( tome como compara çã o o relato b íblico do encontro de Jesus


com o dem ó nio que declara “eu sou Legi ã o”). Dessa forma, como no ato de
perd ão na Cura de Mem ó rias, o suplicante c chamado a participar ativa -
mente do processo terapê utico. Os pcntecostais católicos reconhecem o
poder c a necessidade de pronunciar esses nomes cm voz alta. Podemos
identificar pelo menos três n íveis em que a identificação de dem ónios pelo
suplicante tem um impacto retó rico significativo. No n ível psicol ógico, é
um reconhecimento de que a pessoa está tendo esses problemas particulares
e uma abertura para a interpretação e o aconselhamento subsequentes do
curador. No n ível espiritual ou ritual, a nomea ção de fato “traz o dem ó nio
para o campo aberto”, de onde ele pode ser expulso pela fórmula ritual
relativamente simples acima mencionada. Como um demónio precisa ser
comandado pelo nome para que saia em nome de Jesus, um dos maiores
obstá culos ao êxito da Libertação ritual é a recusa de dem ó nios recalcitran-
tes de se identificarem. Finalmente, no n ível cultural , ao reconhecer especi-
ficamente o papel desempenhado no seu caso por demó nios como entidades
espirituais concretas, o suplicante traz sua experiência para participar em um
campo de símbolos, motivos e significados que constituem o meio religio-
so e a razão de ser do movimento pentecostal católico.
A transformação que ocorre quando os espíritos do mal são expulsos
também funciona em vá rios níveis. Na verdade, ela é muito mais impor-
tante, pois em alguns casos o curador, e n ão o suplicante, identifica o dem ó-
nio. No n ível cultural, um demónio pode ser visto como uma metáfora do
f
self. Ã lógica cultural da transformação metafó rica foi formulada por Fer-
nandez (1974) na sua discussão da cura ritual no culto bwitjj Traduzido ao
nível do discurso cultural , o self é representado como um “pronome incoa-
tivo” , um simples eu ou mim desprovido de qualidades pró prias. A metáfo-
ra , nesse caso um espí rito maligno, é baseada no pronome incoativo,
dando-lhe um valor ou significação cultural especial. [A metáfora então é
deslocada através de um continuum qualitativo ( por exemplo, mau-bom,
fraco-forte, treva-luz) que tem um significado especial dentro do meio cul-
tural em que ocorre a cura}f Transportado ao longo do vetor desse conn -
nuum, o pronome incoativo adquire direção e forma. Finalmente, o self
como pronome adquire qualidades definidas pelas metáforas características
do fim do continuum onde ele veio parar. O êxito desse processo no nível

J
CORPQ / SlGNinCADO / CURA

culturaffconvcncc o indivíduo a aceitar a novadcfimção dc si própno como


mcio desorientar suas ações na vida cotidianã/
.r ,
Sem uma compreensão do complexo de símbolos e significados que
constitui o meio religioso pentecostal católico, pode parecer que o movi -
mento para expulsar espíritos malignos é simplesmente um movimento
fora e distante do sujeito, em vez de um movimento ao longo de um conti
nuum qualitativo. Adcmonologia pentecostal católica é muito mais com
-
pletamenrc integrada com todo o sistema simbólico, todavia, do que essa
-
interpretação poderia sugerir.Justaposta à terminologia pentecostal católica
acima descrita, a demonologia parece ser quase a sua imagem especular, um
tipo de vocabulário de motivos negativo. Assim, de acordo com a interpre
tação proposta por Fernandez (1974), um demónio (Ódio, por
-
exemplo e )
um motivo {Amor) podem ser vistos como definidores dos extremos
opostos
de um continuum qualitativo dentro do qual a operação retórica é efetuada.
A ocorrência de demónios em grupos estende a transformação a vários
outros níveis. Primeiro, no nível de mensagem comunicada,
ela traz à baila
a clássica ferramenta retórica da redundância. A identificação de demó
nios
com nomes semelhantes ou relacionados repete a mesma mensagem geral
.
. . . . . . . .
de diversas maneiras, insistindo que o mal esta, presente. Isso é evidente no
agrupamento de Amargura/Ressentimento /Raiva visto no Exemplo Um.
I Segundo, a presen ça de vários espíritos subordinados a um demó nio mestre
t introduz a noção de complexidade afetiva e cognitiva, dá mais substância
í simbólica para o curador trabalhar nas sessões e aumenta o potencial para o
drama quando os espíritos são eliminados um por um até o último, o
\ teimoso demónio mestre. Terceiro, como foi observado no comentário do
Exemplo Dois, os nomes de demónios podem incluir tanto vícios e peca-
dos tradicionais (Lascívia, Gula, por exemplo) como atributos comporta-
mentais ou estados afetivos relevantes num contexto contemporâneo
(Inseguran ça, Manipulação). Dessa forma, alé m de estarem ligadas ao voca-
bulário de motivos do movimento, as metáforas do self estão ligadas tanto
ao sistema de crença católico tradicional como a um vocabulário apropria-
do ao contexto de aconselhamento da psicoterapia ritual.
Está claro que os nomes demon íacos referem-se explicitamente a um
rol de estados afetivos e atributos comportamentais, como mostra um cu-
rador ao comentar que há tantos espíritos malignos quantos “você . pode

68

\
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

imaginar psicologicamente” (isto é, ao contrá rio de religiosamente ou espi-


ritualmcnte). Sendo assim , n ã o existe apenas um dem ó nio do Medo, mas
també m dem ó nios de Medo do Escuro, Medo de Cachorro, Medo de
Altura c dem ó nios para representar todas as fobias. O repertório é aumenta-
do pela introdu ção de elementos estereotipados da cultura popular. Por
exemplo, um curador lembrou-se de ter expelido um “esp írito ancestral” de
um suplicante de ascend ê ncia chinesa. Outros, trabalhando em locais de
diversidade é tnica considerável , notaram a preval ê ncia de espíritos malignos
tais como Superstição entre irlandeses, Legalismo entre alem ães e Naciona-
lismo entre americanos. O n ú mero absoluto de espíritos malignos parece
corresponder a uma lista de possíveis efeitos adversos. Esses efeitos adversos
são a preocupação básica dos curadores, mesmo nos casos aparentemente
raros em que o verdadeiro nome do demónio nunca é discernido. Assim, a
demonologia carismá tica pode ser entendida como uma rede semântica de
doenças semelhante à que foi descrita por Good (1977), onde os dem ó nios
são “ imagens que condensam campos de experiê ncia, especialmente de ex-
periências estressantes” (1977, p. 39). Além disso, o surgimento de demó-
nios em grupos pode ser entendido como um reconhecimento em prática
terapê utica das ligações sem ânticas próximas dentro da rede. Em todos os
casos, no entanto, através da retórica da cura, qualidades negativas são leva-
das a participar na realidade sagrada, quando é conferido a elas o status de

entidades espirituais seres cuja intenção é explicitamente má, mas que
estão sujeitos ao poder divino e podem ser mandados embora, e cujos no-
mes correspondem em sentido negativo ao vocabulário fundamental de
motivos que sustenta o discurso pentecostal católico.
Em suma, na Libertação, metáforas negativas do re extraídas de vári-
^
os campos são transformadas em motivos positivos, alterando fundamen-
talmente a maneira de os suplicantes lidarem com os seus próprios padrões
de cognição, afeto e comportamento. Na Cura de Memó rias, o passado do
suplicante é transformado pelo redirecionamento da sua atenção para várias
ações e experiências para que ele perceba o papel de Jesus conduzindo-o ao
presente, removendo com isso a negatividade residual de experiências emo-
cionalmente prejudiciais. Ao cumprirem essas tarefas, os dois rituais se com-
plementam atrelando os processos de cura end ógenos. Na Cura de
Memórias, com sua ativação de memória/ intuição e visão/visualização, toda

69
CoRt'o / SlGNinCADO / ClJIlA

.
a ação ocorre dentro do indivíduo Na Libertação, que ativa a cxtcrnaliza-
ção, a ação ocorre entre o indivíduo c as forças que tem origem fora elo
sujeito. Al ém do mais, na Cura de Mem ó rias a meta ó perdoar c rcconciliar-
sc com o passado, reinterpretando-o como parte do plano de Deus que
conduziu a pessoa ao seu atual relacionamento com Jesus no bojo do movi-
mento carism ático. Na Libertação, por outro lado , a atitude ó de envolvi
mento ativo c peremptó rio com a expulsão de influê ncias malignas. Nesse
-
sentido, pode-se argumentar que, tomados em conjunto, esses dois rituais
oferecem à cura uma abordagem equilibrada, que lida tanto com fatores
intrapsíquicos internos como com fatores externos do ambiente social que
contribuem para o sofrimento emocional.
jOs rituais, na medida em que tratam de problemas que podem ser
identificados como fobias com origem cm eventos traumáticos do passado,
ou como padrões obsessivos fora do controle de um suplicante, podem
ser
entendidos claramcntc como formas de etnopsiquiatria. Como observa
Kapfcrer (1979a, 1979c) no caso dos ritos de exorcismo cingaleses, no en
tanto, eles são estruturalmente reminiscências de certos ritos
-
de passagemf
A semelhan ça pode ser mais do que estrutural no caso pentecostal cató ,
lico
no qual alguns participantes sustentam que todos deveriam se
submeter à
experiência de cura como ajuda ao “crescimento espiritual” , aprofundando
assim o seu envolvimento e compromisso com o mundo fenomenoló
gico
criado pelo movimento. O vocabulário de motivos fornece o termo que
orienta a mudança de status impl ícita na noção de um rito de passagem, que
é Maturidade espiritual. Estamos, pois, mais uma vez, diante de relatos
simultâ neos das mesmas prá ticas dos pontos de vista da Sa ú de e do Santo.
Mais tarde retornaremos às implicações metodológicas dessa dualidade
analítica.
í
:
' Elementos de persuas ã o carismá tica e cura

Na seção precedente, o material que discuti foi totalmente retrospecti-


ve e, cm alguns casos, consistiu de relatos de curadores, na terceira pessoa,
sobre indivíduos para os quais eles tinham orado. A discussão a seguir ba-
seia-se em um estudo subsequente da cura carismática que fiz baseado no

70
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

princfpiojclc que um rclato cxpcricncialmcntc válido dc processo tcrapctiti -


co deveria acompanhar o paciente ao longo da experi ência de cura propria-
mente dita ( veja també m Csordas , 1994a ) .?i/ Eu acompanhei os dois
indiv íduos que discuto aqui do começo até o fim do envolvimento deles
com um dos ministros dc cura participante . Eles representam exatamente o
tipo dc processo incremental c inconclusivo que sugeri acima como caracte-
rístico dos limites mais baixos dc eficácia terapê utica cm cura ritual , e foi
por isso que os escolhi como foco desta aná lise . Antes dc iniciar a discussão,
todavia , devo apresentar o curador com quem acompanhei esses casos.
Padre Felix, um experiente ministro da cura carismática, é um sacerdo-
te católico de 60 anos , ordenado como membro de uma ordem religiosa

23
Cada paciente recrutado concordou com a minha presença nas sessões; considerando
como muitas questões eram íntimas e dolorosas, esse foi um privil égio pelo qual eu continuo
profundamente agradecido. Para cada participante, cu gravei até cinco sessões de cura cm
audiocassetcs. Durante as entrevistas subsequentes, eu pedi a cada participante para
identificar o evento mais importante ou significativo dentro da sessão. Eu toquei a gravação
de cada evento e solicitei coment á rios de cada pessoa, usando uma forma adaptada do
Processo de Lembrança Interpessoal ( IPR) , mé todo desenvolvido por pesquisadores dc
processo dc psicotcrapia ( Elliott , 1984 , 1986). Uma entrevista de fundo adicional cobriu
a história de vida e histó ria médico-psiquiá trica básicas, a natureza e o n ível dc envolvimento
na Renovação Carismá tica, c as atitudes e expectativas de cura religiosa. A fim dc confirmar
a presença ou a ausê ncia dc desordens psiquiá tricas, essa entrevista inclu ía uma forma
adaptada e reduzida da Agenda de Desordens Afetivas e Esquizofrenia (SADS). Eu contatci
os participantes antes de cada primeira sessão observada para poder explicar o estudo,
obtendo informa ção consentida c iniciando a interação, de forma que minha presença n ão
fosse percebida como perturbadora. Eu ofereci aos ministros da cura a opção de gravarem
a sessão sem a presen ça do pesquisador, mas todos eles invariavelmente declinaram. Embora
vá rios participantes estivessem um pouco nervosos nas primeiras sessões, nenhum deles
decidiu terminar o envolvimento no projeto. Salvo em raras ocasiões, uma das quais é
relatada aqui, eu não fui atra ído de nenhuma forma para dentro dos procedimentos. A
importâ ncia desse mé todo é que ele permite a observa ção do comportamento n ão-verbal
nas sessões de cura e melhora a rela ção informante- pesquisador. O pesquisador com acesso
à intimidade da sessão de cura n ão é, no entanto, uma mera mosca na parede. De fato,
inevitavelmente alguns t ó picos discutidos cm entrevistas de pesquisa acabam retornando,
reciclados, ao processo de cura. O ato de ouvir a fita gravada das sessões desperta pensamentos
e emoções que, dc outra forma , poderiam n ão ser examinados. Essas questões de reflexividade
são amplas demais para serem discutidas adequadamente aqui. Essa pesquisa teve o apoio
do Instituto Nacional de Sa úde Mental ( NIMH ).

71

U
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

em 1952. Ele tem um doutorado cm Ministé rio Pastoral com ê nfase cm


psicologia e aconselhamento e foi supervisor assistente de um programa de
Educa ção Pastoral Cl ínica (EPC) para sacerdotes. Em 1975, quando dirigia
o serviço de atendimento pastoral num centro médico católico, ele recebeu
do diretor executivo a incumbência de coordenar um ministé rio de cura
carism á tica dentro do hospital. Embora ele soubesse da existê ncia de grupos
de oração carism á ticos, nunca se interessara por eles antes; assim o seu en-
volvimento no pentecostalismo católico começou pela aceitação de um papel
ativo na cura carism á tica. Desde então ele vem exercendo atividades no
ministério da cura, dirigindo sessões p ú blicas e conduzindo oficinas e ses-
sões de cura particulares.
Os pentecostais católicos acreditam que o poder de curar provém de
“dons espirituais” (“carisma” em termos teológicos) outorgados por Deus.
Como padre Felix continuava a trabalhar como conselheiro e como minis-
tro de cura, ele pediu a Deus “o dom de discernimento para poder saber o
que pedir nas orações. Porque está vindo muita gente. Tem muita coisa que
é inconsciente, eles n ão conseguem fazer o contato”. O Discernimento -
intuição divinamente elevada - é entendido como uma habilidade divina-
mente inspirada de compreender as pessoas, os problemas e as situações.
Padre Felix relata dois incidentes nos quais ele sentiu a confirmação da dádi-
va desse carisma. No primeiro, ao orar com um vigário de paróquia, ele
falou de problemas tão particularmente relevantes para o vigário que este
pensou que os seus paroquianos já tinham conversado sobre eles com padre
Felix. No segundo, ele discerniu que deveria pedir a alguma outra pessoa do
grupo de oração para puxar uma oração em voz alta enquanto ele orava em
silêncio com a mão nas costas de um padre. Durante a oração sua mão ficou
extremamente quente. Esse calor também foi percebido pelo suplicante, que
mencionou mais tarde que tivera um câncer nas costas no lugar onde padre
Felix tinha “discernido” que deveria pô r sua mão. Para padre Felix, a imposi-
ção fortuita de sua mão foi uma manifestação de discernimento, ao passo que
o calor foi um sinal de que a cura estava acontecendo. Daquele dia em diante,
padre Felix passou a fazer uso intenso desse dom na sua prática de cura.
Padre Felix dirige encontros de cura particulares numa das salas de
aconselhamento no mosteiro onde reside. A sessão começa com um perío -
do de conversa leve ou aconselhamento, durante o qual o padre costuma

72
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura

fazer perguntas sobre as mudan ças que possam ter ocorrido desde a sessão
anterior. Ent ã o, ele coloca uma cadeira de encosto reto no centro da peque -
na sala, pede ao suplicante que se sente ali e unge a testa dele com o santo
ó leo. O padre fica de pé atrás dessa pessoa, com uma m ão na cabeça e outra
no ombro dela, orando em sil ê ncio durante uns cinco minutos. Muitas
vezes, nesse meio tempo, ele recebe “discernimento” sobre o suplicante e o
seu problema. Depois disso, ele questiona a pessoa sobre qualquer experiên-
cia que ela pode ter tido durante a ora ção. Passado esse breve segundo perí-
odo de conversação e aconselhamento, a sessão termina, raramente tendo
durado mais do que meia hora.
Padre Felix acredita firmemente na necessidade de “chegar à origem”
de um problema a fim de curá-lo. Na experiência dele, duas importantes
origens de problemas das pessoas são os espíritos malignos e as gerações
passadas. Para eliminar a influência de espíritos malignos ele usa a oração de
Libertação, e para eliminar a de gerações passadas ele usa a missa pela cura da
ancestralidade. Cada uma delas será descrita rapidamente.
No sistema pentecostal católico de cura, é normal dar nomes de emo-
ções e padrões comportamentais aos espíritos malignos. Ansiedade, De-
pressão, Lascívia e Rebelião são nomes comuns de espíritos. Padre Felix
concorda com a maioria dos outros curadores pentecostais católicos entre-
vistados, para os quais os espíritos atacam os indivíduos nos seus pontos
mais vulneráveis, sejam esses pontos a propensão para cometer algum tipo
especial de pecado ou os efeitos prolongados de uma experiência traumá ti-
ca. Ningué m pode ser completamente possuído por Satanás, a menos que
faça um pacto ou tome uma decisão consciente. Todas as outras aflições
espirituais vêm na forma de opressão ou de assédio num âmbito específico
da experiê ncia de vida. Todavia, padre Felix também admite a existência de
fontes humanas de emoções negativas sem a influência demoníaca, e é uma
questão de discernimento saber se a pessoa acometida de depressão ou lascí-
via está de fato sendo atacada pelo espírito de Depressão ou Lascívia. Na sua
experiência , um dos espíritos mais comuns é o Medo de Ser Descoberto,
que causa pensamentos do tipo “se as pessoas soubessem as coisas que fiz ou
que penso, eu não teria nenhum amigo”. Outro espírito muito comum é a
Desvalorização, semelhante ao Ódio de Si, que causa “ baixa auto-estima e
auto-imagem”.

73
1

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

A forma dc Libertação típica dc padre Felix d orar em silê ncio, assim :


“ Pelo poder da Palavra dc Deus, Jesus Cristo, e pelo poder da Espada do
Espírito cu corto para sempre todas as influencias físicas, psíquicas , emoci-
onais ou espirituais negativas que estão incomodando a minha irm ã [ou o
meu irm ã o] ”. Depois dessa oração geral ele dirige-se especificamente a qual -
quer espírito maligno que possa estar presente: “Eu lhes ordeno, forças uni -
das da escurid ã o, em nome dc Jesus Cristo, separem-se uma da outra, para
ficarem impotentes c sem comunicação. Vocês não têm mais nenhum po-
der sobre esta pessoa. Ela pertence a Jesus Cristo”. Então, silenciosamente,
ele d á ordens individuais a cada dem ó nio pelo nome, na medida em que a
presen ça deles lhe é revelada através do discernimento. Ele n ão conta neces-
sariamente aos suplicantes que h á espíritos malignos envolvidos, mas, em
vez disso, espera por um sinal na fala ou no comportamento deles que
confirme o seu discernimento. Ainda assim, ao guardar consigo esse conhe
cimento de inspiração divina, ele às vezes diz ao suplicante que discerniu
-
coisas que podem machucar se forem reveladas. Dessa forma ele estabelece
um papel de sá bio protetor e de portador investido de poder que está em
contato direto com o sagrado.
Além das sessões de cura particulares, padre Felix frequentemente reza
uma missa de cura de ancestralidade na casa do suplicante. Antes, ele pede
que a pessoa prepare uma árvore genealógica retrocedendo o maior n ú mero
possível de gera ções, e anote quaisquer acontecimentos importantes ou pro-
blemas de sa úde, tais como suicídio, alcoolismo, doença mental ou aborto.
Entã o ele “ora sobre” a genealogia pedindo discernimento a respeito dos
indivíduos representados. O princípio encenado nesse ritual é que doen ças
ou efeitos adversos de experiências traumá ticas podem passar “por consan-
gúinidade” a sucessivas gerações. Uma parte da cura pode incluir a oração
pelos antepassados que morreram sem terem sido curados. Sob certos as-
pectos, essa prá tica se assemelha à oração pelas almas dos mortos, mas vai
um pouco al ém disso, ao tentar de fato curar os mortos. Quando isso
acontece, a corrente de influ ências negativas é “cortada” e a pessoa fica
livre da aflição.
Essa é uma descriçã o breve do ministé rio da cura carism á tica praticada
por uma só pessoa. Embora ela se inclua perfeitamente no â mbito da prá ti-
ca de cura pentecostal católica como delimitada pela pesquisa acima descri-

74
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura

fazem necessá rias para o encadeamento dessas idei-


ta , vá rias observações se
as. /fcrimciroji embora seja muito comum sacerdotes e membros de ordens
religiosas praticarem a cura ritual , muitos ministros da cura carism á tica são
leigos; Scgundo cmbora alguns ministros da cura tenham forma ção profis-
^
sional em aconselhamento ou psicologia , a maioria deles n ão recebeu ne-
nhum treinamento. Com relaçã o ao procedimento, padre Felix utiliza menos
o imagé tico orientado do que muitos ministros da cura carism á tica, embo-
ra ele encoraje o imagé tico mental espontâ neo. Por outro lado, ele utiliza
muito a libertação, que muitos ministros de cura evitam por causa do su-
posto perigo de lidar com espíritos malignos poderosos. Finalmente, a cele-
bração da missa pela cura de ancestralidade em casas de suplicantes parece
ser uma prá tica peculiar de padre Felix, e que lhe d á oportunidade de obser-
var a dinâmica familiar de uma forma apenas relatada entre curadores de
pequenas sociedades tradicionais.

Caso Um

Margo é uma mulher de 27 anos, a terceira mais nova de nove filhos,


que vive com os pais, três irmãs e a filha de três anos de uma das irmãs. Ela
está atualmente em tratamento com um psiquiatra ( psicofarmacologista) e
em terapia com um psicólogo, mas tanto a medicação como a terapia falha-
ram para ela. A porção de diagnóstico da sua entrevista confirmou transtorno
do pânico e alta depressão como seus principais problemas.24 Ela e sua mãe
relataram que uma de suas irmãs, que vive em casa, sofre de esquizofrenia.
A enfermidade de Margo começou em 1985, dois anos antes de ela
recorrer a um ministro de cura. Ela havia deixado a escola de enfermagem
depois de não ir tão bem quanto esperava e voltara a trabalhar em tempo
integral como assistente administrativa de hospital. Ela se sentia sobrecarre-
gada e preocupada com esse desgastante serviço. Ao mesmo tempo ela sen-
tia que estava “perdendo” a maioria de seus antigos amigos, que iam se
casando, de modo que sua vida social ficara “ins ípida”. Após seis meses ela

24 A medicação dela na época do estudo , um tranquilizante (Clonipan) e um antidepressivo


( Nardil ) , parece confirmar esse diagnóstico.

75

RI
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

menos

transferência.
ter contribu ído para o proble-
Dificuldades devida familiar parecem
ma. Ela vê o casamento de seus pais
como muito pobre, caracterizado por
seu pai como crítico, cruel e
frequentes discussões acaloradas. Ela descreve
física quando os filhos eram
autoritário, a ponto de abusar da disciplina
ã mais velha, mas sente neces-
pequenos. Ela é muito apegada à mãe e à irm
sidade de se distanciar do envolvimento emocional
excessivo e estabelecer
, um ano antes do
uma vida independente. Ela relata o desenvolvimento
aberta e ódio para com uma
início de sua enfermidade, de uma hostilidade

irmã de quem era muito próxima e que havia arruinado a pró pria vida e

voltado à casa da família após ter tido um bebê com um homem que ela
não desposou. Um fator adicional na sua aflição parece ser a morte acidental
de um irmão alguns anos antes. Dada essa constelação de padrões e eventos,
uma área maior de intensa ansiedade é a de relacionamentos com homens.
Através de psicoterapia ela veio a associar essa ansiedade com uma falta de
oportunidade para desenvolver uma confiança nos outros.
Margo é católica praticante e esteve envolvida com grupos de oração
carismática por alguns meses, vários anos antes da sua enfermidade, mas
sem uma razão clara ela deixou de frequentar. Desde o início de sua enfer-
midade, contudo, Margo participou muitas vezes de sessões públicas de
cura e recebe correspondência de dois influentes ministros carismáticos.
Nessas sessões ela freqíientemente experimenta “ Repousar no Espírito” uma
,
forma de dissociação motora em que uma pessoa, ao toque de seu ministro
de cura, cai num tranquilo, relaxante e rejuvenescedor estupor enquanto o
“Poder do Espírito Santo” a arrebata. Contudo, Margo ficou perturbada
num desses serviços quando a curadora declarou que
ela estava sendo cura-
” revelara
da. Indagada, a curadora explicou que seu “dom de discernimento
ter ficado confusa e
que o processo de cura já havia se iniciado. Margo alega
eu não me sinto nem
perplexa, pois “se a cura já começou, pessoalmente
um pouco diferente”.
, e ele a aconselhou a fre-
Margo chamou padre Felix para pedir ajuda
quentar seu serviço pú blico de cura.
Naquele evento, ela pediu orações para
para rezarem pela expul-
depressão aguda e o padre instruiu seus assistentes

76
J
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

sã o dc um “esp írito das Trcvas”. Ele sugeriu então que ela viesse vê lo para -
sessões privadas dc cura. Na sessã o inicial , ele relatou situa ções prévias de
curas bem -sucedidas, e declarou que ele sentia que ela podia ser curada rapi-
damente. Ele “corrigiu” a ideia dela de que orar daria melhor resultado se ela
esvaziasse a mente enquanto ele orasse, explicando que ela deveria esperar a
emergê ncia espontâ nea de imagens mentais e que Deus não precisava da
-
ajuda dela para que a ora ção fosse bem sucedida. Ele també m “corrigiu” a
id éia dela de que deveria interromper a psicoterapia semanal enquanto esti -
vesse se submetendo à cura ritual.
Na segunda sessão, Margo contou a padre Felix uma experiê ncia per-
turbadora que havia se repetido durante vários meses antes da irrupção de
sua enfermidade. Quando começava a cochilar, Margo “podia sentir uma
outra presen ça no meu quarto. Eu podia sentir que algu é m havia sentado na
ponta da minha cama.” Ela nunca havia mencionado isso ao seu psiquiatra
ou psicólogo, por medo de que eles a considerassem louca. Padre Felix
concordou que ela estava certa em não ter contado a eles, mas que ele mes -
mo estava bastante familiarizado com tais experiências: era um espírito
maligno. Isso confirmou o que ela suspeitava e deu-lhe segurança de que era
um fenômeno com o qual padre Felix podia lidar.25
Durante o período de oração silenciosa, talvez em resposta ao conse -
lho de padre Felix de permitir a vinda de pensamentos à sua mente, Margo
experimentou uma série de id éias “vindas de todas as direções”. Três temas
emergiram: as dificuldades que ela vivenciou no trabalho administrativo
anterior, se deveria ou não trocar de médicos (haviam dito a ela que tinham
tentado de tudo e nada parecia ajudar), e um relacionamento decepcionante
com um homem mais velho. Nessa última situação, o homem, que vivia
numa outra cidade, tinha lhe feito a corte durante algum tempo, até ela
descobrir que ele era casado. Ela gostava dele, mas estava com muita raiva, e
se sentia em conflito ao desejar estar com ele apesar da convicção de que
seria moralmente errado fazê-lo. Nenhum desses temas foi posteriormente

25
Padre Felix nunca explorou a conexão experiencial possível entre a presença assustadora e,
antes disso , a morte do irmão de Margo , pois a ocorrê ncia daquele evento nunca emergiu
nas sessões.

77
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

discutido com o curador. Padre Felix simplesmente disse íI Margo que ano-
tasse o que lhe viesse à mente durante a oração porque seria importante

.

para ela.

com o
U
° "“dedingt
ho do padre d " a ver
emoções
negativas c ordenar que elas saiam em nome de Jesus Cristo. Esse evento foi
como especialmente significativo
à^
^
C1
'
numa trevist posteriorinterpretou a recomendação no sentido
de
que o problema está “todo na maneira que você está pensando”. A
invoca
rão 'a Deus indica que Ele não quer que ela se sinta como se sente, e -
se ela
tem a força e a fé para dizer “saia” em Seu nome, as emoções negati
vas de
ansiedade e depressão devem partir
Durante a sessão seguinte, padre Felix descobriu que essa técnica
nao
tinha logrado êxito na realização do objedvo de mudar sua atitude. Houv
a seguinte conversa-chave:
e

Margo: Eu unha pensamentos como, você sabe, estou definhando


poucos. Quase como ter um tipo de câncer. Isso não me deixa Isso °
$

persegue. Nunca me deixa. Não vai embora. Eu não consigo me


disso. Eu não sei como me livrar disso. Está me deixando louca.
Lm Me
deixou maluca. Tomou conta de toda a minha vida. E eu
Padre Felix: O que eu lhe disse da última vez? Suponho que você tenha
esquecido. Sobre tomar para si a autoridade sobre essas coisas Você as
sume a autoridade em nome de Jesus Cristo, e ordena que eles caiam
<
fora. Eles têm que obedecer.
M: Eu disse isso a mim mesma, várias vezes. Como na semana passada
inteira enquanto estava na missa. Eu tive tremores e estremecimentos
muito fortes. Você sabe, o medo de outras pessoas estarem ali, essas
\ coisas. E eu fiquei repetindo aquilo para mim mesma o tempo todo.
PF: O que é que você disse?
M: Eu fiquei dizendo, você sabe, “ Em nome de Cristo, me deixe, me
deixe.” Tentando forçar a maneira de pensar numa outra direção, mais
'i positiva. E...
PF: Deixe-me indicar algo para você. Se você diz, por exemplo, “ Em
nome de Jesus”, certo? Tem um espírito maligno que se dá o nome de
“Jesus”..., mas é um falso Jesus. Você precisa se lembrar disso. Algumas

78

.!
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura

pessoas caem na armadilha - é como conjurar um espírito, c elas estão


confrontando o espí rito maligno [que] se d á o nome de “Jesus”. Então
cu sempre uso o nome “Jesus Cristo” ou “Jesus de Nazaré” , você sabe?
Aquele Jesus. Oh, sim, centenas de [pessoas hispan ófonas] chamam-se
Jesus.
Nessa interação (identificada como significativa pela própria Margo),
a instru ção de especificar o nome Jesus Cristo foi mais do que um movi-
mento do curador para disfarçar o insucesso da técnica. Pois a falha em
comandar as emoções de algu é m , na l ógica do sistema de cura, indica que
alguma coisa, além das emoções da pessoa, está em jogo. Uma força pode-
rosa deve estar se interpondo no caminho, bloqueando a passagem para a
cura. Numa entrevista seguinte, Margo demonstrou surpresa ao saber da
sutileza da técnica religiosa e da causa demon íaca do seu problema. Ela
recordou a invocação original de padre Felix do “espírito dasTrevas” duran-
te seu primeiro serviço de cura p ú blico. Ela deu a entender que sempre
tinha “pensado nesses termos [sobre seu problema]” e que a idéia de forças
malignas estarem envolvidas “calou fundo”. A respeito de como essa intera-
ção lhe ajudou, ela respondeu que foi “para me dar coragem e mais força, e
mais fé. Na fé, saber que isso não é de Deus. E como a oração pode cons-
truir sua fé. Pode construir sua força.”
Al ém de ter uma missa doméstica para cura de ancestralidade, Margo
participou de um total de três sessões privadas com padre Felix. Ao invés de
ir à sua quarta sessão, ela foi consultar seu psicofarmacologista , que decidiu,
já que nenhum outro tratamento havia funcionado, que ela deveria entrar
em terapia eletroconvulsiva (TEC). Ela disse que teria retomado as sessões
após a alta, mas isso foi impossibilitado pela partida de padre Felix em
prolongada licença.

Caso Dois

Ralph é um homem de 25 anos que terminou a escola secund á ria e


passou um curto período na faculdade. Ele vive agora com seus pais e ir-
m ão, um ano mais moço, e está sob tratamento médico e psiqui á trico para
uma sé rie de problemas. A parte diagnóstica em nossa entrevista confirmou
uma situação complexa girando em torno de um diagnóstico inicial de

79
CORTO / SIGNTRCADO / CURA

esquizoffenia paranoica desencadeada pelo uso


abusivo de drogas; transtor-
no obsessivo-compulsivo iniciado aos 14 anos. prov
mico (uma tênue forma dc depress ã
transtorno do pânico e fobia simples medo
(
o cHn c a.
;
;
. ável transtorno dist í-
smromas
,
de c . ,
agorafobia
dc altura); epilepsia relacionada
.
a uma„ provável lesão cerebral; e asma.
26

antes de Ralph tentar a cura


Em 1983’, mais ou menos quatro anos
carismá tica, ele passou por uma longa hospitalizaçã psiquiátrica após uma
o
overdose. Sua experiência como interno foi traumática e parece ter sido a
"
ocasião do início de sua queixa principal: extremo nervosismo” em situa-
ções sociais por temer que as pessoas estejam pensando negativamente sobre
ele, parricularmente que estejam pensando que ele possa ser homossexual.
27

Desde o advento desses medos ele tem sido incapaz de se manter num
emprego e acha praricamente intolerável estar
num grupo de pessoas. Outra
fonte maior de aflição é o seu irmão, que no passado também esteve sob
cuidados psiquiátricos. Ele não tolera o irmão, que ofende muito os seus
pais, então eles se revezam para morar com o avô numa cidade próxima.
Ralph parece ter um bom relacionamento com o pai, mas sente que a mãe
o critica e o fàz se sentir culpado com frequência mesmo em pequenos
eventos do dia-a-dia. Seu grande prazer é
escutar m úsica gravada e escrever

poesia num estilo que ele considera similar ao de Kerouac e Ginsberg, ape-
sar de achar extremamente dif ícil escrever criativamente sob a influê ncia de
sua medicação antipsicórica.

Segundo Ralph e seus pais, muitos médicos discordaram sobre se ele podia de fato
2C ser
diagnosticado como esquizofrénico paranóico e se ele tinha de fato uma lesão cerebral
, mas

sua medicação básica induía um anripsicótico (Mellaril


) , um anticonvulsivo (Tegretol )e
um anridepressivo (Elavil).
27 É mais do que provável que essa delusão de referê ncia com medo de homossexualidade
seja
, mas é também verdade que ele não
a base para o diagnóstico que ele relata para si mesmo
apresenta nenhum outro sintoma tí pico
de esquizofrenia . Ele menciona o termo
"grandiosidade” em referenda à sua autoconcepção como
potencialmente um grande
poeta , mas admite que um outro poeta
cumprimentou-o literalmente nesse nível . Em todo
caso, a grandiloquénda adolescente sobre a estatura
da sua poesia não pode ser considerada
’ seja baseado numa
patológica; é possível que o seu uso do termo grandiosidade

interpretação de um profissional da saúde mental


.

80

:
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

A bagagem religiosa de Ralph inclui a exposição à Renovaçã o Carism á ti -


ca quando ele tinha 16 anos e frequentou um grupo de oração por cerca de
um m ês com sua m ãe. Durante esse período ele teve a experiê ncia do “ Batis-
mo no Esp írito Santo” c familiarizou-se com o falar em l ínguas c outras
prá ticas carism á ticas. Ele atualmente alega n ão acreditar em Deus, mas, mes-
mo assim , admite que temas religiosos emergem consistentemente na sua
poesia. O encontro com padre Felix foi iniciado pela m ãe de Ralph que pen-
sou que, enquanto psicólogo, ele podia aconselhar melhor a fam ília sobre a
recomendação psiquiá trica de terapia eletroconvulsiva (TEC) para Ralph. Pa-
dre Felix respondeu que se Ralph o visse regularmente ele não precisaria de
TEC. Ralph entrou na situação esperando aconselhamento para seu proble-
ma principal de nervosismo social, e somente quando as sessões começaram
ele se deu conta de que elas consistiam basicamente de orações de cura.
Surgiram esperanças depois da primeira sessão, durante a qual Ralph
experimentou um calor emanando das m ãos do padre e a sensação anéis de
cor de p ú rpura expandindo-se concentricamente em seu campo visual en-
quanto mantinha os olhos fechados. Padre Felix interpretou a visão em
termos de simbolismo litú rgico católico, no qual a cor p úrpura representa a
morte. Ele concluiu que alguma coisa negativa em Ralph estava morrendo.
Mais importante para Ralph, a sensação de uma presen ça benigna o acom-
panhou por dois dias depois dessa sessão inicial. Essa experiência o encora-
jou a ir à missa com o avô, ocasião em que sentiu os olhos girando para
cima dentro das suas cavidades (nistagmo). Um dos maiores medos de Ral-
ph é que esse fenômeno ocasional ocorra em p ú blico, e sua ocorrência du-
rante a missa provocou nele uma sensação de estar sendo traído por Deus.
Em sessões posteriores, ele experimentou novamente calor e cor, mas as
sensações declinaram progressivamente em intensidade. Além disso, embo-
ra ele tenha rezado silenciosamente junto com padre Felix durante as pri-
meiras sessões, ele não participou mais dessa forma nos últimos encontros.
As entrevistas pós-sessão de Ralph revelaram sua percepção do proces-
so terapê utico como insatisfatório. Dois tipos de comentários indicam que
algumas vezes o curador exagerou na interpretação ou entendeu mal a expe-
riência de Ralph, enfraquecendo assim o impacto retó rico da cura.
Um dos exageros interpretativos de padre Felix ocorreu quando ele
estava tentando convencer Ralph de que ao insistir sobre seu nervosismo ele

81
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

o perpetuaria, cxatamcnte como algu é m que repete para si mesmo “ n ã o


pense sobre a cor verde” está de fato pensando sobre o verde. Durante o
período de oração com imposiçã o de m ãos que se seguiu a essa conversa ção,
Ralph viu a cor verde alé m da pú rpura. Padre Felix atribuiu significado a
isso, reparando que o verde é a cor da esperança no simbolismo lit ú rgico.
Ralph rejeitou essa interpretaçã o, atribuindo sua visão do verde à sugest ão
do conselho anterior mais do que à inspiração divina. Noutro exemplo,
padre Felix perguntou se ele poderia convidar duas mulheres do grupo local
de oração carism ática para ajudá-lo na oração de cura de modo a expor
Ralph à influência feminina, que ele sentia ser inadequada na vida de seu
cliente, e aparentemente também em resposta ao medo de Ralph de ser
visto como um homossexual. A resposta de Ralph a essa medida terapê utica
foi elencar uma variedade de mulheres que ele conhecia, rejeitando a idéia
de que sua exposi ção a presenças femininas fosse deficiente. Finalmente,
padre Felix tentou retratar a incomum vinda de Ralph à missa e a visita a
um restaurante com seu avô como positivas. A resposta de Ralph foi que ele
só fora à missa uma vez, e que ir a um restaurante nunca o deixara tão
nervoso quanto estar num grupo de pessoas.
Além dessas interpretações exageradas, padre Felix parece ter entendi-
do Ralph mal em várias ocasiões. Numa passagem em que os dois discuti-
ram se o nervosismo de Ralph o impediria de ir a uma festa, padre Felix
disse que, no seu entender, misturar-se com outras pessoas era exatamente o
que Ralph necessitava. Em resposta à declaração de Ralph de que estava
muito nervoso, o curador disse que “se você pensar em nervosismo, você
fica nervoso”. Ralph objetou: “ Não. Eu não estou pensando em nervosis-
mo, eu estou nervoso!” Na entrevista seguinte, ele disse especificamente
que se sentia incompreendido, e que com a paranoia não se pode simples-
mente se mandar fazer alguma coisa. Noutro momento Ralph mencionou
que o pai encorajou-o a “ser como ele” e não se importar com o que os
outros pensam. Padre Félix interpretou isso como uma expressão da inse-
gurança do pai, sugerindo que ele não se sentia no controle da sua vida e
realmente se importava com as opiniões alheias. Na entrevista de reforço,
Ralph objetou a isso, argumentando que seu pai fizera a declaração apenas
uma ou duas vezes, com a intenção de encorajá-lo, e não era culpado de
“denegação”. Ele achava que a idéia básica de padre Felix sobre as pessoas em

82
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura

gcral era correta , mas que ele estava sendo inexato ao atribuir tal denegação
ao seu pai. Finalmcntc, numa sessão em que Ralph declarou que nenhuma
mudan ça havia ocorrido desde a sessã o anterior, padre Felix voltou-se para o
pesquisador e perguntou se de fato eu n ão podia observar qualquer mudan-
ça. Ralph interpretou essa tentativa de solicitar impressões de mudan ças
comportamcntais visíveis como uma contradição frontal de seu relato de
nenhuma experi ê ncia de mudan ça interna. Ele declarou que isso lhe deu
raiva, embora “n ão tivesse nada a ver com a oração” enquanto forma de
tratamento.
Apesar dessa aparente disposição de separar os efeitos da ora çã o dos
visíveis tropeços do ministro de cura, os sucessivos mal-entendidos e inter-
pretaçõ es exageradas parecem ter minado o processo terapê utico. Ralph ter-
minou seu envolvimento ap ós cinco sessões e uma missa de cura de
ancestralidade. Depois disso, padre Felix esteve com o pai em diversas ses-
sões, orando ostensivamente pelo segundo filho e com o pai como “substi-
tuto”. Em particular, no entanto, ele admitiu que estava orando ao mesmo
tempo pelo próprio pai, que a seu ver tinha uma atitude excessivamente
crítica e negativa. O padre sentiu que as maneiras do homem melhoraram
um pouco ao longo da cura, e a família também relatou que o segundo
filho tornara-se menos raivoso e briguento. No entanto, o pai também
logo parou suas sessões com padre Felix.
Numa entrevista dois meses depois de ter parado, Ralph descreveu
interações com um novo psiquiatra, que duvidava do diagnóstico de esqui-
zofrenia paranoica e que conseguiu hipnotizá-lo para que ele não se sentisse
nervoso num encontro recente com uma mulher.23 Ele tentou minimizar a
aparente semelhança entre a sensação de paz ao receber de olhos fechados as
orações sobre si e a de ser colocado em transe leve, mostrando-se esperan ço-
so quanto à sua nova linha de tratamento.

28 Ralph trouxe à tona o fato de que outros médicos o tinham prevenido contra a hipnose por
medo de que ele pudesse desenvolver a idéia de que o médico estivesse controlando a sua
mente, mas ele nega ter tido tais delusões.

83
go^O f SlGNiriCADO / CimA
Mudança incremental, sucesso inconclusivo

/Muiro da literatura sobre curacmreligiosa sugere que o ritual necessá ria c


i definitivamente realiza, ao menos seus próprios termos,
aquilo que se
propõe a fizer. Longe de serem definitivos os efeitos da cura nos dois casos
,
aqui apresentados sã o incrementais e inconclusivos. Ambos são próximos
VV/ ao que
poderíamos chamar de casos limitantes, para além dos quais a rele-
vância de qualquer idéia de eficácia se torna questionável. Ainda assim , as
^ descrições de caso indicam que a experiência de cura foi mais satisfató ria
para Margo do que para Ralph, já que ele rejeitou o processo e ela quis
continuá-lo. Esse contraste no comportamento sugere a necessidade de uma
abordagem interpxgtativa sensível a sutis mas importantes modulações de

^ ^
( significadojb q)eriênda)no processo terapêutico Na sessão precedente, eu
propus que o processo terapêutico no ritual de cura fosse analisado em
termos de um modelo composto de três elementos. O acompanhamento
prospectivo dos casos permitiu um refinamento desse modelo, cuja especi-
ficidade consiste na disposição de participantes, experiência do sagrado, ne-
gociação de possibilidades ou elaboração de alternativas, e realização da
mudança. Nós analisaremos os dois casos à luz desses quatro elementos do
processo terapê utico.

Disposição de participantes

O termo “disposição” é fortuito naquilo que possui do significado


dual de um ânimo ou tendência preponderante e do ato de dispor ou arran-
jar de uma forma ordeira. Em outras palavras, sob esse título estamos olhando
não apenas para estados psicológicos, tais como a expectativa ou a “fé de ser
curado”, mas para a disposição de pessoas no processo de cura diante das
redes sociais e dos recursos simbólicos.
Embora nenhum cliente fosse muito ativo no movimento carismá ti -
co, Margo era mais familiarizada com a cura religiosa por frequentar encon -
tros de oração e serviços p ú blicos de cura e não tinha d úvidas sobre crenças
religiosas básicas. Além disso, sua mãe estava orientada à espiritualidade
carismá tica e assinava a principal revista pentecostal católica. A despeito de
um forre desapontamento num serviço de cura no qual ela havia sido in -
84
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

formada dc que sua cura já havia se iniciado, a disposição positiva de Margo


no processo foi expressa em sua gratid ão por ter sido destacada para sessões
particulares de cura com padre Felix e na sua abertura para as suas instru-
ções. Ela aceitou as ordens dele tanto para estar aberta às imagens espontâ-
neas dc seu inconsciente durante a oração como para conceber sua ansiedade
e depressão “diminuindo” dia a dia. Sua disposi ção positiva foi reforçada
pela garantia de que uma aparição à beira de sua cama, da qual ela jamais
havia falado ao seu terapeuta secular, nã o era um sinal de enfermidade men-
tal, mas uma manifestação frequente e plenamente compreensível de uma
força maligna. Finalmente, em uma sessão ela tomou a iniciativa de per -
guntar ao padre se ele havia espiritualmente “encontrado” ou “discernido”
qualquer particularidade sobre o seu problema enquanto rezava por ela. Essa
antecipação do empoderamento divino de fato pegou padre Felix de surpresa,
mas ele foi capaz de apontar diversos “temores” sobre os quais ele havia sido
“conduzido” a rezar, reforçando assim a disposição já forte de Margo.
Ralph, por outro lado, entrou no processo com ambivalência: ele ex-
pressou agnosticismo, mas reconheceu a preocupação com a religião que
emergiu na sua poesia e até mesmo ocasionalmente na oração ao repetir o
nome “Jesus”. Como Margo, ele havia sido exposto a práticas da Renova-
ção Carism á tica, embora n ão estivesse envolvido durante pelo menos oito
anos e ainda assim por pouco tempo. Além disso, ele começou a cura su-
pondo que suas sessões com padre Felix consistir-se-iam não de oração, mas
de aconselhamento. Contudo, sua disposição durante o processo foi sufici-
entemente favorável a ponto de ele orar junto com o padre durante as várias
sessões iniciais. Esse n ível de participação diminuiu, entretanto, resultando
numa assimilação do processo de cura ao culto.

Experiência do sagrado

JA. capacidade humana de lidar com o mundo como algo sagrado, dife-
rente e poderoso foi documentada repetidamente por fenomenologistas da jV /'j
religi Eliade 1958 Van der Leeuw, 1938). Cada sistema de cura atende
ã o ( , ; J.
à condição humana diferenciadamente, elaborando um repertório de ele- -
mentos rituais que constituem manifestações legítimas do poder divino. Y
Num sistema de cura específico, nos interessamos pela variação individual na
/
experiência do sagrado que possa influenciar o curso do processo terapê utico

85
CORTO / SIGNIHC\DO / CURA

A experi ê ncia de Margo de cmpoderamento concreto inclu ía Repou-


sar no Espírito” em outros serviços de cura antes de ingressar na sé rie de
sessões com padre Félix. Com o padre, a instru ção de estar aberta para o
material inconsciente resultou na experiê ncia espontânea de três aspectos
significativos de seu problema r‘precipitando-se sobre ela de todas as dire-
ções”. A dissociação motora de repousar no Espírito e do imagé tico espon -
tâneo são ambos exemplos de experiê ncias corporificadas concretas do
sagrado. A experiência de Ralph de diminuir progressivamente o empode-
ramento começou com uma experiência distinta de abandono pela presen ça
transcendente que havia inicialmente sido evocada na oração de cura. A
significação desse evento nunca chamou a aten ção de padre Felix durante as
sessões; assim, ele não teve a oportunidade de lidar com ela no contexto da
crença e prá tica pentecostal católica. Em resumo, essa experiência do sagra-
do não estava incorporada no processo terapê utico para Ralph, e a intensi-
dade da sua experiência de poder enquanto presen ça , calor e cor
progressivamente diminuiu. Também é possível que a tentativa do padre
em atribuir significa ção simbólica à emergência de verde no campo visual
de Ralph tenha minado a evocação do sagrado, já que o pró prio Ralph
atribuía a experiência ao poder da sugestão ao invés de ao poder divi no.
A mais notável diferen ça entre os dois casos é que as experiê ncias de
Margo tinham mais teor sagrado de pertinência imediata à sua situação, ao
contrário da vaga sensação de presen ça divina, calor e cor de Ralph , que
recebeu apenas uma interpretação mínima do ministro da cura. O observa-
dor pode conjeturar que o curador poderia ter trabalhado com essa experi-
ência, seja interpretando-a como uma companhia m ística que poderia
proteger o jovem do nervosismo patológico em situações sociais, seja utili-
zando-a como uma abertura experimental no agnosticismo de Ralph, faci-
litando assim uma disposição maior no sentido da cura. Padre Felix tamb é m
poderia ter aproveitado a ocasião para induzir transformação de comporta-
mento e atitude através da sua prioridade declarada de chegar à “raiz” dos
problemas de Ralph. Ao invés disso, qualquer conte údo potencial da expe-
riência de Ralph deixou de ser elaborado como intuição, interpretação ou
direção. Não está claro se isso n ão aconteceu porque o curador n ão estava
atento à experi ência de “presen ça” de Ralph ou porque tal estratégia seria
inaceitável.

86
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

As experi ê ncias de Margo de empoderamento eram bem diferentes,


ricas em significaçã o biográfica (emergê ncia repentina de pensamentos so-
bre seu trabalho, m édico c antigo namorado). Para ela , a experi ê ncia foi
um momento n ã o de transcend ê ncia abstrata, mas concreta. Como apon-
ta Kapferer (1979 b, p. 17) , /“ um ritual fixado num momento transcenden-
te é empoderado para agir sobre contextos externos à performance e para
transform á-los de acordo com o rearranjo ou reordenação que o momento
transcendente do rito expressa”/ A n ão ser que a ret órica concreta em tais
momentos seja identificada, a frase “de acordo com” n ão coloca mais que
uma homologia abstrata entre elementos do ritual e elementos de uma vida

^
aflita \ experiência concreta do sagrado n ão é uma experiência do sobrena-
tural, mas uma maneira transformada de cuidar do mundo humanõf Para
Margo, mas não para Ralph, o elo entre transcendência e reordenação da
vida foi forjado na matéria biográfica de seu momento transcendente.

Elaboração de alternativas/ negociação de possibilidades

/ Uma tarefa principal da persuasão terapêutica e da cura é criar alterna-


tivas ao transformar o “mundo supositivo” (Frank, ., 1973) dos aflitos.
J
Diferentes sistemas de cura podem conceber alternativas como novas vere-
das, como forma para destravar, para superar obstáculos, como um cami-
nho de saída do problema, ou em termos de uma variedade de outras
metáforas. Eles podem usar o ritual ou os meios pragm áticos e podem
encorajar a atividade ou a passividade, mas as possibilidades devem ser per-
cebidas como reais e realistas /
A primeira possibilidade elaborada para Margo dizia respeito à sua
atitude frente ao tratamento médico. Ela foi persuadida de que ao invés de
cooperar com os efeitos dos remédios prescritos através de uma atitude
positiva, ela havia alimentado a expectativa de que falhassem, então ocorreu
isso mesmo. Uma extensão dessa linha de pensamento foi a hipó tese de sua
mãe de que a decisão inesperada do médico de tentar TEC pudesse ser um
efeito da oração de cura.29

29 Contudo , não sabemos até que ponto Margo partilhou essa atitude com a sua mãe.
Ironicamente, enquanto psicólogo, padre Felix se opunha ao uso de terapia eletroconvulsiva.

37
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

A segunda possibilidade foi elaborada através do novo entendimento


de Margo do papel de espíritos malignos, colocando o “ poder espiritual” ao
lado da “enfermidade” como ferramentas conceituais para dar sentido a uma
condição frustrante de vida. Essa alternativa foi fornecida junto com a ga-
rantia de que uma aparição perturbadora não era um sinal de insanidade,
mas a manifestação de um espírito maligno. Ela foi persuadida depois de
que a técnica de “comandar suas emoções” era n ão apenas um modo dc
invocar poder divino, mas també m uma maneira de instilar algum senso de
controle sobre emoções que foram para ela uma estranha e desconfortável
experiência. A atribuição da ineficácia da técnica à interferê ncia de um espí-
rito maligno não apenas balizou a ação num nível cosmológico, mas confir-
mou o sentimento dela de que a ansiedade e a depressão não faziam parte de
seu estado natural.
A história de Ralph pode ser resumida de forma mais rá pida. Simples-
mente não havia possibilidades geradas para ele no processo de cura. Assim
como para Margo, padre Félix ofereceu métodos - relaxamento, desenvol-
vimento de uma atitude positiva, frequentar eventos sociais mas Ralph
jamais os percebeu como realistas.

Realização de mudança

O que vale como mudança, assim como o grau em que tal mudança é
vista como significativa pelos participantes, não pode ser aceito como dado
nos estudos comparativos de processos terapê uticos. Toda essa intui ção é
ainda mais importante para essa discussão quando n ão há nada de estabele-
cido e nossa preocupação é definir elementos m ínimos de eficácia.
A principal evidê ncia para a mudança incremental na cura de Margo é
seu an úncio da decisão de partilhar seus problemas com uma cunhada mais
jovem. Embora uma razão para essa decisão não tenha emergido explicita-
mente em mais entrevistas, é possível que o discurso do curador sobre o
“ Medo de Ser Descoberto” tenha plantado a id éia de buscar apoio de outros
ao invés de tentar esconder deles suas dificuldades./'Vtribuir sua conduta
anterior a um medo que é não apenas negativo, mas pode també m repre-
sentar a atividade de um espírito maligno, é nessa instâ ncia o traço-chave da
/
retórica da transformação Ao passo que o desejo de esconder sua aflição
havia levado a um isolamento social crescente, sua vinculação à id éia de um

88
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura

esp írito maligno passou a motivar Margo a tornar sua pró pria aflição em
ocasi ão para cngajar-sc socialmcnte.
A falha de realizar a mudan ça na cura de Ralph é evidente nessa rejei ção
expl ícita clc seja o que for que padre Felix tenha oferecido como evid ê ncia
de mudan ça terapê utica. Ir à missa com o avô n ã o contava, porque só acon-
teceu uma vez; ir a um restaurante com o avô n ão era significativo, porque
ele fazia essas coisas habitualmente sem quaisquer consequ ê ncias em todo
caso; c a opini ã o de outra pessoa sobre se ele havia mudado era desprezada ,
porque ele n ão tinha indicações de outros de ser esse o caso e especialmente
porque o que importava era que ele n ã o se sentia diferente. Quando o pes-
quisador perguntou se sua recente falta de perturbação com movimentos
descontrolados do olho era um possível resultado da oração de cura, Ralph
n ã o rejeitou inteiramente a possibilidade, mas saudou-a com ambivalência,
excluindo-a da classifica ção de experiê ncia de transformação. A percepção
do curador de uma mudan ça positiva no pai de Ralph certamente teve efei-
to m ínimo, já que o pai e o filho tinham um relacionamento próximo. Da
mesma forma, o relato dos pais de mudan ça no seu irm ão teve efeito m íni-
mo, já que as rela ções tensas entre os irm ãos perduraram a ponto de eles não
mais poderem viver sob o mesmo teto.
Em suma, o processo terapêutico para Margo foi caracterizado por
uma disposição inicialmente positiva; experiências de poder divino com
conte ú do distinto, intelig ível; a elaboração de possibilidades viáveis; e mu-
dan ças significativas, embora incrementais. Ralph manifestou disposição
ambivalente, diminuição de empoderamento, n ão reconhecimento de possi-
bilidades e rejeição da mudan ça, com uma fone percepção de não estar sendo
compreendido pelo ministro de cura. Nesses termos, a cura deu melhor resul-
tado para Margo do que para Ralph, e assim a an álise esclarece os modos
diversos em que os dois terminaram suas sessões. Ralph deixou o processo
religioso de cura para encontrar aparentemente maior satisfação com um psi-
quiatra / hipnotizador, sem qualquer senso de continuidade do seu encontro
carismático de cura. Margo, que estava inicialmente desiludida com a psiqui-
atria e a psicoterapia, deixou o processo de cura para tentar mais um trata-
mento psicoterapê utico internada e provavelmente teria continuado a cura
religiosa se o padre não tivesse deixado a área por um período prolongado.
Embora se movendo na direção certa, essa análise ainda não estabelece
o significado dessas transformações em comparação com o que o pensa-

S9
CORTO / SIGNIFICADO / CURA

mento cl ínico chamaria de uma cura. O que é notá vel nos exemplos apre-
sentados c o seu cará ter incremental, sem qualquer garantia de que eles serã o
permanentemente integrados na Anda da pessoa. O processo incremental c
aberto da cura religiosa pode se revelar como uma caracter ística essencial,
v exigindo que algumas curas religiosas sejam “simbió ticas” (Crapanzano,
~
y1\ 1973) j/ralvcz não haja conclusão terapêutica, somente processo terapêuticoj
A cura pentecosral católica pode incluir o objetivo simbió tico, encorajando
suplicantes a incorporarem significado religioso e habitarem uma comuni-
dade religiosamente definida. Ainda assim , no contexto sociocultural nor-
te-americano do fim do século XX, nós podemos prontamente discern
ir
fatores que contribuem com a natureza fragmentá ria e inconclusiva do pro-
cesso de cura e que n ão são particularmente inerentes às sociedades tradicio
-
nais das quais advém a maior parte do conhecimento etnográ fico.
Primeiro, considere a tentativa de padre Felix de atrair as fam ílias de
Margo e Ralph para o processo de cura através da missa de cura de ancestra-
Iidade. Se há algo de singular na prática de cura de padre Felix, em compa-
ração com outros ministros de cura pentecostais católicos, é a sua prá tica de
adentrar no lar e mobilizar o apoio da família através da participação nesse
evento. A maior parte da cura carismatica e baseada no modelo do
encontro
individual, e não é coisa inédita uma mulher estar no processo de cura para
desprazer de seu marido. Mesmo quando o curador toma a iniciativa de
mobilizar o suporte social, sua autoridade nã o é tal que ele possa intervir do
modo algumas vezes descrito para os curadores tradicionais. O pai de Margo
estava propositalmente ausente da missa de ancestralidade dela, assim como o
irmão de Ralph estava da dele. O pai de Ralph participou com entusiasmo de
diversas sessões privadas com o padre, mas as interrompeu sem resolução,
simplesmente deixando de agendar outra consulta. Assim , o apoio social,
frequentemente citado como uma das marcas registradas da cura ritual , não é
de forma alguma autom ático. O apoio da fam ília e o apoio da comunidade
de crentes religiosos não são idênticos ou sequer necessariamente compatíveis.
O apoio de qualquer uma delas pode ser menos acentuado do que seria de se
esperar dos casos comumente relatados na literatura etnográ fica.
Considere, ainda, a facilidade com que as pessoas podem entrar e dei -
xar o processo de cura nesses exemplos. Na perspectiva transcultural esse
tipo de mobilidade entre os recursos de cura parece ser uma fun ção do

90
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura

n ú mero clc recursos dispon íveis , bem como da exclusividade de cada forma
de cura. Finkler ( 1985) observou uma diferen ça entre os espiritualistas me -
xicanos que eram devotos e aqueles que faziam uso casual ou periódico da
cura cspiritualista Crapanzano ( 1973) notou uma distin ção similar entre
^
devotos hamadsha que experimentaram uma cura simbiótica e outros que
receberam uma cura exorcista de sessão ú nicâf Na medida em que o pente -
costalismo católico se desenvolveu nas duas últimas d écadas, suas formas de
cura se tornaram mais acessíveis àqueles apenas marginalmente expostos ao
movimento.30 Como Ralph e Margo, eles estão menos propensos a se en-
volverem numa “cura simbió tica” total e mais provavelmente experimenta -
rão os tipos de transformações incrementais aqui documentadas. Assim,
pouco entendimento resultará se a pesquisa for direcionada a um resultado
terapê utico definitivo, ao invés de ir em direção às ambiguidades e sucessos
parciais (e falhas) embutidos no processo terapê utico.
Alé m do mais, se os seus diagnósticos são corretos, Ralph sofre de
uma condição esquizofrénica séria caracteristicamente associada com fracas-
sos na psicoterapia, ao passo que os problemas de depressão e pânico de
Margo respondem tipicamente bem a uma variedade de intervenções psico -
terapêuticas. A pesquisa em sociedades tradicionais é frequentemente com-
plicada pelo fato de o antropólogo não possuir informação comparável de
diagn ósticos; por outro lado, a pesquisa na sociedade contemporânea pode
ser complicada pelo fato de o informante possuir essa informação. A rejei-
ção de Ralph ao comentá rio de padre Felix “se você pensar em nervosismo,
você ficará nervoso”, foi baseada na sua concepção de que a paranoia clínica
não pode ser banida simplesmente por uma mudança de atitude. Ao con -
trá rio, a disposi ção de Margo de falar da sua experiência de uma aparição
apenas ao padre e não ao psicoterapeuta era baseada na preocupação de po-
der receber um diagnóstico pior do que depressão e transtorno do pânico.

30 A comunicação pessoal de l íderes do movimento indica que desde o seu início, em 1967,
dez milhões de católicos norte-americanos foram expostos ao movimento, junto com 20
milhões de católicos em outras partes do mundo. A participação ativa, contudo, no momento
desta escrita , é estimada em 162.500 . Esse continua sendo um número substancial ,
especialmente quando posto ao lado do maior número de carismáticos e pentecostais
protestantes .

91
I

r
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

í Alguém poderia dizer que os encontros de cura religiosa de ambos os


suplicantes estavam condicionados por encontros anteriores com profissio-
nais de sa úde mental, na medida em que estavam cientes da sua condi ção e,
especialmente no caso de Margo, de intuições adquiridas em psicoterapia
anterior. Essa interpreta ção, contudo, representaria uma miopia etnográfi-
i ca. Mais exaro para ambos, Margo e Ralph , seria dizer que a cura religiosa
foi um interl ú dio numa histó ria de encontros com instituições de sa úde
/
mental. \qui encontramos os significados cl ínico e antropológico desses
casos:(antropoTõgicãmente) em termos de como a interação dos significa-
dos religioso e clínico modela a experiê ncia da doença; e, clinicamente, em
termos de como o encontro religioso pode influenciar a trajetó ria da doen
ça/Como a prévia hospitaliza ção e interação de Ralph com os profissionais
-
de sa úde mental afetaram o encontro com padre Felix, e como a experiê ncia
com padre Felix influenciou o encontro subsequente de Ralph com o psi-
quiatra usando hipnorerapia? Margo estava vendo um psiquiatra e um psi-
cólogo antes de encontrar padre Felix, que sugeriu que ela mudasse pa raum
psicorerapeuta cristão enquanto continuava com as orações de cura. No
fim, ela parecia comprometida tanto com o tratamento psiquiátrico quan-
to com a cura religiosa. Mas seriam comprometimentos independentes ou
houve, por exemplo, uma influência da cura religiosa na disposição de Margo
de submeter-se à terapia eletroconvulsiva?
O clínico acharia esse tipo de informação valiosa, mas ela não seria
facilmente fornecida pelo paciente. Como Ralph e Margo, que se
recusa-
ram a permitir que eu contatasse os seus médicos, muitos daqueles que têm
acesso a curas religiosas indubitavelmente acreditam que é melhor não in-
formar os médicos, a não ser que, ou até que alguma mudan ça dramática
aconteça, para então requererem a documentação clínica da cura milagrosa.
Preconceito m édico - real ou intuído - contra a convicção religiosa pode
criar um ponto cego crítico no quadro clínico do grande n ú mero de pessoas
que acha a cura religiosa adequada.
Nós deveríamos permitir uma palavra final a padre Felix, ele próprio
decepcionado com a falta de resultados mais notáveis e rá pidos em cada um
i
dos casos. Ele atribuiu a dificuldade com Ralph à resistê ncia do suplicante e
à sua pró pria falha ao não incluir mais componentes de aconselhamento
junto com a oração de cura. Ele també m viu o problema principal de Mar-

92
A Retórica da Transforma çã o no Ritual de Cura

go como sendo o do ambiente familiar negativo e de sua incapacidade de


tornar-sc independente da fam ília.

Conclus ã o: processo terap êutico e a teoria da cura

(O método je análisgjetórica do processo terapêutico que propus neste ; j


capítulo trata a cura como um discurso que ativa e d á forma significativa aos fj Jy
processos de cura endógenos, fisiológicos e psicológicos no paciente/ O efeito [/ f \
básico é redirecionar a atenção do ou da paciente para vários aspectosdè suã-
vida de forma a criar um novo significado para essa vida e transformar o
sentido de ser uma pessoa inteira e saudávej/ O exame de disposição, experi-
ê ncia do sagrado, efaboraçao He alternativas e realização da mudança incre-
^

mental enquanto elementos do processo terapêutico/ transformativo contrasta


com estudos que enfatizam o papel global de mecanismos tais como a suges-
tão, a catarse, o efeito placebo ou a regressão a serviço do ego (Calestro, 1972;
Sargant, 1973; SchefF, 1979; Torrey, 1972). Esses estudos tendem a desenco-
rajar análises detalhadas do processo terapê utico na experiência singular de
pessoas, pois se a cura pode ser atribuída a um mecanismo não-específico,
tudo o que resta a ser especificado é como esse mecanismo é desencadeado.
Mesmo quando é dada maior especificidade, como na proposta de Thomas
SchefF (1979) de que um mecanismo de distanciamento é essencial ao meca-
nismo de catarse, a análise tende a desconsiderar a natureza da aflição e os
efeitos diferenciais da cura em cada indivíduo. Não podemos dizer, definiti-
vamente, por exemplo, que a técnica de comandar suas emoções criou distan-
ciamento para Margo, e mesmo se pudermos, o efeito pode ter sido mais
cognitivo do que catártico. Um ponto similar se aplica à evocação de “estados
alterados de consciê ncia” na explicação dos efeitos da cura.31 Esses estados não

31 Por essa razão , a despeito da natureza preliminar das suas análises, os trabalhos de Richard
Noll ( 1983) , Larry Peters ( 1981 ) , e Larry Peters e Douglas Price-Williams ( 1980) sobre
xamanismo são passos importantes para a compreensão de estados alterados como lugares
para transformação pessoal , como ritos sociais de passagem e como ativação simultânea de
processos fisiol ógicos e simbólicos.

93

j
1

CORPO / SIGNIFICADO / CURA


j
podem ser tratados da mesma forma que mecanismos como a catarse ou a
sugestão. Sua natureza deve ser definida cm termos culturais bem como
psicofisiológicos, cscu lugar nos sistemas de cura deve ser especificado.
Ao manter a proximidade com a informação de campo, esse m é todo
também contrasta com outras concepções mais globalmcntc postuladas dos
processos de cura. Por exemplo, James Dow (1986 b) descreve a cura como
um processo no qual os símbolos do reino m ítico são “particularizados” na
significação para um ú nico suplicante. Os símbolos são então “manipula-
f dos” por um curador para mediar ou “transacionar” entre os n íveis hierá r-
quicos de sociedade e sujeito. Além disso, as emoções são “ ligadas” aos
símbolos para transacionar entre n íveis de self e soma. No caso de Margo,
certamcntc é possível rotular o espírito das Trevas como um s í mbolo
tran-
sacionai ao qual o curador liga a emoção da depressão; ele poderia ser descri
to com a mesma facilidade como uma qualidade predicada pelo
-
curador de
um pronome incoativo (Fernandez, 1974), ou como uma administra
ção
de significado pelo curador, que está atuando como um intermediá rio es
piritual definindo as condições da participação do suplicante no grupo
-
religioso (Kapferer, 1976). Em resumo, faz-se necessário um modelo que
possa especificar condi ções para mudan ça, crité rios para um serviço bem
realizado pelo curador e repertó rios culturais de experiê ncia significativa
de paciente.
/
Embora Dow postule que o curador “persuade” o paciente da relevâ n-
cia dos símbolos m íticos para a sua condição, ele n ão explica como tal
0/ persuasão ocorre e cria uma predisposi ção para a cura. Elementos de experi-
ência religiosa são julgados por Dow como “prel údios terapê uticos”, cujo
v propósito é
estabelecer um relacionamento terapê utico baseado no parado-
xo; transcend ência (Kapferer, 1979c) e experiência do sagrado n ão entram
em jogo/ Finalmente, o relacionamento entre n íveis social , do sujeito c
! somá tico é caracterizado como an álogo ao de um “termostato”, de modo
que “é possível afetar processos no selfc nos sistemas somá ticos inconscien-
tes através da manipula çã o de parâ metros simbólicos no n ível social ” ( Dow,

\\f ^ -
P 63). A analogia do termostato é demasiadamente mecanicista O /
V„./ 9 ue é necessá rio a essa altura do desenvolvimento de uma teoria da cura é a
J especificação áefTomo o processo terapêutico efetua a transformação cm
estados existenciais/ ^
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

/lima abordagem fundamentada nas pró prias experiê ncias c pcrcepções


de mudan ça dos participantes pode chegar a uma conccituaiiza ção ma ís
pragm á tica da cura enquanto processo cultural. Isso deveria ser um objetivo
n ão apenas num n ível conceituai , teórico, mas também no n ível da intera -
ção entre aspectos m édicos c sagrados de complexos sistemas de cuidado à
sa ú de. Ao escolher um tipo de cura religiosa que é formal e experimental -
mente diferente da psicotcrapia , ainda que suficientemente similar para com -
paração sistemá tica , eu sugiro a possibilidade de uma teoria do processo de
cura que n ã o apenas inclua outras formas, aparentemente mais exó ticas,
mas també m permita repensar a cura na biomedicina cosmopolita /
^ ustamente por esse quadro de referências aspirar à utilidade compara-
tiva , um cômputo antropol ógico equilibrado també m deve considerar as
características exatas do cen á rio cultural no qual a cura transcorre Nesse
caso, o fato de os suplicantes que buscam tratamento serem católicos prati-
/
cantes e o fato de eles participarem do movimento carism á tico católico são
ambos relevantes. En pnmeirojiugar, seria totalmente erró neo interpretar a
^
apresentação de uma queixa de masturbação, por exemplo, como indicati-
vo de um obscurantismo sexual; para os católicos, apenas duas categorias
fenomenológicas são relevantes: se a ação é deliberada ela é pecaminosa, e se
é compulsiva ela é um sintoma neuró tico. A importância de tal relativismo
cultural ao menos como ponto de partida , é claro, é um dos pontos princi-
pais da pesquisa etnopsiqui á trica sobre cura religiosa e síndromes condicio-
nadas pela cultura e n ão deveria , portanto, exigir uma ê nfase maior.32 Mais
importante é o que Von der Heydt (1970, p. 76) , um psicoterapeuta psica-
nal ítico (isto é, junguiano) católico, apontou como sendo o princípio fun-
damental no trabalho com pacientes católicos: “sejam quais forem os seus
males ou problemas externos, há sempre um conflito subjacente conectado
com sua religião e sua prá tica”. Isso fica mais do que evidente no Exemplo
Um , no qual a primeira experiê ncia sexualmente ambivalente do suplicante
ocorreu atrás de uma igreja, e foi acompanhada mais tarde na vida por uma

32 Pode-sc ir além cio ponto de partida relativ ístico unicamente no contexto de uma ampla ,
radical e eficaz crí tica cultural; na conexão presente , veja , por exemplo, a anãlisc de La Barre
( 1972) do impacto da neurose sexual de São Paulo na cultura cristã.

95
1

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

. é m é evi-
escolha conflituosa entre o estado de casado e o sacerd ócio Tamb
dolorosas
dente no Exemplo Três, Parte B, no qual o suplicante relatou
,
tentativas de controlar seu h á bito de masturbação particularmente
durante
períodos cm que ele desempenhava tarefas ou
frinçõcs religiosas especiais, c
talvez ainda no Exemplo Dois, se a resistência inicial suplicante à terapia
do
dimensão religiosa para a sua
ritual for vista como uma recusa a admidr uma
obesidade. Finalmcntc, a intuição de Von der Heydt parece se confirmar pela
de cada um dos três exemplos.33
proeminência da culpa como um elemento
Podem ser interpretadas a atribuição de problemas a um esp í rito ma-
do passado na Cura de Memó rias como
ligno na Libertação c a constru ção
uma forma de fuga da responsabilidade
pelo seu pró prio bem-estar emoci-
de
onal? Essa é, de fato, uma atitude comum terapeutas clí nicos frente à
adotada indiscriminadamente. Para a
cura religiosa, mas que não deveria ser
o da participação do suplicante versus a
cura carismática católica, a questã
passividade foi anteriormente tratada neste capítulo, ao observar como na
Cura de Memórias a pessoa é encorajada perdoar aqueles que a ofenderam
a
e como na Libertação um indiví
duo frequente e pessoalmente identifica os
espíritos que estão lhe perturbando
. A responsabilidade pessoal é indicada
pelo fato de o suplicante estar sujeito a aconselhamento que pode incluir
recomendações para uma mudança comportamental. Além disso, a crença de
que experiências e ações no passado dão oportunidade aos demónios de inici-
de responsabilidade no sentido de
ar uma influência na pessoa sugere um grau
que algumas dessas ações passadas podem ser tomadas por pecaminosas.
Na medida em que o indivíduo / aliviado de algum grau de responsa-
bilidade, o efeito retóricopode ser muito diferente do que foi sugerido pela
noção de escapismo. rimèirõTjno reconhecimento de que mal represen-
^ ,
o
tado pelos demónios não é essencial ao seu próprio ser o sentimento
da

33 O problema da culpa passa por toda a psicoterapia


convencional , bem como pela religiosa ,
na csfera de influência judaico-cristã. Como
Cox ( 1973, p. 9) ressalta , a culpa pode scr
interpretada de maneira bastante diferenciada nos
dois âmbitos. A comparação precisa dc
como essas interpretações diferem deveria ser o foco
de um estudo futuro, pois elas levantam
e seculares são , de fato , formas alternativas
a questão fundamental de se as terapias sagradas
espectros bastante diferenciados
dc lidar com os mesmos problemas , ou se elas lidam com
de cogni ção e afeto.

96
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

bondade fundamental e do valor do suplicante é afirmado ' Segundo, ele é


»

levado a tomar consci ê ncia de que n ã o est á só no seu sofriméntoTmas que


sua batalha acontece numa arena maior de forças espirituais, notadamente a
( guerra espiritual ” 'cjue continua numa escala cósmica entre os poderes de
^Luz c de Escurid ã o.jTercciro ^ao se tornar parte do mundo fenomenol ógico
criado pelo discurso religioso, o modo de aten ção do suplicante para a sua
experiê ncia enquanto pessoa pode ser alterado do estilo “egocêntrico” da
sociedade ocidental para o estilo “sociocêntrico” (Shweder; Bourne, 1982),
no qual o indivíduo é subsumido na comunidade religiosa, transferindo
assim por defini ção algum grau de responsabilidade por seu bem-estar emo-
cional àquela comunidade/ Esses três pontos destacam a necessidade de con-
siderar tanto o sagrado quanto a doen ça como substrato de enfermidade e
cura /Finalmente, por um lado, devem-se ponderar as questões de responsa-
bilidade contra a asserção de Young (1976) de que a “escusa”, ou transferên-
cia da responsabilidade última do comportamento de uma pessoa para uma
agência que ultrapassa a sua vontade, é um componente fundamental de
definição para qualquer estado doentio em contraste com outros tipos de
comportamento desviante. Nesse aspecto, discernir a presença de um demó-
nio deve ser interpretado na mesma categoria que diagnosticar a presença de
um vírus. Por outro lado, deve-se ponderar a questão em comparação com
terapias como a japonesa Naikan ( Murase, 1982) , na qual os sentimentos
de culpa e vergonha são maximizados como pane do processo terapêutico.
Essa técnica pode funcionar bem no contexto cultural japonês, mas se reve-
lar contraproducente num cenário ocidental.
/ bois aparentes paradoxos na determinação da efetividade da cura ritu-
al nos trazem de volta às questões de experiência do sagrado enquanto subs-
trato de enfermidade e cura, e da constituição das realidades clínica e sagrada
através de discurso e retó rica. A(primèira ) está contida na conclusão de que
terapias nativas e religiosas devem funcionar invariavelmente devido aos
tipos de enfermidade tratados e da relativa autonomia dessas enfermidades
da definição biomédica de doença (Kleinman; Sung, 1979) ( eno senodoTle
que tais terapias sempre encontram expectativas culturalmente estabelecidas
e produzem resultados previsíveis (Young, 1976). O que parece paradoxal,
de um ponto de vista médico-cient ífico, é que pode haver tratamentos que
em algum sentido n ã o podem falhar, e ainda assim deixam tanto trabalho

97
T li '

a^HI o / Sk ;N m \,,o / CUBA


>
]
^
curativo por fazer/ Carismáticos católicos dizem cxplicitamcntc que quan -
do uma cura d pedida ela é invariavelmente assegurada por Deus todo bene-
volcnrc, mesmo que ela possa não ser aquela cspccificamcncc solicitada. Os
informantes carismá ticos católicos de McGuire ( 1982) relataram n ão a pe-
nas que um suplicante pode receber um tipo de cura diferente do solicitado,
mas que a cura pode ocorrer cm outra pessoa que n ão o benefici á rio preten-

v
/
dido das orações.34 O segundo paradoxo é que o critério da efetividade
pode variar tanto que por um conjunto de parâmetros um paciente d clccla-
,\ ) rado curado, enquanto por outro ele continua doente. Enquanto para um
T V? módico ocidental o al ívio dos sintomas é um critério importante de cura,
jri Kleinman c Sung ( 1979) relatam que em Taiwan, mesmo com o al ívio dos
/N , ; sintomas, um xamá pode julgar enfermo um suplicante até que seja banido

'
ll . um espírito maligno; c um médico chinês pode fazer o mesmo julgamento
se a harmonia não for restaurada entre yinglyang, quente/ frio ou as cinco
/
esferas corporais Do mesmo modo, McGuire (1982) observa que carismá-
ticos católicos podem não ser considerados curados se retiverem qualquer
resíduo de pecado; ela chega ao ponto de sugerir uma significativa sobrepo-
sição entre os contínuos qualitativos de saúde/enfermidade e santidadc/ pc-
caminosidadcjN Õvamente, em que sentido os fenômenos constitu ídos desse
modo podem ser considerados pertencentes ao mesmo universo de discur-
so que o da medicina dínjcã _ |
Esses paradoxos se remetem ao problema crucial de substratos de enfer-
midade, sejam eles doenças no sentido biomédico, desarmonia no sentido
chinês tradicional ou experiência do sagrado no sentido religioso. O senso de
paradoxo é aumentado quando a análise confronta métodos de cura para as
quais é impossível especificar não apenas condições de possíveis falhas, mas
í[ até mesmo o problema da enfermidade sendo tratada e a pessoa beneficiada
i pela terapií)De fato, em que sentido tais práticas podem ser consideradas
pertencentes à mesma categoria de fenômenos dos outros tratamentos médi-
cos? Sua incapacidade de falhar banaliza seu significado médico ou coloca a

34
O recente livro de McGuire (1982) sobre pentecostalismo católico inclui uma discussão
geral da cura que focaliza primeiramente a enfermidade física. As idéias dela serão revistas
em detalhe em outro momento.
í 3i ,
98

J
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura

natureza clc sua eficácia na gaveta residual dos efeitos placebo? Sua extrema
indeterminação cm termos m édicos coloca-as no domínio de alguma outra
disciplina que não a antropologia médialyou faz delas exemplos de patologia
ao invés de terapia, ou simplesmente as atira no lixo da irracionalidade?
Um exame renovado dos modos religiosos de cura com a intenção de
gerar interpretações que levem igualmcntc cm consideração sua identidade
enquanto fenômenos médicos c religiosos oferece, se não um modo de
resolver esses paradoxos, ao menos um modo de confrontá-los - c esse é
um dos temas a que devo cxplicitamcnte retornar no Capí tulo Quatro e
Capí tulo Oito. A premissa de tal exame é que/ doença e sagrado são catcgo- 'V
rias do mesmo nível fcnomcnológico, que remetem às quest ões últimas dc Y(
vidac morte, ativando processos endógenos tais como os que se encontram / / V
aqui, c gerando campos dc discurso interpretativo cuja interseção é o discur-
so sobre a
cnfermidadcJComo nós mostramos, no caso da cura carismática
católica, rituais terapêuticos podem ser vistos ao mesmo tempo como for-
mas de etnopsiquiatria e como ritos de passagem. Assim, não se pode dizer
que uma forma de terapia é religiosa num sentido “êmico”, mas médica
num sentido “é tico”, como parece ter se tornado o caso na medida em que
o interesse antropológico nos fenômenos relacionados à saúde desenvolveu
uma identidade enquanto subdisciplina clínica ou aplicada da antropologia
médica(Nós devemos reconhecer, ao invés disso, que tanto podem ser for-
mulados relatos cientí ficos da cura religiosa enquanto religiosa quanto em
termos clínicõs O locus de nossos paradoxos pode então mudar das própri-

^
as formas de cura para a inabilidade metodológica da religião e da medicina
comparadas de gerar relatos mutuamente inteligíveis dos mesmos fenôme-
nos. Mas se as experiências de doença e de sagrado levantam algumas das
mesmas questões existenciais (confira Comaroff, 1982, p. 51-52; Young,
1976), e portanto não são inteiramente distintasjpode muito bem haver uma
dimensão religiosa em todas as formas de cura(Nesse caso, uma abordagem
hermenêutica é indicada não apenas para a análise das terapias abertamente
religiosas e populares, mas também para a cura convencional e biomédicZ)
Nada disso deve levar a pensar que os antropólogos devam abandonar
as preocupações clínicas e aplicadas e começ ar a interpretar símbolos pelos
símbolos, ou subordinar tais preocupações exclusivamente aos interesses
teóricos da antropologia cultural mais amplamente concebida. Significa que

99
CORTO / SIGNIFICADO / CURA.

antropologia médica e a etnopsiquiatria colocam problemas Fund amen -


tais de significa ção sobre os quais devem se assentar perspectivas teó ricas
bem como aplicadas, religião comparada bem como medicina, e m é todos
de compreensão e interpretação bem como de explanação c experimento?
Esse é o caso especialmente considerando o poderoso imperativo moral
presente na constituição da subjetividade e de experiê ncia nesses campos
(Kleinman, 1997, 1999). Além disso, o reconhecimento expl ícito de que
^
os processos de cura possuem um tipo de criatividade (Comaroff, 1983;
Kleinman, 1980) exige o uso de métodos, tais como a análise retó rica, que
possam dar conta dessa criatividade com respeito ao efeito terapêutico e
também em relação a outras formas de criatividade. O estudo da cura reli-
giosa não está imune às implicações metodológicas de uma crítica ao
empi-
rismo , tal como feita por Byron Good e Mary -Jo Delvecchio-Good, que
desafia a defini çã o de ‘

signific ado enquanto relação entre linguagem e uma
realidade que repousa fora da linguagem , e postula, ao invés disso,
71

( jÇignificado do discurso médico é conmtuído na relação com realidades de


enfermidade soaalmenre construída?)(Good, 1994; Good; Delvecchio-
Good, 1982, p. 146).56 A úlrimaaltemariva demanda um conceito não
empirista de significado, no quakirignificado não se anexa à experiência,
mas é constituído pela forma com que um sujeito participa da experiência?
E experiência, nesse caso - a experiência da transformação - nada mais nem
menos é do que a significinda do significado.

a £st2 clarificação de motivos parece importante à luz da resposta um tanto


ríspida de
Ohnugo-Tiemey a resenha de Comaroff (1983) sobre seu livro. Considerando que a
resenhista tenta demonstrar a relevância de um campo de questões mais amplo para os
fenómenos médicos, tem-se a impressão de que Ohnugo-Tiemey a considera uma intrusa
levantando tópicos de relevância periférica. As lições a serem aprendidas dos sistemas
médicos são importantes demais para permidr que uma tal atitude se estabeleça; certamente
elas são importzntes demais piara p>ermitir que o campo degenere-se em outra zona de
oonfiito entre símbolistas e cognitivistas.
3£ O m é todo de Good e Delvecchio-Good ( 1981 ) realmente envolve
uma dupla
hermenêutica: uma é praticada pelo pesquisador que interpreta os sistemas médicos, e a
_ pdo terapeuta como parte do tratamento. O treinamento cl ínico descrito envolve a
elevação, por piartc do terapeuta, da consci ência de sua pró pria inevitável hermenê utica da
‘ézcgese nativa ' naturalizada até a do método interpretative sistemático.
1

100
CAP ÍTULO DOIS
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia’

O propósito deste capítulo não é argumentar que o corpo humano é


um importante objeto de estudo antropológico, mas que( o paradigma da
corporeidade pode ser elaborado para o estudo da cultura e do sujeitg) Por
paradigmajentendo umajperspectiva metodológica consistente que visa en-
corajar a releitura de dados existentes e propor novas questões para a pesqui-
sa empíricaj Embõrã eudevaargumentar que o paradigma da corporeidade
transcende diferentes metodologias, não proponho sintetizar a vasta litera-
tura multidisciplinar sobre o corpo.37 A abordagem que desenvolverei des-

* Agradecimentos: a pesquisa apresentada neste capítulo foi financiada pelo NIMH, auxílio
1R01MH 40473-03. Agradeço aos participantes do seminário semanal sobre Antropologia
Médica de Relevância Clínica na Universidade de Harvard, dirigido por Arthur Kleinman
e Byron Good - por criarem um ambiente que estimulou o desenvolvimento deste trabalho
em vários estágios. Comentários sobre uma primeira versão do estudo foram oferecidos por
Pierre Maranda e Byron Good durante um simpósio organizado por Gilles Bibeau e Ellen
Corin no ICAES XII em Zagreb, Croácia. Gananath Obeyesekere, Robert Levine e Nancy
Scheper-Hughes deram grande encorajamento ao selecionar o trabalho como vencedor do
Prémio Stirling. O argumento foi refinado em resposta a uma crítica construtiva de Richard
Shweder. Finalmente, agradeço a Janis Jenkins, cujo diálogo teó rico e caneta editorial
muito contribuíram para o que, de qualquer ponto de vista, é um argumento experimental.
37 Além dos trabalhos citados no texto, vários grandes teó ricos desenvolveram
perspecrivas
sobre o corpo (Douglas, 1973; Foucault, 1973, 1977; Ong, W., 1967; Straus, E., 1963).
Antropólogos examinaram periodicamente o significado social e simbólico do corpo e dos
CORPOI SIGNIFICADO / CURA

dc a perspectiva da antropologia psicológica encaminha-se na direção da


( fcnõmcnoío iâ j Essa abordagem da corporeidade parte da premissa mcto-
^
f dológica dc quqjo corpo n áo é um objeto a ser estudado em relação à cultural
^ (mas é o sujeito da cultura; em outras palavras, a base existencial da cultuçá
O trabalho de Irving Hallowell se apresenta como um bom ponto de
partida, já que a sua denominação do“self como culturalmente constitu ído”
marcou uma mudan ça metodológica que se afasta da preocupação com a
estrutura da personalidade, e permanece atual no pensamento antropológi-
co. No seu artigo mais influente, Hallowell (1955) articulou duas conside-
rações principais que designarei por percepção e prática. Percepção é um
elemento-chave na definição de Hallowell do self como consciência de shn
reconhecimento de si mesmo como "um objeto num mundo de objetW
Ele considerou a consciência de si como necessária ao funcionamento da
sociedade e também como um aspecto genérico da estrutura da personali-
^
dade humana. Ele chamou seu ensaio metodológico para o estudo do self
de fenomenológico, “por falta de um termo melhor”, mas eu diria que
aquilo que faltava era uma fenomenologia mais elaborada. Entretanto, ao
tratar diretamente do problema da percepção, Hallowell foi o precursor de
uma crítica antropológica da distinção entre sujeito e objeto.
Contudo, apesar de reconhecer explicitamente o self como uma auto-
objetificação e como produto de uma mentalidade reflexiva, Hallowell ela-

senridos (porexemplo, Benthall; Polhemus, 1975; Blacking, 1977; Hanna , 1988; Hern,
1960; Howes, 1987; Leach, 1958; Obeyesekere, 1981; Tyler, 1988) . Campos particulares
que deram contribui ções recentes incluem antropologia médica e psiquiátrica (Devisch,
1983; Favazza, 1987; Frank, G„ 1986; Good, 1988; Kleinman , 1980 , 1986; Kirmayer,
1984; Martin , 1987; Scheper-Hughes; Lock, 1987), antropologia social (Jackson , 1981),
sociologia (Armstrong, 1983; Turner, B. , 1984) , filosofia (Johnson, 1987; Levin, 1985;
Tymieniecka, 1988), história (Bell , 1985; Bynum, 1987; Feher, 1989) , e crí tica literária
(Berger, 1987; Scarry, 1985; Suleiman, 1986) . Esta é naturalmente apenas uma amostragem
de trabalhos relevantes, e a lista segue se expandindo. [Para bibliografia adicional desde a
publicação da versão original deste capítulo em 1990, veja Lock ( 1993) e Csordas ( 1999a.
1999b)].
3 t O argumento que estou desenvolvendo sobre o corpo como fundamento existencial da

J cultura deve ser distinguido daquele de Johnson ( 1987), que analisa o corpo enquanto
fundamento cognitivo da cultura.

102
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

borou sua análise em termos de um self )i. objetificado. Um relato fcnome-


nol ógico completo reconheceria que, apesar de sermos capazes de nos cons-
tituir em objetos para nós mesmos, isso raramente ocorre na vida cotidiana.
Um relato assim daria o passo decisivo de começar com a experiência pré-
objetiva e pré- reflexiva do corpo, mostrando que o processo de auto-obje-
tificação já antecede culturalmente a distinção analítica entre sujeito e objeto.
Hallowell não foi além do conceito antropológico convencional de que o
sujeito é constitu ído no processo ontogené tico de socialização, sem levar
em consideração a constante reconstituição do self, incluindo as possibilida -
des não apenas para a mudan ça criativa em algumas sociedades, mas para a
variação intercultural de graus na pró pria auto-objedficação.
O segundo fator considerado por Hallowell está sintetizado na expres-
são “ambiente comportamental”, emprestada da psicologia gestaltiana de
Koffka. A abordagem protofenomenológica da percepção que nós identifi-
camos contempla um traço essencial do ambiente comportamental, qual
seja, que ele inclui não apenas objetos naturais como também “objetos cul-
turalmente reificados” , especialmente seres sobrenaturais e práticas associa-
das a eles. O conceito fez mais do que localizar o indivíduo na cultura,
ligando o comportamento ao mundo objetivo, mas também vinculou pro-
cessos perceptivos com restrições sociais e significados culturais. Assim, o
foco da formulação de Hallowell era a “orientação” em relação ao sujeito,
aos objetos, tempo e espaço, motivação e normas. Nesse sentido é que o
termo “prá tica” é relevante para a descrição da questão de Hallowell. Se,
como Sherry Ortner (1984) argumentou, a conceitualização antropológica
da prática ocorreu em certo momento teórico, então o conceito de ambien-
te comportamental é um compósito terminológico que representa o con-
texto em que uma prática é levada adiante, e vale como a pedra de toque
teó rica entre comportamento e prática. Isso é de particular relevância para o

^
argumento presente, posto que a teoria da prática pode se estabelecer me-
lhor no corpo socialmente informado, como veremosj
Há outros modos de justificar a necessidade de um paradigma da cor-
poreidade, dos quais mencionarei um apenas. Mauss (1950 b), em sua frag-
mentá ria porém influente discussão sobre a noção de pessoa, sugeriu que
todos os humanos possuem uma noção de individualidade espiritual e cor-
poral. Ao mesmo tempo, ele argumentou que condições sociais particulares

103
r

CORVO / SIGNIFICADO / CURA

estariam associadas com diferen ças qualitativas entre a personagem totô mi


ca, a persona clássica, c a pessoa cristã.39 É de importâ ncia empírica para o
-
meu argumento ele ter remetido o desenvolvimento da pessoa individualis
ta à arena dos movimentos sectá rios dos séculos XVII e XVIII , já que as
-
informações que analisarei provêm do equivalente desses movimentos no
século XX. É de relevância metodológica que, tal como Descartes e Spino-
za, ele tenha considerado a pessoa nos termos da distinção entre o mundo
do pensamento co mundo material, já que/o paradigma da corporeidadese
caracteriza pelo (colapso )das dualidades entre corpo e mente, sujeito e obje-
tO|I Sob esse prisma, torna-se relevante que o pró prio Mauss (1950b) já
tenha reproduzido tal dualidade ao elaborar seu conceito de la notion dela
personnc de maneira bastante independente do conceito de les techniques du
corps (Mauss, 1950a). Aqui novamente encontramos os temas da percepção
e da prática como domínios do sujeito culturalmente constituído; mas ao
escrever quase duas décadas antes de Hallowell, Mauss não podia ainda
tratá-los conjuntamente, muito menos num consistente paradigma da
corporeidade.
Meu plano para delinear tal paradigma começa com um exame crítico
de duas teorias da corporeidadeqMaurice Merleau-Ponty (1962) , que ela-
bora a corporeidade na problemática da percepção, e Pierre Bourdieu (1977 .
1984), que situa a corporeidade num discurso antropológico da práuõj
Minha exposição hermenêutica, no sentido específico de transitar pela apre-
sentação de conceitos metodológicos e por demonstrações de como pensar
em termos de corporeidade, influenciou minha pró pria pesquisa sobre lin-
guagem ritual e cura num movimento religioso cristão contemporâneo -
Primeiro, eu examino dois serviços de cura religiosa, interpretando o imagin'
co multissensório como um processo cultural corporificado. Depois, exam
no a prática de folar em línguas (ou glossolalia) como experiência corporifica
no interior de um sistema ritual e como um operador cultural na trajeto
social do movimento religioso. Por fim, eu retorno a uma discussão gera*
implicações d mrporeidade enquanto paradigma metodológica )
^
b
J 35
Essas d ísrinçóes vagamente prenunciam o delineamento empí rico de um contin^U*
pessoas-conceitos entre egocêntricos e sociocêntricos por Shweder e Bourne ( 19°*' '

104

A
A Corporeidacle como um Paradigma para a Antropologia

Orienta çã o metodol ógica para a corporeidade

cm
/ A problem á tica de ambos, Merleau-Ponty e Bourdieu, é formulada
termos de dualidades incó modas. Para Merleau-Ponty, a principal dua-
lidade no dom í nio da percepção é a do sujeito-objeto, ao passo que, para
Bourdieu, no dom ínio da prá tica, é estrutura-prática. Ambos tentam não
mediar, mas colapsar essas dualidades, e a corporeidade é o princípio meto-
dológico invocado por ambos. O colapso das dualidades na corporeidade
exige que o corpo enquanto figura metodológica seja ele mesmo não-dua-

lista, isto é, n ão distinto de ou em interação com - um princípio antagó-
nico da mente. Assim, para Merleau-Ponty o corpo é um “contexto em
relação ao mundo” , e a consciê ncia é o corpo sejprojetando no mundo) para
^ ^
Bourdieu, o corpo socialmente informado é ( “princípio gerador e unifica-

^
dor de todas as práticas e a consciência é uma forma de cálculo estratégico
fundido com um sistema de potencialidades objetivas. Eu devo elaborar
brevemente essas visões como estão sintetizadas no conceito de pré objetivo -
de Merleau-Ponty e no conceito de habitus de Bourdieu

A constitui çã o perceptual de objetos culturais


^
Merleau-Ponty apresenta sua posição como uma crídca ao empiris-
: mo.40 Ele examina a hipótese da constância, a qual afirma que, uma vez
originada a percepção em estímulos externos registrados por nosso aparato
sensó rio , há uma “correspondê ncia ponto a ponto e conexão constante en-

Enquanto o empirismo postula erroneamente um mundo de impressões e estímulos nele


mesmo , o erro antit é tico do intelectualismo postula um universo de pensamento
determinante, constitutivo. O intelectualismo (simbolizado por Descartes) confunde a
consci ência perceptual com as formas exatas da consciência científica. Ambas as posições
iniciam com o mundo objetivo ao invés de seguir de perto a percepção, e nenhuma delas
pode expressar, como escreveu Merleau-Ponty, “o modo peculiar pelo qual a consdènda
perceptual constitui seu objeto”. O intelectualismo é enfraquecido, diz ele, por sua falta de
“contingê ncia nas ocasiões do pensamento” , e sua exigê ncia de uma capacidade abstrata de
julgamento que transforma sensação em percepção (Merleau-Ponty, 1962, p. 26-51).

105
1
CORPO /SlGNIFlCADO / CURA

tnc o estímulo c a percepção elementar” (McrJeau-Ponty, 1962, p. 7). Mas


isto não è cxperiencialmcnte verdadeiro, ele argumenta; longe de ser cons -
^ ^
tante, percepção é indeterminada por natureza H á sempre mats do quc
chega aos olhos, c a percepção nunca pode ir além dos seus limites ou esgo
tar as possibilidades daquilo que percebe. Quando fazemos um esforço es-
pecial para ver duas linhas aparenremente desiguais numa ilusão de ótica
-

como realmente iguais, ou para ver quc o triâ ngulo n ão passa realmente de
três linhas rdacionadas por cerras propriedades geomé tricas, estamos fazen-
do uma abstração, n ão descobrindo o que realmente percebemos e depois
chamamos de triângulo ou ilusão. Aquilo que “realmente” percebemos é,
no primeiro caso, uma linha sendo mais longa do que outra, e no segundo,
o triângulo. Começar do ponto de vista objetivo (o triâ ngulo como objeto
geométrico e as linhas de comprimentos objetivamente paralelos) e retroce-
der analiticamente ao sujeito perceptivo n ão apreende precisamente a per-
cepção como um processo constitutivo.41
( Assim, MerJeau-Ponty quer que nosso ponto de partida seja a experi-
ência de perceber em toda a sua riqueza e indeterminação, pois, de fato, não
temos quaisquer objetos anteriores à percepçãô)Pelo contrário, “nossa per-
cepção termina nos objetos”, o que equivale a dizer que os objetos são um
produto secundário do pensamento reflexivo; no nível da percepção, não
existem ob/etos, nóssimplesmente estamos no mundo. Merleau-Ponty quer,
asse
^
então, pergunta ondeapercepção começ ela termina nos objetos) , ea
r ostac/nocorpõ Be quer(Tecuarjlo ( mundo objetivo/ e começar com o
^ ^
( corpo no mundajísso também deveria serpõssrvêTpara o estudo do sujeito

concebido n õstermos de HalloweU, como um objeto entre outros.

41
-
A referência de Merleau Pomy à desigualdade de linhas de uma ilusão de ótica é o bem
conhecido diagrama deMuller Lyer.Estudos transculturais sugerem que tanto a moldagem
-
da percepção geoméuica no ambiente comportamental (a hipó tese do mundo fruto da
carpintaria ) como fatores psicofisíológicos (variações na pigmentação retiniana) podem
ajudar a determinar se o diagrama é percebido enquanto ilusó rio (Cole; Scribner, 1974).
São essas mesmas diferenças que tornam importante que se comece com o sujeito perceptivo
ao invés do objeto analiticamente constituído no estudo da percepção como processo
/ psicocultural, especialmente quando mudamos da percepção visual para autopercepção.

106
A Corporeidacle como um Paradigma para a Antropologia

/J á que a distinção sujeito-objeto é um produto de an álise, e os própri-


os oBjètos são resultados finais da percepção mais do que dados da percep-
ção empírica, um conceito é necessá rio para nos permitir estudar o processo
corporificado de percepção do in ício ao fim ao invés do inverso. Com esse
propósito, Merleau-Ponty oferece o conceito do pré-objetivo .§ zu projeto é
“coincidir com o ato da percepção e romper com a atitude crítica” (Mer -
leau-Ponty, 1962, p. 238-239) que equivocadamente inicia com os obje-
tos.Çk fenomenologia é uma ci ê ncia descritiva dos princípios existenciais,
não de produtos culturais já cõ nstituTdosySe nossa percepçãcT“Fermina nos
objetos’’ fo õEjênvo de uma antropologia fenomenol ógica da percepção
^

^
capturar aquele momento de transcêndê nclãliÕ quãrapercepção começa, e,
em meio à arbitrariedãdèlf à mdeterminação, constitui e é constituída peia
^j ju
ilí

j cultura
^
Pode-se objetar que o conceito de pré-objetivo implica que a existên-
cia corporificada se encontra no exterior ou antes da cultura. Tal objeção
não estaria de acordo com a idéia de Merleau-Ponty (1962, p. 303, 311),
!

do corpo enquanto “um certo contexto em relação ao mundo” ou um “po- i


der geral de ocupar todos os ambientes que o mundo contém”. De fato, o
corpo está no mundo desde o início: !

[.. .] a consciê ncia se projeta num mundo físico e possui um corpo,


enquanto ele se projeta num mundo cultural e possui seus há bitos: pois
não pode ser consciência sem jogar com significações dadas, seja no pas -
sado absoluto da natureza ou no seu próprio passado pessoal, e porque
qualquer forma de experiê ncia vivida tende a uma certa generalidade, I
seja a de nossos há bitos ou aquela de nossas funções corporais. (Mer-
leau-Ponty, 1962, p. 137).
I;
É tão falso nos colocarmos como um objeto entre outros objetos na
sociedade quanto é colocar a sociedade dentro de nós mesmos como um i

objeto de pensamento, e em ambos os casos o erro consiste em tratar o


social como um objeto. Nós devemos retornar ao social com o qual esta-
mos em contato pelo mero fato de existir, e que carregamos inseparavel-
-
mente conosco antes de qualquer objetificação. (Merleau Ponty, 1962,
p. 362). í líl
,!

I
107

J
CORRO / SIGNIFICADO / CURA

Ao começar assim com o pré-objetivo, n ão estamos postulando urn


pré-cultural, mas um pr é abstrato. O conceito oferece á análise cultural o
-
processo humano em aberto de assumir e habitar o mundo cultural no qua]
nossa existência transcende, mas permanece enraizada nas situações de fà t0.
y f^\ i
¥ ^
Merleau-Ponty nos dã o exemplo de um rochedo, que já está ali parj
ser encontrado, mas não < percebldo)como um obstáculo até que esteja ali
^
' \ para ser transpostór)A constituição do objeto cultural depende assim da
intencionalidade (o que faria algu ém querer transpor o rochedo?) , mas tam.
bém do dado de nossa postura ereta (Straus, E., 1966), que torna a escalada
do rochedo um modo particular de negociá-lo (uma opção mesmo que Se
pudesse contomá-lo). A anedota antropológica contada por David Schnei -
der, do juiz de basebol que declara que os arremessos não rebatidos não
foram bolas perdidas pelo rebatedor nem bolas fora enquanto ele não api -
tar/3 nos fala de um ato de conferir significado cultural, mas ele pressupõe
algo sobre o fato cultural de que os arremessos já foram feitos e estão lá para
serem apitados. Ele pressupõe objetificação de um espaço particular do cor -
po entre os joelhos e os ombros (a zona da rebatida) em conjunção com um
modo particular de afastar os braços dos ombros (balançando o taco). É para
o processo dessa objetificação que Merleau-Ponty chama nossa atenção.

Habitus e o corpo socialmente informado

0 objetivo metodológico de Bourdieu para a teoria da prática é deli-


near uma terceira ordem de conhecimento para além da fenomenologia^ e
de uma ciência das condições objetivas de possibilidade da vida social. Para-

42
-
Hallow ell (1955) observa de forma semelhante que os recursos ambientais náosáo
objetificados na qualidade de “recursos” até serem reconhecidos como tal por um povo eatí
que haja uma tecnologia desenvolvida para a sua exploração.
4 > 0 primeiro árbitro dedara, “Eu apito a jogada como ela é”. O segundo replica, “ Eu apito

ela como eu a vejo”. 0 terceiro anuncia, “A jogada n ão é nada enquanto eu não apitar’.
44 Bourdieu rejeita a fenomenologia de Schutz e dos etnometodologistas de um lado ede

/ -
Sartre de outro, citando favoravelmente os antigos trabalhos de Merleau Ponty (1942)
. sobre comportamento.

m
£
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

Iclamentc ao objetivo dc Mcrlcau-Ponty de deslocar o estudo da percepção


dos objetos para o processo de objetificação, o propósito de Bourdieu é ir
alé m da análise do fato social como um opus operatum, para a an álise do
modus operandi da vida social. Sua estratégia é colapsar as dualidades de
-
corpo mente c signo-significação no conceito de habitus. Esse conceito foi
introduzido por Mauss em seu ensaio seminal sobre as técnicas do corpo,
para referir-se à soma total de usos culturalmente padronizados do corpo
numa sociedade. Para Mauss, foi um modo de organizar o que de outra
maneira seria uma miscelâ nea de comportamentos culturais padronizados,
merecendo apenas um parágrafo de elaboração. Ainda assim, Mauss anteci-
pou como um paradigma da corporeidade pode mediar dualidades funda-
mentais (mente-corpo, signo-significação, existência-ser)45 em sua declaração
de que o corpo é simultaneamente o objeto original sobre o qual o trabalho
da cultura se desenvolve e a ferramenta original com a qual aquele trabalho :
se realiza (Mauss, 1950a, p. 372). É, de uma vez, um objeto da técnica, um
meio técnico e a origem subjetiva da técnica.

^
Bourdieu (1977, p. 72) vai além dessa concepção de habitus como
uma coleção de práticas, definindo-o como um sistema de disposições du
ráveis, princípio inconsciente e coletivamente inculcado para a geração e a
-
estruturação de prá ticas e representações. Essa definição é promissora, pois
focaliza o conteúdo psicologicamente internalizado do ambiente compor-
tamental. Para os nossos propósitos, é importante que o habitus não gere
práticas assistemáticas ou aleatórias, porque se trata dcj
.
[ .J princípio gerador e unificador de todas as prá ticas, o sistema das
inseparáveis estruturas cognitiva e avaliativa que organizam a visão do
mundo de acordo com as estruturas objedvas de um determinado esta-
í do do mundo social: esse princípio nada mais é do que o corpo social-
mente informado, com seus gostos e desgostos, suas compulsões e
repulsões, com, numa palavra, todos os seus sentidos, isto é, não apenas
i

i
áí A distinção entre existência e ser é essencial ao pensamento de Merleau-Ponty e, em geral , h
à fenomenologia e à psicologia existencial. Em termos antropológicos, ela pode ser grosso íi
modo traduzida como a distinção entre ação intencional e cultura constituída.

109

J
CORPO / Si GNIFICADO / CURA

os tradicionais cinco sentidos - que nunca escapam da ação estruturante


dos determinismos sociais -, mas também o senso de necessidade c o
senso de dever, o senso de direção c o senso de realidade , o senso de
equil íbrio e o senso de beleza, o senso comum c o senso do sagrado, o
senso tá tico c o senso de responsabilidade, o senso para os negócios c o
senso de propriedade, o senso de humor e o senso do absurdo, o senso
moral c o senso prático, e assim por diante. ( Bourdieu, 1977, p. 124,
grifo do autor).

Bourdieu (1984, p. 99) sustenta essa fundamentação no corpo mes-


mo discutindo o “senso do gosto” como operador cultural em sua análise
social da estética, insistindo que ele é “inseparável do gosto no sentido da
capacidade de discernir os sabores de comidas que implica numa preferência
por algumas delas”.
O locus &o habitus de Bourdieu é a conjunção entre as condições obje-
tivas da vida e a totalidade das aspirações e das práticas completamente
com patíveis com tais condi ções./Condições objetivas não causam práticas,
tampouco práticas determinam condições objetivas
^
0 habitus c a mediação universalizante que torna a prá tica de um agente
individual, sem razão explícita ou propósito significativo, “sensata” e
“razoável ” apesar de tudo. Essa parte das prá ticas que permanece obscu -
ra aos olhos de seus próprios produtores é o aspecto pelo qual elas são !
objerivamente ajustadas a outras prá ticas e às estruturas cujo princípio
de produ ção é ele mesmo um produto. (Bourdieu, 1977, p. 79).

Em outras palavras, o habittisy enquanto mediação universalizante, se


investe de dupla função. Na sua relação com estruturas objetivas, é o princí-
pio gerador de prá ticas (Bourdieu, 1977, p. 77), enquanto na sua relação com
um repertório total de prá ticas sociais, é o princípio unificador ( Bourdieu,
1977, p. 83).^ Com esse conceito, Bourdieu oferece uma análise da prática

<( Náo acredito que a referência de Bourdieu a um princípio gerativo implique uma busca
por uma “gramá tica profunda das práticas”, como numa reminiscência da linguística de
Chomsky. Na medida em que o princípio gerativo e unificador de Bourdieu é o corpo

110
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

social enquanto necessidade transformada em virtude, e sua imagem da ativi-


dade humana é a agulha magnética de Leibniz que parece, de fato, apreciar
voltar-se em direção ao Norte (Bourdieu, 1977, p. 77; 1984, p. 175).
Nesta seção, eu mostrei que o paradigma da corporeidade engloba os
distintos interesses empíricos e propensões metodológicas dos dois teóricos
influentes . Encontramos, assim , o aparente paradoxo de posições compatí-
veis com o paradigma da corporeidade, mas articuladas nos discursos meto-
dologicamente incompatíveis da fenomenologia e do que poderíamos chamar
de “estruturalismo dialético. ”47 É natural , entretanto, que contradições emer-
jam entre as tentativas incipientes de forjar um paradigma. No restante
deste capí tulo, eu elaborarei um paradigma não-dualista da corporeidade
para o estudo da cultura. Os conceitos de pré-objetivo e habitiis guiarão a
análise no domí nio empírico da experiência e prática religiosas.

Imagético corporificado na cura ritual

As práticas de cura que descrevo são as do cristianismo carismático


praticadas na América do Norte contemporânea. Essa religião é essencial-
mente uma forma de pentecostalismo, que desde o final dos anos 1950

socialmente informado, ele deve ser considerado como dado num sentido existencial ao
invés de inato no sentido da instalação cognitiva. Bourdieu (1977, p. 10-30) inclui
explicitamente Chomsky em sua cr ítica da concepção objetivista da regra na teoria social e
lingu ística. A distinção crítica é que o habitus e suas disposições consumavas são não-
representacionais, ao contrário do modelo objetivista e de suas regras constitutivas. Ao explicar
prá ticas governadas por regras desconhecidas pelos agentes e, assim, fora de sua experiência,
ele evita a “falácia da regra que implicitamente coloca na consciê ncia dos agentes individuais
um conhecimento constru ído contra aquela experiência” (Bourdieu, 1977, p. 29).
*7 Sobre a relação entre Merleau-Ponty e o estruturalismo propriamente dito, veja Edie
(1971). Boon (1982, p. 281) oferece uma breve mas inspirada análise do paralelismo
entre as tentativas m ú tuas de Lévi-Strauss e Merleau- Ponty de superar a dualidade sujeito-
objeto promulgada por Sartre: “ Para Lévi-Strauss, totemismos institucionalizam relações
recíprocas objeto-objeto do ponto de vista do sistema de classificação totalizante ( langue) .
Para Merleau-Ponty, pronomes, arte, etc., institucionalizam relações recíprocas sujeito sujeito
-
(artistas e pronomes ‘veem’ objetos enquanto sujeitos) do ponto de visra da intersubjerividade.”

|i
111

i
-
k'
CoRTo / SiGNincADo / CURA
1

introduziu um complexo de prá ticas, incluindo a cura pela fé e o falar em


línguas, em denominações cristãs já estabelecidas como a metodista , a an-
glicana, e a católica romana. Historicamente, pode-se dizer que o movi-
mento originou-se na busca por estabilidade do período pós-Segunda Guerra
Mundial, acelerou e adquiriu adeptos mais jovens durante os dist ú rbios
sociais dos anos I 960, atingiu um apogeu de fervor apocalíptico e apelo
popular nos anos 1970 e acomodou-se num nicho socialmente conserva-
dor mas teologicamente entusiástico na ecologia religiosa norte-americana
dos anos 1980. Sua manifestação mais visível está nos “televangelistas” que
vão desde os Bakkers do PTL (Praise the Lord) Club ao Roman Catholic
Mother Angelical Menos conhecidos são os serviços de cura conduzidos
por leigos com “dons espirituais”, clérigos ou redes de comunidades intenci-
onais, congregações n ão-especificadas e pequenos grupos de oração sediados
em congregações eclesi ásticas. Os participantes variam desde as classes mé-
dias baixas até as profissionais, e com exceção dos membros mais jovens das
comunidades intencionais carismá ticas, a faixa básica de idade gira em tor-
no da casa dos 50. A informação que apresento nesta seção inclui dois exem-
plos de imagérico multissensorial49 em sessões de grupos de cura conduzidas
por evangelistas carismáticos famosos, e um de uma sessão privada de cura
conduzida numa comunidade carismá tica.
Demónios e auto-objetifí caçâo

A primeira sessão de cura é conduzida pelo reverendo Derek Prince,


uma figura de liderança na prá tica da Libertação, ou expulsão de espíritos
malignos. Em geral, o reverendo Prince reza nomeando espíritos malignos
de diversos tipos, que ele então manda sair de seus hospedeiros. Quando os

45
Roman Catholic MolhaAngelica: Freira Católica Romana Madre Angélica. Praise the Lord:
Louvemos ao Senhor (N. deT.).
45
Eu oito o termo “imagérico mental ” porque ele levanta a questão de nossas distinções
problemáricas entre corpo e mente, porque ele tende a implicar um foco no imagérico
«suai ao invés de na integração dos sentidos em processos de imagem (confira Ong, W.,
1967 sobre o “sensorium”), c porque ele desqualifica a necessidade de examinar a relação de
imagem eemoção.

112
1

A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

espíritos são expulsos das pessoas presentes na assembléia, eles produzem


uma manifestação física como sinal de sua partida. Vamos primeiramente
olhar para a natureza dos espíritos malignos no cristianismo carismá tico
contemporâneo, com a dupla finalidade de fornecer um fundo etnográfico
!
e examinar como, ao se constitu írem em objetos culturais, eles ilustram a í
'

importância do conceito de pré-objetivo em Merleau-Ponty.


Se nós ignorarmos as implicações metodológicas da afirmação de que
“nossa percepção termina nos objetos”, começaremos com o objeto já cons-
tituído, o espírito maligno cristão. Ele pode ser descrito como um ser inte-
ligente e não-material que é irremediavelmente maligno, está sob o dom ínio
de Satanás, e tem domicílio fixo no Inferno. Espíritos malignos interagem
com humanos ao atormentá-los, oprimi-los ou possuí-los. Dada essa defi-
nição cultural, poderia se esperar reconstruir uma demonologia semelhante
às demonologias abstratas e especulativas da Idade Média, e descobrir um
discurso de interioridade/exterioridade no qual demónios transpõem os li-
mites do corpo e são expelidos. De fato, referências a espíritos sendo “ex - I
pulsos” e a definição cultural de manifestações físicas como “sinais” dos
espíritos “saindo” dão sustentação a uma saliência experiencial de interiori-
dade/exterioridade, ainda que possa ser descritivamente tã o esclarecedor di-
zer que eles estão sofrendo um “ataque performá tico”. Contudo, esses são
todos momentos tardios no processo de objetificação cultural. As pessoas
não percebem um dem ónio dentro de si, elas sentem um pensamento, com-
portamento ou emoção especial fora de seu controle. É o curador, especia - !
lista em objetificação cultural, que tipicamente “discerne” se o problema do
suplicante é de origem demon íaca ou não, e que ao ser confrontado com
uma pessoa autodiagnosticada como “possu ída” tende, por outro lado, a
atribuir tais manifestações a “problemas emocionais”. I
Para ilustrar essa demonologia na prá tica, cito um relato editado de V

um informante que participou num serviço de cura conduzido pelo reve- !!


rendo Prince: r
E à medida que alguns [dos demó nios] saíam [de seus hospedeiros hu- 1
manos], alguns saíam com um rugido. Alguns sa íam com um arroto.
Alguns saíam com um tossido assombroso ou engasgo ou giro de pesco-
I! 6
ço para trás e para frente. Havia todo tipo de coisas estranhas e horríveis

113
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

[ .. .] Um bom n ú mero deles saiu com vómito. Já que existem mais de


150 tipos de espíritos que foram identificados, [...] talvez 20 deles sai -
rão com vómitos. Dez deles sairão sibilando. Dois deles sairão se retor-
cendo no chão como uma cobra . Cinco deles sairão girando os olhos
para 0 alto da cabeça. Todo espírito de feitiçaria [. ..] sai ali com um
barulho muito parecido com a gargalhada de uma hiena. Não importa-
va se era homem ou mulher, jovem ou velho, o que fosse [ . . . ] Eles todos
sa íram com a coisa id êntica.
Vou lhe contar a história do que aconteceu comigo [ . . .] Ele lidou com
grupos inteiros [de espíritos]. E ele chegou ao grupo de aberrações sexu-
ais. Em algum ponto do caminho, ele lida com o espírito da masturba-
ção [...] [Ele disse] “ Você sabia que isso era pecado [. . .] e mesmo assim
você fez. Você fez de propósito. Se você absorveu um espírito, agora ele
se torna compulsivo c você SENTE aquela compulsão. Se você é católico
ou luterano ou episcopal você pode ter confessado este pecado de tem-
pos cm tempos. Você luta e você não gosta e você odeia isso e você
renuncia a isso e isso ainda está com você. Todos estes são sinais, o pacote
inteiro. Você quase certamente está com um espírito. Qualquer um de
voccs que tem esse pacote cm particular e acha que gostaria de ser alivi-
ado do espírito, se Jevante. ”
Então nesse caso, eu levantei. E havia cerca de 15 ou 20 outras pessoas.
Eu aposto que muitos outros deviam ter, mas [risadinhas] em todo caso,
provavelmente uns 15 ou 20 de nós se levantaram [. . .] Ele disse, “Seu
espírito nojento da masturbação, eu estou assumindo o controle sobre
você em nome de Jesus e pelo poder do Seu precioso sangue, eu te ex-
pulso em Seu santo nome. ” E todos, suas mãos foram lá para trás. Está-
vamos de pé. Ele havia pedido ao grupo para ficar em pé e fizemos uma
oração de Ren úncia e Arrependimento. Então, eu estava de pé e pratica-
mente sem pensar em nada, eu não tinha idéia do que estava para acon-
tecer. As mãos se ergueram assim , os braços até esta altura , e as m ãos
foram além do que eu alcançaria por conta própria, bem para trás. Não
doeu. E havia um tipo de sensação de eletricidade, como um pequeno
choque elétrico.
Bem , ele não nos disse de antemão 0 que era de se esperar, mas 0 que
houve é que todos fizeram a mesma coisa . Agora eu não sei o que eles
sentiram . Mas eu sei 0 que eu senti . Alguma coisa estava acontecendo
aqui. Então numa cena altura, tudo passou e minhas mãos caíram .

114
A Corporeiclacle como um Paradigma para a Antropologia

A importante distinção para nossa discussão é entre demó nios como


objetos culturais e suas manifestações experienciais como auto-objetifica-
ções concretas nos participantes religiosos. Como objetos culturais, os de-
m ó nios são, nas palavras de Irving Hallowell (1955, p. 87),

n ã o mais fict ícios, num sentido psicológico, do que o conceito de self.


Conseqiicntementc [enquanto] objetos rcificados culturalmente no am-
biente comportamental [eles] podem ter funções que se mostrem direta-
mente relacionadas às necessidades, motivações e metas do sujeito.

O papel dos demónios no ambiente comportamental dos cristãos ca-


rismá ticos é de m ão dupla. Enquanto sistema de representações, a demono-
logia - que esse informante estima ter 150 entidades - é uma imagem
espelhada do r fculturalmente ideal, representando o espectro de seus atri-
^
butos negativos. Em termos de comportamento pragmá tico, eles são seres
inteligentes que podem ser encontrados na vida diária e podem afetar o
pensamento e o comportamento de uma pessoa.
Contra esse fimdo cultural, as manifestações descritas acima podem
;
ser entendidas como exemplos de processos corporificados da auto-objeti-
ficação. O elemento pré-objetivo desse processo repousa no fato de que
participantes, como o informante citado, experimentam essas manifesta-
ções como espontâneas e sem conteúdo pré-ordenado. As manifestações

são atos originais de comunicação que, entretanto, tem um n úmero limita-
do de formas comuns porque elas emergem de um habitus compartilhado.
Esse traço do pré-objetivo é resumido por Merleau-Ponty (1962, p. 166):

Anterior aos meios convencionais da expressão, os quais revelam meus


I
pensamentos para os outros apenas porque, tanto para mim como para
eles, os significados já são providos para cada signo, e, nesse sentido, não
dão lugar a qualquer comunicação genu ína, devemos [...] reconhecer
um processo primá rio de significação no qual a coisa expressada não
i|
i
•,
existe separadamente da expressão, e no qual os próprios signos indu-
zem sua significância externamente [...] Essa significance encarnada é o
fenômeno central do qual corpo e mente, signo e significance são mo- I
mentos abstratos.

I ,
115

! IJí
r;
CORPO /SIGNIFICADO / CURA

Eu sugeriria que a “coisa expressada” que “n ão existe separadamente da


expressão” nesse caso vão é o objeto cultural, o espírito maligno, pois o
discurso de espíritos é um exemplo do que Merleau-Ponty quer dizer por
“meio convencional de expressão.” O que é expressado é a transgressão oua
ultrapassagem de um limiar de tolerância definido pela intensidade, genera-
lização, duração ou frequência de aflições. Há excesso de um pensamento,
comportamento ou emoção particular. A autopercepção dessa transgressão
já pode ter acontecido e a auto-objetificação pode ter ocorrido pela adoção
do idioma demoníaco convencional. Contudo, o momento expressivo que
constitui essa forma de auto-objetifica ção como cura é a imagem corporifi-
cada que acompanha a expulsão do espírito. Essa imagem tem uma signifi-
cação m últipla: “Eu não tenho controle sobre isso - isso tem controle sobre
mim - eu estou sendo libertado”.
Essa interpretação desafia a descrição etnográfica comum de espíritos
malignos na linguagem de interioridade/exterioridade, enquanto transgres-
sores das fronteiras do corpo. Numa cura cristã carism á tica , a linguagem do
controIe/Jiberração n ão parece estar menos próxima da experi ê ncia. O cura -
dor frisa a “libertação” da sujeição ao espírito maligno sobre a “expulsão” do
espírito que invade c ocupa a pessoa. O porqu ê disso 6 compreensível qum-
do lembramos novamente que o pré-objetivo n ão é pré-cultural. O contro-
le (dos sentimentos, ações, pensamentos, curso de vida, sa ú de, ocupação,
relacionamentos de algu ém) é um tema difuso no contexto cultural norte-
americano desse sistema de cura| . £rawford (1984) , por exemplo, oferece
uma an álise ideológica da “sa ú de” como um símbolo que condensa metáfo-
ras de autocontrole e alívio de pressõesj/ Um grau substancial de consistência
cultural é evidente com a formulação no sistema de cura carismá tico de
problemas como a perda de controle para influência demoníaca, a cura como
libertaçã o do jugo dessa influ ência e a sa úde como entrega para a vontade de
Deus, cuja força ajuda a restaurar o autocontrole.
Cabe um breve aparte metodol ógico para enfatizar que a análise no
paradigma da corporeidade não lida diretamente com a transgressão das
fronteiras corporais como a descri ção da ação demoníaca. Tal descrição cons-
taria como sendo objetivista, no sentido que ela assume que o demónio já é
objetificado, já é um meio convencional de expressão. Trazer para um pri-
meiro plano a metáfora um ranto foucaultiana da .subjugação aponta pan

116
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

um estado pré-objetivo concretamente corporificado dos aflitos mais do


que à ação invasiva do objeto demon íaco expressa convencionalmente. A
metáfora da subjugação invoca simultaneamente tanto uma condição cor-
poral/ material quanto uma condição espiritual/ psicológica enfocada pela cura.
A an álise do controle e da libertação nos ajuda também a entender
alguns tó picos da indeterminação experiencial no trato com espíritos ma-
lignos. H á dois loci da percepção pré-objetiva de demónios enquanto emo- li
ção, pensamento ou comportamento que são indeterminados na prá tica.
Primeiro, é o limiar do controle no qual uma emoção como raiva se torna
o espírito maligno da Raiva , e a subsequente determinação do grau de aqui- Il
sição que o espírito tem sobre a vida de uma pessoa - em ordem de severi-
dade de assédio à opressão, à possessão. Enquanto os graus de controle são í
assim “objetivamente” categorizados, não há crité rios objetivos para a sua i;
determinação na prá tica, já que a prá tica opera no n ível da intersubjetivida- 1
!•
de pré-objetiva (empatia e intuição); curadores n ão “diagnosticam”, mas
“discernem”.
Segundo, é o limiar de generalização, onde o mal-estar do sofredor é
expresso em m ú ltiplas características retratadas como grupos de espíritos
relacionados. Novamente, embora esteja estabelecido na prá tica da cura que
os conjuntos de espíritos são hierarquicamente organizados em torno de !
I
um esp írito “administrador” ou “raiz” e que alguns esp íritos tendem a apare- ! <

cer conjuntamente, na cura com uma ú nica pessoa qualquer n úmero de


espí ritos pode emergir. Em princípio, a identificação de espíritos pode ser !!
uma excursão intermin ável por todo um dom ínio de possíveis nomes de
espíritos. Novamente, esse dom ínio é culturalmente predeterminado, e tanto 1
a descoberta espontâ nea de uma série de espíritos tipicamente relacionados
como a sua saliência experiencial empírica para o suplicante podem ser enten-
didas em termos do modo com que disposições são orquestradas no habitus.
Essa orquestração é também a base para a coordenaçã o aparentemente
espontânea de imagens cinestésicas culturalmente definidas como manifes-
tações de tipos distintos de espíritos malignos na sessão narrada acima: vo-
mitar, contorcer-se no chão, sibilar, rolar os olhos para o topo da cabeça.
;
Dado o fato etnográfico de que espíritos malignos saindo de uma pessoa
normalmente produzem uma manifestação física como um sinal de sua
partida, o qual podemos explicar em termos puramente culturais ou con-
í
ti
117
I: I
i
L
CORro / SlGNinCADO / CURA

vcncionais, como vamos explicar a associação regularizada de esp í ritos espe-


c/ficos com sinais específicos?
Duas instâncias são narradas com suficiente detalhe para comentá rio.
O fato de que o espírito do feitiço sai com a estridência de uma hiena deve
ser compreendido com respeito à defini ção cultural da bruxaria como uma
prática oculta conectada com Satanás, c, portanto, extremamente maligna.
O grito horripilante c um componente somá tico profundamente enraizado
na experiência c no simbolismo do mal na América do Norte — daí a cone-
xão aparentemenre natural entre o grito e o espírito . No âmbito dc um
grupo como o descrito pelo informante, fàz pouca diferença se o espírito é
identificado primeiro e então emerge com um grito, ou se o grito emerge e
subsequentemente c identificado como o sinal do espírito; em ambos os
casoseIeexemplifica “anecessidadearbitrária” (Bourdieu, 1977) do mal no
bé itus cristão carismático.
A experiência do narrador com o espírito da masturbação também se
presta a uma tal interpretação. Começamos com a definição cultural da
masturbação como um comportamento fortemente proscrito mas com-
pulsivo (portanto demon íaco). O gestual coletivo espontâneo dos braços
no ar pode ser entendido como um poderoso “não tocar” enfatizado pela
forte flexão para trás das mãos. O fato de que esta flexão “não dói”, embora
ela seja maior do que algu ém conseguiria realizar “naturalmente”, é consis-
tente com o conceito de libertação de um cativeiro em contraste com o de
punição pelo peado. Da mesma forma, a sensação do pequeno choque
clérrico é entendida n ão como um choque punitivo, mas como a corporei-
dade dc um poder espiritual. Não está em questão aqui se a maioria dos
homens estava imitando um ou dois outros, já que a impressão de uma
espontaneidade coletiva indica a imediata apreensão intuitiva do significado
implícito dos gestos por todos eles.

Imagem, emoção e síntese corporal

0 segundo evento de cura, descrito da minha própria observação, foi


conduzido no contexto de uma comunidade intencional carismá tica católi-
ca romana . A sessão foi conduzida por dois curadores evangelistas católicos
visitantes. Esses curadores tinham adotado recentemente o estilo atualmen-
te popular do reverendo John Wimber, que, em contraste com a ênfase do

118
1
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

reverendo Prince nos espíritos malignos, evoca a diversidade de “sinais e


milagres” naquilo que ele chama de “evangelismo poderoso”. Os sinais e
milagres são compreendidos como manifestações do poder divino destina-
das a promover a conversão dos descrentes e a ampliar a fé dos crentes.
Além da cura pela fé de males físicos, emocionais e demoníacos, eles inclu-
em uma diversidade de imagens multissensoriais, emoções e manifestações
som á ticas que indicam o fluxo do poder divino nos e entre os participantes.
Elementos comuns do repertório são o rápido tremular ou vibrar de mãos e
braços, e sensações somá ticas como leveza ou peso, poder ou amor fluindo
pelo corpo, calor e formigamento. Risos espontâneos ou lágrimas podem se !
espalhar contagiosamente através de ondas pela congregação. Muitos partici -
pantes “descansam no Espírito” e experimentam uma dissociação motora na
qual uma pessoa é arrebatada pelo poder do Espírito Santo e cai num semi-
desmaio, geralmente experienciado como um relaxante e revigorante mo-
mento na presença de Deus. Também é comum a “palavra de conhecimento”,
uma forma de revelação entendida como um dom divino de conhecimento
sobre pessoas ou situações não adquirido por qualquer canal de comunicação
humana, mas vivenciado como um pensamento ou imagem espontâneos.
O evento que observei foi uma conferência de cura de dois dias, para a
qual os líderes trouxeram sua pró pria equipe de ministros curadores. A con-
ferência consistia em períodos alternados de oração coletiva, can ção religio-
sa, oração de cura e palestras. Era enfatizado que a cura e a salvação são
“quase sin ónimas”, e que os participantes deveriam esperar que a cura ocor-
resse ao longo das sessões, não apenas durante os momentos distintos em
que os ministros de cura estavam rezando com as m ãos sobre eles. Os l íde-
res afirmaram que havia uma diferen ça entre um encontro destinado ao
culto e um para a experiência do poder divino. “Muitas coisas acontecerão”,
eles disseram, e os participantes deveriam “levantar as suas antenas espiritu- .

ais” para receber o poder. Durante os procedimentos, um deles suplicou,


'
H
“ Mais poder, Pai; libere mais poder.”30 !.
I
t
50 Este não é o lugar para discutir conceitos culturais de poder, mas pode ser dito que o
conceito aqui evocado tem muito mais em comum com noções etnologicamente familiares ||!
de poder espiritual tais como mana, orenda, ou manitou do que com as noções ijl
etnopsicológicas norte-americanas atuais de “empoderamento pessoal”.
li
!l:
:J
119

li
CORPO/ SlGNIFlCADO / CURA

Na primeira fase da oração, os líderes receberam inspiração através da


palavra de conhecimento de que Deus queria curar as pessoas com proble-
mas nas costas, respirató rios, artrite, cartilagem ou tendinite. Para tais pes-
soas era pedido que viessem à frente para a imposição de m ã os e as orações
da experiente equipe de oração. Na fase seguinte, todos eram convidados a
participar, alternando papéis como ministros de cura e pessoas recebendo
orações. Os líderes postularam que algumas pessoas na audiê ncia estavam
experimentando um peso no peito e na cabeça, uma sensação de calor nas
faces ou nos lá bios, ou um formigamento nas m ãos. Pediam a tais pessoas
que levantassem as palmas das mãos para cima numa postura de oração para
identificarem-se, e aqueles à sua volta eram solicitados a pôr as mãos sobre
elas em oração para fortalecer a manifestação do poder divino e espalhar o
poder entre eles. Participantes eram convidados a experimentar a palavra de
conhecimento eles mesmos, e eram emparelhados para rezar com quem
respondesse ao problema que eles identificaram.
Em contraste com o evento previamente narrado com o reverendo
Prince, o imagético multissensório neste caso é uma manifestação não de
libertação do mal, mas de seu inverso cultural, incorporação do poder divi-
no. A enumeração pelo líder do grupo dos acompanhamentos físicos do
poder divino que alguns participantes experimentariam (peso, calor, formi-
gamento) recapitula um repertório adquirido de sua própria experiência e
de relatos de participantes em eventos similares. Essas imagens somá ticas
estão sendo aqui inculcadas como techniques du corps que corporificarão
disposi ções características do ambiente religioso. Rir, chorar e cair também
podem ser objetificados como sagrados se a sua ocorrência espontânea for
tematizada como fora do comum, a “outridade”,51 que de acordo com Eli -
ade (1958) é o critério formal do sagrado.
Por outro lado, a enumeração inspirada do líder de indisposições físi -
cas é similar à identificação do reverendo Prince de espíritos malignos no
domínio psicológico de emoções negativas, pensamentos e comportamen -
tos. Num grupo de duzentos, inspirações que discriminam enfermidades

51 Otber-nessno original (N. deT.).

120
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

culturalmcnte comuns, ou enfermidades de sistemas orgânicos particulares,


têm chances estatísticas de obter respostaflsso é reforçado quando o conhe-
cimento culturalmente partilhado do corpo c suas indisposições é explora-
do convidando participantes a experimentarem inspirações similares, de
modo que a técnica opere comunalmente e não de forma unidirecional dos
l íderes aos participantes. O fato de que esse conhecimento não é puramente
conceituai é evidenciado pela apresentação dessas revelações numa variedade
de modos sensoriais:jparticipantes n ão apenas evocam uma listagem cogni-
tiva de doenças, como podem também visualizar uma pane do corpo, ou
experimentar a dor em seu próprio corpõ j Tampouco há um “mapeamen -
to” cognitivo, seja de uma lista de doenças ou de partes do corpo, para
aquilo que a gente “sente que está bem”. As inspirações emergem esponta-
neamente, na medida em que os participantes têm acesso imediato ao co-
i
nhecimento corporal inculcado como disposições culturalmente partilhadas.
De que seja esta uma forma estruturada de conhecimento, contudo, é
afirmada pela possibilidade de uma inspiração mal elaborada n ão dar certo.
.! !
:
1 !'-
Durante a sessão, cada participante que tinha uma inspiração devia ser pro- ! .
curado pelas pessoas que reconheciam seu próprio problema, e elas rezariam ;
juntas por tal problema. Os problemas enumerados eram específicos e loca-
lizados, suficientemente específicos para parecerem especiais, mas não espe-
cíficos o bastante para serem improváveis: a área do joelho esquerdo até a
I
ponta da coxa, dor no ouvido esquerdo, inflamação no ouvido direito,
surdez no ouvido direito, dores agudas na pane de baixo das costas, proble-
mas de alinhamento com os tornozelos, visão (especialmente olho direito),
inchaço próximo ao lado direito da garganta, artrite, fisgada no tend ão es-
querdo, hemorróidas ruins, gravidez impossibilitada por torção dos ovários,
I
perda de cabelo por causa de eczema no couro cabeludo, angústia pela perda
de uma criança, hérnia, fumo, acidez crónica do estômago, necessidade de
aconselhamento. Todos que articularam um problema pareciam ter recebi-
do respostas da audiência, com exceção de uma mulher meio obesa e com a 1

aparência de n ão estar se ajustando bem aos procedimentos coletivos. Ela


disse que alguém estava sofrendo de uma dor no pulm ão direito, e sua
inspiração demasiadamente específica caiu no vazio. Finalmente, uma jo-
vem aproximou-se dela para rezar, admitindo para mim, mais tarde, que ela

121

I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

n ão tinha “dor no pulmão”. Ela foi motivada, cm vez disso, por uma sensa-
ção de que a mulher cuja inspiração caiu no vazio era aquela identificada por
uma outra palavra de conhecimento como necessitada de aconselhamento.
Já que a mulher mal ajustada aparentemente não podia reconhecer tal ne -
cessidade, e já que a própria mulher mais jovem estava treinando para ser
conselheira, esta ú ltima tomou a iniciativa de se apresentar, prevenindo o
: desapontamento e oferecendo uma intera ção de apoio.
O jogo entre modalidades sensoriais, intera ção social e atribui ção de
significado é ilustrado pela experiência de uma outra pessoa que pude acom-
panhar durante a sessão. Ele tinha 30 anos de idade, era casado c trabalhava
como assistente da gerência de uma loja. O episódio ocorreu depois de um
período de oração de cura guiada durante o qual um dos temas do l íder era
a necessidade de se curar das experi ências de rejeição. O homem estava rece-
bendo a oração com imposição de m ãos de um amigo que o acompanhava
e de um membro da equipe de cura; a m ão livre deste ú ltimo se agitava
continuamcnre durante a reza. O jovem começou a rir, e continuou por
vários minutos até que um dos l íderes reagiu levando os três para o fundo
do saguão, onde a oração podia seguir com maior privacidade. Ele pergun -
-
tou ao jovem o que estava acontecendo, agachando se ao lado dele enquan -
to ele e o amigo sentavam e o membro da equipe de cura ficava de pé do
Jado deles. O homem disse que tinha respondido ao tema da rejei ção, e
depois ao da passividade, com a imagem de um riacho correndo sobre pe-
dras através de um muro quebrado. Ao surgir esta imagem ele sentiu alegria
e começou a rir. Ele declarou ao l íder que aquilo tinha sido um duplo al ívio
para ele, tanto pelo lado de n ão estar sendo aceito por outros como pelo de
que normalmente ele apenas ria por dentro, e de repente foi capaz de rir
abertamente. Seu amigo então relatou a imagem de uma m á quina de lavar
roupas em a ção, o que foi entendido como uma “confirma ção” divina de
que a experiência era de limpeza e libertação da emoçã o negativa. O l íder do
grupo de atendimento resumiu dizendo que Deus queria continuar esse
processo, mas avisando que o jovem seria “testado”. Esse período de acom -
panhamento durou menos de dez minutos.
Nesse breve exemplo encontramos a invocação de uma influência ne-
gativa culturalmente comum, levantada pelo jovem através de um imagéti-
co ao mesmo tempo visual e cinestésico. Em contraste com a compulsão

122
'I '
r

A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

objetiva evocada ao nomear o demónio cm nosso exemplo anterior, o l íder


nomeia um tema afetivo indeterminado. A significação religiosa não é que
todos os participantes respondem a esse tema do mesmo modo, mas que íJ í
“ Deus fala a cada indivíduo” de maneira a concordar com a experiência da m
pessoa. A indeterminação de um tema como a rejeição não é o mesmo que
a ambiguidade, no sentido da aplicabilidade a qualquer n ú mero de situa - !<
ções diversas. Nesse caso, a rejeição é indeterminada na medida em que a |l h!:
pessoa pode se sentir rejeitada por causa de um evento particular, pode estar si
temperamentalmente disposta a se sentir rejeitada, ou pode ser oprimida i .

por um espírito maligno de Rejei ção. A cura não muda o comportamento


de rejeição dos outros exceto na medida em que eles respondem diferente
mente ao comportamento da própria pessoa curada; daí a relevâ ncia da
- I
declaração do líder de que o homem será “testado” no futuro. Para o gerente
de loja, n ão são os casos de rejeição que são tratados, mas é o sentimento de !
ser rejeitado que é substitu ído pelo sentimento de j ú bilo.
A concretude da experiê ncia repousa na síntese corpó rea da visualiza-
ção (riacho) , afeto (alegria) e cinestesia (risadas). Essas expressões, esponta- í:
neamente coordenadas no habitiis norte-americano, n ão representam e
expressam uma experiê ncia interna, mas objetificam e constituem uma cura
corporificadaX) corpo socialmente informado lida com a emoção negativa
em imagens de atravessamento de uma fronteira (fluxo de água atravessan-
do um muro de pedra quebrado), al ívio de uma repressão (capacidade de rir
abertamente) , limpeza dos efeitos marcantes da emoção negativa (água se
agitando numa m áquina de lavar). Além disso, o que vemos é uma variante
particularmente masculina do habitus, respondendo à combinação emocio- 1

nal de rejeição e passividade. Isso exclui a experiê ncia t ípica para as mulheres
norte-americanas em contextos de devoção, do tipo: “ Eu n ão me sinto mais
I|
rejeitada porque me sinto amada por Deus.” Enquanto a variante feminina
tradicional substitui a rejeição pela aceitação (frequentemente passiva na
imagem somá tica de ser segurada e nutrida) , esse exemplo masculino a subs- :
titui por alegria (ativa na capacidade de rir altojj
Como no caso do gracejo, que como Bourdieu (1977, p. 79) assinala
muitas vezes surpreende tanto o seu autor quanto a audiência, as imagens
religiosas espontâ neas invocam “aquela parte das prá ticas que permanece
obscura aos olhos de seus pró prios produtores”, o reino da possibilidade

:
123

1
CORTO / SIGNI FICADO / CURA

oculra no qual as prá ticas são “objetivamente ajustadas a outras prá ticas e às
estruturas cujo princípio de produção é ele mesmo o produto”. Através
dessas imagens corporificadas, as disposições do habitus são manifestadas
em comportamento ritual. Por serem compartilhadas em um n ível abaixo
do consciente, elas são inevitável mente confundidas, e o princípio de sua
produ ção é identificado como Deus e n ão como o corpo socialmente infor-
mado. Esta conclusão deve tanto ser diferenciada da abstração fiincionalista
de Durkheim - do sagrado como auto-afirmação da moralidade social e da
solidariedade - quanto de uma aceitação encarnada de que “ Deus” habita o
A
U
/
corpo sodalmente informado. Em vez disso, ela sugere que o corpo vivido
é um princípio irredut ível, a base existencial da cultura e do sagrado /
^
0 entrelaçamento, a mimese e a intersubjetividade

0 terceiro exemplo é um balanço retrospectivo que obtive numa en-


trevista com um casal que liderava uma comunidade carismá tica de crentes,
mas que também rinha experiência no ministério da cura. Ele enfatiza tanto
a possibilidade como a natureza impositiva do imagé tico multissensório,
ou seja, imagens complexas em mais de uma modalidade sensorial ao mes-
mo tempo:

-
HL Uma vez eu estava orando sobre um homem [para curar]. Ele tinha
um tumor no cérebro e o doutor o mandou para casa e disse, “ Esqueça.
Acabou.” E eu tinha uma imagem muito forte do tumor encolhendo.
Quando ele saiu o tumor ainda estava lá, veja só, mas eu senti, quando
eu tinha minha m ão sobre a cabeça dele, eu senti como se fosse uma
bola na mão e ela foi ficando cada vez menor. E eu apenas, não só através
do sensorial, mas através de uma imagem na minha mente, eu senti que
estava encolhendo. Bem, eu acho que foi uma ou duas semanas mais
tarde, e [ele voltou e] disse que os médicos simplesmente não sabiam o
que havia acontecido. Sumiu. Não estava mais lá.
TC: Espere um pouco, você sentiu com a sua mão, encolhendo também.
HL: Não estava encolhendo na realidade, o tumor ainda estava ali [den -
tro da cabeça dele]. Mas eu o senti na minha m ão. Eu o senti na minha
mão encolhendo. Mas n ão foi na realidade. E eu tinha, e então eu tinha
uma imagem dele encolhendo, também, na minha mente.

124
1

A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

TC: Estava complctamcntc dentro da cabeça dele, ou vocc podia sentir


de fora ?
HL: É, ele tinha um calombo na cabeça. Eu senti de fato o calombo. E
cu pressenti muito fortemente que ele iria ser curado, e eu lembro de
partilhar isso com ele [i.e., falar com ele sobre isso]. E ele voltou e tinha
sumido, sumido completamente. Os m édicos ficaram perplexos.

^ qui está um curador lutando para desembaralhar o emaranhado de


percepções sensoriais (sentindo um calombo) do imagético nas modalida-
des táteis e visuais (uma imagem complexa do tumor encolhendo). Esse
exemplo realça a íntima conexão entre toque e visão de uma forma que
;
í 1

apela diretamente para a noção de corporeidade como a base existencial da


cultura e do sujeito. Certamente, como Walter Ong (1967, p. 1) escreve:
I
“os sentidos tá teis combinam com a visão para registrar profundidade e f
distância quando estas se apresentam no campo visual ”, mas o que eles
registram quando se apresentam no campo imagé tico? Michael Taussig (1992, 1 «
p. 144), elaborando as idéias de Walter Benjamin sobre dadaísmo, filme e ;I
arquitetura, também sugere que “tatilidade, constituindo um há bito, exerce
um impacto decisivo na recepção óptica”. Para ele, contudo, esta “óptica
!
Íí
|i
tátil” é estreitamente ligada à mimese, que “implica ambas a cópia e a cone-
xão substancial, ambas a replicação visual e a transferência material” (Taus-
sig, 1992, p. 145, grifo do autor) /
No caso do curador carismático a imagem mimé tica não é mera repre-
sentação, mas possui uma materialidade enraizada na experiência corporifi-
cada que é ao mesmo tempo constitutiva do poder divino e evidência de
eficácia. Essa materialidade é ainda mais instigante porque arregimenta em
I
performance ritual o entrelaçamento existencial do tátil e do visual descrito
por Merleau-Ponty (1968, p. 143):
:
1

Existe um círculo do tocado e o tocante, o tocado pega o tocante; há um j'


círculo do visível e o vidente, ao vidente não fàlta existência visível; há
até mesmo uma inscrição do tocante no visível, do vidente no tangível -
e o reverso; há finalmente uma propagação dessas mudanças para todos ?
os corpos do mesmo tipo e do mesmo Estilo que eu vejo e toco - e isso
por virtude da fissão fundamental ou segregação do senciente e do sen- I

125

m
w
COHro / SlGNIFlCADQ / CURA

sivc! quc, latcralmcntc, faz os ó rgãos do meu corpo sc comunicarem t


encontra transitividade de um corpo para outro.

j\ riqueza existencial capturada nessa passagem é de fato uma caracte-


rísnea da vida diária como existência corporificada. O exemplo da curt
ritual ê performaticamenrc exagerado, mas pode ser apenas através de exem-
plos assim táo vívidos quc as intuições sobre a corporeidade podem come-
çar a ser captadas e elaboradas. Tais exemplos podem levar a uma clarificação
náo apenas da constituição intersensorial (nesse caso em relação à experiên-
cia reveladora) da síntese corporal através da imaginação, mas a constituição
imagêtica daintersubjetividade (nesse caso entre curador e paciente) através
da mlmcscj
Corpo e fala: qual tipo de fala é falar em línguas?

Se é para corporeidade atingir o status de um paradigma, ela deveria


permitir a reinterpreração de informações e problemas já analisados por
outras pcrspecrivas; e se é para isso acontecer de forma impactante, deveria
ser possível até mesmo construir uma abordagem corporificada da lingua -
gem, tipicamente domínio da lingu ística, da semiótica e das análises textu-
ais. Com essa agenda, eu retorno ao problema da glossolalia (ou falar era
línguas) como fen ômeno expressivo e cultural. A glossolalia pentecostal
(veja May, 1956 sobre glossolalia em outras tradiçõ es) é uma forma de
elocução ritual caracterizada pela falta de um componente sem ântico. As-
sim, todas as sílabas são “sílabas sem sentido”. Contudo, os carism á ticos
contemporâneos que falam em línguas podem desenvolver distintos pa-
h drões sintá tico-fonológicos, e alguns podem ter mais de uma “linguagem
;
: de oração" glossolálica, usadas em diferentes situações e com diferentes in -
ten ções. Além disso, eles acreditam que é, por vezes, possível sua vocaliza -
ção incompreensível ser de fato uma linguagem natural (xenoglossia). A
despeito de sua indeterminação sem ântica e variabilidade sintá tico-fonoló -
gica , a glossolalia carrega um significado global como uma forma inspirada
de louvar a Deus, e também pode ser utilizada como uma prece proíunda-
mente vivenciada rogando por interven ção ou orientação divinas. Às vezes

126
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

cia chega a scr compreendida como a elocu ção de uma mensagem inspirada
ou profecia divina. Ela pode ser falada ou entoada de improviso, e pode ser
usada na devoção privada ou cm um ritual coletivo. É um princípio doutri-
n á rio que os poderes expressivos da glossolalia transcendem as inadequações
das l ínguas naturais (veja Csordas, 1997).

Semiose e corporeidade na constituição gestual do sujeito

Quando comecei a estudar linguagem ritual pela primeira vez, a glos-


solalia pcntecostal estava sendo examinada de três maneiras: como um fe-
n ô meno do transe ou estado alterado de consciência (Goodman, 1972),
como um mecanismo de vinculação a um movimento religioso periférico
(Gerlach e Hine, 1970), ou como um ato discursivo ritual numa comuni-
dade de fala religiosa (Samarin, 1972). Cada uma dessas posições nos ajuda
a compreender o fen ômeno, mas nenhuma delas exaure o significado cultu-
ral da glossolalia como uma forma de entoação que é e ao mesmo tempo
n ão é linguagem. A questão tornou-se para mim n ão qual é a função social
que a glossolalia desempenha no comprometimento religioso ou como ato
discursivo ritual, nem de quais estados mentais ela é acompanhada, mas o
que o uso ritual da glossolalia pode nos dizer sobre a linguagem, a cultura,
o sujeito e o sagrado.
No meu ponto de vista, os dois fatores-chave eram que a glossolalia
-
tomava essa forma inarticulada ou sem sentido e que seus porta vozes viam
a l íngua vernácula como inadequada para a comunicação com o divino. A
elocu ção glossolálica parece assim desafiar os cânones da expressividade e
inteligibilidade vernacular, pondo em questão desse modo as convenções de
verdade, lógica e autoridade. O fato de que a glossolalia tem esse potencial
para o desafio e a crítica está implícito nos esforços do pentecostalismo
contemporâ neo para construir o reino de Deus na terra. Isso fica ainda mais
claro no relato de Field , K. (1982) da criminalização de tais falas como
subversivas pelas autoridades coloniais britânicas após a Primeira Guerra
Mundial durante um movimento de Torre de Vigia na Zâmbia (então Ro-
désia do Norte). Na ausência da violência - de fato, de qualquer outra
forma de atuação pol ítica - por parte da população subjugada, as autorida-
des estavam extremamente temerosas e o falar em línguas tornou-se o foco

127

m!
CORtWSlGNinCADO / CURA

dc sua campanha de repressão. Por uma avaliação semió tica, portanto, a


52

glossolalia rompe o mundo dc significado humano, como uma cunha abrin -


do caminho à força pelo discurso e criando a possibilidade de mudan ça cultu-
ral criativa, dissolvendo algumas estruturas para focilitar a emergência de outras.
fo potencial criativo na glossolalia está no foto fenomenológico de que
ela c “inarticulada”, e portanto ameaçadora, apenas para não-participantes. 0
mais interessante sobre a glossolalia é ela ser mais do que uma dramatização
da perda pós-babélica de uma língua unificada. Pelo contrário, falar em lín-
guas é Q-perienciado como uma redenção da lucidez pré-babélica (Samarin,
.
1979) pob apesar da existência de uma glosa distintamente discernível, o
significado global da elocução glossolálica pode ser apreendido imediatamentej
A interpretação semió tica n ão é incorreta, mas luz adicional é lançada
sobre o potencial criativo da imediaticidade da glossolalia quando ela é vista
/
como um fonômeno da corporeidade. Merleau-Ponty (1962) vê na raiz da
fida um gesto verbal com significado imanente, ao contrário de uma noção
de fãJa como representação de pensamento Nessa visão, fala e pensamento
^
são coextensivos, e nós possuímos as palavras em termos de seu estilo arti-
culatório e acústico como um dos usos possíveis de nossos corpos. Fala não
apressa nem representa pensamento, já que pensamento é na sua maior
pane incipiente até ser pronunciado (ou escrito) (Em vez disso, a fala é um
aro ou gesro fon ético no qual se adota uma posição existencial no munda)
Seguir essa linha de raciocínio não significa que devamos tratar a glossolalia
apenas como um gesto, pois devemos admitir sua realidade fenomenológi-
ca enquanto linguagem para seus usuários. Eu argumentaria, com Merleau-
Ponry, que toda linguagem possui esse significado existencial ou gestual, e
que a glossolalia, por sua característica formal de eliminar o nível semântico
da estrutura linguística, realça precisamente a realidade existencial de corpos
inteligentes habitando um mundo repleto de significação. Ao atuar na ca-

51 A narrativa de Field pode ser comparada com a proibi ção dos tambores entre escravos
africanos nos Estados Unidos pré-Guerra Civil . Aqui havia uma situação onde a grande
ameaça não era explicitameme linguística, mas semanticamente era uma forma mais completa
de comunicação corporificada na medida em que verdadeiras mensagens podem ser enviadas
por “tambores falantes''. Da perspectiva dos donos de escravos o tamborilar era , ao mesmo
tempo, ininteligível e uma ameaça concreta à ordem social .

128
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

! ractcrística gcstual do fato lingu ístico, o falar cm l ínguas é uma declaração


ritual dc que os seus oradores moram em um mundo sagrado, já que o dom
da linguagem ritual é uma d ádiva de Deus. Arrancar a dimensão semântica
da glossolalia n ão provoca uma ausência, mas antes o arredamento de uma
cortina discursiva para revelar os fundamentos da linguagem na vida natu -
ral, enquanto ato corporal. A glossolalia revela a linguagem como encarna-
da, e esse fato existencial é homólogo ao significado religioso do Mundo
feito Carne, da unidade do humano e do divino.
A experiência de glossolalistas contemporâneos dá apoio a essa posi-
ção. Uma prática carismá tica comum é falar em línguas para se abrir à orien-
tação divina. As inspirações tomam freqiientemente a forma de imagens,
mas també m incluem verbalizações plenamente formadas que parecem
emergir espontaneamente. Aqui eu sugeriria que, da mesma forma que a
fala vernacular facilita e é a própria corporificaçã o do pensamento verbal, a
glossolalia facilita e é a corporificação do pensamento não-verbal. A fala
vernacular é “colocar em palavras”; a fala glossolálica é “colocar em ima -
gens”. Na glossolalia, a experiência física da fala ( parole) oferece um contra-
ponto à experiência intelectual da linguagem { langue ) . Eu não diria que
i
corpo e mente se fundem na elocução glossolálica, mas que a elocução se dá
num momento fenomenologicamente anterior à distinção entre corpo e
mente, uma distinção que é parcialmente contingente no poder da lingua-
I gem natural de constituir objetos. Os processos pré-objetivos do emer- i

gem, e o que é percebido inclui atributos incipientes do self, dos outros, e


também situações e o que a psicanálise chamaria de conte údos do inconsci-
ri
ente. Os resultados não se mantêm incipientes, contudo, mas são tipica- i
mente apropriados na linguagem discursiva. O fato de os carismá ticos
geralmente oscilarem entre a glossolalia e o vernáculo - e de algumas das
inspirações aparentemente espontâneas emergirem em forma verbal - suge-
re que falar em línguas serve ao processo cultural de auto-objetificação e não é
simplesmente um estado onírico de consciência meditativamente esvaziada.53
jij
53 A linguagem cultural da auto-objetificação é aqui prefer ível à linguagem psicanalítica de
“regressão a serviço do ego” (Kris, 1952) , porque a última está menos em sintonia com o
tipo de ego - nesse caso, constituído em termos religiosos, é o que esrá em questão.
-
129
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

tica, que baseamos na falta de um componente semâ ntico da glossolalia e


no seu consequente e claro desafio aos câ nones da inteligibilidade. Parece
que a glossolalia oferece n ão apenas uma crítica da linguagem, mas uma
asserção positiva sobre a expressividade, sendo sua força crítica realçada pela
força moral de sua reivindicação ser pura comunicação, incapaz de enunciar
quaisquer “palavras erradas”.
O aspecto totalizante da glossolalia n ão impede a possibilidade acima
observada dos glossolalistas terem mais de uma configuração foné tica sintá-
tica ou glosa , usadas em diferentes situações e comportando diferentes va-
l ê ncias expressivas e emocionais. Podemos perceber isso como uma
contradiçã o, ou como um dos frutos da indeterminação e do “gênio para
ambiguidade”. Contudo, a multiplicidade de línguas reverbera com a su -
gestão de Merleau- Ponty de que a forma verbal pode não ser tão arbitrária
quanto a teoria lingu ística a teria considerado. Ele sugere que as estruturas
fon é ticas dc vá rias l ínguas constituem “vários modos para o corpo humano
-
cantar as gl ó rias do mundo e em último recurso vivê-las” (Merleau Ponty,
1962, p. 187). Da perspectiva da corporeidade, portanto, é compreensível
que a glossolalia adapte seus contornos fon éticos aos contornos afetivos de
diferentes situações; e numa validação inesperada da metá fora de Merleau-
Ponty, eu noto outra vez que a glossolalia pentecostal é consistentemente
tematizada como oração de glorificação, e que é freq úentemente entoada
ou salmodiada com linhas melódicas e harmonias improvisadas.
A performance musical de l ínguas no ritual carismá tico sugere que sua
estrutura temporal pode ser mais próxima da m úsica do que da linguagem,
e de fato foi tecida uma analogia entre ela e o scat singing no jazz. A principal
diferença é que tal scat singing é uma forma de m úsica instrumental na qual
a voz é o instrumento, enquanto a glossolalia insiste em ser um discurso
cantado. Mesmo quando improvisada livremente, faltam-lhe os contornos
temporais e a resolução da forma musical. Por carecer da linearidade da
elocução semântica ou musical, mas també m por destacar o significado
gestual da linguagem como um puro ato de expressão, a glossolalia permite
a existência da linguagem fora do tempo. Para quem fala em línguas, a
temporalidade se torna eternidade, pois n ão há progressão lógica, mas tam- li
bém porque cada momento é um começo existencial.
i'

131 |
l|
J
1
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

Linguagem , expressão emocional e gestual são dc um mesmo conjun-


to como superposi ções dc um mundo humano num mundo natural ou
biológico. Por causa dc um "gênio para a ambiguidade que pode servir para
.
definir o homem [.. ]. O comportamento cria significados que são trans-
cendentes em relação ao aparato anatômico, e ainda assim imanentes à con-
duta como tal, já que se comunica e é compreendido. ” (Merleau-Ponty,
1962, p. 189). Assim , um sorriso para os americanos e para os japoneses se
baseia no mesmo aparato anatô mico, mas o transcende ao ser apropriado
ou tematizado num caso como amizade e noutro como raiva (Ekman,
1982). Na linguagem , também, essa transcendência é um engajamento es-
pontâ neo com outros e um locus de criatividade cultural, pois a “fala é o
transbordar de nossa existência sobre o ente natural ” (Merleau-Ponty, 1962,
p. 197), vale dizer, de nossa existência enquanto pessoas para al ém de meros
seres como objetos ou coisas. i

Dessas duas maneiras (engajamento espontâneo e criatividade cultu-


ral), a ausência do componente sem ântico na glossolalia novamente revela o
significado gestual da linguagem, de modo que o sagrado torna-se concreto
na experiência corporificada. Com referência ao engajamento humano, e
cm comparação com o paciente com lesão no cérebro que nunca sente a
necessidade de falar ou para quem a experiê ncia nunca sugere um questio-
namento ou convida ao improviso, Merleau-Ponty (1962, p. 196) cita
Goldstein: “No momento em que o homem usa a linguagem para estabe-
lecer uma relação viva com ele próprio ou com seus semelhantes, a lingua-
gem deixa de ser um instrumento, deixa de ser um meio; passa a ser uma
manifestação, uma revelação da natureza íntima e do vínculo psíquico que
nos une ao mundo e aos nossos.” Mas este elemento de communitas na
elocução linguística é eclipsado pelo fato de que, uma vez destroçado o
silêncio primordial por um aro de expressão, um mundo lingu ístico e cul-
tural é constituído. A fala se desenvolve e irrompe em linguagens constitu-
ídas, a palavra cm curso se torna a palavra já dita , e a transcend ência ocorre
somente em atos de autêntica expressã o como os de escritores, artistas e
filósofos. Qual forma melhor haveria de maximizar o elemento gestual de
communitas, e que melhor forma de prevenir a petrificação de parole em
langue do que falar em línguas, sempre um puro ato de expressão e nunca
sujeito à codificação. Isso nos leva muito al ém do escopo da análise semió-

130
1
i -
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
"

i I li
tica, que baseamos na falta de um componente semântico da glossolalia e
no seu consequente c claro desafio aos câ nones da inteligibilidade. Parece
que a glossolalia oferece n ão apenas uma crítica da linguagem, mas uma ; '
l
asserção positiva sobre a expressividade, sendo sua força crítica realçada pela
força moral de sua reivindicação ser pura comunicação, incapaz de enunciar
quaisquer “palavras erradas”.
O aspecto totalizante da glossolalia n ão impede a possibilidade acima
observada dos glossolalistas terem mais de uma configuração fonética sintá-
tica ou glosa, usadas em diferentes situações e comportando diferentes va- !
lências expressivas e emocionais. Podemos perceber isso como uma t:
contradição, ou como um dos frutos da indeterminação e do “gênio para
ambiguidade”. Contudo, a multiplicidade de l ínguas reverbera com a su - !
-
gestão de Merleau Ponty de que a forma verbal pode não ser tão arbitrária :
quanto a teoria lingu ística a teria considerado. Ele sugere que as estruturas
fonéticas de várias línguas constituem “vários modos para o corpo humano 1:
cantar as gló rias do mundo e em último recurso vivê-las” (Merleau-Ponty,
1962, p. 187). Da perspectiva da corporeidade, portanto, é compreensível
que a glossolalia adapte seus contornos fon éticos aos contornos afetivos de
diferentes situações; e numa validação inesperada da metáfora de Merleau-
Ponty, eu noto outra vez que a glossolalia pentecostal é consistentemente
tematizada como oração de glorificação, e que é frequentemente entoada
ou salmodiada com linhas melódicas e harmonias improvisadas. I.

A performance musical de l ínguas no ritual carismá tico sugere que sua


estrutura temporal pode ser mais próxima da m úsica do que da linguagem, I
e de fato foi tecida uma analogia entre ela e o scat singing no jazz. A principal '1
diferen ça é que tal scat singing é uma forma de m úsica instrumental na qual •i
a voz é o instrumento, enquanto a glossolalia insiste em ser um discurso i
cantado. Mesmo quando improvisada livremente, faltam-lhe os contornos
temporais e a resolução da forma musical. Por carecer da linearidade da :
elocução semântica ou musical , mas també m por destacar o significado
gestual da linguagem como um puro ato de expressão, a glossolalia permite
a existência da linguagem fora do tempo. Para quem fala em l ínguas, a !
temporalidade se torna eternidade, pois n ão h á progressão lógica, mas tam- !
bém porque cada momento é um começo existencial.

131
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

Linguagem corporificada e prática ritual

Se a corporcidadc realmente nos ajuda a compreender uma prá tica


particular, ela deveria também nos ajudar a compreender como as práticas
se relacionam entre si - essa é a contribuição do conceito de habitus dc
Bourdieu. “Repousar no Espírito” é uma prá tica carism á tica que em um
primeiro momento parece bem diferente de falar em l ínguas como experi-
ência religiosa. Nessa technique du corps, uma pessoa é dominada pelo po-
der do Espírito Santo e cai num estado de dissociação motora, embora
mantendo certa noção dos arredores e subsequente memória da experiência.
Esta é tipicamente caracterizada como pacífica, relaxante, rejuvenescedora,
curadora e imbuída de um senso da presença divina. Entre os carismá ticos
católicos romanos,54 essa prá tica gerou muito mais controvérsia do que a de
falar em línguas. A principal questão é a “autenticidade” da experiência. 0
fato de que esse problema nunca emergiu com a glossolalia pode ser enten-
dido em termos de diferentes usos do corpo nas duas práticas.
Em suma, a glossolalia n ão pode ser inautêntica, na medida em que é
acompanhada por uma intenção de orar. Já repousar no Espírito não pode
ser intencional, pois a experiência ocorre, por definição, espontaneamente.
Para ser mais exato, uma pessoa que começa pela primeira vez a falar em
línguas “entrega-se ao dom”, ou seja, passivamente permite que ele se mani-
feste através de elocu ção mais ou menos espontânea. Ao mesmo tempo,
-
diz se que o neófito deve “retirar-se na fé”, ativamente proferindo quaisquer
sílabas sem sentido que ele possa formular. A combinação de usos ativos e
passivos do corpo em uma prá tica parece ser o operador concreto que per-
mite a comunhão experiencial do humano e do divino em um corpo falan-
te. 0 status ritual de repousar no Espírito é diferente, enfatizando a
passividade subjetiva de “repousar” e a passividade objetiva de ser “domina-
do”. 0 termo protestante para esta prática, “Sacrificar no Espírito”, enfatiza
ainda mais fortemente o poder externo sobrepujando um receptor passivo
ou mais fraco. Repousar no espírito não envolve ato da vontade assim como
não há um ato propositado da fala - a prá tica é muda e também passiva. Há

>1 Porque os sistemas rituais de diferentes ramos do cristianismo carism á tico variam de algum
modo, a discussão nesta sessão se restringe à Renovação Carismá tica Católica Romana.

132
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

assim a possibilidade de “inautenticidade” se uma pessoa escolhe cair, ou cai


cm conformidade com aqueles ao seu redor.
Essa interpretação oferece um entendimento corporificado da relação
entre vida social e ritual no movimento carism á tico católico romano ao
longo de seus 20 anos de histó ria. A introdução do repouso no espírito veio
bem depois da fala em línguas, e correspondeu a uma transformação social
do movimento, de uma autopercebida vanguarda da renovação ativa no
final dos anos I 960 para uma fonte de refugio passivo, um movimento
conservador entre outros na Igreja Católica Romana do fim dos anos 1980.
Em conjunção com o clima sociopolítico mudado através dessas décadas
nos Estados Unidos, a base demográfica do movimento mudou para um
grupo mais velho e mais conservador, predominantemente na faixa dos il íí
cinquenta, e também para um grupo que inclui mais trabalhadores e gente
de classe média-baixa. Assim, a relação entre falar em línguas e repousar no

111f
Espírito representa a corporeidade na prática ritual de diferenças no habitus
geracional e de classe.
.
A perspectiva da corporeidade também pode nos ajudar a entender a
relação entre oração glossolálica e uma segunda forma de linguagem ritual
carismá tica, a profecia. A profecia inclui um componente semântico do
tipo mais sagrado, pois a elocução profética é compreendida como uma
mensagem direta de Deus. O falante não é inteiramente passivo, já que deve
“discernir” quando, onde e se deve proferir as palavras inspiradas, mas a
elocução é invariavelmente na primeira pessoa, tendo Deus como falante
ostensivo. A profecia carismática raramente prediz o futuro, mas em vez í
Iíi
disso estabelece ritualmente um estado de coisas no mundo (por exemplo,
“Vocês são o meu povo, eu estou fazendo um grande trabalho com vocês,
sacrifiquem suas vidas por mim”). A natureza gestual da elocução profé tica
é evidente no seu conteúdo, quase como uma forma verbal de apontar com
o dedo. Esse significado gestual é concretizado na prá tica por um vínculo
direto com a glossolalia, no qual a profecia pode às vezes ser expressa pri-
meiro em línguas, e subseq úentemente “ interpretada” numa elocu ção ver -
nacular idêntica a qualquer outra profecia. A diferença entre oração e profecia
em línguas é inteiramente baseada no tom de voz, volume e estridência.
Assim, por meio do corpo, a relação entre glossolalia como oração e como
í
profecia é estabelecida n ão como relação atividade/ passividade, mas como 1

133
!
í l íi!
I
!
i y
V

ÇoRTO / SlGNinCAPO / CURA

relação entre intimidade (oração) e autoridade (profecia) na relação entre


Deus e humanos.
Visto que essa relação entre oração glossol álica e profecia vernacular é
baseada na experiência corporificada de intimidade e autoridade, n ós pode-
mos entender mais um paralelo entre as duas formas na prá tica ritual. Des-
crevi anreriormenre o significado gestual da glossolalia como uma celebração
ritual do modo indeterminado e aberto pelo qual a linguagem , o gesto e a
emoção assumem uma postura existencial no mundo. Na prá tica, a oração
glossolálica enquanto intimidade corporificada é improvisação livre para
alguns indivíduos, mas para outros é a repetição redundante de uma frase
limitada ou uma série de sílabas, muito ao modo de um mantra. Assim, a
pratica segue um continuum entre indeterminação e redundância. A profe-
ria como autoridade corporificada segue um continuum inverso entre deter-
minação e redundância, pois na prá tica ela vai da única e criativa elaboração
de metáfora com consequ ências retóricas explícitas para o humor e a motiva-
ção, aré a reprodução altamente redundante de significados básicos através de
simples exortações proféticas, a mais simples forma de apontar verbalmente.
Em conjunção com o modo pelo qual a atividade e a passividade ritu-
aisforam corporificadas na vida social desses cristãos carismá ticos, um mo-
vimento da intimidade à autoridade pode ser visto no desenvolvimento das
“comunidades intencionais” carism á ticas. Essas comunidades intencionais
culrivaram a mentalidade de vanguarda dos primeiros dias do movimento
em larga medida através da ênfase na profecia enquanto palavra orientadora
e imposiriva de Deus. A crescente dependência da profecia e a mensagem
cada vez mais radical anunciada levou a uma cisã o entre duas importantes
redes de comunidades intencionais, a uma autoconcepção dessas comuni-
dades como um movimento distinto da Renovação Carismá tica Católica
como um todo, e finalmente a uma tensão protocism á tica entre as comuni-
dades e a hierarquia católica. Esta última alcan çou certa visibilidade pú blica
numa controvérsia recente sobre a obediência de uma comunidade à autori-
dade profética de outra, em oposi ção à autoridade eclesiástica do bispo lo-
cal. 0 caso resultou em Jitígio da comunidade intencional no Vaticano, e
narresignação do bispo.
/Da perspectiva da corporeidade, então, a glossolalia afirma a unidadea
de corpo e mente, estabelece um mundo humano partilhado e expressa

134
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

transcendê ncia - como toda linguagem fazf O pensamento não é indepen-


dente da elocu ção, o mundo humano é constitu ído de um amálgama de
! vozes corporificadas, e toda enunciação é uma enunciação iniciá tica, um
começo transcendente. Ainda assim, a glossolalia faz isso de forma radical,
já que o significado gcstual da linguagem predomina. Desde a perspectiva
; da corporeidade, a indeterminação da glossolalia n ão é apenas sem ântica.
Num nível mais fundamental, a indeterminação glossolálica subsiste na sua
i
capacidade de participar em modos de pura comunicação e crítica absoluta,
intimidade e autoridade, atividade e passividade, privado e coletivo, uma
iI;
linguagem unitária pré-babeliana e uma multiplicidade de línguas situacio-
nalmente delimitadas.55 Glossolalistas experimentados não constroem suas
I
elocuções como balbucio infantil, embora o tema religioso da simplicidade
de criança seja algumas vezes invocado para descrever uma primeira fala sem
sentido e embaraçada. Em vez disso, eles se vêem como maduros usu á rios
de um dom espiritual, cujo propósito é intensificar seu relacionamento
com o divino.
II
! l í!

Dualidades colapsadas: explana ções objetivistas da experi ê ncia


religiosa
'

l í i!
Na medida em que o argumento acima delineado logra vincular ou
integrar domínios de percepção, prática e experiência religiosa, eu diria que
um paradigma da corporeidade tem, de fato, implicações paradigm á ticas. I !
Nas duas seções de conclusão vou discutir algumas dessas implicações. Ten-
do me concentrado no domínio da experiência religiosa, eu me voltarei

55 Esse nível de indeterminação tornou a glossolalia um símbolo-chave na ficção pós-moderna


de Pynchon , que não apenas evoca constantemente Pentecostes e falar em l ínguas, mas
impregna suas páginas com uma multidão de linguagens e pseudo- linguagens. Para
Pynchon , “ Pentecostes é uma versão do estado de entropia que toma o que há , e o celebra.
Pentecostes é entropia com valor agregado - o valor da comunicação” ( Lhamon , 1976, p. I ; í;
70) . Eu não usei Pentecostes como imagem de um mundo entropicamente pós- moderno
no qual tudo se refere a todo o restante, mas argumentaria que o princípio de indeterminação I
essencial à corporeidade torna tal mundo poss ível.

135

m
Couro / SIGNIFICADO / CURA

primeiramcnre à crítica das explanações fundadas na dicotomia objetivista


de corpo-mente c oferecerei uma alternativa fenomenològica.
As prá ticas rituais sã o ffequentemente explicadas cm termos de suges-
tão psicol ógica ou comportamento aprendido no lado mental e de meca-
nismos psicol ógicos de transe ou catarse no lado físico. A sugestão c a
aprendizagem são inadequadas para dar conta do fenômeno acima discuti-
do. Na situação de grupo, o "poder de sugestão” n ão nos leva além da invo-
cação do curador para que “libere mais energia, Senhor”. Ele explica a
configuração de humor e tom, mas n ão a estrutura e a eficácia das prá ticas
rituais corporificadas, e nem o seu cará ter de aparente espontaneidade. A
aprendizagem tampouco pode explicar por que a glossolalia tem um lugar
especial no sistema ritual (por que glossolalia e n ão alguma outra prá tica?).
A aprendizagem pode começar a explicar sua transmissão em resposta a
sugestões, e seu significado teológico culturalmente consistente, mas n ão
como cia pode ser percebida enquanto poder na prática ritual.
Da mesma forma, explanações fisiológicas em termos de transe e esta-
dos alterados de consciência, ou catarse e descargas nervosas-emocionais,
não nos levam muito longe a n ão ser que queiramos aceitar transe e catarse
como fins neles mesmos em vez de como modus operandi para o trabalho
da cultura. Por exemplo, a mais avançada teoria da catarse, a de Schefif (1979),
define o riso catárrico como a expressão de embaraço. Ela não pode ir além
dessa formulação objetivista para explicar como tal risada é tematizada, ou
sistematicamente confundida, como a “alegria” no exemplo do gerente de
loja analisado anteriormente, ou como a “troça” em outras instâncias nas
quais um dem ónio “recusa levar a sério” as tentativas dos piedosos para
livrar um dos fiéis de suas influências.
Pane da inadequação dessas explanações é que elas são frequentemente
derivadas de pesquisas em situações experimentais, e pesquisas focadas em
eventos concretos que não procuram transcender esses eventos. Essas aborda-
gens panilham da precariedade descrita por Bourdieu (1977, p. 81-82) como

[...] a ilusão ocasionalista que consiste em relacionar prá ticas direta-


mente às propriedades inscritas na situação [...] a verdade da interaçã o
nunca é inteiramente contida na própria interação. Isso é o que a psico -
logia social e o interacionismo ou a etnometodologia esquecem quando,
reduzindo a estrutura objetiva da relação entre os indivíduos reunidos à

136
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

estrutura conjuntural da sua interação em uma situação e grupo parti-


culares, eles buscam explicar tudo o que ocorre numa interação experi-
mental ou observada cm termos das caracteristicas experimentaimente
controladas da situa ção, tais como as posições espaciais relativas dos par-
ticipantes ou a natureza dos canais utilizados.

Isso é verdade em relação às explanações psicológicas e fisiológicas aci-


ma delineadas. As primeiras assumem um tipo de influência interpessoal
imediata, c as ú ltimas, que a interação rimai opera como um mecanismo de
gatilho, bem como os fenômenos da experi ê ncia religiosa são resultados de
um padrão de estímulo-resposta que opera inteiramente no âmbito do evento
ritual circunscrito.
yfem contraste com essas posições, colapsar a dualidade de mente e cor-
po traz uma fenomenologia da percepção e autopercepção que pode colocar
a pergunta de o que é religioso sobre a experiência religiosa sem incorrer nas
falácias tanto do empirismo quanto do intelectualismo.56 Para explicar essa
abordagem devo voltar à minha conclusão anterior de que certos fen ôme-
nos pré-objetivos são confundidos como originados em Deus ao invés de
no corpo socialmente informado.57 Eu discordaria de Durkheim, que iden-
tifica esta confusão, mas adota uma definição fimcionalista do sagrado como
a sociedade se mistificando e se adorando e, assim, estabelecendo a morali-
dade e a solidariedade social. Este foi um dos argumentos fundamentais
pelo qual ele estabeleceu o social como uma categoria suigeneris, mas acre-
dito que ao fazê-lo ele equivocadamente também aboliu o sagrado como
uma categoria sui generis para a teoria antropológica /
/0 argumento de Durkheim (1965) é de que a sociedade cria o sagrado
como algo que parece radicalmente diverso e externo ao indivíduo, e, no
i' iji

JtVeja nota 40 sobre a cr í tica paralela de Merleau-Ponty do empirismo e intelectualismo.


Para uma cr ítica contemporânea da linguagem empirisra na ciência médica , veja Good e
Delvecchio -Good ( 1981 ) .
” Um exemplo adicional é fornecido por Fernandez ( 1990) , que nota que a experiência
corporal induzida por drogas entre participantes fang na religião bwiri é confundida
exatamente com o seu contrário , um estado de descorporeidade normat ízado como uma
aproximaçã da descorporeidade serena e purificada dos ancestrais.
o

13 '

jd
1

CORTO / SIGNIFICADO / CURA

dessa alteridade, estabelece uma autoridade moral


mistério c na enormidade
ência humana da alteridade à categoria do
absoluta Ao restringir a experi
/
^ *fal 7 contudo, Durkheim
Gerações subsequentes o
cometeu um grande erro de reducionismo.
seguiram nesse reducionismo sociológico, obstru-
indo em grande medida uma, Geertzda( religião autenticamente fenomeno-
lógica e psicocultural.
Assim
teoria
1973) pode postular uma definição
simbólicos aderem à noção de que ela é um
de religião - c antropólogos
sistema de símbolos articulado
tropólogo mais psicol
,
_ num sistema de relações sociais. Para o an-
ógico, é aqnrte seguinte da definição de Geertz que
merecc rioridade, a de que a/religião atua) no estabelecimento d humòrã)
^ ^
ejmorivaçõès}iuradouros. Postulo que o poder teórico para alcançar esses
humõSemotivaçóespode ser encontrado entre fenomenologistas e histo-
riadores da religião, tais como Otto (1958), Van der Leeuw (1938), e Elia-
de (195S). Estes teóricos conceberam o sagrado em termos da mesma
“alteridade” identificada por Durkheim. Eles diferiram, entretanto, ao con-
sideraressa alteridade não como uma fun ção da sociedade, mas como uma
capacidade genérica da natureza humana.
Essa abordagem pode ser aplicada à análise da corporeidade na infor-
mação carism á tica, especialmente a percepção da espontaneidade como cri-
re'rio fenomenológico do divino e a falta de controle como critério do
demoníaco. Quando um pensamento ou imagem corporificada surge re-
penrinamente na consciência, o carismá tico não diz “tive uma intuição”,
mas “isso n ão veio de mim, como pude pensar nisso ? Deve ser do Senhor.”
A experiência de Deus n ão deriva do conte ú do da ideia, mas é constitu ída
pelo ajuste espontâneo da inspiração com as circunstâ ncias. Quando um
mau habito se torna uma compulsão, quando não se consegue mais contro-
lar o mau humor crónico, o carism á tico n ão diz “minha personalidade esta
falhando”, mas “este não sou eu, estou sendo atacado por um espírito ma -
ligno”. 0 demónio n ão causa o mau h á bito ou a ira, mas é constitu ído pela
falta de controle sobre essas coisas. A natureza sui generis do sagrado é defi-
nida n áo pela capacidade de ter tais experiências, mas pela propensão huma -
na a tratá-las como radicalmente alheias.
Com tal concepção, a questão de o que é religioso sobre a cura religi -
osa pode ser colocada, já que o sagrado é operacionalizado pelo critério do
“outro”. Contudo, já que a alteridade é uma característica da consciência

138
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

humana mais
do que uma realidade objetiva, qualquer coisa pode ser perce -
, ndo das condições e configuração de circuns- í
bida como “outra” depende
tâncias, de
modo que definir o sagrado se torna um.problema etnográfico.^
Então, o significado
paradigm á tico da corporeidade é oferecer os funda -
uma identificação empírica (n ão empirista) de
mentos metodológicos para : f l l;
de, e para estudar conseqiientemente o sagrado como
instâ ncias dessa alterida
uma modalidade da experiência humana. §1
Dualidades colapsadas: antropologia psicológica e o corpo no
mundo

Em meu argumento inicial, eu reiterei a preocupação de Hallowell


com a distinção sujeito-objeto e mostrei que no paradigma incipiente da I
corporeidade tanto Merleau-Ponty como Bourdieu exigem o colapso de tal
dualidade analítica.58 Nas análises subsequentes eu tentei trabalhar algumas M j

implicações da corporeidade no domínio da experiência religiosa carism á ti - :


ca. Evitei a suposição de que os fenômenos de percepção são mentalistas í ; !:
(subjetivos) enquanto os fenômenos da prá tica são comportamentalistas !
(objetivos), abordando os dois tipos no âmbito de um paradigma que per -
gunta, em primeiro lugar, como se chega às objetificações culturais e do ;
sujeito. Com Merleau-Ponty, eu tentei resistir à an álise dos objetos da per - '
cepção religiosa para capturar o processo da objetificação, e com Bourdieu ,
resistir à construção de modelos de ação religiosa para capturar a lógica
imanente da sua produção.59

51 Bourdieu talvez não se saia tão bem quando vai além da dial é tica para o colapso das
li
dualidades, permanecendo fixado em oximoros articulados sobre disposi ções espontâ neas,
improvisação regulada , ou invenção não-intencional . Assim , a discussão desta seção se
debruça mais sobre o trabalho de Merleau-Ponty.
:
55 Eu apresentei o conceito de Bourdieu do habitus para evitar o lapso da fenomenologia na

microanálise da subjetividade individual e para enfatizar a tela de fundo cultural e social I


que Merleau - Ponty requer mas não elabora suficientemente. Confrontei o viés
antifenomenológico de Bourdieu com a intencionalidade pré-objetiva e a constituição i
transcendente de objetos culturais, de modo a compensar sua provisão inadequada para a ;
mudança automotivada dentro do habitus.

139 31
m !
V

CORPO / Si GNi FICADO / CURA

0 círculo hermen ê utico desse argumento é completado com um re-


torno à distin çã o sujeito-objeto, que emoldura no meu entender o proble-
ma metodol ógico central da corporeidadc. Recordo que Merleau-Ponty
criticou a an álise da pcrccpção como um ato intelectual de apreensão de
estímulos externos gerados por objetos dados de antem ã o. A objeção dele
foi que o objeto da perccpção teria de ser então possível ou necessá rio. Dc
fato não é nem uma coisa nem outra - em vez disso, ele é real. Isso significa
que, como Merleau-Ponty (1964 b, p. 15) indicou, “ele é dado como a
soma infinita de uma série indefinida de visões perspectivadas em cada uma
das quais o objeto é dado, mas em nenhuma das quais ele é dado exaustiva-
mente”. O “mas” crítico nessa análise demanda uma síntese perceptual do
/
objeto a ser realizada pelo sujeito - que é o corpo enquanto campo de
percepçáo e prátic (Merleau-Ponty, 1964 b, p. 16). Merleau-Ponty sentiu
^
que era necessário voltar a esse n ível da experiência real e primordial na qual
o objeto está presente e vivo, como um ponto de partida para a análise da
linguagem, do conhecimento, da sociedade e da religião. Sua análise exis-
tencial colapsa a dualidade sujeito-objeto para colocar mais precisamente a
questão de como os processos reflexivos do intelecto elaboram esses dom í-
nios de cultura partindo da matéria prima da percepçáo.
As implicações paradigm á ticas da corporeidade se estendem a como
estudamos a percepçáo enquanto tal. Ao começar com os experimentos de
Rivers (1901) na expedição de Torres Straits, os antropólogos: 1) considera-
ram a percepçáo estritamente como uma fun ção da cogni ção, e raramente
relacionada ao sujeito, à emoção, ou a objetos culturais tais como os seres
sobrenaturais; 2) isolaram os sentidos, focando especialmente na percepçáo
visual, mas pouco examinando a síntese e o jogo entre os sentidos na vida
perceptual; e 3) focaram em tarefas experimentais contextualmente abstra -
tas, ao invés de vincular o estudo da percep çáo ao da prá tica social (confira
Bourguignon, 1979; Cole; Scribner, 1974). Num paradigma da corporei-
dade, a an álise mudaria das categorias perceptuais e questões de classificação
e diferenciação para processospercepruais e questões de objetificação e aten -
ção/apercepção. Visto de outra forma, enquanto nos estudos convencionais
de ilusões de ó tica ou percepçáo de cores nossas questões têm se colocado
em termos de constituição cultural de categorias de percepçá o, a análise que
apresenteilevanta questões sobre a constituição perceptual de objetos cultu -
140
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia

railisesJldeParasujeito
levar adiante um paradigma da corporeidade, é vital aplicar aná-
e objeto a nossas distin ções corpo
e mente entre
entre , selfe
a

Outro, entre cogni ção e emoção, entre subjetividade e objetividade nas ci -


ê ncias sociais, especialmente na antropologia psicológica
Primeiro, se começarmos com o mundo vivido dos fen ômenos per
^
ceptual, nossos corpos não são objetos para nós. Muito pelo contrário, eles
são parte integral do sujeito que percebe. Contraste isso com a perspectiva
-

de Piaget (1967, p. 13), que argumenta que “o progresso da inteligência


-
sensório motora leva à construção de um universo objetivo no qual o pró -
prio corpo do sujeito é um elemento entre outros e com o qual a vida
interna, localizada no próprio corpo do sujeito, é contrastada”. Merleau-
Ponty não negaria que n ós constru ímos um universo objetivo, nem que o
desenvolvimento da capacidade de objetificar é vital para nossa constitui-
ção, mas que o adulto plenamente desenvolvido e que se move no mundo
trata seu corpo como um objeto. O momento escorregadio do pensamen -
to de Piaget vem da diferen ça entre observar que na reflexão a vida interna
parece localizada no corpo do sujeito e aceitar esse artefato da consciência
como o ponto final do desenvolvimento. Fazer isto é aceitar a distin ção i
corpo-mente como dada. Meu argumento foi de que no nível da percepção
não é legítimo distinguir mente e corpo. Começando da percepção, contu - j:i
-
do, torna se então relevante (e possível) perguntar como os nossos corpos
podem se tornar objetificados por processos de reflexão. Esse contraste é
tão básico que nos dá uma pausa para pensar em quanto a antropologia
psicológica foi influenciada por Piaget, e quão pouco por aquele outro pro-
fessor de psicologia infantil, Merleau-Ponty.60 O primeiro define o corpo
como “um elemento entre outros num universo objetivo,” o segundo como
“uma configuração em relação ao mundo.” !
li

60
As ramificações são grandes demais para abordar aqui . Considere apenas a dependência da
teoria do desenvolvimento cognitivo, que deve muito a Piaget , da noção objetiva de
representação intervindo entre est í mulo e resposta (Kohlberg, 1969) . Uma fenomenologia
do corpo não postula esse tipo de objeto e não se concentra na intermediação da referência
e da representação, mas na relação imediata e na conformidade do corpo com o mundo I I:
( Hottois, 1988) .
|
|| i
141

m
CORTO / SIGNIFICADO / CURA

Quando o corpo é reconhecido pelo que ele 6 cm termos vivenciais, n ão


como um objeto mas como um sujeito, a distin ção mente-corpo se torna
muito mais incerta. A antropologia psicológica tendeu a operar no espectro
da dualidade mente-corpo, formulada em termos da relação entre o dom ínio
mental subjedvo da realidade psicocultural e o domínio í f sico objetivo da
biologia. A abordagem que estou propondo certamente não nega a proble-
mática da biologia e cultura, mas por uma mudan ça de perspectiva oferece
uma problemá tica adicional. Quando ambos os pòlos da dualidade são
evocados em termos experienciais, o dictum da antropologia psicológica de
que toda realidade é psicológica (Bock, 1988) não carrega mais a conotação
mentalista, mas define a cultura como corporificada desde o início.
Se n ão percebemos nossos próprios corpos enquanto objetos, tam-
pouco percebemos outros como objetos. Uma outra pessoa é percebida
como um outro “eu mesmo”, arrancando-se da simples condição de fenô-
meno no meu campo perceptual, apropriando meus fenômenos e conferin-
do-lhes a dimensão de ser intersubjetivo e oferecendo assim “a tarefa de
uma verdadeira comunicação” (Merleau-Ponty, 1964 b, p. 18)./Assim como
no caso do corpo, é verdade que outras pessoas só podem se tornar objetos
para nós secundariamente, como resultado de reflexã o. Se os sujeitos se
: tornam objetificados ou não, e sob quais condições, torna-se uma questão
para a antropologia do selfjM é m disso, a característica de ser um “outro eu
mesmo” é uma parte importante daquilo que distingue nossa experiência
do Outro social da do Outro sagrado discutido acima, que é num sentido
radical “não eu mesmo”.
A corporeidade também tem implicações paradigmáticas para a dis-
tinção entre cognição e emoção (Jenkins, 1988, 1991; Rosaldo, 1984). A
emoção atraiu a aten ção crescente dos antropólogos, mas permaneceu con-
ceitualmente subordinada à cognição. As emoções foram definidas como
cognitivas através de opções metodológicas para seu estudo feitas por tare-
fas de cunho essencialmente cognitivo (Lutz, 1982), focando esquemas
culruralmente providos para lidar com elas (Levy, R., 1973) ou definindo-
as explicitamente como interpretações constitu ídas de conceitos, cren ças,
adtudes e desejos (Solomon, 1984). Um passo em direção à posição atual
foi dado por Rosaldo (1984, p. 143, grifo do autor), que sugeriu que emo-
ções são um tipo de cognição com um maior “senso do engajamento do self

142
;
H
1'

A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia


il
it : il !
do ator, [...] pensamentos corporificados, pensamentos infiltrados pela apre- )I :
ensão de que “eu estou implicado”. Embora o pensamento e a emoção se-
jam assim colocados mais em pé de igualdade, definir emoção por ífV
pensamento corporificado preserva a dualidade fundamental. Isso evita a
questão de como o pensamento em sentido restrito é corporificado, e n ão 1
:
i
responde ao desafio de uma teoria autenticamente “afetiva” da emoção que
corresponda à teoria “cognitiva” (Jenkins, 1988, 1991). Repensar a relação I
entre sujeito e objeto també m acarreta implicações para nossas concepções i
da objetividade enquanto meta científica. Diz-se que numa das suas formas fl!
mais poderosas, a objetividade é alcan çada através de um processo de abstra-
ção cujo “objetivo é olhar o mundo como descentrado, com o observador
1
como apenas um de seus conteúdos [. ..]. A intenção é compensar os elemen-
tos do nosso olhar pré-reflexivo que fazem as coisas nos parecer como pare-
cem e assim alcan çar uma compreensão das coisas como elas realmente são”
( Nagel, 1979, p. 206, 208). Ao arriscar cair na verbosidade, eu argumenta- r!
ria que a ciência n ão deve ser conduzida como uma operaçã o de desconto, e
que devemos começar do pré-reflexivo se esperamos propor com sensatez
questões sobre aparência e realidade. O colapso da distin ção sujeito-objeto
requer o reconhecimento de que se a “ciência dura” lida com fatos duros,61 I
eles são o resultado de um processo de endurecimento, um processo de
objetificação.
Talvez seja mais imediatamente instigante para a antropologia psicoló-
gica, do que esse ponto geral sobre subjetividade e objetividade, o reconhe-
cimento de Nagel (1979, p. 210) de que “os problemas de identidade pessoal
e corpo-mente emergem porque certos fatos subjetivamente aparentes so-
bre o sujeito parecem sumir à medida que se ascende a um ponto de vista
mais objetivo”. Antes de se atingir o ponto de dissolução, é preciso que se !
comece a formular o que Shweder (1986, p. 178) chama de “ciê ncia da
subjetividade”, pois “o mundo real parece estar povoado de subjetividade
semelhante ao objeto e dependente do sujeito - dois tipos de fenô menos
para os quais n ão h á lugar nos dom ínios mutuamente exclusivos e exausti- !
I

!
61 A própria distin ção entre duro e macio está imbu ída de machismo, pois n ão há d úvida sobre
sua conotação cultural de que dados sólidos são mais realistas e conseq úentemente melhores. !
,

! i
143 !
Couro / SIGNIFICADO / CURA

vos do hcrmcncuta cm busca do símbolo e do significado e do positivista


automatizado cm busca dc leis”. É igualmcnte errado buscar o “ponto de
vista dc lugar nenhum” objetivista c privilegiar demasiadamente a “experi-

^
ência interior” subjetivista. defini ção mais fecunda do real é a que foi
citada acima , uma serie indefinida dc pontos dc vista pcrspectivados, ne-
nhum dos quais exaure os objetos dados. A objetividade não é um ponto
62

dc vista dc lugar nenhum , mas um ponto dc vista de todo lugar cm que o


corpo pode tomar posi ção c cm relação às pcrspcctivas dc “outros eu mes-
mo Essa pcrspectí va não nega que os objetos são dados; como enfatizei ao
^
longo deste capítulo, o corpo está no mundo desde o princ ípio. Assim , não
d verdade que a fenomcnologia contemporânea negue uma “realidade obje-
tiva irredutível" (Nagel , 1979, p. 212) . Muito pelo contrário, a fenomcno-
logia insiste numa realidade objetiva indeterminada.
0 tema da indeterminação emergiu várias vezes neste argumento, cm
relação à natureza dc nossas categorias anal íticas bem como aos dom ínios de
perccpção c prá tica.63 Não surpreende que ambos os teóricos que considera-
mos, como resultado do colapso metodológico de dualidades, reconheçam

í: O exemplo mais vivido da constituição do real enquanto série indefinida de pontos de


vista pcrspectivados é o ensaio de Merleau -Ponty (1964a) sobre “a d ú vida de Cézanne”,
no qual ele começa com a obscn’ação de que o pintor precisou de cem sessões dc trabalho
para uma natureza mona c 150 encontros para um retrato.
l ) Sem d ú vida , a tentativa até hoje mais fecunda para lidar com a indetermina çã o é a elaboração

dc Fernandez (1982, p. 39) da noção do incoativo como “o sentido subjacente


(psicofisiológico) csobrcjacentc (sociocultural) da enudade (integridade do ser ou totalidade)
que n ós tentamos alcançar para exprimir (por predicação) e atuar (por performance) , mas
nunca podemos apreender". Para Fernandez, o incoativo é o terreno da significação emocional,
imagina çã o moral, identidade e auto-objetificação. O princípio da indeterminação elaborado
no paradigma da corporeidade que pode contribuir para o entendimento do incoativo é
sugerido pela tentativa de Fernandez (1990), no seu diálogo com Werbner, de repensar
análises anteriores da experiê ncia religiosa desde a perspectiva da experiência corporal.
Também pode ser esse princípio de indetermina ção, inerente à vida social , que veio à frente
na mudan ça da antropologia pós-modernista do padrã o para o pastiche, de símbolos-
chave para géneros indistintos. Antropólogos como Tyler ( 1988) lan çaram uma criticadas
teorias empiristas dos sentidos e clamaram por uma abordagem da linguagem enquanto
encarnada , mas a crítica pós-modernista segue atrelada ao idioma da semió tica e da
teztualidadc. A perspectiva da corporeidade pode prover a antropologia psicológica com
seu próprio aporte anal ítico sobre processos pós-modernos da cultura e do sujeito.

144
A Corporeldade como um Paradigma para a Antropologia

um princípio essencial de indeterminação na vida humana. Merieau Ponty-


( 1962, p. 361 ) vê na indetermina ção da percepção uma transcendência que
n ão escapa h sua situação corporificada, mas que sempre “assevera mais coi-
sas do que apreende: quando cu digo que vejo o cinzeiro ali, eu presumo
completado um desdobramento da experiê ncia que poderia se prolongar ao
infinito, e comprometo todo um futuro perceptual ”. Bourdieu (1977, p.
79) vê na indeterminaçã o da prá tica que, já que ningué m domina conscien-
temente o modus operandi que integra os sistemas simbólicos e prá ticas, o
desdobramento de seus trabalhos e ações “sempre escapa às suas intenções
conscientes”. Essa indeterminação deve ser encarada de frenteipor relatos
incorporados de objetos culturais dependentes do sujeito que resistem ao
isolamento dos sentidos uns dos outros e da prá tica social em situações
expcrimentalmente restritas.
Como vimos na cura ritual e na linguagem ritual, selves corporiftcados
habitam um ambiente comportamental muito mais amplo do que qual-
quer evento isolado. Se esse é o caso, então uma implicação paradigmá tica
final é que a corporeidade n ão precisa se restringir a uma aplicação microa-
nal ítica, mas, como Merieau-Ponty esperava, pode ser a base para análises
da cultura e da histó ria. Libertar do evento a interpretação era crucial para
Bourdieu , mesmo para o seu estudo conduzido no â mbito de uma socieda-
de tradicional estável. É ainda mais crucial no tipo de movimento religioso
que descrevi, em que n ão existe num mundo naturalizado, um mundo
contemporâ neo onde domina o princí pio da indeterminação num mar de
opini ões. Nesse contexto, a prá tica religiosa explora o pré-objetivo para
produzir objetificações novas, sagradas, e explora o habitus para transfor-
mar as pró prias disposições de que é constitu ída. O que é extraordinário em
tais situações, e que portanto pode ser normatizado como sagrado, é a evo-
cação no ritual de disposições pré-orquestradas que constituem seu sentido.
jO^ locus do sagrado é o corpo, pois o corpo é a base existencial da culturaj

Reprise

O argumento deste cap ítulo foi de que o corpo é um ponto de partida


produtivo para analisar a cultura e o sujeito. Tentei mostrar que uma an álise i ;!
f
i
145

a
1
CORTO / SlGNIFICADO / CURA

da percepção (o pré-objetivo) e da prá tica (o habitus) fundada no corpo leva

^
ao colapso da distin ção convencional entre sujeito c objeto Essc colapso
nos permite investigar como os objetos culturais (incluindo sujeitos) são
constitu ídos ou objetificados, n ão nos processos de ontogênese e socializa-
ção de crianças, mas no fluxo c na indeterminação em curso da vida cultural

^
adulta Sem d úvida os exemplos empíricos que escolhi (espíritos malignos,
imagético muldssensorial, glossolalia, profecia, e “ Repousar no Espírito”)
vêm do domínio especializado da prá tica ritual. Poré m , se, como suspeito,
a corporeidade possui um escopo paradigm á tico, as vá rias an álises de outros
dom ínios que começaram a ser publicadas na última d écada partilham de
caracterísdcas comuns que podem ser elucidadas em futuros trabalhos. Isso
é sugerido, como argumento, pela maneira como a corporeidade coloca
novas questões sobre experiência e percepção religiosas além daquelas nor-
malmente formuladas na antropologia psicológica. É ainda enfaticamente
sugerido pela aplicação das an álises sujeito-objeto a outras dualidades (men-
-
te corpo, rr Outro, cognição-emoção, subjedvidade-objetividade) que sub-
^
jazem a grande parte do pensamento antropológico.
i

146
ê
CAPÍTULO TRÊS
A História da Aia

Este capítulo lida com rituais religiosos direcionados à experiência de


mulheres na América do Norte e no Japão que se submeteram a abonos.
Em cada caso, são rituais visando a cura de uma construção cultural especí-
;
fica da dor e da culpa predicados em uma etnopsicologia específica da pes-
soa. Eu apresentarei primeiro o ritual norte-americano e então o contrastarei
com um ritual paralelo no Japão contemporâneo. li i í
O ritual norte-americano, ou mais precisamente o ritual técnico, é
perturbador na maneira como toca num dos temas mais emocionalmente,
eticamente e politicamente provocativos na sociedade contemporânea. Ele i
perturba no mesmo sentido que o poderoso romance de Margaret Atwood,
A História da Aia (1985), do qual tomei emprestado o título para este meu
capítulo. Atwood descreve uma sociedade norte-americana no futuro mui- . !
to próximo e quase presente no qual o cristianismo fundamentalista acedeu Eli
ao poder pol ítico e criou um Estado totalitário. Nessa psique, o ato de
i
efetuar um aborto é pun ível com morte e exibição p ú blica do cadáver hu- ii
milhado. Como a poluição ambiental reduziu a fertilidade da população a iiill
um n ível perigosamente baixo, os comandantes que constituem uma elite
dominante recebem aias. Essas jovens mulheres férteis complementam as :; ':
esposas privilegiadas dos comandantes como servas reprodutoras dentro de
seus lares santificados.
I
i
;

I I
’i

A
CORPO / SlGNinCADO / CURA

Quando me deparei pela primeira vez com o trabalho de Atwood,


fiquei francamcrnc impressionado pela similaridade da terminologia com
aquela que predomina em algumas das “comunidades de crentes” católicas
carismá ticas que cu andava estudando. Household ” era de fato um termo

especializado para um lar cristão que inclu ía mais membros que uma fam í-
“ ”
lia nuclear. Existia o ofício de aia , assumidamente sem função reproduti -
va, mas compreendido como um papel no qual algumas mulheres tinham
responsabilidades adicionais para com o serviço da comunidade, especial -
menre com respeito ao bem-estar de outras mulheres, mas sempre sob a
“chefia” ou autoridade masculina. Quase como um presságio , na principal
comunidade de crentes, o ofício de aia foi suspenso por vários anos, presu-
mivelmente porque as que o praticavam estavam se arrogando mais autori -
dade do que era visto como biblicamente justificado pela elite dirigente
masculina. A elite dirigente dessas comunidades, que se consideravam pos-
tos avançados de um reino vindouro de Deus (cuja extensão lógica me pare-
cia ser a Rep ú blica de Gilead de Atwood ), comportava-se n ã o como
comandantes dentro de um Estado policial religioso, mas, numa veia ligei-
ramente mais burocrá tica, como “coordenadores” (Csordas, 1997).
A possibilidade de ver os carismá ticos como “protogiladeanos” veio à
baila durante meu estudo do seu sistema de cura ritual quando descobri o
rito que descreverei abaixo. Deixe-me notar logo de sa ída que alguns católi-
cos carism áticos são bastante ativos na oposição pol ítica ao aborto, instiga-
dos pela influência dupla de abraçar a posi ção conservadora da hierarquia
católica romana e abraçar o fimdamentalismo conservador do neopentecos-
ralismo. Alguns são, além disso, ativos numa campanha para lograr o reco-
nhecimento m édico daquilo que chamam de “síndrome pós-aborto”, uma
síndromepsiquiá trica fabricada, formulada nos moldes da definição de “trans-
torno de estresse pós-traum á tico” encontrada no Manual de Estatística e
Diagnóstico da Associação Psiquiátrica Americana. Tal transtorno é, estrita-
mente falando, um distú rbio culturalmente específico no sentido de ser
relevante apenas no âmbito da cultura carismá tica, que define a experiência
do aborto como necessariamente traumá tica.
Ao deixar esse ponto temporariamente de lado, cabe notar que as prá -
ticas de cura que discutimos entre carismá ticos católicos mostram uma uni -
formidade notá vel através das regiões e localidades, ao menos na Am érica

148
'
!
A História da Ala

do Norte. Isso sc dcvc cm parte a um sistema de distribuição altamente


desenvolvido para as publicações do movimento, incluindo livros, revistas
e fitas de áudio, assim como à existência de uma classe de professores c
curadores que viajam para oficinas, conferências, retiros e “dias de renova -
ção” em que tais práticas e suas razões são disseminadas. Novamente, as três
formas principais de cura são a oração para a cura de problemas físicos ou
médicos, a Libertação ou a expulsão de espíritos malignos, e a cura interior jli <
ou a Cura de Memórias. ' A Cura de Memórias é a transformação ritual das
61

consequências de trauma emocional ou “lesão” por meio de oração. Essa


oração freqiientemcnte inclui processos imagéticos na forma de imagens
iniciadas e guiadas pelo curador ou a performance espontânea de uma cena
pelo paciente. Por vezes, a mem ória identificada que exige transformação é
a de ter feito um aborto. Na cultura carismá tica, submeter-se a um aborto
é supostamente traumá tico para a mulher grávida, acarretando as consequên
cias emocionais da culpa e a dor da perda, e supõe-se também que produza
o trauma da morte para o feto abortado.65
A cura de memó rias para a m ãe e o feto é descrita num livro pelos
-
1
populares padres jesu ítas carismá ticos Dennis e Matthew Linn e sua colabo- i
radora Sheila Fabricant (1985, p. 105-139). O livro deles trata gestações i
malogradas, natimortos e abortos como uma mesma classe, começando
com uma discussão teológica enfatizando que, embora estes não batizados
li
não terminem necessariamente no “limbo” da tradição católica e possam ir
para o céu, eles necessitam de cura. Os autores procedem em uma discussão
psicológica de pesquisa pré-natal, defendendo a viabilidade emocional e
portanto a vulnerabilidade desses seres. Segue, então, uma discussão da dor i :

B
entre mães, que rapidamente volta o foco para o aborto e argumenta que a
dor e a culpa são comuns entre as mulheres que escolheram abortar.
Os autores narram dois casos de oração para tais mulheres. O primeiro
foi o de uma mulher que tinha feito um aborto, e também tentara abortar

Para uma discussão abrangente da cura carismática católica, veja Csordas ( 1994a) e McGuire
( 1982 , 1983) .
65 Para uma aná lise cultural da perda de uma gravidez desejada que inclui respostas simbó licas
li
e religiosas, veja Layne ( 1992).

:ií
<

149

m
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

outra filha - agora com 1S anos de idade - que estava tendo frequentes
explosões contra membros da fam ília. Durante uma missa oferecida para o
feto abortado c para “qualquer parte da” filha viva que tivesse morrido du-
rante a tentativa de aborto, a mulher adulta caiu no ch ão e experimentou
todas as dores e contrações do parto, depois que os curadores a iniciaram
simbolicamente para que ‘entregasse seu bebê a Jesus e Maria para ser cuida-
do”. Subseq ú entementc a mulher afirmou que suas dores crónicas nas cos-
tas melhoraram , bem como as violentas explosões da sua filha. Ambas
mudan ças foram interpretadas pelos curadores como evid ê ncia de alívio
"do trauma do aborto”. O segundo caso foi o de uma mulher para quem a
cura de dor e de ódio de si por ter feito um aborto nove anos antes causou
a emergência de uma variedade de outras dores, incluindo os efeitos perina-
tais de sofrimento vivenciado por sua própria mãe com a morte do pai e
raiva dos parentes que n ão permitiram que a mulher grávida visitasse o
moribundo, assim como os efeitos de ter nascido com o cordão umbilical
enlaçado no pescoço e ter sido fisicamente e sexualmente abusada durante a
infinda.
Esses exemplos exibem uma etnopsicologia na qual o aborto (num grau
maior que fetos perdidos ou natimortos) é um agente patogênico poderoso,
e no qual o ritual de cura é um poderoso e ocasionalmente dramático antído-
to. 0 rito frequentemente indui técnicas imagé ticas específicas. Linn, Linn e
Fabricant (1985, p. 138-139) descrevem quatro passos: 1) a paciente visuali-
za Jesus e Maria segurando a crian ça, e a paciente a segura com eles, pedindo
o perdão da deidade e da crian ça por qualquer mal que tenha feito à crian ça
e é instruída a imageticamente “ver o que Jesus ou a criança dizem ou fazem
em resposta a você”, e a perdoar com eles qualquer outra pessoa que possa
ter machucado a crian ça; 2) a paciente escolhe um nome para o feto morto
e simbolicamente o batiza, com a instru ção de “sentir a água purificando e
renovando todas as coisas”, garantindo assim ao feto o status cultural de
uma pessoa e, de fato, ritualmente “desfazendo” o aborto; 3) a paciente reza
para que o feto receba amor divino, e é instru ída para imageticamente “co -
Jocá-lo nos braços de Jesus e Maria e vê-los fazer todas as coisas que você
não pode fazer” e para pedir ao feto que se torne um intercessor para a
paciente e a família da paciente; 4) a paciente oferece uma missa para a
crian ça e, enquanto está recebendo a Eucaristia, é instru í da a “deixar o amor

150
A História da Aia

c o sangue misericordioso de Jesus flu írem através de você para a criança e para
todos os outros membros falecidos de sua árvore familiar”.

Pessoa, gênero e eficá cia

O grau de vividez multissensória que pode ser atingido nisso que po-
demos chamar de performance imagética corporificada (veja também Csor -
das, 1994a) é evidente no seguinte caso narrado por uma equipe de dois
curadores carismá ticos (G e H):
G: [...] uma senhora sobre quem n ós oramos por causa de um aborto
[estava tão agitada que] a uma certa altura ficou roxa... Em todo caso,
n ós pedimos ao Senhor se ela podia ter a visão do seu bebé, bebê aborta-
do. E ela fisicamente pôs as mãos, braços e mãos, em concha, como se
estivesse segurando um bebê. E se você a visse, se você visse qualquer um
I
de nós, provavelmente pensaria que estávamos todos malucos. Mas se
você a visse, era como se ela estivesse segurando um bebê. Eu quero dizer ii
! •!
que ela estava ali assim. E falando com ele. Claro que não havia nada ali I il if
que algu ém pudesse ver. Mas nós acabávamos de perguntar ao Senhor se
Ele permitiria que ela segurasse o bebê. E no momento seguinte ela
estava segurando o seu bebê.
í:
TC: Vocês perguntaram em voz alta com ela ou vocês perguntaram [a
Deus] silenciosamente se ela poderia...
G: Não, nós perguntamos a ela primeiro, em voz alta. E ela disse que
queria. E aí n ão tinha nada que a fizesse desistir. Então ficamos lá um
f t:
bom tempo até que ela conseguiu deixar o bebê ir.
H: E nós apenas ficamos quietos e continuamos orando em silêncio e r' iíi 1
com as mãos sobre ela. Para que então Ele [Deus] adentrasse nela... liiíí h
G: Verdadeira manifestação física. .. li ! lij íí
H: Dava para sentir por todo canto, no ar, o Senhor apenas a amando.
C: Ela teve a experiência física de estar segurando o bebê? ii !
G: Oh, sim. Ij, j!
TC: E o que significava o roxo no rosto dela?
I; I í :
G: Bem , aquilo foi antes [da sequ ência imagé tica]. Eu acho apenas que I {
foi a culpa e ela estava de luto.

I1
151 íí i
ill
1
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

H: Veja, o negócio é que ela n ão queria admitir que tinha qualquer coisa a
ver com o aborto. Era "tudo culpa do marido”. E quando ela finalmcntcsc
deu conta de que teria de assumir também uma responsabilidade.. .
G: Ela começou a gritar.
H: E a í foi meio assustador, sabe. Mas [nós] ficamos ali, só a amando, c
Ele estava l á com a gente. Então foi uma experiência bonita.
G: E uma coisa muito interessante nisso é que, quando nós lidamos com
a cura de um aborto, nós sempre perguntamos se eles tê m um senti-
mento de que vai ser menino ou menina e se eles têm algum nome... se
eles escutaram um nome ou viram um nome ou o Senhor colocou um
nome em seu coração. E eu esqueci que nome era, mas era uma menina.
E os dois... nós tratamos os dois separadamente. Os dois tiveram a sen-
sação de que era uma menina e ambos vieram com o mesmo nome.
Marido e mulher. E eles não tinham consultado um ao outro. Porque
nós a vimos antes, e a conduzimos para fora da sala. Não havia comuni-
cação entre os dois. E os dois sentiram que era uma menina, e os dois
deram com exaramente o mesmo nome. E nenhum deles tinha falado
sobre isto desde o dia em que aconteceu o aborto. Nunca tocaram mais
no assunto. Então o que eu quero dizer é que n ão tinha como eles terem
dado um nome ao bebé... de eles terem ao menos pensado nisso antes
do aborro.

Eu organizarei minha análise desse texto em torno dos quatro elemen-


ros que identifiquei no Capítulo Dois como essenciais ao processo terapêu-
tico em cura ritual. No tocante à disposição, é evidente que a suplicante deve
estar culturaJmente disposta não apenas a aceitar a possibilidade da cura
divina, mas também a encarar o fato de ter se submetido a um aborto como
um problema que necessita de cura. A suposi ção do curador de que o fato
da suplicante “ficar roxa” indicava estados de culpa e luto faz parte da natu-
reza presumida da última disposição, aparentemente jamais questionada
pelosparticipantes. A presença de ambas as disposi ções é sugerida pelo apa-
rente fato de que a cura estava direcionada especificamente à experi ência do
aborto e que o marido da mulher foi inclu ído de maneira sistemática, sepa-
rado da esposa. A disposição ao vínculo materno manifestada na recusa da
mulher de abrir mão do seu bebê imaginai é consistente com a participação
no sistema de cura.

152
A Histó ria da Aia

Apesar de tudo é necessá rio reconhecer que a suposição de culpa como


uma emoção na suplicante pode, através da performance, agir como um
indutor de culpa. É esse o caso, especialmente quando a culpa é vista como
um estado não apenas emocional, mas também objetivo - isto é, um esta-
do de pecado. Caracteristicamente, para os carismá ticos, n ão há discussão
explícita de pecado e arrependimento, que permanecem implícitos na refe-
rência a “assumir responsabilidade” pela açã o. De forma alguma essa frase
significa que a cura é constitu ída pela “consciência de ter tomado uma deci-
são responsável, ainda que difícil”. Significa, ao invés disso, que a cura emo-
cional exige “reconhecer que, ao ceder à demanda do seu marido, você ji !
também é responsável por um pecado” e aceitar o perdão divino.
A experiência do sagrado é realizada pelo imagético multissensório em
diversas formas culturais. G ênero e nome são dados ao feto através do ima-
gético revelador, e a convicção do empoderamento divino é reforçada pela
conformidade das imagens do marido e da mulher na ausência de consulta.
Imagens tá teis, cinestésicas e visuais de inspiração divina e de qualidade ei-
dética extremamente vívida estão evidentes no ninar do bebê imagético e
í jjll
no falar com ele. A experiência da presen ça divina enquanto um fen ômeno '
de corporificação é confirmada pelo depoimento dos curadores de que, de
seu lado, eles podiam “senti-la por todo canto, no ar”, e que a sequência
imagé tica da suplicante era uma “verdadeira manifestação í f sica” do poder
divino entrando nela. Finalmente, embora não narrado nesse texto, é pro- 1

:
vável que a suplicante com sua crian ça tenha sido guiada através de toda
uma performance imagé tica de batizar o bebê e finalmente entregá-lo nas ! !;
mãos de Jesus.
Enquanto a forma imagética e a qualidade eidética dessas experiências
definem-nas como sagradas, seu conteúdo cumpre a terceira fun ção tera-
pê utica da elaboração de alternativas. Duas das alternativas estão implícitas
nesse episódio. A primeira é a de ter de fato um bebê, elaborada no embalar
imagético do bebê e a sua temá tica cultural de intimidade mãe-criança. A
segunda é a de o feto morrer de uma maneira culturalmente apropriada,
isto é, como um bebê com gênero definido, nome e batismo cristão. ili! ! .
Esta ú ltima alternativa é que é retomada enquanto parte da realização
í! :
da mudança, pois parte da eficácia da performance ritual é precisamente
transformar o feto numa pessoa. Uma pessoa nesse sentido é uma represen-
Iill
153
ifm
1
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

ta çã o cultural , ou mais precisamcnrc umaobjetivaçã o dc processos indeter-


minados do sclf \( é) z Capítulo Sete e Csordas, 1994a, p. 5, 14-15). Embo-
ra um feto e um bebé sejam entidades biol ógicas, o momento que eles são
objetivados enquanto “pessoas”, se o são, varia entre as culturas. O debate
atual na Am érica do Norte é baseado na pergunta se a pessoa inicia na con-
cepção, no nascimento, ou em um dos “trimestres” de gestação cultural-
mente estabelecidos entre os dois. Numa perspectiva transcultural, porém,
nós vemos que a questão da pessoalidade se estende até para alé m do nasci-
mento. Entre os chcyenne do Norte, as crian ças n ão sã o participantes na
comunidade moral porque carecem de conhecimento ou responsabilidade
para suas ações e são, conseqiientementc, consideradas apenas pessoas “cm
potencial” (Fogelson, 1982; Straus, A., 1977). Entre os povos mande da
Africa, um recém nascido ainda não é um membro da fam ília deste mun-
do, permanecendo sem nome até oito dias depois do parto. A forma da
placenta é examinada para determinar se o recém-nascido n ão é de fato um
soa, ou espírito infante, e não uma pessoa humana (Whittemore).66 Entre
os dogon , um feto é concebido como um tipo de peixe até que tenha rece-
bido uma série de nomes e tenha sido circuncidado ou excisado, para so-
mente então ser reconhecido como um menino ou menina de verdade
(Dicterlin, 1971, p. 226). Para os tallensi, “somente a partir do momento
cm que uma crian ça desmama e ganha um irmão mais novo ( nyeer) é que
ela pode ser tratada como quem está no caminho da plena humanização”,
um status que é de fato “apenas atingido gradualmente no decorrer de toda
uma vida” (Fortes, 1987, p. 261). Entre os mais pobres do Brasil, as crian-
ças freqiienrcmente n ão são nem batizadas nem nomeadas até que se segu-
rem cm pé, c a crian ça que morre não é considerada nem crian ça humana
nem anjo aben çoado. Ao invés disso, “a humanidade da crian ça, sua indivi-
dualidade e suas pretensões à atenção e ao afeto da m ãe crescem com o
tempo - Jenta, hesitante e ansiosamente” (Scheper-Hughes, 1990, p. 560).
Tais exemplos poderiam ser multiplicados, e, de fato, um artigo de
Lynn Morgan (1989) traz um trabalho magistral de síntese das informações
transculturaissobre a individuação dos humanos recém-nascidos. Entretan -

Comunicação verbal .

154
A Histó ria da Aia

to, em todos esses exemplos, o contraste com a prá tica carismá tica não
poderia ser mais chocante: enquanto nesses casos uma criança já nascida
ainda não é uma pessoa, na cura carism á tica um feto que jamais nascerá
ninda è uma pessoa. A diferen ça é, sem d úvida, fundamentada na circuns -
tância de que nos casos do primeiro tipo, em que a mortalidade infantil é
alta, n ão se espera que nenhuma crian ça necessariamente sobreviva, enquan-
-
to na classe m édia norte americana dos carism á ticos jamais se espera que
qualquer criança morra. Apesar disso, em cada caso é a ação ritual de nome-
ar (e batizar ou algo equivalente) que confere o estatuto cultural de pessoa.
Fenomenologicamente reforçada pela performance imagé tica, uma parte da
realização da mudança na cura de aborto é a criação de uma pessoa pela qual
se pode posteriormente orar e que pode ser vista como algu ém que está
“com Jesus”.
Mas isso n ão é tudo, pois nesse caso a realização da mudança inclui o
movimento dual de “aceitar responsabilidade” e “abrir mão”. Na considera-
ção dos curadores os gritos da suplicante devem ser categorizados como um
tipo de choque terapêutico que foi amortecido enquanto eles “a amavam
em colaboração com a presença divina”. A justaposição um tanto peculiar
de “assustador” e “ bonito” para descrever a situação traz uma mensagem
dual relacionada à eficácia da dinâmica situacional. Redefinir uma situação
assustadora como bonita é dizer que aquilo que era potencialmente negati-
vo e perigoso foi, de fato, altamente bem-sucedido - beleza é sin ónimo de
eficácia. Ao mesmo tempo, é um reconhecimento de que a dinâmica da
situação quase saiu do controle, mas n ão saiu, e aqui, beleza é sinónimo de
controle. Finalmente, a realização de “abrir mão” é o epitome da entrega
carism á tica do controle à deidade em troca de liberdade emocional. Nova-
mente aqui encontramos um significado dual. Por um lado, a suplicante
“abre m ão” da culpa expressa em seu grito catártico, e, por outro, ela “abre
mão” da tão estimada intimidade materna e da consternação associada à sua
ausência ao desistir do bebê imagé tico.
Em resumo, no rito carismá tico de cura de abortos, nós vemos o po-
der retó rico da performance imagé tica multissensória na criação de uma rea-
lidade cultural protogileadeana para mulheres que participam do sistema de
cura ritual da renovação carism á tica. Uma clara escolha ideológica é feita
n ão para fazê-las se sentir bem em relação ao que fizeram, mas para presu-

155

hi
CORPO / SIGNIPIQVDO / CURA

mir sua culpa e absolvê-las através do perd ão divino; n ã o para afirmar a pré-
pessoalidade do foto, mas para criar uma pessoa e atribuir-lhe uma identida-
de, nomeando-a/ batizando-a e especificando o seu gênero; n ão para enfatizar
o té rmino da gravidez da mulher e sim o trauma da morte do feto, e resol-
vê-lo encomendando a alma do n ão-nascido ao cuidado do divino.
Em sua importante an álise cultural do debate sobre o aborto nos Esta-
dos Unidos contemporâneo, Faye Ginsburg (1989) identifica a série daqui-
lo que ela chama de “campos de batalha interpretativos” na luta entre as
forças pró-escolha e pró-vida. O ritual carism á tico n ão é uma arena pú blica,
mas um exercido ideológico interno onde o que está em jogo é a intensifica-
ção da visão de mundo que liga as fileiras dos combatentes antiaborto pela
representação ritual dessa visão de mundo de forma a apresentar suas qualida-
des dóxicas. O desenrolar espontâneo das imagens multissensórias é um pro-
duto de disposições prof úndamente inculcadas de um há bito patriarcal, e,
por sua espontaneidade, é um poderoso dispositivo retó rico de uma reali-
dade etnopsicol ógica. Nessa capacidade, a cura ritual vai além da preocupa-
ção com a pessoalidade do feto para desempenhar um poderoso papel no
que Ginsburg (1989, p. 110) chama de “renegociação de gravidez, parto e
criação dos filhos [...] na construção da identidade de gê nero feminino na
cultura americana”. Desde a legalização do aborto, não se pode mais pressu-
por que a maternidade tenha um status atribu ído e seja o resultado inevitá-
vel da gravidez concebida como um processo inevitável da vida das mulheres.
Ela se torna, em vez disso, um status adquirido, o resultado de uma decisão
que “vem a significar uma afirmação de uma constru ção específica de iden-
tidade feminina”, frente à necessidade de estratégias retó ricas para reprodu-
zir a cultura na ausência de sua auto-reprodução anteriormente presumida
(Ginsburg, 1989, p. 109). O ritual que desfaz o aborto é exatamente esse
ripo de estratégia, restituindo através da performance imagé tica a inevitabili-
dade da gravidez, do parto e de cuidar dos filhos. Ginsburg (1989, p. 110)
argumenta que um aspecto essencial da ação pol ítica pró-vida é “o redese-
nhar de uma paisagem de gênero através de oração, demonstração e esforços
para converter outros, especialmente mulheres em estado vulnerável e limi-
nar de uma gravidez indesejada”. A cura carism á tica de abortos estende este
novo desenho desde mulheres que escolhem sustentar uma gravidez indeseja -
da até mulheres que alguma vez escolheram não levar a gravidez adiante.

156
A Hist ória da Aia

No exemplo acima, a paciente foi criticada por culpar seu marido,


fugindo de sua responsabilidade com o argumento de n ão dever satisfação
perante autoridade patriarcal do marido. Por um lado, a insistê ncia do
curador de que ela partilhe da responsabilidade pela decisão de abortar pode
parecer sugerir um grau de empoderamento, e a inclusão do marido no
ritual carrega a mensagem de que a mulher não é abandonada às consequên- - 1'
cias emocionais do aborto. Por outro lado, na medida em que as noções de
pecado e culpa estão inevitavelmente contidas nessa aceitação da responsa-
bilidade, a lógica patriarcal é imposta quando a mulher é obrigada a ter ui ;
filhos a todo custo, mesmo se o marido abdica da sua consciência procriativa.
Mizuko kuyo japonês: notas para uma comparação
I:
Na discussão sobre eficácia que vimos acima, eu situei etnologicamen -
te o ritual carism á tico examinando definições da objetificação, ou o vir a
ser, de pessoas através de uma variedade de culturas. Nesta sessão final quero
voltar ao mesmo tema com uma comparação mais precisa em mente. (A II!
sociedade japonesa contemporânea é onde se localiza uma prá tica ritual mais
p ú blica de cura pós-aborto).67 É um ritual em que os espíritos de fetos
abortados são acalmados através de oração e através da representação com
está tuas estilizadas ou placas. Esses ritos são chamados mizuko kuyo, sendo
que mizuko se refere a fetos perdidos, natimortos e abortados, bem como il!; j!
os já nascidos que sucumbem ao infanticídio (LaFleur, 1992, p. 16), e kuyo
é uma modalidade ritual baseada na oferta de simples oferendas em agrade- jii
cimento a objetos ou seres que em algum sentido foram gastos, que vão
desde objetos domésticos tais como materiais de costura até humanos fale-
I
cidos (LaFleur, 1992, p. 143-146). Os ritos mizuko kuyo aparentam uma
natureza essencialmente budista, mas se originaram no contexto social das
novas religiões japonesas a partir dos anos 1970 (Blacker, 1989), e são cita-
dos como evidência da comercialização da religião japonesa contemporânea
por serem altamente rentáveis para os templos e organizações que os desem-
I!
penham (Picone, 1986). Nos parágrafos que seguem, discutirei brevemen-

!
i
llil !
67
Sou grato a Susan Sered por chamar minha atenção para o caso japonês.
(!I
157 wm
1
CORPO/ SIGNIFICADO / CURA

te o miztiko kuyo japon ês budista cm relação à cura de abortos católica caris -


-
m ática norte americana para apontar o lugar que essas prá ticas explicita -
mente similares ocupam nas configurações culturais de suas respectivas
sociedades /’5
Primeiramente, vamos tratar de contextualizar o espaço social relativo
ocupado por essas duas prá ticas. A prá tica americana é, em geral, um ritual
privado entre membros de um movimento religioso distinto dentro do
cristianismo e é uma instância específica do sistema de cura elaborado no
seio do movimento. A prá tica japonesa é de domínio relativamente p ú bli-
co, n ão limitada a um grupo social em particular, e uma instância típica de
ritual comum a uma variedade de formas de budismo. Historicamente, a
Renovação Carism á tica e o culto mizuko são contemporâneos, produtos do
fermento cultural pós-1960 que gerou o fundamentalismo cristão da Nova
Era, um interesse renovado nas espiritualidades orientais nos Estados Uni-
dos, e as várias novas religiões e uma fluorescência de interesse em possessão
espiritual no Japão. Assim como a Renovação Carism á tica e outras formas
de neopentecostalismo foram associadas com a Amé rica neoconservadora
da direita cristã, alguns dos mizuko japoneses têm notórias conexões direi-
tistas fiindamentalistas, naturalistas ou xintoístas.
Nos Estados Unidos, o aborto foi legalizado pela primeira vez no iní-
cio dos anos 1970 , como resultado da decisão da Suprema Corte em Roe v.
Wade, enquanto no Japão o aborto possui uma história mais profunda.
Tanto o aborto como o infanticídio eram comuns do in ício dos anos 1700
até a metade dos 1800, quando surgiu um debate sobre o aborto entre
posições budistas, neoxintoístas e neoconfucionistas no contexto de um
nacionalismo que requeria crescimento populacional e condenava tais prá ti-
cas, Apenas após a Segunda Guerra Mundial, em 1948, o aborto foi nova-
mente legalizado. Desde aquela época, tornou-se a mais popular forma de
controle de natalidade no Japão. Assim como no contexto do debate ame -
ricano do aborto a oração carismá tica pela cura tende a enfatizar mais o
abortado do que o natimorto ou o feto perdido, no contexto pós-guerra de

a Minha discussão de mizuko kuyo e aborto no Japão se apóia forremente no excelente relato
de LaFJeur (1992).

158
A Histó ria da Aia

numerosos abortos o feto abortado teve precedê ncia enquanto referente


primá rio do termo japonês mizuko.
Em ambas as sociedades, o problema afetivo tratado pelo ritual é a
culpa, mas enquanto nos Estados Unidos essa culpa ocorre sob o signo do
pecado, no Japão trata-se de uma culpa sob o signo da necessidade. Para os
americanos, o aborto é um ato anticristão, o perpetrador e a vítima devem
ser ambos trazidos ritualmente de volta ao universo moral e emocional
cristão; para os japoneses, tanto a aceitação do aborto como necessário quanto
o reconhecimento da culpa são circunscritos no universo moral e emocio-
nal budista. Ambos os ritos estão voltados à cura da afli ção experimentada
pelas mulheres, mas a etiologia da enfermidade é construída de formas dife-
rentes nos dois casos. Para os carism á ticos, quaisquer sintomas apresentados
pelas mulheres são resultado do aborto enquanto trauma psicológico acres-
cido de culpa, junto com os efeitos mais ou menos indiretos do irrequieto
espírito fetal “clamando” por amor e conforto. No Japão, tais sintomas são
atribu ídos à vingança e ao ressentimento da pane do espírito fetal abortado
que é a vítima sofrida de um ato não natural, ainda que necessário.69 Final-
mente, n ão apenas a etiologia, mas o trabalho emocional realizado pelos
dois rituais é construído diferentemente. Como vimos, para os carismá ti-
cos este é um trabalho de perd ão e de “abrir mão”. Para os japoneses é um
trabalho de agradecimento e apologia ao feto, em um contexto cultural
onde gratid ão e culpa n ão são nitidamente diferenciadas. Assim, “não há
grande necessidade em determinar precisamente se alguém está lidando com i
uma culpa - pressupondo apologia a um mizuko ou apenas dizendo obri-
gado’ a ele por ter desocupado o seu lugar no corpo de uma mulher e segui-
do seu caminho, deixando tanto ela como sua família relativamente livres
de sua presença física” (LaFleur, 1992, p. 147).
Podemos agora comparar as duas prá ticas de cura pós-aborto no que
diz respeito ao que elas assumem e ao que produzem em relação à etnonto-

I!
69 A necessidade é às vezes concebida sob a metáfora da “seleção de mudas", executada a fim de
aumentar a viabilidade daquelas que sobrevivem (LaFleur, 1992, p. 99). A noção de tatari,
de que os espíritos daqueles que morrem antes do tempo, de forma não natural ou injusta
podem procurar se vingar nos vivos, é muito antiga no Japão e atualmente é um assunto
muito controvertido em relação à prática de mizuko kuyo (LaFleur, 1992, p. 55, 163- 172).

Ui
159
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

logia da pessoa. O rimai carism á tico americano é em grande medida uma


" performance imagcrica” (confira Csordas, 1994a) na qual a mulher pode ter
a experi ê ncia vívida de segurar o fcto/ bebê imagético, enquanto o ritual
japon ês inclui tipicamente a representação do feto/ bebê na forma de uma
estátua. Para os americanos o feto é um pequeno ser distinto que a cena
,
altura c dado a Jesus, que é seu salvador e protetor. A está tua japonesa ( mi -
zukojizo), por outro lado, assimila a criança c o salvador na mesma repre-
sentação, uma entidade carcca c diminuta com traços infantis por vezes
descrita como “o bodisatva que veste um babador.” Esse contraste no esta-
tuto ontológico do feto é recapitulado nas respectivas noções culturais do
vir a ser das pessoas. Os carismáticos americanos vêem a pessoalidade como
definitiva no momento da concepção, ao passo que para os japoneses tor-
-
nar se uma pessoa não é nem uma questão de concepção nem de nascimen-
to, mas um processo ontológico gradual onde “ao se chegar pouco a pouco
ao mundo social dos seres humanos há um espessamento ou um adensa-
mento do ser”: o inverso de um afinamento do ser que ocorre quando uma
pessoa envelhece aproximando-se da ancestralidade e da budidade (LaFleur,
1992, p. 33). Assim, para os carismáticos, o aborto é a terminação definiti-
va de uma vida humana, enquanto no viés japonês pode-se imaginar com a
mesma facilidade o feto abortado retornando para um estado de pré-ser
onde pode ser mantido até uma data posterior ou para um estado compará-
vel ao dos ancestrais falecidos.
Dadas essas diferen ças, a tentativa do ritual carismá tico é retoricamen-
re fazer avan çar o feto morto para uma união pós-vida segura com a deida-
de, enquanto o intento do ritual japonês é assegurar a boa vontade do feto,
seja ao deslizar de volta ao seu estado pré-vida, seja ao avançar para o reino
dos Budas. Os carism áticos tendem a evitar a velha noção católica popular
de um limbo em que as crian ças não batizadas devem permanecer separadas
da deidade (Linn; Linn; Fabricant, 1985), enquanto os japoneses podem
adotar um tipo de limbo do qual o feto pode retornar numa data futura. A
esse respeito é instrutivo considerar a diferen ça no significado do simbolis *

mo ritual da água e da nomea ção. No ritual carism á tico imagé tico a água é
usada para batizar o feto, um ato que assegura a reunião do feto com Jesus.
No caso japon ês, a água é um elemento essencial na própria definição do
feto: o termo mizuko significa literalmente “criança das águas”, que em sen -
160
A História da Aia

tido literal rcfcrc-se aos fluidos amni ó ticos, enquanto em sentido ontológi-
co refere-se ao estatuto amb íguo do feto que estivemos discutindo. En-
quanto para carism á ticos o batismo de água e o retorno a Jesus representam
a constituição cultural do feto como pessoa, o uso do simbolismo da água
no Japã o real ça a fluidez do ser que caracteriza o estatuto ontológico do
feto. Dado que no budismo a imperman ência, o sofrimento e a ausência do
sujeito são características fundamentais de todas as coisas, “o feto enquanto
mizuko no processo de deslizar do seu relativo feitio de ser humano para um
estado de liquefação progressiva n ão está fazendo mais do que seguir a lei
mais básica da experi ê ncia” (LaFleur, 1992, p. 28). Uma observação seme -
lhante pode ser feita a respeito de dar um nome ao feto abortado. Para os
carism á ticos americanos, a nomeação é um aspecto do batismo que contri-
bui para a objetifica çã o do feto enquanto pessoa. Para os japoneses, embora
o processo de conferir um nome ancestral póstumo { kaimyo ) seja parte fre-
quente do ritual, muitas vezes é discutível se o mais apropriado é permitir
que um feto sem nome “deslize de volta” ao pré-ser ou dar-lhe um nome,
promovendo-o assim a um estado comparável à ancestralidade.
A civilização contemporânea avan çou demais no processo de globali-
zação para nos permitir supor que os dois rituais que vimos discutindo sã o
necessariamente isolados um do outro. Werblowsky (1991, p. 327, 328)
refere-se criticamente a alegações de que há um movimento nos Estados
Unidos que está aprendendo com o Japão a preencher as lacunas no cristia-
nismo, e sarcasticamente pergunta se “alé m de sua crença em almas eles
também acreditam ( no melhor estilo japonês) em árvores geneal ógicas de
almas, nas quais as almas até mesmo de crianças n ão-nascidas permanecem
intimamente relacionadas com os ancestrais”. Nesse aspecto, Werblowsky
parece confundir o movimento associado ao ró tulo de “catolicismo zen”
entre monges católicos progressistas com a bem diversa e nitidamente mais
conservadora Renovação Carismá tica Católica. O primeiro certamente cem
alguma ligação com a revista católica de estudos religiosos baseada no Japão
na qual o pró prio artigo de Werblowsky aparece. No seu pró prio texto,
contudo, ele implicitamente se refere à Renovação Carismá tica Cacólica,
inclusive citando o trabalho de Linn, Linn e Fabricant. Embora somado ao
catolicismo zen haja algum proselitismo sobre o mizuko kuyo da pane dos
budistas japoneses no Oeste (confira LaFleur, 1992, p. 150, 172), se tal

161
Hi
J

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

influ ê ncia está presente entre carismá ticos, ela é certamente menos direta do
que Werblowsky supõe. Os curadores carismá ticos Linn , Linn c Fabricant
(1985, p. 128) fazem uma referência rá pida ao mizuko kuyo, citando outro
autor carism á tico que por sua vez cita um artigo em The Wall Street Journal,
da prádea de mulheres japonesas “indo cada vez mais a templos budistas
onde elas pagam 115 d ólares por um serviço ritualizado para se livrar da
culpa do aborto, experimentada em recorrentes sonhos ruins”.
Por outro lado, para responder ao comentá rio de Werblowsky sobre as
árvores geneal ógicas, nos anos 1980 muitos carismá ticos adotaram uma
forma de cura ora chamada cura de ancestralidade, ora cura da á rvore fami-
liar. Junto com suas interpretações mais psicológicas da culpa e do sofri-
mento, Linn, Linn e Fabricant (1985) citam favoravelmente esta noção,
popularizada pelo psiquiatra carismático britânico Kenneth McCall (1982).
Eles escrevem que o feto que não foi carinhosamente aceito por sua família
e entregue a Deus “vai chorar pedindo amor e oração a um membro vivo da
família”, com impacto psicológico subsequente sobre os pais, sobre a capa-
cidade dos pais de se relacionar com crian ças mais velhas ou crianças ainda
por nascer e sobre as próprias crian ças. O que vale a pena notar aqui é que a
prática de McCall foi inspirada na observação de prá ticas chinesas a respeito
de ancestrais e fantasmas, assimilando-os implicitamente a almas no purga-
tó rio ou no limbo, enquanto vivia e praticava no exterior. Mais significati-
vo do que saber se a prá tica carismá tica é uma instância de difusão cultural
clássica ou de empréstimo cultural esp ú rio, o que isso sugere é que apesar de
suas tendências abertamente fundamentalistas, a renovação carismá tica ca-
tólica e a nova religião /budismo contemporâ nea sã o participantes m ú tuas
na condição pós-moderna da cultura globalmente predominante.

Conclus ã o

Para uma sociedade nos estertores do debate moral sobre o aborto, no


qual as alegações são feitas em termos de absolutos morais, os limites do
relativismo cultural são testados com a mera observação de que a ] perfor -
^
mance ritual cria uma realidade cultural’ Neste capitulo eu tentei descrever
a din â mica da criação do significado e a natureza da eficácia terapê utica em

162
um ritual que participa retoricamente desse
de americana contemporânea além de sério debate
^ ftória da Aia

„„ japáo contemporâ neo. A descri contrastá-lo comcultural


um
na socieda-
ram além do relativismo a observa
ção e a compara ritual paralelo
ção
dos porsuaprópria configuração,
ção de que,
dentro transcultural apon-
uma cultura pode dos limites estipula
os problemas para os quais ela ctiaredefinir
vai
Em última análise, cultivar a culpa então encontrar soluções exatamente
uma forma de criatividade, mas com o intuito de aliviá la é, terapêuticas.
-
que um dos produtos da
isso não pode ser sem dúvida
dito sem
criatividade humana pode ser também admitir
a opressão
humana.

163
I

t
CAP ÍTULO QUATRO
A Afliçã o de Martin *

^ Dizer que “o copo está meio vazio” ou “meio cheio” é fazer um relato
existencial de uma circunstância objetiva: o nível do fluido está na metade
do copo. Dizer que um indivíduo está atormentado por “opressão demoní-
aca” ou “psicopatologia” é fazer um relato cultural de uma circunstância
\,

existencial: uma pessoa está sofrendo. A distância metodológica entre os


dois tipos de relato é imensa. Pode-se apelar para a circunstância objetiva do
fluido no copo para entender a derivação de avaliações otimistas e pessimis-
tas, mas como alguém pode definir uma circunstância existencial antes da
elaboração de um relato cultural? Igualmente importante, se alguém viesse
a desenvolver uma tal linguagem existencial, serviria ela para compreender a
lógica cultural que distingue relatos culturais divergentes?
^
Agradecimentos: versões anteriores deste capítulo foram apresentadas no Seminário de
Antropologia Médica Clinicamente Relevante na Universidade de Harvard , onde valiosos
comentários foram oferecidos , especialmente por Arthur Kleinman , Byron Good e Janis
Jenkins. Uma versão foi apresentada ao simpósio sobre A Dialética das Realidades Médicas
e Sagradas no encontro anual de 19 S6 da Associação Antropológica Americana, onde
comentá rios valiosos foram adicionados por Jean ComarofF, Stanley Tambiah e Atwood
Gaines. O artigo foi completado com a subvenção 2ROI-MH40473-04 do NIMH.
A Afliçã o de Martin

-ic
fl

é-
das experi dois relatos
cultural emmental e ministros
ja satide
^
ê ncias de Martin.70 ) que se segue é uma discussão da lógica
do caso baseados cm comentá rios de profissionais M
de cura carism á ticos. Por fim , uma an álise jUL
mê nõíógica )da experiê ncia corporal fornecerá os fundamentos para a yi\
c-
a>
a
/
^^
demonstração de como ambos os relatos são objctificaçõcs culturais de sig-
nificados que já são inerentes à experiência sensorial bisicaj
i-
>5
)•
A af|i çã o de Martin
a
la À época do nosso primeiro encontro, Peggy tinha 42 anos e era m ãe de
três crianças (outra morreu no pano). Ela estava casada com um profissio-
nal de sucesso havia 20 anos. Ela tinha um interesse de longa data pelas
i- coisas do espírito, tendo praticado ioga desde os 14 anos e tido experiências
>s fora do corpo e visões de figuras de devoção católica como Theresa de Li -
sieux. Ela fez dois anos de matem á tica e qu ímica na faculdade e trabalhou
0 como técnica de laborató rio logo depois de casada, mas tinha sido dona de
casa nos últimos 17 anos. Todos na sua fam ília são católicos praticantes; o
é marido é um leigo atuante e desempenha um papel no treinamento religio-
so de adultos (catequese) em sua paróquia. Ele sabe das atividades dela como
curadora e de certa forma as apóia, mas, na prática, se mantém distante; ele
nunca participou das nossas sessões de entrevista, que Peggy propositalmen-
te agendou para ocasiões em que ele estava fora de casa, e nunca participa
das suas sessões de cura.

70
Ao todo, conduzi três entrevistas com Peggy durante a primavera e o verão de 1986. Estas
foram seguidas de conversações periódicas ao telefone que continuaram por dois anos e
meio. Embora fosse evidente que eu não oferecia qualquer ajuda terapêutica ou contribuição
à resolução religiosa do problema , Peggy permaneceu aberta às minhas perguntas acreditando
que, ao menos, o relato das provações de Martin poderia ajudar outras pessoas similarmente
afetadas no futuro . Com esse pensamento, ela também procurou encorajar (sem sucesso)
Martin a completar uma lista padronizada de verificação de sintomas psiquiátricos (SCL-
90) . Embora ela compreendesse que a lista fora projetada para avaliar sintomas de
psicopatologia , tinha a firme convicção de que o problema dele era religioso, ao invés de
psiquiátrico.

167
CORPO / SiGNincADo / CURA

ffieste capítulo, cu examinarei a relação cultural c existencial entre com-


preensões religiosas c cl ínicas do sofrimento humanist As pessoas gostam de
dizer que aquilo que era compreendido como possessã o demon íaca cm sé-
culos anteriores hoje é compreendido como psicopatologia. Trabalhos re-
centes, como o estudo de Kenny (1986) sobre personalidade m ú ltipla ,

sugerem que, assim como hoje, no século XIX a descoberta ou talvez a
criação - de transtornos psiqui á tricos foi proíú ndamente imbu ída de signi-
ficação cultural. Kenny mostra que a experiê ncia de indivíduos que eram os
casos prototípicos de m ú ltipla personalidade nos Estados Unidos incorpo-
rava conflitos culturais associados com a natureza de pessoalidade, e que a
experiência era alternadamente enquadrada como m édica e religiosa. Ainda
mais impressionante é o caso trágico documentado por Goodman (1981)
da jovem alemã que morreu em 1975 após uma interação fortemente con-
flituosa entre exorcismo religioso de possessão demon íaca e medicação psi-
quiátrica com drogas anticonvulsivas. O fato de o caso ter terminado nos
tribunais indica não apenas a vigência de paradigmas religiosos para a com -
preensão do sofrimento, mas a persistente inabilidade social de tradu ção
entre interpretações sagradas e psicológicas da realidade humana.
O pano de fundo etnográfico para a nossa abordagem do problema é
mais uma vez a Renovação Carismática Católica nos Estados Unidos con -
temporâneo. Começamos com uma narrativa fenomenológica de intenso
sofrimento espiritual, físico e emocional de um rapaz e a tentativa de um
curador religioso carismá tico católico de “libertá-lo” da influência de um
espírito maligno. A narrativa é baseada em conversações com os protagonis-
tas num período de dois anos e meio. A histó ria e a an álise subsequente é de
piscadelas e mais piscadelas (Geertz, 1984) e de m últiplas perspectivas em
relatos culturais divergentes. A informante-chave é a curadora que chamare-
mos de Peggy. Como ocorre frequentemente nas fam ílias de perturbados
mentais graves, ela se tornou a pessoa que assumiu o papel de porta-voz do
rapaz atormentado, que chamaremos de Martin. Essa situação, combinada
com os fatos de suas formas paralelas de sofrimento e de que Martin n ão
suportava ser entrevistado (ele esteve presente apenas na primeira entrevis-
ta), tornou a separação anal ítica das suas experi ências uma tarefa quase im-
possível. Dessa forma, a narrativa deve ser compreendida como um texto
produzido nas entrevistas com Peggy, ao invés de como um estudo de caso

166
A Afliçã o de Martin

^
das experi ê ncias de Martin . } que se segue c uma discussão da l ógica
70

cultural cm dois relatos do caso baseados cm comentá rios de profissionais M


da sa ú de mental c ministros de cura carism á ticos. Por fim , uma an álise
( nõmen õíógíca )da experi ê ncia corporal fornecerá os fundamentos para a 'Ji
Ju
^demonstração de como ambos os relatos são objctifica ções culturais de sig- ‘
nificados que já são inerentes à experi ê ncia sensorial biskaj

A afliçã o de Martin

À época do nosso primeiro encontro, Peggy tinha 42 anos e era mãe de


três crianças (outra morreu no parto). Ela estava casada com um profissio -
nal de sucesso havia 20 anos. Ela tinha um interesse de longa data pelas
coisas do espírito, tendo praticado ioga desde os 14 anos e tido experi ê ncias
fora do corpo e visões de figuras de devoção católica como Theresa de Li-
sieux. Ela fez dois anos de matem ática e qu ímica na faculdade e trabalhou
como técnica de laborató rio logo depois de casada, mas tinha sido dona de
casa nos últimos 17 anos. Todos na sua família são católicos praticantes; o
marido é um leigo atuante e desempenha um papel no treinamento religio-
so de adultos (catequese) em sua paróquia. Ele sabe das atividades dela como
curadora e de certa forma as apóia, mas, na prática, se mantém distante; ele
nunca participou das nossas sessões de entrevista, que Peggy propositalmen
te agendou para ocasiões em que ele estava fora de casa, e nunca participa
-
das suas sessões de cura.

Ao todo, conduzi três entrevistas com Peggy durante a primavera e o verão de 1986. Estas
foram seguidas de conversações periódicas ao telefone que continuaram por dois anos e
meio. Embora fosse evidente que eu não oferecia qualquer ajuda terapêutica ou contribuição
à resolução religiosa do problema , Peggy permaneceu aberta às minhas perguntas acreditando
ao menos , o relato das provações de Martin poderia ajudar outras pessoas similarmente
afctadas no futuro. Com esse pensamento, ela também procurou encorajar (sem sucesso)
Martin a completar uma lista padronizada de verificação de sintomas psiquiátricos (SCL-
90) . Embora ela compreendesse que a lista fora projetada para avaliar sintomas de
psicopatologia, tinha a firme convicção de que o problema dele era religioso, ao invés de
psiquiátrico..

167
f

CORPO / SIGNI FICADO / CURA


1

:
Embora n ão seja estritamente exigido entre carism á ticos cató licos que
um curador ou uma curadora experimente sua pró pria cura a fim de orar
pelos outros, Peggy declarou com surpreendente veem ê ncia que nunca sen-
tiu qualquer necessidade de cura porque seu passado não teve trauma ( mes-
mo tendo perdido uma crian ça ao nascer) e porque suas relações com os
pais sempre foram boas. Contudo, ela citou experiê ncias específicas para
validar sua autodefinição de curadora, inclusive a de ter ouvido uma voz
que disse: “Você vai curar para mim.”
Peggy já havia experimentado esta habilidade para curar quando, aos
35 anos, encontrou a Renovaçã o Carismá tica Católica. Seu marido ouvira
falar de um grupo de oração local e sugeriu que ela poderia estar interessada.
Ela frequentou o programa iniciató rio padrão do movimento (Seminário
Vida no Espírito) durante o qual ouviu Deus dizer “venha me seguir”, e rece-
beu o dom das l ínguas (glossolalia). Após essa experiência ela frequentou o
grupo católico de oração e um grupo pentecostal não sectário, e alega ter sido
reconhecida como curadora em ambos os grupos. No grupo católico, a supli-
ca da cura sempre era feita em uma oração coletiva, e o conflito emergiu
quando uma mulher pediu a Peggy uma sessão de cura particular, a sós. Ela
continuou com as orações de cura individuais, mas por ocasião do nosso
primeiro encontro já não tinha envolvimento com um grupo há quatro anos.
Os métodos de cura de Peggy são pouco ortodoxos em relação à linha
predominante da cura pentecostal católica. Embora seus métodos princi-
pais (Cura de Memórias e Libertação) sejam os mesmos reconhecidos pelos
carismáticos, ela começou a curar antes e independentemente de seu envol-
vimento com o movimento. Ela não recebeu nenhuma orientação de ou-
tros curadores nem leu nada da vasta literatura do movimento sobre a cura,
mas afirma que o seu treinamento veio diretamente de Deus. Ela sempre
ora para saber se deve aceitar um suplicante na cura, mas nem sempre opera
através da oração; se a pessoa n ão é particularmente religiosa, é possível que
ela nem fale em Deus ao longo da cura.
Seu diagnóstico do problema de uma pessoa é baseado em seus dons
“psíquicos”: ela “se torna” a outra pessoa, no sentido de conhecer a mente
subconsciente e o passado dessa pessoa, e faz um “miniescaneamento” do
suplicante por meio de um “olhar” visionário, embora sempre respeite a
privacidade da pessoa, sem jamais ir mais fundo do que pode sentir que a

! 168
A Afliçã o de Martin

pessoa deseja que ela vá. Ela també m l ê a “aura” e interpreta o significado da
luz que brilha em torno de cada um dos “cakras” (ou seja, chakras - este é
um empréstimo idiossincrá tico de Peggy ao hindu ísmo e n ão é típico do
pensamento carismá tico católico) de uma pessoa. Ela toma decisões astro-
l ógicas quando as considera apropriadas, experiencia sonhos pré-cognitivos,
interage com espíritos benignos e malignos, entoa palavras de profecia e
també m dá aconselhamento nutricional. Ocasionalmente, ela consulta
médiuns não-cristãos para auxiliar ou confirmar alguma linha de ação em
seu pró prio trabalho.
Peggy tem um amigo íntimo, um homem de cerca de 30 anos de
idade, que chamaremos de Randy. Eles partilham dos mesmos interesses e
orientação espiritual e frequentemente participam de sessões de evangelistas
e curadores visitantes. Randy muitas vezes passa os fins de tarde com Peggy
e sua fam ília, conversando ou olhando televisão. Três anos antes de nossas
entrevistas, Randy convenceu seu amigo Martin, com quem divide o apar-
tamento, a ver Peggy para uma cura espiritual. Martin tinha 22 anos naque
la época, mas sua história, segundo o relato de Peggy e dele próprio, começa
-
muito antes, aos nove anos.
Durante a sua infância, a relação entre os pais de Martin não havia sido
tranquila. Ele se lembra do pai como um homem cruel, que brigava com a
sua mãe e abusava dele física e verbalmente. Acredita que seus pais pratica-
mente não mantinham relações sexuais. A mãe suspeitou que algo estava
errado com o marido, mas o médico da família n ão pensou que fosse um
problema sério. Então, quando Martin tinha nove anos, seu pai cometeu
suicídio dando um tiro na cabeça. Martin ouviu o tiro e encontrou o corpo.
Pouco depois desse acontecimento, sua mãe teve uma “crise nervosa” e foi
internada em um hospital psiquiá trico; ela esteve hospitalizada diversas ve-
zes desde então.
Martin e seu irmão (cinco anos mais novo) foram colocados num
orfanato. Mais tarde eles foram confiados a pais adotivos, seguidores de
uma forma estrita de cristianismo evangélico. O irmão de Martín por fim
se revoltou contra esse ambiente e se mudou para o exterior, cortando rela-
ções com sua m ãe, com Martin e também com seus pais adotivos. Martin
n ão se revoltou abertamente, e se recorda de estar sempre tentando agradar
seus pais adotivos. Peggy acredita que o temor a Deus inspirado por sua

169
í
I: i
1I

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

educação o impediu de cometer suicídio durante seu mais tenebroso mo-


mento de sofrimento.
Martin começou a ter fantasias sexuais aos 13 anos, mas estas aparen-
temente n ão eram de natureza obsessiva. Ele também diz que “via cores"
naquela época. Aos 15, ele teve uma experiência que descreveu como a
sensação de uma rede descendo sobre a sua cabeça e encerrando-a; então ele
desenvolveu uma dor de cabeça crónica que o vem acompanhando nos
últimos 10 anos. Também naquela época, ele começou a experimentar ima-
gens eróticas vívidas tão difusas e incontrol áveis que ( retrospectivamente)
percebia “a pornografia como um estado de espírito”. Começou também a
ouvir uma voz que lhe oferecia amizade e companhia, manipulando-o e
“fazendo acordos” com ele ao mesmo tempo.
No primeiro ano de faculdade, Martin desenvolveu um terrível senti-
-
mento de culpa sobre suas obsessões sexuais, sabendo que elas conflitavam
com a educação dada por seus pais adotivos fundamentalistas. Apesar do
crescente desconforto, ele se formou com a distinção Phi Beta Kappa na
universidade estadual local em química e matemá tica ( Peggy fez questão de
dizer que ele tem um QI [quociente de inteligê ncia] de 140). Depois da
graduação, ele experimentou convulsões incontroláveis, mas conseguiu
emprego em um laboratório bioquímico, e trabalhou com êxito durante
um ano. Ele teve crescente dificuldade para aprender as coisas do seu servi-
ço, com a dor de cabeça cró nica e a dor de estômago acompanhando seu
“pensamento embaralhado”. Um neurologista, sem encontrar qualquer si-
nal de tumor, recomendou biofeedback para a sua dor de cabeça, indicando
que era uma limitação física com a qual ele deveria aprender a viver. Aspiri-
na e drogas prescritas de pouco adiantaram. Martin tornou-se quase inteira-
mente inválido e teve de abandonar o emprego. Nos 60 dias antes de
encontrar Peggy, ele tinha aparentemente quase alcan çado de novo o est á gio
das convulsões. Peggy relata que ele “n ão tinha dormido” durante esses dois
meses e o amigo com quem ele morava, Randy, observou que ele ficava
“perambulando pela casa como um zumbi”.
Quando Peggy encontrou Martin pela primeira vez, a condição dele
havia deteriorado a tal ponto que ela o fez mudar para um quarto vago na
casa dela até que ele superasse a crise. A essa altura ele perdera bastante peso
esua conversação era “densa”. Na medida em que ele ia recuperando a força

170
A Afliçã o de Martin

ffsica, Peggy começou o processo de Cura de Mem ó rias, retraçando os eventos


da vida de Martin e orando pela cura de cicatrizes emocionais ou “quebra-
duras resultantes”.
No decorrer da Cura de Mem ó rias, Peggy sentiu que Martin conse-
guiu superar uma grande quantidade de raiva do pai suicida, e que a atitude
dele em relação à m ãe natural també m melhorou substancialmente (ela
mora numa casa subsidiada pelo governo em uma cidade vizinha, vivendo
de seguro social e algum investimento). Se antes ele dificilmente conseguia
tratá-la com civilidade, tornou-se capaz de conversar com ela, dizer a ela que
a amava, e tratá-la com compaixão. Martin cresceu em vigor físico e emoci-
onal e recuperou o peso perdido. Ele se mudou de volta para sua própria
casa, embora ainda não pudesse trabalhar, passando muitos de seus dias na
casa de Peggy. Ao considerar o estado dele naquele primeiro encontro, Peg-
gy, Martin e Randy concordaram que a experiência de cura literalmente
salvou-lhe a vida. Mas Martin ainda não estava curado.
Embora ele tivesse “superado” boa parte da raiva que tinha de seu pai,
Martin ainda sentia “mais raiva do que gostaria”. (Na Cura de Mem ó rias, o
perdão sincero de erros passados é um dos principais fatores da cura bem-
sucedida.) Al é m disso, ele ainda experimentava todo um conjunto comple-
mentar de problemas cró nicos e intratáveis, que serão descritos mais adiante.
Embora Peggy pensasse num primeiro momento que a Cura de Memórias,
ao resolver a “quebradura” de Martin, eliminaria esses problemas, ela aca-
bou convencida de que eles aconteciam por influência de um espírito ma-
ligno. Com efeito, Martin havia atingido um platô. Peggy o considerou
emocionalmente “reconstituído” no sentido de que, intelectualmente, ele
sabia o que queria sentir, mas estava impedido de experimentá-lo pelo espí-
rito maligno.
Foi Deus, declara Peggy, que lhe disse que ela estava lidando com um
espírito maligno ou um demó nio. Ela havia pensado que estava “pegando”
telepaticamente alguns pensamentos de Martin, mas agora se dava conta de
que era o espírito falando. Deus disse a ela (através da inspiração) para “con-
frontar” o espírito a fim de determinar sua identidade. Quando ela desco-
briu sua presença, ele reagiu violentamente com a mensagem telepática de
que iria “apagar Martin”. Peggy tentou fazer Martin sentar, mas subitamen-
te ele desmaiou.

171
! ! !:
CORTO / SIGNIFICADO / CURA

A comunicação entre Peggy e o demó nio tinha sido silenciosa , c Mar-


! tin n ão antecipara o desmaio nem sabia que algo “estava acontecendo”. Essa
ocorrência foi uma confirmação da presen ça do esp írito. Peggy indagou
; entã o sua identidade, c descobriu que era um espí rito de Pornografia, ou se
' ; preferisse, um espírito de Sexualidade Anormal.71 Esse nome foi “confir-
mado” numa conversa telefó nica com um m édium local conhecido de Peg-
I gy, e através de vários incidentes envolvendo Randy e um hóspede de fora
da cidade.
Embora Peggy pensasse no in ício que o espírito estivesse no exterior
: de Martin , oprimindo-o e molestando-o de “fora”, ela se convenceu diante
de sua intransigência e seu grau de influê ncia que ele tinha ido morar “den-
' tro” dele, mesmo que não tivesse ainda a “possessão” absoluta de sua perso-
!
nalidade. Ainda assim, esse mesmo espírito de Pornografia é vassalo de um
espírito mais agourento fora de Martin, que espreita de perto em silêncio.
Peggy e Randy conseguiram ter lampejos vision ários do espírito. Ele apare-
. ceu numa silenciosa figura masculina; alto, cabelos escuros, de sobretudo,
dignificado e exsudando um poder frio. Eles descobriram que seu nome é
Andronius, mas não atribuíram qualquer significado especial a esse nome,
exceto que ele indica um alto grau na hierarquia demon íaca. O papel desse
espírito era ambíguo, mas sua presen ça tornou mais colossal a tarefa de
i Peggy como curadora e incrementou a dramaticidade da situação.72
A crítica para a compreensão do processo terapê utico em muitas for-
mas de cura religiosa é a maneira pela qual os sintomas e os eventos da vida
; são reinterpretados e tornados consistentes em termos c}e temas religiosos
-
(Bourguignon , 1976; Monfouga Nicolas, 1972). No presente caso, houve

71 Na rradição religiosa carismá tica, demónios geralmcnte têm nomes retirados do repertório
cultural de emoções negativas, traços de personalidade e comportamentos (veja Capí tulo
Um).
7- Peggy
; rejeitou a noção de que se poderia negociar com /ou “converter” o espírito sob o
argumento de ser ele um dos subordinados de Satanás e, enquanto tal , irremediavelmente
diabólico. Ela também rejeitou a noção de que o espírito fosse o falecido pai dc Martin ,
embora tal identifica çã o pudesse ser aceita por alguns curadores carismá ticos católicos que
praticam cura “gcracional" ou “ancestral ” (veja Capítulo Um).
:
1 •'

172
|
i !
A Aflição de Martin

uma dupla interpretação. A primeira era intrínseca à Cura de Mem ó rias, na


qual Martin foi reconciliado com os eventos irresistivelmente traumá ticos
de sua primeira infâ ncia. Temas de quebradura, perdão e a invocação da
presen ça curadora de Jesus na memó ria de eventos traum á ticos são essenci -
ais para essa reinterpretação. Com o insucesso dessa cura, a descoberta de
uma presença demoníaca motivou uma segunda reinterpretação. O espírito
maligno se tornou um elo entre os eventos traum á ticos da vida e a gé nese
dos sintomas de Martin.
No sistema de cura pentecostal católica, particularmente, os espíritos
malignos são vistos como predadores na vulnerabilidade criada por tais even -
tos. Assim o espírito começou a pairar ao redor de Martin quando este
tinha nove anos, depois do suicídio do seu pai. Quando estava no orfanato,
Martin participara de uma sessão com algumas outras crian ças, durante a
qual ele “viu coisas se movendo pelo quarto”. Mesmo tendo tido pouca
relevâ ncia para ele, esse evento agora era relembrado e ganhava significado
como um incidente de envolvimento com o “oculto” que permitiu ao de-
mó nio aumentar sua influência sobre a “personalidade” de Martin. Sua lem-
brança de “ver cores” foi interpretada por Peggy em termos da emissão de
luz dos “cakras” enquanto o espírito tomava posse de diferentes partes do
seu corpo.
Assim, as fantasias sexuais ostensivamente normais que começaram
aos 13 anos tornaram-se obsessivas aos 15 enquanto o espírito, que agora já
entrara em Martin para valer, se aproveitava dos impulsos eró ticos naturais
de um adolescente. Peggy pôde ver uma “massa cinzenta” engolfando a ca-
beça de Martin, aparentemente o equivalente visionário da “rede” que ele
havia sentido descer sobre si aos 15 anos de idade. A voz que Martin ouve
algumas vezes representava-se como três vozes separadas, embora Martin
estivesse convencido de que era realmente apenas um esp írito. Peggy expli-
cou esta ast ú cia como um exemplo t ípico de “fraude” demon íaca (Satanás é
o Pai das Mentiras) , e o motivo três-em-um como uma "blasfê mia” da
parte do esp í rito em zombaria diabó lica da Sant íssimaTrindade. A dificul-
dade de separar o pró prio pensamento do pensamento do espírito demons-
tra como o espí rito “ leva você” aos poucos, assumindo por etapas progressivas
a personalidade da pessoa.

173
"1
1

!
. 1 CORPO/ SIGNIFICADO / CURA

A organização sensorial do sofrimento


'
Feito esse balan ço narrativo da vida prcgressa de Martin , sua crise c a
tentativa inicial de Peggy para curá-lo, vamos voltar a uma descrição mais
detalhada da natureza de seu sofrimento. Não enquadraremos a descrição
em termos de sintomas patológicos nem de manifestações demon íacas. Em
vez disso, n ós a organizaremos com base na observação de que todas as
modalidades sensoriais e cognitivas de Martin estão engajadas e envolvidas
em sofrimento.
A modalidade auditiva é dominada por uma voz experienciada como
audível; contudo, Martin não alega exatamente “ouvir uma voz”, ao invés
disso, ele “ouve pensamentos”. Ele descreveu o modo com que a voz o
manipulava nos primeiros anos. Ele acreditava que ela “sabia tudo a meu
respeito”. Ela fazia tratos com ele, concordando, por exemplo, em n ão falar
sobre o seu pai se ele fizesse certas coisas que ela queria. Ela discutia religião
com ele; em certa ocasião, sendo “mais esperta” do que ele em uma dessas
discussões, ela conseguiu “penetrar nas suas entranhas”. Ela também debo-
chava da m ãe adotiva de Martin. Sobre sua mãe natural ela dizia “minha
mãe me deixou” ao invés de “sua mãe lhe deixou”, levando-o a perder cons-
ci ência da distinção entre a voz e ele mesmo. A mudança da pessoa grama-
tical “faz você pensar que é seu próprio pensamento”. Numa outra experiência
auditiva sem envolvimento da voz, um som alto e crepitante ocorre quan -
do a voz temporariamente “solta” sua presa.
A obsessão pornográfica engaja a modalidade visual de Martin com
imagens eidéticas irresistíveis. Esse imagin ário pode emergir espontanea-
-
mente a qualquer momento até mesmo acordando o de seu sono. Nessas
ocasiões, Martin é “ bombardeado” com quadros sexuais. As imagens mu -
: dam rapidamente de uma cena para outra. Elas freqiientemente iniciam
com figuras heterossexuais, mas progridem para homossexualidade, bestia-
lidade, sexo com crianças e sexo que inclui dor e violência. Os quadros são
acompanhados por sensações sexuais quase irresistíveis, tornando a resistên -
cia (à masturbação) muito difícil. Esses sentimentos são, alternadamente,
acompanhados por sentimentos igualmente poderosos de aceitação e desejo
de capitular à influência das imagens. Parece “gostoso” e “certo” ceder e, em
tais momentos, a presença da voz soa como um tipo de amizade e compa -

174
A Afliçã o de Martin

nliia difícil de abandonar. Se sua força de vontade decai em resposta ao assalto


das figuras, sua oniprcsente dor de cabeça diminui um pouco. Se ele começa
novamente a resistir, a dor se intensifica outra vez. Nem sempre a resistência
de Martin é bem-sucedida, c algumas vezes ele sucumbe ao desejo de mastur-
bação. Ele teme que a trajetória da sua experiê ncia aponte para uma visão de
mundo em termos cxclusivamente sexuais, mas continua lutando contra isso.
A modalidade tá til da experiê ncia de Martin é dominada por sua irre -
mediável enxaqueca, cuja dor diminui um pouco se ele afrouxa a resistência
às imagens. A sensação de um nó na cabeça acompanha o episódio imagéti-
co. Esse nó permanece mesmo quando a dor abranda. Muitas vezes ele sente
uma “fisgada” e um “puxão” dentro da cabeça, frequentemente em resposta
a situações com teor ou interesse espiritual, mas essa experiência apenas é
visível raramente para os outros na forma de um tique. Períodos de afli ção
máxima são evidentes pelo embaçamento do olhar de Martin e um espessa-
mento ou inchaço de suas pálpebras. Ele também experimenta uma dor
periódica nas articulações, e graus variados de dor nas regiões do estômago e
da virilha. As sensações no estômago e na virilha também incluem fisgadas
ou puxões; por exemplo, algumas vezes seus testículos são puxados. Essas
sensações ocorrem em momentos inesperados e com frequência ele as expe-
rimenta como sexualmente estimulantes. Martin também sente um puxão
nos intestinos sempre que seu pai é mencionado. Ele periodicamente sente
um grande calor no corpo, e a temperatura de seu corpo varia. Algumas
vezes sente seu corpo “como gelatina”; h á um “movimento fluido” nele,
“como se outra pessoa estivesse tentando embutir a personalidade” dela no
corpo dele. Essa configuração de sensações físicas é coroada com uma sensa-
ção de peso, como se ele estivesse sendo empurrado para baixo, e um cons-
tante esgotamento de energia. Finalmente, numa ocasião durante sua
associação com Peggy, ele subitamente sentiu como se estivesse sendo joga-
do no chão com violê ncia.
A modalidade gustativa é engajada como um sabor horrível na boca de
Martin, e às vezes sua comida tem gosto ruim. Sua saliva algumas vezes fica
espessa, especialmente de manhã, quando ele acorda. O sentido do olfato
de Martin não é diretamente afetado, mas em vez disso ele exala odores que
repelem os outros, inclusive halitose extrema e odor corporal. São cheiros
tão fortes que, horas depois de Martin sair de casa, após pernoitar num

175
I!
!

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

|
;
quarto de h óspedes na casa de Peggy, a filhinha dela notou que o quarto
"cheirava exatamente como a boca de Martin”.
1 : Distorções específicas de pensamento e emoçã o també m se entrela-
çam nessa configuração da aflição. Martin tem extrema dificuldade de manter
i a concentração, especialmente em tó picos religiosos. Quando ele acompa-
nha Peggy e sua fam ília à igreja aos domingos, ele considera difícil rezar. Os
i textos de leitura religiosa normal “se apagam” à sua frente. Do nosso pró-
i
! prio ponto de vista analítico, a experiência dele parece fundir concentração
e atenção com intensidade de sensação e fé religiosa, pois junto com esses
exemplos Martin incluiu a observação de que quando estava lendo o ritual
católico de exorcismo, “eu n ão tinha certeza de estar acreditando no que
estava fazendo”. Além disso, apenas com muita força de vontade ele pode
J desempenhar atividades normais como conversar ou trabalhar no computa-
dor. Como em suas experiências com a leitura religiosa, se a conversa muda
. para assuntos teológicos, ele perde a concentração, seus olhos embaçam e as
pálpebras ficam visivelmente mais espessas.
Entre as distorções emocionais ele relata experi ências de raiva que seri-
am , em retrospecto, ou sem motivo, ou reações obviamente exageradas a
pequenas irritações. Ele experiencia também fortes sentimentos de ansieda-
de e medo. Martin resume o efeito geral de sua tribulação como uma cria-
;

ção de “pânico em seu corpo”, e a sensação de estar “correndo dele mesmo


.
Os padrões de sono de Martin também são desordenados. Lembre-
mos que ele teve insónia severa durante dois meses antes de iniciar sua rela-
ção de cura com Peggy. À época de nossas entrevistas, ele ainda sofria
de
;! insónia periódica e, às vezes, era acordado no meio da noite por um fluxo
de imagens e pensamentos pornográficos.
,
Em um fen ômeno que ela descreveu como “espelhamento psíquico
Peggy começou a experimentar muitas das mesmas formas de sofrimento
;
que afligiam Martin. Em geral , ela sente que através da experiência da dor
dos outros ela pode absorver e neutralizar aquela dor. Com Martin, contu -
do, ela admitiu que a situa ção “saiu do controle”, e o dem ónio começou a
-
atacá la nos seus “pontos fracos”. Ela relatou todos os mesmos sintomas
que Martin relatou, com exceção da dor nas articulações, a halitose e o odor
corporal. Frequentemente, suas pelejas com o espírito maligno eram simul -
i; tâneas, embora seu conte ú do n ão fosse necessariamente o mesmo.

I 176
, !
A Afliçã o de Martin

Peggy disse que começou a sentir um pouco de dor de cabeça assim


que ouviu falar de Martin, três anos antes das nossas entrevistas. O espírito
começou a “sacudir sua cabeça” e atacá-la de outros modos assim que Deus
revelou a identidade dele e ela o “confrontou”. Mais tarde a dor se tornou
tão intensa e constante que ela tinha dificuldade para meditar e sua capaci -
dade de lembrar as coisas ficou comprometida.
O esp írito maligno também a atacou verbalmente, gritando, prague-
jando e a chamando de “todos os nomes”, por exemplo, gritando “sua va-
dia!” como se de muito longe.73 Ela declarou que essa onda vision á ria de
insultos significava que o espírito se sentia ameaçado porque foi ela quem
revelou a presença dele. O demónio também tentou enganá-la e ameaçá la, -
dizendo, por exemplo, “Deus lhe abandonou, agora você me ama”, ou “me
dê para outra pessoa e eu vou embora” (dem ónios devem ser “enviados”
para Jesus ou para o Inferno, nunca para afligir outra pessoa). Ele pode
ameaçar a fam ília dela com algo de natureza sexual ou dizendo que os jogará
no fogo. Outro truque retórico (visto como tipicamente demon íaco) é a
condenação. Se ela se sente cansada pela manhã, o espírito pode dizer “vá
tomar uma xícara de café”. Se ela tomou uma, o espírito zomba dela, dizen-
do “Você conhece mais de nutrição que isso [para usar uma substância tão
insalubre].”
O assalto sexual do espírito maligno a Peggy incluiu visualização e
sensação física como fisgadas nos ovários e sondagem sexual de seus seios e
vagina durante a noite. Suas visualizações eram “como um programa de
TV” com uma histó ria de episódios sexuais acompanhando as imagens. No
in ício essas visualizações eram um pouco abstratas, mas começaram a in-
cluir pessoas que ela conhecia. As visualizações algumas vezes vinham num
fluxo constante, quase como um estado hipnó tico, um estado de preocupa-
ção no qual pensar com clareza era extremamente difícil. Havia um tipo de
“pressão” sobre seus olhos que a induziam a olhar as pessoas apenas sexual-

7J
Contudo, nessas imprecações, ele jamais enuncia diretamente o nome “Jesus”. Esse é um
elemento notável de formatação ou modclagem cultural e religiosa da audição espontânea
e pode ser interpretado de acordo com a crença de que Jesus é tão poderoso que um
demó nio teme em usar seu nome atá mesmo numa maldição.

177
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
'
.
mente Ela diz: “ Você se sente como se você fosse pornografia.” As visualiza-
ções ocorrem sem qualquer aviso, dia ou noite, algumas vezes acordando-a
do seu sono. No meio de uma de nossas entrevistas, por exemplo, Peggy
disse que a imagem vívida da vagina de uma mulher surgira cm seu campo
de visão, embora ao mesmo tempo ela ainda pudesse nos ver.74
' Peggy disse que era especialmente suscetível às imagens pornográficas
!•
quando estava cansada e perdia a calma. O espírito também provocou dire-
tamente raiva e vontade de dizer coisas vulgares (coprolalia) . Embora ela se
í considere “temperamental ” por sua origem étnica, o espírito intensifica essa
característica. O espírito também controlava seus m úsculos faciais, mode-
lando-os numa expressão de ira, tentando assim ludibriá-la para que sentisse
raiva mesmo quando ela sabia subjetivamente que não sentia.75 Contudo,
Peggy sentia que tinha mais controle sobre suas experiências do que Martin,
pois ainda podia encontrar alívio e conexão m ística com Deus através da
oração apesar da dor inevitável. Ela também se sentia mais capaz de distin-
guir entre seu próprio pensamento ou emoção e algo provocado pelo espí-
; rito. Por exemplo, ela disse que várias vezes sentiu raiva da minha presença,
mas se deu conta de que era a raiva do espírito. Isto é, o espírito percebia
uma ameaça, e sua raiva indicava portanto que devíamos continuar as entre-
i
vistas. Por outro lado, Martin só pode comparecer à primeira das nossas três
entrevistas; o demónio o havia persuadido de que sua participação seria
literalmente dolorosa demais.
Peggy interpretou seu próprio sofrimento como essencial para a liber-
tação de Martin do espírito maligno. Deus “disse a ela” que sua dor perma-
neceria até ele sair de Martin; o fim da dor seria o sinal de que ele estava
livre. Ela senda que era apenas um alvo indireto para o espírito maligno, e
que Deus queria que ela servisse dessa forma como “ barómetro” do sofri-
! mento de Martin para ela poder entender sua din âmica e então falar por
Martin. Ela própria n ão precisaria de uma Libertação, pensava, mas seria

74 Compare com a discussão da sobreposição de imagens na alucinação de Merleau -Ponty


( 1962, p. 334-345 ).
75 Compare com a teoria das emoções proposta por William
James ( 1967), na qual a experiência
emocional é uma resposta a mudanças biol ógicas e físicas prévias.

178
A Afliçã o de Martin

automaticamente libertada quando ele fosse libertado. Deus também indi-


cou que psiquiatras n ão teriam qualquer serventia neste processo.
Randy també m sentiu que tinha um papel a desempenhar. Ele sentiu
apenas perifericamentc a presen ça do esp írito maligno, às vezes tendo insó -
nia quando Peggy e Martin tinham insónia, às vezes tendo sensações inco-
muns de quente e frio (cabeça quente enquanto os pés estão gelados). Algumas
vezes durante uma cena sexual em um filme ele sentiu um calor externo ao
redor da cabeça, embora “não explicitamente um calor sexual ”. Afora essas
experiê ncias menores, Randy sentia um paralelismo da sua situação com a
de Martin, pois seus pró prios planos de carreira estavam desorientados e
parados. Ele veio a considerar esta aparente estagnação como parte do plano
de Deus nessa circunstância , para que ele pudesse, num certo sentido, fazer
companhia a Martin na medida em que este se sentia angustiado com uma
vida que há vários anos tem se espelhado na incapacidade. Randy sentia que
Deus permitiria o amadurecimento de seus próprios planos de vida quando
Martin estivesse curado.

A luta pela integração

Peggy fez várias tentativas para obter ajuda externa, mas sentia uma
relutância geral da parte de outros para lidar com problemas de origem
demoníaca, e a obstinada resistência do próprio espírito também militava
contra o sucesso. Três vezes Martin esteve na presen ça de um curador cató-
lico altamente reputado que teoricamente poderia ter ajudado. A primeira
vez foi quando Peggy e Randy o levaram a um serviço p ú blico de cura
numa cidade próxima, conduzido por um padre curador da Nova Inglater-
ra conhecido nacionalmente. Martin ficou chateado e com raiva; ele saiu
sem receber uma un ção (com óleo bento) e vociferou contra Peggy no carro
voltando para casa. Eles consideraram essa conduta completamente contro-
lada pelo espírito maligno, cujos interesses correram grande risco na sessão
de cura.
Os canais formais dentro da Igreja tampouco serviram para obter aju-
da. Os padres da paróquia de Peggy alegaram falta de familiaridade com
fenômenos demon íacos e declinaram qualquer engajamento na situação. O
bispo local respondeu que não entendia dessas coisas, e indicou um padre

179
I! r

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

i ; jesu íta que era respeitado como conselheiro na dioccsc. Dc acorclo com
I Peggy, esse padre reconheceu a realidade dos seus dons dc cura , mas n ão
estava convencido da necessidade dc Libertação ou exorcismo no caso dc
Martin.76
Peggy deu apenas um passo nas preliminares do exorcismo formal,
uma entrevista obrigató ria com um psiquiatra. Vale a pena notar que ela, c
n ão Martin, realizou essa entrevista. Peggy conta que após ouvir o seu relato
da oração para Cura de Memórias aplicada às cicatrizes emocionais do pas-
sado dc Martin , a psiquiatra concluiu que Peggy já havia feito o que ela
mesma faria cm terapia, e que era questão de tempo até que Martin mclho-
nsse. A detalhada apresentação feita por Peggy, dos sintomas provocados
pelo espírito, aparentemente pouco impressionou a profissional da sa ú de
mental, seja para convencê-la da imputação demoníaca, seja para sugerir a
necessidade de intervenção terapêutica posterior. Contudo, a psiquiatra no-
tou que três anos depois de ter se tornado quase um membro da fam ília de
.
Peggy, a dificuldade de separar-se poderia estar criando um obstáculo para a
recuperação de Martin. Peggy reconheceu essa possibilidade, mas também
expressou confian ça na sua habilidade e motivação (cessação de sua própria
dor) para levar a termo a situação. Assim, isolados e num doloroso impasse


O rito formal de exorcismo da Igreja difere da oração de Libertação cm dois Pont°*
importantes. Primeiro, implica uma possessão plcnamcntc materializada na qual se enten
que o demónio está dentro da pessoa e cm controle dc todas as suas faculdades. u^n
situação que demanda Libertação, o demónio está geralmentc fora da pessoa, atormentan
c “oprimindo’’ ao invés de possuí-la. Esta distinção em grau de severidade é crucia p
reivindica ção dc legitimidade da oração dc liberta ção , que é emprestada da tr v^
pentecostal protestante, no contexto católico . Isso incide dirctamcntc sobre a SCB
diferença entre as duas formas rituais, qual seja, o exorcismo deve ser executado P°r U ,
^
padre com a autorização formal do bispo local , e requer um procedimento dc elegio* i
no qual todas as outras causas , incluindo psicopatologia , devem ser sistem á tica
excluídas antes da causalidade ser atribu ída a um esp í rito maligno. A oração dc Libert
cm tese, por ser supostamente menos séria, 6 frcqucntemcntc conduzida por leigos-
formato da oração é muito mais flexível que o do exorcismo, c a presença de um &P
maligno é estabelecida n ã o através de um procedimento formal , mas atrav s
discernimento do curador ou curadores. (A oração dc Libertação é freqUcntcmcntc c ^
em equipes de vá rios curadores cujos “dons espirituais" s
ão complementares).

180
!
A Afliçã o de Martin

com o demó nio, Peggy, Randy e Martin continuaram ficlmente esperando


Deus determinar o momento da libertação.
Peggy acreditava que Martin tinha uma grande força interna, que esta-
va crescendo. Ela acreditava que “ele vai fazer o trabalho de Deus com muita
força em algum momento no futuro”. De fato, essa força fez dele um alvo
importante para Satan ás. Durante o segundo ano em que acompanhei o seu
caso, Martin decidiu entrar num treinamento de catequista cat ólico c foi
batizado como católico na Páscoa do ano seguinte.77 Peggy informou que
após seu batismo, Martin começou a encontrar alívio temporá rio nos sacra-
mentos da Igreja Católica no sentido de a opressão demon íaca ter “aliviado”
o seu “peso” habitual. Ainda assim, ir à igreja era difícil por causa da resistên-
cia do espírito, e a mente de Martin geralmente ficava “enevoada” logo antes
de chegar perto do altar para receber a Eucaristia. Contudo, Martin fez uma
escolha para ir adiante com a sua vida. Ele disse "eu posso ficar imobilizado
ou ir adiante”, e escolheu seguir em frente. Ele se matriculou em cursos de
mecâ nica de automóveis e computadores na escola técnica local e logo co-
i meçou a consertar carros para Peggy, seu marido e um dos moradores de sua
casa. Ele também fez um curso de teologia com um padre na universidade
local, apesar da persistente “ bruma” mental que o obrigava a ler e reler seus
livros, e apesar de sua dor persistente e das imagens sexuais incontroláveis.
Contudo, de acordo com Peggy, os pequenos sucessos de Martin ampara-
ram sua vontade e fortaleceram seu ego.
Diante de cont ínua tribulação, Peggy afirmou ter chegado a um n ível
de meditação mais profundo do que nunca, onde encontrou pelo menos
refugio temporá rio. As pessoas ainda a procuram para curas, apesar de a
certa altura ela ter se sentido tão exausta de lutar contra o espírito maligno
*lUe manifestou a inten ção de se aposentar. Após mais de quatro anos de

Não houve qualquer manifestação perccptível do espí rito maligno durante aquela porção
do r to batismal , que inclui uma oração de exorcismo; nem houve qualquer evidência de
'
^ o dom í nio do espí rito ficasse enfraquecido pelo rito. Embora eu tenha questionado
Pc8gy cspccificamcntc sobre isso , ela pareceu não ter considerado aquele momento
significativo. Com respeito a “manifestações" comportamentais explíciras, contudo, abe
llotar fine o espí rito maligno fazia sentir sua presença em qualquer situação que pudesse
resultar em embaraço público para os envolvidos.

181
:
it

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

batalha, o encontro com um espírito maligno parecia ter se instalado cm


um modo de vida sem outro incidente dram á tico. Incapazes, por fim , de sc
libertarem da influ ência do espírito, eles conclu íram que deveriam , nos ter-
mos de Peggy, “aprender a viver com a aparê ncia de absoluta normalidade”.
Logo antes do Natal no ano que se seguiu ao batismo de Martin,
Peggy descreveu as mudan ças que haviam ocorrido e as melhoras em relação
ao seu estado anterior como “ beirando o milagre”. Ele completara o treina-
! mento técnico em mecânica de autom óveis e continuou o treinamento em
! computadores. Contudo, os problemas básicos persistiram , em sua maio-
ria, incluindo lentidão, fadiga, embotamento e um peso sobre o corpo in-
teiro, especialmente sua dor de cabeça em outras partes do corpo e um
1 conjunto de imagens espontâneas. Ele n ão sentiu mais fluidez e dissolução
de seu corpo porque, disse Peggy, ele agora “sabe a verdade” a respeito do
’ seu problema. Contudo, seus problemas criaram dificuldade no ambiente
escolar.
‘ ’ As fantasias sexuais incontroláveis sobre colegas de classe, aparente-
mente masculinos e femininos, eram particularmente incómodas. Os indi-
>

víduos que atraíam sua atenção não eram necessariamente aqueles que
“chamariam normalmente aten ção” dele, e ele achava “irritante olhar para
um sujeito de 120 quilos e querer dar em cima”. Peggy explicou que o
espírito “vê através de seus olhos”, então embora ele não veja ninguém que
o atraia no n ível “real”, no “outro” n ível, ele quer “pular em cima de tudo o
que se move”. Peggy confirmou que Martin tinha se mantido distante das
garotas na faculdade por causa de seu problema, sugerindo que ele n ão na-
morava por causa da dificuldade de “controlar seus sentimentos”. Ele não
tinha amigas, e Peggy achou que isso não seria recomendável a não ser que
fosse algu ém da mesma orientação espiritual, com quem ele pudesse se
I abrir sobre seus pensamentos.
Martin também temia que os outros fossem capazes de perceber a
atividade demon íaca através do seu comportamento. Em particular, havia
um “movimento em seus olhos” que Peggy podia perceber porque ela tem
poderes psíquicos. Parecia “quase um outro olho atrás do seu olho” , ela
disse, mas n ão conseguiu explicar melhor: ela não sabia se o espírito real -
mente possui olhos próprios ou n ão, mas sua percepção do olho oculto est á
de acordo com sua interpretação de que o espírito via através dos olhos de

182

,
A Afliçã o de Martin

Martin. Ela observou, contudo, que esta manifestação só ocorria quando


cie estava “fraco” , c muitas vezes quando eles estavam expostos em p ú blico.
Ela qualificou isso de nada mais que uma exacerbação de um “nervosismo
natural ” associado ao sair à rua, e achava que os outros percebiam as mani-
festações demon íacas em Martin apenas como “ um pequeno nervosismo”.
Ele porém estava preocupado, e ela achou necessário “ajudar a mantê-lo
focado no fato de que ninguém pode perceber.”
Peggy continuou aflita e estava preocupada com a sua pró pria raiva, e
especialmente inquieta com a possibilidade de “perder o controle”. Sua ex -
periência permaneceu vinculada à de Martin, pois, sempre que ele perdia
um pouco de controle pessoal, ela era afetada. Por exemplo, quando ele
estava em outro lugar qualquer trabalhando no carro de algu ém , ela, de
i
repente, sentia um aperto na cabeça, sua mente se ligava em pensamentos
sexuais e as imagens começavam a inundá-la. Ao mesmo tempo, Martin
não tinha conseguido apertar um parafuso e, quando ele “perde seu equil í-
brio”, o espírito maligno “solta sua personalidade, que é pornográfica”.
Um segundo exemplo foi a ocasião em que Martin estava na escola
enquanto Peggy estava com o cachorrinho no quintal. De repente ela sendu
um “pingo num lugar sexual como se meu estô mago dvesse caído, zás.” Ela
soube depois que a mesma coisa estava acontecendo com Martin na sala de
aula, uma reação sexual por estar cercado de homens e mulheres.
No final do verão, apesar de um persistente “bloqueio na cabeça” e da
“neblina” mental, Martin continuava aumentando seu n ível de funciona-
i mento social. O marido de Peggy ajudou Mardn a obter um serviço de
meio turno, recomendando-o para trabalhar com aplicações informatizadas
de estatística num departamento da universidade local. Preparando isso,
Peggy passou o mês de maio todo em “pesada oração”, recitando três rosári-
os por dia, e foi “ informada” pela Virgem Maria que o poder da oração iria
remover o dem ó nio. Ainda assim ele “fez pressão” para evitar que Martin
começasse o trabalho, causando dor, medo, uma comoção de baixa auto-
estima enquanto tentava enfraquecê-lo no seu “garrote emocional”. Martin
e Randy ficaram acordados orando a noite inteira antes de seu primeiro dia
de trabalho. Peggy pensou que todo o esforço seria perdido porque o esp í-
rito “tem ú m grau de controle indiscutível sobre ele”, mas ficou impressio-
nada com a habilidade de Martin de se manter sem dormir.

183

rn

CORPO / SIGNIFICADO / CURA
!
' Uma manh ã, nos primeiros dias de trabalho dele, cia mais uma vez
mandou o espírito ir embora, e o tórax de Martin “fez znpe" e ela o viu
:
sendo empurrado de dentro para fora como se houvesse um “punho esmur-
rando lá de dentro”. A despeito desse assalto demon íaco, Martin havia sc
ajustado ao trabalho nos dois meses anteriores à minha entrevista final com
Peggy. Sua rotina semanal inclu ía escola todas as manhãs e trabalho todas as
tardes. Após o trabalho ele freqiientemente nadava na piscina da faculdade,
o que, segundo Peggy, tinha um efeito “refrescante” benéfico dada a inten-
sidade incessante de seu sofrimento. Toda noite ele jantava com Peggy e sua
! fam ília, e, como o seu computador estava instalado na casa deles, passava ali
uma boa parte de seu tempo livre. Ele tinha visitado a m ãe cada sexta-feira
durante um ano até que ela “deslizou” e largou a medicação para transtorno
I
depressivo bipolar. Aos domingos, ele ia à missa e comungava regularmen-
te. Randy, que havia formulado um plano de viver como escritor e susten-
tar-secom um emprego pú blico pouco estressante, normalmente juntava-se
à fam ília para o jantar de domingo.
A principal diferen ça que Peggy viu em Martin foi uma maior capaci-
dade de “discernir” seus próprios pensamentos e reações daqueles do demó-
nio. Ela exemplificou dizendo que certa vez ele perdera de vista sua própria
dor, distanciando-se dela e tendo assim menos sensibilidade e sensações no
corpo. Martin teria afirmado que no in ício de sua aflição ele podia distin-
guir entre seu próprio selft a presença estranha, mas que perdera essa habi-
,

lidade enquanto o dem ónio progressivamente se fundiu com o seu self Ele .
agora parecia estar recuperando essa capacidade, e às vezes podia dizer “ isso
não é pensamento meu”. Ele ainda sentia claramente as imagens pornográ-
ficas, mas também as considerava exteriores. Segundo Peggy, ele expressou
um desejo de “liberdade” e se tornou capaz de enunciar a oraçã o de “coman-
do” para que o espírito saísse dele. Uma dificuldade importante que restou
foi que ele tinha pouco ou nenhum contato com suas emoções - nenhum
“sentimento do coração”, de acordo com Peggy - sendo incapaz, por exem-
plo, de distinguir entre “amor” e “sexo”. Apesar desse isolamento das pró-
prias emoções, ele vinha aprendendo a conduzir sua vida através de uma
compreensão “intelectual ” de o que é “certo ou errado”.
A interpretação de Peggy da situação nessa época era que embora o
espírito maligno fosse de um escalão bastante alto na hierarquia demon íaca

184

I
A Aflição de Martin

(como seu nome misterioso indicava), a persistê ncia das suas orações fora
capaz de evitar que ele tivesse acesso à ajuda de outros espí ritos mais altos,
de modo que ele estava isolado e ( presumivelmente) na defensiva. Martin
ainda exalava, às vezes, o “odor de uma enfermaria” , fosse em seu hálito ou
em seu odor corporal , e Peggy ainda podia perceber psiquicamente uma
aura cinzenta em volta dele indicando “ insalubridade”; ela podia ver tam-
bém o espírito “se mover por trás dos olhos dele”. Assim, o problema ainda
estava lá , mas Martin estava “seguindo em frente a despeito das desvanta-
gens enormes” porque “você vai em frente com a vida”.

Significados psiquiá tricos e religiosos

A fim de gerar relatos culturalmente competentes da aflição de Martin


dentro de dois sistemas de cura distintos, preparei uma descrição de caso
detalhada baseada em um diá rio de campo que vai até a época do batismo
católico de Martin. A descrição do caso foi apresentada a cinco ministros de
cura carism á ticos com quem eu havia trabalhado em um estudo do proces-
so terapêutico em cura religiosa. Todos os cinco eram reconhecidos como
curadores legítimos no movimento carismá tico local. A descrição foi apre-
sentada també m a cinco profissionais da sa úde mental, todos com vasta
experiência tanto em pesquisa como em prática clínica. O texto examinado
por esses dez indivíduos era basicamente o mesmo que acaba de ser apresen-
tado, de forma que a leitora e o leitor poderão comparar a sua própria
leitura dos dados com o relato clínico e o relato carismático.

0 relato carismático

Entre os cinco ministros de cura pentecostais católicos havia duas fiei-


ras, um padre, outro padre que trabalha em dupla com uma mulher leiga, e
uma mulher leiga auxiliada por uma equipe de mais cinco mulheres. Cada
um deles (chamados a partir de agora pelos n ú meros de 1 a 5) é reconhecido
dentro do movimento, embora seus renomes variem do âmbito local ao
regional e ao nacional. Um dos padres tem formação profissional em acon-
selhamento e psicoterapia; à exceção dos conhecimentos adquiridos em acon-

185
•;
jit ;] I I
r !i
!i :
r : CORPO / SIGNIFICADO / CURA
ii r
sclhamento pastoral por padres e freiras como parte do treinamento religi-
oso, o conhecimento dos demais vem apenas da prá tica de cura carism á tica.
i Assim como os profissionais da sa úde mental , eles foram informados dc
que o objetivo dos seus comentá rios era “ajudar a separar os significados
psiquiá tricos e religiosos” do caso. De acordo com os princípios do seu
sistema de cura, nã o lhes foi solicitado um “diagn óstico com impressões
i ‘
: dinâmicas”, mas sim o seu “discernimento” religioso sobre se um espírito
maligno estava ou não presente no caso, uma interpretação daquilo que
estava errado e uma razão para a cura ter sido aparentemente ineficaz.
O resultado mais surpreendente desse exercício é a concord â ncia geral
I de que uma das origens do problema está na curadora, enquanto a questão
da presen ça de um espírito maligno parece secundária e é, de fato, objeto de
alguma discordâ ncia entre os consultores. Essas duas observações estão liga-
I das por uma importante característica do sistema de cura. Isto é, o conheci-
mento que os curadores participantes trazem para o estudo desse caso é
í i
conhecimento empírico, baseado em experiências concretas em encontros
de cura e sistematizado por compartilhamento através de veículos como
publicações e conferências.
Na avaliação da descrição do caso, houve menos ambiguidade dos cu-
radores em aplicar seu conhecimento empírico às prá ticas e experiências de
sua colega curadora do que em determinar a presença de um espírito malig-
no, o que exige uma interação frente a frente com a pessoa atormentada.
Mais do que isso, no entanto, os curadores assumem implicitamente que se
alguém tem o dom e a competência para identificar espíritos malignos e
;
saber como lidar com eles, então essa pessoa pode usar as técnicas espirituais
mais ou menos rotineiras para ordenar a saída do dem ónio invocando um
poder divino que é, por definição, maior do que o demoníaco. Portanto,
antes de analisar os comentá rios dos ministros de cura sobre a questão da
presen ça demon íaca perse, devemos analisar a crítica que eles fazem de Peg-
gy enquanto curadora.
Nenhum dos comentaristas questiona a motivação de Peggy para aju-
dar as pessoas como curadora, mas a validade de sua “voca ção” para desem-
penhar tal papel é explicitamente questionada pelos curadores 1 e 4 e
implicitamente pelo 5. Eles olham de muito perto os detalhes da histó ria
de quando ela começa a curar. O que parece ser um tema arquetípico no

í
186
A Afliçã o de Martin

chamamento do profeta ou do curador, “ouvi a voz de Deus e tentei igno-


rar, mas o chamado foi tão insistente que tive de obedecer”, é contestado
n ão com o argumento de que tais chamados nunca acontecem , mas com o
argumento de que no caso dela ele pode n ão ser válido. Um comentarista
quer saber por que ela resistiu e observa que a voz que ela ouviu pode não ter
sido a voz de Deus.
Da mesma forma, não é negado que a “profecia” que ela ouviu em um
encontro de oração confirmando o seu dom de curar tenha acontecido; a
contestação é que Deus nunca “faz” ninguém assistir a um evento contra a
vontade, e que a profecia que ela ouviu no encontro de oração pode ter sido
uma mensagem para uma outra pessoa. O que parece ainda mais suspeito
para os comentaristas é a afirmação de Peggy de que durante sua vida inteira
ela nunca sentiu necessidade de cura; na lógica do sistema de cura, os cura-
dores não apenas vivenciam sua própria cura no processo de tornarem-se
canais de poder divino, mas a pessoa em geral que não precisa de cura “não
existe”.
A prática de cura de Peggy também é suspeita por causa do seu isola
mento, tanto em termos de aprendizado como de existência de apoio para
-
o seu trabalho. O sistema de cura é um sistema social inserido no movi
mento carismá tico católico, que é por sua vez um “movimento” do Espírito
-
Santo; isto é, entende-se que ele é instigado por Deus. Portanto, é questio-
n ável uma curadora dizer que todo o seu conhecimento vem diretamente
de Deus, não porque isso seja impossível nem porque nunca tenha aconte
cido, mas porque os recursos para o aprendizado através de livros, fitas,
-
conferências e experiência (s) de outrem foram disponibilizados por Deus
para serem usados.
Mais uma vez, os “dons” de curar são dados para serem “ministrados”
às comunidades cristãs e para constru í-las, são usados adequadamente ape-
nas nesses contextos. Ao mesmo tempo, a cura exige orientação, apoio e
oração por parte dos membros de tais comunidades tanto para o sucesso
como para a proteção do ministro da cura que, pela natureza de sua ativida-
de, está exposto a influ ê ncias daninhas. Assim, a alienação de Peggy em
relação a ambos os grupos carismá ticos com os quais ela esteve envolvida
lança mais d úvidas sobre a validade de sua vocação e é um mau presságio
para o sucesso do seu trabalho no entender das cinco curadoras.

187
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

Em grande parte por causa desse isolamento, os ministros de cura 1 c


Ili 3 explicitamente consideram Peggy “incompetente” como curadora. Isto d,
H a marginalidade dela n ão a coloca fora do sistema de cura. Suas prá ticas são
normalmcnte reconhecidas pelos comentaristas, e algumas vezes até confir-
madas, mas ela é vista como alguém que ultrapassa suas habilidades, incapaz
;
de lidar com a situação porque ignora como as coisas realmente funcionam.
Assim , os ministros de cura 1 e 4 chamam a aten ção para o “fato empírico”
de que Deus nunca manda um curador confrontar um demónio para exigir
sua identidade. Deus conhece sua identidade e pode revelá-la, ou a pessoa
pode ordenar em nome de Deus que o espírito diga o seu nome (através da
i voz da pessoa atormentada), mas a pessoa nunca é deixada sozinha para
enfrentar um demónio. Sem o seu isolamento ela teria sabido que Deus
não trabalha dessa maneira, e não teria cometido um erro de técnica. Da
mesma forma, embora o curador possa às vezes sentir a dor de outrem,
simplesmente “não acontece” que esse sofrimento seja necessário para que
' uma cura ocorra e nem que a libertação do curador dependa da libertação da
pessoa atormentada. Se ela não estivesse tão isolada, ela teria sabido que isso
é inaceitável; isso teria sido evitado ou ela poderia ter conseguido ajuda e
! escapado das consequ ências de um erro de interpretação.
A crítica final da prá tica de cura de Peggy pela lógica do sistema de cura
carismático é o uso que ela faz de práticas “ocultas” combinadas com, ou no
lugar de, oração de cura (ministros de cura 1, 4 e 5). A própria Peggy compa-
rou suas habilidades psíquicas com “aquilo que os carismá ticos chamariam de
discernimento”. Todavia, do ponto de vista dos ministros de cura carism á dea,
há uma diferença entre o dom divino de “discernimento” e o “poder psíqui-
.
co”, sendo o primeiro uma dádiva de Deus e o último uma inspiração de
Satan ás. Pelo menos em um caso, os comentaristas n ão estiveram inteiramen -
te de acordo sobre todas as prá ticas de Peggy a esse respeito. O ministro 1
considera plausível a sensação de Peggy, de que um espírito mais alto esteja
por trás do espírito da Pornografia, e que a curadora possa vê-lo, mas sugere
que Peggy pode estar se deixando levar e deveria “manter os dois pés no chão •
O ministro de cura 4 põe em d ú vida o dom espiritual de discernimento de
Peggy, que lhe permitiria captar num piscar de olhos uma visão do espírito e,
mais ainda, afirma que se tal conhecimento n ão tiver uma finalidade inequ í -
voca na cura ele é um conhecimento psíquico, obra do dem ónio.

188

(\
A Afliçã o de Martin

Entretanto, outras prá ticas de Peggy como astrologia, leitura de auras e


exame de “cakras” são invariavelmente proscritas e consideradas ocultas ou
satâ nicas, em origem e finalidade. O ministro de cura 4 explicou que em-
bora algumas das técnicas das religiões orientais, desvinculadas de seus con-
textos filosóficos, possam ser usadas, a aceitação de seus princípios básicos,
considerados em contradição com os do cristianismo, constitui envolvi-
mento com o oculto e n ão pode ser tolerada. Peggy, portanto, sabendo
disso ou n ão, estava atraindo a influ ê ncia demon íaca pela própria natureza
das práticas em que se encontrava envolvida.
Diante dessa crítica de Peggy como ministra de cura pela l ógica da cura
carism ática, algué m poderia imediatamente concluir: “ Não surpreende que
ela tenha falhado nas suas tentativas de curar Martin e n ão surpreende que
ela própria tenha ficado exposta aos ataques do dem ó nio.” Ainda assim,
dentro dos comentários, a presen ça de um espírito maligno n ão está coloca-
i da de forma alguma como questão de sim ou não, e precisamos agora sepa-
rar a própria etnopsicologia dos ministros de cura da interação entre forças
demon íacas e psicológicas. Considerando que a maioria dos ministros de
cura hesitaram em dar uma opinião categórica sobre a ação demoníaca, os
seus comentários revelam três áreas de interpretação divergentes: relação
entre ação demon íaca e transtorno mental, relação entre espíritos malignos
e emoções, e sugestões para interven ção terapêutica.
A primeira área é exemplificada mais claramente contrastando os mi-
nistros de cura 1 e 4. A primeira é uma fieira sem nenhuma formação
profissional em sa ú de mental, mas com vasta experiência em Libertação, e
o último é um padre com doutorado em Psicologia, mas que também tem
vasta experiência em Libertação. A ministra de cura 1 conclui que o proble-
ma de Martin é basicamente espiritual e religioso e exige Libertação, embo-
ra 0 acompanhamento psiquiá trico possa ser benéfico ou necessário. Ele
sugere que Martin tem “obsessão” pelo espírito, ou seja , o espírito está
morando dentro dele, mas ainda não tem “possessão” completa da sua per-
sonalidade. O ministro de cura 4 rotula explicitamente os sintomas de
Martin como psicó ticos, especificamente esquizofrénicos e obsessivos, usan-
do o ú ltimo termo no sentido cl ínico, ao invés de religioso. Porém, na
medida em que os sintomas demon íacos podem ser idênticos aos da psico-
se> e que os espíritos malignos são essencialmente embusteiros e tentarão,

189
H 1I ,

hi CORPO/ SIGNIFICADO / CURA


i
portanto, mascarar sua identidade, a presen ça deles n ão está fora de cogita -
ção. Ainda assim, o pró prio fato de que a poderosa oraçã o de Libertação -
-
ordem divina que o espírito maligno tem de obedecer n ão deu certo é
ii tomado como uma evid ê ncia de que existe um problema psicológico. Esse
-
problema é chamado de folie a daix, referindo se ao relacionamento com-
S plicado entre os protagonistas. O ministro de cura 4 conclui que se h á um
espírito maligno, tanto Martin quanto Peggy estão em condição de ser
manipulados por ele, mas que a necessidade mais premente é uma avaliação
i psiqui átrica de ambos, Martin e Peggy.
O contraste entre as perspectivas religiosas espiritualizante e a psicolo-
gizante, como podemos cham á-las, fica melhor ilustrado na comparação
das evidências apresentadas nesses dois comentários. A ministra de cura 1
menciona envolvimento precoce com o oculto - isto é, participação em
uma sessão espirita na inf ância, dificuldade para orar, perda de concentração

I
durante discussões teológicas, insónia, ser acordado por imagens pornográ -
ficas, incapacidade de tolerar a presença de um ministro de cura religiosa de
comprovada competência, uma voz que grita e insulta, mas é incapaz de
pronunciar o nome de Jesus, raiva, ansiedade e medo. Quando considera a
íí hipótese semidinâmica de que as três últimas emoções podem estar ligadas
a problemas de desenvolvimento da infância de Martin, ela espiritualiza
1 1' mais uma vez: o problema pode n ão ser com um espírito demon íaco, mas
com o espírito inquieto do pai de Martin. A relação de sintomas psicó ticos
feita pelo ministro 4 inclui visualização, a voz desincorporada, alucinações
auditivas, dores de cabeça insuportáveis, ansiedade incapacitante, transtor -
nos de sono, sensação de puxadas e safanões (sensações viscerais indicando
furia contra o pai), sexualidade indiferenciada, gosto ruim de comida, fedor
-
do corpo e pontadas de dor indicando auto sugestão e auto hipnose.-
Embora esses dois conjuntos de evidência por si só não sejam suficien -
tes para contrastar dois estilos l ógicos, vá rias provocações podem ser feitas.
Primeiro, h á muita sobreposi ção entre a evid ê ncia de espíritos malignos e a
psicopatologia: fen ômenos auditivos e visuais, insónia, raiva, ansiedade.
Entretanto, o relato mais espiritualizado d á muito mais aten ção ao conteú -
do do que à forma dos sintomas. Assim , é importante n ã o apenas que haja
fen ómenos visuais, mas que eles sejam pornográficos, e n ão apenas que haja
fenómenos auditivos, mas que a voz grite e xingue. A ênfase no conte ú do

190
A Aflição de Martin

pode estar relacionada à aparente ê nfase maior na ação que na sensação so-
m á tica; assim a ministra de cura 1 enfatiza assistir a uma sessão espirita,
oração, conversa ção c reação à presen ça de outra pessoa, enquanto o minis-
tro 4 menciona dor, gosto ruim , mau cheiro do corpo c sensações de puxa -
das c safan ões.
Talvez outras pesquisas consigam especificar os diferentes estilos de
abordagens religiosas psicologizadas c espiritualizadas dentro desse sistema
de cura, mas por enquanto basta lembrar que a influê ncia demon íaca e a
psicopatologia n ão são mutuamente excludentes. Assim , entre os exemplos
mais claros de 1 e 4, o ministro de cura 3 reconheceu especificamente uma
alta “atividade do espírito”, sugerindo ao mesmo tempo que Martin sofre
de esquizofrenia. O ministro de cura 5 resumiu o problema como um
desequil íbrio entre os aspectos demon íaco/espiritual e psicológico/emocio -
nal do caso.
O exame da relação entre o espírito maligno e as emoções esclarece
ainda mais a lógica do sistema de cura. No pentecostalismo católico é raro,
embora n ão inaudito, que demónios tenham nomes, como Andronius nes-
se caso. Geralmente, eles têm nomes de pecados ( Lascívia, Gula), compor-
tamentos negativos (Autodestruição, Rebeldia) ou emoções negativas (Raiva,
Medo). Isso leva a uma ambiguidade sistemá tica ao determinar onde o
comportamento e a emoção humana acabam e onde começa a influê ncia
dos espíritos malignos. A ministra de cura 1 n ão rotula explicitamente o
medo, a ansiedade e a raiva de Martin como demónios, mas chama essas
emoções de “marcas registradas de Satanás”. Ao mesmo tempo, ela relacio-
na raiva a problemas crónicos arraigados na infanda de Martin. O ministro
de cura 2 indica que Martin é oprimido por desobediência, rebeldia e rejei-
ção. Este termo é usado tecnicamente para designar um nível específico de
influência demoníaca; vale lembrar que a ministra de cura 1 achou que
Martin era obsessivo, indicando um nível de influência mais alto. No en-
tanto, ela diz que sem um verdadeiro encontro de cura não é poss ível discer-
nir se eles são demónios “no sentido estrito” de entidades espirituais inteligentes
tnas malignas.
O ministro de cura 3 identifica homossexualismo, culpa, ódio de si
mesmo e baixa auto-estima como problemas especificamente psiquiátricos,
cm vez de demon íacos, mas reconhece a existê ncia de alguma atividade de

191
*

f I !

i!
I : CORPO / SIGNIFICADO / CURA
1 ;

espírito que precisa ser dissipada. O ministro de cura 4, que já identifica-


mos como o de mais forte orientação psicológica, menciona f ú ria, ansieda-
de e sexualidade indiferenciada, mas apenas na medida em que elas surgem
como sintomas de psicopatologia. O ministro de cura 4 jamais exclui a
possibilidade da atividade demon íaca. O ministro de cura 5 não nomeia
í emoções ou comportamentos específicos, mas separa os aspectos demon ía-
co /espiritual e psicológico/emocional do caso.
Sendo ou n ão sendo contemplados com o status de espíritos malignos
ou de atributos humanos, os comportamentos e emoções identificados por
!
ministros de cura indicam um estilo terapê utico compartilhado de identifi-
car questões pragm áticas tratadas dentro do processo de cura: raiva, fú ria,
ansiedade, medo, desobediência, rebeldia, rejeição, homossexualismo, cul-
, pa, ódio de si mesmo, baixa auto-estima. Essas são questões cujo conteúdo
concreto pode ser explorado na vida da pessoa atormentada e se situa em
!
i
um n ível intermediário entre o Andronius abstrato de Peggy e a Pornografia
i ,
sintomaticamente superficial. Na lógica do sistema de cura, quando não se
.
pode resolver a raiva através da Cura de Mem órias ou da Cura Interior,
pode-se concluir que um espírito de Raiva ou outro espírito está presente.
Quando Peggy atingiu esse impasse na tentativa de curar Martin, a raiva não
se tornou Raiva simbolicamente concreta, mas um Andronius misticamen-
te abstrato.
A questão do humano contra o demon íaco na atribuição de emoções
é importante para os ministros de cura mais ortodoxos porque ela determi-
na a preferência por tratamento complementar. A ministra de cura 1 reco-
menda a Libertação carism á tica de espíritos malignos como tratamento mais
indicado. O ministro de cura 3 recomenda uma combinação de cuidado
psiquiá trico e cura carismá tica. O ministro de cura 5 recomenda psicotera-
pia completamente desvinculada de uma ênfase espiritual, sentindo que a
situação já está espiritualizada demais. Ao mesmo tempo, ambos os minis-
tros 3 e 5 sugerem que a oração de exorcismo inserida no sacramento do
batismo deveria ter o efeito de libertar Martin dos espíritos malignos se ele
estiver corretamente predisposto e tiver um relacionamento espiritual com
Deus. Assim a relação entre discernimento e diagn óstico, dem ó nios e doen -
ça, libertação e psicoterapia continua inerentemente ambígua. O sistema de
cura admite a interpretação de uma situa ção como influ ência demon íaca

192
A Afliçã o de Martin

em vez de psicopatologia, mas també m admite a influ ê ncia demon íaca como
uma qualificação de psicopatologia.
0 relato clínico

Cinco profissionais da sa úde mental receberam os materiais do caso.


Entre eles há três psiquiatras e dois psicólogos; um dos psicólogos é mulher,
os outros são homens. Todos eles estão ligados a universidades e têm expe-
riência tanto em clínica como em pesquisa. A hipó tese inicial desse exercí-
cio era que a interpretação clínica das dificuldades de Martin seria condizente
com a psicopatologia diagnosticável. H á dificuldades metodológicas pelo
fato de a descrição etnográfica não preencher todos os requisitos de uma
entrevista diagnóstica definitiva, que só pode ser conduzida num encontro
face a face entre o clínico e o paciente. Assim, o que se segue não são verda-
deiros diagn ósticos diferenciais, mas impressões dinâmicas e diagnósticas
oferecidas por consultores clínicos. Dito isto, é preciso acentuar que o objeti-
vo do exercício não foi nem fazer um diagn óstico definitivo de Martin e/ou
Peggy, nem comparar as diferentes escolas de psicoterapia representadas.
Foi, em vez disso, elaborar uma interpretação clínica compósita de um caso
atípico que pudesse contrastar com uma interpretação religiosa compósita
por parte dos equivalentes dos cl ínicos no ministé rio de cura carismá tico.
A criação de uma compreensão clínica compósita a partir desses comen-
tários exige cautela, em se tratando de discordâncias que podem ocorrer
por
causa de (a) dados limitados e (b) da adesão dos clínicos a diferentes escolas de
psicoterapia. O principal exemplo do primeiro caso é o possível diagnóstico
de esquizofrenia. Os dados permitem que os consultantes 1, 2 e 5 considerem
esse diagnóstico, que o consultante 4 o rejeite, e que o consultante 3 recuse
qualquer ró tulo mais específico do que psicótico. Baseados na descrição
escrita, os consultores 1 e 5 acharam que havia um critério diagnóstico de
esquizofrenia, a “deterioração no funcionamento”, ao passo que o consultor
2 achou a deterioração insuficiente para justificar o diagnóstico. Tampouco
houve concordâ ncia na hora de definir se as visualizações de Martin eram
verdadeiras alucinações, pseudo-alucinações ou “possíveis” alucinações.
Um exemplo da segunda consideração é a tend ê ncia dos consultores
psiquiatras a falar sobre conceitos de doença, enquanto os dois consultores

193

/ CÁ
i ' I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
!

psicólogos enfatizaram transtorno de personalidade ou estrutura de perso-


nalidade. Isso n ã o representa nem uma inadequaçã o nos dados nem uma
í questão que pode ser sintetizada numa interpretação compósita , mas uma
diferen ça de ênfase disciplinar entre psicologia cl ínica c psiquiatria. As dife-
ren ças entre escolas terapêuticas se refletem nas vá rias recomendações dos
consultores, de terapia familiar ao invés de terapia individual , para os prota-
! gonistas dessa situação.
Postas essas limitações, a validade do exercício baseado nos comentá ri-
os cl ínicos depende de n ão ultrapassarmos os limites da tarefa. Somente
i com essa cautela pode-se demonstrar que certas diferen ças entre os consul-
tores estão fundadas em aspectos comuns do pensamento cl ínico e n ão cm
inadequações nos dados. Da mesma forma , embora os consultores tenham
cxplicitamente considerado o caso fora do comum, apenas com a necessá ria
cautela pode-se mostrar que as ambiguidades interpretativas brotam mais
da atipicidade do alívio do que de diferentes abordagens de escolas ou disci-
plinas clínicas.
Essa situação fica mais complicada pelo fato de o diagnóstico diferen-
"
cial ser um processo de discriminação complexo entre transtornos que po-
í
I
dem apresentar certos sintomas em comum, ou podem diferir apenas em
duração ou momento de in ício em relação a outros sintomas. Mesmo as-
sim , embora em medicina o diagn óstico diferencial opere basicamente por
exclusã o dos diagn ósticos possíveis em favor dos mais prováveis, ele tam-
bém permite a aplicação sobreposta e simultâ nea de mais de uma categoria
na an álise final. No caso de uma pessoa tão severamente perturbada como
Martin , isso é especialmente provável. Al é m das limitações nos dados e da
atipicidade da situação, o diagn óstico é complicado pela presen ça de trans-
' tornos m últiplos. No entanto, é possível examinar a l ógica cl ínica das su-
gestões dos consultores com base no Manual Estat ístico e Diagnóstico da
' Associação Psiquiátrica Americana (DSM-III) (American Psychiatric Associ-
: ation, 1987).
Como foi discutido acima, parece que o “transtorno esquizofrénico” é
candidato potencial ao ró tulo da condição de Martin. Freqiientemente, os
comentá rios dos profissionais da sa ú de mental também mencionam de-
pressão ou transtorno afetivo severo, mas o problema aqui é que transtorno
depressivo grave e esquizofrenia são mutuamente excludentes. AJ ém disso,

194

I
A Afliçã o de Martin

0 resultado a longo prazo do tratamento para depressão c normalmcntc


considerado melhor que o da esquizofrenia. O sistema DSM-III , todavia,
tem meios de evitar esses diagn ósticos mutuamente cxcludentes. Por exem-
plo, "depressão com componente psicó tico c humor-congruente” incluiria
"dclusõcs ou alucinações cujo conte údo é consistente com os temas de ina-
dequação pessoal, culpa , doença, morte, niilismo ou punição merecida”
(American PsychiatricAssociation , 1987, p. 215) , uma descri ção consisten-
te com as preocupações sexuais e a experi ê ncia precoce do trauma familiar
de Martin. Mais uma vez, o sistema DSM-III dá margem ao possível diag-
nóstico de um transtorno esquizoafetivo reconhecidamente mal definido se
o clínico n ão pode distinguir entre esquizofrenia e transtorno afetivo.
Nesse caso a maior preocupação do diagn óstico diferencial seria deter-
minar se os sintomas afetivos precedem os sintomas psicóticos; se a resposta
é sim , tende-se para a depressão, se é não, tende-se para a esquizofrenia. A
histó ria da infâ ncia de Martin não é clara o bastante para determinar isso.
Sabemos que o pai de Martin cometeu suicídio, ato frequentemente associ-
ado à depressão, e que a mãe de Martin foi diagnosticada com transtorno
afetivo bipolar (também chamado maníaco-depressivo). Esse último fato
pode sugerir um fator genético predispondo Martin à depressão e, ao mes-
mo tempo, a dupla perda dos pais é exatamente o tipo de choque também
associado com a depressão (Brown; Harris, 1978). Por outro lado, o ambi-
ente familiar abusivo que Martin deve ter enfrentado na infância é com
frequência considerado típico para quem desenvolve esquizofrenia com mais
ou menos a mesma idade dele quando começou a ter problemas.
Para complicar ainda mais o quadro diagnóstico, alguns médicos já
/

defenderam a existência de, um dist ú rbio que eles chamam de “síndrome da


dor crónica” (Black, 1975) ou “síndrome da dor aprendida” (Brena; Chap-
man , 1985). Na medida em que a dor de Martin n ão tem nenhuma origem
objetivamente determinada e que ele aprendeu a associá-la com certos pa-
drões de pensamento e situações, essa categoria pode parecer relevante. Isso
está em conformidade com a menção de somatização feita pelo consultor
1, ou a de deslocamento de experiê ncia traum á tica para dor feita pelo con-
sultor 2. O neurologista, que primeiro disse a Martin que sua dor era algo
com que ele precisava aprender a conviver, aparentemente tinha uma ideia
desse tipo. Pode-se presumir, todavia, que no encontro clínico não se fez

195
1
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

menção a vozes ou a visualizações espontâ neas, pois é possível que naquela


í época Martin as considerasse como efeitos colaterais da pró pria dor de cabe -
ça. Por outro lado, é preciso observar pelo menos de passagem que a dor de
cabeça crónica com ofuscação de sentidos e manifestações visuais estranhas
poderia também sugerir enxaqueca (Sacks, 1985).
A existência ou não de algo como síndrome de dor crónica enquanto
entidade cl ínica é um tema atual de debate entre médicos. Um subterna
desse debate é a relação entre dor cró nica e depressão ( Bouckoms; Litman;
Baer, 1985; Gupta, 1986; Turner; Romano, 1984). A depressão aqui está
associada tanto às perdas sofridas por Martin na inf ância (confira Brown;
Harris, 1978) quanto aos arraigados sentimentos crónicos de culpa e raiva
que não são incomuns entre pacientes com dores crónicas. A depressão é
geralmente associada com ansiedade, um aspecto mencionado explicitamente
apenas por um consultor, mas a evid ência da ansiedade e do pânico é com-
plicada pela pesquisa que sugere a inclusão do transtorno obsessivo com--

pulsivo entre os transtornos de ansiedade (Insel; Zahn; Murphy, 1985).
Em conson ância com as considerações acima, o DSM-III também
; determina que o transtorno obsessivo-compulsivo seja excluído na elabora-
ção do diagn óstico diferencial de esquizofrenia. A diferença aqui é que no
transtorno obsessivo-compulsivo o que parece ser delusao é muitas vezes
reconhecido de maneira consciente como algo irracional e bastante desagra-
dável. Realmente tem-se a impressão de que os pensamentos bizarros e in-
í trusivos de Martin são de natureza obsessiva e, além disso, associados com
rígidas compun ções morais de natureza religiosa. Aqui é importante lem-
brar a men ção de transtornos dissociativos nos comentários, especialmente
a observação epidemiológica do consultor 2 de que aspectos obsessivos e
dissociativos podem ocorrer simultaneamente com mais frequ ê ncia do que
se pensava. Ao seguirmos essa linha, a lógica do diagnóstico poderia levar a
uma conclusão independente tanto da depressão quanto da esquizofrenia
como diagn óstico principal.
A questão do possível transtorno de personalidade levantada por dois
dos consultores exige duas observações. Primeiro, o DSM-III determina
que se faça uma distinção diagn óstica entre esses dist ú rbios e a esquizofre-
nia, porque algumas vezes eles podem incluir sintomas psicó ticos passagei-
ros. No transtorno severo de personalidade, a distin çã o é baseada na
í

! 196
A Afli çã o de Martin

intensidade e severidade da ideação paran óide c nas distorções de comunica-


ção c pcrcepção. A questã o da paranóia leva dirctamcntc à segunda observa-
ção, na qual a estrutura de personalidade dependente sugerida pelo consultor
5 pode ser relacionada à referê ncia dos consultores 2 e 3 à folie h trots, que é
tecnicamente definida como um “transtorno paranoico compartilhado . Isso
levanta simultaneamente uma sé rie de questões, todas elas tendo a ver com
aspectos compartilhados da situação.
Talvez Martin esteja sofrendo de uma psicopatologia maior, ou talvez
as características desajustadas de sua personalidade estejam exacerbadas pe-
los relacionamentos nos quais ele se encontra envolvido. Em qualquer um
dos casos, considere o comentá rio do consultor 3 de que uma aparente
predisposição aos sintomas floreados é exacerbada pelas expectativas do sis-
tema. A questão aqui é se as cren ças e experiências das pessoas afligidas sã o
delusórias. Nesse caso, é crucial distinguir as duas. Entre os consultores 1 e
I 2, de um lado, e 3 e 3, de outro, há alguma discord ância sobre se as próprias
crenças religiosas são delusórias. O consultor 2 observa que as cren ças n ão
são delusórias se forem compartilhadas por um grupo cultural, mas ele
ainda usa a folie a trois. Isso não é uma inconsistência, mas sim um reconhe-
cimento implícito de que as experiências específicas podem ser delusó rias
mesmo se as crenças culturais ou religiosas usadas para lhes dar sentido n ão
o forem.
Essa é uma consideração importante quando perguntamos se a própria
Peggy não tem uma psicopatologia diagnosticável. Os consultores 1 e 2
parecem achar que não, enquanto os 3, 4 e 5 recomendam terapia tanto
para Peggy como para Martin, com o 3 sugerindo que toda a carreira dela
de curadora pode ser um “sistema depressivo” e o 4 sugerindo uma persona-
lidade histriónica. Além das questões de um sistema delusório compartilha-
do e de um possível diagnóstico individual para Peggy, os consultores
parecem concordar que Peggy é demasiadamente dominadora e controla-
dora, e que a independência em relação a ela seria ben éfica para Martin. Os
consultores descrevem esse aspecto crítico da situação usando termos como
!
“patologia familiar”, “enredamento”, “dependência m ú tua” , “massa de ego
familiar indiferenciada” e “ interpenetração”.
Sem d úvida, a definição de Martin para a situação é extraordinaria-
1
mente dependente de Peggy e Randy. Ambos sugerem que, como o esp írito

197
m CORPO / SIGNIFICADO / CURA

maligno vem atormentando Martin desde os nove anos de idade, quando o


pai dele morreu, ele n ã o tem nada com que comparar o seu estado atual; ou
seja, ele n ão se lembra de nenhum estado dc consciência que n ã o tenha sido
influenciado pelo dem ó nio c nem sempre pode distinguir os seus pró prios
pensamentos dos do dem ó nio. Martin admite que “tudo que ele sabe” foi
Peggy que lhe ensinou, dando assim a Peggy um poderoso papel de á rbitro
e intérprete de suas experiências. Certa vez, por exemplo, quando Martin
recordou um período da infanda em que sentia uma conexão psíquica com
sua mãe, Peggy rapidamente acrescentou que Martin por si mesmo n ão tem
’ nenhum “poder psíquico verdadeiro”. Alé m disso, e demonstrando certa
contradição, ao mesmo tempo em que ela afirma que Martin teve de “lidar
com” muita raiva e outras emoções, Peggy relata que ele não consegue expe-
riendar suas emoções. Esse relato poderia ser interpretado como indicação
de um sintoma de esquizofrenia - a obtusidade emocional da depressão.
Nesse contexto, porém, o fato de ele apenas saber intelectualmente o que
deseja sentir, mas não ser capaz de ter qualquer experiência emocional, deve
ser relacionado ao grau de controle exercido por Peggy ao ensinar-lhe o que
ele deveria estar sentindo. Os consultores 1 e 3 comentaram que de fato
Randy e Peggy concordaram simbolicamente em se tornar pais de Martin.
A experiência da “resistência” do espírito à oferta de cura por parte de pesso-
as estranhas poderia então ser entendida como uma resistência de Martin a
fim de permanecer no relacionamento de dependência.
É interessante notar que, no único contato formal com um profissio-
nal da sa úde mental relatado nesse episódio (veja acima), a psiquiatra suge-
riu a Peggy que a “dificuldade da separação pode estar criando um obstáculo
para a melhora de Martin”. A confian ça de Peggy em sua motivação (a
cessação da sua própria dor) para conduzir o problema a uma conclusão n ão
foi compartilhada pelos consultores. Eles observaram que, aparentemente,
as necessidades emocionais da própria Peggy estavam sendo satisfeitas pelos
fortes vínculos entre Martin, Randy e ela mesma. Os consultores 1, 2 e 4
definem explicitamente esses vínculos como emocionais e também sexuais.
A caracterização dos vínculos do trio como sexuais e emocionais le-
vanta a questão do marido um tanto distante de Peggy e a natureza do
relacionamento deles. Parece haver consenso entre os consultores nessa ques-
tão; e o consultor 3 foi especialmente enfá tico. Ele sugeriu que o negócio

i
198
!
A Aflição de Martin

todo dc curar representou uma reaçã o depressiva às frustrações do relaciona-


mento conjugal, c percebeu uma fraqueza no exemplo dela de “ intimidade”
cntre marido c mulher ( por exemplo, duas horas por semana em percursos
de carro durante os quais eles jamais se olhavam , mas conversavam olhando
em frente pela janela).
Peggy admitiu que suas fantasias pornográficas incontroláveis afeta-
ram seu relacionamento sexual com o marido, no sentido de ela algumas
vezes ter se distraído ao fazer amor. Ele n ão estava plenamente consciente
disso, todavia, e eles n ão falam diariamente sobre as experiências dela. Peggy
n ão admitiu nenhum problema duradouro no relacionamento, mas reco-
nheceu que no início dos três anos de peleja com as aflições de Martin, o
relacionamento deles ficou tenso devido às exigências da situação. Ela ale-
gou que desde então o seu marido tinha “crescido”, aceitado a realidade da
situação e aguardado com esperan ça uma solução. Mesmo assim , Peggy faz
questão de nunca se queixar ao marido dos seus próprios sofrimentos e de
tentar, em vez disso, ficar “sorridente” na presença dele.
Enquanto isso o marido vive uma vida profissional intensa sobre a
qual ela pouco sabe. Um artigo de jornal com o relato de seu sucesso e suas
premiações deixou-a surpresa ao saber que ele é tão renomado; ela nunca o
acompanha nas suas muitas viagens porque “não quer deixar as crianças,
pois o caçula só tem dez anos”. Os dados sobre esse tó pico não sugerem
tanto um marido indiferente, mas um esposo que sacrifica sua intimidade
às demandas da vida profissional e que também sente um certo receio de se
intrometer demais nos assuntos espirituais da esposa.
O que se pode concluir desse breve exercício de diagnóstico não é
fundamentalmente que os dados sejam inadequados para fins de diagn ósti
co, nem que a situação de Martin seja complexa demais para ser facilmente
-
diagnosticada. Em vez disso, o exercício sugere que as pró prias categorias
diagnósticas dispon íveis são fluidas, superpostas e mais ou menos vagamen-
te definidas. Martin pode ter uma ou várias formas sé rias de psicopatologia;
o que parece claro na lógica do diagnóstico é que a situação é séria, envolve
psicopatologia e exige intervenção psiquiátrica. Se Peggy é ou não é diag-
nosticável depende em parte de se suas cren ças religiosas e seus sintomas são
relacionados como parte de um sistema delusório, se seus sintomas são uma
consequê ncia lógica de crenças religiosas tidas como culturalmente aceitá -
199
I

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

veis, ou se cia fez uma adaptação patológica a crenças religiosas cultural-


mente normais. Além da atribuição de psicopatologia individual , a l ógica
diagn óstica se estende às questões de relacionamentos sexuais c emocionais
caracterizados por dominação, dependê ncia, insatisfação c frustração, possí-
vel delusão compartilhada, espiritualidade c isolamento. O isolamento, junto
com a persistência e severidade da situação, levou os consultores 1 e 2 a
sugerir que, como curadora, Peggy pode ter se desgarrado mesmo em ter-
mos do sistema religioso; o consultor 3 observou que Peggy parece combi-
nar elementos de cristianismo carism ático e de espiritualidade Nova Era.
Na verdade, esses comentários culturalmente perspicazes estão em confor-
midade com algumas das respostas dos curadores religiosos vistas acima.

Convergência e divergência

O contraste mais impressionante entre os comentários dos profissio-


nais da saúde mental e os dos ministros da cura carismá tica talvez não seja
que os últimos incluem a influência de espíritos malignos, mas que eles
focalizam Peggy e os defeitos técnicos no processo terapê utico em vez de
Martin e seus sintomas e patologias. Para os ministros da cura, Peggy é o
tipo de praticante “marginal” contra o qual os ensinamentos e a literatura
pentecostais católicos sobre a cura previnem: mal informada, de competên-
cia e legitimidade questionáveis, sem apoio de uma comunidade, e daí com
mais problemas do que meios de lidar com eles. Em parte por essa razão,
mas em parte por causa da natureza de seu relacionamento com Martin,
Randy e o marido, Peggy também está atormentada e ela própria precisa de
cura, ou até de psicoterapia.
Embora os profissionais da sa ú de mental apontem as mesmas ques-
tões interpessoais e din âmicas, eles buscam evitar juízos de valor a respeito
de Peggy por desejarem respeitar suas cren ças religiosas. Cren ças cultural-
mente partilhadas não são delusórias, e as experiências bizarras de Peggy se
baseiam nessas crenças; portanto Peggy provavelmente n ão é diagnosticável.
Na falta de informação cultural sobre o baixo grau de compartilhamento
real das prá ticas e cren ças de Peggy por parte do grupo de referência mais
lógico, eles tendem a enfatizar os sintomas e a patologia de Martin. Essa
tend ência é, evidentemente, apenas relativa, pois os profissionais da sa ú de

200

,
A Aflição de Martin

mental identificam padrões de enredamento , folie à deux, patologia famili-


ar c depend ê ncia.
A questão n ão 6 que os dois grupos de comentá rios chegam a conclu-
sões diferentes. A questã o é que diferentes conjuntos de conhecimento cul-
tural que influem no problema levam a ê nfases e explicações diferentes em
análises que pragmaticamente são semelhantes. Vá rios dos profissionais da
sa ú de suspeitaram da falta de ortodoxia de Peggy. Por outro lado, a crítica
ao isolamento da prá tica de Peggy feita pelos curadores antecipam um jul-
gamento cl ínico de enredamento entre os protagonistas. Para os terapeutas,
o tipo de pessoa que fica enredada pode ser o tipo de pessoa vista como
marginal por seu grupo de referê ncia cultural; para os curadores, o tipo de
pessoa que é marginal pode ser o tipo que fica enredado.
Para ter uma noção completa da interação de visões de mundo nesse
caso precisamos inserir a interpreta ção religiosa de Peggy entre a dos clínicos
e a dos curadores. A crítica religiosa de Peggy pode ser resumida da seguinte
forma: se há um espírito maligno, ela não está lidando com ele corretamen-
te e, se não há, ela deveria admitir a necessidade de ajuda psiquiá trica. Existe
a possibilidade de que tanto a terapia como a Libertação sejam necessárias, e
ela é incompetente nas duas áreas. O fato surpreendente de os ministros da
cura darem tão pouca atenção aos problemas de Martin deve-se provavel-
mente a que, no início, a abordagem e a interpretação de Peggy não eram
incompatíveis com as deles, como n ão eram incompat íveis com as interpre-
taçõ es terapê uticas. Quando, na fase inicial, Peggy fala do “fraturamento”
de Martin, ela está se referindo aos primeiros eventos traumáticos que le-
vam ao suicídio do seu pai, a descoberta do corpo por Martin , a perda da
m ãe e seu encaminhamento subsequente a um orfanato e a pais adotivos.
Para Peggy e outros curadores carism á ticos essas primeiras experiências cri-
am uma vulnerabilidade à influência demoníaca, enquanto para os clínicos
elas criam uma vulnerabilidade ao transtorno psiquiá trico. O foco dela na
resolu ção da raiva e da culpa , que inclui a recomendação de medidas concre-
tas no sentido de reconciliar Martin com sua mãe, é tão incontestável que
não é mencionado nem pelos clínicos, nem pelos ministros da cura.
A “descoberta” subsequente de Peggy de uma presença demoníaca esta-
va diretamente associada ao reconhecimento de que Martin ainda sentia
“mais raiva do pai do que gostaria” de sentir. Na verdade, a descoberta de

201
]

CoRPo / SiGNincADo / CURA

um espírito é um reconhecimento da existência de um n ível mais profundo


de problemas n ão resolvidos. Por outro lado, chegar a um impasse terapê u-
tico pode ser entendido como evid ência da presen ça dc um esp írito malig-
no mas essas coisas n ão são necessariamente as mesmas, dc forma
nenhuma. O sistema de cura presume que existe um bloqueio à mudan ça
dentro da pessoa atormentada e infere que esse bloqueio é causado por um
esp írito maligno. O consultor clínico 3 sugeriu que, pelo menos nesse caso,
o bloqueio era o limite da eficácia de uma “cura de transferência”, que pode -
ria ser efetuada por um curador religioso sem formação cl ínica, mas que
deixou sem solução conflitos mais profundos, acessíveis apenas a psicotera -
peuras altamente qualificados.
O fato de estar ou não o bloqueio “dentro” da pessoa afligida ou “en-
tre” a pessoa e o ministro da cura, a descoberta de um espírito é uma estra-
tégia retó rica para transcender o bloqueio e colocar o problema às claras, de
forma que ele possa ser enfrentado com ajuda do poder divino - o indiví-
duo solitário e isolado não está mais sozinho porque agora a sua luta faz
pane de uma batalha cosmológica de âmbito universal, a guerra espiritual
entre Deus e Satan ás (Csordas, 1994a, 1997; veja também Dow, 1986 b;
Tambiah, 1977). Mas parece que transcender e colocar às claras andam ne-
cessariamente lado a lado; transcender sozinho pode ser perigoso. Como foi
observado acima, segundo alguns ministros da cura a Libertação é fácil, pois
uma oração ordenando a saída, ou o exorcismo contido no rito de batismo,
temek funcionar por causa do poder inerente de Deus sobre Satan ás. Talvez
seja importante não ser essa a ú nica abordagem para a Libertação, mas ter
ela surgido dentro do movimento como um antídoto para prá ticas dando
ênfase à luta contra espíritos malignos que poderiam durar horas de agonia
e incluir gritos, vomito e contorções no chão; Peggy pode ter esperado e
necessitado esse tipo de abordagem para se convencer do empoderamento
divino.
o Assim , a estratégia retórica convencional saiu pela culatra. Ao postular
uma fonte de afli ção externa para Martin, Peggy também se tornou vulne-
rável. Em vez do espelhamento psíquico dos sintomas de Martin, criou-se
uma situação na qual o espírito maligno podia atacá-la diretamente “em
seus próprios pontos fracos”. Em termos psiquiá tricos, a figura fria e re-
-
quintada de Andronius tornou se uma metá fora opaca da contratransferên-

202
A Afliçã o de Martin

cia descontrolada de Peggy, a “ humanidade” impenetrável na qual os prota-


S°nistas foram enredados c a armadilha universal partilhada por psicotera-
peutas c exorcistas de toda c qualquer tradi çã o ( Good et al., 1982;
Henderson, 1982). Assim, as fantasias sexuais que começaram na puberda-
de de Martin e foram exacerbadas quando o espírito maligno se aproveitou
de sua crise de desenvolvimento de intimidade n ão resolvida encontram seu
paralelo em fantasias sexuais que refletem o relacionamento ambíguo de
peggy com o marido e seu papel de mãe/dona de casa, seu relacionamento
espiritual íntimo com Randy e seu relacionamento dominante/dependente
com Martin.

A base existencial de demónio e doença

Comparar realidades m édicas e sagradas dessa maneira lan ça alguma


luz sobre suas diversas propriedades enquanto sistemas para a organização
da experiência e alguma luz sobre a natureza do sofrimento e da cura. Con-
tudo, deixa intocado um problema essencial. Ou seja, como é possível, em
primeiro lugar, que tais relatos tenham tanto em comum sendo tão diferen-
tes; qual é, de fato, a natureza da experiê ncia que eles relatam ? Devemos
agora nos voltar para essa questão.
O estudo comparativo de sistemas de cura plurais coexistindo no âm-
bito de uma tradição cultural que os abarca sugere que continuidades subja-
centes de processo e estrutura podem ser encontradas entre tais sistemas
(Rhodes, 1980). Em nossa comparação dos sistemas psiquiá trico e carismá
-
tico católico norte-americano, a principal continuidade é a ênfase m ú tua
nos efeitos residuais de eventos no passado da pessoa afligida, e a principal
divergência é o papel das práticas espirituais e das entidades demoníacas. Os
diferentes modos em que esses sistemas elaboram as implicações dessas ques -
tões podem contribuir, paradoxalmente, para a possibilidade
-
da sua coexis
tê ncia. Isto é, na medida em que representam , por assim dizer, planos
entrecruzados no campo da experiência, eles podem ser mais complementa-
res do que contraditó rios; é muito mais provável que uma pessoa atormen-
tada procure a ajuda simult â nea de um curador religioso e de um
psicoterapeuta do que a ajuda simultânea de um psicanalista e de um tera-

203
rr n
^ I ,
;
i
I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

peura cognitivo. Embora praticantes cm qualquer um dos sistemas possam


rejeitar a validade do outro (como o curador no caso aqui discutido rejeitou
qualquer interpretação psiquiá trica), cm princípio, eles são muitas vezes
considerados complementares e na prá tica até ativamente integrados algu-
mas vezes. Ao mesmo tempo, psicoterapeutas cristãos podem rejeitar certas
formas concorrentes de prá tica terapêutica como incompatíveis n ão apenas
umas com as outras, mas com os princípios da cura religiosa (Csordas,
1990).78
Nós acabamos de introduzir a metáfora dos planos entrecruzados para
i descrever a relação entre duas leituras da experiência de Martin. Esse entre-
cruzamento pode ser entendido em dois sentidos, o cultural e o existencial.
Na primeira instância, ambas as leituras partilham de uma propensão cultu-
ral norte-americana por formulações em termos fortemente psicológicos.
1 Isto é, as interpretações da experiência de Martin em ambos os sistemas de
cura são predicadas em suposições culturais sobre emoção, selft pessoa que
i começam e terminam em compreensões predominantemente psicológicas.
Na segunda instância, ainda é o caso de que, apesar da nossa capacidade de
formular diferentes relatos da sua experiência, há afinal de contas apenas um
Martin, numa única situação existencial. Argumentarei que a base existenci-
al comum da qual os dois relatos são abstraídos é o sofrimento dele en-
quanto ser humano corporificado, para quem qualquer distin ção entre dor
i somática, cognitiva ou afetiva é vivencialmente irrelevante.
/
Especificamente, eu argumentaria a favor da experiência corporal como
ponto de partida para a an álise cultural, a base existencial de elaborações
culturais da experiência de doença e interven ção terapê utica divergentes. Ao
tomar nossa terminologia emprestada da fenomenologia existencial de
Merleau-Ponty (1962), temos de tentar descrever o mundo pré-objetivo da


A situação é mais complexa do que evidente em relação aos casos que geralmente ganham
notoriedade, nos quais os pais de um menor afligido por uma doença que ameaça sua vida
recusam tratamento médico com base em argumentos religiosos (veja, por exemplo, Redliner
e Scott, 1979) . Em qualquer sistema de sa úde, a relação entre duas formas quaisquer de
cura pode ser caracterizada como alternativas compat íveis, alternativas conflitantes ou
contraditórias, formas complementares tratando diferentes aspectos de um problema ou
formas coexistentes e não interativas.

204
A Afliçã o de Martin

aflição dc Martin c a tcmatiza ção que cria a possibilidade de entidades obje-


tivas como o dem ó nio ou a doen ça serem postuladas enquanto relatos da-
quela aflição. Por "pré-objetivo” não nos referimos cm um sentido temporal
à experi ê ncia dc Martin antes dc ele se submeter à influ ência de uma cura-
dora religiosa, mas à maneira como ele se engaja espontaneamente no mun-
do cultural da vida cotidiana, ou, por outro lado, até que ponto ele perdeu
seu dom ínio sobre tal mundo. Merleau-Ponty argumentaria que objetos
culturais como demó nios ou doen ças, não menos do que objetos naturais
como pedras ou árvores, são os produtos finais de um processo de abstração
de uma consciência perceptiva na qual o corpo humano senciente é uma
abertura para um campo indeterminado, irrestrito e inesgotável: o mundo/
Central ao nosso propósito é a compreensão de que| ,pn percepções
normais, o corpo da pessoa não é de forma alguma um objeto, mas sempre

^ ^
o(sujeito )da percepçãõ A pessoa n ão percebe o próprio corpo; a pessoa é seu
jorpoj percebe com ele tanto no sentido de ser uma ferramenta perfeita -
mente familiar (Mauss, 1950a) conuTiíò sentido de serem, selft corpo,-
'

ef entè~^existéntes~~Assi m, percebérunrcorpõ córno um ~õbjétõ e


^^ ^
~ ' '
~ ~ ~

terdesenvolvido um processo d ãbstraçãõTpàrtlF êxperiênciapercept!


^ ^
jojQuando nos voltamos para a situação de Martin nós ficamos perplexos
primeiramente pela forma em que todas as modalidades sensórias estão em
^

crise. Os sentidos de Martin n ão lhe facilitam acesso ao mundo. De certa


maneira, ele tem de atravessar os seus sentidos em direção ao mundo ao
invés de percebê-lo com eles; eles estão no caminho, bem entre ele e o
mundo, de tal maneira que a sua percepção não é confrontada com um
horizonte aberto, mas com um muro. Essa incapacidade de comprometer-
se com o mundo é tematizada na linguagem de cada um dos sentidos, e nós
devemos agora observar essa linguagem de mais perto.
A voz que Martin ouve sabia tudo sobre ele, fazia acordos com ele,
discutia religião, contava piadas sobre sua m ãe adotiva, difamava sua mãe
natural, oferecia amizade e companhia. Em suma, a voz foi tematizada como
um amigo bastante cruel, uma fonte de intimidade e irritação. Não fica
claro se, antes de Peggy identificar a voz com uma entidade demon íaca, ele
percebia a voz como maligna, e se é legítimo sugerir que Martin já estava
negando pensamentos desagradáveis projetando-os em seres alienígenas. A
reinterpretaçã o de Peggy desse tema do amigo cruel foi que o demó nio era

205
I l l
CORPO/ SIGNI FICADO / CURA

do tipo dos “espíritos familiares” (“familiar” no sentido daquilo que é fami-


liar para uma bruxa c n ão um “espírito de fam ília”).rSó depois de a voz ser
objetificada como um espírito maligno é que fez sentido cm termos cultu -
rais para Martin dizer que ela tinha conseguido penetrar profundamente nas
suas entranhas, que estava fingindo ser três em vez de uma ou que “ leva você
embora aos poucos fimdindo-se com a sua própria consci ê ncia”. Pode-se
apenas imaginar quais teriam sido as consequê ncias se Martin tivesse, de
fato, permitido o enunciado “sua m ãe lhe abandonou” transformar-se em
“minha m ãe me abandonou” de modo que ele fosse forçado a vivenciar
; toda a raiva e a f ú ria dos seus sentimentos de abandono.
No domínio visual, a linguagem usada para descrever as imagens sexu-
ais parece curiosamente contraditória. Martin é “ bombardeado” com ima-
gens em sucessão rápida, com um conte údo crescente de perversão e violência,
e o impulso sexual é “quase esmagador”. Ainda assim, entregar-se parece
bom e correto, e a entrega é acompanhada por sentimentos de amizade e
companheirismo. Estaria Martin se entregando à impulsos puramente se-
xuais ou à raiva e à f úria mencionadas acima e sexualmente tematizadas
como bombardeio de conteúdo violento? jl relevante aqui o argumento de
i Merleau-Ponty (1962) de que, assim como a sexualidade é uma atmosfera
permeando nossas vidas enquanto seres humanos, a própria percepção sexual
é modulada e plenamente integrada pelas outras fun ções perceptivas de nos-
sos corposjfNesse caso, parece haver uma inter-relação fenomênica entre visão
e audição na experiência de Martin de imagens e voz como amizade cruel.
Essa linha de raciocínio é fortalecida ao considerarmos a linguagem
tá til ou a sensação corpórea na afli ção de Martin. A dor ocorre primaria-
mente na sua cabeça, mas também nas suas articulações, no estô mago e na
virilha. Ela é descrita como fisgadas e puxões, um nó na cabeça e utn alívio
ocasional acompanhado de um som crepitante; os puxões e fisgadas podem
ser sexualmente estimulantes se numa á rea genital. Qualquer men ção ao seu
pai também será respondida por uma dor nas “entranhas”; esta palavra tam-
bém aparece nas entrevistas no contexto do espírito “penetrando profunda-
mente nas suas entranhas”. Se deixarmos de lado a id éia de que essas sensações
descrevem a ação intencional de um dem ónio, podemos ver que elas, de
fato, isolam partes do corpo de uma maneira fenomenologicamente an álo-
ga à experiência de curadores religiosos que podem sentir quando um de
!

I 206
A Aflição de Martin

seus seguidores está curado de um problema do coração por uma sensação


dolorosa espontâ nea no peito. Para a curadora cada dor é tematizada como
um índice do mundo exterior a ser lido cm seu corpo, enquanto para Mar
tin a« dor o aliena das partes do seu corpo, parecendo com um -
mento. A integridade interna c a unidade do seu corpo são comprometidas-
desmembra
Além disso, porém, a dor é completamentc integrada com fenômenos visu
.
ais c auditivos. Diferente dos pacientes com dores crónicas cuja dor é -
da numa modulação quase mecânica com n íveis variáveis de
pensa -
estresse ou
relaxamento, há para a dor de Martin uma dimensão conativa distinta.
Ela
modula diretamente em relação com sua resposta à voz e às imagens sexu
ais. Se ele teimar em resistir, pode ter certeza que a -
, ela dor crescerá, e se ele se
entregar invariavelmente diminui.79
A descrição da sensação corporal de
Martin inclui
passando por seu corpo, seu corpo ficando gelatinosoimpress ões de calor
e um movimento
fluido através do seu corpo. Aqui há um sentido nem
tanto de desmembra-
mento, mas de dissolução das fronteiras do
corpo. O efeito final é descrito
como geração de pânico no corpo e a sensação
de fugir de si mesmo. Quan-
do essas sensações são objetivadas em termos de
é de sentir uma tentativa de implante de
demonologia, a experiência
uma outra personalidade no seu
corpo. Isso deve ser comparado à imagem de
entranhas e à imagem de estar sendo gradativamentepenetrando nas suas
estar

suas interações com a voz. Cada imagem levado embora em


corresponde a um modo particu-
lar da experiência sensorial, mas cabe notar especialmente
estar sendo levado embora, despertada
que a imagem de
pela interação mais cognitiva com a
voz, é tão física quanto aquelas associadas com
a dor e a dissolução corporal.
Além das sensações que isolam partes
doloridas do seu corpo e aquelas
que indicam uma dissolução do seu corpo enquanto
ser integrado no mun-
do, as entrevistas incluem uma constelação de
descrições incluindo uma
rede descendo sobre a cabeça de Martin, visualiza
ção de uma massa cinzenta
em torno de sua cabeça, espessamento da saliva,
espessamento das pálpebras

75 Essa discussão poderia ser proveicosamence comparada à


s análises de questões culturais,
narrativas c expcricnciais relevantes ao entendimento da dor cr
ónica em Delvecchio-Good
et al. ( 1992) .

207
I
'M !

:
:

; CORPO / SIGNIFICADO / CURA


'

: I
c um cmba çamcnto dos olhos quando seus pensamentos saem de foco,
uma conversação densa, sensações de peso, sobrecarga, ou energia esgotada.
Pode-se argumentar que o gosto ruim na boca de Martin , junto a sua hali-
tosc e o odor do corpo, se incluem nessa constelação de significados girando
1

I
«
em torno de peso e espessura. O tema que engloba essas palavras indicativas
.
de “peso” parece ser o da imobilidade Note que essa imobilidade pode ser
objetivada como o tipo de lentid ão sintomá tica da depressão clínica, ou
como uma manifestaçã o literal de opressão por um espírito maligno. Para
'
Martin , ela foi tematizada pelo reconhecimento de que ele poderia “ficar
imobilizado ou ir adiante”.
! Uma fenomenologia cultural da situação existencial exibida nessa lin-
guagem dos sentidos pode ser resumida como um estreitamento radical do
: horizonte de perccpção e experiência. Enquanto a pessoa não afligida no
quotidiano pode continuar ininterruptamente a exploração do mundo, para
Martin os horizontes do mundo se tornaram opacos e impenetráveis. A
li; > imagem do desmembramento se refere ao horizonte interno em que as
-
partes do corpo da pessoa implicam se mutuamente ou comunicam-se de
um modo experiencialmente indiferenciado e autom á tico, selado pela te-
matização das partes individuais do corpo em sofrimento. A imagem da
;
dissolu ção se refere ao horizonte que e' a fronteira do corpo da pessoa com o
mundo. Nesse caso, n ão se pode dizer que o horizonte está selado, mas que
não há horizonte, não há realidade pessoal em destaque ou em pano de
fundo, n ão h á uma direção para explorar nem qualquer sujeito distinto
como explorador. A imagem da imobilidade refere-se ao horizonte da ação
no mundo, onde se pode formular um n ú mero ilimitado de projetos de
vida em aberto, mas que para Martin está vedado pela total preocupação com
a aflição. A voz vivenciada na modalidadeauditiva participa de todas as três na
; •
medida em que seu enunciado se conecta diretamente com a dor, dificulta
para Martin o discernimento entre seus próprios pensamentos e os pensa-
! mentos estranhos, e o impedem de se envolver nas suas atividades preferidas.
A enxurrada constante de imagens sexuais, por outro lado, tem seu
significado existencial no descortinar de um horizonte artificial de um mun -
do inesgotavelmente sexual. Nesse ponto, as frases-chave são que Martin é
impelido a ver o mundo exclusivamente em termos sexuais e que ele sente
a “pornografia como um estado de espírito”. Essas frases n ão devem ser

208
;


T

A Afliçã o de Martin

jjjjjnguidas rcspcctivamcntc como cognitivas e fisiológicas, porém como


fraseologia alternadas de uma mesma posição frente ao mundo. Para lem-
brar a noção
da contingência radical da sexualidade enquanto componente
jc toda experiência humana de Merleau-Ponty (1962), pode-se dizer que o
enfrentamcnto dessa realidade por Martin é cont íguo ao fechamento de
outros horizontes, de modo que a verdade da sexualidade como um estado
de espídto em todos nós foi distorcida ao aparecer como a ú nica modalida-
de transcendente ou aberta da experiê ncia. O momento de crise de Martin
veio no episódio de anorexia e insónia imediatamente anterior ao seu en-
contro inicial com Peggy. O quase colapso total do mundo e de seus hori-
zontes ao redor dele era visível em sua incapacidade de comer, compreensível
como a incapacidade de permitir o mundo dentro de si, e sua incapacidade
de dormir, compreensível como a incapacidade de se permitir uma saída da
presença imediata e congelada da aflição.
É essencial para o meu argumento o reconhecimento de que todas as
distorções cognitivas ou afetivas aparentemente claras da experiência de
Martin são inseparáveis da linguagem da experiência corpórea. O embaça-
mento da consciê ncia de Martin e sua incapacidade de se concentrar estão
estreitamente ligados com outros aspectos de peso e espessamento. A asso-
ciação especial desses efeitos com o teor religioso está vinculada n ão apenas
à preocupação com um espírito maligno, mas à culpa sexual religiosamente
motivada que precedeu essa preocupação. Sentimentos de amizade, compa-
nheirismo, bondade e correção também estão associados com resistir à ten-
tação sexual e modular a dor. Pânico e medo são inseparáveis dos sentimentos
de dissolução corporal. As raivas inapropriadas e exageradas, incluindo raiva
dos pais, são associadas com a incitação da voz estranha, mas se nos for
permitido aplicar o relato pessoal de Peggy à experiê ncia paralela de Martin,
elas são també m associadas com sensações de o corpo da pessoa estar sendo

^
manipulado para expressar e adotar uma postura de raiva.j ssim, cognição
e afeto n ão devem ser compreendidos separadamente da experiência corpo-
ral. Eles são igualmente componentes daquilo que Schilder (1950) chama
de “modelo postural” que está sujeito a transmutação em uma variedade de
situações, principalmente nas de afliçãõ j
Uma descrição paralela poderia ser feita da experiência de Peggy com
referê ncia ao seu pró prio reconhecimento de que o espírito maligno a ataca

209

wm
:Ills 1
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
!
nos seus próprios pontos frágeis. Em síntese, h á três difcren ças-chavc nas
suas experi ê ncias: 1) ela ouve a voz basicamente gritando, praguejando, con-
i denando-a, ameaçando a sua fam ília e concomitantcmcnte causando-lhe
coprofilia; 2) imagens sexuais aparecem em episódios como um programa
I de televisão e vão do anonimato até a inclusão de pessoas reais (Martin
persistiu por algum tempo na modalidade de violência sexual an ónima); 3)
ausência de halitose ou odor corporal. Os dois primeiros traços podem ser
compreendidos como representações concretas de conflitos entre seu papel
como curadora de Martin e seu papel no seio da fam ília, e conflitos sobre
intimidade sexual. O terceiro representa a ausência de pelo menos uma
I dimensão do peso (a olf àtiva), que para Martin constitui um horizonte
vivencial obstruído.
f Êssz, então, é a nossa reconstrução aproximada da experiência pré-ob-
jetiva de sofrimento de Martin e sua tematização inicial desse sofrimento,
anterior à objetivação da sua experiência nos relatos de cura religiosa ou de
} psiquiatria. Meu argumento é que cada sistemapressupõe essa experiência,
e que seu relato é nesse sentido preciso uma abstração (veja Figura 4.1).
> Cada relato tematiza a experiência pré-objetiva de acordo com seus própri-
os princípios. No sistema religioso, o princípio relevante é moral, e pode ser
postulado enquanto contradi ção entre bem e mal. No sistema psiquiá trico,
I o princípio relevante é empírico, e pode ser postulado enquanto dicotomia
entre corpo e mente. Baseados nesses princípios, os sistemas postulam ou

: Wl ! !
!!
um demónio ou uma doença como uma entidade objetiv
^
í! Relato religioso
Princípio moral: bem/mal
Relato psiquiá trico
Princípio empírico: corpo/mente
Origem: ocasião Origem: causa
Entidade: demónio Entidade: doença
Evidência: manifestaçã o Evidência: sintoma ? Síndrome
Processo em primeira pessoa: Processo em terceira pessoa:
opressã o/luta desordem/somatiza çã o

i Figura 4.1 Relatos culturais como objetificações da experiência


ri í I '

210
ri
:
A Aflição de Martin

yV natureza desses objetos culturais é diretamente relacionada a varia-


I defini ção de pessoa nos dois sistemas. A pessoa no catolicismo pen-
çfiesna um compósito tripartite
é
tecostalcorpo - -
de corpo mente espírito, em contraste
0 - mente convencional do Ocidente contemporâ neo. O dom í -
^
nio espfrfcualpositivas e
é tão empírico quanto mente e corpo, e igualmente suscet ível
influê ncias negativas. O mal é ontologicamente real e é corpo-
fjficado em seres ativos, intencionais - isto é, os espíritos malignos. Assim ,
o termo “
entidade” direciona a atenção analítica para a reivindicação onto-
lógica de curadores
e cl ínicos de que demónios e doen ças são empiricamen -
te coisas
reais no mundo.jNos seus respectivos sistemas, o dem ó nio é um
substrato espiritual de aflição, e a doença é um substrato biológico de aflição /
f
Êm anos recentes, alguns acadêmicos questionaram o statics da doença
-
como uma entidade empírica (Campbell, 1976, p. 50 51), e a reinterpreta-
ram como uma forma simbólica ou conceituai em cujos termos os clínicos
organizam a sua interpretação e a experiência de sofrimento e aflição de seus
pacientes (Kleinman, 1980, 1983). Nesse ponto de vista, o substrato é a
fenomenologia da aflição, ou a experiência da enfermidade, e o statics da
doença como uma entidade é tornado problem á tico. Nesse sentido e nesse
nível é que a lógica diagnóstica dos transtornos e a lógica do discernimento
no sistema de cura religioso são geradas nos dois conjuntos de comentários
apresentados acimã j
As categorias de doença e demónio organizam de modo bem diferente
o entendimento de como a condição aflitiva acontece. Uma doen ça tem
uma causa subjacente no sentido estrito, entendida como algum tipo de
infecção, degeneração, trauma, anormalidade gené tica, desequilíbrio bio-
químico, e assim por diante. Um demónio, em contraste, tem uma ocasião
subjacente ou circunstância pela qual ele pode adquirir poder sobre uma
pessoa através de certas vulnerabilidades. A ocasião pode ser um evento
traumá tico ou a existência de pecado. Pecado, por sua vez, pode ser o peca-
do pessoal da pessoa afligida, um ambiente pecaminoso ao qual a pessoa foi
exposta ou a condição cosmológica geral de pecado original que permeia o
mundo. Essa é especificamente uma ocasião e não uma causa, pois o espíri-
to maligno que é assim “autorizado a entrar” é a causa propriamente dita do
|
problema. jo espírito maligno responde, então, por uma variedade de ma-
nifestações que constituem a aflição da pesso| ã

211
1!
'
t 1 !í
' CORPO / SIGNIFICAPO / CURA

i Essa disjun ção responde pelo modo diverso com que as duas categori-
;! as nomeiam o problema e o modo como elas são postuladas enquanto
; entidades|Uma doença é mais do que uma etiqueta sumá ria para uma cons-
telação de sintomas, como um dem ó nio é mais do que uma etiqueta sum á-
ria para uma constelação de manifestações. Uma doen ça d á nome na terceira
!

pessoa a um processo cujo curso pode ser especificado e que tem uma histó-
ria natural , ou uma gama de resultados previsíveisjf Um demónio geralmen-
te d á nome a um traço comportamental ou estado afetivo e o postula como
um processo em primeira pessoa, dotando-o de intencionalidade e, assim,
í 1
evitando a possibilidade tanto de um conjunto de sintomas completamen-
te circunscritos quanto de uma história natural que possa ser completamen-
te especificada. É precisamente ao atribuir intencionalidade ao traço
comportamental ou ao estado afetivo que o sistema religioso estabelece a
: 1 entidade demoníaca como uma causa ao invés de algo que é causado. No
sistema psiquiátrico, os traços e estados equivalentes são objetivados n ão
como entidades ontologicamente reais, mas no nível descritivo ou de atri-
butos mais específicos dos sintomas.
Desse modo, embora os fen ômenos da experiência pré-objetiva sejam
tratados ou tematizados por ambos sistemas como um tipo de evidência
para a entidade objetiva postulada, o status epistemológico dessa evidência é
diferente em cada instância. Do lado religioso, uma visão de luz é uma
1
i
manifestação de um dem ónio possuindo o “cakra” de alguém ; dor é a mani-
íl festação de um ser que punirá a pessoa em caso de resistência à sua vontade;
e o embotamento da mente é uma manifestação do intento de um ser de
interferir no desempenho da pessoa no trabalho de Deus. Do lado psiquiá-
trico, sensações gustativas peculiares são sintomas de epilepsia do lobo tem-
poral; insónia, perda de peso e m á concentração são sintomas de depressão;
e ouvir pensamentos e experienciar imagens visuais são sintomas de psicose
atípica. Dada essa formula ção, pode ser sugerido que uma das dificuldades
nas tentativas de Peggy de curar foi exatamente a preocupação com o fen ô-
meno enquanto evidência, e uma consequente incapacidade de lidar ade-
t
. ií quadamente com a tarefa de curar. No seu isolamento dos indivíduos de
mentalidade parecida, ela se esforçou tanto para provar seu diagnóstico que
acabou cultivando o próprio fen ômeno que esperava eliminar.
Contudo, a relaçã o entre manifestações de um dem ó nio n ão precisa
ser tão sistem á tica quanto aquela entre sintomas de um transtorno. Con-
!
212

!! !
:• iJL
A Afliçã o de Martin

forme sc discutiu nos capítulos precedentes, espíritos específicos, às vezes,


são identificados por manifestações específicas (veja també m Csordas
,
1994a), mas meu ponto c um pouco diferente. Em um modelo psicosso-
m á tico, as emoções podem ser entendidas como causadoras de sofrimentos
físicos. Dessa forma , no caso de Martin , o consultor cl ínico 1 sugere que os
“sentimentos cró nicos entrincheirados de culpa c raiva” estão diretamente
associados com a experiência da dor cró nica. A familiaridade de ministros
de cura carism á ticos com a psicologia popular inclui o conceito de aflição
psicossom á tica, e na prá tica eles tendem a integrá-lo no seu trabalho. Entre-
tanto, postular um espírito maligno esvazia a conexão direta entre dor e
afeto: o espírito é a causa de ambos, ou diferentes espíritos os causam. Eu
sugiro que a adesão estrita de Peggy à lógica da causalidade demon íaca im-
-
pediu a de ver a inter-relação das características da agonia de Martin de
outra maneira qualquer. As manifestações não apresentam qualquer relação
inerente entre si como fazem os sintomas; elas estão relacionadas apenas
como itens numa lista de problemas causados pelo dem ónio.
jfOma vez objetivada a entidade do demónio ou da doença, ela se torna,
por sua vez, o tropo através do qual a experiência é organizada, interpretada
e tematizada. Isso leva a repercussões bastante distintas nos dois relatos. Um
dem ó nio é proposto como uma opressão do afligido com a inten ção de con-
seguir controlar a alma de uma pessoa, iniciando uma poderosa luta exis-
tencial. Experiências negativas são tematizadas como formas de opressão.
Na mais forte formulação dessa l ógica, pareceria não haver qualquer razão
irresistível de procurar uma relação causadora ou influ ência entre pensa-
mento e emoção de um lado e perturbação sensorial de outro. O sofrimen-
to é cumulativo, cada forma sendo apenas mais uma maneira de a pessoa ser
machucada, mais um canal de dano demon íaco, mais uma área da vida
sitiadajf
O processo da doen ça psiquiá trica, todavia, é postulado n ão como
opressão, mas como transtorno. As experiê ncias tematizadas sob o tropo de
transtorno são aquelas que podem influenciar umas às outras, repercutir
umas nas outras, e especialmente mascarar umas às outras através de meca-
nismos como dissociação, obsessão e somatização. É de especial interesse
com respeito à experiência vivida do corpo o conceito de somatização, defi-
nido em psiquiatria e antropologia ora como apresentação de sintomas físi-

213
• 1
.
Coíipo / SIGNIFICADO / CURA

cos na auscncia de patologia orgâ nica, ora como amplificação de sintomas


f sicos orgânicos para alem de cxpectativas fisiol ógicas, apresenta ção de sin-
í

i
- li :
tomas som á ticos como uma expressão alternada de problemas pessoais ou
sociais, ou um mecanismo pelo qual as emoções originam sinais som á ticos
e sintomas ( Kirmayer, 19S4). No caso atual, embora a patologia orgâ nica
na forma de epilepsia do lobo temporal ou a depressão biol ógica (hereditá-
i ria) n ão estejam exclu ídas, a somatização pode ser compreendida como uma
transmutação de cognição e afeto.
i

Os relacionamentos entre espíritos malignos são nitidamente diferen-


tes dos relacionamentos entre enfermidades. O diagn óstico diferencial é
exatamente um processo de diferenciação, ao passo que o discernimento de
espíritos malignos é aditivo. A epilepsia do lobo temporal pode ser exclu ída
em favor da esquizofrenia no caso de Martin, significando que os sintomas
l que originalmente sugerem epilepsia aparecerão numa configuração dife-
l rente e trarão conotações diferentes com respeito ao curso esperado da en-
fermidade. O curador n ão exclui a presença de espíritos malignos específicos,
pois o discernimento da presença de um espírito acarreta uma certeza apo-
d ítica. Quase nunca é uma questão de reorganizar as manifestações de modo
mais satisfatório sob o nome de um dem ónio diferente, embora a presença
de espíritos adicionais possa ser descoberta.
Contudo, é comum os espíritos malignos se agruparem em bandos e
í “trabalharem juntos”, e, além disso, estarem sob a coordenação hierárquica
de um ú nico espírito “mestre” ou “administrador”. Isoladamente, esse agru-
pamento pode parecer análogo à padronização de sintomas numa síndro-
me, mas fazer essa analogia seria errar na an álise de que dem ónio está para a
: manifestação assim como doen ça está para o sintoma. Um paralelo mais
![
; '
justo é o seguinte: na medida em que o diagnosticador diferencial é deixado
com mais de um diagpóstico aparentemente confirmado, as doen ças são
sobrepostas e compreendidas como complicadoras umas das outras, mas
muito provavelmente elas serão analisadas em diagnoses prim á rias e secun-
dárias, tais como esquizofrenia com ansiedade secund á ria e somatização.
Similarmente, o curador carismático católico pode discernir um espírito prin-
cipal de Autodestrui ção, com espíritos assistentes de Rebelião, ódio, e Raiva.
Nós já sugerimos que postular um dem ó nio é, em certo sentido, uma
estratégia retórica, e há de fato uma variedade de an álises intrigantes de

214

U: i !
A
V
'

A Afliçã o de Martin

doenças como processos retóricos (Chesebro, 1982; Frankcnberg, 1986).


Será poss ível dizer que fazer um diagnóstico c uma estratégia retórica , no
jticsmo sentido ou no mesmo n í vel de análise que descobrir um demó nio?
Superficialmentc, eles tem em comum o fato de darem nome ao problema,
c nós podemos contribuir com os argumentos de que nomear pode ofere-
cer tanto um sentido de controle e confiança de saber o que está errado,
como pode limitar as escolhas de tratamento e traçar o curso de uma enfer-
midade. Da perspectiva da labeling theory, também pode ser argumentado
que o demónio e a doença se insinuam ambos no próprio ser de uma pes-
soa, não apenas respondendo por sintomas, mas transformando a identida-
/
de e a experiência do self de uma pessoa. Õ que torna esses paralelos
superficiais é que o modo com que o demónio e a doença nomeiam um
problema, e seu modo de existir enquanto entidades indicam duas diferen-
tes maneiras culturalmente constituídas de organizar a experi ência num pro-
cesso terapêutico
^
Um sentido mais significativo do paralelismo entre dem ó nio e doença
enquanto estratégicas retó ricas pode ser esclarecido especificando-se o que o
discernimento carismá tico de espíritos malignos não é: um sintoma de psi-
copatologia. James Henderson (1982) discute “neuroses demonológicas”
como aparecem para a psiquiatria, apresentando um caso de Freud junto
com um dele pró prio. O autor argumenta que o fenômeno pode ser com-
preendido em termos da teoria de relações de objetos internos e como indi-
cação de processos psicodin âmicos de introjeção e incorporação. Contudo,
os casos que ele discute são aqueles em que a presença de um dem ónio é a
queixa apresentada pelo paciente, e portanto pane da patologia do paciente.
No caso de Martin, e na maioria das situações de libertação entre carismáti-
cos católicos, a presen ça de um espírito maligno n ão é dada, mas descoberta
ou discernida pelo curador. Mesmo quando o espírito maligno se nomeia
através da voz da pessoa afligida, ele geralmente o faz somente ao ser ques-
tionado pelo curador.
Os pró prios curadores católicos já encontraram casos como aqueles
discutidos por Henderson. Um curador falou de um homem que tinha
contatado diversos padres em vão acreditando que estava sendo torturado
por espíritos malignos. Depois de passar vá rias sessões com esse homem , o
curador concluiu que não conseguiria ajudar. Ele indicou que o homem

215
ii

I! CORPO / SIGNIFICADO / CURA

provavelmente tinha problemas emocionais sé rios e n ão opressão demon í-


aca , e sugeriu a ele que a razã o pela qual ele tinha ido de padre cm padre era
que nenhum deles validaria a sua auto-atribuiçã o de demoniza ção. Vemos
aqui que é preciso ter cuidado para distinguir entre espíritos malignos en -
quanto sintoma de psicopatologia e enquanto equivalente religioso de uma
categoria de diagn óstico. Embora no caso de Martin possa ser leg ítimo
descrever as vozes que ele ouve em termos de introjeção do ego, o espírito
maligno deve ser descrito em termos de exteriorização grosso modo no mes-
mo sentido em que se descreve uma doença.
Ainda assim, é precisamente nas suas propriedades ou possibilidades
retó ricas que essas duas entidades mais divergem . O fato de um espírito
maligno ser um processo em primeira pessoa com uma histó ria intencional
ao invés de um processo em terceira pessoa com uma história natural signi-
fica que ele pode ser questionado e comandado. Portanto, ele pode ser ma-
nipulado nas suas relações íntimas com a pessoa afligida. AJém disso, a
forma dessa interven ção é a mesma, sejam quais forem os espíritos cuja
presen ça possa ser discernida, ea cura culmina quando o espírito maligno é
ritualmente mandado embora./ O psiquiatra não comanda a esquizofrenia
ou a depressão da mesma forma que o curador comanda um espírito malig-
no, mas intervém nela como em um evento ou contra uma coisaj Se o
paciente do psiquiatra reconhece a presença de uma doença, ela é algo que
ele “tem” e não algo cruel que o está atacando; ou algo que ele já “é” (“eu
acho que sou louco”) e não algo que n ão é ele mas quer possuí-lo. Al ém
80

disso, como cada doença implica uma história natural diferente, ela implica
também um tratamento diferente; o psiquiatra fica muito menos confortá-
vel ao dizer que a psicoterapia é apropriada para todas as doenças psiquiá tri-
cas do que o curador ao dizer que a oração de Libertação é apropriada para
todas as instâncias de opressão demoníaca.
Novamente, porque um demónio é uma entidade em primeira pes-
soa, ele pode desempenhar um papel retórico imediato como um ator no
processo de cura, embora alguns ministros de cura carismá ticos se abste-

80
A distinção entre “eu tenho” e “eu sou” numa doença foi recentemente discutida
especificamente em relação à esquizofrenia por Estroff ( 1989) .

216
A Afliçã o de Martin

nliam dc informar aos suplicantes que discerniram uma presença demon ía-
ca, preferindo expulsá-la silenciosamente e assim evitar cenas melodramáti-
cas e dc confusão. Por outro lado, porque uma doença é essencialmente
uma entidade em terceira pessoa ela pode mais facilmente ainda ser conside-
rada tratável sem que, por exemplo, o paciente psiquiá trico jamais saiba que
cia é chamada de esquizofrenia. Mas, mesmo nesse caso, alguns defensores
de programas “psicoeducacionais” consideram essencial nomear e compre-
ender a doença para tratá-la. Além disso, num sentido retórico, pode-se às
vezes atribuir pelo menos uma intencionalidade metafórica às doen ças, como
quando o câncer é descrito como um “assassino cruel ” ou um “invasor” Há
uma lacuna qualitativa profunda, todavia, entre compreender a audição de
vozes como um sintoma e como uma verbalização intencional. Martin ex -
perienciou algumas vezes o que parecia ser três diferentes vozes. Porém, ele
acreditava que, de fato, um ú nico espírito estava “fingindo” ser três. A inter-
pretação religiosa de Peggy foi que isso era, antes de tudo, exatamente um
ardil típico do comportamento do espírito, e, em segundo lugar, que a
ilusão do três-em-um foi uma blasfêmia intencional da pane do espírito,
numa imitação diabólica da trindade divina do cristianismo.
Se o potencial de multiplicação das vozes de Martin puder ser com-
preendido como potencial de dissociação e fragmentação do self, então a
racionalização de Peggy para mantê-las unificadas parece um tipo de con-
trole de danos espiritual. Esse é o caso especialmente pela presença agouren-
ta de Andronius, o espírito mestre. Para além do controle, atribuir uma
multiplicidade de vozes e identidades ao espírito certamente aumentaria o
sentido de perigo na situação. Por outro lado, em casos mais ítpicos pode
haver uma vantagem retórica em ter grupos de espíritos presentes, porque
isso permite uma interpretação mais complexa daquilo que pode ser uma
situação pessoal muito complexa, e també m porque propicia um senti-
mento de progresso crescente se os dem ónios puderem ser expelidos um por
um ao longo de várias sessões de cura (Capítulo Um; Csordas, 1994a). Parece
não haver nada diretamente paralelo a isso em tratamento psiquiá trico, o que
n ão quer dizer que doenças psiquiá tricas n ão tenham suas próprias proprieda-
des retóricas. Certamente, tanto doutores como pacientes podem construir
discursos elaborados (“deixe-me dizer algo sobre a minha esquizofrenia... )
sobre uma doença de modo a influenciar o curso de uma enfermidade.

217
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

O simples faro de o dem ó nio e a doen ça serem difcrentcmcntc consti-


tu ídos e portanto terem propriedades diferentes n ão determina a rela ção
entre eles se ambos forem aplicados cm um caso espec ífico. Dem ó nio c
doen ça podem ser completamcnte redundantes, respondendo exatamente
pela mesma constelação de sintomas, mas remetendo a distintos n íveis on-
tológicos: o ministro de cura 4 asseverou que a esquizofrenia e os efeitos de
demónios podem ser id ênticos, e somente com o dom espiritual do discer-
nimento podem ser distinguidos. Eles podem se sobrepor, inclusive nas
variações de características ou interpretações variantes das mesmas caracte-
rísticas, como ficou evidente na comparação entre os ministros de cura 1 e
4, e na referência do 5 aos aspectos espirituais e psicológicos do caso. Poder-
se-ia dizer que o dem ó nio e a doen ça coexistem como condições mutua-
mente complicadoras, ou mutuamente excludentes enquanto alternativas
estritas. Nos comentários dos ministros de cura carismá ticos, o principal
tropo pode ser tanto a opressão ou transtorno, como o espírito maligno ou
o diagnóstico psiquiátrico.

Conclus ã o

A comparação cultural que elaborei real ça o mérito pragm á tico de con-


ceber n ão apenas dem ónios, mas também categorias de diagnóstico ou do-
en ças como formas interpretativas ao invés de entidades ontológicas. Assumir
o diagn óstico psiquiá trico como um processo interpretativo ou hermen ê u-
tico (Good; Delvecchio-Good, 1980) é essencial para o desenvolvimento
de métodos de análise paralela dos relatos médicos e religiosos de sofrimen-
to, nos quais convergências e divergências de pressuposi ção e interpretação
podem ser sistematicamente detalhadas.
A descri ção fenomenol ógica da afli ção de Martin como uma totalida-
de corporificada fornece a base para uma crítica de ambos os relatos. Desor-
dem e opressã o são processos de uma entidade objetiva, seja a doen ça ou o
demónio. Ao propor que o afeto e a cognição causam sensa ções corporais
através da somatização, ou que um mecanismo interno os transmuta em
-
sinais corporais, a visão clínica deixa escapar a unidade da experiência som á
tica e psíquica que demonstramos no estudo de caso. Assim , ela está sujeita

218

J
A Aflição de Martin

às mesmas críticas que podem ser feitas a qualquer tipo de empirismo me-
canicista (Merleau-Ponty, 1962). Por outro lado, ao propor que toda mani-
festação sensória, som á tica, cognitiva e afetiva é causada por um dem ónio,
a noção de opressão admite que as experi ê ncias som á ticas e psíquicas são
todas uma coisa só, colocando-as lado a lado. Essa noção, todavia, comete o
erro de atribuir a unidade a uma consciência constitutiva abstrata, ou seja,
ao esp írito maligno, ao invés de à unidade essencial do ser humano na qual
aida modalidade perceptiva é condicionada por todas as outras. Desse modo,
ela está sujeita às mesmas críticas que podem ser feitas a qualquer tipo de
intelectualismo racionalista (Merleau-Ponty, 1962).
| Eu argumentei que o paradigma da corporeidade é útil para comparar
diferentes relatos culturais da experiência fazendo uma descrição da base
comum de onde esses relatos são abstraídos. Será que, apesar de tal vanta-
gem, a descrição fenomenológica da experiê ncia corporificada oferece ape-
nas uma outra objetificação da mesma ordem que o dem ónio, a doença ou
a emoção? Minha resposta necessariamente breve será a de mostrar como o
paradigma da corporeidade ajuda a revelar os temas embutidos - que são
elaborados como objetos culturais -, acompanhando a experiência de Martín
até o seu eventual retorno a um nível moderado de funcionalidade socià|j [
Voltemos às imagens de dissolução, desmembramento e imobilidade
que, como descobrimos, são temas da experiência corporal vivida de Mar-
tin. Durante o período final do meu acompanhamento desse caso, Peggy
informou que as sensações de fluidez e dissolução não mais caracterizavam
a experiência de Martin, enquanto a maioria dos outros problemas persis-
tia. Era como se a reintegração da imagem do corpo fosse a sua realização
crucial. A julgar pela linguagem de pânico e auto-alienação com que ela
descreveu isso, essa tinha sido a dimensão mais angustiante da aflição de
Martin.
Certamente, numa sociedade onde a etnopsicologia do ego ideal é ra-
dicalmente individualista, poderia se esperar que uma imagem integrada de
corpo fosse decisiva para um funcionamento cotidiano aceitável. Dessa pers-
pectiva de corporeidade, uma informação que de outro modo poderia pare-
cer menor emerge como proeminente no movimento de Martin em direção
ao comprometimento com o mundo da vida diária: ele havia começado a
nadar quase todos os dias. Em seu idioma, Peggy interpretou isso como

219
' il I

:
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
'

ben éfico basicamente por “refrescar” Martin do calor da sua opressã o. No


idioma fcnomenológico, podemos sugerir que o fluxo de água sobre sua
i
pele ajudou a redefinir as fronteiras do corpo contra a dissolução, que a ação
muscular coordenada ajudou a redefinir a integridade corporal contra o
desmembramento e que a locomoção contínua ajudou a redefinir a capaci-
dade de agir contra a imobilidade. Ainda assim , Martin tinha apenas atingi-
do um outro patamar, c na medida em que ele continuou a sofrer com a
aparência meramente externa de normalidade, o espírito maligno surgia
como um símbolo condensado de sua aflição.jfpe uma perspectiva exterior
à definição religiosa da realidade, um demónio do qual algu ém é libertado
pode ser uma metáfora de doen ça; um dem ónio do qual alguém n ão pode

| ,
ser libertado é uma metáfora de cronicidadê
^
Além das questões de metáfora, tradução ou equivalência de significa-
do, a análise de significados religiosos e psiquiátricos nesse caso sugere a
fecundidade de uma fenomenologia cultural na comparação de relatos da
experiência radicalmente diferentes. Um retorno aos fenômenos da experi-
ência pré-objetiva revela a base comum a partir da qual tais relatos são cons-
truídos, através de tematizações alternativas que conduzem à postulação de
objetos culturais como dem ónios e doen ças. Tentei descrever a base existen-
cial pressuposta pela reflexão religiosa e clínica, e, ao fazê-lo, argumentei
1
|explicar fenômenos religiosos de aflição somente em termos médicos é
que
colocar uma visão de mundo no lugar de outrã

^
!

|
|

220
i'
PARTE II
Transforma ções Navajos
I

)
iI

I
j.
CAPÍTULO CINCO
Cura Ritual e a Política de Identidade

na Sociedade Navajo Contemporâ nea

Meu ponto de partida é a interseção de três vias conceituais altamente


movimentadas que atravessam a antropologia americana. A primeira é a
cura ritual, que preocupou a antropologia como religião, como performan -
ce, como terapia e como uma janela para processos culturais mais amplos

* Agradecimentos: a seção com o subtítulo “ Reflexões sobre uma enfermidade misteriosa”


baseia-se em um artigo apresentado cm 1993 no simpósio sobre Símbolo e Performance em
Cura: As Contribuições do Pensamento Médico Indígena, uma pré-conferência do XIII
Congresso Internacional de Ciências Antropológicas e Etnológicas em San Cristóbal de las
Casas, Chiapas, México. Agradeço aos colegas que ofereceram comentários e questões durante
a apresenta ção das primeiras versões desse artigo no Seminá rio de Professores da Fundação
Russel Sage, no Seminário de Antropologia Médica Clinicamente Relevante da Universidade
de Harvard , e nos encontros de 1997 da Associação Internacional de Sociologia da Religião,
especialmente a John Logan, Michael Hout e Arthur Kleinman. Envio agradecimentos
especiais a Janis Jenkins pela crítica perspicaz ao meu argumento. Esse artigo foi completado
durante minha passagem como Professor Visitante pela Fundação Russel Sage em 1997.
Também agradeço à equipe do projeto e todas as pessoas associadas com o Projeto de Cura
-
Navajo: Mitzie Begay, Beulah Allen, Mick Storck, Don and Steph Lewis Kraitsik, John
Garrity, Thomas Walker, Jr., Elizabeth Lewton , Victoria Bydone, Nancy Maryboy, David
Begay, Derek Milne, Wilson Howard , Nancy' Lawrence, Deborah Diswood, Mary Diswood,
Helen Curley, Ray Begaye, Alyse Neundorf, Theresa Cahn-Tober, Elizabeth Ihler, Chris
Dole, Meredidi Holmes, Cindy Retzer, Matt Strickland e Heather Rushcamp.
itffff! ;
1
í!
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

(Csordas; Klcinman , 1996; Dow, 1986a; Kleinman , 1980; Lévi Strauss, -


-
1966). A segunda é a pol ítica identitá ria - isto c, a organização dc represen
tação e mobilização da comunidade no interior de sociedades plurais cm
nome de gê nero, orientação sexual , etnicidade, raça ou religi ã o - que tem
nos últimos anos capturado a atenção tanto da antropologia cultural como
dos estudos culturais interdisciplinares (Calhoun, 1994; Friedman , 1992;
Giddens, 1990; Lash e Friedman, 1992). A terceira, a sociedade navajo,
continua sendo uma das mais fortemente documentadas, mais frequente -
mente utilizadas como fonte de exemplos etnográficos e mais irritadas pelas
investigações persistentes de antropólogos de toda sorte (Farella, 1984;
Kluckhohn; Leighton, 1946; Lamphere, 1977; Witherspoon, 1977). Nes-
te capítulo, jêu elaboro a relação entre cura ritual e pol ítica identitá ria na
sociedade navajo contemporânea apresentando um quadro conceituai que
pode ser potencialmente aplicado em um maior n úmero de sociedadesj
^ ual é o propósito de perguntar sobre a relação entre cura ritual e
política identitária ? Fazer isso me permite tratar de maneira específica a
eterna questão da relação entre religião e pol ítica, ambas as quais são formas
de poder, mas com motivos e modos de operar aparentemente distintos
(Fogelson; Adams, 1997). Isso me permite tratar as questões paralelas do
indivíduo em relação ao coletivo e de processos microssociais em relação a
processos macrossociais. Ao afirmar com veemência, a cura ritual é uma
forma de política identitária, como sugeriu Rudolph Virchow em uma
í frase famosa, a política nada mais é do que a medicina em grande escala. Ao
declarar com um pouco menos de força, a cura ritual é uma janela para
processos culturais mais amplos, como na noção de performance cultural
(Geertz, 1973; Singer, 1972 |/
Por que fazer essa pergunta no contexto específico da sociedade nava-
jo? O cen ário navajo nos obriga a confrontar uma situação empírica que
solapa progressivamente a distin ção cada vez mais frágil entre tradição e
modernidade. Para ser exato, por um lado os relatos típicos tratam a cura
ritual como “tradicional ” e retrógrada em termos de valores e objetivos,
embora ela seja praticada em cen ários pós modernos, inclusive o da socie-
-
dade navajo (veja a literatura resenhada em Csordas e Lewton, 1998). Por
outro lado, os estudiosos costumam discutir pol ítica identitá ria em termos
-
de modernidade, di áspora, pós colonialismo e globalização (Calhoun , 1994;
i .
;
224
Cura Ritual e Pol í tica de Identidade na Sociedade Navajo Contempor ânea

Lash; Friedman, 1992) , ao passo que o pró prio conceito de “tradição” é


central na orientação da vida cotidiana para os navajos que lutam por sobe-
rania como uma nação do Quarto Mundo.
ykcste estudo, o meu propósito é mostrar que a relação entre cura
ritual e política identitá ria na sociedade navajo é desenvolvida em três dife-
rentes n íveis de generalidade social. No n ível mais amplo, a cura articula a
identidade navajo em relação à sociedade anglo-americana dominante. Meu
interesse aqui estará voltado para a representação cultural de eventos nos
quais a identidade esteja ameaçada na esfera p ú blica definida em parte pela
m ídia. Em um n ível intermedi á rio dentro da sociedade navajo, cura e iden-
tidade são estreitamente inter-relacionadas nas interações entre três formas
de cura relativamente distintas. Especificamente, vou enfatizar a negociação
entre participantes nessas formas de cura em torno de questões de competi-
ção e cooperação. Finalmente, no nível individual, a cura enquadra a relação
entre identidade pessoal e coletiva em termos de dignidade e auto-estima
enquanto navajo. Aqui, o meu foco é a transformação comportamental e
experiencial de pacientes e suas relações sociais imediatas. Baseando minha
apresentação nessa tríplice estrutura analítica, retornarei, na conclusão, à
série de relações conceituais entre religião e política, tradição e modernidade,
individual e coletivo, e microssocial e macrossocial acima mencionadas.8 /

81
Este capí tulo é baseado em dados de um projeto de cinco anos sobre cura ritual na sociedade
navajo contemporâ nea financiado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental , auxí lio
MH 50394-05 . O Projeto de Cura Navajo foi executado sob a Permissão de Pesquisa de
Recursos Culturais da Nação Navajo C9708-E e com o apoio de cinco Conselhos de Saúde
Comunitária nas regiões da reserva navajo em que o projeto foi conduzido. Este capítulo foi
revisado e aprovado pelo Conselho de Pesquisa de Saúde da Nação Navajo em 12 de outubro
de 1999. A pesquisa foi conduzida por quatro equipes, cada qual composta de um etnógrafo,
um intérprete e um psiquiatra com bastante experiência cl ínica com pacientes navajos. Como
pesquisador principal , cu supervisionei a condução de toda a pesquisa. A fase inicial do
projeto consistiu de entrevistas etnográficas com 95 curadores distribuídos através de formas
de cura tradicional , da Igreja Americana Nativa e cristã. Trabalhando com um grupo seleto e
menor de curadores, nós acompanhamos 84 pacientes entre quatro e seis meses através de
entrevistas cl ínicas e etnográficas, e também de observações de cerimónias de cura e ambientes
domésticos. Veja também Csordas (2000) . As entrevistas com os três pacientes discutidas
neste capí tulo foram conduzidas pela equipe de Elizabeth Lewton e Victoria Bydone.

225
I

'

CORPO/ SIGNIFIO\ DO / CURA

As terras navajos nos anos 1990

Os navajos (dine) sã o um povo arabasca que, junto com os povos


apaches, migrou do Alasca c do Canad á para onde é hoje o Sudoeste dos
EUA cerca de 500 anos atrás, mais ou menos na mesma é poca em que os
espanhóis, migrando do México para o Norte, chegavam à quela mesma
região. A nação navajo contemporânea abrange mais de 7 milhões de hecta-
res (aproximadamente o tamanho de Virgínia Ocidental) na região dos
Quatro Cantos, onde os estados do Novo México, Arizona, Utah e Colo-
rado se encontram. Ela fica logo ao leste do Parque Nacional do Grand
Canyon e cerca completamente a reserva ind ígena hopi. A reserva e suas
fronteiras são uma instituição do governo federal dos EUA, estabelecida
por um tratado imposto em 1868 como condição para soltar os navajos do
seu cativeiro em Bosque Redondo, perto de Forte Sumner, no Leste do

Novo México. O trauma coletivo da Longa Caminhada sua marcha for-
çada da terra natal para o exílio, após a derrota militar por tropas do gover-
no dos EUA utilizando a pol ítica de terra arrasada sob o comando do infame

coronel Kit Carson é crucial para o sentido de identidade dos navajos
contemporâneos como um povo. Hoje, a reserva navajo é dividida em cin-
co agências ou distritos administrativos federais e também em 110 localida-
des ou colegiados indigenamente reconhecidos. Cada colegiado envia um
delegado ao conselho tribal navajo estabelecido na década de 1930. O chefe
executivo do governo tribal navajo é um presidente escolhido em uma elei-
ção geral para um mandato de quatro anos.
Segundo o censo de 1990 dos EUA, a população da nação navajo era
de 155.276, dos quais 96 por cento eram índios americanos. Embora n ão
haja dados precisos dispon íveis, uns 50 mil podem estar vivendo em outras
regiões dos Estados Unidos, muitos deles mantendo vínculos estreitos com
sua terra natal, para totalizar aproximadamente 200 mil navajos. Esses n ú-
meros põem os navajos, juntos com os cheroquis e os sioux, entre as maio-
res tribos indígenas nos Estados Unidos. Levando em consideração o tamanho
e a extensão geográfica das terras navajos, n ã o surpreende que exista ali uma
certa variação cultural regional entre os navajos. Essa varia ção corresponde a
diferenças em zonas microecológicas dentro das terras navajos e, mais recen-
temente, ao desenvolvimento de centros comerciais e administrativos semi-

226
r
>

e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporânea


Cura Ritual

urbanos. Além disso


, os residentes de algumas á reas das terras navajos do
Qcstc ficam relativamcntc isolados seja pela geografia in óspita
do entorno
,
ja Mesa Negra seja pela interposi ção da Hopiland; enquanto em partes das
terras navajos do Leste, o contato de residentes com não-navajo é bastante
comum devido ao padrão de distribuição das propriedades, o que lembra as
divisões de um tabuleiro de xadrez. Sem d ú vida, as variações regionais fo-
ram ficando menos evidentes na medida em que mais estradas pavimenta-
das diminu íram o isolamento nos últimos 20 anos. Há, no entanto, pequenas
diferenças dialetais de vocabulário, de sotaques e de construção de cenas
expressões, e parece haver certa variação na distribuição de conhecimento
cerimonial entre os navajos tradicionais.
A sociedade navajo é tradicionalmente organizada em torno de um
sistema de clãs exogâmicos matrilineares. Existe um consenso geral sobre a
identidade dos quatro clãs originais, que teriam sido criados pela deidade
Mulher Mudadora, mas o sistema é bastante complexo e existem vá rias
versões de classificação de clã. Diversos clãs são considerados extintos, e
muitos são clãs adotados para representar grupos de estrangeiros que em
vá rios momentos histó ricos foram incorporados à sociedade navajo. A sub-
sistência tradicional é baseada em uma combinação de plantar (principal-
mente milho) e criar animais ( principalmente ovelhas). Os navajos
combinam a lavoura com a produção animal de várias maneiras, dependen-
do das suas zonas ecológicas dentro das terras navajos. No século XX, essas
atividades foram suplementadas com trabalho assalariado, primeiro na cons-
trução de ferrovias e na mineração de carvão e de urânio, e, mais recente-
mente, servindo as vastas burocracias federais do Escritó rio de Assuntos
Ind ígenas, do Serviço de Sa úde do Indio e do governo tribal navajo. Muitos
dos debates sobre soberania tribal nas terras navajos têm mais a ver com o
controle tribal dos serviços do que com questões de jurisdição legal, embo-
ra a questão da abertura ou n ão da nação navajo para a ind ústria dos cassinos
tenha recentemente entrado no debate p ú blico. Em geral, embora os nava-
jos continuem sendo um povo pobre economicamente, a terra , os recursos
naturais, a população e a base cultural e linguística que possuem tornam sua
situação relativamente confortá vel em comparação com a de muitas outras
tribos ind ígenas nos Estados Unidos.

227

I
ill
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

1 Cura e a representa çã o do self social e do Outro

O conhecimento popular da sociedade navajo fora das terras navajos


se baseia muito em reportagens dos meios de comunicação sobre disputas
entre tribos hopi e navajo envolvendo problemas de fronteiras nas reservas
que eles nunca criaram. O conhecimento popular se baseia também em
relatos ficcionais, inclusive nas histórias de detetive de Tony Hillerman,
cujos heróis são um policial navajo tradicional (que quer ser moderno) e
í um policial aculturado (que quer ser curandeiro). Talvez até mais influentes
1
(especialmente para quem viaja pelo Sudoeste) sejam os maravilhosos tape-
tes de lã e as jóias de prata vendidos nos postos de venda da reserva e nas
barracas de beira de estrada perto do Vale do Monumento e do Grand
Canyon. A consciência popular da sociedade “anglo” dominante entre os
navajos vem de interação direta nas quatro cidades que fazem fronteira com
a reserva - Gallup, Farmington, Flagstaff e Page - e também nas quatro
cidades mais distantes, de Albuquerque, Phoenix, Salt Lake e Denver.82
Na reserva, os navajos encontram turistas, missionários e funcion ários
do Serviço de Saúde do índio, do Escritório de Assuntos Indígenas e da
burocracia tribal navajo. A consciência da cultura angla também se desen-
volve durante o serviço militar, que não é incomum entre os jovens navajos,
e através da inovação cultural e tecnol ógica. Em gerações passadas, os nava-
jos adotaram prontamente a caminhonete e, com o aumento dram á tico das
; estradas pavimentadas na reserva, serviram-se dela com entusiasmo para as
viagens e visitas que adoram fazer. Eles adotaram também a televisão e,
mais recentemente, faxes e computadores. Traços da permeação pós-mo-
derna da mídia eletrónica são aparentes na imagem do rezador tradicional
que agenda cerimónias por telefone celular dentro de sua caminhonete.
i Todos os pontos de contato precedentes são bases ocasionais de ativi-
dade cultural que poderia ser definida como política identitária, seja ela
expressa abertamente como política literal de soberania tribal ou dissimula-

12 “Anglo” é o termo inglês genérico usado pelos navajos para os euro-americanos; o termo
navajo correspondente é bilagaana. Os afro -americanos e os mexicanos são reconhecidos
como grupos distintos.
!

! 228
Cura Ritual e Pol í tica de Identidade na Sociedade Navajo Contempor ânea

damcntc na forma de histórias cómicas sobre as maneiras curiosas do povo


branco.83 Nesta seção, examinarei dois eventos da história navajo recente
que trazem à tona a cura como uma articulação das relações entre as socieda -
des navajos e anglo-americana.

Reflexões sobre uma enfermidade misteriosa

Em maio de 1993, os meios de comunicaçã o noticiaram o repentino


surto de uma misteriosa e fatal enfermidade no Sudoeste dos Estados Uni-
dos, centrado na á rea leste da reserva navajo. Essa enfermidade começava
normalmente com sintomas semelhantes aos da gripe e, em pouco mais de
24 horas, progredia para o colapso respiratório total. Em meados de agosto,
os Centros de Controle de Doenças tinham registrado 30 casos, 20 dos
quais tinham resultado em morte (Centers for Disease Control, 1993, p.
612). Significativamente, os primeiros pacientes eram todos navajos. Os
CCD' s enviaram uma equipe de emergência à reserva para tentar identificar
a fonte e o vetor da enfermidade misteriosa, instalaram um telefone hotline
que informava as possíveis pistas e estabeleceram um registro de novos ca-
sos. Junto com os investigadores federais, batalhões de jornalistas nacionais
e internacionais invadiram as terras navajos, espreitando comunidades isola-
das e metendo microfones em rostos estupefatos ou amargurados. Daí em
diante, a situação progressivamente piorou.
As primeiras notícias divulgadas referiam-se à enfermidade não idend-
ficada com nomes como “gripe da reserva” e “gripe navajo” (veja Bales, 1994).
Alguns navajos tiveram dificuldades de serem atendidos em restaurantes, e
turistas foram vistos dirigindo através da reserva usando m áscaras cir úrgicas
(Grady, 1993). No início de junho, uma matéria de primeira página no
Washington Post noticiou que autoridades escolares em Los Angeles tinham
cancelado a visita de uma turma de navajo do terceiro ano prim ário que
haviam voado até lá para conhecer os colegas do subú rbio californiano com
quem se correspondiam (Pressley, 1993). Os navajos se sentiram profiinda-

,J Como
Keith Basso ( 1979) documentou entre os apaches vizinhos, mis histórias constituem
um gênero maior da cultura expressiva navajo contemporânea.

229
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

mente insultados com a sugestão aparente de que eles eram um povo cheio
de doença ou, pior ainda, de que eram de alguma forma responsá veis pelo
surto. No m ínimo, a transformação da epidemia em um evento da m ídia
I global enfocou uma aten ção negativa sobre a reserva e sua gente. Nos fren é-
ticos dez dias que antecederam a identificação da enfermidade, a intensida-
de e o contraste entre opini ões de dentro e de fora da reserva foram
i especialmente vívidos para mim, posto que as opini ões estavam sendo emi-
tidas semanas antes da data em que eu e minha mulher devíamos sair para
um verão de trabalho de campo nas terras navajos com nossas crian ças gê-
meas que tinham , então, seis meses de idade. Amigos na comunidade uni-
versitária, incluindo o pediatra da fom ília, expressaram sérias d ú vidas sobre
a sensatez de nossa partida antes de conhecer a natureza e o grau de contágio
II da enfermidade misteriosa. Amigos na reserva, inclusive m édicos anglos,
estavam desorientados com o episódio, indicando que a vida ali seguia como
de costume, que o surto parecia ser bastante localizado e que, em todo caso,
fatalidades aconteciam todos os dias por uma variedade de causas entre as
quais essa era apenas mais uma.
Com nossa avaliaçã o da situaçã o suspensa entre esses polos de pânico e
complacência, pusemo-nos a caminho, esperando que por ocasião de nossa
! chegada a Albuquerque o mistério estivesse resolvido. Confer íamos as in-
formações telefónicas do CCD a cada parada noturna ao longo da estrada.
O dia em que chegamos a Albuquerque foi quando o CCD anunciou a
'( causa da enfermidade: uma nova cepa de um vírus asiá tico raro chamado
! hanta, até então conhecido por atacar o sistema renal , e não o respiratório.
Aconselhados por navajo tradicionais mais idosos que haviam observado
que muitos surtos de doen ças graves no início do século eram associados
com estações de muita chuva , safras abundantes de pinh ã o e um aumento
correspondente das populações de roedores (Schwarz, 1995), os pesquisa-
dores conclu íram que o vírus se espalhava pela saliva, a urina e as fezes de
! .
um rato da espécie Peromyscus ma? jiculatus. Esse rato não é conhecido por
invadir habitações humanas exceto ocasionalmente, em invernos frios. A
doença n ão parecia ser transmissível entre humanos. Os Centros de Con -
1
: trole de Doen ça, o Servi ço de Sa ú de do índio, o estado do Novo México,
e as agências tribais de sa úde estavam todos envolvidos na divulgaçã o da
i informação. A tribo divulgou orientação de como capturar e se desfazer de
I

230
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporânea

ratos com seguran ça. Muitos navajos levaram as advertê ncias a sé rio e toma-
ram precauções. Mas a situação pol ítica novamente se deteriorou, quando
uma agencia sugeriu que os navajos deixassem de realizar cerim ónias tradici-
onais em hogans com pisos sujos. A implicação de que suas cerimónias
sagradas eram conduzidas em estruturas potencialmente imundas com ex-
crementos de rato era mais uma vez profundamente insultuosa. Os hogans
são usados para habitação ou para cerim ónias, e a terra em seu interior é
cuidadosamente varrida e vista como muito limpa, de fato sagrada, pelos
navajos.
O resultado previsível do episódio foi um certo ressentimento e resis -
tê ncia. Uma mulher navajo, uma pessoa sofisticada e bicultural (ou seja,
igualmente familiarizada com as culturas angla e navajo) que era ativa em
política tribal e questões sanitárias, traçou o seguinte paralelo entre o surto
de hantavirus e as graves enchentes que estavam acontecendo ao mesmo
tempo naquele verão na região do Vale do Mississippi. Ela indicou que os
dois eventos estavam conectados - que considerando a inclinação da Mãe
Terra em manter toda a natureza em equil íbrio, n ão era de se surpreender
que os “ brancos” estivessem enfrentando dificuldades na medida em que
pessoas brancas haviam injuriado os navajos em relação à enfermidade mis-
teriosa. Como evidência, ela mostrou que por causa das enchentes muitos
brancos ao longo do Mississippi estavam sendo obrigados a carregar sua
própria água, exatamente como os navajos vinham fazendo há muitos anos
em sua á rida terra natal.
Ainda mais significativo foi o entendimento expresso por um curador
ancião da Igreja Americana Nativa (veja abaixo). Ele tinha sido consultado
pelos parentes de um jovem casal que estava entre as primeiras vítimas fatais
do surto. Eles estavam preocupados com o perigo espiritual, perguntando-
se o que teria causado as mortes e se deveriam agora tomar algumas medidas
cerimoniais. A resposta dele foi que era equivocado culpar os ratos, pois eles
são criaturas inofensivas sem qualquer capacidade aparente de animosidade
contra os humanos. Na sua estimativa, a morte do casal foi causada pela
exposição a uma contaminação atmosférica - veneno no ar de algum tipo
de teste do governo, ou veneno que atravessou o oceano vindo de alguma
fonte estrangeira (por exemplo, Chernobyl ou a Guerra do Golfo). Os
jovens haviam sucumbido por terem ido recentemente a mais de um fiine-

231
; I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
í
ral, fãzendo-se assim vulneráveis pela exposição aos mortos de uma forma
:! hoje bastante comum , mas que é considerada altamente inapropriada na
prá tica navajo tradicional. Tradicionalmentc apenas uns poucos parentes
mais próximos tomam encargo de um corpo morto e mesmo assim apenas
com cuidadosos procedimentos cerimoniais que os habilitam a lidar com o
espírito da pessoa e seus pertences com segurança. A explanação dual do
! curador é etiologicamente racional ao evocar um fator de vulnerabilidade
I individual combinado com um agente ao qual outros também estão expos-
tos, mas n ão sucumbem necessariamente. Mais impressionante, contudo, é
a sua lógica cultural com respeito à política de identidade, através da qual
11 í l combina a falta de adesão à prá tica tradicional pelos navajos com a patoge-
nicidade da sociedade dominante.
Histó rias de poluição atmosférica, ocasionalmente vinculadas a teorias
conspiratórias, são relativamente comuns na reserva, significando que elas
precedem o episódio do hantavirus. Tais histó rias não são ficcionais nem
' delirantes. Revelações sobre muitos anos passados confirmam que houve de
fato testes ambientalmente perigosos no Sudoeste (veja, por exemplo, o
programa Turning Point da ABC News, levado ao ar em 2 de fevereiro de
l i; ti 1994). Segredos de governo apenas recentemente divulgados pela m ídia
(para surpresa da maioria dos americanos) podem muito bem ter sido co-
nhecidos por observação ao longo de d écadas pelas pessoas que moram nas
áreas onde tais testes foram conduzidos. Dada a variedade de formas através
das quais os navajos (e outros) veem o ambiente e o modo de vida da
!
i! sociedade contemporânea em sério desequilíbrio, a sugestão de um simples

I rato pelas autoridades estimulou uma suspeita adicional. Eram comuns, na
época, comentários do tipo “minha avó tem ratos em volta da casa, e nin-
] I ! guém lá jamais ficou doente”. Alguns navajos assinalaram que as pessoas

1 I
tinham vivido ao lado de ratos durante séculos e apenas recentemente se
ouviu falar que ratos podiam fazer mal - assim como tinham usado as
mesmas fontes de água durante anos e apenas recentemente (por exemplo,
desde o advento da mineração de urânio) a contaminaçã o das águas tornou-
:

se uma preocupação. Nas raras instâncias em que os curadores admitiram


um possível papel para os ratos, os ratos tendiam a ser considerados mensa-
geiros de uma advertência ao invés de portadores de doen ça. Nas ainda mais
raras instâncias em que os ratos foram reconhecidos como potenciais porta-

232
;;
lL MiL
'
.
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporâ nea

dores dc doen ça, eles foram mais provavelmente considerados espíritos


malevolentes disfarçados do que vetores dc um vírus.
O desenlace do episódio ocorreu à medida que mais casos começaram
a aparecer entre n ão-ind ígenas vivendo alem das fronteiras da reserva. Con-
forme a á rea afetada se expandia, menos casos se registravam e os índices de
sobrevivê ncia aumentavam para aqueles rapidamente diagnosticados. O
apetite da m ídia pela enfermidade diminuiu, embora not ícias ocasionais
ainda aparecessem, sendo uma delas um breve artigo do New York Times em
outubro de 1996 sobre um caso em Utah. Talvez a ironia final - ou o
insulto final - do episódio do hantavirus tenha sido noticiado pelo New
York Times em fevereiro de 1999, como parte de uma história sobre má
administração de fundos gerenciados pelo governo dos EUA em nome dos
índios americanos desde o século XIX. No centro de documentação de
Albuquerque, no Novo México, os registros da contabilidade dos fundos
eram tão mal conservados que, de acordo com funcionários do governo,
estavam contaminados com fezes de roedores que podiam conter o hanta-
virus (Egan, 1999). Com respeito à política identitária de cura, o surto teve
dois efeitos sobre o trabalho etnográfico que estávamos fazendo. Primeiro,
inviabilizou em grande parte a condução de entrevistas na área oeste da
reserva onde as pessoas tinham ficado mais exasperadas com a intrusão es-
trangeira da m ídia. Segundo, possibilitou incluir em entrevistas conduzidas
em outras áreas uma questão sobre como a enfermidade misteriosa, junto
com outras “novas” doen ças como Aids, síndrome alcoólica fetal e depen-
dência de drogas estavam sendo incorporadas nos entendimentos navajos
de saúde e cura.

As aparições da seca

Um segundo episódio na primavera de 1996 também ilustra a polídea


identitá ria de cura com respeito à representação cultural. Duas deidades
navajos apareceram para duas mulheres idosas em uma área remota da reser-
va. A aparição ocorreu no contexto de uma grave seca que durou toda a
primavera e entrou no outono daquele ano. Vista como a pior seca desde os
anos 1850, ela causou muitas dificuldades para os navajos, que foram força-
dos a vender parte de seu rebanho com prejuízo. Na reserva, a seca resultou

233
|
\
í fn
;
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

:s!

na maior redu ção da criação de animais desde a redu ção dc 1930 imposta
peio governo. Aberle (1982) argumentou que a popularidade inicial da re-
I ligião do peiote entre os navajos foi uma resposta religiosa às condições dos
anos 1930; da mesma forma, eu vejo as aparições de 1996 como uma res-
posta reiigiosa à seca c às privações que as acompanharam. O mais impor-
tante é que as deidades deixaram uma mensagem para o povo navajo. Por
razões que elaborarei em um instante, eu n ão disponho das palavras exatas
do relato de uma das mulheres para quem as deidades apareceram, mas ouvi
várias interpretações daquela mensagem narradas por Navajos em diferentes
' regiões da reserva. Apesar dessas interpretações variarem em urgência e im-
portância, elas têm uma semelhança distintamente familiar. A interpretação
mais branda foi que a aparição era um aviso de que a seca estava chegando e
que os cantadores (mestres de cerim ónia tradicionais navajos ou curandei -
ros) deviam realizar as cerimónias apropriadas para prevenir ou amenizar os
efeitos. Uma outra foi que a seca e outras dificuldades estavam ocorrendo
!! porque as oferendas rituais certas n ão tinham sido feitas. A mais forte foi
que a seca rinha acontecido porque os navajos estavam deixando de apren-
der sua própria língua e cultura. Oferendas deviam ser feitas no local da
aparição, e não levar a advertência a sério podia acarretar o fim do mundo.
'm Esses relatos mostram a relevância da mensagem divina tanto para a
política identitária como para a cura entre os navajos contemporâ neos..As
oferendas solicitadas podem ser compreendidas como rituais de cura na
medida em que seu intento é a remoção de obstáculos à existência humana

5 ; ^
e a restauração do equilíbrio nas questões humanas e naturais A idéia de
que essa desordem é de responsabilidade dos próprios navajos por terem
renegado sua própria identidade está expl ícita na forma forte, enquanto na
forma branda poderia se interpretar que as deidades estão simplesmente
JM -
fazendo um favor ao povo navajo instruindo o nos modos rituais para a
; superação de uma situação dif ícil. O tema central n ão é uma nova revela -
ção, mas reflete o sentimento de muitos navajos preocupados com a viabi -
lidade cultural. Um cantador que entrevistei vá rios anos antes da seca
expressou isso com propriedade. Para ele, o atributo central dos cantos,
dan ças e cerim ónias é que eles curam as pessoas. Não realizar as cerim ónias
com tanta frequ ência quanto outrora, desconhecer os ensinamentos e os
planejamentos das gerações mais antigas, desarmonizar as cerimónias secu-

: 234
|. ;í
L : l:l íL •
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporâ nea

larizando-as como “m úsica c dança”, ou zombar delas e fantasiá-las são ra-


zões pelas quais “somos alvos fáceis para enfermidades, tornados, raios, coi -
sas que nos ferem”. Em outras palavras, ele estava sugerindo que a enfermidade
e o desastre natural pertencem à mesma categoria de eventos, que as cerim ó-
nias de cura se dirigem a ambos, que ambos são exacerbados pela falta em
realizar as cerimónias, e que essa falha é uma consequê ncia da identidade
navajo enfraquecida.
O aspecto crítico desse episódio para nosso atual entendimento, po-
rém, não está na própria mensagem, mas na resposta p ú blica a ela. A respei-
to disso eu devo dizer, em primeiro lugar, que a aparição direta de deidades
navajos ou Povo Santo é rara,84 embora estejam panteisticamente presentes
através da natureza e da existência humana. De fato, segundo o mito nava-
jo, eles terminaram sua presen ça imediata na terra h á muito tempo, partin-
do com a declaração seguinte: “Apenas neste dia e nesta noite vocês viram o
Povo Santo. Deste dia em diante, até o final dos dias, vocês n ão o verão
novamente (em pessoa) , isto é definitivo!” (Wyman, 1970, p. 324-325).
Em segundo lugar, como Aberle (1982) observou em sua discussão da resis-
tência navajo inicial à religião do peiote, a cultura navajo não se caracteriza
por atribuir um elevado valor à visão individual ou experiência mística, e
n ão há tradição clara de vision ários publicamente reconhecidos.85 Em ter-
ceiro lugar, cerimónias navajos são usualmente organizadas em torno de
grupos específicos de parentesco numa escala relativamente pequena. En-
quanto em sociedades católicas romanas a aparição da Virgem Maria ou de
santos a indivíduos vision á rios possuidores de um dom é amplamente di-
vulgada e leva ao estabelecimento de santuários permanentes (como os de
Lourdes ou Guadalupe) como locais de peregrinação, na sociedade navajo,
a aparição a tais indivíduos n ão é um modo típico de o Povo Santo tradici-

84 Essas raras hierofanias pú blicas podem ser particularmente associadas com momentos de
estresse coletivo , tais como a seca de 1996. Clyde Kluckhohn ( 1942 , p. 59- 60) relata duas
aparições de Povo Santo em 1936, durante o traumá tico per íodo da redução de animais de
criação forçada pelo governo dos EUA na reserva. Nestes casos particulares a mensagem
divina também inclu ía instruções para que a atividade cerimonial fosse realizada.
85
H á evidência , contudo, de que algumas cerimónias navajos se originaram em sonhos ou
visões ( Haile, 1940; Kluckhohn, 1942).

235
iiiii
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

i onal se manifestar, e a peregrinação p ú blica n ão d uma prá tica ritual t ípica


S i
,
I
entre navajos.
i Dessa forma é da m áxima importância que nesse caso as notícias da
apari ção se espalharam rapidamente através das terras navajos, e os navajos
começaram a chegar em massa - literalmente em ônibus lotados - para
fazer oferendas lá onde as deidades haviam aparecido. Um diagnosticador
tradicional determinou qual Povo Santo cm particular requeria oferendas, c
sabe-se que vários curandeiros visitaram o local. Um renomado e respeitado
cantador conduziu uma cerim ónia que inclu ía a aparição de dançarinos
í mascarados representando as deidades que tinham vindo como mensagei-
i ras. Um contínuo fluxo de peregrinos começou, finalmente escasseando
i durante os meses de inverno. O presidente da nação navajo concedeu licen-
ça a todos os servidores da tribo que queriam fazer a viagem, e ele também
. fez a peregrinação. Ao mesmo tempo, contudo, ele lançou um apelo para
:
os navajos não falarem sobre o evento sagrado e para n ão haver qualquer
;
! publicidade sobre ele. Uns poucos artigos apareceram em jornais regionais,
! e mais nada. Até 31 de dezembro de 1996, quando o próprio jornal da
i
tribo, The Navajo Times, estampou a manchete “A maior história de 1996
é uma que nunca foi publicada.” O artigo dava conta da aparição, mas
citava o diretor e editor administrativo do jornal dizendo que a fam ília das

i \i
duas mulheres tinha pedido que não se publicassem detalhes até que elas
decidissem divulgar a “história correta” de sua experiência e a mensagem do
Povo Santo, o que à época ainda não haviam feito.86
Os pedidos de circunspeção do presidente e da fam ília podem ou n ão
; ter conexão - isto é, o presidente pode ou n ão ter retransmitido o pedido da
;;
família ao mais amplo p ú blico navajo. A declarada preocupação com a exa-
tidão do detalhe pode ser o reconhecimento do que estava em jogo para o

£í
Esse pedido de sil êncio põe a pol ítica identitária navajo frente a frente com a pol í tica de
representação etnográfica no sentido de que, embora na época indivíduos navajos estivessem
dispostos a discutir a apari ção comigo, não estava claro de que maneira eu poderia escrever
respeitosamentesobre o incidente em um artigo etnográfico. Na presente discussão, eu me
oriento pelo artigo do jornal tribal citado no texto, mantendo um respeito cauteloso pelo
i sagrado ao não publicar os nomes do Povo Santo específico que apareceu, nem os detalhes
do seu modo de aparição.
!
236
;
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporânea

povo navajo na transmissão dc uma mensagem sagrada, ou pode ter sido


uma tentativa dc controlar a mensagem fazendo com que as pessoas vies-
sem ao local da apari ção para conseguir a histó ria real. Seja qual for o caso,
a pol ítica identitá ria desse episódio dc cura ambientai coletiva tem dimen-
sões importantes com relação à representação cultural dentro e fora da soci -
edade navajo. Além disso, h á um aspecto sagrado e um aspecto pragm á tico
em cada uma dessas dimensões. Deixe-me elaborar.
/ Para o povo navajo, o conhecimento sagrado é poderoso e potencial-
mente perigoso (báhádzid), e deve ser tratado com um respeito que exige
circunspeção e até segredo. Espalhar o conhecimento longe demais pode
enfraquecer o seu poder espiritual, abusar do seu poder, ou voltar o seu
poder destrutivamente contra o detentor original do conhecimento. Da
mesma forma, a ampla e descontrolada disseminação dos detalhes da apari-
ção poderia ser inerentemente perigosa. Esse entendimento do perigo po-
tencial se encaixa com o aspecto pragmá tico da política de representação.
Recorde-se que as aparições ocorreram logo após a invasão de m ídia em
torno do episódio do hantavirus. Se um circo midiá tico é desagrad ável por
si só, ele é ainda de maior mau gosto quando promove o mal-entendido e o
ridículo por estrangeiros que não possuem qualquer apreço pelas tradições

^
de espiritualidade navajo Não menos perturbadora poderia ser uma inva-
são de bem intencionados mas pouco educados “aspirantes” a índios da
Nova Era, que podem ter todo tipo de noção ultrajante do que seja uma
oferenda correta a deidades que não são as suas. Do ponto de vista tradicio-
nal, essa seria de fato uma situação perigosa. Em relação a tudo isso, o
pedido de circunspeção tão amplamente atendido foi um ato político notá-
vel de auto-identificação coletiva frente à sociedade dominante n ão-navajo.
Internamente, questões sagradas e pragm á ticas envolveram a interpre-
tação das apari ções, especialmente no que diz respeito à sua autenticidade.
Curandeiros de algumas partes da reserva objetaram que eles já vinham
conduzindo cerimonias, e conduzindo-as corretamente; portanto, eles eram
cé ticos quanto à aparente necessidade das deidades descerem para trazer uma
tal mensagem. Além disso, os planos para uma cerimónia p ú blica no local
da aparição em benefício de toda a tribo pareciam pouco ortodoxos aos
olhos de alguns anciãos, que consideravam mais apropriadas as cerim ó nias
para chuva realizadas de forma localizada e privada por famílias individuais.

237
ft
i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
: i i! r
Outros ainda temiam que os navajos tradicionais estivessem ( nova reminis-
cência do episódio do hantavirus) sendo indevidamente exclu ídos c que a
mensagem do Povo Santo também era relevante para navajo de outras con-
, i, -
vicções religiosas c até mesmo para os n ão navajo. Nesse ponto de vista, o
povo todo, inclusive cristãos, precisa voltar às suas tradi ções. Pragmatica-
mente, alguns navajos expressaram a preocupa ção de que a legitimidade das
: aparições, ou ao menos seu impacto positivo, estivesse sendo minada pelo
! !|í benefício financeiro extraído dos eventos. Auferir lucros de um evento sa-
grado é rigorosamente distinto das remunerações pagas a um cantador que
conferem respeitabilidade à sua cerim ónia e legitimidade frente ao Povo
Santo. Nesse caso, algumas pessoas reclamaram que a fam ília anfitriã estava
“vendendo tacos” lá fora e que havia um curandeiro ( hataalii) pedindo di-
nheiro aos visitantes. Em contraste, um curandeiro respeitado que realizou
uma cerim ónia no local disse que mesmo com todo o dinheiro sendo arre-
cadado, a remuneração que ele recebeu foi muito pequena para pagar ade-
quadamente seus assistentes cerimoniais.

Cura e a negociaçã o entre tradiçõ es

A discussão acima presume uma certa uniformidade entre os navajos


í! ;
tanto em relação à cura como à identidade. Na sociedade navajo, contudo,
a identidade religiosa, as formas m últiplas de cura e a pol ítica interpessoal
i tomam o quadro consideravelmente mais complexo. O fato etnográfico

í :
• . crucial é a coexistência de três formas de cura espiritual na sociedade navajo
i !
! contemporânea: a cura navajo tradicional, a cura da Igreja Americana Nati-
va e cura pela fé cristã navajo.87 A cura tradicional é praticada pelo curandei-
ro com seu canto, sua pintura de areia e pelo diagnosticador que trabalha
com m étodos como o de tremer a mão, de fitar cristais ou fitar estrelas. A

,
£7
Um relato abrangente de sistema de saúde navajo teria quatro componentes, incluindo
cuidados biom édicos praticados nas instalações do Servi ço de Saúde Ind ígena e hospitais
públicos e particulares tanto dentro como fora da reserva (Csordas; Garrity, 1992). A
interação das tradi ções espirituais com os cuidados biomédicos está al ém do â mbito do
presente argumento.
I
.

? 238
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporâ nea

na
cllra da lBrcja America Nativa c praticada pelo andarilho, com seu altar de
barro» o peiote sacramental e a cabana sudatoria de estilo indígena das Gran-
ja Plan ícies. Finalmente, a cura pela fé cristã é praticada pelo pregador
pcntecostal navajo independente, com seus encontros de revivificação e
imposição de mãos, c pelos grupos de oração carismáticos católicos com
sua integração comunitá ria de prá ticas navajos e católicas romanas.
Todas essas formas de cura são recursos dispon íveis na reserva navajo,
mas apenas a ,que é ;baseada na religião tradicional é nativa para o povo
navajo (Farella 1984 Reichard, 1950; Witherspoon, 1977). A Igreja Ame-
ricana Nativa (IAN) é um movimento pan-ind ígena que desenvolveu o uso
sacramental do peiote em sua forma contemporânea iniciando em torno da
virada do século XX com as tribos ind ígenas das plan ícies. Com sua intro -
du ção nas terras navajos na década de 1930, os adeptos sofreram pressões
legais de seu próprio governo tribal, que decretou ilegal o peiotismo em
2940 e n ão mudou para a tolerância até 1966 (Aberle, 1982; La Barre,
1975; Stewart; Aberle, 1984). A introdução e influência do cristianismo
em muitas de suas formas contemporâneas foi apenas esporadicamente do-
cumentada para a sociedade navajo (Bowden, 1981; Hodge, 1969; Som-
brero, 1996). O catolicismo veio em larga medida com a influência de
missionários franciscanos, e o mormonismo chegou com missionários de
Utah. Muitas das principais denominações protestantes estão representadas,
mas assim como entre cristãos noutras sociedades, a maioria dos rituais de
cura é conduzida por adeptos de várias formas de pentecostalismo. Isso
inclui ramos de denominações como as Assembléias de Deus e participantes
de grupos de oração carismá ticos em paróquias cristãs. Notavelmente, con-
tudo, elas também incluem várias congregações independentes e redes de
congregações que parecem ser protodenominações, todas encabeçadas por
pastores ind ígenas navajos. Elas constituem uma forma emergente e distin-
tamente navajo de cristianismo.
É possível delinear um modelo de relacionamento entre as formas de
cura associadas com estas três tradições religiosas com respeito ao que elas
têm em comum enquanto aspectos da cultura navajo e o que as distingue
uma da outra como componentes de um sistema cultural de saúde. Para
resumir um argumento que desenvolverei detalhadamente no próximo
capítulo, todas as três têm como objetivo comum que o paciente com-

239
1 ( 1:
:

CORPO / SIGNIFICADO / CURA


i
i i

I :
preenda - os curadores navajos geralmente dizem que um curador dcvc
' ;
falar com eles de modo que eles entendam. Em contraste com uma ê nfase
psicanalítica no “insight” acerca das origens conflitivas do problema , esse
tipo de compreensão tem mais a ver com o lugar atual de uma pessoa no
mundo, e está de acordo com a preeminê ncia frequentemente observada da
linguagem e do pensamento na cultura navajo (Farella, 1984; Witherspo-
on, 1977). No entanto, cada uma das três formas de cura navajo se aproxi-
ma do objetivo da compreensão em termos de uma filosofia distinta e por
meio de um princípio terapê utico diferente. A cura navajo tradicional é
í baseada no que pode ser chamado de uma filosofia de obstáculos. Nada
acontece sem uma razão, e a razão do infortú nio é encontrar um obstáculo.
. í O princípio terapêutico da cura tradicional é did á tico, pois o curador engaja
o paciente no processo terapêutico usando mé todos que guiam o pensa-
mento em direção ao objetivo da compreensão. Em contraste com a filoso-
fia de obstáculos da cura tradicional, a cura da Igreja Americana Nativa
: (IAN) é baseada numa filosofia da auto-estima. Através da ingestão sacra-
mental de peiote, os pacientes logram uma profunda conexão pessoal com
o sagrado e suas vozes e presen ças são valorizadas. O princípio terapê utico
i na cura da Igreja Americana Nativa é confessional, pois os pacientes oram,
I ' f confessam ou falam de seus problemas, se emocionam e choram. A cura
cristã navajo é caracterizada por uma filosofia da identidade moral, respon-
dendo à pergunta “quem sou eu ?”, de modo a incluir freq úentemente entre
f úndamentalistas a compreensão de que a pessoa respondendo à pergunta
não é um tradicionalista ou um peiotista. Finalmente, o princípio terapê u-
tico da cura cristã é conversional, com a cura geralmente baseada na adoção
de valores cristãos e de um modo de vida cristão.
Além dessas relações em princípio relativamente abstratas, as políticas
identitárias na sociedade navajo se manifestam na interação e negociação
entre essas três formas de cura na prá tica de cada dia. As três toleram vá rios
graus de ecletismo com respeito à mistura de formas, mais entre peiotistas e
católicos romanos, e menos entre cristãos f ú ndamentalistas e tradicionalis-
BI tas conservadores. Os cristãos f ú ndamentalistas, incluindo pentecostais pro-
testantes, normalmente exigem que os convertidos queimem a parafern ália
cerimonial pertencente a prá ticas tradicionais ou da LAN - dar tais objetos a
parentes n ão convertidos não basta. Por outro lado, tradicionalistas conser-

240
[; i 1 4 -
MIJ
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporânea

vadorcs veem tanto o cristianismo quanto a Igreja Americana Nativa como


intrusões estrangeiras sem cabimento na vida navajo. Na prá tica, contudo,
cspecialmente na questão pragm á tica de tentar encontrar o tipo de cura
mais eficaz em qualquer episódio de enfermidade ou afliçã o, os navajos
frequentemente recorrem a todas as três formas com pouco ou nenhum
senso de contradição.
A seca de 1996 fornece um exemplo inicial desse processo comum de
negociação entre formas religiosas facilmente perceptível através do campo
social da prá tica terapê utica. Relatou-se que alguns funcionários cristãos do
governo tribal não gostaram da autorização oficial garandda aos navajos
tradicionais para realizarem a peregrinação ao lugar das aparições. Um can-
tador tradicional que orou no local sentiu que um dos problemas que pre-
cisavam ser tratados cerimonialmente era que a família havia permitido a
realização de um encontro da Igreja Americana Nativa na sua propriedade.
Por outro lado, um grande evento p ú blico foi realizado na capital tribal de
Window Rock e transmitido para a reserva pela estação de rádio tribal
KTNN, durante o qual um cantor tradicional, um andarilho da LAN e um
ministro cristão se alternaram oferecendo orações para o fim da estiagem.
No restante desta seção, eu começarei a analisar essa situação complexa
através de um exame de entendimentos de curadores das prá ucas e visões de
mundo uns dos outros. Há, para começar, uma grande dose de polinização
cultural cruzada de tradicionalistas com a LAN entre os navajos hoje em dia.
Entre os curadores tradicionais entrevistados, um n úmero muito pequeno
rechaçou o peiotismo por completo. Estes n ão foram sempre os anciãos,
contrariando a expectativa de que os navajos mais velhos seriam mais con-
servadores. De fato, alguns dos anciãos consentiram em ser pacientes ou
participantes leigos em encontros de peiote, e podem ter filhos atuantes.
Alguns parecem ter integrado o peiote em sua farmacopéia, tratando-o sim-
plesmente como mais uma de suas ervas de cura tradicionais. Um tradicio-
nalista que fez objeções ao peiotismo pareceu fazê-lo com fundamentos
pragmá ticos, e não sem humor:

Isso é uma nova moda. Isso é uma prá tica nova. Eles a reivindicam como
uma cerimó nia navajo, mas você os ouve cantar parabé ns junto com as
m úsicas da Igreja Americana Nativa deles. Nós curandeiros navajos n ão

241
;

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

I
cantamos assim ... Agora, com a Igreja Americana Nativa, eles usam o
• i! i í broto de peiote e cantam can ções. Eu n ão entendo as can ções. Mas sã o
I? muitas c ainda tem emocionalismo demais nelas. També m , o broto de
peiote, ele funciona como analgésico. Então, dizer que é cura de verda-
pií i I
de, tem dois lados nisso e é duvidoso.

Entre os curadores da LAN, a participação m últipla também é bastante


provável, especialmente como pacientes nas cerimónias tradicionais quan-
do a enfermidade ataca. Aqueles que alegam ignorância das vias tradicionais
freq úentemente parecem fãzê-Io com a humildade de uma pessoa leiga sem
g orientação, e não com uma atitude de indiferen ça ou rejeição. Hoje muitos
dos jovens tradicionalistas mais devotos parecem ter sido inspirados pelo
peiote a aprender mais sobre suas próprias raízes culturais. Alguns dizem
que o peiote n ão é uma importação dos índios das planícies, mas foi origi-
nalmente dado também aos navajos e depois perdido, para voltar apenas
agora. Porém, mesmo entre aqueles que misturam as duas religiões, há al-
gumas formas pelas quais elas se diferenciam na prá tica: certas rezas tradici-
I onais n ão devem ser ditas do altar do peiote, n ão se deve participar em
IA cerim ónias tradicionais e da IAN no mesmo dia, alguns preferem fazer reu-
niões de peiote em um hogan navajo e n ão em uma tenda das plan ícies,
algumas ervas tradicionais (assim como certas medicações hospitalares) são
notoriamente incompatíveis com o peiote, e alguns andarilhos navajos in-
sistem na legitimidade da condu ção de serviços funerários (a despeito das
restrições tradicionalistas à proximidade com os mortos), com o argumen-
to de que as pessoas deveriam continuar a se sentir conectadas com os pa-
rentes falecidos que sempre serão parte delas.
Entre cristãos, um exemplo espantoso de participação m últipla é o da
!j
devota católica entrevistada como curadora cristã que frequentava regular-
! mente encontros de oração da Igreja Americana Nativa e que fez uso de
nossa remuneração pela entrevista para pagar uma cerimónia de bên ção tra-
dicional. Por outro lado, um pastor conservador fez o pronunciamento
seguinte:
M
Com o crisdanismo, nossas orações flutuam até Deus espiritualmente.
Com a IAN e os tradicionalistas, as orações vão para o diabo. Na LAN,
eles têm que ir ao Texas [onde o cacto do peiote é colhido] para conse-

242
T
'

Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contempor â nea

guir o rem édio. Entre os tradicionais, clcs conseguem as ervas das mon-
tanhas. Nós cristãos n ão precisamos ir às montanhas ou ao México ou ao
Texas.

Essas variedades de conflito c cooperação são n ão apenas questões de


princípio e posicionamento doutrin á rio, mas tê m implicações cotidianas
para a interação social entre indivíduos e especialmente nas fam ílias. Por
exemplo, três irmãos participaram do nosso estudo: um é um cantador
tradicional, o segundo um andarilho do peiote e o terceiro um pastor cris-
tão. A interação freqiientemente for çada de relações interpessoais, compro-
missos religiosos e lealdades familiais entre esses homens é a evidência do
papel crítico da religião e da cura ritual na negociação da identidade navajo
contemporânea.

Cura e transforma çã o pessoal

O exame da experiência de pacientes individuais no ritual de cura cha-


ma aten ção para a necessidade tão pouco tratada de especificar uma conexão
teó rica entre identidade pessoal e coletiva. Dando um passo nessa direção,
eu selecionei entre os pacientes que entrevistei em nosso trabalho três pesso-
/
as, cada uma tratada em uma forma de cura. Para esses três pacientes, a
questão da identidade é um tema vital ou lociis &z atenção terapêutica. Cada
um desses casos revisita as tensões que animam os dois níveis de análise que
tratei até aqui - a tensão entre valores navajos e euro-americanos e maneiras
de ser-no-mundo, e a tensão entre as três formas de cura e suas visões implí-
citas de o que significa ser um navajo hoje. Aqui, no nível da experiência
individual, essas tensões são difratadas pelas tensões entre enfermidade e
bem-estar e entre a existência sem objetivo e o amor-próprio dignificado

Cura tradicional
^
Sylvia é uma mulher de 30 anos em seu terceiro ano de faculdade
numa pequena seção da universidade do estado em uma das cidades adja-
centes à reserva. Ela é muito ligada à fam ília, especialmente à mãe, a quem
ela admira por sua força, seu respeito, conforto e apoio. Ela se vê como uma

243
fl

i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

I i I pessoa completa, confiante cm suas raízes tradicionais frente aos amigos


1 !! n ão-navajo, a despeito de antigos problemas com sua auto- imagem porscr
de constitui çã o pesada em comparação com suas “lindas” irm ãs. Ela falou
explicitamente sobre a rela çã o entre auto-identidade e a filosofia de vida
tradicional sintetizada na frase “andar na beleza”:

Para mim andar na beleza significaria conhecer toda a sua auto-identi-


dade, andar em harmonia, você sabe, com a natureza, o seu entorno, e
I
jjjj li:! j!
11! !' ate mesmo, você sabe, ter sua fam ília toda, estar consciente de tudo à

M sua volta... Andar na beleza também será a próprias pessoa, ah , vocc


sabe, conseguindo, conhecendo suas cren ças tradicionais, sua cultura.
Advindo disso, você sabe de tudo que está por trás, aquilo é a sua espi-
nha, para crescer, sabendo que é sua auto-identidade, e da í, você não
desanima. Você não se decepciona. Muito da negatividade que alguém
deve sentir n ão ficará com você para sempre porque você vai saber como
1
> !
lidar com ela, uma vez que conhece sua auto-identidade. Isso começa,
eu acho que isso deveria começar numa idade bem tenra, eu acredito
nisso, você sabe, andar na beleza.

O problema dela começou com a morte do pai sete anos antes, quan-
do, como a mais velha de seis filhos, ela assumiu boa parte do papel e das
responsabilidades dele. Desde então, ela vem literalmente carregando o peso
de sua morte nos ombros, com o início de dores no ombro e no braço do
lado esquerdo. No hospital, os raios X foram inconclusivos e ela desenvol-
veu uma depend ência do medicamento contra a dor que inflamou a parede
do seu estômago. O tratamento frequente com quiroprá ticos ajudou tem-
porariamente, mas a dor sempre voltava. Ela sentiu que havia um compo-
nente espiritual no problema e que esse componente só podia ser abordado
através de uma cerim ónia tradicional. Esse sentimento pode dever-se em
pane ao fato de seu pai ter sido um forte crente na religião tradicional, e,
como em outros aspectos da vida, ela sentiu a necessidade continuar nos
caminhos dele. De fato, havia um significativo componente emocional na
sua aflição. Ela relatou que ela n ão era ela mesma ( uma autodescrição co -
mum entre Navajos enfermos ou aflitos) e que estava solitá ria e infeliz. Ela
disse que pensava no pai e sonhava com ele, tinha pensamentos sobre as
mortes de outros e experimentava sentimentos negativos: “ Como se hou-
;

L 244

íirL
Cura Ritual e Política de Identidade na Sociedade Navajo Contemporânea

coisa t pesada nos meus ombros, que eu simplesmente não


ão
vcssc alguma
uia mais suportar”.
COOScê
O sonho mais vívido que ela relatou foi um pouco depois da morte
ai. Neste sonho, cie falou com ela amorosamente, mostrando onde
com quem estava, assegurando-lhe que estava bem e que estava
ele estava e lia. A despeito da natureza positiva desse sonho em parti-
lando pela fam ínavajo
cular» na cultura requerem sonhos com os mortos sã o invariavelmente pro
os -
blematic0^ Elessobre os vivos tratamento ritual para determinar os efeitos do
. A própria Sylvia manifestou incerteza sobre
espíri10 falecido
uma coisa boa ou m á, e o seu desconforto era evidente
se o sonho era
quando ela fez questão de contar que cada vez que visitava um curandeiro
ele perguntava sobre tais sonhos. A primeira consulta dela foi com um
diagnosticador tradicional que, pela técnica de fitar cristal, determinou que
Sylvia precisava de uma cerim ónia de Caminho do Mal.83 Esse diagnostica-
dor resolveu a contradição entre uma interpretação positiva e uma negativa
do sonho com uma elegante jogada terapêutica. Ele determinou que a mor-
te repentina de seu pai foi causada por bruxaria, cujos efeitos recaíam sobre
a família e eram aumentados por bruxaria adicional realizada após a morte.
Ele também determinou que Sylvia e seu segundo irmão mais novo, os
dois membros da fam ília que eram mais próximos do pai emocionalmente,
foram os mais afetados. Era assim possível atribuir quaisquer efeitos malig-
nos à tentativa maliciosa de estrangeiros, removendo a culpa do espírito do
pai e preservando a valência emocional positiva da sua mem ó ria, reconhe-
cendo implicitamente os dois irmãos como vulneráveis a um processo psi-
cológico interno identificável em termos clínicos como consternação ou
reação de dor.
Entrementes, o diagnosticador extraiu ritualmente objetos do ombro
de Sylvia. Ele alegou que eles eram a fonte imediata da sua dor, que em
decorrê ncia disso diminuiu. Ela teve de voltar diversas vezes ao diagnostica-

" Alguns navajos criticam o uso do termo “Caminho do Mal” pan traduzir o nome da
cerimónia Hochxooji. Na opini ão deles, os efeitos deletérios da exposição aos espíritos dos
mortos não estão bem descritos em uma palavra que conota profunda malevolência e até
mesmo influência demon íaca.

245
íl
,
CORPO/ SIGNIFICADO / CURA
í

dor para esse procedimento, enquanto adiava a cerimonia mais elaborada.


De acordo com Sylvia, ela adiou a cerimó nia porque n ão sabia como sc
! II! preparar ou como encontrar o cantador apropriado. Apenas depois de sc
envolver em um novo relacionamento significativo com um homem cuja
:
I fam ília, coincidentemente, conhecia um cantador com o conhecimento
cerimonial apropriado para conduzir sua cerimó nia, Sylvia ficou pronta
! ! t I!i ! para deixar para trás o seu debilitante apego emocional à mem ó ria do pai.
Ela considerou o elemento mais persuasivo da cerimó nia o momento em
que ela acompanhou o curador fora do hogan para confrontar o mal e rezar
para que ele n áo mais a afetasse. Subseqiientemente, durante as orações
ji
matutinas finais, ela comparou sua experiência à de uma águia, voando alto
nos céus. Ela disse que se sentiu limpa e como se os seus sentidos estivessem
| 1 aguçados.
i
Sylvia declarou bastante explicitamente que para ela a cerimónia era o
T
; in ício, n ão a culminância, de um processo de cura. Três meses após a ceri-
;
mónia, ela relatou:
li!
lit Para mim, pessoalmente, eu sou uma pessoa tradicional, e quando sei
i
que estou com a reza feita, isso significa muito para mim. Ela me moti-
M
í !
va, e sabe que eu posso... ela me diz que eu posso conseguir. E que sejam
i quais forem os obstáculos que podem me esperar, duros de encarar ou o
que seja, você sabe, ouvindo a oração e tendo aquela proteção da qual eu

í
necessito. Toda essa coisa que eu sinto. Acho que é isso que uma pessoa
tradicional hz... Me deu muita coragem e determinação dizer que eu
não vou terminar. Suponho que essa seja uma motivação para, você sabe,
ter dentro de mim não apenas o caminho inglês como também o cami-
í ií jiii
i ! • nho tradicional navajo. Simplesmente faz você querer mais, lutar por
mais, você sabe, saber que onde quer que você vá, você está sempre pro-
1 tegido... Depois que eu soube - uma vez que a cerimónia ou a parte
principal concluiu - para o que eu estava ali, e o que deveria ter feito por
mim, foi feito porque, você sabe, eles dizem que esta oração é poderosís-
í!l sima E você sabe aquelas coisas que você segura, têm a ponta de flecha e
aquilo tudo. São muito poderosas. Tudo isso vem com, você sabe, histó-
rias e por trás disso h á um significado para tudo aquilo ... eu podia
lií Ml í '
]
:
• sentir dentro de mim. Eu podia sentir uma mistura de tudo o que ele
'
estava orando a respeito. E eu podia sentir. Você precisa mesmo enten -
i
lU I

246
m
fcl II
J - tf
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contempor ânea

der, você sabe, por que sua cerim ónia está sendo conduzida , você sabe, e
as razões para isso c o propósito do que ela vai fazer por você no final.
Você sabe por que eles usaram aquelas orações. E també m por trás de
cada oração c de cada canto que é entoado tradicionalmente, o curandei-
ro sempre lhe diz por que aquela m úsica surgiu c qual c o propósito dela
c para que ela serviu. Então sabendo disso, sabendo depois que ele te
contar, você sabe, você pensa “ OK, é assim que eu vou atravessar esse
processo de consciê ncia.” [...] Então penso que tudo diminuiu ... Eu
n ão sei exatamente quando foi, ou você n ão sabe exatamente, “ OK, de-
pois dessa m úsica eu estou curada.” Geralmente leva tempo.

Assim, a cura tradicional iniciou uma série de mudan ças para Sylvia.
Ela foi capaz de dar sentido à morte de seu pai sem culpá-lo; de se sentir
segura do bem-estar dele na outra vida e de largar a aflitiva presença da outra
vida dele na sua vida; de aprender a vivenciar as memórias positivas de seu
pai, ao invés das negativas; de questionar e finalmente reafirmar sua própria
identidade em termos de aspirações, passado, família e cultura; a aliviar sua
dor física e seus pensamentos negativos; e a tornar-se mais próxima de seu
namorado e de sua família.

Cura cristã

Nancy é uma mulher de 47 anos com três filhos. Na época em que


este texto foi escrito, ela tinha sido casada e se divorciara duas vezes. Dois
anos antes, ela foi diagnosticada com câncer no seio, que se encontra atual-
mente em remissão. Além de sofrer o trauma pós-operató rio e os efeitos
colaterais da quimioterapia, ela enfrentou problemas de abandono; depois
do diagnóstico, seu segundo marido a deixou por uma outra mulher. Ela
contou que na infâ ncia e na juventude sofreu abusos violentos de uma da
com quem morava, do pessoal do internato e do seu pai, antes de se casar
pela primeira vez com um alcoólatra violento que a deixou vi úva. Sobre o
abandono recente ela comentou, “ isso é como uma reciclagem”. Apesar
dessa histó ria de dificuldades, ela demonstrou sua resiliência de duas manei-
ras. Primeiro, processou o segundo marido e ganhou na justiça uma com-
pensação significativa. Em segundo lugar, voltou a cursar a faculdade em
tempo integral.

247
„ .( 1[ 1'
!
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
1

Nancy encontrou o cristianismo depois de ser diagnosticada com câ n-


cer c antes de o marido deixá-la. Uma amiga convidou-a para participar de
\m uma pequena congregação navajo independente. Nancy descreveu a atmos-
fera na igreja como tranquila e aberta e disse que l á ela se sentia mais em casa
! ‘ I! E do que com a própria família na qual todo mundo discutia o tempo todo.
U; f f 1 Os encontros de oração na igreja incluem as orações de cura do pastor.
l i! Certa vez, Nancy pediu orações para dar força e sa úde à sua filha e para a sua
Imi
Mi
própria educação no contexto dos exames de final de semestre que ela iria
fazer. Tais orações de cura estão dispon íveis rcgularmente para os participan-
tes dos encontros de oração, servi ços e renascimentos cristãos. Nancy disse
que as orações deram-lhe força, determinação, fé, sabedoria, nova sociabili-
dade e ajuda na estressante busca de educação. Ela acrescentou, no entanto,
que só chegou a compreender o significado dos cânticos cantados na igreja
no dia cm que teve a experiê ncia de ser salva. O efeito geral, nas palavras
dela, foi:

Ser mais aberta e sentir que me fez um bem enorme. É verdade, me


sinto mais cm paz, eu sinto que eles me fortalecem, melhoram minha
: sa úde, e cu consigo me comunicar melhor com as pessoas agora do que
!| antes, porque eu ficava sempre fechada no quarto, sabe, estudando, es-

3 m tudando, estudando. Eu ficava com os meus livros, e sinto que voltei


para o mundo outra vez, e sinto que fui junto com eles. E sabe de uma
coisa, eu adoro aqueles encontros de oração. Eu gosto de ir para aqueles
encontros de ora ção. Eu gosto de estar junto de pessoas cristãs. Elas são
mais compreensivas. Elas me ajudam muito.

Para a compreensão dela desse efeito geral no caso da cura cristã o


importante é que ela é composta de participação, oração de cura e salvação.
Além disso, especialmente entre tais congregações navajos independentes
(isto é, as que não estão subordinadas às congregações principais), a comu -
nidade cristã com seu diferente estilo de vida é uma sociedade ilhada dentro
de uma sociedade.
As experi ências de Nancy com as outras duas formas de cura espiritual
dizem muito mais sobre a política de identidade pessoal desempenhada cm
: ii
1
relacionamentos sociais do que sobre essas formas de cura por elas mesmas:
uma experiência extremamente negativa com a Igreja Americana Nativa , da

.
I 248
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporâ nea

qual o seu segundo marido infiel era seguidor, e outra extremamente posi-
tiva com a cura tradicional , na qual o seu pai é curandeiro. Ela recorda o seu
segundo marido ameaçando-a com a volta do peiote, que de alguma forma
“virá atrás de você c fará alguma coisa com você” se ela não o ouvisse e
respeitasse. Ela deixou o marido praticar e ter peiote em casa, e deixou até
um andarilho conhecido morar com eles algum tempo e fazer uma sessão
de peiote para ela. Ela sentiu, no entanto, que esse andarilho estava também
“usando peiote para sexo e amor”, fazendo com que o marido dela a deixas-
se, envolvendo-o no seu abuso do poder espiritual do peiote. Ela expulsou
o andarilho corrupto de casa, dizendo que preferia o caminho da quimiote-
rapia do que se submeter ao tratamento dele; em todo caso, ela n ão acredi-
tava que uma cerim ó nia de uma noite pudesse curá-la. Ela afirmou que um
médico lhe disse que o peiote poderia fazer o câncer crescer, e chegou à
conclusão que seu marido e o andarilho estavam conspirando para matá-la.
Por outro lado, embora em princípio ela sinta que n ão pode mais
participar de cerimónias tradicionais porque já “me dediquei ao Senhor”,
pouco depois que o marido saiu de casa ela se submeteu a uma cerimónia de
Benzedura feita por um benzedor contratado pelo pai. Nesse caso, o prag-
matismo na lógica da escolha terapê utica, na forma de aceitação de um
tratamento alternativo que poderá não apenas ser eficaz, mas também agra-
dar um membro da fam ília, se choca com a política identitária no n ível
pessoal. Embora Nancy pertença a uma clássica congregação fundamenta-
lista navajo independente, a pessoa amiga a quem ela pediu conselho antes
de decidir disse-lhe para seguir em frente, desde que a cerim ónia fosse de
Benzedura e não de Maldição e que ela fizesse uma oração, “pois assim você
recebe um raio da luz do Senhor”. De fato, a pessoa amiga aconselhou-a a
dar uma bênção cristã à cerimó nia tradicional. Nancy relatou o seguinte
efeito da cerimónia:

[Ela] desanuviou a minha mente, eu costumava chorar muito, eu não


conseguia comer, eu não conseguia nem pensar. Foi como uma coisa que
completou meu espírito outra vez. É como se você tivesse acabado de
acordar, como se você estivesse morto, sabe como é, e voltasse a viver. Me
fez sentir como se fosse algo assim , e a í o curandeiro me disse: “ Não
pense no passado, n ão pense, não pense no seu ex-marido. Não pense no
que ele está fazendo, no que ele está lhe dizendo. Não d è aten ção a

249
1
CORPO / SiGNincADo / CUR/\
í

fofoca. Não d ê importâ ncia a boatos”. E clc me disse: “ Pense só cm


você”. A ora çã o foi isso, só para mim, só para dar um jeito na minha vida
í ! [...]. E depois disso, aquilo me tirou um monte dc pressão das costas.
!)
li ! I: Não obstante, ela recusou a oferta do benzedor dc fazer outro trata-
mento porque teria custado mais dinheiro.
.

Para Nancy, a experiê ncia de “ser puxada de três maneiras” foi resolvida
!
íl !! por ter sido salva. Ela expressou a necessidade de “saber de que lado estou”,
dc “me encontrar” c de “saber o que está acontecendo na minha vida”. Esse
Ui li ! conhecimento emergiu por um ato de comprometimento com o cristianis-
mo. Ela diz: “E então, quando eu fui salva, tive de fazer a minha própria
prece dc dentro do meu próprio coração, do meu eu interior, e simples-
'
mente entregar tudo, todos os meus problemas, de volta ao Senhor e deixar
!! ! clc cuidar de tudo. ”

Cura da Igreja Americana Nativa


fl' i ' i ;
m
<
George, de 24 anos, estuda numa universidade estadual em uma das
cidades vizinhas da reserva. A experiência dele é diametralmente oposta à de
Nancy, pois sua avó foi uma das primeiras e fiéis seguidoras da LAN. Ele se
j j 11! I refere a ela como um “pilar” e fala dos “ensinamentos” dela sobre o “peiote
e a importância da vida”. A fam ília h á muito tempo utiliza o mesmo anda-
rilho - ele fez sessões para a avó de George e viu George e seus irm ãos
crescerem. Essa estabilidade e a amizade de longa data e o respeito entre a
fam ília e o andarilho é importante para George, e o papel do andarilho
como â ncora para relacionamentos sociais contrasta fortemente com o pra-
ticante marginal e corrupto descrito na discussão anterior de Nancy. George
! foi criado de uma maneira tradicional, centrada no cuidar de ovelhas. Seu
pai era um homem que bebia muito e abusava regularmente da mulher. Ele
é muito ligado e preocupado com sua m ãe - para ele a palavra navajo shmui
refere-se igualmente à m ãe de algu ém e à casa de alguém, a terra onde a
pessoa nasceu. Ele cita essa conexão simbolizada pelo costume de enterrar o
cord ão umbilical de um bebê no lugar onde ele nasce.

ff Depois de internato, colégio c um ano de faculdade (tudo dentro ou


perto da reserva), George se alistou no Corpo de Fuzileiros Navais, viajan-
do por todo o Extremo Oriente e o Oriente Médio. Ele participou da

250

L
Cura Ritual e Pol í tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporânea

Guerra do Golfo, recebendo cerim ónias de peiote antes de partir c depois


dc retornar, por proteçã o. Um assunto frequente para ele é comparar a visão
dc mundo, a religião e o estilo dc vida navajo com aqueles da sociedade
maior, tentando resolver e integrar suas experiê ncias, descobrir como quer
levar a vida c onde quer se adaptar. Seus problemas consistem cm um des-
conforto geral ampliado por ajudar sua mãe a cuidar dos filhos dc um ir-
mão alcoólatra, sua pró pria falta de motivação cm relação às suas metas de
terminar os estudos e entrar para o Corpo da Paz, problemas de relaciona-
mento com a namorada e vá rias queixas de ordem física, incluindo dor nas
costas por causa de uma antiga lesão e dificuldades respirató rias que come-
çaram durante a Guerra do Golfo. Ele costumava correr rcgularmente (con-
forme a disciplina espiritual tradicional recomenda), mas diz que parou de
correr recentemente devido à “ baixa auto-estima”. Por trás dessas questões
há um sentimento compartilhado pelos membros da fam ília de que a influ-
ência de feiti çaria perpetrada contra sua avó anos atrás passou para a fam ília
inteira, causando brigas entre eles.
George e sua mãe pediram ajuda ao andarilho da família durante uma
cerim ó nia que ele estava conduzindo para alguns parentes próximos. Esse
pedido iniciou um processo que lhes permitiu identificar explicitamente os
seus problemas. Segundo George, o simples efeito foi

só saber que você está sendo ajudado. E é só isso. Quer dizer, eu assisto
a isso desde crian ça, então você simplesmente sabe que vai funcionar, eu
acho. É uma ideia. E você relaciona os seus problemas com outras coisas,
e às vezes pode ver a fonte do seu problema, por que ele está acontecen -
do, por que ele lhe deixa cego.

Mais tarde, como resultado de uma sessão completa de peiote que


durou a noite toda, ele descreveu um sentimento de familiaridade e autoco-
nhecimento que o trouxe de volta às coisas básicas e o fez ver quem ele é.
Ele recebeu claramente a mensagem de que “tudo depende de você”, e foi
capaz de fazer uma auto-avaliação significativa. Alé m disso, ele foi capaz de
“liberar uma grande carga emocional ” e de expressar alguns sentimentos e
certas questões em oração que ele sabia que a sua namorada , sentada ao lado
dele, podia ouvir. Três meses depois da cerimónia, ele informou que estava
se saindo melhor na faculdade, tendo mais motivação e vivendo uma sicu -
251
I I CORPO / SIGNIFICADO / CURA

iti!>' ação familiar muito melhor. Ele continuou com a namorada c vá rios mcscs
!.V mais tarde ela engravidou.
'
George parece estar explicitamente preocupado com a sua pró pria idea
HlHj! tidade e ter orgulho de sua experiência e receptividade a novas ideias. £|e
i: ^
.

um rapaz que deseja fazer tudo, que está interessado em tudo e que
“Minha vida inteira é uma experiência.” Segundo George, sua religi ão ensi-
na-lhe a como “se conduzir”. Ele receia que “a sociedade vai derrubar todos
n ós” e se preocupa com os “novos navajos” que “não querem ver”, qUe são
materialistas e não querem que os seus colegas saibam que eles falam a
i
l íngua navajo ou que eles participam de cerimonias. Para ele, o próprio
peiote é menos um espírito ou uma identidade do que um meio de prote-
ção e um remédio que permite pensar e expressar com clareza e ensina a
[
^
liberar emoções. Nesse caso, a cura foi uma maneira de atravessar um perí-
odo de transição difícil, no qual a identidade como navajo - um homem
navajo bicultural, adulto, responsável, com profundos laços de família e
aspirações significativas no mundo contemporâneo - era a questão imediataj
t Cura e política, a política da cura, política de cura, cura política

jcomo formular então essa relação - como está sendo feita a política
de identidade através da prática de cura ritual entre os navajos? Para respon-
'
'
der essa questão é preciso tomar uma posição sobre a série de religiões con-
ceituais que identifiquei no início entre religião e política, tradição e
modernidade, individual e coletivo, microssocial e macrossocial. Ao elabo-
rar uma tal posição, quero rever a parte da literatura antropológica em que
se começou a discutir como a relevância da cura ritual, que já é uma forma
de poder cultural, vai muito além de um problema, uma enfermidade ou
um transtorno específico /Arthur Kleinman (1980, 1986) foi pioneiro nes -
sa área com seus estudos ae cura e transtorno psiqui átrico depois da Revolu -
ção Cultural chinesa, mostrando que o sofrimento deve ser compreendido
tanto no contexto das realidades políticas mais amplas como dos universos
morais‘
locais. Trabalhando também na China, Thomas Ots (1994) docu -
mentou mudanças em prá ticas corporais e experiências emocionais em um
movimento de cura catártica baseado em qigong (terapia respiratória) enl

252

L
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporâ nea

relação ao rumo do movimento pela democracia que culminou nas mani -


festações de massa na praça Tiananmen. Marina Roseman (1996) descreveu
uma cerimonia envolvendo o espírito Sri Kelantan , do estado malaio de Ke-
lantan, mostrando como a ação ritual articula interações entre malaios, chine-
ses e ind ígenas orang asli. Bascando-se cm material sobre os newar do Vale de
Katmandu , no Nepal, David Gellner (1994) estudou a questão da predomi-
nância feminina no papel medi ú nico considerando tanto as noções tradicio-
nais de papéis de gênero como as mudanças polídeas contemporâneas.
Na Africa, Jean Comaroff (1985, p. 9) examinou a cura zionista den-
tro do legado da repressão colonial como um “modo de restaurar o corpo
atormentado e através dele a própria ordem social opressora. Assim os sinais
de dist ú rbio físico são simultaneamente os significantes de um mundo aber-
rante”. Matthew Schoffeleers (1991) discordou de Comaroff, argumen-
tando que, mais do que a resistê ncia, a aquiescência é uma característica das
igrejas na África do Sul. No seu entender, as igrejas zionistas são aquiescen-
tes porque a cura, componente central de sua prádea, individualiza e despo-
lidza a causa da enfermidade. Lesley Sharp (1990, 1993) relaciona a possessão
por espíritos tromba no Noroeste de Madagascar a consequências psicoló-
gicas de anomia e ordens morais conflitantes. Em um cen ário onde as fron-
teiras étnicas foram suprimidas pelo colonialismo e o policulturalismo, a
possessão tromba articula temas de identidade individual e é tnica e resistên-
cia ao capitalismo. Sharp estudou participantes femininas que se envolve-
ram em um sistema de parentesco fictício exigindo adesão a restrições que
permitem racionalizar a manipulação das relações econó micas, solapando
assim os processos de exploração capitalista. Esse processo lhes garante tra-
balho como curadoras e as libera da labuta agrícola habitual.
Nas Américas, Michael Taussig (1980a, 1980b, 1987) considerou o
xamanismo do Sudoeste da Colô mbia como parte do contexto de violên-
cia colonial e suas consequ ências. Esta violência está entrelaçada com con-
cepções de pessoa, self e Outro, com a apropriação construtiva do Outro,
com vários sistemas de cura dos índios e com a compreensão cultural de
índios como misteriosos, poderosos e perigososyA prá tica xamanista e suas
possibilidade alucinató rias transcendem assim o significado de cura como
uma tentativa de amenizar o sofrimento de indivíduos, tornando-se uma

^
figura central no discurso cultural do colonialism Libbet Crandon (19S9)

253
19 !
HI
i CORPO / SIGNIFICADO / CUR \/

í S: , examinou a adoçã o de métodos dc cura aymara por mestiços durante a


! I transição da sociedade colonial boliviana para uma sociedade agrícola base-
ada em classe. Esses métodos servem para explicar as expectativas dc partici-
' fiSlll pação do grupo social e integrar a pessoa numa nova posição sociopol ítica
no sistema cosmológico. No Equador, S. A. Alchon (1991 ) mostrou que
!! com o advento da presen ça espanhola e o aumento da mortalidade, as con-
i 1

cepções ind ígenas de etiologia mudaram , mas as prá ticas dc cura mudaram
! j; ! j !
i pouco. Manter um senso crítico de equil íbrio cosmológico baseado na ne-
i! " ;í|j cessidade de aplacar tanto as divindades andinas como as cristãs ficou cada
m\ vez mais difícil, c a preservação de prá ticas de cura tradicionais tornou-se
uma forma de resistência política. Ramirez de Jara e Pinzon Castano (1992)
discutiram como os xamãs sibundoy na Colômbia integram a estrutura de
pensamento ind ígena e os desafios da sociedade nacional com as diversas
manifestações da cultura popular colombiana. J. Waldram (1993) exami-
nou a cura simbólica em penitenciárias canadenses, observando especifica-
mente infratores aborígenes em programas de conscientização culturalJUs
/ programas dão novo sentido a vidas destruídas e ajudam os prisioneiros a
! í: i
j | resolver conflitos de identidade. Como muitos infratores vêm de diferentes
!j jljl í0
grupos nativos, o estabelecimento de uma base cultural e um mundo míti-
co comuns também é uma adaptação a uma situação de crescente pluralida-

r
!
/
' 1 .
de cultural
/integrar essas poucas fontes é apenas um pequeno primeiro passo no
detalhamento de uma problemá tica em que a discussão tende com extrema
; facilidade a polarizar interpretações simplistas. Ou a cura ritual é uma ex-
I pressão futil de frustração - a interpretação tipo ópio das massas - ou a cura
ritual é uma forma sutil de resistência política - a interpretação tipo liberta-
1 ção pós-moderna da voz indígena. Eu sugiro que o tipo de an álise que
iniciei, da situação navajo, oferece oportunidade mais nuançada de esclare-
/
cer as relações entre os recortes conceituais que identifiquei aqui Para tornar
: minha posição explícita, a á rea de conhecimento precisa ir além' de definir o
projeto como um estudo de cura ritual no contexto da pol ítica, ou como a
abertura de uma janela de pregões sobre processos políticos mais amplos, na
direção de uma compreensão do tipo de transdutor experiencial eficiente
entre os campos religioso e pol ítico. A experi ência corporal pode ser um
: exemplo primeiro de tal transdutor e, além do mais, um exemplo relevante

254
i

Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporâ nea

cm todos os três n íveis da relaçã o entre cura e pol ítica identitá ria que iden -
tifiquei (veja Figura 5.1).

Representa çã o
entre sociedades
Corpo pol ítico

Negocia çã o
Cura ritual dentro dn sociedade Polfilca idcrttrrá ria
Corpo social

Transforma çã o
Pessoa na sociedade
Corpo Individual

Figura 5.1 Relações entre cura ritual e política identitária

Sem d úvida, essa noção corresponde à tentativa semelhante de Sche-


per-Hughes e Lock (1987) de situar o “corpo atento” da antropologia mé-
dica em relação a questões sociais mais amplas. Detalhando rapidamente, as
representações culturais da enfermidade misteriosa e das aparições da seca
contribu íram para a constituição em andamento daquilo que Scheper-Hu-
ghes e Lock denominam “corpo político” da sociedade navajo no seu con-
fronto vulnerável e, mesmo assim, resistente com a sociedade dominante.
A negociação em curso entre tradições de cura é um processo de constitui-
ção do “corpo social” situando-o dentro da sociedade navajo como agente
de uma tradição ou como ponto de interseção entre tradições. A experiê ncia
de transformação pessoal narrada pelos pacientes constitui o “corpo indivi-
dual ” como uma pessoa com uma identidade navajo contemporânea no
espaço politicamente carregado entre a tradição e a pós-modernidade. Nes-
sa formulação, cada um dos processos culturais que escolhi na relação entre
cura ritual e pol ítica identitá ria (representação, negociação e transformação)
é essencialmente pol ítico, e n ão apenas os que ocorrem no n ível do corpo

255
mí i\I
ill CORPO / SIGNIFICADO / CURA

ii pol ítico propriamente dito. Em resumo, lendo a Figura 5.1 horizontal-


mente, lembre-se que n ão é por coincid ê ncia que o termo “poder” c essen-
cial tanto para analisar religi ão como pol ítica (Fogelson ; Adams, 1977);
lendo a figura verticalmentc, lembre-se da contribuição da lição da teoria
feminista de que o pessoal é també m político.
Mais uma vez, na an álise contemporânea da relação entre tradição e
modernidade, excetuando-se um interesse pelas várias espécies de fiinda-
: mentalismo, houve relativamente poucas tentativas de entender o lugar da
? religião no sistema mundial contemporâneo ou no processo de globaliza-
ção ( Beyer, 1994; Csordas, 1997; Friedman, 1994; Ong, A., 1996, p. 745-
747; Robertson; Chirico, 1985; Schieffelin, 1996; Wuthnow, 1980 - para
uma revisão atualizada, veja Csordas, 2008). A esse respeito, é importante
'! ?
compreender que o apelo à tradição é ouvido tanto em escala global como
em escala local (prova disso é a recente proliferação de “fundamentalismos”),
e que os temas da modernidade (e pós-modernidade) são evidentes não
apenas no mundo globalizado, mas também nos redutos do Quarto Mun-
do, como as terras navajos. Para os navajos contemporâneos, a tradição
floresce por si mesma sem, no entanto, deixar de ser definida em relação ao
I cristianismo e à IAN, bem como em relação à tecnologia moderna, à polí-
tica nacional e aos movimentos globais de povos ind ígenas. O navajo com
-
formação universitária que afirma em um e mail, “eu sou uma pessoa tradi-
cional ”, quer dizer algo totalmente diverso da imagem estereotipada da pes-
soa velha ornada de lantejoulas ou cuidando de cabras no deserto.
í
:
Especialmente no seu aspecto religioso, a tradição é mais do que um crach á
de identidade étnica; é um modo de enfrentar o mundo.
Finalmente, assim como o poder pertence às duas esferas, política e
religiosa, os conceitos de selfe. identidade pertencem à análise psicológica de
; indivíduos e à an álise social de processos coletivos. Como Calhoun (1994,
! 11* . . li
p. 2) observa, no contexto histórico da democracia e da Reforma protestante,

,
: ! os problemas de identidade individual e coletiva se juntaram, porque a
identidade individual foi moldada por aquilo que Foucault chamou de
novas disciplinas de poder, e também porque foi levantada a questão de
que tipo de identidade individual qualifica uma pessoa para participar
nos discursos p ú blicos que moldam as pol íticas e influenciam opoderj
256

í
Cura Ritual e Pol í tica de Identidade na Sociedade Navajo Contempor â nea

yfeu argumentaria que essas questões precisam ser separadas através de


um diá logo mais expl ícito e frequente entre as abordagens psicocultural e
sociopol ítica, através de mais aten ção a essas questões entre locais em que a
democracia c o protestantismo foram pedras de toque culturais, e em rela-
ção a problemas empíricos específicos como o da cura ritual. Desse modo,
elas podem continuar sendo problcmatizadas como ponto de interseção
entre, por exemplo, a preocupaçã o de Friedman (1992) com a relação entre
a construção da identidade e processos globais mais amplos e a preocupação
levantada pelo estudo de cura ritual com a relação entre construção de iden-
tidade e processos psicoculturais menores
^
Uma maneira de avançar essa problem á tica em trabalhos futuros pode
ser distinguir entre uma pol ítica pessoal de identidade coletiva, na qual ato-
res individuais com comprometimentos claros estão lutando para afirmar
uma identidade compartilhada, e uma pol ítica coletiva de identidade pesso-
al, na qual cada ator num grupo de atores com comprometimentos ambí-
guos está lutando para obter uma identidade individual. Uma tal distin ção
certamente serviria para estabelecer comparações identificando ênfases rela-
tivas em vez de diferen ças absolutas na substância da política identitária. Na
sociedade norte-americana contemporânea, por exemplo, ela sugeriria algo
em comum entre um movimento de direitos homossexuais para definir
uma identidade homossexual pessoal e um movimento religioso que prio-
riza a salvação pessoal ou a transformação. Da mesma forma, ela sugeriria
algo em comum entre um feminismo que busca uma identidade coletiva
baseada na irmandade e um movimento étnico que busca criar uma comu-
nidade. Com relação ao caso específico dos navajos, uma tal distinção faci-
litaria uma especificação do sentido no qual os indivíduos, embora de modo
reconhecível mente navajo, estão lutando pela identidade pessoal, e o senti-
do no qual um comprometimento pessoal da comunidade é uma contri-
buição para a identidade coletiva. Se, na prá tica, a distin ção é difícil de
separar porque ambas as sensibilidades, pessoal e coletiva, são altamente
relevantes e porque ambas se concentram em torno da questão crucial de ser
navajo, ela pode, pelo mesmo motivo, ser uma ferramenta ú til para a com-
preensã o dos pares religião e pol ítica , indivíduo e sociedade, microssocial e
macrossocial, tradição e modernidade, como aspectos complementares do
mesmo fen ô meno, faces da mesma moeda humana.

257
. CAP ÍTULO SEIS
Fale com Eles para que Entendam'

/Este capítulo tem dois objetivos em relação à cura navajo, um etno-


gráfico e outro teórico. O objetivo etnográfico é apresentar uma tese sobre
a inter-relação entre a cura navajo tradicional, a da Igreja Americana Nativa
e a cristã navajo na sociedade navajo contemporânea. Vou delinear as simi-
laridades e diferenças básicas entre elas, enfatizando que na prá tica muitos
/
navajos têm acesso a todas as três em sua busca pela cura O objedvo teó rico
é compreender melhor o processo terapê utico em termos do modelo apre-
sentado no Capítulo Um, no qual osjfelementos-chave são a disposição do
paciente, a experiê ncia do sagrado, a elaboração de alternativas e a realização
da mudan çaj Ao fazer isso, buscarei aprimorar e avançar a elaboração do
'

próprio modelo no que concerne às incomparáveis lições a serem tiradas do


cen á rio navajo. Ambos os objetivos podem ser abordados de forma bastan-
te concreta, examinando o processo terapê utico particular de pacientes na-
vajos que compartilharam sua experiência de sofrimento e de cura comigo e
com uma equipe de pesquisadores navajos e euro-americanos. Vejamos, em
primeiro lugar, a relação entre as três tradições de cura.

* Este capí tulo foi especialmente preparado para este volume.

\
IT
: í
<

!, CORPO / SIGNIFIO\DO / CUR \/


: Pólen de milho, lareira e cruz
! j
i lf j l
Para os navajos adeptos da religi ão tradicional do seu povo, o pólen do
milho que fornece grande parte de sua nutri ção d um símbolo poderoso de
i
vida , crescimento c bem-estar. Frequentemente, eles carregam um pouco
j s ;i consigo numa pequena bolsa, e ele d usado em muitas cerimonias. A reli-
>. giã o e a cura tradicionais às vezes são chamadas de “caminho do pólen dc
milho”. Essa forma de cura inclui as prá ticas do curandeiro com seus câ nti-
| I cos e pinturas de areia, e do diagnosticador que utiliza mdtodos como tre-
!
mer a mão ou fitar cristal. Para aqueles que seguem os ensinamentos da
Igreja Americana Nativa, o símbolo central d a lareira aberta em torno da
qual os participantes se re únem para orar. É uma fonte de calor, energia e
inspiração considerada algumas vezes como um tipo de avô nutridor. A
cura da Igreja Americana Nativa d aquela do andarilho com o seu altar em
forma de meia-lua e o peiote sacramental dispostos em relação ao fogo, e
' 1

j do chefe da cabana sudatoria que muitas vezes segue a forma cerimonial dos
: 1 índios das Grandes Planícies em vez da praticada nas pequenas cabanas su-
I
I datórias de argila tradicionais dos navajos. Finalmente, para os navajos que
if 1

se converteram ou cresceram em uma das congregações cristãs, a cruz que


simboliza a paixão de Cristo é o símbolo central de poder, cura e salvação. A
cura pela fé cristã d aquela do pregador pentecostal navajo como seus encon-
''
; <

tros de renascimento e imposi ção de m ãos, e do grupo de oração católico


carism ático com sua integração comunitá ria de prá ticas navajos e católicas
romanas. Todas essas formas estão dispon íveis como recursos de cura na
reserva navajo. Elas parecem permitir graus variados de ecletismo e emprés-
timo m ú tuo de elementos, os menores entre cristãos f ú ndamentalistas e
;
r tradicionalistas conservadores, os maiores entre membros da Igreja Ameri-
cana Nativa e católicos romanos. Da mesma forma, embora n ão seja o
:
centro do nosso interesse aqui, é importante observar que os seguidores de
1.
i
todas as três tradi ções religiosas raramente hesitam em usar os recursos bio-
m édicos dispon íveis nos centros do Departamento de Sa ú de do índio, e
:
I
seus entendimentos de enfermidade combinam com frequ ência elementos
Si i'
de cultura navajo e euro-americana (Capítulo Dez; Csordas; Garrity, 1992).
Eu sugeriria que o que torna todas as três formas inequivocamente
navajo, seja por tradição ou por adoção, é um crité rio compartilhado de

260
Fale com Eles para que Entendam

êxito na cura: guc o paciente venha a “entenderj Para ser específico, quando
/
algu é m pergunta como o trabalho deles ajuda as pessoas, os curadores nava -
jos não se referem ao efeito espiritual do seu desempenho ritual com os
pacientes, mas normalmcnte dizem que “é preciso falar com eles para que
cies entendam”. Esse entendimento é culturalmente distinto da noção de
percepção dos processos psicodin âmicos como critério de êxito encontrada
na psicotcrapia euro-americana. Ele é, cm vez disso, uma contextualizaçã o
da experiê ncia de vida em termos de uma filosofia específica e por meio de
um princípio terapê utico específico. Independentementedequal dessas três
formas de cura eles praticam, os curadores contemporâ neos são participan-
tes da cultura navajo e articulam “entendimento” como critério de êxito
terapêutico. De fato, isso está em conformidade com a preemin ência da
linguagem e do pensamento muitas vezes observada na cultura navajo. Como
Gary Witherspoon (1977) observou, “o mundo foi realmente criado ou
organizado por meio de linguagem. A forma do mundo foi concebida pri-
meiro em pensamento e, então, essa forma foi projetada na substância de-
sordenada primordial através do poder compulsivo de fala e canto”. A
continuidade entre as formas de cura com relação a essas noções fornece as
condições de possibilidade para a sua coexistência dentro do mesmo siste-
ma cultural de cuidado à sa úde. Dentro desse sistema, todavia, seus modos
de abordar a meta do entendimento são diferenciados por distintos princí-
/
pios terapêuticos e filosofias Esboçarei as prá ticas de cura upicas de cada
tradição, apresentando cada uma delas em termos de sua filosofia e seu

^
princípio terapê utico característico

Cura navajo tradicional

A cura tradicional é baseada no que podemos chamar de uma filosofia


de obstáculos. Nada acontece sem uma razão, e a razão do infort ú nio é en-
contrar um obstáculo. Os obstáculos são identificados n ão apenas como
causas de enfermidades, mas em todos os lugares na vida: ficar com sono na
mesa de trabalho é um exemplo. Os problemas que encontramos já estão lá
antes de os encontrarmos. Como diz um entoador: “ É como entrar numa
sala cheia de problemas, onde vamos nos emaranhando. Precisamos separá-
los todos como se fossem fios, abrir caminho entre eles [o curador faz um
gesto como se estivesse afastando galhos diante de si]”. Essa é uma situação

261
I ill il
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

i; l
existencial que vem desde os tempos da criação do mundo. Até o alimento
que comemos é um desses problemas. Ele vem de lugares estranhos, estran-
geiros, inimigos, causando enfermidades como diabetes c câ ncer. O mesmo
íi entoador diz: “E que tipo de alimento é o álcool ? Ele faz você vomitar c n ão
pensar direito, ele mata as pessoas. Quem faz uma coisa dessas, que envene-
na e mata as pessoas?”
JÕ princípio terapêutico da cura tradicional é didático. Há uma quan-
tidade de técnicas à disposição do curador e, ao contrá rio de muito do que
se pensa sobre a cura ritual, elas não são manipulações rituais que o paciente
observa como espectador. Em vez disso, são mé todos para envolver o paci-
ente no processo terapê utico, guiando o pensamento em direção à meta do
entendimento. Esse envolvimento do paciente no processo terapê utico foi
sugerido em uma conversa com uma diagnosticadora navajo tradicional.
Ela disse que sua instrução para um adolescente cheio de problemas era:
i “pensa nos teus pais e como eles te criaram”, para levá-lo a rever sua vida.
:
Ela, então, se voltou para minha assistente de pesquisa e disse, referindo-se
a mim: “Ele provavelmente está pensando nos pais dele neste momentoFJ
Abordar a técnica rimai dessa maneira joga uma luz experiencial em
!

n :
prá ticas como a de fazer o paciente sentar numa pintura de areia ou segurar
uma bolsa de montanha sagrada. O paciente também se envolve no proces-
so terapêutico acompanhando a enumeração do curador de todos os pontos
do seu corpo, dos dedos dos pés até a cabeça. Para dar um exemplo mais
específico, a utilização de pedras recolhidas de manha cedo pelo curador -
pedras pretas, madrepérola, turquesa, pedra vermelha - têm mais do que o
significado simbólico da aurora e dos quatro pontos cardeais com suas cores
cosmologicamente significativas. Para uma diagnosticadora tradicional com
quem falei, as pedras têm um valor terapê utico mnemó nico, pelo qual o
paciente incorpora na primeira pedra a inten ção de parar a vontade de beber,
: na segunda, a de tornar-se uma pessoa melhor, na terceira, a de ser nova-
mente um pessoa inteira, considerando integralmente seu lar, seu alimento,
5 sua água, e, na quarta, a de encontrar um emprego para prosperar e poder
comprar um carro. A curadora explica que os problemas do paciente são
:
l “compactados como numa bola de barro”. Ela diz a eles que a cura n ão
3 acontece da noite para o dia, mas é uma coisa gradual como a mudan ça de
pensamentos.

262
i

j ;
Fale com Eles para que Entendam

Novamcntc, a técnica comum de fazer o paciente repetir frases da lon-


ga cantoria com o curandeiro tem um efeito envolvente, especialmente,
como disse um participante navajo, quando o canto “engata uma segunda e
embala” e leva a pessoa junto. Como um outro observou , os procedimen-
tos são “ritualistas” apenas para quem n ão entende a l íngua navajo. Quem
entende experimenta a contcxtualização da experiê ncia de vida dentro de
um “lar” físico e cosmológico, a terra e o povo navajo. A cantoria não é
magicamente eficaz, mas sim existencial men te envolvente. Um navajo co-
mentou que somente aqueles que n ão falam a l íngua navajo poderiam per-
guntar como os participantes conseguem ficar acordados a noite inteira
durante uma cerimónia: as pessoas que entendem estão absortas demais na
beleza do que está acontecendo para pensar em dormir.

Cura da Igreja Americana Nativa

Em contraste com a filosofia de obstáculos da cura tradicional, a cura


da Igreja Americana Nativa é baseada em uma filosofia da auto-estima.Atra-
vés da ingestão sacramental do peiote, o paciente adquire uma profunda
conexão pessoal com o sagrado. A voz e a presença dele ou dela são valoriza-
das pela oportunidade de orar e falar na cerimó nia. Finalmente, a contextu-
alização da experiência de vida incorpora um sentido de participação em
um mundo totalmente animado. Como David Aberle (1982) observou,
esse mundo é definido como uma comunidade moral única, com um lugar
importante nela para cada indivíduo.
Os peiotistas navajos definem essa contextualização em termos dos
quatro elementos, os cinco sentidos e a rede de relações familiares. Os qua-
tro elementos (terra, ar, fogo, água) formam a terra e também são parte de
cada pessoa. Nas palavras de um navajo, “você é o mesmo que a terra/
universo e n ão é natural estar alienado dela”. Ele explicou, dizendo que além
de sentir o self como parte da natureza elementar, a prá tica ritual envolve
totalmente os cinco sentidos:
O cheiro da fumaça de cedro vai diretamente ao cérebro e faz você se
sentir bem, então até a simples menção de que algué m vai queimar ce-
dro para você o estimula. Ao ouvir as palavras, você entende o que está

263
ill: 1
i; i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
i
sendo dito. Olhar o fogo na tenda cerimonial tendo a escuridão como
n pano de fundo geral cria concentração, como num transe, focando seus
i; :; h pensamentos. O gosto amargo da planta dá atenção/alerta ã vida - c n ão
adianta adoçar. [Você está] sentindo os efeitos por todo o seu sistema,
sentindo o fogo c a fumaça cm torno do seu corpo.

Finalmente, a fam ília é invocada mnemonicamente por cada elemen-


•! 1 to ritual na cerimonia do peiote. O fogo é os avós da pessoa, e cada objeto
mii ritual é parente ou membro da tribo. A pessoa é lembrada de que “eu sou
um indivíduo de cinco dedos, eu sou navajo”. O elemento da auto-estima é
cultivado menos pelo encontro da identidade de alguém do que pelo reco-
nhecimento do valor da identidade que a pessoa já possui, e do lugar dentro
i j íiji li do cosmos pressuposto por aquela identidade.
O princípio terapêutico na cura da Igreja Americana Nativa é confessi-
onal. As pessoas estão em um círculo. Como descreve um navajo: “Da mes-
í; ma forma que Freud, o curandeiro pergunta o que aconteceu no in ício da
sua vida, e os seus parentes estão ali para preencher os detalhes.” O paciente
reza, confessa ou fala de seus problemas, comove-se e chora. A confissão
por si só, no entanto, n ão completa o momento terapê utico. Do ponto de
vista do curador, falar com as pessoas e fazê-las entender é a ú nica cura.
Além disso, nem toda ação terapê utica ocorre dentro do contexto cerimo-
nial, como fica evidente no seguinte relato feito por um andarilho do peio-
te: um vi ú vo deprimido para quem um encontro de ora çã o estava
programado disse que, se tivesse conhecido o andarilho antes, sua esposa
não teria morrido. A resposta do andarilho foi: “ Não diga isso, todo mun-
, i' do tem a sua hora de morrer, concentre-se nos seus filhos que estão vivos.
! t!
!
Nós fazemos planos para o dia ou a semana seguinte, mas na verdade pode-
mos morrer a qualquer momento.” Novamente, um curandeiro procurou
esse andarilho em busca de ajuda para parar de beber. A resposta dele foi:
' 1 “Você nunca pára de beber, é errado dizer isso. Beba o quanto quiser de água
pura quando sua boca começar a ficar seca pedindo álcool - ou café, suco,
etc. Você está morto quando pá ra de beber.” Ele conta que o homem bai -
xou os olhos, sorriu e disse “você tem razão”. Um ano mais tarde ele voltou
e agradeceu o andarilho, e hoje ele é tido como um bom curandeiro. Fala-
ram com ele e ele entendeu.

264
Fale com Eles para que Entendam

Cura cristã

A cura pcntccostal e a cura carismá tica dc um modo geral foram negli-


genciadas nos estudos da cultura navajo, mas parecem ajustadas ao tema
cultural do entendimento. Elas se caracterizam por uma filosofia da identi -
dade moral, no sentido de responder à questão “quem sou eu ?”. Embora
isso seja consideravelmente menos verdadeiro entre os navajos católicos,
parte da resposta típica é a de que a pessoa n ã o é nem tradicionalista nem
peiotista. O cristianismo fundamentalista navajo exige que seus seguidores
destruam objetos rituais tradicionais e considerem o peiote uma droga pe-
caminosa ou satânica. Uma mulher navajo, esposa de um ministro meto-
dista carism á tico, explicou que eles se opõem à mistura de prá ticas cristãs e
tradicionais porque isso “confunde as pessoas”. Ela disse que esteve em con-
ferências da Igreja em Nebrasca e Oregon, depois das quais os participantes
apresentaram dan ças de tambores intertribais. Nas duas vezes, a delegação
navajo se trancou em seus quartos e nunca mais participou dessas conferên-
cias. Do ponto de vista deles, é ofensivo e incorreto para índios que se
consideram cristãos qualquer envolvimento em tais prá ticas tradicionais.
/0 princípio terapêutico da cura cristã é conversivo. Ou seja, a cura
típica é fundamentada na adoção de valores e modo de vida cristãos. Isso
fica ilustrado na seguinte narrativa de uma mulher cristã cuja vizinha a pro-
curou chorando, pedindo ajuda. A vizinha era uma “comedora de peiote” e
acabava de voltar de um encontro de peiote em Utah. Ela dnha retornado
no domingo e dormira bem aquela noite, mas na segunda-feira começou a
sentir movimentos por todo o corpo e uma voz ameaçando matá-la junto
com o marido e os filhos. Em vez de ir trabalhar, ela voltou para a cama e
então, mais tarde, levantou-se, aparentemente em um tipo de transe ou
sonambulismo, e quebrou tudo dentro de casa. A filha dela veio ver o que
estava acontecendo. Ela pôs água fria no rosto e acordou, indo pedir ajuda à
narradora. A mulher cristã rezou durante muito tempo, leu a Bíblia para ela

^
e a fez ajoelhar ao lado do sofá, rezando Depois desse incidente, a vizinha e
o marido renunciaram ao antigo h á bito de usar peiote e se tornaram cris-
tãos. A narradora acrescentou que depois de ter “testemunhado” ou relatado
esse evento à congregação, um homem dizendo que tinha problemas com
álcool e com peiote e não conseguia se livrar de nenhum deles se apresentou

265
í
5 ! CORTO / SIGNIFICADO / CURA
I : É
I i
1 durante a “chamada ao altar”. Ele disse que realmentc entendeu as palavras
n: ;
dela, e elas realmente tiveram efeito nele. Aparentemente, ele se livrou da
influ ência das duas substâ ncias, ambas consideradas drogas perigosas c peca-
minosas.

Povo navajo, cura navajo

^ ía apresentação da experiência dos pacientes navajos com a cura ritu-


al, meu propósito é comunicar um sentido mais experiencial das diferenças
e semelhanças entre as três formas de cura introduzidas acima em termos
conceituais. Para tanto, decidi contar a histó ria de três pacientes, tratados
cada um em uma das formas de cura.89 Os três pacientes são mais ou menos
da mesma idade, em torno de 70 anos, e todos eles apresentam, em diferen-
tes graus, uma mistura de sofrimento psicoló~gico e de sintomas físicosj
Diferentes de muitas(áescríç5èsãntrõ pológicãs de cura )esses relatos enfati-
; ^ ^
zam o entendimento que os pacientes têm de seus problemas, suas experi-
ências do processo de cura, e como eles integram os resultados nas suas vidas
subseqiientès/Assim, eu n ão incluo a descrição detalhada dos procedimen-
tos cerimoniais usados pelos curadores em prol dos pacientes. Porém, é
importante observar que h á um grau significativo de variabilidade na elabo-
i ração cerimonial das três formas de cura. A cura navajo tradicional, além do
diagn óstico formal ou das técnicas divinatórias, inclui uma grande quanti-
dade de cantorias que podem ir das versões abreviadas, que duram várias
horas, até aquelas que duram nove dias e noites. Cada cantoria é composta
de uma série de cantos que muitas vezes permitem variações para atender às
necessidades específicas de um paciente e também de in ú meros objetos ce-
rimoniais importantes e manipulações desses objetos (tais como cestas de
casamento, jish ou trouxinhas de rem édio, bastões de oraçã o, pólen de mi-
lho, água, pedras sagradas, peles de gamo), e pinturas de areia cuidadosa -
mente constru ídas com importantes significados cosmológicos e m íticos
í
: !
1 9
Esses pacientes eram participantes do Projeto de Cura Navajo. Veja Capítulo Cinco e
:
Csordas (2000).
:

266
Fale com Eles para que Entendam

sobre as quais os pacientes devem sentar. A cura da Igreja Americana Nativa


pode incluir algum diagn óstico formal ou divinação, mas o seu evento prin-
-
cipal é o encontro do peiote, que dura uma ú nica noite do pô r do-sol à
aurora. O encontro é orientado cm torno de uma lareira central e um altar
sobre o qual fica o broto maior de peiote do andarilho. Ele é composto de
can ções e toques de tambor executados alternadamente pelos participantes,
orações confessionais e exorta ções igualmente alternadas, a circulaçã o perió-
dica do remédio de peiote entre os participantes, uma cerim ó nia de água
dirigida pela esposa do andarilho ao nascer do sol e uma refeição coletiva
final. A cura cristã navajo pode acontecer em uma sessão privada de oração
intensa pelo curador, mas muitas vezes acontece em grandes encontros p ú-
blicos de revivificação. Em tais situações os pacientes fazem fila para receber
orações e imposição de mãos que podem durar apenas um ou dois minu-
tos. O diagn óstico e a divinação, se por acaso ocorrem, são inspirados mas
pobres em detalhes, e muitas vezes o curador pouco ou nada sabe sobre os
problemas do paciente. Apesar dessas diferenças em grau de elaboração ritu-
al, as experiências dos pacientes em cada uma das três formas de cura podem
ser igualmente profundas.
Logo depois da apresentação da experiência de cada paciente, resumi-
rei sua inteligibilidade em termos da filosofia e do princípio terapêutico
que identifiquei como característicos da forma de cura utilizada. Então,
analisarei o processo terapê utico de cada paciente em termos do modelo
retó rico delineado no Capítulo Um. Recapitulando, os quatro componen-
tes do modelo de processo terapêutico incluem:

A disposição dos suplicantes, tanto no sentido psicológico do seu


temperamento predominante ou da tend ê ncia a se envolver em
performance ritual , quanto no senddo físico de como eles se colocam
frente à rede social e aos recursos simbólicos da comunidade religiosa.
/A experiência do sagrado, levando em consideração a formulação
religiosa da condiçã o humana em relação ao divino, o repertó rio de
elementos rituais que constituem manifestações legítimas de poder
divino, e variações nas capacidades individuais para experiência do
sagrado que possam influenciar o curso do processo terapê uticoj

267
11 !h !
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
I

/dentro
A elaboração de alternativas ou negociação de possibilidades que existem
do “mundo presumido” da pessoa afligida. Os sistemas de cura
podem formular essas alternativas cm termos de uma variedade de
metáforas e podem utilizar meios rituais ou pragm á ticos que encorajem
a atividade ou a passividade, mas as possibilidades devem ser percebidas
como reais e realísticas

^
A realização da mudança, inclusive o que conta como mudança e o
grau até o qual essa mudan ça é considerada significativa pelos
participantes. Isso pode ocorrer de forma incremental e irrestrita, sem

H: i um resultado definitivo.

Cura navajo tradicional

Jesse é um vi úvo aposentado de 69 anos que mora em casa própria,


modestamente decorada com um velho calend ário Chevrolet e um Cristo
de veludo na parede. A casa dele é bem próxima das residê ncias das famílias
de duas de suas irm ãs, em um vasto terreno familiar tradicional onde ele
nasceu e foi criado. Entre as residências e edificações há uma casa navajo
tradicional, ou hogan, que é usada principalmente para fins cerimoniais. A
família também possui uma fazenda nas proximidades, e o trabalho na
fazenda é muito importante para Jesse. Ele é um homem jovial que gosta
de conversar, ri facilmente a toda hora e d á a impressão de ter sempre um

í
.

m sorriso no rosto. Embora ele n ão pareça especialmente reverencioso ou filo-


sófico, ele é atento e determinado, um velho ainda cheio de força e vigor.
Ele fala basicamente em navajo, e nossas entrevistas foram em língua nava-
jo, com a ajuda de um intérprete.
Seis dos sete irm ãos de Jesse ainda estão vivos. Os laços de fam ília
parecem muito importantes para ele, e ele disse que “nossa tradição cerimo-
nial é amar um ao outro”. A infância dele foi “OK” sem dificuldades dema-
siadas, embora seus pais fossem rigorosos e distribu íssem tarefas para as
crianças. Indiretamente, ele deu a entender que seu pai era bastante violento

;
n e autoritário, embora o pai tivesse sido seu “companheiro de trago” quando
eles trabalharam juntos na ferrovia e ele tinha entre 19 e 20 anos. Jesse
frequentou por pouco tempo um semi-internato, mas disse que tudo que
í
; 268
:
Fale com Eles para que Entendam

eles faziam l á era catar Jixo c, quando n ão catavam o bastante, eram surra -
dos. Depois de largar a escola ele trabalhou em diversos lugares, inclusive na
agricultura local e migrante, numa olaria fazendo adobe e tijolos, em ferro -
vias, na construção de redes de água e esgoto e, por um curto período de três
ou quatro meses, em uma mina de urâ nio. Ele contou que teve doze espo-
sas, embora a maioria desses relacionamentos tivessem sido curtos, e ele
tem apenas quatro filhos com as duas mulheres com quem se casou oficial-
mente. Sua esposa mais recente faleceu dois meses antes de nossas entrevis-
tas. Parece que ele tinha profunda afeição por ela, mas disse que eles falaram
sobre divórcio. Ele contou que ela queria ir embora, em parte porque acre-
ditava que havia uma abund ância de yenaldooshi (feiticeiros) em torno da
casa deles e também que as bruxas tinham enterrado coisas por ali.
Como um típico navajo tradicional, Jesse ora todas as manhãs ao nas -
cer do sol com pólen de milho, e suas crenças sobre a etiologia dos seus
vá rios problemas médicos e sociais sempre revelam causas tradicionais.
Quando questionado sobre como ele ora, Jesse respondeu: “Indo lá em
cima do morro, geralmente eu me recupero com orações navajos. Isso é o
pólen de milho, o pólen de milho menino, o pólen de milho menina, e a
terra, a aurora, sol, lua, lusco-fusco, escurid ão, e... qualquer coisa.” Ele leva
um saquinho plástico transparente na carteira, contendo pólen de milho
misturado com suco biliar de leão da montanha, de urso ou de lobo. Ele
disse que carrega isto para se prevenir contra bruxaria, especialmente em
dan ças sociais como a yeibichei. Ele mencionou que seus avós contaram
muitas histó rias de coiote e outras histó rias a ele e seus irmãos para que
soubessem distinguir entre o bom e o mau comportamento.
Jesse liga a raiz dos seus problemas a uma cerimónia tradicional do
Caminho do Relâmpago em 1957, quando ele tinha uns 30 anos. A ceri-
mó nia estava sendo celebrada para um paciente que também era cantador
do Caminho do Relâmpago. Durante um intervalo da cerim ó nia, o hogan
foi atingido por um raio, e uma chama azul desceu hogan adentro através da
abertura da saída de fumaça no teto. Duas das oito pessoas no hogan foram
mortas, inclusive o pai de Jesse: “Ele estava dormindo, enrolado nos cober-
tores. Tinha um outro homem deitado aqui... deitado assim de lado, e ele
foi jogado para cima e cortado no meio. Meu pai estava lá, deitado, e o
relâ mpago atravessou ele completamente. Havia dois." O curandeiro estava

269
fill ! '

'; I i
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
:: í i

liill
.1 ,
'
deitado c n ão foi atingido. O paciente estava fora do hogan naquele mo-
mento, e também n ão foi atingido. Al ém dos dois mortos, um outro ho-
mem foi atingido pelo raio, mas apenas nas pernas, e sobreviveu. Jcssc foi
i‘
| jogado contra a parede c caiu sem sentidos ao lado da porta. Durante o
|!
tempo em que ficou desmaiado, cie se viu do alto do hogan, fora do corpo.
Jesse e vá rios outros membros da .fà m ília acordaram com ásperas mar-
cas em forma de relâmpago estampadas no peito. Duas de suas irm ãs que
n ão estavam participando da cerimonia entraram no hogan para ajudar, fi-
i
cando também expostas aos efeitos do relâ mpago. Após o incidente e antes
: de se recuperar totalmente, Jesse fez sexo com sua mulher. Ela morreu me-
nos de um ano depois. Mais tarde, Jesse compreendeu o seu erro e se deu
í f conta de que tinha causado a morte dela. Jesse vê muito do que ocorreu
: subseqiicntemente em sua vida como relacionado a esse evento. Sem d úvi-
da, aquilo foi um trauma permanente para toda a fam ília, ainda mais levan-

-
do cm consideração o perigo espiritual e o poder ritual associado na religião
navajo com relâmpagos e cerimonias associadas com relâmpagos (veja tam-
bém Capítulos Sete e Oito). No entanto, ele sentiu que o contato com o
i' V relâmpago foi um tipo de iniciação e que, tendo escapado ileso, ele foi
“aceito pelo relâmpago”, sugerindo assim um tipo de afinidade permanente
com essa força poderosa. De fato, o incidente pode tê-lo deixado com men-
sagens altamente divergentes de sua própria força espiritual combinadas com
: um sentimento de isolamento ou mesmo de alienação das outras pessoas
em sua vida. Em outras palavras, pode ser descrito como a combinação de
i uma resposta a um estresse pós-traum á tico com a intensificação de senti-
i
mentos associados com a violação de fortes conven ções sociais.
Jesse disse que tinha mandado realizar cerimónias para o problema,
i mas que foram cantorias menores e ele achou que elas n ão deram resultado,
i
em parte porque “os cantadores n ão fazem um bom trabalho, completo
i

,!
[ ..] hoje em dia tudo é feito às pressas, na hora que você faz o pagamento”.
.
É importante observar que algo catastrófico como o incidente do raio que
matou o pai de Jesse nunca foi tratado em uma grande cerim ó nia. Todavia,

\ m\ como acontece com frequência, Jesse disse que seus sintomas só surgiram
muito depois (15 a 20 anos) porque, quando ele era jovem, ele tinha um
:
“corpo forte”. Na visão navajo, esses efeitos retardados poderiam ter sido
i
evitados se o cantador original tivesse tomado medidas para corrigir a situ -
270
Fale com Eles para que Entendam

ação, incluindo um rito dc resfriamento, ritos de lavagem herbá tica para as


pessoas no hogan c a construção dc um abrigo separado onde se pudessem
fazer bê n çã os e oferendas. Essas medidas nunca foram tomadas.
Quando ele finalmcntc contratou um cantador para celebrar uma ceri -
m ónia do Caminho do Rel â mpago ( tradicionalmente para remover os efei-
tos da exposi ção aos rel â mpagos) , Jessc relatou uma sé rie de sintomas,
inclusive azia, dores nos ossos e nas juntas, embaçamento da visão, dor nas
costas, dor nas pernas e tontura. Foi planejado també m integrar elementos
de uma outra cerimónia conhecida como Caminho do Mal (tradicional-
mente para remover os efeitos da exposição aos mortos), de que Jesse neces-
sitava após a recente morte de sua segunda esposa. “A esposa que faleceu”,
ele nos contou, “eu tive de ajudar ela durante a doen ça, por uns nove anos,
mais ou menos. Por causa disso, eles me dizem, eu estou muito afetado
pelo Caminho do Mal.” Ele disse que o maior sintoma disso era um tipo de
nervosismo, a “perdição” de seu “pensamento mental”. Em certo momen-
to, ele nos contou que com frequência tem muitos problemas em lugares
cheios de gente, como em supermercados, onde “meu coração dispara e me
faz respirar com força. Sinto como se eu fosse tropeçando pelos corredores
e tenho medo de trombar com alguma coisa. Você pode apagar e entrar de
cabeça em alguma coisa”, ele disse. Além disso, os acontecimentos na sua
vida familiar tornaram-se estressantes recentemente, quando alguns de seus
netos se envolveram com problemas e vários membros da fam ília tiveram
dificuldades de sa úde. Nossa entrevista diagnóstica clínica sugeriu que ele
preenche os critérios de transtorno distímico, embora considerando que ele
parece ter sido afetado profundamente pelo desgaste, a preocupação e o
trabalho de cuidar da esposa na fase terminal da doença, é provável que isso
possa ser entendido como resultado do estresse de consternação. Além dis-
so, ele provavelmente preencheria os critérios psiquiá tricos de transtorno de
estresse pós-traum á tico no período após a morte do seu pai durante a ceri-
m ó nia do Caminho do Relâmpago anos antes. Diga-se de passagem, ele
tinha um histó rico de crueldade com animais, usó de álcool e promiscuida-
de, embora, na ausência de uma ficha policial, isso n ão chegue a ser uma
personalidade anti-social.
Depois da cerimó nia, que aconteceu ao longo de um fim de semana e
incluiu duas de suas irm ãs como co-pacientes, Jesse passou a noite no hogan

271
ff CORPO / SIGNIFICADO / CURA
:
I
onde ela foi celebrada, dando in ício a um período de quatro dias durante os
quais um paciente deve permanecer quieto e reverente. Ele disse que sentiu
que a cerim ónia foi bem-sucedida. Questionado sobre qual teria sido a
! í S if
im !
parte mais importante, ele respondeu “a coisa toda”. Ele disse que n ão estava
sentindo nem pensando sobre muitas coisas durante a cerimonia, mas ape-
1 si nas se concentrando nos procedimentos. No entanto, mencionou que fi-
cou nervoso o tempo todo. “Eu me senti como uma pilha de nervos”, ele
disse. “ Pode ter sido o efeito que o tabaco e as ervas juntos fizeram em
il mim”, mas durante a maior parte do trabalho feito com tabaco e ervas
“todo o meu ser se sentiu bem”. Jcsse também afirmou que teve dificulda-
í
I des para acompanhar e repetir as orações do cantador, um aspecto funda-
mental da participação do paciente tradicional. Ele indicou que achava que
i ; . a cerimónia o ajudaria, mas fez uma ressalva, dizendo que era melhor n ão
: ficar confiante demais. Ele disse que ter fé na cura era muito importante.
:
“Eles dizem que tem de ter fé absoluta, só assim você se cura , é isso que eles
li dizem. O Povo Santo é assim, você tem de ter fé neles para eles ajudarem
você. Com Deus é a mesma coisa.” Sua atitude pode ser chamada de oti-
I mismo fiel, mas cauteloso. “Você tem de ter cuidado aqui”, ele disse. “ Não
pode gritar e dizer, eu estou completamente bem, e está tudo bem bom.
Você pode estar mentindo. Então você não sabe se eles foram verdadeiros.
Depende do Povo Santo.” Como a maioria das pessoas tradicionais, ele
achava que uma cura n ão vem imediatamente, mas, sim, que ela virá com o
: tempo:

Quando você sofre de um acontecimento como este, e desce a estrada da


:! vida, e sofre com isso todo tipo de coisa, esse próprio sofrimento é um
utensílio de ensinamento [...] e agora, finalmente, eu mandei celebrar
essa cerimónia do Caminho do Relâmpago e, agora, parece que algu ém
disse: “Espera, espera”. É o que me parece. Em poucos dias, dentro de
quatro dias, tenho certeza de que tudo vai estar bem. É nessa hora que
você se torna um verdadeiro crente. Nesse momento você també m acre-
: dita, e isso ajudou você, também.

, Assim que a cura acontece, a cren ça da pessoa é reforçada e, do sofri-


i mento, vem o entendimento.
|
:

.
272
í
:
Fale com Eles para que Entendam

Depois da cerimonia do Caminho do Rel âmpago, Jesse relatou que já


n ão estava se sentindo quente o tempo todo e nem começava mais a suar
espontaneamente. Umas duas semanas depois da cerim ó nia, ele nos contou
que sua visão tinha melhorado e as dificuldades que estava tendo para cami-
nhar pareciam ter desaparecido, embora tenha també m mencionado a per-
sistê ncia da dor (“parece que tem agulhas e alfinetes”) nos pés, especialmente
nos calcanhares. Ele disse que o trabalho na fazenda, que estava muito difí-
cil para ele antes da cerimónia, tinha ficado mais fácil. “ Parece que as coisas
estão indo no (caminho da cura para mim , sim”, ele nos afirmou. Em uma
^
entrevista de acompanhamento três meses mais tarde, todavia, as coisas es-
tavam muito diferentes e ele tinha tido mais dificuldades. Ele indicou que
sua cerim ónia recente tinha sido de alguma forma invalidada por duas ocor-
rências. Primeiro, ele tinha visto e matado uma cobra poucos dias depois da
cerimónia, o que é significativo tanto em termos rituais como em relação à
sua aparente ambivalência a respeito de tais quebras de conven ção. Segun-
do, ele teve uma tragédia pessoal quando um sobrinho caiu bêbado numa
estrada de ferro e foi morto por um trem. Essa morte teve papel importante
no processo de cura de Jesse, porque o cantador prevenira a ele e sua família
para que não tivessem nada a ver com os mortos. Infelizmente, depois do
acidente o corpo do sobrinho foi trazido de volta e suas irmãs o abraçaram
consternadas. Jesse acredita que isso anulou os efeitos da cerim ónia, não
apenas para suas irm ãs, mas para ele também. Ele mencionou especifica-
mente que sua pró pria dor retornou depois desse incidente.
Como resultado desse incidente o cantador do Caminho do Relâmpa-
go disse a Jesse que ele deveria ser rediagnosticado e ter outra cerimó nia.
Jesse disse que estava planejando mandar esse cantador fazer outra cerimó-
nia completa para ele, “quando eu tiver condições financeiras”. Alé m disso,
ele falou que ainda precisava de uma cerimónia completa do Caminho do
Mal em função da morte de sua segunda esposa:

Minha falecida esposa costumava viver aqui e estar aqui presente. A pre-
sença dela está em toda parte, os óleos de suas mãos e do seu corpo ainda
estão em tudo. Ela ainda tem alguns de seus objetos pessoais pela casa,
lá está um. Talvez seja isso que está afetando a casa. Por causa disso eu
n ão vou mudar de volta enquanto o hogan n ão tiver sido limpo correta-

273
i
•>
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

MIM ; I
I :? li >iM mente. Aí então cu venho morar aqui de novo. Agora, estã o me dizendo

1 11 i
para ficar bom primeiro c dormir na outra casa por enquanto. Isso é o
que a minha irm ã mais velha quer que cu faça. Ela vai limpar este hogan
.
primeiro, antes de cu mudar de volta para cá Então, esta d uma á rea de
problema, que me faz ter aquele problema, parece que d isso. A atmosfera
, !I i do Caminho do Mal está enuviando o ar aqui dentro, d isso que cu sinto.
Ç j: ,
Junto com essa inquietação, Jesse estava preocupado com a possibili-
dade de que algumas das dificuldades de sa úde de sua esposa fossem relaci-
onadas com o desrespeito que ele próprio demonstrara no passado pelos
valores, atitudes e regras do Povo Santo ou causadas por esse desrespeito.
i Finalmente, ele estava preocupado por ter visto e matado uma cobra logo
depois de sua recente cerim ónia. Ele pensou que o aparecimento da cobra
, significava que algu ém estava tentando enfeitiçá-lo ou, como ele disse, que
algu ém “ainda” estava tentando enfeitiçá-lo, sugerindo que a feitiçaria devia
I 1

também ter algo a ver com a morte de sua última esposa.


1
, A experiência de Jesse mostra de forma bastante clara o sentido em
que a cura tradicional incorpora uma filosofia de obstáculos no sentido
;
acima esboçado. A narrativa dele pode ser compreendida como a tentativa
N 1
de vencer uma série de obstáculos criados por suas próprias ações, atitudes e
ambivalências, as ações de outros, a inadequação percebida das cerimónias
de cura ou a força dos acontecimentos. O princípio did á tico também está
evidente em sua capacidade de procurar com persistência saber qual é real-
mente o seu problema e sua solução cerimonial, bem como em seu comen-
tário de que o próprio sofrimento é uma ferramenta de aprendizado.
/Vejamos a explicação do processo terapêutico experienciado por Jesse
em relação ao modelo retórico acima esboçado. Jesse teve uma disposição
, /\ positiva para a cura, mas a sua fé e o seu otimismo foram acomodados pela
Jf\ idéia de que uma expectativa muito forte de ser curado poderia ser a fórmu-
y/- la para o fracasso e provocar a contrariedade do Povo Santo (por exemplo,
as deidades navajos tradicionais). Além disso, ele levantou a questão de ter
' \ tido muitas cerim ónias, mas sem ter sido totalmente integrado por elas,
V bem como a questão da ambivalência em relação às conven ções rituais cuja
violação poderia comprometer a eficácia cerimonial. Em vá rias ocasiões em
que as cerimónias n ão o tinham curado e nem mesmo ajudado, ele criticou

274
Fale com Eles para que Entendam

os curadores - ou ele considerava os diagnosticadores tradicionais imposto-


res ou então que os cantadores haviam omitido certos pontos-chave do
ritual e que a omissão deles causara o fracasso da cur O insucesso dessas
^
cerimonias muito provavelmente fez com que ele visse com certa cautela a
iminê ncia da cura. Como muitas pessoas tradicionais, Jesse sentia que a
cura podia demorar muito a chegar, sugerindo implicitamente que/cTpro
cesso~têrapê utico dura a vida inteirarPelos seus comentá rios, n ão parece que ^
Jesse espera que suas cerim ó nias dêem fim aos problemas surgidos de algo
que aconteceu há mais de 40 anos. Os efeitos do raio comprometeram sua
fam ília inteira e continuarão afetando todos eles por toda a vida. De forma
realista, ele tem esperança de algum alívio para seus sintomas. Ele acha que
mesmo se suas condições melhorarem num curto prazo, ele precisará de
cerimónias adicionais. Outro fato notável a respeito da propensão de Jesse
para a cura é uma aparente disposição a desconsiderar os tabus mesmo con-
servando uma crença neles. Isso pode refletir uma atitude de que, quando
alguém faz alguma coisa errada, a punição pode vir ou pode n ão vir, atitude
essa que freqiientemente leva as pessoas a não realizar cerimónias até alguma
coisa dar errado. Finalmente, a disposição de Jesse inclui a possibilidade de
uma cura parcial. Ele tinha uma profusão de sintomas, alguns dos quais ele
relatou que haviam melhorado e outros que permaneceram os mesmos.
No entanto, por ocasião da nossa entrevista de acompanhamento, haviam
acontecido outros eventos que, segundo ele, comprometeram sua cerimó-
nia. Esses eventos não diziam respeito diretamente a ele, mas a suas irmãs
que foram co-pacientes na cerimó nia. Na opinião dele, o contato delas com
o morto foi suficiente para desfazer a sua cerimó nia.
/ Nossas entrevistas sugerem que Jesse tem um senso vívido do sagrado
e uma vida impregnada com a dimensão sagrada da religi ão navajo tradici-
onal - as repercussões de tabus quebrados, cerimoniais, oração, bruxaria e
yenaldooshi. Sua experiência do sagrado na pró pria cerimó nia també m pare-
ce ter sido forte. Ele disse em várias ocasiões que o uso ritual de ervas e
tabaco alteraram sua mente e seu corpo de uma maneira positiva. Seu mani-
festo temor de que a incapacidade de repetir corretamente a oração pudesse
lhe causar problemas també m sugere sua crença na tangibilidade do Povo
Santo, que estava ali presente e ouviria suas preces, porque a cerimó nia foi
/
executada corretamente com todos os elementos necessá rios Um último

275

\
r
f
r
CORPO / SlGNl FICADO / CURA
'

::
:

episódio que sugere um alto grau de experiência sagrada no caso de Jcssc 6 o


seu contato com uma cobra após a cerimonia. Ele concordou que isso era
provavelmente um mau sinal e, consciente de seu pró prio passado com
Jl í relâmpagos e cobras, deve ter considerado o fato significativo. No entanto,
i não foi à cobra, mas sim ao contato de suas irm ãs com os mortos que ele
! atribuiu o dcsf àzimento de sua cerimonia. Alé m do mais, ele n ão associou a
cobra com o seu próprio comportamento, mas viu nela uma tentativa de
feitiçaria da parte de outras pessoas.
1 Com relação às elaborações de alternativas, Jesse n ão vê diante de si
:
uma série de possibilidades comportamentais ou emocionais, mas uma va-
riedade de possibilidades cerimoniais e também de possíveis consequências,
; •
- desde o sucesso, ao sucesso parcial até o fracasso. Além da cerimónia do
S
Caminho do Relâmpago, ele achou que ainda precisava de uma do Cami -
nho do Mal por causa da morte de sua esposa, e uma do Caminho do
Inimigo para remover a contaminação ocorrida quando ele retirou os obje-
tos de uma mulher branca morta de dentro de um carro que ele limpou
:
'
quando trabalhava em uma revendedora de automóveis. Ele pareceu bas-
tante convencido de que precisara de todos os componentes que tinham
sido incluídos no Caminho do Relâmpago, como as oferendas e as lavagens
í
além da pintura de areia, pois um diagnosticador tinha lhe dito que a razão
pela qual as cerim ónias fracassaram foi que alguns deles tinham sido omiti-
dos. A história de Jesse, e o sentido específico que ela dá à noção de uma
i
elaboração de alternativas, põe em relevo um tema poderoso do processo
terapê utico navajo tradicional, ou seja, a contaminação via contato - com
relâmpagos, com uma variedade de animais, com os mortos, com sua se-
í gunda esposa moribunda e sexualmente com sua primeira esposa, com o
inimigo morro e com um feiticeiro ou yenaldooshi.
A realização da mudan ça no caso de Jesse é tentativa e é incremental.
!' Apesar de ele sentir que a cerim ónia foi muito bem, no in ício relutou em
ver a cura como um sucesso porque tal otimismo poderia causar proble-
1

:
< mas. No entanto, suas entrevistas estão cheias de afirmações positivas sobre
seus efeitos. Esses efeitos vão desde o alívio da dor e a melhora dos sintomas
físicos até a melhora de sua atitude e da capacidade de levantar cedo e dar
: conta do trabalho na fazenda. Mais uma vez, h á outros sintomas, especifi-
camente umas dores nas pernas e nos pés, que ele n ão sentiu que tinham

i
i , 276
Fale com Eles para que Entendam

desaparecido e que, no m áximo, melhoraram. Três meses mais tarde as coi-


sas tinham mudado um pouco por causa da morte violenta de um sobrinho
c o contato subsequente de seus co- pacientes com o cad áver. É dif/cil consi-
derar esse evento como n ão relacionado, todavia , pois ele é do tipo que se
reflete diretamente no processo terapêutico na medida cm que tal processo
se mistura com toda a trajetória de vida da pessoa.

Cura da Igreja Americana Nativa

Marvin é um homem de 64 anos que mora numa área de montanhas


remota da reserva navajo. Ele e Nellie, sua única esposa de 40 anos, juntos
com dois de seus filhos já crescidos (três outros filhos vivem em outros
lugares) moram em uma velha e simples casa de madeira de dois quartos
com reminiscências cristãs na parede da sala e duas poltronas nas quais ele e
a esposa aparentemente passam muitas de suas horas de descanso. Eles pare-
cem levar um estilo de vida navajo bem tradicional. Marvin é um velho
bem arrumado, de aparência muito viva e vigorosa, que, apesar de não ter
educação formal, fez descrições muito coerentes e perspicazes de suas cir-
cunstâ ncias de vida (falando em língua navajo), e fez aparentemente um
balanço detalhado e significativo de sua história médica e de sua compreen-
são da importância das cerimó nias em sua cura. Ele é aposentado por moti-
vos de sa úde depois de 16 anos de trabalho como empregado de serraria e
ferrovia e agora faz serviços de fazenda em tempo parcial. Embora ele tenha
começado a participar da Igreja Americana Nativa em 1945, Marvin nunca
se tornou um andarilho (l íder de encontros de peiote), o que é incomum
para algué m da sua geração com participação tão longa. Ele atribui isso a
uma má experiência com peiote no in ício da sua participação, quando re-
solveu tentar dirigir um encontro mesmo sendo ainda inexperiente demais
para fazê-lo:

Eu fiz isso antes. Eu era solteiro na é poca, mas n ão estava realmente


envolvido com peiote. É como se eu n ão estivesse pronto para tomar.
Mas eu orei. Eu fiz isso uma vez. Uma vez, quando o meu tio não estava
em casa eu usei o equipamento dele e fiz o nahagba [encontro de oração
de peiote] sozinho. Depois da meia-noite todo mundo ficou muito afe-

277
;
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

tado pelo remédio. Eu fiz o possível para traze-los de volta, mas n ã o


consegui. Eu orei c orei. O tocador de tambor caiu c cu joguei ele na
camionete e saí. Aquilo rcalmentc me apavorou. Eu larguei eles assim .
Eu estava apavorado. Um homem me disse o seguinte, ele disse que cu
n ão sou bastante maduro. Eu n ão tenho uma vida de fam ília regular c
n ão tenho nem mesmo uma esposa, foi por isso que isto aconteceu. Uma
mulher cm casa é o que cu não tinha. Acho que era verdade. Eu resolvi
n ão mexer com isso. Eu sei orar e fazer aquilo tudo, mas deixei de lado.

O remédio de peiote assustou-o tanto que depois disso ele nunca mais
pôde “se entregar completamente ao rem édio”. Isso pode explicar também
por que ele continuou a ter problemas de bebida, pois os andarilhos dizem
que o abandono é absolutamente necessá rio para melhorar, da mesma for -
ma que os ministros cristãos dizem que a pessoa tem de entregar a vida
completamente a Jesus. Hoje Marvin só toma peiote no contexto de um
encontro de oração sob a orientação de um andarilho experiente.
Na época da participação dele no nosso projeto de pesquisa, Marvin
estava envolvido em um processo de cura em dois n íveis. Em um nível
explícito, e talvez mais superficial, ele estava tendo uma cerimónia para
garantir o sucesso e protegê-lo durante uma cirurgia já marcada para remo-
ver um tumor na sua garganta. Em um n ível mais profundo e mais dura-
douro, ele continuava a procurar a cura (ainda que indiretamente) para seus
problemas crónicos de alcoolismo; nossas entrevistas clínicas sugeriam uma
longa história de depend ência de álcool e a possibilidade de uma enfermida-
: de depressiva importante. Para Marvin, as duas eram experiencialmente co-
nectadas no sentido de que a crise constitu ída por sua enfermidade física
dava-lhe oportunidade de realmente refletir sobre sua vida e os seus proble-
mas com o álcool. O tratamento dele foi conduzido por um ilustre andari-
lho que é um amigo íntimo e de longa data. Durante muitos anos de seus
problemas com a bebida , o andarilho e sua fam ília ficaram do lado de Mar-
vin e o encorajaram a levar a LAN mais a sério, considerando-o ao mesmo
)
tempo “um pioneiro da LAN ” e “um alcoólatra”. No presente caso, antes do
internamento de Marvin no hospital para a cirurgia, o andarilho tinha con-
duzido uma sessão diagnóstica de “fitar estrela” e uma Ora ção Escudo / Pro-
teçã o tradicional como uma “ b ên çã o para tudo correr bem”. O sentimento

278
!
;
Fale com Eles para que Entendam

geral dc Marvin era dc que as curas da IAN, navajo tradicional e biom édica
tinham todas atuado juntas para ajud á-lo.
Marvin reconheceu diversos fatores que ele achou que contribu íram
para sua enfermidade física, incluindo bruxaria , hereditariedade, poluição
do trabalho na ferrovia, estresse c preocupações, dieta, exposi ção a relâmpa-
gos e outras enfermidades navajos tradicionais, e álcool. O andarilho intro-
duziu uma outra interpretação diagn óstica importante, de que Marvin

tem quatro personalidades como resultado dc transfusões de sangue que


ele recebeu depois do acidente em que ele, como pedestre, foi atingido
por um veículo e ficou gravemente ferido, muitos anos atrás [...] tem o
espírito de um homem anglo, uma mulher hispânica, uma outra pessoa
desconhecida e o próprio self de Marvin , todos batalhando pelo controle
dele, e ele necessita de tratamento de longo prazo.

No in ício, o próprio Marvin evitava tocar no assunto do acidente e na


questão da bebida, preferindo falar sobre a experiência da cirurgia e as pos-
síveis causas do seu tumor, mas depois de algum tempo ele começou a
discutir o que parecia ser o maior problema de sua vida, a bebida:

Bem, faz muitos anos que essa coisa me incomodava e era isso que mar-
cava minha atitude com tudo à minha volta. Eu andava bebendo tam-
b é m. Então o doutor disse, você tem que parar de beber, se quiser
continuar melhorando. Então, para mim isso quer dizer que para viver
nesta terra tenho que parar de beber. Nunca mais beber. E eu quero
fazer o que eles mandam, porque eu quero viver nesta terra. Essa coisa de
beber, é horrível. Muitos parentes me pediram para parar. Eles tentaram
e eu n ão consegui. Até que isso aconteceu comigo. Olha só o que fez
comigo. Foi isso que aconteceu.

De acordo com o pensamento tradicional navajo sobre a causa da en-


fermidade, o andarilho achava que a atual crise de saúde de Marvin era o
resultado cumulativo de eventos passados na sua vida , de modo que agora
ele estava “desgastado como um cobertor velho”. Alé m dos m últiplos esp í-
ritos que ele diagnosticara em Marvin anteriormente, o andarilho teve a
visão de dois coiotes, que lhe indicaram que os problemas de sa úde tinham

279
J
.. CORTO / SIGNIFICADO / CURA

sido adicionalmentc causados por Marvin ter perseguido esses animais quando
era jovem. Ele interpretou a aparição deles como um aug ú rio de morte
iminente, e orou de acordo. Durante a cerimó nia o andarilho também teve
uma visã o dos cé us e as estrelas “se despedaçando” que parecia indicar a ele
que a cerim ó nia e as ora ções estavam funcionando.
Na verdade, Marvin teve duas cerim ó nias de peiote ou nahagha. A
primeira foi antes da cirurgia, “com a finalidade de passar por esse teste”.
í> Após a opera çã o bem-sucedida foi realizado um segundo encontro “de apre-
ciação” c agradecimento. Marvin conta que em preparação para esse ú ltimo
encontro “cu tomei muitas doses de remédio. Comecei a tomar durante o
dia enquanto cuidava das ovelhas. Se você contasse uma por uma havia
muitas”. No intensificado estado de consciê ncia induzido pelo peiote, Mar-
vin teve duas experiê ncias profundamente emocionantes. Uma delas foi ao
ouvir as palavras pronunciadas pelo andarilho, no momento em que o cura-
dor preparava uma mistura de tabaco para a cerimó nia de fumar, encorajan-
do-o a se envolver ainda mais com a religiã o e a se tornar ele pró prio um
'
andarilho:

Quando ele estava preparando o tabaco. Ele fàlou. Ele disse: “Você con-
seguiu fazer o que você queria e aqui está tudo bem feito. Agora você
chegou a um ponto em que aquilo que você esperou e desejou pode
!
acontecer. Agora você pode fazer as coisas que eu posso fazer e estou
fazendo aqui para você, ele disse, lembra ? No futuro você pode sentar
onde eu estou sentado e onde eu fico e pode fazer o que estou fazendo.”
Então depende de mim , mas eu ainda sinto que n ão depende de mim,
ainda n ã o. Muito tempo atrás, no começo vieram esses dois e rezaram
para mim e marcaram o caminho a seguir para ficar melhor. Um desses
n ós cuidamos aqui nesse nahagha. Está na m ão de Deus e por vontade
dele, eles vieram até mim. Ele diz que eu devia pegar e fazer este naha-
gha para os outros. Entã o foi isso que ele disse. No futuro para mim
i tudo bem. Pode acontecer.

!
í O segundo momento profundo para Marvin na cerim ó nia aconteceu
í quando o seu filho, que também estava desempenhando o importante pa-
pel cerimonial de “homem do fogo”, auxiliando o andarilho a manter o
1
fogo e as brasas diante do altar, tomou a palavra na sua vez de orar:
,

280
i
Fale com Eles para que Entendam

/vlcu menino que tomou conta do fogo falou para Deus, mas falou para
mim també m. Então, o meu menino está falando de como cu bebia e
me comportava antes. Ele pediu a Deus para lhe dar um pai de quem ele
pudesse ficar orgulhoso c o pai que ele sempre quis ter. Eu entendo o
que ele quer dizer. Eu amo ele muito c ouvi as palavras dele c sei o que
ele está pedindo para mim. Eu tenho muito orgulho dele. Nunca
pedi
uma coisa que ele não fizesse para mim. Dou valor às palavras dele. Ele
também nunca me pediu nada que cu não fizesse para ele. Ele voltou
para me ajudar foi isso. Todos aqueles que falaram mc conhecem e eles
voltaram para me ajudar. Ele especialmente n ão gosta quando eu
bebo.
Toda vez que a gente fizer um nahagha ele vai falar dessa
bebida. Outros també m fizeram isso. Mas agora para mim quest da
ão
tudo bem.
Eu aceito o que eles dizem. Dou valor à preocupação deles.
Não fico
chateado. Sei que eles estão preocupados que se isso que eu
mor] piorar futuramente, vai ser mais difícil de curar.
tive [o tu
Isso é que eles
-
querem dizer. É por isso que eles me deixam saber desse jeito
o que eles
pensam. É isso, meu neto.

Depois da cerimónia, Marvin se sentiu muito forte


e bem disposto,
capaz de desempenhar tarefas como limpar o curral das ovelhas. Ele
disse ter
ficado “feliz pelo nahagha [...] passei o dia inteiro aqui pensando
nisso.
Tenho certeza de que o remédio ainda está no meu corpo e
fazendo o traba-
lho dele.”
A filosofia da auto-estima intrínseca à cura da Igreja
Americana Nativa
fica evidente no movimento terapêutico geral para
transformar Marvin de
um bêbado fraco e sem autoconfiança em um andarilho
praticante e confian-
te, com força interior para ajudar os outros.
Embora a narrativa não enfatize o
princípio terapêutico confessional no sentido de um
momento catártico para
Marvin, ele está presente em, pelo menos, dois outros
sentidos. Primeiro, é a
importância para Marvin da confissão dos sentimentos do
seu filho a respeito
do seu pai; segundo, é o reconhecimento ou a confissão
cada vez mais explíci-
ta dos danos causados pela bebida e da
necessidade de ele superar isso.
Resumamos os quatro elementos do processo terapêutico
vin. Ele é um antigo membro da IAN e para Mar-
portanto bastante familiarizado
com o repertório de cura ritual utilizado nas
cerimónias da LAN. Ele tam-
bém participa de uma densa rede de membros
dedicados da IAN, e embora

2S 1
CORTO / SIGNIFICADO / CURA

M tenha sido ambivalente sobre a questão de assumir o papel de andarilho, clc

S
II iiS í
aparentemente n ão faz qualquer restrição ao seu envolvimento como parti-
cipante ou paciente. Como cie disse, invocando os mais reveladores símbo-
los navajos de intimidade e segurança emocional, “eu chamo o remédio dc
minha m ãe. É como voltar para casa depois de ficar longe durante um
longo tempo e sua m ãe estar aqui com você.” Apesar dessa disposição dc
modo geral positiva em relação à cura, ele se debateu ainda no alcoolismo
por 40 anos. Na época em que ele participou do nosso projeto, dois n íveis
de cura estavam sendo experimentados simultaneamente - o problema ex-
plícito de um tumor na garganta potencialmente letal e a cura impl ícita
para resolver, ou, pelo menos, enfrentar seu alcoolismo. O medo provoca-
do pela enfermidade í f sica e a id éia de que sua vida podia terminar por causa
do seu modo de vida foram importantes para sua disposição de ser curado.
: A enfermidade í f sica precipitou uma crise que deu a Marvin uma oportuni-
dade de refletir realmente sobre sua vida e seus problemas relacionados com
' o álcool. Merece também ser observado que a disposição imediata de Mar-
! vin na hora da cerimó nia foi muito provavelmente intensificada pelo con-
f •
sumo de uma grande quantidade de peiote antes e durante o ritual, enquanto
sua disposição de longo prazo foi claramente intensificada como resultado,
i .
i
como demonstra o seu comentário de que “eu acho que nunca mais vou
duvidar outra vez do poder e da presença deste remédio e do que ele pode
fazer por mim. Não vou mudar de idéia outra vez.” Dois momentos imer-
; sos em uma experi ência do sagrado para Marvin durante a sua cerimó nia
foram as palavras do andarilho, encorajando-o a dedicar-se mais profunda-

Ii
mente ao rem édio, e as do seu filho, que pediu a Deus para lhe dar um pai
que não beba e de quem ele possa se orgulhar. As orações extemporâ neas nas
cerim ó nias da IAN são um meio indireto mas muito poderoso para os

;
h ! participantes e membros da fam ília se dirigirem uns aos outros enquanto,
sob a influ ência do peiote em um cen á rio sagrado, estão mais sensíveis e
receptivos. Vale a pena refletir sobre essa forma de experiência sagrada no
!
que diz respeito ao sentido pelo qual o peiote é caracterizado como deten-
tor de propriedades “alucinógenas”. Embora nesse caso o andarilho tenha
tido experiências visionárias sagradas relevantes para o diagn óstico de Mar -
vin e a eficácia da cerim ónia, a experi ência do sagrado do próprio Marvin
:
teve a ver com um senso ampliado ou intensificado do significado da sua

í
282
Fale com Eles para que Entendam

vida. O ponto principal é que, embora as visões induzidas pelo peiote e


outros fen ô menos sensoriais ocorram c tenham seu lugar, o contexto ritual
definido por um foco na cura tende a dar à experiência do sagrado uma
forma de imediatidade e profundidade, c um conte ú do de significação
emocional e interpessoal.
Na cerimonia, o andarilho elabora uma alternativa especialmente rele-
vante para Marvin - a de ele próprio assumir o papel de andarilho. Sua
relevância está no status de Marvin como um antigo tradicionalista e pio-
neiro da IAN que foi incapaz de assumir qualquer um desses papéis por
causa do estigma e de seus problemas com o alcoolismo. À primeira vista
esse parece ser um caso de um padrão de iniciação observado em muitas
sociedades, em que o processo de ser curado exige que o paciente se torne
um curador. No entanto, aqui ele é bem específico da circunstância ú nica
de vida do paciente como membro de um grupo etário no qual a maturida-
de saud ável frequentemente pressupõe a adoção do papel de andarilho. (Essa
elaboração de um modo de vida alternativo é apoiada pela elaboração de
explicações alternativas para os problemas dele com a bebida.) O diagnósti-
co do andarilho de “quatro personalidades incomodando-o” retira parcial-
mente a responsabilidade dele por sua condição e a coloca fora, em forças
espirituais. O diagnóstico suplementar de “incomodar coiotes no passado”
é algo pelo qual ele é responsável e também uma indicação de cena urgência
na sua situação. Ambos são elementos retirados do passado e são menos estig-
matizantes do que ser um “alcoólatra” no presente, todavia. O curador, então,
deixa claro para o paciente que tudo é diferente de agora em diante e eles têm
a oportunidade de começar de novo, enfatizando que tomar a iniciativa e
fazer isto é uma responsabilidade do paciente. Finalmente, ele tinha discuti-
do com o andarilho uma outra alternativa cerimonial, o Caminho do Ini-
migo Navajo tradicional, que continuava sendo um fator por causa de sua
exposição ao sangue de estranhos na transfusão de muito tempo atrás.
A respeito da realização da mudança, parece que as metas temporárias
de Marvin para a operação de remoção do tumor da garganta tiveram suces-
so e ele está se recuperando bem. Sobre sua meta mais essencial de curar o
alcoolismo, em nossas entrevistas de acompanhamento, um ano mais tarde
pareceu que ele conseguiu se manter só brio depois da sua cerim ó nia. Suas
próprias palavras revelam o significado pessoal dessa conquista:

283
1

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

I
;
Bem , cu disse isso antes na sua presença. Antes de cu ficar doente, cu
i: vivia meio despreocupado. Eu era irresponsá vel com a minha vida c pro-
í 1

!:
; !
: vavelmcnte fiz coisas de que devia me envergonhar. Eu errei na vida até
1 essa doen ça acontecer comigo. Eu descobri que minha fc cm Deus era
superficial e n ão profunda. Na minha idade descobrir isso c uma ilumi-
nação. Eu descobri isso. Antes, minhas palavras eram superficiais c vazi-
as. Eu dizia que ia fazer isso c aquilo c às vezes fanfarronava. Bem , agora
eu me dou conta do que isso significa. É como escamotear a verdade. Eu
quero corrigir isso, cu disse isso na sua frente. Eu costumava tomar o
rem édio c logo depois estava bebendo vinho e u ísque de novo. Eu rezava
e depois esquecia para que cu tinha rezado. Eu estava na margem da vida
que corria à minha volta. Antes de eu ficar doente era assim. Agora me
' arrependo e queria ter feito algo melhor da minha vida. Eu devia ter
realizado mais com a minha vida. Agora que tive o nahagha feito para
mim , eu quero ser como o andarilho. Certo do meu papel aqui mesmo e
certo do meu futuro. Foi isso que aprendi, meu neto. E então tudo que
era dito pelas pessoas à minha volta no nahagha era coisa boa. Ouvi o
!!í que as pessoas tinham a dizer e gosto do que disseram. Estou muito feliz
que as pessoas vieram orar e ofereceram apoio. Isso é bom.

Isso pode ser uma realização de mudança significativa para ele, embora
: não se possa dizer com certeza sem informação mais concisa sobre seus
há bitos com a bebida e a duração dos períodos de sobriedade anteriores. Na
verdade, ministros e andarilhos que conseguiram parar de beber parecem
discutir a questão muito mais abertamente do que Marvin estava disposto a
fazer. No caso dele, definido dentro da lógica terapêutica da LAN, a realiza-
ção da mudan ça definitiva para Marvin aconteceria se ele finalmente “co-
meçasse a lareira”, para a qual o seu amigo andarilho vinha oferecendo
iniciação há 40 anos, e se tornasse um andarilho.

i Cura cristã navajo

Eileen é uma mulher católica de 70 anos que tem quatro filhos vivos
(três meninas e um menino) com idades de 30 a 51. Pelo menos dois ou -
tros filhos (e também o seu primeiro marido) morreram na d écada de 1950.
;
; Eileen foi criada em um hogan tradicional e educada até a oitava série. Ela
:

284
:
Fale com Eles para que Entendam

tem boas recordações da infâ ncia c se considera um produto de pais amoro-


sos c dc uma boa educaçã o. Ela era a filha do meio na sua fam ília. Ela se
lembra dc caminhar dez quilómetros ate a escola todos os dias, mas recorda
com afeto que seu pai a levava a cavalo quando fazia mau tempo.
Eileen é uma dona de casa dc aparê ncia muito jovem para sua idade.
Ela tem olhos brilhantes, um bom senso de humor e faz reflexões articula -
das sobre os eventos de sua vida. Ela deu demonstração de otimismo e de
um senso de clareza em relação aos desafios de sua vida e como os enfrenta-
ria. Eileen e o marido parecem ter um relacionamento cxcepcionalmente
próximo, sentindo verdadeiro prazer na companhia um do outro apesar das
discordâncias ocasionais. Eles vão juntos à igreja todos os domingos e às
vezes nas quartas-feiras. Eles també m vão juntos a encontros de oração e a
reuniões de 12 passos. Eileen afirma que ela e o marido são pessoas particu-
larmente afetuosas e comenta que ele é teimoso e n ão gosta de ir ao médico.
Ela observa que ele é um alcoólatra em recuperação e que, às vezes, ela o
acompanha às reuniões de AA. Eileen diz que as coisas que ela mais deseja
na vida são paz e alegria. Alé m disso, ela diz que nã o quer que seus filhos
passem pelas mesmas dificuldades que ela experimentou , como criar os
filhos sozinha. Costurar e cozinhar são fontes de grande satisfação para ela.
Eileen diz que sua pior qualidade é a autodepreciação.
Antes de completar 30 anos, Eileen foi diagnosticada com tuberculo-
se, contraída enquanto trabalhava como assistente de sa ú de na reserva. No
dia em que recebeu alta, depois de passar dez meses no sanatório, ela estava
esperando seu marido e as crianças virem buscá-la quando soube que o
marido e a filhinha de dois anos tinham morrido em um acidente de carro.
Ela lembrou que o médico lhe deu algumas injeções tranquilizantes antes
de lhe darem a not ícia. Depois do funeral, ela n ão tinha nenhum lugar para
onde ir com as duas crianças sobreviventes. Ela recorda ter sentido apreen-
são com o relacionamento com o seu marido antes da morte dele, porque
ele não a visitava e ela se preocupava com os seus problemas com a bebida.
Ela observa também que isso foi apenas um ano depois de o governo dar
aos índios o direito ao voto e o direito de comprar bebidas alcoólicas. “Eu
n ão me dei conta de que Deus ainda estava a í para mim”, ela reflete. “ Hou-
ve ocasiões em que eu não quis falar sobre isso, mas faz parte da cura. Ainda
n ão acabou tudo, é como se fosse descascando em camadas” (dizendo isso

285
Kf
!
I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
; i
!i :
:
ela gesticula como se estivesse descascando uma cebola). Ela nega ter experi-
I !í mentado estresse pós-traum á tico incapacitante ou sintomas de humor/dor,
com o argumento de que n ão poderia, porque ter de cuidar das crian ças a
impedia de ser “arrastada para baixo” pelo peso de sua perda. No entanto, o
que ela descreveu como ficar entorpecida e abatida depois disso por muitos
anos foi, sem d ú vida, a sua resposta àqueles estressores e traumas (transtor-
no de estresse pós- traum á tico residual ). Logo depois desse período ela co-
nheceu o atual marido, já cristão, e ela explica que ele realmente a ajudou a
ti dar a volta por cima. Como diz Eileen: “Acho que as vezes ele estava lá,
sabe, e minha entidade espiritual estava lá comigo o tempo todo.”
K !i i Como católica, Eileen teve o primeiro contato com a cura cristã parti-
cipando de encontros de oração do movimento de Renovação Carism á tica
(veja capítulos de Um a Quatro):
1S 1i
.
* i .
[Quando] fui pela primeira vez [aos encontros de oração carism á ticos]
; nós estudamos as escrituras e o diretor espiritual mandava ler escrituras
específicas para o Espírito Santo vir; isso foi 20 anos atrás; eu era tão fria,
eu não tinha energia nenhuma. Tinha alguma coisa errada que eu não
conseguia localizar. Os homens e as mulheres ficavam separados no en-
contro e a mulher me perguntou sobre minha vida e ela orou comigo e
eu me senti aquecida e aquele calor ficou comigo até hoje. Tudo que cu
podia dizer é que meu marido e minha filha tinham morrido num aci-
dente de carro e eu estava num sanatório de tuberculosos e acabava de
sair e estava me sentindo completamente perdida. Eu n ão tinha para
onde ir. Eu peguei as crian ças e nós mendigamos por aí. Eu contei isso
para essa mulher [num encontro de oração, talvez 15 ou 20 anos depois
da morte do marido] e o amor simplesmente voltou para dentro de
mim. Eu comecei a reviver outra vez. É por isso que eu sei que existe um
espírito mais forte do que eu. Eu acredito. O amor e o fogo e a luz
voltaram para dentro de mim.

Eileen compara sua primeira experiência de receber orações como cris -


tã com mergulhar em um poço d agua e n ão saber nadar. Era se afogar ou
nadar e, pelo que Eileen conta, sua fé tornou-a capaz de nadar em vez de se
afogar: “ Você n ão vê nada, você não ouve nada, você só ora [...]. O meu
corpo inteiro estava sempre frio. Eu estava sempre tremendo. E foi então

286
Fale com Eles para que Entendam

que o meu corpo rcalmcntc rejuvenesceu. E daquele dia até hoje eu n ão


sinto frio [ risos] [...]. Então, foi a í que cu comecei a acreditar.”
A fé de Eileen continuou forte desde então, mas també m está evidente
que essa cxpericncia é sobreposta a uma espiritualidade preexistente:
[...] rezar nunca havia sido duro, entretanto, para mim. Meu pai era
muito religioso de um modo tradicional. Ele e minha m ãe tiveram uma
vida plena de oração e passaram isso para mim. Ontem me voltaram
umas lembran ças de quando meu filho era bebé e estava doente c eu tive
tuberculose e estava no sanató rio, o doutor achou que meu filho n ão
viveria, mas meu pai passou toda a noite com meu filho, orando e can -
tando e meu pai sabia que ele ficaria bom. E eu o ouvi chorando pela
manha [...] eu acredito que quando rezo alguma coisa vai acontecer. Eu
puxei o espírito de oração do meu pai. Você deve orar de manhã e à
noite. Você deve dar bênçãos toda manhã e noite.

Quando indagada como um padre poderia explicar isso, ela declarou:

Padres falam de Jesus como um curador. Ele n ão o encoraja a ir a encon-


tros de oraçã o. Algumas pessoas t ê m mais dificuldades em entender,
mas eu aprendi muito. Não apenas um padre pode impor as mãos sobre
pessoas doentes, eu també m posso fazer isso. Eu posso encorajar as pes-
soas. Algumas pessoas você desconecta falando sobre Deus, então eu
aprendi a dizer “um poder maior do que nós mesmos”, alguém a quem
rogar por força. Eu mesma costumava ficar aborrecida e não queria ouvir
quando as pessoas me diziam isso. Eu também costumava pensar que
esse era um grupo de pessoas brancas, um grupo de oração para um deus
de pessoas brancas e que os índios rezariam para o seu Deus indígena
[ela ri ao dizer isso].

Ao final da entrevista Eileen comentou: “ Desde que nos conhecemos,


meu marido e eu, nós aprendemos a rezar juntos. Nós oramos um para o
outro quando precisamos de ajuda. Nós fazemos muito isso. Nós fazemos
nossa pró pria devoção todos os dias. Nós oramos com qualquer um. Ora-
mos com nossos netos, nossos bisnetos e oramos quando eles estão dor-
mindo.” Quando o entrevistador comentou que isso estava cobrindo quatro

2S7
v \í
!! CORPO / SIGNIFICADO / CURA
;
'
!
I
!
gerações, cia disse: “É muiro bom estar nessa situação com a vida espiritual.
: i i
No caminho navajo cu n ão sou iniciada, entã o n ão posso rezar de algumas
f formas c tenho de pagar, mas com católicos, podemos entrar em qualquer
!í á rea c rezar c è grá tis.”
> : Í!
A despeito da forte fd católica, Eileen tambdm está ligada à cultura
!
navajo de muitas formas. Por exemplo, embora ela vá à igreja para renovar
I í : :
a força espiritual , ela reza em l íngua navajo. Eileen declara ter considerado a
l i possibilidade de celebrar uma cerimó nia tradicional para a sua perda de
visã o. Contudo, ela decidiu contra uma tal ação porque n ão tem muita fd
nos jovens curandeiros de hoje que “tendem a beber”. Ela relembra os ve-
1 liillí fl lhos tempos quando seu avô, que tambdm era curandeiro, sabia em quais
|
| especialistas de ritual podia confiar. Eileen tambdm menciona que teria usa-
do ervas como forma de tratamento se tivesse se lembrado do remddio
ji: !i 'j apropriado usado por sua mãe.
De fã to, a narrativa de Eileen fornece algumas atitudes de comparação
t particularmente interessantes, e não atípicas, entre a cura tradicional e a cura
Él! cristã. Ela explica, por exemplo, que tinha sempre acreditado a vida inteira
que o cristianismo era apenas para os n ão-navajo que têm uma concepção
particular de “Deus”. Sua opinião foi mudada, no entanto, por uma discus-
são com um padre que “a endireitou”. Adicionalmente, Eileen diz que sua
identidade como cristã desenvolveu-se ainda mais quando ela começou a
!
;j
frequentar um programa de 12 passos no qual as discussões se centravam
em um “poder superior” em vez de “Deus” ou “Jesus Cristo”. Ela explica:
“Isso realmente tornou as coisas mais fáceis para mim. Você sabe, acreditar
em um poder superior como a gente fazia nas maneiras tradicionais.” Assim
Eileen superou seu ceticismo inicial diante do cristianismo enraizando-o no
contexto da religi ão navajo.
Eileen também faz algumas distinções importantes entre as duas tradi-
ções. A primeira dessas distin ções é a percepção de Eileen de que a cura cristã
envolve um papel muito mais ativo da parte do paciente do que a cura
tradicional. Ela explica:

1 Eu costumava pensar que apenas os curandeiros podiam te ajudar c te


curar. Ele é o ú nico. Mas tem uma diferen ça, cu descobri que ele faz
!
. todas as orações. Eu n ão preciso fazer nada. A maneira d essa. Esta é
V

288


Fale com Eles para que Entendam

maneira tradicional. Mas essa maneira cristã , cu també m posso rezar


por conta própria, cu mesma posso falar com Deus c contar a ele minhas
necessidades cada dia c começar a experimentar pequenas curas ou gran-
des curas na minha vida.

Essas observações são provavelmente melhor interpretadas como ex-


pressão de um sentimento de que a cura cristã permite a ela uma relação
mais pessoal com Deus. É digno de nota que os proponentes da religião
tradicional navajo podem reverter a caracterização da sua religião como menos
exigente de um papel ativo do que o cristianismo, com o argumento de que
um paciente tradicional precisa repetir ativamente as orações do curandeiro,
enquanto pacientes cristãos recebem poder divino passivamente, conforme
ele é mediado através do curador.
Da mesma forma, Eileen também critica a cura tradicional com argu-
mentos econ ómicos, notando que não é preciso pagar pela cura cristã. Isso
parece servir de indicação para Eileen de que a cura cristã é mais pura do que
a cura tradicional porque ela é toda sobre amor e partilha em vez de dinhei-
ro. Além disso, a ausência de um fardo financeiro para o paciente a toma
mais acessível do que a cura tradicional. Com a cura cristã Eileen n ão precisa
encontrar algu ém fora da sua esfera imediata para orar por ela. Ela pode
simplesmente orar por ela mesma ou fazer com que o marido ore por ela.
Ela declara: “Sempre que tenho um problema no corpo inteiro ou dor em
algum lugar, eu viro para o meu marido e pergunto a ele, ‘é isso que está
errado comigo, podemos orar?’” Parece especialmente importante para Ei -
leen poder recorrer ao seu marido para a cura. Os dois estão muito à vonta-
de e ligados um ao outro, e o ato de orar parece simultaneamente demonstrar
e cultivar seu senso de proximidade.
Em suma, quando perguntada se já tivera experiê ncias religiosas inco-
muns, ela disse: “Sim , saber dentro de si que você tem capacidade de enten-
der as duas vidas espirituais, a católica e a tradicional , eu sou muito grata
por ter isto. É uma coisa especial.” Assim , a sua forte noção da fé cristã é
caracterizada por um toque distintamente navajo.
À época da sua participação em nosso projeto, o principal problema
de Eileen era a perda de visão por causa da catarata, em adi ção ao qual ela
relatou problemas de dor no joelho. Ela recebeu tratamento biomédico e

289
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
;
I

oração dc cura de seu marido. O casal sc mudou rcccntcmcnte dc outro


local na reserva e vive numa casa acolhedora e bem organizada. Eileen parccc
ter uma rede bastante ampla dc amigos c familiares, mas diz sentir-se solitá-
ria desde que se mudaram , sentindo-se c sendo tratada pelos outros como
1 uma estrangeira. O ú nico diagn óstico psiquiá trico cujos crité rios Eileen pre-
encheu foi fobia social. Curiosamente, ela não se sentiu prejudicada por
esses sintomas até por volta dos 50 anos de idade. “ Eu tenho uma pergunta
para você” , ela disse. “Se você cresce como uma menina e seus pares fazem
troça de você e de seus pais, você se retrai. Bem , foi isso que ocorreu. Meus
irmãos c irmãs mais velhos n ão eram como eu. Eu era a ú nica que estava
sempre com papai. Ele era quase cego e minha mãe era corcunda. Crian ças
são tão cruéis”. Os sintomas de fobia social de Eileen desapareceram nos
anos que se seguiram à morte do seu marido e da filha porque ela estava
muito absorta em apenas tentar sobreviver. Aos 50, ela se envolveu mais nas
atividades da igreja (foi assim que, 15 anos antes, ela encontrou seu atual
marido). Ela também parece se sentir mais à vontade para falar em p ú blico
e fala sem problema em um grupo se ele for relacionado com oração.
Ê Eileen descreve seus sintomas como segue:

[Meus olhos eram] aguados e sempre cansados, embora eu tivesse ócu -


los, e algumas vezes me davam coceira. Mas eu realmente achava que era
* isso, cu precisava [conseguir] outro par e trocar as lentes. Eu pensei que
isso é o que estava errado e fui e eles disseram: “ Não, nós vamos esperar
para mudar as suas lentes”. Então n ós esperamos até [eles descobrirem]
que lá no fundo dos olhos pequenos vasos sangu íneos estavam danifica -
dos, ficando deteriorados ou alguma coisa assim [...] então, eu n ã o con-
í
segui meus óculos novos. E eu estava ficando meio ruim no volante
[risos].

Eileen diz que seus olhos doem quando ela está cansada. Ela sente
irritação e dor de um lado perto do canto do olho. Ela n ão pode ver muito
bem e seus olhos doem quando ela está cansada. Eileen expressa preocupa-
ção, se ela perder a visão ficará dependente de outras pessoas, especialmente
do marido. Ela está claramente com medo de ficar cega e també m parccc
temer ir ao m édico. Embora os problemas de olho de Eileen n ã o pareçam
restringir seriamente a sua vida, eles são uma grande fonte de preocupaçã o.

290
Fale com Eles para que Entendam

Eilccn atribui a diminuição dc sua visão principaJmentc à idade. Ela


declara:
Você começa a ficar decadente cm vez dc melhorar e se pergunta por
que, vocc sabe, dc repente vocc se d á conta de que n ão pode fazer as
coisas que costumava fazer. E então você se pergunta , fica meio temero-
sa, porque você sabe, por que cu n ã o posso continuar forte e sadia, por
que tanto problema ? Por que cu n ão consigo ouvir direito, sabe, esse
tipo de coisa, você sabe.

Além da idade, Eileen també m discute vários outros fatores que po-
dem ter contribu ído para o seu estado de sa ú de. Ela observa, por exemplo,
que o seu pai foi cego durante muito tempo e o problema dela pode ter um
componente genético. Ela também diz que esteve envolvida em um aciden-
te de trânsito cerca de sete anos atrás e bateu a cabeça no pára-brisa, sofrendo
contusões no ombro e no pescoço. Eileen também fala rapidamente sobre
estresse como um fator potencial de sua condição e explica que é diabética,
o que também pode contribuir para seus problemas de vista.
Quando perguntada se alguma tragédia ou perda pessoal poderia ser a
causa de seus problemas de vista, Eileen respondeu com uma referência
ambígua a id éias navajos tradicionais sobre o efeito da exposi ção aos mortos
em funerais de estilo contemporâ neo:

Se eu usar as formas tradicionais de olhar, pode ser. Eles dizem que


quando você vê aquela pessoa, no caixão, você n ão deve ficar ali e [deixar]
cair uma lágrima lá dentro, sabe. Mas eu estou sempre atenta para isso e
então eu sempre tentei ficar afastada , mas às vezes uma emoção, naquela
hora você n ão sabe - mas eu realmente n ão posso dizer que é isso ou
qualquer coisa assim.

Ela fez outra referê ncia a lágrimas e dor quando estava discutindo a
relação entre a sua condiçã o e os momentos difíceis que teve de enfrentar ao
longo da vida, especialmente na d écada de 1950, quando estava hospitaliza-
da com tuberculose e perdeu o marido e filhos. Ela sugeriu que “[...] só o
fato de estar tão frustrada e de chorar tanto, penar tanto, isso pode ter
estragado os meus olhos, eu n ão sei ”.

291
1'flí
CORTO / SIGNIFICADO / CURA

! : Embora inicialmente a inten ção dela fosse apenas renovar a receita dos

Il i Il1 í
;
1 ! ;
óculos, com o diagn óstico de degeneração da visão ela foi encaminhada a
um hospital fora da reserva, onde se submeteu à cirurgia laser cm ambos os
olhos. Seu tratamento com oração cristã, primeiro por um conhecido cura-
||i! í = dor navajo e depois pelo marido, foi para complementar o tratamento bio-
m édico. De feto, antes de toda consulta medica , seu marido orava para ela
I
I não sentir dor nem ter qualquer problema , e para ajudar o m ódico a ter
sucesso de forma que os olhos dela se curassem. Eileen relata que seu maior
medo era de ficar cega e que as orações ajudavam a lhe dar confiança, redu-

]l 4 .i zindo seus temores. Parece que Eileen recorre a orações com frequência em
momentos de necessidade, especialmente por ser sensível a muitos remédios e

' iIl \'


não poder nem tomar uma aspirina para dor. Por causa disso, ela observa
que “na maioria das vezes, quando estou realmente sentindo muita dor, eu
simplesmente vou rezar. Eu simplesmente vou rezar.”
A filosofia de identidade moral descrita acima como característica da
cura cristã é evidente para Eileen de vá rias maneiras. Em contraste com as
formas tradicionais, ela vê uma maior exigência de participação ativa e por-
tanto de compromisso do paciente na cura cristã , e uma menor motivação

I !;
: i
por considerações financeiras. Eu sugeriria que há também uma sensibilida-
de moral em jogo no seu relato altamente personalizado de como a oração
de cura consolidou seus laços conjugais com o marido. O princípio conver-
i
sivo n ão é tão pronunciado como entre muitos navajos pentecostais, especi-
almente considerando a propensão católica a sintetizar elementos tradicionais
e cristãos, mas vale a pena lembrar que Eileen e o marido se conheceram em

! 1 uma atividade da igreja e ambos estão intensamente envolvidos na manu -
'
ten ção de sua paróquia.
Voltando agora à nossa compreensão dos elementos do processo tera-
pê utico, a disposi ção de Eileen está solidamente enraizada na cura cristã,
constru ída em um terreno preexistente na espiritualidade tradicional. Ela

,
também teve fé nos dons de seu marido na oração de cura. Embora a rede
social de Eileen n ão pareça ser muito bem desenvolvida, especialmente des-
" de sua recente mudan ça, ela parece ter todo o apoio de que necessita do
marido e na comunidade da igreja local. A melhor descrição para a experi-
ência do sagrado de Eileen é um sentimento de paz. Ela conta que durante
a oração estava realmente se concentrando em como estava sendo ajudada.
.

: 292

I
Fale com Eles para que Entendam

Os sentimentos primordiais relatados por Eileen , como os de muitos cris-


tãos carism á ticos c pcntccostais navajos e n ão- navajo, eram paz c amor:

Eu senti paz. Muita tranquilidade, porque acho que quando você se


preocupa consigo [...]. Eu me preocupo comigo, como é que cu vou...
como é que cu vou cuidar de mim c como vou fazer o que preciso fazer,
sabe. E cuidar da casa c como é que eu vou me movimentar por aí. Isso
me preocupava, mas depois que ele orou para mim eu senti confian ça de
que vou ficar bem . Eu n ão preciso me preocupar com isso c aquela paz
de Cristo simplesmente veio e ainda está comigo. Cada vez que o meu
marido ou que algu ém ora comigo eu penso, eu penso que vocc sente
mais o amor de Deus entrando em você e a paz que chega. Porque sem os
outros nós pensamos que sabemos amar, mas n ão sabemos. Isso é o que
eu descobri também. Pensamos que estamos em paz, mas tem sempre
aquele turbilhão nas nossas mentes, mas isso é diferente. É diferente.
Suas expectativas nas outras pessoas n ão são as mesmas. Você pensa so-
bre uma pessoa de outra maneira.

Nesse contexto, a experiência do sagrado de Eileen parece girar em


torno do sentimento de que Deus tinha entrado nela, dando a ela uma
sensação de paz ou calma, e ajudou a restaurar sua confiança de que tudo
ficaria bem, especialmente com seus olhos, e com a sua vida de maneira
geral. Sob outro aspecto, a experiência do sagrado de Eileen pode também
ser concebida como extensível a um processo de crescimento espiritual mais
amplo, e ainda como um relacionamento conjugal que ela considera sagrado:

Nós aprendemos que em nosso crescimento espiritual podemos fazer


isso [orar] um para o outro. E assim nós ajudamos um ao outro. Eu não
tenho de sair e procurar algu é m que ore por mim. E eu tinha essa con-
fian ça nele, que ele podia fazer isso por mim... agora, quando eu vejo
gente que precisa de ora ções e n ão tem [conhecimento disso] , isso não
tem nenhuma conexão com o crescimento espiritual dessas pessoas. Elas
n ão experimentaram a parte de espiritualidade da vida delas. Então é
meio difícil para elas. Eu sei que em algumas igrejas eles vão logo dizen-
do, nós vamos fazer isso para você, e é assim que vai ser. Eles apenas
dizem, bem, você sabe, Deus curaria você. Sabe. Mas para mim foi as-

293

\
I nmi
> ii CORPO / SIGNIFICADO / CURA
f !
sim , cu tive dc aprender. E ganhar a confian ça deles. E ter isso profun-
damente, orando por mim o tempo todo.
:

:
A elaboraçã o dc alternativas para Eileen parece depender do sentimen-
. I j; i : ; to de confian ça acima mencionado que a torna capaz de enfrentar seu medo
dc ficar cega e dependente de outras pessoas. Alem disso, a experiê ncia de
cura deu-lhe também um meio de expressar e consolidar sua ligação com o
marido, que foi o seu primeiro curador. Eileen elabora da seguinte forma:
“Eu só fiquei agradecida, muito agradecida por ele poder me ajudar dessa
maneira. Orando comigo. É uma coisa linda a gente poder fazer isso um
í: i para o outro, o que a maioria dos casais n ão pode. E [.. .] eu nunca vi o meu
avô fazer nada disso para a vovó.” Finalmentc, a primeira realização de
mudan ça para Eileen parece ser exatamente o fato de ela ter menos medo e

se sentir mais em paz e confiante antes de suas consultas m édicas, especifica-
mente, e em sua vida, de maneira geral. Ela tinha fé na oração, no marido e
em Deus. Além disso, durante o acompanhamento de 12 meses ela relatou
que os seus olhos não tinham piorado nem um pouco.

Processo terapêutico e trajetória de vida: entendendo a cura como


: \
experiência
*
A análise da cura carismá tica do Capítulo Um ao Quatro (veja tam-
bém Csordas, 1994a) especificou a eficácia incremental dentro do processo

: 1

:i terapê utico em termos de autoprocessos distintos de linguagem, emoção,
imaginação e memória, e mostrou como esses autoprocessos estão baseados
em experiências corporais. Nosso trabalho subsequente com pacientes na -
:: vajos tem o objetivo de contribuir para uma teoria comparativa intercultu -
ral de processo terapê utico fazendo o modelo dialogar com dados empíricos
/
r novamente. Para ser exato, montamos uma dialé tica na qual o modelo ser-
jh ve de suporte para a compreensão de elementos culturais do processo tera-
y pê utico distintamente navajo, enquanto sua aplicação em um cen ário cultural
J\
r diferente daquele em que foi originalmente elaborado serve para aperfeiçoar
ainda mais o próprio modelo Até aqui, neste capítulo eu enfatizei a segun-
/
da metade dessa dialé tica, usando o modelo retórico como uma ferramenta
1I para interpretar relatos narrativos de casos individuais. Nesta seção final

í
; 294

; 6
Fale com Eles para que Entendam

resumirei as maneiras como esses casos sugerem aperfeiçoamentos do pró-


prio modelo.
A formulação da disposição baseada no estudo carism á tico enfatizou o
conhecimento do paciente da forma de cura, sua inclinação favorá vel para
participar e o acesso social dele à cura. Essa formulaçã o enfatizou a orienta-
ção do paciente para um sistema de cura, mas o que está pressuposto sem
elaboração é o processo de sofrimento, ou pelo menos de desconforto. Nosso
trabalho com os navajos deixou clara a necessidade de incluir o sofrimento
como um dos fatores determinantes da disposi ção, de modo que um regis-
tro da disposição inclua necessariamente um registro de sofrimento (veja
Kleinman; Das; Lock, 1997). Particularmente, isso inclui a análise do tipo
e do grau de sofrimento que leva uma pessoa específica a engajar-se em uma
forma específica de cura, o senso de urgência que um paciente e sua fam ília
trazem para a cura, e a natureza da capacidade ou incapacidade pessoal e
social de uma pessoa para engajar-se no processo de cura. A dimensão desse
componente que interessa no cen á rio navajo é o que n ós começamos a
chamar de “psicologia do adiamento”. Mesmo entre pacientes bem dispos-
tos no nosso sentido original de orientação em relação ao sistema de cura, as
cerimonias prescritas só podem ser organizadas depois de uma demora con-
siderável, e, uma vez marcadas, podem ser adiadas in úmeras vezes e substi-
tuídas por medidas cerimoniais provisórias conhecidas por surtirem um
benefício apenas temporário. Nossa intui ção é de que isso n ão pode ser
aplicado apenas em termos de dificuldades pragmá ticas e problemas logís-
ticos de reunir recursos e apoio social, pois uma pessoa pode passar muitos
anos com a intenção de celebrar uma cerim ónia para um determinado pro-
pósito sem nada fazer para que ela aconteça. É provável que haja um limiar
motivacional que deva ser jeruzado a fim de se buscar a mudança de circuns-
tâ ncias ou de nível de sofrimento. Desta forma, em nossa análise em anda-
mento, estamos examinando a psicologia do adiamento com respeito à
relativa saliência do que poderia ser chamado de coeficiente de carga de
sofrimento para a carga de mudança.
/ já está impl ícita no nosso entendimento da experiência do sagrado a
ideia de que ela é mais do que um meio de eliminar a resistência à mudança
através do deslumbramento e avassalamento dos participantes. Como re-
sultado dessa fase do programa de pesquisa, podemos descrever mais especi-

295
í
: CORPO/ SIGNIFICADO / CURA

: !:
i ficamente a experiência do sagrado como o meio no qual ocorre a elabora-

a! i
ção de alternativas, uma forma pela qual essas alternativas são vivificadas c
legitimadas para os participantes, uma fonte de revigoramento e al ívio dc
desmoralização (veja Frank; Frank, 1991 ), um manancial de motivação no
1
II
sentido da realização da mudança para pessoas em qualquer estado dc dis-
posi ção inicial, e uma validação que acompanha essa mudan ça desde o seu
I
^
in ício O que essa formulação ainda pressupõe é que n ós procuramos o
sagrado de uma forma mais ou menos dramá tica, uma colocação que se

»
remete em última análise à advertência de William James (1961) de que a
melhor maneira de estudar religião é focar os momentos mais religiosos do
homem mais religioso. Além do fato mais ó bvio de que as experiências vão
desde as leves e sem importância até as irresistivelmente poderosas, o traba-
lho com os navajos nos permitiu identificar duas modulações do sagrado
relacionadas porém distintas. A primeira é aquela entre o implícito e o ex-
plícito: em vez de ser explicitamente ou leve ou poderoso, o sagrado pode
permanecer implícito no sentido de não ser abertamente reconhecido como
i i: tal. O exemplo mais contundente disso é a paciente de cura tradicional cuja
resposta ao interesse do entrevistador pela cura religiosa foi a de que ela
realmente nunca tinha pensado que as cerimonias fossem religiosas. Tais
i respostas exigem cuidadosa reconsideração da natureza do sagrado e seu
' papel na cura. A segunda modulação é entre o que podemos chamar de
experiência transcendente e imanente do sagrado e tem a ver com a qualida-
r de sensorial da experiência. A primeira é numinosa, sobrenatural, etérea e
fora do comum, enquanto a última é íntima e encravada no ambiente natu-
ral e/ou mundano. Um exemplo é a diferença entre as imagens reveladoras
I que aparecem transcendentalmente “no olho da mente” (como se numa tela
sem local determinado diante da pessoa), e as imagens que aparecem ima-
nentemente encravadas ou sobrepostas em objetos perceptíveis (como na
aparência de significado na forma de uma nuvem) (Csordas, 2001).
Nós tínhamos concebido a elaboração de alternativas em termos de
possibilidades que se abrem aos pacientes por meio do processo de cura para
a resolução de problemas, sofrimentos ou enfermidades. Um sustentáculo
i

do estudo do pluralismo médico tem sido que as escolhas entre os recursos


de cura são altamente estratégicas e altamente negociadas (Brodwin , 1996;
Comaroff, 1983; Leslie, 1980) - que, na verdade, as pessoas saem em busca

296
Fale com Eles para que Entendam

da melhor solu ção para os seus problemas. Da mesma forma, um sustentá -


^
culo da antropologia c da psiquiatria intercultural tem sido que curaaltera
o significado de um problema! ( Bourguignon , 1976) ou é constitu ída por
essa mudan ça de significado. O que tanto estas quanto as nossas pró prias
formulações pressupuseram é que h á um problema e o significado desse
problema é estável até ser transformado e então resolvido pela retó rica da
cura. O trabalho com os navajos deixa claro que o modo de entender os
problemas em primeiro lugar pode ser um componente tão importante da
elaboração de alternativas quanto o modo de resolvê-los. Antes e indepen-
dentemente da transformação de significado que constitui a eficácia, pode
haver uma redefinição do problema incluindo interpretações mais ou me-
nos elaboradas de causalidade. É esse certamente o caso quando os pacientes
transitam entre formas de cura como a tradicional, a IAN e a cristã, mas
pode também ser o caso dentro de sistemas. Cerim ónias tradicionais suces-
sivas podem redefinir o problema de um paciente de acordo com uma série
de esquemas causais de contaminação, transgressão ou feitiço. Orações de
cura cristãs podem atacar um problema em termos de pecado, feridas emo-
cionais ou aflições demon íacas. Essa reformulação nos permite ir além de
uma documentação de idiomas de sofrimento, redes de enfermidades se-
mânticas e vocabulários de motivos, para mostrar como eles funcionam en-
quanto formas de expressão que definem a especificidade experiential da cura.
fÕ aspecto principal do relato de realização de mudança do modelo foi
cambiar a expectativa de que, seja qual for a eficácia, a cura religiosa deve ser
maciça, s ú bita e miraculosa, para um reconhecimento de que a eficácia muitas
vezes é de natureza incremental e também um consequente foco sobre a
significância de mudanças aparentemente menores ou de pequena escalãjf
Mesmo assim, o que essa formulação ainda não levou em consideração de
maneira adequada em primeiro lugar é a escala do problema e, do ponto de
vista dos ‘participantes, quanta mudan ça é necessária ou desejada como re-
sultado da cura. O modelo pressupõe ainda o objetivo de transformação
maior, independentemente de as mudanças serem incrementais ou não, com
ênfase em um evento de cura maior ou uma série de eventos finalmente
dirigidos a uma mudan ça substancial. O trabalho com os navajos exigiu-
nos o reconhecimento de que, alé m da transformação, a cura ritual pode ser
dirigida à manuten ção, em cujo caso a mudança desejada é menor, ou à

297
-

f 1

i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

interven ção de emergê ncia, em cujo caso a mudan ça desejada pode ser pali-
'; i
'
! ativa, um tipo de triagem para prevenir deterioração ou um rá pido conserto
cura-tudo.

ilill Al ém do refinamento na nossa compreensão de cada componente do


modelo retórico, podemos refinar também a nossa conceituação de sua
inter-relação. Embora possa parecer insignificante, a apresentação da experi-
ência do sagrado, depois em vez de antes da elaboraçã o de alternativas, tem
!! :| i a inten ção de indicar que o sagrado n ão é um precursor ou uma pré-condi-
ção da elaboração, mas é parte integral dela. Da mesma forma, n ós subli-
nharíamos agora que a relação entre os quatro componentes é melhor
concebida n ão como linear ou simplesmente sequencial, mas cíclica de modo
ff que os resultados em termos de mudan ça retornam para alimentar a dispo-
j sição, no sentido de mais participação. Um resultado importante do traba-
|
íd lho carismático inicial (Capítulos Um a Quatro; Csordas, 1994a) foi ter
mostrado que uma compreensão do processo terapê utico n ão pode se limi-
tar a um evento ou cerimónia de cura distinta, mas deve ser levada al ém do
evento ritual de cura até uma determinação de como o processo terapê utico
i :
fica integrado na trajetória de vida do paciente. No trabalho carismático,

i-
essa intuição estava ligada à compreensão religiosa de que “todos precisam
de cura”, uma formulação que ligava explicitamente a cura à totalidade do
processo da vida de crescimento espiritual. No cenário navajo, nós observa -
m mos em todas as três tradições episódios m últiplos de cura estendendo-se
\ ao longo da trajetó ria de vida dos indivíduos. De fato, tornou-se ú til intro-
duzir, entre a noção do evento ritual distinto e da trajetória de vida, um
conceito intermediário de “carreira de cura” (Garrity, 1998) que abarca
m últiplos eventos de cura, episódios de enfermidade e reformulações de
ir 1 problemas já reconhecidos. Finalmente, à medida que avaliamos a contri -
i

-
bui ção do modelo fazendo o dialogar com os dados navajos, vamos colo -
cando a questão crítica de se ele deve ser tomado primordialmente como
descritivo, no sentido de servir como um ú til esboço heurístico da especifi -
cidade expericncial em cura religiosa, ou como avaliató rio, no sentido de
constituir um adequado esboço empírico de critérios de eficácia na cura.
.
Em qualquer um dos casos, fazer uso disso em uma pesquisa futura sobre as
tradi ções de cura ritual talvez possa levar a uma teoria mais abrangente e
experiencialmente relevante de processo terapê utico.
m 298
i ; 1.11
t, 8
CAPÍTULO SETE
A Ferida que nã o Cura*

/o problema do raciocínio causal sobre a enfermidade é uma das ques-


tões perenes da antropologia, atraindo interesse constante desde o tempo de
Tylor (Zempleni, 1985). O sistema etnomédico navajo, um dos mais exten-
sivamente estudados, é conhecido pela preocupação especial com a determi-
nação e a eliminação de causas de enfermidade. Dois aspectos da literatura
sobre os navajos são relevantes para o presente argumento Primeiro, dentro
do sistema navajo os antropólogos identificaram processos etiológicos tais
como feitiçaria, contágio espiritual, encontros com fantasmas e violação de
^
tabu e, na prá tica, classificaram as cerimónias de cura navajo pelos agentes
patogênicos que elas buscam eliminar No entanto, nunca se prestou muita
^
atenção a como esses agentes patogênicos supostamente operam nas pessoas

* A pesquisa relatada neste capitulo recebeu auxílios do Centro Nacional de Pesquisa de


Sa ú de Mental do índio Americano e do Nativo Alasquiano, do Fundo Milton da Escola
de Medicina de Harvard e do Centro Arnold de Pesquisa e Tratamento da Dor. Agradeço
à Margaret Jose, Michael Storck, Beulah Allen , Martha Austin , Roseann Willink , Babette
Daniels, Arthur Kleinman , Spcro Manson , Jerrold Levy, Louise Lamphere, Oswald Werner,
Maty-Jo Delvecchio-Good, Stuart Lind , David Begay, Mike Mitchell , Andy Natonabah,
Wilson Arnoleth , Frank Isaac e os funcion á rios dos hospirais do Serviço de Sa úde do Indio
cm Fort Defiance e Tuba City. Fico especialmente agradecido aos pacientes na reserva
navajo c em Boston que falaram comigo sobre suas enfermidades e sentido pelo falecimento
daqueles que n ão sobreviveram. Este capítulo é dedicado à memó ria de Gregor Allen.
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

ou dentro delas. Segundo, considera-se que a ctnomcdicina navajo n ão tem


uma classifica ção de doenças altamente elaborada que possa emular esses pro-
cessos causais gerais (Werner, 1965); cm princípio, qualquer causa pode origi-
Ui : nar qualquer doen ça. Raramente se reconhece que causas particulares podem
estar associadas com sintomas particulares ou uma desordem particular é iden-
:
:
j!
tificada e analisada (Levy; Neutra; Parker, 1987). Assim, a análise do raciocí-
nio causal tende a parar com a identificação de causas e n ão continua até um
( relato mais completo de causa e efeito.
[Êm contraste com o foco do sistema médico navajo na identificação e
M remoção das causas da enfermidade, o sistema biomédico anglo-americano
é considerado como mais preocupado com a natureza, a classificação e a
remoção de determinadas doenças. A doença na biomedicina é uma entida-
1 í de bem específica que pode ser tratada como uma coisa em si mesma, e
mesmo se for o tipo de doença que pode ser curada simplesmente remo-
vendo sua causa, a própria causa é uma entidade específica em vez de um
processo generalizadõjÉ facil desse ponto de vista chegar à conclusão de que
nosso sistema é caracterizado por especificidade, enquanto sistemas como o
dos navajos são n ã o-específicos. A implicação é que a biomedicina é superi-
* or em virtude de sua precisão, ou que podemos facilmente compreender
; sistemas não-específicos porque eles obviamente curam através de mecanis-
mos n ão-específicos como o efeito placebo ou a catarse.
A questão que continua não sendo colocada é se outros sistemas médi-
cos que n ão a biomedicina apresentam diferentes tipos de especificidade no
raciocínio sobre causa e efeito. Essa questão é complicada por estudos re-
centes, sugerindo que sistemas de causas (etiologias) e sistemas de doen ças
(nosologias) n ão são tão diferentes como se poderia desejar para fins anal íti-
cos. Foi mostrado entre os evuzok africanos (Guimera, 1978) e os iranianos
(Good; Delvecchio-Good, 1982) que as classificações de doen ça podem
incluir simultaneamente categorias que se referem a causa e que descrevem
padrões de sintomas. Se no passado n ós confundimos categorias etiológicas
com nomes descritivos de enfermidades, podemos também ter cometido o
erro de deixar escapar os elementos descritivos em coisas consideradas como
. puras categorias etiol ógicas.
! Proponho neste capítulo que a análise de especificidade de causa e efei-
to seja baseada nos processos corporais concretos que dizem ser iniciados

300
II
I '
• :
A Ferida que nã o Cura

por (freqiientemente abstratos) agentes causais e que dizem caracterizar (iguai-


mente abstratas) docn ças.90,(Eu focalizo o câ ncer, uma doen ça para a qual as
causas são incertas e as manifestações são m ú ltiplas, c examino como ele foi
incorporado ao raciocínio m édico dos navajos contemporâ neos. Em segui-
da examino o raciocínio causal navajo sobre o câncer, baseado em como
pacientes navajos que passaram eles próprios pela experiência da doença
interpretam as circunstâncias, e comparo meus resultados com os equiva-
lentes de pacientes de câ ncer anglo-americanos. Ao focar em relâmpagos, a
causa mais frequente e mais culturalmente distinta citada por pacientes na-
vajos, discuto então a natureza da relação de causa e efeito entre relâmpagos
e câncer. Seguindo um breve resumo do problema da especificidade nestas
três áreas - definindo uma categoria de doen ça, atribuição causal , e causa e
efeito - concluo com uma discussão de quatro questões pragmá ticas e me-
todológicas levantadas pelo problema do raciocínio causal sobre a enfermi-
dade. Essas questões são definidas em termos de distinções conceituais entre
causa e sintoma, entre doença como entidade ou como processo, entre sis-
temas biom édico e etnomédico tradicional, e entre corpo e mentej

Câ ncer entre os navajos e os anglo- americanos

Os índices de incidê ncia de câncer entre americanos nativos permane-


cem normalmente abaixo dos da população dos Estados Unidos em geral.
Del 978 al 981, a incid ência de casos malignos em todos os locais anatô-
micos na população dos EUA em geral foi de 337,9 por 100.000. Nesse
mesmo período no estado do Novo México (onde reside grande pane da
população navajo) a incid ê ncia foi menor, de 2S5.2, mas entre os america-
nos nativos no Novo México (incluindo outros grupos e também os nava-
jos) a incid ência foi de apenas 164,2 (Horn et al., 1984).

50
Essa posi ção vem da formulação de Kleinman ( 19S0) do “modelo explanatório" de um
episódio de enfermidade, que indui não apenas atribuições causais perse, mas a compreensão
da pessoa afligida da patofisiologia e também do curso da enfermidade. Esses aspectos
foram minimizados por pesquisadores que afirmavam utilizar o modelo de Kleinman.

301
m
í í !
I! CORPO / SIGNIPICADO / CURA

Alé m dessa diferen ça quantitativa na incidência total, os índices de


diferentes tipos de câncer variam entre os navajos c a populaçã o dos Estados
Unidos em geral . Os médicos do Serviço de Sa ú de do índio falam geral-
mente em índices relativamentc mais altos para navajo de câ nceres gastroin-
| testinais (estômago, cólon, reto), câ nceres urológicos ( bexiga c rins) , c câ ncer
cervical, junto com índices muito mais baixos de câ ncer de pulm ão (confira
Kunitz; Levy, 1981, p. 353). Os índices mais altos de alguns câ nceres fo-
ram atribu ídos a fatores dietéticos ou à presen ça de elementos carcinogcni-
. cos no ambiente; o índice mais baixo de câncer de pulm ão (exceto entre
trabalhadores em minas de urânio) é atribu ído à virtual inexistência de fu-
mantes de cigarros entre os navajos. A relativa prevalência de diferentes cân-
i
ceres entre os navajos é apresentada na Tabela 7.1, com base em n ú meros
para a Reserva navajo fornecidos pelo Registro de Tumores do Novo Méxi-
f co. Sobre um denominador de 150.000, a prevalência total de câncer entre
os navajos seria de 0,63 por cento.91
De acordo com os n úmeros citados por Kunitz (1983, p. 67), os índi-
ces de alta hospitalar para neoplasmas malignos em 1972 eram 23,3 por
5 {j 10.000 para os navajos, enquanto ficavam em 102,8 por 10.000 para os
Estados Unidos como um todo e em 97 por 10.000 para o Oeste dos
: Estados Unidos. As taxas de mortalidade por 100.000 para os navajos fo-
ram 24 a 27 de 1954 a 1956; 46 a 48 de 1965 a 1967; e 35 a 41 de 1973 a
1975. Para a população dos EUA em geral, a taxa de mortalidade em 1976
foi 132,3 por 100.000; a porcentagem de mortalidade total por neoplas-
mas malignos em meados da década de 1970 foi de apenas 5,8 por cento
para os navajos, enquanto chegou a 21 por cento para a população dos EUA
em geral (Kunitz, 19.83, p. 65).

! Jl A cabeia não mostra índices de prevalência nem de incidência , mas sim a preval ê ncia real de
casos em um momento específico, quando a presente pesquisa foi conduzida . Portanto , é
preciso ter cuidado, por exemplo, ao interpretar os n úmeros relativamente inflados de
câncer cervical . As diferenças na prevalência de diferentes tipos de câ ncer podem em
grande parte ser atribu ídas a diferentes durações ( tempos de sobrevivência ) e índices de
cura, à amplitude dos programas de dctecção e/ou à porcentagem de falsos positivos em
testes diagn ósticos.

302
A Ferida que n á o Cura

Tabela 7.1 Proporção dc diagnósticos dc câncer por local anatômico para pacientes navajos:
junho 1986

Local prim á rio de c â ncer Porcentagem Número de casos

Olho 5
Boca 1 9
Garganta /nariz 0 4
Cérebro 1 6
Tireóide/pituitá ria 5 50
Outras partes não especificadas do sistema nervoso 0 2
Estômago 1 12
Cólon/reto 4 38
Fígado/pâncreas 1 8
Vesícula biliar 1 10
Rins 2 20
Bexiga 0 4
Brônquios/pulmão 1 5
Sinus/laringe 0 3
Sangue 2 15
Nódulos linfáticos 1 7
Osso/articulaçõ es/cartilagem 1 9
Tecido conectivo, subcutâneo e outros tecidos moles 2 17
Pele 1 8
Mama (feminina) 6 55
Útero (cérvix ) 47 447
Placenta /ovário/vagina /vulva 17 157
Próstata/testículos 5 48
Especial 1
1 5
Local primário desconhecido 1 5
b
Total 102 949

Fonte: baseado em dados fornecidos pelo Registro de Tumores do Novo México para todas as
unidades do Serviço de Saúde do Indio da Reserva Navajo.
* Locais Interpostos em nasofaringe (um caso), em pâ ncreas (um caso), em bexiga (trés casos).
6
Mais de 100 por cento devido a arredondamento.

303
mill
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

! Apesar dos índices totais de câ ncer mais baixos para os navajos cm


comparação com a população dos Estados Unidos em geral , a discussão
anterior indica um aumento constante ao longo do século. Isso pode ser
f :! i entendido em termos da teoria da transição epidemiol ógica, que sugere que
iMJif
1 I }( i : ! I ; |
as "sociedades em desenvolvimento”, entre as quais a sociedade navajo pode
em alguns aspectos ser inclu ída, apresentam uma mudança da proeminên-
n i ' 1
;

cia de doen ças infecciosas e parasíticas para doen ças cró nicas degenerativas c
produzidas pelo homem ( Broudy; May, 19S3). Uma explicação um pouco
mais simples é a sobrevivência de um maior n ú mero de idosos navajos com
deficiências crónicas, sobrevivência essa ocasionada pela melhoria gradual
dos cuidados médicos que eliminaram causas primárias de mortalidade como
a tuberculose (Kunitz; Levy, 1981). Para nossos propósitos imediatos, bas-
if; tará dizer que, embora o câncer não esteja de forma alguma entre as causas
principais de mortalidade navajo, o aumento gradual da incid ência de cân-
cer n ão passou despercebido entre os navajos e é portanto uma fonte cres-
if ?(
mr cente de preocupação.
A parte navajo desse estudo foi conduzida entre pacientes de câncer
que utilizaram dois hospitais do Serviço de Saúde Pú blica na reserva navajo,

m-:' \\ os de Fort Defiance e Tuba City (Figura 7.1).

!' !!
í 1
1
UTAH COLORADO

:
' - I NOVO M ÉXICO

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.

1
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L TonDífiarKe
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!1
ARIZONA
• = ddade ou comunidade
=
» local de resid ência

'
Figura 7.1 Locais aproximados de residência de pacientes em 1988
{• t í
í
í; 304
A Ferida que nã o Cura

Esses dois hospitais ficam cm diferentes regiões das terras navajos, e os


pacientes que eles atendem representam , pois, uma gama da diversidade
interna à sociedade navajo. A á rea onde Fort Defiance se localiza é mais
densamente povoada do que a do hospital de Tuba City e tem mais flores-
tas e á reas verdes; seus habitantes est ão mais familiarizados com a sociedade
anglo-americana. Em contraste, a á rida parte ocidental em torno de Tuba
City é mais esparsamente povoada e seus habitantes estão mais acostuma-
dos com um estilo de vida navajo tradicional. A orientação mais tradicional
do Oeste é corroborada pela maior proporção de pacientes de Tuba City
que falavam a l íngua navajo, eram adeptos da religião navajo e tinham me-
nos educação formal (Tabela 7.2). Alé m de reunir dados de pacientes, eu
também fiz entrevistas sobre o conhecimento tradicional mais especializa-
do a respeito do câ ncer com quatro curandeiros biculturais que trabalha-
vam també m como professores no sistema p ú blico de educação.92
O grupo de comparação em Boston foi formado com pacientes em
radioterapia no Hospital Geral de Massachusetts.93 Os 55 pacientes eram
predominantemente euro-americanos; 10 eram negros norte-americanos, e
2 eram negros haitianos. A demografia dos grupos de comparação (Tabela
7.2) indica as diferenças esperadas em n ível de educação, com o grupo de
Boston consideravelmente mais educado, e em aderência religiosa, especial-
mente com relação ao n ú mero no grupo de Boston indicando nenhuma
aderência. A distribuição dos tipos de câncer (Tabela 7.3) está de acordo
com a diferença esperada entre os navajos e os anglos, com os primeiros

92
Para os propósitos dessa pesquisa , desenvolvi uma ferramenta para respostas espontâneas
elaborando sobre o modelo de entrevista expositiva para casos especí ficos de enfermidade
desenvolvido por Kleinman (1980) . A entrevista cobriu uma variedade de aspectos de
experiência de enfermidade e comunicação paciente-médico e forneceu dados sobre
causalidade para ambos os grupos . A versão inglesa original foi traduzida para o navajo e
revisada mais tarde à luz das adaptações em conceitos e em sintaxe que se tornaram necessárias
na preparação da versão navajo . Os navajos que preferiram ser entrevistados em inglês
receberam a mesma versão da entrevista que os membros do grupo de Boston receberam.
53 O
estudo de Boston , usando protocolos de entrevista paralelos, foi conduzido por uma
equipe chefiada por Mary-Jo Delvecchio-Good e incluindo o presente autor. Os resultados
desse trabalho foram relatados em Delvecchio- Good et al. ( 1990, 1993, 1994).

305
Itfl
r M CORPO / SIGNIFICADO / CURA

apresentando relativamente inais doenças dos tratos digestivo c reprodutivo


! feminino c uma ausência de câncer do pulmão.
iliI. 1

3 ií Tabela 7.2 Sumário dc caractcrísticas dos pacientes


I í

ir '

Boston

* (iiií
Fort Defiance Tuba City
Dados demográ ficos N = 55
N = 12 N 16=
Masculino 6 7 25
, Feminino 6 9 30
• p
I
Faixa etá ria 19 86 - 27 82 - 19 78-
Língua da entrevista
!
navajo 4 12 0

inglês 8 4 55
Estado civil
casado(a ) 6 11 32
vi ú vo(a) 2 1 5
I!
i; divorciado(a )/separado(a ) 4
2 1
solteiro(a) 2 3 14

\\m Educa çã o
diploma superior 0 0 3
faculdade 2 0 16
escola secund á ria 5 3 20
menos que escola secund á ria 2 3 9
nenhuma 3 10 (em falta ) 7
\ Religiã o

' 0
navajo 3 8
Igreja Americana Nativa 1 4 0
j católica 3 0 18
protestante 4 4 13
I m órmon 1 0 0
judaica 0 0 6
ortodoxa grega 0 0 1
*
nenhuma ou em falta 0 0 17
'
l
i
306
;
A Ferida que nã o Cura

Tabela 7.3 Sumário dos tipos dc câncer

Fort Defiance Tuba City Boston


Tipo de câncer N = 12 N = 16 N = 55

Endometrial 1 0 0
Cervical 1 1 0
Ovário 1 0 0
Mama 3 4 19
Testículo/pr óstata 2 5
Estômago 2 0 2
Cólon/reto 0 2 6
Fígado/vesícula biliar/pâ ncreas 0 0 3
Rins/bexiga 0 4 3
Tireoide 0 1 0
Linfoma 1 2 1
Cérebro/sistema nervoso central 1 0 2
Leucemia 0 1 0
Pulmão 0 0 8
Ossos/tecidos moles 0 0 4
Desconhecido 0 0 2

Esta diferença sugere que, em geral, os grupos de comparação são diag-


nosticamente representativos de suas respectivas populações, apesar do ta-
manho relativamente pequeno dos grupos pelos padrões epidemiológicos.

Concep çõ es navajos de c â ncer

Não se sabe quando o conceito anglo-americano de “câncer” como


uma doença passou a ser amplamente conhecido entre os navajos. Um estu-
do de 4826 hospitalizações no Hospital Memorial Sage na década de 1930
informou apenas três casos de carcinoma cervical em mulheres idosas e um
caso de sarcoma, representando apenas 0,0S por cento das hospitalizações

307
I
!
CORTO / SIGNIFICADO / CURA

I
.
(Salisbury, 1937). Rcichard (1950, p 97) cita dois casos, provavelmente da
década de 1940, um de câ ncer de mama e um de um homem diagnosticado
i com câ ncer terminal do reto que foi curado por um curandeiro tradicional.
Na d écada de 1960 um surto de câ ncer de pulm ã o amplamente divulgado
í ocorreu entre mineiros de urânio navajo (Gottlieb; Huscn , 1982) . Esse
evento contribuiu muito provavelmente para disseminar o termo ingl ês
1

ii; “cancer” entre os navajos. Na década de 1970 funcion á rios do Serviço dc
; Sa úde do índio da Área Navajo, em colaboração com curandeiros tradicio -
nais, iniciaram um projeto de controle de câ ncer com o objetivo dc aumen -
!1 '
I!
- tar a cooperação entre os dois sistemas de sa ú de. Uma das metas principais
era convencer os curandeiros a encaminhar os pacientes de câncer para trata-
i
!l mento m édico simultâneo, em vez de esperar para ver se uma cerim ónia
, tradicional surtia efeito.
Um requisito para a validade da comparação intercultural é determi-
ii nar se existe um conceito indígena paralelo àquele de câncer como um tipo
distinto de enfermidade. Com certeza, embora os oncologistas tecnicamen-
te considerem cada câncer como uma doen ça separada, a cultura popular
!I americana reconhece o câncer como uma entidade global. Afora os contatos
;
com a biomedicina cosmopolita, nã o h á nenhuma necessidade imediata de
if :
um sistema nosol ógico ind ígena classificar câ nceres que afetam diferentes
partes do corpo com manifestações sintomáticas diferentes como perten-
I centes à mesma categoria nosológica. Além disso, é relevante lembrar a ob-
1 t servação de Werner (1965) de que a língua navajo nunca teve uma longa
lista de nomes de doenças, mas sim uma série de maneiras sobrepostas e
conotativas de descrever e se referir à mol éstia e à dor. Assim, tampouco há
uma necessidade imediata de o câncer ser diferenciado como uma entidade
i
de doen ça distinta em primeiro lugar.
Os curandeiros biculturais consultados colocaram a origem do câncer,
junto com outras doen ças, na segunda criação m ítica, o mundo amarelo.
í
Uma dimensão dessa origem está em abusos sexuais cometidos pelos habi-
tantes do mundo amarelo, tais como incesto, homossexualismo e transexu -
alismo, e, dessa forma, o câ ncer é ligado às doen ças ven éreas. Uma segunda
dimensão é a tentativa equivocada dos habitantes de controlar a natureza e o
ti consequente mau uso que eles fazem das forças naturais como radia çã o e
eletricidade, e dessa forma os navajos entendem por que os hospitais tratam

l 308

LIl f
A Ferida que n ã o Cura

o câ ncer com radia ção c produtos qu ímicos perigosos. Ao mesmo tempo,


um curandeiro especulou que os termos navajos contemporâneos mais co -
muns para câ ncer são provavelmente de origem recente (“cu não sei, eu não
estava na reuni ão em que aquelas palavras foram escolhidas") , talvez cunha-
dos por pessoas traduzindo para os m édicos.
Na verdade, h á dois termos principais na l íngua navajo que denotam
câncer. Tanto lóód doo nádziihii (ferida que n ão cura) como nááldzid (que
vai apodrecendo) são comuns e igualmente usados por pacientes e profissi -
onais de sa úde navajo. O dicion á rio Young e Morgan (1987) dá “podre,
gangrena e câncer” como traduções equivalentes da palavra nááldzid c para
câncer ele especifica nááldzid k’eeaa nooséelii (o podre que se espalha en-
quanto cresce) . Um curandeiro afirmou que nááldzid era o ú nico termo
navajo correto para câncer, enquanto lóód doo nádziihii era um termo geral
que podia significar qualquer tipo de ferida que não cura. Um outro reco -
nheceu ambos os nomes, mas diferenciou-os como dois tipos de doen ça.
No seu léxico médico, Austin ([s.d.]) inclui o termo lóódtsoh (grande
ferida) como uma tradu ção de câncer, enquanto Young e Morgan (1987)
usam o mesmo termo para denotar varíola. O termo lóód na ‘agháazhii
(ferida que te come por dentro) foi citado por um profissional de sa ú de
navajo e por um curandeiro referindo-se ao câncer. O Young e Morgan
(1987) novamente discorda, traduzindo esse termo como “ úlcera”. Lóód
doo yitunii (ferida que você não pode ver) também foi citado por um cu-
randeiro. No termo nákid doo yit’iinii , a palavra nákid refere-se a pequenos
vermes ou bichos de doenças sexualmente transmitidas, que criam feridas e
causam apodrecimento vistos como relacionados ao câncer. No entanto, ne -
nhum desses termos parece ser comum no uso popular ou profissional atual.
/ Seja qual for a relação correta entre os termos, como um tipo de doença
no sistema navajo, o câncer tendeu a tornar-se uma categoria etiológica com -
posta, em vez de puramente descritiva (Good; Delvecchio-Good , 1982).
Embora os navajos reconheçam que o câ ncer pode ocorrer em diferentes par-
tes do corpo e afetar diferentes partes nos homens e nas mulheres, não é
exatamente assim que eles entenderiam a expressão “diferentes cânceres”. Em
lugar disso, essa expressão foi descrita como um termo composto no sentido
etiológico: o câ ncer “causado por cobras, por tornados ou por bichos [germes,
sexualmente transmitidos], tudo isso junto é chamado de nááldzid

309
..

CORTO / SIGNIFICADO / CURA


í
É evidente, porém , que os termos navajos conceituam o câ ncer mais
í :í !
como uma ferida do que como uma inchação ou um tumor. De fato, um
í outro curandeiro, falando em ingl ês, indicou uma semelhan ça entre câ ncer
Hl :
e bolhas. Existem neologismos para tumor apenas no vocabulá rio técnico
preparado por Austin ( doo ákôt'écgóô diniséehgo, “massa”) c no dicion á rio de
Young c Morgan ( '!atsibnmiltsid,. “massa compacta dentro da carne”). Essa
diferen ça fundamental entre as concepções navajos e anglas pode ser atribu-
ída a mais de uma fonte. Uma ferida externa é entendida imediatamente
como um processo visível. Da mesma forma, o apodrecimento é um pro-
cesso visível bastante comum para as pessoas que vivem perto de animais
I domesticados ou não, um processo que, além disso, poderia facilmente ser
' extrapolado para a noção de deterioração como um processo interno, invi-
sível. Mesmo assim , apenas a visibilidade e o fato de ser comum não bas-
tam para explicar a diferença entre as concepções navajos e anglas, pois muitos
tumores podem ser apalpados e o abate dé animais para carnear poderia
produzir conhecimento de inchações patológicas internas. Eu sugeriria, em

li: í
' vez disso, que a inchação negativa, sem controle, é uma metáfora menos
evidente para os navajos do que para nós mesmos. No pensamento navajo,
o crescimento é inerentemente positivo, enquanto a degeneração e a deteri-
i I ; oração são processos caracteristicamente negativos. A concepção navajo tra-
dicional do ciclo da vida é de energia ascendente e realizações até os 50 anos
de idade e declínio e deterioração progressivos até os 100 anos. Conceber o
câncer como algo que “vai apodrecendo” é mais coerente com essa visão, ao
; passo que nossa própria concepção de “inchação sem controle” é coerente
'
com o nosso medo da natureza (e sociedade) fora de controle. Até mesmo
i
a única paciente navajo que usou a palavra “tumor ”, quando foi questiona -
l
da sobre sua percepçã o de como a doença funcionava no seu corpo (patofi -
siologia), respondeu que provavelmente ela “estava me comendo por dentro”.
1: / Aimplicação mais ampla desse argumento é para o papel da metáfora
í na relação entre cultura e enfermidade. As enfermidades n ão apenas podem
.
ser usadas como metáforas de sociedade e processo social, como foi defen -
dido por Sontag (1978) e outros, mas os próprios processos e características
:
r
atribu ídos às enfermidades e depois projetados nas situações sociais são for -
: mulados em termos de metáforas culturais dominantes (Lalcoff; Johnson ,
-
ri: i 1980). Isso não quer dizer, por exemplo, que nossa percepção da tubérculo

í : 310
! Í1
A Ferida que n á o Cura

se está mudada por cia n ão ser mais associada com a paixão febril e a criati-
vidade. Nós ainda podemos conceber a tuberculose como um tipo de pro-
cesso “consumptivo” mesmo se n ão damos mais a mesma conotação à
consumpção. Em vez disso, se uma doença é uma metáfora apropriada para
certos processos sociais, é apenas porque sua patofisiologia já foi lan çada em
metá foras geradas no processo de vida social, metáforas essas que podem
não se apresentar como tal em outra sociedade. Assim a relação metafó rica
entre culturas e enfermidades deve ser entendida como rec íproca /
Para retornar à questão mais imediata, todavia, precisamos determinar
se a concepção navajo nativa admite a possibilidade de o câncer ser curável
ou invariavelmente fatal. Essa pergunta está vinculada à questão, frequente-
mente levantada por profissionais de sa ú de da reserva, de se os navajos ten-
dem a “negar” enfermidades sérias como o câncer. Na elaboração da entrevista,
vários consultores navajos desaconselharam qualquer referência direta a pos-
sível morte e menção específica do termo “câncer”, pois fazer isso poderia
parecer aos pacientes uma invocação da doença e da morte. Na verdade,
poucos pacientes hesitaram em nomear sua enfermidade quando foi per-
guntado qual era ela, embora apenas um paciente tenha se referido explici-
tamente à imin ê ncia da morte. Apenas uma paciente, que só tinha
concordado em fazer uma histerectomia no tratamento de câncer uterino
depois que a dor e o sangramento se agravaram, demonstrou abertamente
um grau de negação, e mesmo ela reconheceu que sua enfermidade “teria
virado câncer” se não tivesse feito a cirurgia.
Para nós, a noção de negação implica acima de tudo um processo ina-
dequado de enfrentamento da morte iminente. Evitar referências e pensa-
mentos sobre a morte pode parecer muito diferente do ponto de vista navajo.
Quando questionados sobre como a enfermidade afetava os seus pensa-
mentos, era comum os pacientes navajos insistirem que eles só pensavam
em ficar bem , dando a entender que capitular à inevitabilidade da morte era
uma atitude moralmente inapropriada. De maneira semelhante, um educa-
dor de sa úde navajo expressou admiração por um tio que morrera de câncer
exatamente porque o tio “nunca perdeu a esperan ça” até a hora da morte.
Essa atitude sugere que em certo sentido seria incorreto reconhecer qual-
quer doença como necessariamente fatal, mesmo que tal temor esteja im-
plícito.

311
V
-
if

! CoRro / SIGNIFICADO / CURA

A questão da curabilidadc é mais complexa. Dos quatro pacientes dc


i . câ ncer navajo que n ão puderam especificar o nome dc sua enfermidade, um
referiu-se a ela como ddo bidêêlniinii (aquilo que n ã o é curável ) , e uma
Ui outra enfatizou que sua doen ça n ã o podia ser “a ferida que n ão cura” { lóód
doo nádziihii), pois agora ela estava curada. Mais evid ê ncias indiretas vem
!
í da resposta à questão de como as cerim ó nias de cura tradicionais e ervas
medicinais podem ter ajudado. Apenas dois pacientes afirmaram terem sido
) curados definitivamente, um por ervas tradicionais e um por peiote. Vários
i.
: outros declararam que a evidência da eficácia cerimonial devia ser encontra-
, da n ão na cura deles, mas no simples fato de eles ainda estarem vivos. Em-
bora n ão sejam de forma alguma definitivas, essas afirmações referem-se de
' imediato a um critério liberal de eficácia e també m ao reconhecimento da
possibilidade de morte iminente, enquanto deixam em aberto a questão da
curabilidade.
Na perspectiva especializada de curandeiros biculturais, a doen ça é cu-
rável. Um curandeiro que diferenciou nááldzid e lóód doo nádziihii como
dois tipos de doen ça afirmou que cada uma tem uma cura com ervas dife-
rentes. A nááldzid é curada com azee hááldzid, literalmente “rem édio para
apodrecimento”, que dizem ter um odor pungente como alguma coisa es-
tragada. A lóód doo nádziihii é curada pelo yiyáanii, “aquilo que come ou
l seca o pus”. Vários pacientes de câncer relataram terem sido tratados com
este último rem édio, embora ele pareça ser mais amplamente utilizado no
t tratamento de infecções e para pacientes que passaram por cirurgia. Segui-
dores da Igreja Americana Nativa afirmam que o peiote pode curar o cân-
cer, e as narrativas de tais curas lembram os testemunhos de cura cristã.
Finalmente, um curandeiro citou uma cura tradicional para o câncer, co-
r nhecida pelos povos hopi, zuni, laguna e ute, mas, em grande parte, “esque-
cida” pelos navajos, na qual um cão é sacrificado ritualmente e o remédio é
preparado com a sua gordura.
Um depoimento mais geral vem de um curandeiro informante de Adair,
Deutschle e McDermott (1957), que citou três categorias ad hoc de curabi -
lidade: 1 ) doen ças, como tuberculose, das quais os curandeiros desistiram ,

deixando para os médicos brancos ou seja, doen ças contagiosas intratá
veis; 2) moléstias causadas por chegar perto de locais atingidos por raios, as
-
quais os curandeiros podem curar; e 3) enfermidades como envenenamento

312
A Ferida que ná o Cura

p0 r mordida dc cobra , que tanto curandeiros como médicos brancos po-


dem curar. Combinado com a declaraçã o relatada acima de que o câncer se
origina em parte do abuso de energia radiante por habitantes de um mundo
m ítico anterior, esse depoimento prefigura o que se tornará minha principal
questão etnográfica , o papel dos rel â mpagos no raciocínio causal navajo
tradicional sobre o câ ncer.
yfem resumo, o câ ncer é entendido como sendo de origem m ítica junto
com outras doenças, embora os termos que o denotam sejam de origem
contemporânea. O conceito navajo de câncer é diferenciado no sentido de
que ele define a característica processual da doen ça não no idioma de cresci-
mento, mas no idioma de apodrecimento, de modo que o câncer é entendi-
do como parte de uma classe mais ampla de “feridas que não curam” e “vão
apodrecendo”. Ao mesmo tempo, com relação ao seu uso na biomedicina,
“câncer” parece ter sido transformado de uma categoria puramente descriti-
va em categoria etiológica composta na medida em que foi incorporado ao
sistema médico navajo contemporâneo. Embora reconhecido como algu-
mas vezes fatal, o câncer pode também ser curado. Para avançar no sentido
de compreender o significado existencial e cultural do câncer na experiência
navajo, todavia, precisamos examinar o raciocínio causal navajo sobre a
doençaj

Interpreta çã o causal do câ ncer

As teorias navajos tradicionais de etiologia da doença foram resumidas


por Wyman e Kluckhohn (1938) sob o conceito de “infecção”, embora um
conceito contemporâ neo mais apropriado pareça ser “contaminação”. Nas
formulações de Wyman e Kluckhohn (1938, p. 13-15), a doença pode
resultar de exposição a animais, fenômenos naturais, cerimoniais, espíritos
malignos e inimigos ou alien ígenas, com a feitiçaria como uma fonte adici-
onal de enfermidade. Kunitz e Levy (19S1, p. 356-360) fazem uma abor-
dagem um pouco diferente, distinguindo processos etiológicos de agentes e
incluindo outros processos alé m da infecção. Assim a enfermidade pode
resultar da perda da alma, intrusão de espíritos ou objetos alienígenas em
uma pessoa, violação de restrições rituais e feitiçaria. Qualquer um desses

313
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4*

Tabcla 7.4 Interpretação causal do cancer entre pacientes navajos

Causa Informante
1 2 3 4 5 Ct
6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28

Lesã o XXX X X X X X X X X X X X X -
Relâ mpago XXX X X X X XXX X
Feitiç aria X X X X X X X X X
Fadiga X X X X X X X
Dieta X X X X X
Violaçã o de - X X X X X
animal
Ambiente X X X X
Medica ção X X X
Heredita- X X X
riedade
Álcool X X
Estresse X
Enfermidade - X
Velhice X

Cerimónia X
Não sabe X X X

Total pessoal 4 5 6 0 4 4 0 2 1 4 2 5 2 2 2 0 1 1 4 3 2 1 5 2 3 1 1 1
de causas l
A Ferida que nã o Cura

processos pode ocorrer por meio de agentes específicos, inclusive animais


perigosos, fen ô menos naturais como raios, exposiçã o à cerim ónias podero-
sas executadas incorrctamcnte ou conduzidas quando um participante está
em estado de fraqueza e espíritos malignos ou fantasmas. O relato de Rci-
chard (1950, p. 80-82) inclui a influ ê ncia de monstros da idade m ítica
completamente sepultados e a malevol ê ncia de deidades inconfiáveis, e nota
o papel de fraquezas humanas como ignorâ ncia de comportamento apro-
priado, condições ou estados perigosamente enfraquecidos e, especialmen-
te, excesso em qualquer atividade. Luckert (1975, p. 151-162) propõe uma
tipologia de teorias navajos da doen ça e da cura menos baseada na etiologia
e mais em um tipo de patofisiologia fundada numa etnopsicologia da pes-
soa, incluindo transformação e retransformação, fragmentação e remonta-
gem, submersão e emersão, infecção e catarse, e separação e unificação.
Minhas descobertas sobre as explanações navajos das causas de câncer
(Tabela 7.4) devem ser compreendidas contra o pano de fundo dessa diver-
sidade de causas e efeitos elaborada no interior do sistema tradicional. Ao
mesmo tempo, o possível papel de causas naturais ou não-rituais n ão inclu-
ídas em relatos etnográficos precisa ser considerado, bem como a interaçã o
entre as etiologias navajos e aquelas da biomedicina e da cultura m édica
popular da Amé rica do Norte contemporânea. A lesão, principal causa cita-
da, cria um problema imediato a esse respeito, pois os navajos tradicional-
mente diferenciam entre estar “machucado” e “doente”, e uma categoria
especial de cerimónias navajos (Caminho da Vida) é dirigido a lesões (Wy-
man; Kluckhohn, 1938). No entanto, a ideia de que uma lesão pode “virar
câ ncer” parece ser compat ível com a compreensão de que tal lesão pode n ão
se curar adequadamente - ou seja, ela poderia se tornar uma ferida que não
cura ou vai apodrecendo. Os relâmpagos, aos quais eu voltarei mais adiante,
a feitiçaria e a violação de animais correspondem aos padrões tradicionais de
infecção por forças poderosas e perigosas. A fadiga é compreensível como
uma causa de câ ncer em termos tanto do conceito tradicional de vulnerabi-
lidade de um estado enfraquecido como da compreensão tradicional de que
a velhice e a morte são o resultado de um desgaste gradual e da exaustão. A
dieta, o ambiente e a medicaçã o, por outro lado, são tipicamente associados
com as condições contemporâ neas de mudança na vida tradicional, referin-
do-se, respectivamente, ao aumento do consumo de alimentos altamente

315

: CORPO / SIGNIFICADO / CURA
i !
calóricos, pouco nutritivos e com aditivos, à poluição ambiental c aos efei-
I tos colaterais adversos do tratamento biom édico. A hereditariedade é um
!I caso especial aqui, pois dois dos três pacientes navajos que a citaram vieram
de uma fam ília extensa na qual havia a presença documentada de um raro
;
"
i; câncer de cólon de base gen ética. O consumo de álcool, estresse, enfermida-
;
de e velhice foram citados raramente, e o ú nico caso de contaminação ceri-
monial foi relatado pelo único curandeiro entre nossos pacientes informantes,
que declarou que o in ício do seu linfoma ocorreu pouco depois de ele exe-
cutar uma cerimó nia para uma mulher com uma inflamação na garganta.
Esses dados navajos são colocados em perspectiva intercultural pelos
dados comparativos apresentados na Tabela 7.5. Para os dados anglo-ameri-
t i\ canos, foi possível distinguir respostas às questões de o que os pacientes
acreditavam ser a “causa” de sua doen ça e quais outros fatores eles pensavam
I estar “relacionados” à sua doença, ao passo que as dificuldades linguística e
conceituais tornaram tal análise impossível para os dados navajos. Assim,
para os pacientes anglo-americanos, a causa mais frequentemente citada foi
hereditariedade, enquanto o fator relacionado mais frequentemente citado
foi o estresse. Quando “causas” e “fatores relacionados” são colapsados em
uma ú nica categoria, os dez principais elementos de interpretação causal
citados pelos pacientes anglo-americanos foram estresse, hereditariedade,
lesão, fumo, álcool, dieta, medicação, enfermidade, raios X e estilo de vida,
nessa ordem. Apenas cinco desses elementos principais apareceram també m
entre as dez causas de câncer mais freq ú entemente citadas pelos navajos, e
; eles apareceram em uma ordem de prioridade muito diferente. É preciso ter
: cuidado ao interpretar essas diferenças, todavia, como fica evidente contras-
' tando nossos resultados com os de Linn, Linn e Stein (1982) sobre crenças
enológicas entre pacientes de câncer anglo-americanos. Naquele estudo, tanto
hereditariedade quanto estresse foram citados, mas em quarto e sé timo lu-

gar, respectivamente. Os três elementos principais foram fumo, vontade de
; ;
Deus e tipo de trabalho (em contraste com os elementos principais de es-
tresse, hereditariedade e lesão no presente estudo), e apenas seis dos dez
elementos principais foram citados também por meus consultantes anglo-
: americanos.
i, I: !
:

H 316
A Ferida que ná
^
oj

explanação causal de câncer navajo c anglo


Tabela 7.5 Comparação tlc

Navajo Anglo "relacionado" Anglo "causado"


Causa N = 28 N = 50 N = 49

15 5 4
Lesão
11 0 0
Relâmpagos
9 0 0
Feitiçaria
7 0 0
Fadiga
5 3 2
Dieta
5 0 0
Violaçã o de animal
4 1 1
Ambiente
Medicaçã o 3 5 0
Hereditariedade 3 0 14
Álcool 2 5 2
Estresse 1 13 4

Enfermidade 1 1 4
Velhice 1 0 0
Cerimónia 1 0 0
Peso 0 1 0
Dist úrbio psicológico 0 2 0
Estilo de vida 0 •
3 0
Fumo 0 5 3
Raios X 0 2 1
Contágio 0 1 0
Implante de seio 0 1 0
Má sorte 0 0 2
Total 68 48 37

Nota: os Ns 50 e 49 para anglos excluem pacientes para os quais nã o havia dados sobre
interpreta çã o causal.

No entanto, ainda é significativo que os navajos tenham citado a ex-


posição a rel âmpagos, feitiçaria , fadiga, velhice, violação de animais e conta-
minação cerimonial como causas de câncer - causas que não apenas estavam

317
f
r < *

i
if !I

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

i 1
ausentes nos dados anglo-americanos, mas tambdm na sua maioria cram
íj i
proeminentes nos dados navajos. O principal elemento cm comum que
requer interpretação do construto causal dos dois grupos d a lesão. Uma
! !!
I hipótese experimental é que, assim como a atribuição navajo pode ser base-
ii ada na concepção cultural de que uma lesã o pode se tornar uma ferida que
n ão cura, a atribuição anglo-americana tambdm pode ser baseada na con-
1 :ii 1

cepção cultural de que uma lesã o pode dar in ício a um processo de cresci-
mento anormal, assumindo uma analogia entre o “inchaço” causado pela
lesão e um tumor. Afora isso, podemos concluir que, apesar de mais de um
século de pressão assimiladora e apesar do fato de que todos os pacientes
navajos tinham recebido tratamento hospitalar biomédico, a interpretação
causal navajo do câncer permanece culturalmente distinta da dos anglo-
! ,
americanos. Apresentada essa conclusão geral, vamos nos aprofundar um
pouco mais na etnoteoria navajo de etiologia da doença, examinando o
'
'
segundo principal elemento causal para os navajos, o relâmpago.

Relâmpago como uma causa de câ ncer

\ rw O ú nico fato etnográfico que coloca um dilema para a presente inves-


tigação foi claramente atestado por Wyman e Kluckhohn (1938, p. 15):
“ Na maioria dos casos um fator é considerado capaz de causar uma varieda-
de de doen ças, com uma ou duas delas se sobressaindo. Da mesma forma, a
mesma doen ça pode resultar de um dos vá rios fatores.” Está evidente nos
S; dados da Tabela 7.5 que nem os navajos nem os anglo-americanos identifi-
cam um elemento causal ú nico para o câncer, como se poderia fazer no
r
modelo clássico de doen ças contagiosas em biomedicina, embora a inter-
,
pretação causal navajo inclua uma maior diversidade de elementos. Se a
maioria dos fatores tambdm pode causar uma variedade de doen ças, a ques-
1
: tão que se impõe d se o rel â mpago tem uma relação causal específica com o
câncer, ou se ele d igualmente um fator em outras doen ças. A maioria dos
estudiosos da cultura navajo concorda que o relâ mpago é, de fato, uma
i causa de doen ça muito comumente citada, portanto os dados que sugerem
uma relaçã o mais específica entre um rel â mpago e uma doen ça particular
precisam ser avaliados com o maior cuidado.
.
í ‘
;

|; 318
A Ferida que não Cura

Um passo experimental para determinar com que frequ ê ncia o rel âm-
pago c associado com outras doen ças pareceu inicialmentc desconfirmar a
hipó tese da especificidade. Um colega m ódico relatou casos de dez pacientes
tradicionais navajos, nenhum dos quais tinha câ ncer; cinco deles atribu íram
suas doenças até um certo ponto a rel â mpagos. No entanto, dois desses
pacientes disseram explicitamentc ao médico que temiam que o seu problc -
ma pudesse se transformar em câ ncer. Esse grupo incluía um paciente que
tinha sido atingido diretamente e algu ém que havia sido atacado por uma
bruxa com madeira de uma á rvore atingida por um raio. Um terceiro estava
sofrendo de ú lceras no estô mago, que sã o relacionadas ao câncer por perten-
cerem a uma classe de feridas que n ã o curam.
Esses dados não são conclusivos, mas garantem a perquirição da ques-
tão. Ao considerar que as cerimó nias navajos são dirigidas principalmente à
remoção de quaisquer fatores etiológicos definidos como ativos, pode-se
reunir evid ê ncias indiretas com base em quais tipos de cerim ó nias de cura
tradicionais são usados para pacientes de câncer. Com respeito a isso, deve-
mos considerar a observação de Jerrold Levy (1983, p. 132) de que “nenhu-
ma doen ça navajo é conhecida pelos sintomas que produz ou pela pane do
corpo que se pensa que ela afeta [. ..] No entanto, cenos grupos de cerim ó-
nias de cura parecem estar associados com alguns sintomas e não com ou-
tros, enquanto várias outras cerim ó nias parecem ser boas para uma longa
série de sintomas”. Essa questão de generalidade na eficácia das cerim ó nias
de cura é complicada pela observação de que o câncer n ão é uma ú nica
doença, mas uma classe de doenças que exibem uma variedade de padrões
de sintomas. Todavia , eu mostrei acima que o conceito de câncer está sufi-
cientemente integrado no pensamento navajo para ser geralmente associado
com uma causa mais ou menos distinta.
O papel do raio nas concepções de causação de câncer é afirmado por
relatos de pacientes sobre o uso que fazem de cerimónias de cura tradicio-
nais em conjun ção com o tratamento biomédico (Tabela 7.6). A cerimó-
nia- padrã o usada para remover efeitos adversos de raio é o Cântico de Atirar
{ naatoeé). Em contraste, a concepção de câncer como um tipo de ferida
( lóód) n ão parece motivar o uso daquelas cerim ó nias descritas como especi-
almente apropriadas para feridas e bolhas, que são Caminho da Águia, Ca-
minho de Captura da Águia e Caminho da Conta (Sandner, 1979, p. 45;
Wyman; Kluckhohn, 1938, p. 29).

319
d li
Ííí .
i CORPO / SIGNIFICADO / CURA
:
: Um teste mais sistem á tico pode ser executado de acordo com o m é to-
, do usado por Levy, Neutra e Parker (1987) para estabelecer um grau dc
! especificidade no uso de certas cerim ónias para transtornos de convulsã o c
5 :
1

depressã o. Tendo determinado ctnograficamente um grupo de cerim ónias


: que pareceram estar associadas com esses dois transtornos, Levy comparou
as proporções de tipos de cerim ó nias usadas por um grupo diagnosticado c
um grupo de controle. Para ambos os grupos de transtorno, os resultados
foram estatisticamente significativos. O que é importante para o presente
trabalho é que a an álise de Levy distinguiu cerim ónias de doenças específi-
cas de cerim ónias gerais ou de “amplo-espectro”, e que o grupo Caminho de
!
1 Atirar sobressaía entre estas últimas. Porém, quando uma an álise semelhan-
te é feita comparando o grupo de pacientes de câncer navajo com o grupo
de controle de Levy, o resultado é que um n ú mero significativamente mai-
or de pacientes de câncer mandou celebrar o Caminho de Atirar em compa-
li
1
ração com o grupo de controle. Essa an álise é apresentada na Tabela 7.7,
justaposta à análise comparável do trabalho de Levy.
94

Tabela 7.6 Tratamentos tradicionais usados por pacientes de câncer navajos

Cânticos principais
Caminho de Atirar 12
Não específico (Caminho do Mal; Caminho do Inimigo; 14
Caminho de Vida; Caminho de Bênção; Caminho de Vida
Inimigo; Caminho de Vento)
Acasalamento de R épteis 2
Outro tratamento
Ervas navajos (Caminho de Vida; Comedor de Pus;ora çõ es 17
de proteção)
Peiote 8
Cura de Chupada 3
'
!
N = 28.
!

! jí 94 Embora tenha sido mostrado que os navajos idosos usam Caminho de Atirar com
significativamente maior frequência do que o grupo de controle (Levy, comunicação verbal ),
esse fator não pode explicar os resultados entre os pacientes dc câ ncer, pois a execução de
Caminho de Atirar foi distribu ída pelas faixas etá rias da nossa amostragem .

,
320

í i
A Ferida que nã o Cura

Tabela 7-7 Especificidade dos cânticos navajos cm tratamento de convulsão, depressão e


câncer

Pacientes de convulsã o Depressã o e controle

Específicos para convuls ões 29 1


(Caminho da Montanha;
Caminho do Coiote; Caminho
do Tremor de M ã o; Caminho da
Feitiçaria do Del írio)
N ã o espec íficos e n ã o para 66 160
convulsões
Total 95 161

Chi quadrado = 48.8, p = < 0.0001 .


Fonte: Levy, Neutra e Parker (1987, p. 92).
Pacientes de depressã o Convulsã o e controle

Caminhos do Mal 12 76
Todos os outros 8 160
Total 20 236

Chi quadrado = 6.46, p = < 0.05.


Fonte: Levy, Neutra e Parker (1987, p. 93).
Pacientes de câ ncer Controle

Caminhos de Atirar 12 24
Todos os outros 14 117
Total 261 141

Chi quadrado = 11.02, p < 0.001.


=
Fonte: para grupo de controle: Levy (comunica çã o verbal).
* Exclui cristã os findamentalistas.

Um elemento adicional da especificidade é acrescentado pelo tipo de


Caminho de Atirar usado. As cerimónias navajos são tipicamente divididas
em versões masculinas e femininas. Nem todos os informantes especifica-

321
A Ferida que nã o Cura

Diante desse fato etnográ fico, continua incerto qu ão antiga pode ser a
associação. Dos dois casos de câ ncer citados por Reichard ( 1950, p. 97),
nenhum foi atribu ído a raio. Esses casos poderiam ser interpretados como
contrá rios aos presentes resultados ou poderiam indicar uma mudan ça des-
de a época de Reichard na compreensão tradicional do câ ncer, uma mudan-
ça talvez relacionada à consciê ncia de que o tratamento de “radiação”
freqiientemente usado para o câ ncer comporta algumas semelhan ças con-
ceituais com o raio. Na verdade, um dos meus informantes curandeiros
comparou os tratamentos navajos e biom édico de câncer observando que,
assim como os médicos de hospital, “n ós navajos também temos uma ceri-
mónia de radiação”.
Ainda que essa questão não possa ser definitivamente resolvida, algo
mais pode ser dito sobre o lugar do raio no mito, na vida cotidiana e na
experiê ncia de enfermidade navajo. Apesar de os pacientes usarem consis -
tentemente o termo genérico do dia-a-dia para raio (ó oosní ), o raio desem-
penha um papel proeminente no mito navajo, no qual ele é diferenciado
em variedades de ziguezague ( 'atsiniltl’ish) , engarfado (hajilgish) e relâmpa-
go ou direto ( hatso ‘oolghal). Em mito, o raio pertence à classe de coisas más
ou inerentemente perigosas, usadas por deidades como ferramenta, arma
ou veículo (Reichard , 1950). Sob outro aspecto, o pró prio raio é a manifes-
tação de uma classe de divindades ou do Povo Santo, o Povo do Raio.
No entanto, o raio não é apenas um fato cosmológico de vida para os
navajos, mas também um fato ecológico da vida. Ele é um elemento extre-
mamente comum no ambiente desértico do Sudoeste, tanto assim que em
certas épocas do ano podem-se ver diferentes chuvas de trovoadas cruzando
a imensidão do cé u ao mesmo tempo. As crianças navajos aprendem a ter o
mesmo cuidado ao brincar perto dos relâmpagos que as crianças anglo-
americanas urbanas aprendem a ter ao brincar perto de automóveis. A li ção
fica perfeitamente clara com as mortes peri ódicas em decorrê ncia de conta-
tos com raio, que, de acordo com um m édico da reserva, ocorrem pelo
menos uma vez por ano.
A generalização do raio é ilustrada pelas diversas circunstâncias da ex-
posição citadas pelos informantes. Um homem explicou que um raio atin-
giu a rede elé trica que ia para a sua casa e cortou a energia quatro anos antes
de sua doença, enquanto um outro contou como o raio atingiu a linha

323
1'i ll CORTO/ SIGNIFICADO / CURA

1
if I
ram quais delas tinham sido executadas para eles, mas quando especifica-
ram , foi sempre a variante masculina, exceto em um caso. Essa exceção foi
o ú nico curandeiro entre os pacientes entrevistados, e ele receitou a versão
feminina para si mesmo porque já tivera a versão masculina anos antes. Nas
minhas entrevistas era mais comum os pacientes se referirem à cerim ó nia
especificamcnte como ó oosniji (Caminho do Raio) ou il hodiidiizbji (Ca-
minho do Raio Caído). Aqueles que eram capazes de especificar que o Ca-
minho de Atirar era da versão masculina (nnatoee bikdjt) tendiam a ser
também os que especificavam que a cerim ónia era do Caminho do Raio
Caído, descrevendo os efeitos de choque direto. Na verdade, Wyman e
Kluckhohn (1938, p. 23) distinguem subvariedades do Caminho de Atirar
Masculino (Lado das Regiões Altas e Lado do Raio Caído) que correspon-
dem grosso modo h distin ção entre ó oosniji e ilhodiitliizhji. No entanto, eles
indicam que o primeiro é provavelmente associado a piscadas de relâmpa-
gos, enquanto o último é associado a relâmpagos fortes acompanhados de
trovão. Os presentes dados sugerem mais que é feita uma distin ção entre
exposição indireta (passar ao lado de uma árvore atingida por raio) e expo-
sição direta (ter contato com o próprio raio) ou talvez que ó’oosm’ji é um
termo mais generalizado para qualquer Caminho de Atirar direcionado ao
raio como fetor etiol ógico
Apesar do apoio estatístico fornecido pelos dados sobre uso cerimoni -
al, é compreensível que se fique inseguro a respeito da hipó tese da especifi -
cidade associando câncer e raio. Uma peça final de evid ência que apóia a
associação foi fornecida por uma m édica de primeiros socorros da reserva.
Eu felei com essa m édica depois de um verão particularmente cheio de
quedas de raios, que resultara no encaminhamento de um grande n ú mero
de pacientes para tratamento no hospital do Serviço de Sa ú de do índio e na
onda decorrente de cerim ónias profilá ticas de Caminho de Atirar entre fun-
cion ários do hospital expostos a esses pacientes. A médica afirmou categori-
camente que - embora se eu n ão tivesse mencionado minha teoria sobre
raios e câncer alguns meses antes ela n ão teria notado - ela tinha observado
que os pacientes atingidos por raios invariavelmente expressavam a preocu-
pação de que suas lesões pudessem se transformar em câ ncer. Baseado nisso
e nos dados acima, pode-se afirmar que o raio tem mais do que uma associ -
ação casual com o câ ncer entre os navajos.

322
A Ferida que nã o Cura

Diante desse fato etnográfico, continua incerto qu ão antiga pode ser a


associação. Dos dois casos de câ ncer citados por Reichard (1950, p. 97),
nenhum foi atribu ído a raio. Esses casos poderiam ser interpretados como
contrá rios aos presentes resultados ou poderiam indicar uma mudan ça des-
de a época de Reichard na compreensão tradicional do câ ncer, uma mudan-
ça talvez relacionada à consciê ncia de que o tratamento de “radiação”
frequentemente usado para o câncer comporta algumas semelhan ças con-
ceituais com o raio. Na verdade, um dos meus informantes curandeiros
comparou os tratamentos navajos e biomédico de câncer observando que,
assim como os médicos de hospital, “n ós navajos também temos uma ceri-
mó nia de radiação”.
Ainda que essa questão não possa ser definitivamente resolvida, algo
mais pode ser dito sobre o lugar do raio no mito, na vida cotidiana e na
experiência de enfermidade navajo. Apesar de os pacientes usarem consis-
tentemente o termo gen é rico do dia-a-dia para raio (iô oosní ) , o raio desem-
penha um papel proeminente no mito navajo, no qual ele é diferenciado
em variedades de ziguezague ( 'atsiniltl’ish), engarfado ( hajilgish) e relâmpa-
go ou direto { hatso 'oolghal). Em mito, o raio pertence à classe de coisas más
ou inerentemente perigosas, usadas por deidades como ferramenta, arma
ou veículo (Reichard , 1950). Sob outro aspecto, o próprio raio é a manifes-
tação de uma classe de divindades ou do Povo Santo, o Povo do Raio.
No entanto, o raio não é apenas um fato cosmológico de vida para os
navajos, mas també m um fato ecológico da vida. Ele é um elemento extre-
mamente comum no ambiente desértico do Sudoeste, tanto assim que em
certas épocas do ano podem-se ver diferentes chuvas de trovoadas cruzando
a imensidão do cé u ao mesmo tempo. As crianças navajos aprendem a ter o
mesmo cuidado ao brincar peno dos relâmpagos que as crian ças anglo-
americanas urbanas aprendem a ter ao brincar perto de autom óveis. A lição
fica perfeitamente clara com as mortes periódicas em decorrência de conta-
tos com raio, que, de acordo com um médico da reserva, ocorrem pelo
menos uma vez por ano.
A generalização do raio é ilustrada pelas diversas circunstâncias da ex-
posição citadas pelos informantes. Um homem explicou que um raio atin-
giu a rede elé trica que ia para a sua casa e cortou a energia quatro anos antes
de sua doen ça, enquanto um outro contou como o raio atingiu a linha

323
ill;
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

t
telefónica enquanto ele estava falando, derrubando o telefone da sua m ão,
'
; 5 i ensurdecendo-o c dando in ício ao seu câ ncer. Uma mulher citou um inci-
dente de inf ância no qual um raio caiu num carro abandonado cm que elae
I .
outras crian ças estavam brincando, queimando algumas delas. Outro ho-
í mem lembrou que quando era menino caíram raios muitas vezes em torno
da carroça na qual ele estava andando. Um informante afirmou que havia
muitos raios em volta do seu rancho. E um outro relatou uma série de
p incidentes nos quais ele ajudou a salvar uma vaca atingida por um raio, o
milharal da família foi atingido por raio, e ele, como um jovem impruden-
te, contou os ossos das ovelhas atingidas por raios.

11
Ir , !
Um homem informou que a morte de uma parente de tumor malig-
no no cérebro tinha a ver com um raio que caiu numa árvore próxima,
quando ela estava juntando as ovelhas. A metade do rebanho foi morta,
enquanto tudo em volta ficava azul, ela respirou o cheiro de fumaça, carne
í e lã queimadas. Ela ficou meio desacordada, sentindo dorm ência por todo
o corpo junto com ondas de frio e de calor, e sua percepção da fogueira
ficou distorcida, parecendo um pontinho brilhante. Durante vários anos
seguintes, ela teve constantes dores de cabeça, começando entã o a desmaiar;
finalmente, sofreu uma convulsão e foi levada para o hospital, onde o cân-

U \m cer foi diagnosticado.


Ainda assim o raio é mais do que um fato cosmológico e ecológico da
vida; ele é também um fato metafórico da vida, na medida em que a cate-
íí goria de raio se estende al ém do raio causado por tempestade para outras
i
\: formas de energia radiante. Assim uma mulher afirmou que a causa princi -
pal do seu câncer foi ter pegado as suas crianças depois que elas foram derru-
; badas ao tocar em um fio elé trico desencapado, e mencionou apenas
; í secundariamente que um raio tinha atingido um edifício no qual ela estava
assistindo a um encontro de peiote, e que depois disso ela respirou a fuma-
ça; quando o câncer mais tarde se espalhou para as suas costas, foi como um
> íi choque de raio. Para um outro, o câ ncer foi causado pela radiação de uma
\k f mina de urânio, também compreendida como uma forma de raio. Ainda

1 hi!
I
- í outro informante foi um soldador que comparou sua exposi ção às chamas
e à fumaça de sua tocha (“o cheiro entrou dentro de mim”) com a experiê n-
cia de ter sido exposto a um raio natural na infância quando cuidava de
ovelhas. Um informante citou a aspiração de fumaça quando combatia um
I
f:1
V; 324
i!
I
A Ferida que nã o Cura

incê ndio florestal causado por um raio. O depoimento de um paciente e de


um curandeiro informante també m sugere que a exposição ao sol pode ser
considerada dentro da ampla categoria de raio.
A conclusão etnográfica mais ampla que pode ser tirada desses dados é
que a categoria navajo de raio é, de fato, estendida metaforicamente em
duas direções, cosmológica e ecol ógica. A literatura sobre a cosmologia na-
vajo tem relatado muitas vezes que o raio é miticamente an álogo a cobras,
flechas e outros fen ômenos “dardejantes”. Na verdade, entre os meus infor-
mantes, houve três casos em que cobras estavam envolvidas na etiologia de
câncer e em dois deles foram realizadas cerim ó nias apropriadas (veja Tabela
7.6); isso pode implicar a analogia raio-cobra na análise da especificidade
entre causas de câncer. Além disso, a categoria de raio é metaforicamente
estendida para incluir fatores ecológicos tais como a radiação nuclear, a luz
do sol e a eletricidade usada para iluminação, cozinhar em fogão de muitas
bocas ou forno de microondas e televisão. Um informante disse que se deve
comer, de preferência, carne criada em casa e n ão comprada em mercado,
não porque essa última contenha conservantes químicos como os anglo-
americanos podem temer, mas porque os animais cuja carne é vendida nos
mercados às vezes são submetidos a estímulos elé tricos para crescerem mais.
Assim, parece que o “raio” nos seus variados aspectos é entendido pelos
navajos contemporâneos como a forma principal de poluição ambiental.95

,s Sem dúvida, poder-se ia


- levantar a hipótese de que uma compreensão navajo dos efeitos da
diminuição da camada de ozônio seria construída nesses termos. É assim , com certeza , no
caso da conexão entre o urânio e o câncer, como fica evidente na seguinte declaração de um
dos nossos informantes, um curandeiro bicultural: “As pessoas costumaram dizer, ‘Aquela
montanha l á é nociva , não incomoda ela . Eles vão dizer, ‘Nociva como? Coisa nenhuma
fàz mal a você se você não cair dela . Mas não tem erro, você cava lã e lá tem urânio, tão
poderoso, tão perigoso que você não mexe com ele. É sobre isso que eles [navajos tradicionais]
estavam falando. ” També m é relevante a noção de poluição eletromagné tica corrente na
cultura popular anglo-americana , especialmente com relação a possíveis conseqQéncias
negativas para a saúde de pessoas que moram perto de redes elé tricas de alta- tensão.

325
f t ;|j '
i

CORTO / SIGNIFICADO / CURA

Construindo a especificidade: quatro problemas metodol ó gicos

/ \ pcdficidãdc )é um objetivo pressuposto da pesquisa cient ífica, por-


tanto é aê scesperã r que estejamos preocupados em identificar as formas da
especificidade nos sistemas etnom édicos que estudamos. AJguns teó ricos da
antropologia médica desenvolveram rccentcmente uma sé rie de estruturas
anal íticas para entender a complexidade do raciocínio etiológico encontra-
do no registro etnográfico. Eu já apontei a necessidade de distinguir entre
princípios descritivos e etiológicos em sistemas de classificação de doenças
(Good; Delvecchio-Good , 1982). Kleinman (1980) elaborou uma estru-
I
tura para a an álise de episódios de enfermidade específicos, colocando as
i
i "
,

compreensões etiológicas no contexto de compreensões sobre o curso da


enfermidade, patofisiologia, tratamento apropriado e resultado esperado, e
enfatizou a necessidade de distinguir as etiologias populares, folcló ricas e
‘ | li profissionais Young (1976) identificou quatro categorias de informação
/
codificadas em sistemas explicitamente etiológicos, incluindo agentes (cau-
sas imediatas, agentes precipitadores e agentes intermediadores ou em pre-
í Li ! 1 disposição), eventos ou circunstâncias, ações instrumentais ou eficazes e
processos biof ísicos. Zempleni (1985) indica que as etiologias de enfermi-
dade devem ser compreendidas no contexto de como outros tipos de infor-
tú nio também ocorrem; não apenas uma enfermidade pode ser o resultado
de várias causas em interação, mas uma causa particular pode produzir ocor-
rências negativas que n ão sejam enfermidade. Ele pede que a an álise etioló-
gica faça uma cuidadosa distinção lógica entre causa instrumental (como),
causa eficiente (quem ou o que) e causa última (por que), entre causas base-
_
adas em sequência temporal e aquelas baseadas numa coniun£ã o decircuns-
táncias, e entre causas determinadas a priori e a posterioriaplantim )(1987)
oferece uma série de distin ções anal íticas entre causas que pressupõem uma
entidade de doen ça ontológica e aquelas que se referem a uma relaçã o entre
os aflitos e o seu entorno, entre causas de proveniência exógena ou end óge-
1
i

b na, entre causas que operam adicionando um elemento nocivo ou subtrain-


: i1 do um elemento vital, e entre os efeitos, em última an álise, mal éficos ou
;I, I, »
, Hl !
ben éficos dos agentes causai
^
Essas considerações vão muito além do tipo de especificidade ditados
pelos cânones da ciência biom édica, que tem a ver com a especificidade de

f iii
i :
326
A Ferida que nã o Cura

doen ças como entidades distintas (Campbell , 1976) c a doutrina de etiolo-


gia específica que pressupõe uma causa para uma doen ça ( Dubos, 1959).
Sua import ância teó rica reside na determina ção de quais dessas m ú ltiplas
categorias etiol ógicas são elaboradas em sistemas etnom édicos específicos e
de que modo essas categorias se articulam com objetivos culturais, priorida-
des e significados mais amplos. Se, por exemplo, nosso propósito analítico
fosse apenas identificar os lugares alternativos do específico no sistema na-
vajo, poderíamos fazê-lo, mas isso apenas evadiria as questões mais amplas
sobre diferenças interculturais no raciocínio sobre enfermidade. Sem d úvi -
da, meus dados dos curandeiros biculturais indicam um grau de especifici-
, dade entre causas e sintomas: matar um cachorro pode causar “gases”, assistir
a um funeral pode causar dorm ê ncia , maltratar um animal aquá tico pode
causar diabetes, exposição a relâmpagos pode causar pirose. Da mesma for-
ma, há um grau de especificidade entre cenas classes de queixas e rem édios
herbáceos/animais/ minerais: problemas de audição devem ser tratados com
um preparado de cabra montesa , problemas de visão com um preparado de
bicho-barbeiro, diarreia com argila branca, câncer com um remédio de “cheiro
estragado”. A lógica cultural por trás dessas associações é mais ou menos
evidente, como na produção de pirose pela radiação queimante de relâmpa-
gos ou na conexão solidária entre o apodrecimento de câncer e o seu trata-
mento com um medicamento de cheiro estragado.
(k especificidade da relação entre o câncer e o raio é de uma diferente
ordem , em termos da definição da doen ça e da identificação das atribuições
causais. Como observei, mesmo na biomedicina, o câncer é tanto um gru-
po de doenças como uma entidade de doença ú nica, com o elo entre as
doenças sendo o cará ter processual do crescimento aberrante, sem controle.
Esse conceito de doença é adotado em um sistema navajo desacostumado
com doenças de nomes específicos, mais inclinado aos conceitos etiológicos
de doen ça do que aos descritivos, e que interpreta o cará ter processual uni-
ficador não como crescimento, mas como apodrecimento
^
A escolha do termo interpretação causal para representar meus resulta-
dos empíricos reflete a natureza dos dados como um repertó rio de elemen-
tos causais colocado em uso por pacientes afligidos por uma enfermidade
espec ífica. Esse termo n ã o distingue quais elementos são considerados espe-
cificamente causais, como precipitadores de eventos, ou como predispo-

327

li
fill i'
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

:
i nentes de condi ções. Ele també m n ão diferencia os elementos de cujo en -
I : volvimento determinados informantes estão certos daqueles que eles espe-
culam que poderiam estar envolvidos. Tampouco delineia possíveis diferenças
entre as atribui ções leigas e aquelas aprendidas por pacientes através de con-
sultas com curandeiros especialistas. A maioria dos pacientes navajos gerou
uma interpretação causal formada de até seis elementos, com apenas sete
desses pacientes citando um elemento causal ú nico. Em comparação como
os dados anglo-americanos, o raio pode então ser considerado como uma
causa de câncer específica da etnomedicina navajo, mas o raio não se conci-
lia de forma alguma com a doutrina biom édica da etiologia específica. Além
disso, vimos que o pró prio raio é uma categoria que representa um conjun-
to de fen ômenos maior que o meteorológico.
Por causa da natureza m últipla tanto do câncer quanto do raio como
categorias culturais, sua conexão causal deve ser compreendida por um mé to-
do menos direto que os que acabam de ser esboçados acima. É preciso definir
a rede semântica de enfermidade (Good, 1977), o sistema de conceitos inter-
1| relacionados relevantes dentro do sistema cultural. O elo conceituai mais
importante no nosso caso é entre a compreensão de câncer como uma ferida
emputrefação e os efeitos da radiação como algo que queima e come a pessoa
por dentro. O mecanismo primário pelo qual a doença entra na pessoa é a
inalação, que pode incluir os vapores elétricos de um choque direto, fumaça
de um incêndio florestal causado por raio, a putrefação da carne de um ani-
mal atingido por raio e, por extensão, o fedor de um animal apodrecendo

: ! ^
mono na estrada O raio é a forma prototípica de radiação, mas a radiação
nada mais é do que uma interpretação contemporânea da ampla categoria
tradicional dos fen ômenos de tiro, embora com menos ênfase em exemplares
í :!
^
tradicionais como cobras e flechas categoria inclui a eletricidade e a afirma-
,

ção do curandeiro de que “nossos corpos são feitos de impulsos elétricos”;


indicando ou não uma opini ão aculturada, está de acordo com a noção tradi-
cional de que a exposição imoderada a tais impulsos causa doença por quebrar
o harmonioso equilíbrio elétrico da vida. A radiação inclui também a energia
do sol, e, portanto, é relevante para a ocorrência moderna de câncer que o
;
mundo atual esteja fadado a ser destruído pelo sol na tradi ção navajo. Ter
relações sexuais quando faz sol é considerado nocivo para o esperma, e isso
pode estar relacionado com a origem m ítica de câncer no abuso da sexualidade.


I < 328
s
A Ferida que nã o Cura

Uma rcdc sem â ntica dc enfermidade abrangente explicaria as outras


causas dc câ ncer representadas nos meus dados, talvez com a conclusã o de
que n ão h á nenhuma relação necessária entre os elementos nem no repertó
rio cultural de causas nem nas interpretações causais feitas individualmente
-
por pessoas afligidas. Ao concluir a presente discussão, eu só posso chegar
até o ponto de esboçar uma série de questões metodológicas que teriam de
ser levadas em consideração em uma tal an álise, questões que ligam a análise
de raciocínio etiológico sobre enfermidade a preocupações antropológicas
mais amplas. Essas questões podem ser articuladas em termos de quatro
dicotomias conceituais subjacentes:/l ) entre causa e sintoma; 2) entre doen -
ça como entidade ou processo; 3) entre sistemas etnom édicos tradicionais e
biomédicos; e 4) entre corpo e mente/
fk primeira é a dicotomia entre causa e sintoma nos sistemas etnomédi -
cos, que é relacionada com a distin ção supracitada entre sistemas etiológicos
e descritivos de classificação de doen ça (Good; Delvecchio-Good, 1982).
Essa dicotomia é diretamente relevante para a pragmá tica da prá tica clínica,
no sentido de que a determinação de causa em muitos sistemas m édicos
tem implicações para a escolha de tratamento. Como vimos, a classificação
de doença navajo é baseada principalmente na etiologia em vez de nos sin
tomas e síndromes. A preocupação relativamente maior dos navajos com
-
fatores causais é empiricamente evidente em comparação com informantes
anglo-americanos nesse estudo, na medida em que o n úmero m édio de
respostas na interpretação causal navajo foi 2,7, enquanto para anglo-ameri-
canos foi 2,1. Além disso, apenas 3 entre 28 navajo (11 por cento) n ão
deram nenhuma resposta às questões sobre causalidade, enquanto 10 entre
50 anglo-americanos (20 por cento) não deram nenhuma resposta.%f
A relativa elaboração navajo e a pobreza anglo-americana de raciocínio
causal reflete mais do que uma divergência cultural na aten ção dada aos

96
As médias de 2,7 e 2, 1 foram calculadas dividindo o número total de respostas (68 para os
navajos, 85 para os anglos, combinando as categorias “relacionado” e “causado”) pelo
número total de respondentes (25 para os navajos , excluindo 3 que náo deram nenhuma
resposta , e 40 para os anglos , excluindo 10 que não deram nenhuma resposta) . A
porcentagem daqueles que não deram nenhuma interpretação causal é, então, 3 de 28 ( 11
• por cento) para os navajos e 10 de 50 (20 por cento) para os anglos (compareTabela 7.5).

329
I!
lit
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
I
I diferentes aspectos da experiê ncia de enfermidade. A queixa do idoso nava-
; jo de que eles “n ã o me dizem qual é a minha doen ça no hospital” pode
í significar n ão que os médicos deixaram de informá-lo sobre um tumor nos
rins, mas que deixaram de informá-lo por que ele tem o tumor. Além disso,
! !i ' os m édicos estão diante do fato de que os seus pacientes navajos estão pre-
! ocupados com o raio como uma causa suficiente de enfermidade; embora
;
assintom á tico, um navajo pode ser considerado doente após uma exposi ção
a raios. Em geral, profissionais biom édicos não familiarizados com inter-
pretações causais ctnomédicas desconhecem os temores do paciente de que
1

i :! um rumo particular da doença seja determinado pela exposição a uma causa


"
, ! definida em termos nativos.
Uma segunda distinção conceituai é entre doença como entidade ou
[ i: processo. Em uma discussão das compreensões relacionais e ontológicas de
f doen ça,(taplanrine (1987 j)mostra que ambas as formulações podem ser
encontradaTna hisróf íã ailtural do pensamento ocidental sobre doença.
Essa questão é relevante para uma crítica da metodologia da biomedicina na
í medida em que o estudo (histórico e intercultural) comparativo põe em
!' relevo o papel dos princípios etiológicos no nosso próprio sistema etnomé -
dico. Nosso paradigma dominante é predominantemente ontológico, defi -
nindo uima “doença” como uma entidade distinta ou “coisa” biológica, como
descrevq( E. JJVI.Campbej )l 976, p. 50):
|(
| —
Uma doen ça é primeiro reconhecida como uma síndrome uma conste-
lação de elementos clínicos. A doen ça tem uma causa (infecciosa, nutri -
cional, gen é tica , imunol ógica, etc.); essa causa produz mudan ças
estruturais características, que por sua vez causam transtornos funcio -
nais característicos, que por sua vez produzem as manifestações cl ínicas.

Este autor, um eminente estudioso da biomedicina, deixa claro que o


tipo de especificidade exigida em nosso paradigma da doen ça leva a uma
confusa multiplicação de entidades conceituais que nomeiam o mesmo pro-
blema global, mas nomeiam esse problema dos pontos de vista etiol ógicos,
geneticos, estruturais, bioqu ímicos, imunol ógicos ou progn ósticos. Ao
mesmo tempo, nosso paradigma teoricamente procura reduzir as compre-
ensões sindromais, funcionais e estruturais a uma causa subjacente.
1

330
A Ferida que nã o Cura

A pró pria noção dc causa , todavia , assume um cará ter ontol ógico es-
pecial porque ela é compreendida em relação com a doen ça como uma
coisa ou entidade, em vez dc um processo ou evento. No caso da etnome-
dicina navajo, n ão é, então, suficiente observar uma mudança no conceito

^
dc câ ncer de descritivo para ctiológico Na medida em que o câncer é incor-
porado no padrão cultural navajo, ele se torna menos uma entidade e mais
um evento ou processo, com a consequente mudan ça em o que pode ser

^
levado a constituir uma causa Em âmbito mais amplo, a compara ção de
sistemas etiológicos com ou sem entidades de doença explicitamente defi-
nidas deve levar em consideração n ão apenas o seu reconhecimento de dife-
rentes tipos de causas poss íveis e de diferentes possibilidades de causas
interativas m últiplas, mas também a possibilidade de um diferente status
ontológico da própria noção de causa.
Terceiro, a importância desses problemas não deve nos fazer presumir
uma distinção indelével entre os sistemas biomédico e tradicional de raciocínio
causal. Essa questão concerne diretamente à etnopsicologia da cognição, pois
o raciocínio causal revela a estrutura da mente como uma capacidade para
gerar proposições e buscar explanações sobre o mundo. Meus dados sobre
atribuições causais para o câncer me levam a concluir que dar sentido à enfer-
midade coloca em jogo diferentes modos de raciocínio causal, mas que esses
modos são válidos nos sistemas anglo-americano e navajo de emomedicina.
Lesão, dieta e exposições ambientais como a radiação estão incluídas nas in-
terpretações causais de ambos os grupos, embora em graus diferentes e com
racionalidades variáveis. É uma questão para determinação empírica se tais
elementos co-ocorrentes são autóctones ou emprestados. Da mesma forma, é
preciso determinar se elementos de diferentes repertó rios culturais são consi-
derados compatíveis ou incompatíveis, se eles podem ser assimilados uns aos
outros por processos metafó ricos e se os repertó rios culturais interagentes, nas
suas totalidades, ocupam nichos cognitivos integrados ou disjuntivos.
Um exemplo impressionante dessa complexidade vem de uma entre-
vista com uma mulher de trinta e poucos anos, com curso secundário com-
pleto e experiê ncia de trabalho em serviços sociais de saúde, que estava em
aparente remitê ncia de um câ ncer de mama. Em resposta a uma questão
sobre tratamentos e cerimó nias tradicionais, ela falou bastante sobre a influ-
ência causal do raio. Mais tarde, quando questionada especificamente sobre

331
!
: I CORTO / SIGNIFICADO / CURA
’ ,
l '

M M: : i

o que ela pensava que tinha causado a sua enfermidade, ela respondeu pon -
i fj !; . t I deradamente que havia três fatores possíveis, os quais ela enumerou por
II ordem de importâ ncia. Primeiro foi o fato de sua avó c uma tia terem
contraído câ ncer, portanto podia ser hereditá rio. Segundo, foi que ela tinha
1
,
t
! ; feito um regime usando o medicamento Depoprovcra que, era sua impres-
?(
> são, podia ter tido um efeito carcinogê nico. Terceiro, e um tanto cé tica, ela
lembrou que tinha estado em um acidente de automóvel no qual batera o
seio contra o volante de direção; ela n ão parecia acreditar muito nessa causa,
mas evitou tirá-la completamente de cogitação. Eu, então, observei que
|
!i
v
! antes ela dnha mencionado uma quarta causa, a exposição ao raio. Parecen-
do um pouco perplexa, ela disse: “ Nesse caso, vou pôr o raio em terceiro
[ :i .
lugar e a batida no volante em quarto.”
Surpresa ao ter o produto de raciocínio causal tradicional justaposto
ao produto hierárquico de um modelo explanatório mais anglo-americano,
essa mulher, não obstante, passou rapidamente a integrar os dois. A impli-
cação é que as etiologias navajos e anglo-americana são cognitivamente dis-
tintas, mas não cognitivamente incompatíveis. Resta saber por que uma
questão explícita sobre causa pode eliciar uma resposta que exclui elemen-
M l : '

tos do repertó rio tradicional, a menos que haja uma disjunção cultural em
formas de raciocínio sobre relações de causa e efeito. Como apontei acima
i
ao citar o curandeiro informante de Adair e como(Ruth Benedict (1934 p
;
'
observou há muito tempo sobre os dobu, os sistemas terapê uticos tradicio-
nais, ao se depararem com novas doenças, podem n ão desenvolver novas
U' -
técnicas terapê uticas para lidar com elas ou podem considerá las fora da
: competência tradicional. Da mesma forma, os sistemas etiol ógicos tradici-
'
onais podem incorporar ou n ão tanto os novos elementos causais como as
!i novas racionalidades causais.
,
Finalmente, a sugestão de que há diferentes modos de raciocínio cau -
sal leva-nos a reconsiderar nossa dependência metodológica na distin ção
entre corpo e mente, ou nos termos mais precisos d < Evans-Pritchãrd (1937)y
^ rP-
^

:
i
entre causas sensíveis e m ísticas. Essa questão se relacio racionalidade^
I
;

^
existencial da cultura, pois como(ÍJnd baum 979
^ 56yobservou , “as
cren ças sobre a etiologia da doen ça são afirmações soEreTnatureza da exis-
"

tência, explanações de por que as coisas acontecem daquela maneira”. Para a


maioria das enfermidades, a literaturasobre etnomedicina navajo supõe uma
:> :

s
i í 332
i
A Ferida que nã o Cura

causa m ística, concebida principalmente como contágio espiritual ou que-


bra de tabu. Meus dados sugerem que, pelo menos entre os navajos con-
temporâ neos que sofrem de câ ncer, uma causa física (lesão) alinha-se
proeminentemente ao lado de uma causa espiritual (raio). Muito mais sig -
nificativo, no entanto, é que os dados contestam a suposição de que o raio
pode ser compreendido apenas sob o conceito de contágio espiritual. Essa
questão foi formulada em uma discussão da etiologia de doença navajo por
Lamphere (1969, p. 292):

As atividades que envolvem animais perigosos ou fen ô menos naturais


[no seu entender] automaticamente provocam ataque do sobrenatural
pelas armas ou pela raiva, o que, por sua vez, provoca doença. Até que se
possa conduzir mais pesquisa de campo sobre a teoria navajo da doença,
só é possível sugerir que, em um certo sentido, os elementos naturais
estio fundidos com os sobrenaturais. A cobra com a qual os navajos
podem ter contato e os tais diyin dime [sobrenaturais] como [...] o Povo
Cobra são, em um certo nível, equalizados. É impossível determinar se
eles são diferentes formas do sobrenatural, se a cobra é uma manifestação
natural hodierna de figuras sobrenaturais do passado m ítico, ou se são
dois tipos separados de fenômenos, um natural e outro sobrenatural, que
compartilham características comuns. Não se pode concluir se uma dessas
possibilidades ou, ainda, um outro conjunto de relações caracteriza me-
lhor as crenças navajos sobre essas matérias sem dados mais detalhados.97

97
A discussão de Lamphere dos fenômenos naturais contrasta o que ela considera uma ênfase
navajo em elementos do ambiente externo, tais como animais e fenômenos meteorológicos,
com a descri ção de Victor Turner, V. ( 1966) da ênfase ndembu em fenômenos corporais.
Especialmente, ela argumenta que o simbolismo das cores navajo está mais associado com
tais fenô menos naturais externos do que com substâncias corporais. No entanto, os dados
de curandeiros biculturais entrevistados no presente estudo indicam que embora as cores
venham do sol , as cores do arco- íris são as mesmas cores da pedra de areia e do corpo. O
seguinte esquema de sete cores e sete órgãos do corpo (não emissões do corpo como com os
ndembu) é apresentado: branco - osso , amarelo - tutano, brilho - gordura , marrom -
pele, cinza - órgãos internos, vermelho - sangue e preto - cabelo. Esses sete órgãos internos
se relacionam com sete partes externas do corpo (a ordem de relação é incerta) que são pé,
perna , cintura , tronco, braço , cabeça e nariz, e com uma série de sete ervas usadas para curar
debilidades dos órgãos e membros correspondentes.

333

\ J
ff ff I
'
í :
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

-
!

^
Pode-se argumentar que, colocado dessa forma , o problema d, cm par-
te, um artef à to da distin ção entre o natural e o sobrenatural que estava em
voga na antropologia 20 anos atrás. Essa distinção metodológica tem três
características relevantes. Primeiro, ela d essencialmente atribu ída a distin-
ções entre físico e espiritual, material e imaterial, tangível e intangível ou
sensível e m ístico, todas elas pressupondo uma distin ção normalmente cha-
11i i| mada de “cartesiana” entre corpo e mente. Segundo, ela pressupõe que o

í1 ' :
sobrenatural d mais verdadeiramente “cultural ” do que o natural, de uma
maneira mais ou menos análoga ao modo como Kroeber teorizou que o

il M!
:
!'
superorgânico se coloca em relação ao orgânico. Finalmente, a abordagem
tradicional focou quase exclusivamente a definição cultural abstrata do agente
causal , deixando de lado a questão de como aquela causa produziu seus
efeitos em termos de uma fenomenologia cultural.
A antropologia hoje está melhor preparada para ocupar-se do físico
911 em uma definição do sagrado, da experiência corporal em uma compreen-
são da cultura e das práticas etnomddicas concretas em adição às crenças. O
exame do processo causal associado com a exposição ao raio exemplifica
esse câmbio metodológico. Os pacientes no presente estudo que menciona-
ram raios referiram-se tipicamente a um evento específico no qual o raio
caiu tão perto deles que eles viram um clarão azulado e inalaram o acre
vapor elé trico. Para descrever essa experiência, eles usaram a frase navajo shil
hodiitl iizh, que pode ser traduzida como “eu fui contaminado pelo raio”.
Baseada na vividez das declara ções dos informantes e na existência de uma
convenção linguística para descrever a experiência, a dimensão sensorial con-
creta dessa exposição não pode ser minimizada em favor de um conceito de
contágio espiritual. Não é apenas o fato da proximidade que define a expo-
sição ao raio; imediatamente, o corpo da pessoa é envolvido (exposição
1 externa) em azul (modalidade visual) e incorpora pela inalação (exposição
!f i interna) a acre névoa (modalidade olfativa)
/ ^
ko enfatizar essa dimensão corporificada da experiência, podemos co-
meçar a resolver a questão de se o raio é um fen ômeno natural ou sobrena-
tural para os navajos. Ele é certamente natural no sentido de afetar as pessoas
de uma maneira física, orgânica. Ao mesmo tempo, a enormidade da expe-
ri ência, sua avassaladora “alteridade”, qualifica-o como um fen ômeno quin-
tessencialmente sagrado, culturalmente elaborado em mito e em rituais de

334
í l
A Ferida que n ã o Cura

cura Caminho de Atirar projetados para reverter seus efeitos. Al é m disso,


cie é elaborado por extensão temporal , no sentido (por exemplo) de que
chegar perto demais de uma á rvore que foi atingida por raio muito antes é
considerado tão perigoso quanto estar perto quando cai o raio; mas eu sugiro
que o encontro físico é primordial para a fcnomenologia cultural do Raio
^-
A importâ ncia dessa discussão n ão é apenas que ela atende ao apelo de
Lamphere por dados mais detalhados sobre a etiologia da doen ça navajo,
mas também que ela representa uma maneira especial de olhar (ou de pro
curar) os dados dentro de um paradigma da corporeidade. No presente
caso, a mudan ça metodológica é um afastamento do problema de definir o
raio per se como um fenômeno cultural que vai na direção da experi ê ncia
humana corporificada do raio na prática cultural. Embora a meta dessa
abordagem seja colapsar a distinção entre mente e corpo em nome de uma
antropologia existencial mais abrangente, ela n ão busca de forma alguma
diminuir a importância biol ógica do corpo. Sem d úvida, argumentar assim
no presente caso seria distorcer o pró prio pensamento navajo. O paciente
que assimilou os vapores inalados do raio e os vapores inalados da sua tocha
de soldar como causas intimamente relacionadas ao seu tumor no cé rebro
pode ter sido envolvido em especulações biologicamente relevantes, bem
como em um raciocínio intercultural sincrético. Da mesma forma, a m édi-
ca navajo cuja refletida resposta aos meus dados foi que a teoria navajo do
raio como uma causa de câncer pode intuir corretamente um processo no
qual os “oncogenes” são estimulados, está levando a sério uma consequência
jOs
biológica potencial da exposição ao raio. antropólogos da medicina que
insistem na prioridade de determinar a relevância biológica das categorias
etnomédicas ( Browner; Montellano; Rubel, 1988) podem se sentir obriga-
dos a seguir esse tipo de indicação. Um tal trabalho deve ser considerado
lógica e metodicamente secund ário, no entanto, comparado a uma deter -
minação do significado humano de fen ômenos relacionados à sa úde através
do uso de estruturas empíricas, como as que foram resumidas no início
desta seção, através de cuidadosa atenção a distinções metodológicas, como
as que acabaram de ser discutidas, e através do desenvolvimento de perspec-
tivas analíticas como a da corporeidadjeJ

335
r 1

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CAPÍTULO OITO , ,
Palavras do Povo Santo*

jf  corporeidade, no sentido em que a estou usando, é um ponto de


vista metodológico no qual a experiê ncia corporal é compreendida como
fundamento existencial da cultura e do sujeito, e, desse modo, um valioso
ponto de partida para a sua an álise. Neste capítulo, eu focalizarei duas ques- A
tões que devem ser esclarecidas na apresentação de uma fenomenologia cul- jn )
tural que começa com a corporeidade, ou, se vocês preferirem, duas questões )|P
que, se não elucidadas, poderiam se tornar membros na corporificação de
um boneco de palha. Uma é a relação entre corporeidade e biologia, e a
\\
!'
outra é a identificação desse ponto de partida fenomenológico na experiên-
cia pré-objetiva ou pré-reflexiva. Eu apresentarei cada uma delas em termos
de uma citação problemá tica
^
De Martin Heidegger (1977a, p. 204-205) vem uma asserção do pri-
meiro problema:

O corpo humano é algo essencialmente diverso de um organismo ani-


mal. Nem o erro do biologismo é superado pela adição de uma alma ao

* Agradecimentos: a pesquisa apresentada neste capí tulo foi apoiada por auxílios do Centro
Nacional de Pesquisa de Saúde Mental para o índio Americano e o Alasquiano Nativo, o
Fundo Milton da Escola de Medicina de Harvard , o Centro Arnold para Pesquisa e
Tratamento da Dor do Deaconess Hospital da Nova Inglaterra.
íí
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
r
1 I i
;! corpo humano, uma mente à alma, c o existencial mente, c então cantar
i mais alto do que antes os louvores da mente, apenas para deixar tudo
!! ' I ;
!
: recair em “experiência de vida”. [...] Assim como a essê ncia do homem
mi ! não consiste em ser um organismo animal, essa definição insuficiente da
essência humana não pode ser superada ou compensada revestindo o ho-
" í mem com uma alma imortal, o poder da razão ou o cará ter de uma pessoa.
:!
! I Heidegger considera que a aplicação ad hoc de componentes a um
í
i corpo essencialmente animal expõe a inadequação de distin ções entre men-
< ;
te/corpo/alma/pessoa, e trai o cará ter existencial do corpo humano como
essencialmente humano. Deixando de lado o problema se Heidegger essen-
;
cializa o corpo humano a ponto de negar o Ser de animais (Caputo, 1991),
3i ijj será que a necessidade de remodelar nosso entendimento do corpo em ter-
mos fenomenológicos n ão nega equivocadamente a importante relação en-
I (

tre biologia e cultura ? Em resposta a essa interroga ção, da posição


/
fenomenológica nossa resposta é que tanto “ biologia” como “cultura” (ou,
mais especificamente no caso discutido a seguir, neuropatologia e religião)
\ j são formas de objetificação ou representação Assim, a primeira meta é sus-
^
pender nossa dependência de ambas - ou talvez suspender nossa descrição
! entre elas - em favor de uma compreensão experiencial do ser-no-mundo.
A natureza desse ser-no-mundo pré-objetivo é nossa segunda questão,
assim formulada por Maurice Merleau-Ponty (1962, p. 140-141): “Meu
corpo tem seu mundo, ou entende seu mundo, sem ter que utilizar minha
função simbólica’ ou objetivante’”.

-
i

. . -
É tão falso colocarmo nos na sociedade como um objeto entre outros
í objetos quanto colocar a sociedade dentro de n ós como um objeto de
pensamento, e, em ambos os casos,(o erro está em tratar o social como
I
um objetu?) Nós devemos retornar ao social com o qual estamos em con -
. tato pelo mero fato de existir e que trazemos inseparavelmente conosco
*

-
antes de qualquer objetificação. (Merleau Ponty, 1962, p. 362).

::
i
/ Negar que o social é um objeto põe em d úvida o status dos “fatos
sociais”, cuja existência teria sido estabelecida definitivamente por DurkheimJ
í
! A exigência da análise cultural iniciar numa experiência pré-objetiva n ão
presume equivocadamente uma dimensão pré-social ou pré-cultural da exis-

i [i !
338
ffj
;i ! í ^
Palavras do Povo Santo

tência humana ? A resposta está cm definir o sentido que atribu ímos a carre -
gar o social “ inseparavelmente conosco antes de qualquer objetificação ” .
/
Dessa forma, o segundo objetivo deste capítulo é mostrar como o significa -
do cultural é intrínseco à experiência corporificada no plano existencial do
ser-no-mundo /
O antropólogo abordando questões nesse contexto pode ser diferenci-
ado do fil ósofo por um crité rio simples: o antropólogo só se satisfaz quan-
do argumenta em termos de dados empíricos. Os dados para o exercício de
“trabalho de campo em filosofia” ( Bourdieu , 1987) deste capítulo são ex-
traídos do caso de um rapaz navajo acometido por um câncer do cérebro.
Eu introduzirei e contextualizarei o caso, n ão em termos biológicos ou
culturais, mas clínicos. Buscarei, então, conduzir a discussão do ser-no-
mundo entre os dois pólos da objetificação, mostrando como ele mobili-
zou os recursos simbólicos da sua cultura para dar sentido a uma vida imersa
em profunda crise existencial e formular um plano de vida consistente com
sua experiência de uma doença neurológica cró nica.

Perfil cl ínico

O paciente, a quem chamarei de Dan, participava de um estudo maior


da experiência de enfermidade entre pacientes navajos de câncer (Capítulo
Sete), realizado com a cooperação dos hospitais do Serviço de Sa úde Indí-
gena em Fort Defiance e Tuba City na reserva navajo no Sudoeste dos Esta-
dos Unidos. Pude acompanhar seu progresso durante dois anos, começando
um ano após o surgimento de sua doença , em 1985, e concluindo em
1988, aproximadamente um ano antes de ele sucumbir. Dan tinha 30 anos
quando eu o conheci, um ex-soldador que falava inglês e fizera dois anos e
>

meio de faculdade. Ele vinha de uma fam ília bicultural relativamente acul-
turada; sua mãe era professora primária e seu pai um chefe de cerimónia ou
“andarilho” na Igreja Americana Nativa ( peiotista), e um irm ão estava fre-
quentando faculdade. Dan era divorciado e, desde o in ício da sua doen ça,
foi carinhosamente cuidado pela pró pria fam ília.
Seu diagnóstico foi astrocitoma de grau II, um tumor cerebral no lobo
temporal-parietal esquerdo. Após a remoção do tumor, ele fez quimiotera-

339
"
! :
:
'

: í i CORPO / SIGNIFICADO / CUKA


i { i
pia e radioterapia e foi mantido sob medicação para o controle de tremores
(pernas, m ão direita e cabeça) e sinais neurológicos convulsivos. Depois da
cirurgia, ele teve dor de cabeça crónica, hipersensibilidade da incisão opera-
tó ria e auras olf à tivas e parestesias ocasionais. Seu perfil psiqui á trico foi
caracterizado por solid ã o, pessimismo, d ú vida de si mesmo, sono insufici-
ente, baixa energia, dificuldade para expressar pensamentos, processos men-
tais rígidos, emotividade embotada, ideação desorganizada, fala desconexa,
preocupação com estratégias confusas para um planejamento de vida, senti-
mento de depressão todos os dias e uma sensação de perda irreparável pela
separação da mulher e dos filhos; seu diagnóstico formal incluía transtorno
orgânico de personalidade e déficits mentais.
O status de reabilitação de Dan foi dominado pela perda e recuperação
gradual da habilidade linguística, acompanhadas pela frustração de que “não
consigo dizer meus pensamentos” e de que reconhecia seus parentes, mas
“não consigo dizer o nome deles”. Ele explicou que algo “me vem à cabeça,
mas eu n ão consigo dizer”. Sua habilidade com a língua falada parecia voltar
mais completa e rapidamente do que com a escrita, e ele reclamou que
f 1
embora seu inglês estivesse sempre melhorando, o pouco de navajo que ele
fora capaz de compreender perdera-se completamente. Um teste de inteli-
gência não-verbal aplicado um ano após a operação deu um resultado de 66
pontos, indicando tecnicamente a persistência de um pequeno retardo, mas
de valor ambíguo, baseado em fatores motivacionais e culturais que podem
1 ter afetado o desempenho no teste.
Dan recusou a psicoterapia e a reabilitação vocacional recomendadas.
!
Sua sessão de teste mental pós-operatório deixou-o tremendo e com dores
de cabeça por causa do esforço, e ele aparentemente percebeu tal interven-
fl ção como contraditória ao conselho m édico de n ão precipitar as coisas na
volta às atividades normais.98 Ele manifestou certa resistência às longas via-

: 5Í
Isso traz a questão de pressupostos culturais sobre a reabilitação e a recuperação, um tópico
ainda muito inadequadamente examinado. É possível que a suposição anglo-americana de
que alguma forma de reabilitação formal deve começar o mais cedo possível esteja aqui
contradita por uma suposição navajo de que se deve esperar pela reabilitação, ou até que as
capacidades “tenham voltado” antes de entrar em qualquer reaprendizado formal , mesmo
I que este próprio reaprendizado vise evitar esforços excessivos para o paciente.

340
i
t !!
I
Palavras do Povo Santo

gcns até um centro m édico universitá rio fora da reserva, sob a alegação de
que os doutores ali “n ão fazem nada”, e ele preferia o atendimento domici -
liar dos agentes de sa ú de. Nesse meio tempo, Dan desenvolveu sua própria
estratégia de reabilitação para reaprender o vocabulá rio ao descobrir a exis-
tê ncia de livros de palavras cruzadas, com jogos de páginas de letras nas
quais se deve identificar palavras cm linhas verticais, horizontais ou diago-
nais. Completar esses quebra-cabeças era a principal auvidade de Dan. Em-
bora o trabalho muito duro nesses jogos eventualmente lhe causasse dores
de cabeça, essa atividade parecia lhe oferecer uma forma automotivada de
terapia linguística e reabilitação cognitiva.
No verão de 1988, a mem ória e a capacidade de ler de Dan haviam
voltado. Mesmo tendo estado deprimido e permanecendo inseguro de sí e
de suas habilidades, ele declarou estar novamente “tentando”. Ele conti-
nuou trabalhando em seus quebra-cabeças de palavras, registrando o au-
mento da velocidade com que conseguia completá-los e comparando sua
maneira cada vez mais Empa de circular as palavras com os primeiros jogos,
que, segundo ele, pareciam ter sido feitos “por uma criança”. Ele admitiu ter
se “tornado um perfeccionista no vestir e na aparência” a ponto de suas
irmãs brincarem dizendo que o cirurgião “deve ter adicionado algumas cé-
lulas cerebrais”. Ele tinha começado novamente a falar em ter uma fam ília e
a fazer piada sobre “ ir à luta para arrumar uma gata”. Sua condição física
naquela época era estável.

Fenomenologia cultural da linguagem e da inspiração

Dan considerava-se uma pessoa ativa e expressava frustração por não


ser capaz de trabalhar. Ele relatou ter comentado com seus médicos que era
tão difícil seguir o conselho deles de não precipitar as coisas que “talvez
vocês acabem tendo que me amarrar... [ou] ir a um médico especial nova-
mente, o que eles fazem , eles te põem para dormir, mas eles falam contigo
[hipnose].” A solu ção de Dan, entretanto, era “seguir o caminho navajo” e
aprender a ser “o tipo de pessoa que ajuda as pessoas” - um curandeiro. Isso
se tornou de fato a estratégia preferida de Dan para a reconstru ção da sua
vida, focada em torno da sua luta existencial por linguagem e expressivida-

341
!í fill
-
It
: I CORPO / SIGNIFICADO / CURA

! ;
: de. EIc indicou que essa estratégia surgiu num encontro direto com deida-
! S des navajos ou Povo Santo, que o inspiraram com palavras de ora çã o.9’
'
;
i
l i ;; H í i .
Sim Sim. Eu acho, viu , cu nunca tive o costume dessa ajuda , esse tipo
de ajuda vindo, mas. .. ah , minha vida está mudando, mas ainda agora
ela meio que me machuca [...] algumas vezes cu tenho umas orações -
jh l i quando cu era muito pequeno, aprendendo, cu orava na frente de mi -
Ii li li '
11 ;l —
nha m ãe c meu pai ou cu falava com eles viu , algumas dessas [novas]
palavras, eu nunca soube, cu nunca soube. Minha m ãe c meu pai apenas
I disseram que na verdade eles nunca tinham ouvido elas [serem ditas
’ pelos navajos]. Mas então cu contei a eles c disse que tem coisa que cu
I posso ouvir. Eu disse “Alguém me acordando quer que eu escute”, mas
I ;í então eu rcalmcntc tenho dor na minha cabeça e a í cu costumo me
levantar. Mas [quando ocorreu pela primeira vez durante o tratamento
!
de Dan num hospital fora da reserva] n ós estávamos ficando no motel c
meu pai estava, meu pai cuidou mim , entã o n ós ficamos no motel o
tempo todo, entã o alguma vez vamos dormir pelas 7 e a í n ão consigo
dormir [pausa] meus olhos simplesmente abrem como se cu estou sem
sono c eu digo, bem , tanto fàz se cu ligar a TV, então vou ligar a TV,
: Mí naquela época [logo após a cirurgia] també m eu n ão podia entender o
que era TV, sabe, o que uma TV era ou o, o diferente programa, eu só
olho eles, eu só sento lá assim sem rir porque esqueci [o que significava]
!
— —
cu n ão faço mais isso e daí cu sento ali e eu digo bem eu acho que cu
— —
posso ir dormir c acabo ficando lá deitado eu tentei ir pô! só arregalo
os olhos de novo, só como uma fala vem , vem, vem e eles me mantê m
aqui por uma boa hora e meia. Então, eu pego uma dor de cabeça se cu

não, se cu não falo coisa nenhuma. Eu posso sentir isso, então meu pai,
cu sei que ele está cansado também e ele tem , eu digo “pai por favor você
! pode sentar ”. Eu disse: “Algumas palavras vindo a mim cu gostaria de
; ;: ' mencionar a você. Eu quero que você me diga se estas sã o certas são ou se
elas são erradas. A palavra que eu , que eu tenho.” Então é o caminho
i . navajo sobre muito tempo atrás e meu pai diz “como você pode saber

> 99 As transcrições das palavras de Dan evidenciam uma cont ínua incapacidade ling íi ística
relacionada à doen ça, e, por essa razão, elas n ão foram editadas para aumentar sua fluência .

’ !
|f 342
r
i :
í

-Jk
Palavras do Povo Santo

porque você nunca nem soube que estas enquanto você acorda elas são
colocadas no seu cé rebro”. E ele diz então cu tenho que perguntar a
algu é m , cu tenho que falar ou com minha m ãe ou meu pai c perguntar
a eles cada coisas que algumas vezes são - cu mudo ela c é a í que eles
ficam chateados comigo. . . [ passagem confusa]... então cu mudei uma
daquelas palavras c eles ca íram [ i.c., foram induzidos ao erro] minha
mãe c meu pai eles caíram eles n ão conseguiam pensar por que isso saiu
desse jeito entã o eles estavam tentando pensar sobre qual [das suas pala -
vras] estava indo certa , eles estavam dizendo que isso que eles costuma -
vam fazer muito tempo atrás. Entã o enquanto cu fazia, mudar só um
pouco cu mesmo cu podia sentir isso, bem como se você vai vomitar,
ééé, c a dor bem vazia de novo você está só fazendo “duu! duu! duu!” [faz
sons descrevendo uma sensação corporal /cognitiva] pois é, c eu apenas
sentei lá e então eu só tive uma audição que diz “manda de volta , manda
de volta”. Então, eu só sentei l á c eu , eu disse “m ãe, pai”, eu disse, “vocês
tem que ouvir isso dessa forma”. Eu disse eu cometi um erro. Então cu
falei da forma que me veio. Então eles puderam responder assim então
eles ca íram direitinho.

Este episódio ocorreu relativamente cedo na recuperação pós-operató-


ria de Dan, quando suas habilidades cognitivas estavam tão debilitadas que
ele nem podia compreender os programas de televisão. Inclui uma extensa
experiência auditiva, seguida por uma compulsão a falar que aliviou sua
intensa dor de cabeça e o deixou com uma “sensação boa de felicidade”. Para
Dan essa ajuda espiritual recebida do Povo Santo foi diferente da forma que
ele aprendeu a rezar quando criança. A ajuda n ão vem como uma resposta à
oração - é a pró pria capacidade de orar que constitui ajuda para Dan, e sua
fam ília concordou que ele, de fato, nunca foi capaz de orar antes como faz
agora. Ele també m relatou que quando perguntou ao seu pai , ele pró prio
um chefe de ritual, por que ele estava falando desse modo, seu pai respon-
deu: “Algum dia você vai ser uma pessoa muito poderosa para ajudar pesso-
as.” Alguns de seus parentes mais jovens, que ele já havia começado a encorajar
com sua sabedoria recém-descoberta , haviam dito: “ Tio Dan , nós meio que
sabemos que você vai ser curandeiro”.
Contudo, sua condição tornou a validação cultural da sua experiê ncia,
que era crítica para Dan, um tanto problemática. Durante a luta por fluên-

343
f
I
V
i I 1

!
- 1
:: CORTO / SIGNIFICADO / CURA
t
!
! I! i:
;
cia que caracterizou a recuperação de Dan , seus pais c outros tiveram difi
culdade de comprccndê-Io. Essa dificuldade era composta de grave defici-
-
li
StUi# \\ ê ncia lingu ística e do entendimento de que a enuncia ção era uma revela çã o
direta de uma síntese nova e contemporâ nea da filosofia navajo tradicional
i em uma pessoa jovem que nunca antes havia conhecido tais coisas. Dan
indicou que seus pró prios esforços para corrigir sua fida eram ineficazes, e

1: 1 que, apenas quando ele consentia em “mandar de volta” e deixar sua fala sair
da forma como era inspirada, eles começavam a entender.
Seus pais também lhe disseram que ele devia falar diante dos anciãos
m; no encontro de peiote para que eles confirmassem. Ele fez isso em uma série
Ir 1
i
de quatro encontros de peiote realizados para a sua recuperação pós-cir ú rgi-
:
ca. Esses encontros duram uma noite inteira, durante a qual os participantes
fij) ingerem peiote, cantam e se revezam pronunciando orações frequentemen -
te longas, espontâneas e inspiradas (Aberle, 1982; La Barre, 1969). Nesse
I cenário, cada um dos oficiantes do ritual, os pacientes e muitas vezes outros
í* anciãos oram formalmente e h á intervalos nos quais a conversação discreta é
»

.11

j permitida. Esses intervalos incluem tipicamente encorajamento e exortação


do paciente. Dan relatou ter começado a sua fala admitindo que o que ele
!; [ )' i i
iria dizer poderia n ão ser compreensível para os mais velhos porque ele era
uma pessoa mais jovem e suas palavras seriam “novas em folha”, e recebido
a permissão deles para falar sob a alegação de que “se você quer ajudar as
pessoas [com] o que está dizendo, n ós temos de ouvir você”. Ele disse: “Eu
preparei meu coração e orei a Deus, primeiro, pergunte a ele, é isso que eu
quero para o resto da minha vida [ser um curandeiro]?”
Ele também contou a eles o seu desejo de passar quatro anos como
caubói (isto é, montar em pêlo profissionalmente) antes de se tornar curan-
!
- Í deiro. O desejo an ómalo de Dan de ser um caubói de rodeio, que persistiu
ao longo do tempo em que eu o conheci, é muito provavelmente o elemen-
to que levou o psiquiatra consultor a relatar “estratégias confusas” no seu
pensamento. Na narrativa de Dan isso aparece como parte consistente do
seu plano, ainda que muito pouco realista dada a sua condi çã o física. Ele
descreve a desejada carreira de caubói com uma duração específica de quatro
1 anos antes de se tornar curandeiro, indicando pelo uso do n ú mero quatro
sagrado que seria um período preparató rio. Além de satisfazer um desejo
pessoal, isso provaria que ele estava fisicamente apto, ganhando dinheiro e

344

u
Palavras do Povo Santo

talvez ajudasse a estabelecer uma reputação que poderia ser transferida ao


trabalho de curandeiro.
Embora Aberle (1982) observe que, cm contraste com o ritual navajo
tradicional, é virtualmente imposs ível cometer um erro em ora ção de peio-
te, era evidente pela narrativa de Dan que sua fala no encontro de peiote
suscitara críticas. Como ele disse, “algumas vezes, eles vão em cima de você,
se por exemplo você fala errado ou se você fala e está errado, ou se o seu
pensamento está errado. Aí é que eles vão em cima de você, eles dizem.”
Dadas sua incapacidade linguística, sua mensagem inovadora ou idiossin-
crá tica e sua proposta de se tornar curandeiro através de uma carreira de
caubói de rodeio, a reação à sua fala foi, n ão surpreendentemente, um tanto
confusa. Dan reconheceu que algumas pessoas o acusaram de estar “errado”
e “desconexo” naquilo que estava dizendo, inclusive interrompendo-o, numa
violação do protocolo ritual dos encontros de peiote, a ponto de fazê-lo
chorar. Todavia, essa reação parece ter sido mediada pelo líder da cerim ó nia,
que aceitou a legitimidade do que Dan disse e també m reconheceu que o
problema é “apenas a forma de você falar”. Notando que o pai de Dan
estaria ficando velho e que as deidades navajos ou Povo Santo pareciam
estar indicando que Dan poderia eventualmente substituí-lo, o líder con-
cluiu, de acordo com o relato de Dan: “ ‘Algum dia você vai ser uma pessoa
de grande ajuda’, foi assim que eles me disseram [...]. Então, a partir daí eu
sempre vou ajudar.”
Seis meses depois, em outro relato do mesmo incidente significativo,
Dan admitiu ter cometido erros no que estava dizendo que irritavam as
pessoas, e uma certa arrogância ao parecer “forçar” nos outros sua mensa-
gem de inspiração juvenil. Ele disse que ao tentar explicar seus pensamen-
tos, ele teve de “mudar de volta e então não tem nenhum ressentimento”,
mas do seu ponto de vista, Dan eventualmente conquistou os anciãos. Pare-
ce haver três aspectos na validação da alegação.
Primeiro, creditando sua cura à ajuda espiritual obtida em encontros
de peiote anteriores, ele alegou que a inspiração divina que era consequê ncia
dessa cura deveria ser ouvida por outros peiotistas. Ele reforçou esse argu-
mento afirmando que poderia falar dessa maneira mesmo se seu “cé rebro
fosse cortado fora”, e que outros com problemas similares nem recuperam
a fala: o pró prio fato de que ele podia falar validava suas palavras. Em outro

345
rf
i i S!
: li
SÍ CORRO / SIGNIFICADO / CURA
.

Í
|!; í ' ! ponto de nossas entrevistas, ele disse que nunca teve o costume de falar
como fala agora, rcfcrindo-sc evidentemente n ão apenas ao conte ú do da sua
íi fala , mas ao fato de que antes da sua enfermidade ele era mais taciturno.
I Segundo, invocando um critério corporal de validade, os outros parti-
!11! : cipantes reconheceram que Dan teria ficado enfermo se sua oração tivesse
sido incorreta. É bem sabido que a ingestão de peiote pode causar fortes
i i! ,

vó mitos. Uma interpretação é que o Povo Santo causa esse sofrimento para
! ! punir pensamentos ou falas incorretas. Posto que Dan n ão foi afetado pelo
peiote, suas palavras foram finalmente entendidas como detentoras de apro-
'i vação divina.
. .

i Terceiro, Dan argumentou que parte da razão para suas palavras serem
mal compreendidas era que elas eram endereçadas à situação contemporâ-
nca e problemas dos navajos mais novos. Embora reconhecendo que os
mais velhos podem ajudar jovens perturbados com encontros de peiote, ele
enfatizou que agora há muito mais gente no mundo e que as coisas são
diferentes do que eram 25 anos atrás. As pessoas idosas conhecem apenas a
reserva, mas os jovens viajaram e até estiveram em faculdades, e então estão
sendo inspirados com diferentes tipos de oração. Segundo Dan, os partici-
pantes reconheceram que suas palavras poderiam ajudá-los a entender me-
lhor os próprios netos. Ele alegou que alguns chegaram a chorar ouvindo
suas palavras, uma reação em conformidade com a ocorrência comum de
pranto sentido quando algué m se comove com a sinceridade do orador
durante as orações de peiote (Aberle, 1982, p. 156; La Barre, 1969, p. 50).
A experi ência da l íngua novamente desempenhou um papel notável e
pungente com respeito ao tema de que sua mensagem era voltada à juven-
tude navajo. Mesmo sendo o inglês a sua primeira língua e m ínimo o seu
conhecimento de navajo, pelo que disseram tanto ele como a sua m ãe, ele
atribuiu muito significado à perda aparentemente permanente da facilidade :
linguística em navajo enquanto recobrava a capacidade de falar em inglês:

Então, eu disse, acho que é isso que vocês dizem


que eu estou apren-
dendo a ser uma pessoa navajo, eu acho”, [pausa]
mas então eu disse as
razões é porque talvez vai ser eu quem
ajuda porque tem milhares de
pessoas, eu acho, eu acho que por isso eu
que tem milhares, milhares de pessoas
perdi minha fala navajo, por-
que foram à escola l á [em] facul-
346
Palavras do Povo Santo

dadcs, eles n ão entendem direito, mas então às vezes eles querem ajuda,
mas então eles n ão conseguem entender o navajo, então eles ficam cha-
teados. Sã o pessoas novas, eles fazem o trabalho inteiro para elas no
caminho navajo c elas rcalmcntc não dão conta do recado, n ão sabem o
que está sendo dito c então [elas] ficam meio irritadas com isso e então
n ão sabem mais para onde ir .
Ele concluiu que perdeu o seu navajo porque o Povo Santo queria que
ele apresentasse sua mensagem em inglês aos jovens que queriam ajuda das
cerimonias navajos tradicionais, mas que ficaram frustrados porque não
conseguiam entender os procedimentos cerimoniais. “Talvez eu possa dar
isso a eles”, disse Dan.
O fato de que Dan atribuiu grande parte da sua recuperação à ajuda
divina propiciada pelo peiote fica evidente no seguinte trecho de nossa se-
gunda entrevista. O contexto do trecho é a minha questão sobre a reação
dele ao peiote durante os encontros realizados em seu benefício, uma ques-
tão visando identificar qualquer interação experimental entre os efeitos da
substância psicoativa e a sua condição neurológica:

[O peiote] não me incomodou realmente. Ele só [pausa] o caminho, o


que foi, só me trouxe para onde eu posso usar a mente para pensar [...].
Mas se eu não [pausa] eu n ão teria nada. Veja, aquele rem édio é o que
[pausa] eles [o Povo Santo] nos dão, é o que nós usamos. Esses é que eu
como [pausa] e ele vai através da minha mente. Ele me traz coisas [pau-
sa] pois novos tipos é que são mandados [pausa] e é aí que ele entra em
mim [ pausa] eu começo a minha fala. Eu nunca tive o há bito de falar,
mas agora tem palavra diferente que sai tudo [pausa] principalmente
quando tenho orações [pausa] eu faço perguntas e então logo antes de ir
dormir, algumas vezes eu [ pausa] eu tenho uma ora çã o [ pausa] e eu
então eu me pergunto que por isso é que eu sempre digo “ Pai Celestial,
eu me pergunto”. Eu sou uma pessoa questionadora [ pausa] jovem como
eu sou, por alguma razão eu quero ser algu é m que ajuda as pessoas,
gente jovem da minha idade, alguns deles podem ser mais velhos do que
eu. Então eu quero ser aquele tipo de pessoa[.. .]. Então às vezes eu
durmo [pausa] e quando eu durmo aqui [nesta casa?] tudo está perto de
mim. Um sentimento me vem, algumas palavras grandes, tudo sobre o

347
rf
i!
rf
' ! : CORPO / SIGNIFICADO / CURA

i; : que cu nunca pensei c então quando cu me levanto de manh ã cu falo


com minha Mã e e meu Pai [pausa] principalmcntc com meu Pai [o
|j andarilho do pciote] mais, c cu pergunto a ele são esses tipos dc palavra ,
H elas estão certas ou elas estão erradas? [. ..] [Eu pergunto: “ Vocc pode
dizer quais são algumas dessas palavras? ”] É como [pausa] cu digo, “ Pai

I !: Celestial ”, cu disse: “ Neste momento minha vida está atravessando muita


dificuldade, mas o tipo de palavra talvez cu não tenha falado pai celestial
I talvez isto é que está me amarrando. Eu quero que você me ensine pai
M celestial [pausa] minha vida tem [pausa] nenhuma [suspiro] alegria dentro
dc mim. Mas então do tipo [n ão claro] em mim pai, é o tipo que seria é
mais principalmente o povo navajo [pausa] colocar eles juntos, n ão force
!! eles, de leve, n ão force eles.” Veja essas [espécies de palavra] começaram
a sair, mas eu nunca usei elas, porque as pessoas elas sentam [ no encon-
tro de pciote] e elas olham [pausa] elas apenas começam a rezar muito
baixinho. Então cies falam comigo dc manh ã [no final do encontro] eles
dizem “você vem Dan”, [pausa] eles dizem: “Você nunca costumava orar
. daquela forma.” Eu disse: “É isso que eu tenho atravessado e me faz sentir
muito mais feliz muito melhor... que minha mente está vindo de fato.”

A capacidade de pensar e falar de forma “direta” tem alta prioridade na


i
prá tica da Igreja Americana Nativa (Aberle, 1982; La Barre, 1969) e entre
os navajos em geral (Witherspoon, 1977), e Dan atribuiu explicitamente
sua capacidade de fazer as duas coisas ao peiote na medida em que ele “passa
através de minha mente” e “traz coisas para mim”, de modo que “eu começo

i a minha fala”. A pequena amostra de oração que Dan pronunciou para mim
também parece bastante apropriada no contexto peiotista. “Pai Celestial ” é
uma fó rmula comum de apresentação em orações de peiote navajo (Aberle,
1982, p. 153).
* • ;

i
A noção de Dan de que há uma “palavra que talvez eu n ão tenha fala-
1

do” que está “me amarrando” é particularmente interessante. Se é verdade


que na religião navajo tradicional existe uma preocupação com a absoluta
exatidão da enunciação dentro de um rígido câ none lit ú rgico, há uma pre-
ocupação equivalente no peiotismo com a enunciação espontaneamente
t
criativa do mot juste ritual. Isso assume particular importâ ncia no caso de
I• uma pessoa afligida por anomia, para quem a reabilitação e a inspiração
estão sintetizadas, e a capacidade de enunciar exatamente as palavras certas
hi! .!ill;

1 348
Palavras do Povo Santo

significa tanto cura pessoal como capacidade de ajudar outros. A relevâ ncia
dessa síntese sc confirma na pró pria declaração seguinte, na qual Dan ora
para que o povo navajo seja capaz de sc entender gentilmente com o futuro
c pede que o divino “n ão force eles” - precisamente o conselho dado a Dan
por seus m ódicos sobre sua reabilitação.
Outras declarações em nossas entrevistas indicam que a mensagem de
Dan estava em conformidade com temas morais tradicionais do peiotismo
navajo, incluindo a preocupação com estudantes distantes da reserva, a im-
portância da educação no mundo contemporâneo, relações com pessoas
brancas e identificação com os Estados Unidos, bem como com a humani-
dade como um todo (Aberle, 1982, p. 154, 156). A cena altura Dan fez
um longo discurso sobre o conceito tradicional do ciclo de crescimento e o
decl ínio da vida, simbolizado pelo altar de peiote, lamentando como as
pessoas velhas eram negligenciadas pela juventude contemporânea e deixa-
das em asilos. Outro caso realça considerações morais globais:

Esta terra é muito pequena e está abarrotando e abarrotando mundo


afora, e. .. para [evitar] ter uma guerra e ter uma grande como se chama
aquilo, o povo russo [...]. Por algum motivo isto me bateu e me fez
acelerar [suspiro] tentando aprender e tentando começar a orar, orar do
modo bom, para segurar [a guerra], então nós não queremos ir até lá e
começar a lutar de novo, ter que lutar. Eu disse esta é a nossa terra, as
pessoas brancas que vêm até aqui... mas desde que estamos todos mistu-
rados, obrigando n ós í ndios a ajudar, muitos deles vão se machucar,
muitos deles n ão vão voltar para casa [...]. E então só podia ser [pausa]
o que aconteceu com eles [...]. Eles têm um grande estouro. Na Rússia.
Veneno. Uma parte dele fez a volta toda. J á me atingiu - eu já sabia.
Então tivemos de pedir aos Estados Unidos que enviasse algumas pesso-
as lá que são espertas para eles poderem tampar aquela coisa. Foi isso que
-
aconteceu. Então a í eles n ão quiseram mais discutir, eles ficaram satisfei
tos um com o outro... Eu disse isso é exatamente como o caminho
navajo, você sabe. Eles tão tentando, tão aprendendo antes da hora, eu
acho que é isso aí. Eles tentam avisar as pessoas antes da hora. E tem vez
que eles n ão conseguem entender, você sabe. Fica perto demais. Mas
então você sempre, você apenas menciona, você não pode for çar eles.
Você só pode ajudar eles.

349
min ! ii ii CORPO / SIGNIFICADO / CURA
; !
I
ii Nesse trecho Dan conta uma experi ê ncia prof ética que encorajou suas
aspirações espirituais e imprimiu nele a urgê ncia moral das preocupações
; globais. A experiência foi a de saber do desastre nuclear russo cm Chernobil
antes de ele ocorrer. O crescente círculo de perigo que ameaça os navajos cm
virtude de sua cooperação com os Estados Unidos em qualquer conflito
:
- com os (ex) soviéticos, e que da mesma forma identifica a boa vontade
americana em oferecer amistosa assistência técnica aos sovié ticos com o “ca-
minho navajo” da harmonia, é consoante com o “círculo de oração” em que
í as orações de peiotistas navajos geram “disseminação gradual das bênçãos do
grupo imediato, daqueles presentes para o mundo inteiro” (Aberle, 1982,
p. 153 ).
: . /Essa implicação cosmológica coroa a an álise existencial da linguagem
para Dan. Ser uma pessoa navajo de verdade significava ter a atualidade da
linguagem como um modo de envolvimento no mundo, ter o projeto de
tornar-se curandeiro era a razão fundamentando o retorno da linguagem, e
! a espiritualidade peiorista definia o horizonte moral do seu discurso como
um horizonte global. Sua luta n ão era pela langue, uma capacidade cogniti-
va abstrata ou representacional, mas pela parole, a capacidade de produzir
enun dações coerentes, social e moralmente relevantes

Neurologia e fenomenologia cultural


^
Lembremo-nos que apesar da rejeição de Heidegger da noção de cor-
po como um “organismo animal”, a fenomenologia da corporeidade pro-
pôs um diálogo teórico e empírico com a biologia, especificamente na an álise
de Merleau-Ponty (1962) de pacientes com lesões neurológicas. Até este
ponto minha exposição foi uma hermen ê utica da luta de Dan por uma
verbalização significativa, uma hermen ê utica que mostra como ele temati-
zou e objetificou sua experi ência corporificada da linguagem num projeto
1
de vida em conformidade com significados culturais e religiosos. Devemos
agora colocar essa an álise em diálogo com a considerável literatura sobre as
.

consequ ências experienciais e comportamentais de lesões do lobo temporal.


! Embora essa literatura focalize quase exclusivamente pacientes com epilep-
sia em vez do tumor cerebral relativamente mais raro, a persistência de um

350
Palavras do Povo Santo

problema convulsivo secundá rio após a remoção de um astrocitoma tem-


poral-parietal esquerdo justifica um exame da epilepsia do lobo temporal
esquerdo a fim de compreender vá rias características formais da experiência
pós-cir ú rgica de Dan.
Dois grandes grupos de s índromes comportamentais são de possível
relevância. O primeiro são as chamadas psicoses epil é pticas tipo esquizofre-
nia, que são de caráter episódico e clinicamente semelhantes a psicoses atípi-
cas, e nas quais a maioria dos pacientes tem comprometimento do lobo
temporal esquerdo ou bilateral (Slater; Beard; Glithero, 1963; Tucker et
al., 1986). O segundo é a chamada síndrome comportamental interictal de
epilepsia do lobo temporal, que descreve um complexo de comportamen-
tos durante o período entre convulsões expl ícitas ou atividade ictal que
indicam mudanças duradouras de personalidade causadas pela enfermidade
(Waxman; Geschwind, 1975). Uma característica crucial observada em pro-
porções notáveis de pacientes em ambas as categorias leva o rótulo clínico
de “hiper-religiosidade”. A primeira amostragem documentada de psicose
tipo esquizofrenia inclui 26 (de 69) pacientes que exibiram tal religiosida-
de, apenas oito dos quais eram religiosos antes do surgimento de sua enfer-
midade, e seis dos quais experimentaram episódios profundos e algumas
vezes repetidos de conversão religiosa (Dewhurst; Beard, 1970). Em um
estudo mais recente de pacientes internados inicialmente por transtornos
comportamentais e diagnosticados secundariamente com problemas con-
vulsivos, cinco de 20 pacientes apresentaram hiper-religiosidade (Tucker et
al., 1986). Na sé rie de casos citados para definir a síndrome de comporta-
mento interictal, seis de nove pacientes apresentaram algum grau de religio-
sidade (Waxman e Geschwind, 1974, 1975).
Com muita razão foi levantada a hipótese de que, apesar da sobreposi-
ção em relação a características como a hiper- religiosidade, há um grau de
distin ção entre os fenômenos ictais clássicos propriamente ditos, os grupos
episódicos de características afetivas que definem as psicoses epilé pticas, e as
síndromes comportamentais interictais inevitáveis (Tucker et al., 1986).
Para Dan, parece que a verdadeira atividade convulsiva foi em grande pane
controlada com medicamentos, e não h á qualquer evid ê ncia que justifique
o ró tulo de psicose epilé ptica. No entanto, as seguintes caracter ísticas da
sí ndrome comportamental interictal apontadas por Stephen Waxman e

351
s
! CORPO / SIGNIFICADO / CURA

!
li ! Norman Geschwind (1975, p. 1584) sugerem sua relevâ ncia no caso de
Dan:
i -
)

Convicções éticas profundamente arraigadas c um profundo senso de


; j. certo c errado [...] interesse cm questões globais como pol ítica nacional
ou internacional [...] extraordiná ria preocupação com detalhes, cspcci-
: ! almcntc em relaçã o a questões morais ou é ticas [...] preocupação com
detalhe e clareza [de pensamento] c um profundo moralismo [.. ] mui- .
: tas vezes a fala parece circunstancial por causa da tend ê ncia desses paci-
.
entes a fazer digressões por temas secund á rios c mesmo terciários [...]
aprofundamento da resposta emocional na presen ça de fun çã o intelec-
tual relativamente preservada.

Um segundo conjunto de autores descreve essas mudanças n ão como


uma síndrome comportamental, mas como uma síndrome de personalida-
de que inclui hipermoralismo, idéias religiosas, um estilo cognitivo extraor-
dinariamente reflexivo, tendência a rotular est ímulos emocionalmente
evocativos de maneiras atípicas, circunstancialidade, falta de senso de hu-
mor, dificuldade de apresentar os nomes de objetos e um estilo ponderado,
só brio e obsessivo provavelmente relacionado ao esforço para compensar e
dar sentido a um mundo tornado exótico por disfunção da língua e confu-
são sobre o ordenamento temporal das relações de causa e efeito (Brandt;
HI , i :d Seidman; Kohl, 1984).100
; i. /Devemos prestar muita aten ção aos transtornos de linguagem na epi-
lepsia do lobo temporal, pois a língua desempenha um papel crucial tanto
na frustração de Dan a respeito de sua anomia como na sua habilidade ou
compulsão divinamente inspirada de orar. Duas características da síndrome
í de comportamento interictal são relevantes: hipergrafia ou tend ê ncia de
escrever compulsivamente e, muitas vezes, repetidamente e verbosidade ou
loquacidade, a tendência a ser excessivamente tagarela, discursivo e circuns-
I!
100A maioria dos autores relata uma latência de vá rios anos entre o in ício da epilepsia e a
emergência da síndrome comportamental; o estudo de caso de Dan foi realizado entre 12
e 30 meses após sua cirurgia.

352
Palavras do Povo Santo

tancial na fala. Talvez devido à combinação da deficiê ncia cognitiva relacio-


nada h enfermidade c o tremor cont ínuo de uma pessoa destra com lesão do
hemisfé rio esquerdo , Dan julgava-se praticamente incapaz de escrever qual-
quer coisa e, a menos que sua dedicação a palavras cruzadas seja vista como
uma forma de hipergrafia , essa característica deve ser considerada ausent
Por outro lado, a verbosidade está evidente tanto nas transcrições de suas
entrevistas como na sua capacidade de gerar longas orações de peiote. Sendo
^
assim, isso é consistente com o nosso argumento de que a hipergrafia é uma
característica t ípica da epilepsia do lobo temporal direito (Roberts; Robert-
son; Trimble, 1982), enquanto a verbosidade é associada à epilepsia do lobo
temporal esquerdo ( Hoeppner et al. 1987; Mayeux et al., 1980).
Uma hipótese importante para o que nos interessa vem da observação
de que o desempenho de epilépticos do lobo temporal esquerdo em testes
de nomeaçã o por confrontação e outras dimensões do funcionamento ver-
bal é pior do que o de outros epilépticos (Mayeux et al., 1980). Os pesqui-
sadores sugerem um local de lesão no lobo temporal esquerdo inferior e
propõem que a integração de dados sensoriais necessários à nomeação ocor-
re no lobo parietal. Isso afirmaria a importância do local temporal-parietal
do tumor de Dan na sua reconhecida anomia. No entanto, o ponto crítico
do argumento deles é que a loquacidade é muito provavelmente uma estra-
tégia adaptativa para compensar a incapacidade do paciente de encontrar a
palavra certa, e não é nem um efeito direto da lesão, nem um “traço de
personalidade” de um epiléptico como geralmente se presume. Janis Jenkins
(1991) observou a predisposição cultural na psicologia e na psiquiatria ame-
ricanas a explicar comportamento por atributo de personalidade, uma pre-
disposição que, nesse caso, pode obscurecer a importância da intencionalidade
e do autoprocesso reconstitutivo. Eu diria que essa hipó tese é apoiada por
uma revisão das entrevistas de Dan, nas quais boa parte da aparente ponde-
rabilidade pode ser atribuída às frequentes partidas falsas e reformulações de
frases que indicam uma busca pela palavra apropriada.
O desejo de Dan de tornar-se curandeiro está infimamente relaciona-
do com a sua busca da “palavra que talvez eu n ão tenha falado, pai celestial,
talvez é isso que está me segurando” e sua meta de ensinar e ajudar como
curandeiro através da reza de longas orações de peiote. Comparem essa cena
pessoal com o caso descrito por Waxman e Geschwind de um homem

353
,r
i. tf III
Ii CORPO / SIGNIFICADO / CURA
* :I
! 1 branco de 34 anos que tinha sido submetido a vá rias craniectomias para um

íi
|
abcesso temporal-parietal esquerdo, exatamente o local da lesã o de Dan:
: “ Trcs anos depois da cirurgia [...] sua ficha hospitalar registra que ‘agora ele
l i' expressa interesse em religião e, possivelmente, cm se tornar ministro e es-
! I
pera aumentar seu uso de boas palavras’ para este fim
I
Logo depois, ele mesmo sugeriu e fez vá rios serm ões na sua igreja.
Espontaneamente ele distribuiu cópias dos textos desses serm ões para os
'
seus m édicos. Os serm ões abordavam altas questões morais, que foram
|
' tratadas em “detalhe meticuloso e alramcnte circunstancial ” (Waxman; Ges-
í:
'
í
chwind , 1974, p. 633). A anomia de Dan e a afasia desse paciente - ou, para
ser mais específico, as características compartilhadas de suas recuperações -
; poderiam certamente ser objetificadas em termos neurológicos, mas a inca-
!
pacidade de encontrar uma palavra carrega um significado existencial pré-
objetivo que também se torna objetificado ou tematizado principalmente

em termos religiosos. Em outras palavras, a extraordinária semelhança des-
i ses casos deve-se muito provavelmente ao semelhante local da lesão neuro-
:
? lógica, mas embora a lesão explique facilmente o transtorno lingu ístico, ela
!
não explica adequadamente a elaboração do significado moral de encontrar
a palavra certa. Isso leva diretamente de volta à existência corporal e “ao
\
social que carregamos conosco por aí antes de qualquer objetificação”. No
caso de Dan podemos discernir essa base existencial de duas maneiras: em
relação a esquemas corporais que organizam interpretações de etiologia, ex-
.
peri ência prodrô mica e sequela pós-cir ú rgica; e em relação ao próprio status
existencial da linguagem.
A compreensão de Dan de como o seu câncer ocorreu segue o esque-
! ma101 etiológico navajo tradicional de contaminação por raio (veja Capítu -
lo Sete). Duas observações têm de ser feitas para se compreender a realidade
I
'
101Meu uso do termo esquema é vagamente relacionado à noção de esquema de imagem
proposto por Mark Johnson ( 1987) . Neste contexto, eu uso o termo mais por conveni ência
do que por convicção, pois a abordagem de Johnson 6 csscncialmente cognitiva em vez de
fenomenológica. No entanto, não querendo abrir um vasto campo de debate teórico, eu
sugeriria que a noção de hábito, elaborada corretamente como parte de uma fenomenologia
cultural , desempenharia um papel teórico equivalente e seria mais apropriada aos nossos
propósitos do que a noção de esquema.
í. ÍI
'

i!
354
!
Palavras do Povo Santo

cultural pré-objetiva dessa atribuição. Primeiro, para os navajos o raio não é


um simples fen ô meno natural , mas inclui todo tipo de energia radiante

^
como radiatividade c emanações de fornos de microondas. Dan citou uma
exposi çã o a raios naturais, quando era crian ça e cuidava de ovelhas, como
origem do seu tumor. Mas ele também citou a exposi ção, já adulto, ao fogo
e à fumaça do seu ferro de soldar como uma exposição secundá ria a raios
que precipitou o surgimento de sua enfermidade atual. Segundo, o raio não
é um fen ômeno cultural abstrato que age por contágio m ístico desprovido
de fenomenologia cultural. O protótipo da contaminação por raio é o en-
contro físico direto no qual o raio cai tão perto que a pessoa vê um clarão

azulado e aspira vapores elé tricos de cheiro penetrante - // hodiitluzh (com-
pare Young; Morgan, 1987, p. 453). A base pré-objetiva desse esquema de
contaminação na experiência corporal explica a assimilação do raio natural e
do raio produzido pelo ferro de solda

^
O esquema que regulou pré-objetivamente a experiência de Dan do
período prodrômico foi o da importância ritual da “quadratura” entre os
navajos, como nos quatro pontos cardeais, as quatro montanhas sagradas, a
execução de cerimó nias em grupos de quatro e assim por diante. Destacam-
se altamente na síntese pessoal de Dan os três eventos distintos que ocorre-
ram com intervalos de vá rios meses um do outro e culminaram em sua
hospitalização e diagnóstico. O primeiro ocorreu durante uma viagem com
alguns colegas de trabalho a uma grande cidade fora da reserva, quando ele
caiu desmaiado da sacada do segundo andar de um motel. O segundo ocor-
reu quando ele estava em casa com o pai, sentado em um sofá, e começou a
tremer incontrolavelmente ao preparar-se para ler um documento que seu
pai n ão conseguia entender. O episódio final ocorreu em um almoço com
colegas de trabalho, quando Dan desmaiou num restaurante e foi levado
para o hospital. Para ele, a possibilidade de um quarto ataque convulsivo
fatal estava profundamente ligada à sua vida cotidiana e aos seus planos de

^
tomar-se curandeiro Parafraseando Merleau-Ponty, o social que Dan carre-
gava consigo como um atributo de sua existê ncia corporificada era a polis-
semia profunda do sagrado n ú mero “quatro" j
Dan, de fato, experienciou algo próximo dessa quarta convulsão no
período pós-cir ú rgico de luta para recuperar a l íngua e a expressividade. Ele
estava sentado no seu quarto ouvindo rádio quando o aparelho começou a

355
Ilf:
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

,
\
,

; emitir agudos sinais de teste do Sistema de Difusão de Emergê ncia. Dan


relatou: “Tive a impressão de que alguma coisa me atravessava , cu fiquei lá
I 11 dentro assim, desse jeito [tremendo].” A base cultural para essa experiência
• ;
pré-objetiva c o esquema de um objeto estranho lan çado através do corpo
1 de uma pessoa por um feiticeiro. Esse esquema foi elaborado explicitamen-
te por um curandeiro que determinou que havia um fino fragmento de
osso inserido ou lan çado no cé rebro de Dan por um feiticeiro, c que o
• removeu usando os rituais apropriados. Dan sentiu que o osso tinha sido

inserido na sua cabeça para ele “nunca mais ser capaz de ter aquele tipo de
i pensamento, nunca mais ser capaz de falar de novo”.
i O status existencial da língua para os navajos foi apreendido por Rei -
! *
chard (1944) , que chamou a aten ção para a autoconsciência deles em rela-
I #
ção às palavras e às combinações de palavras, e deu à sua descrição da oração
navajo o subtítulo de “A Palavra Compulsiva”. A expressão de Reichard tem
.
um duplo sentido, pois a oração compele as deidades a responder e a eficá -
cia exige uma atenção compulsiva à correção do que é pronunciado. O caso
de Dan acrescenta um terceiro sentido, pois é ele que é compelido a falar
pelo Povo Santo. A implicação é que, por serem as inspiradoras das pala -
;

: vras, as deidades serão mais prontamente compelidas por elas, mas com o
paradoxo de que a pessoa que fala precisa lutar para dar-lhes forma l ú cida e
coerente. Esse acú mulo de camada sobre camada de compulsão ajusta se a -
ií um esquema que sustenta todo o pensamento navajo sobre a cura:

if ! Segundo a cren ça navajo, aquilo que fàz mal a uma pessoa é a ú nica coisa
que pode desfazer o mal. Portanto, o mal é invocado e colocado sob
í controle por compulsão ritualizada. Como o controle foi exercido e o
tij! mal cedeu à compulsão, ele tornou-se bem para a pessoa em benefício
da qual foi compelido. Dessa forma o mal torna-se bem, mas a mudança
ill " é calculada na base de resultados específicos. (Reichard, 1944, p. 5).

Para Dan o mal da enfermidade é transformado em meio pelo qual ele


-
pode tornar se uma “pessoa que ajuda”, isto é, linguagem que é ao mesmo
tempo compulsiva e obrigatória.
i
A experiência de Dan não pode ser compreendida fora do nexo perfor-
i mativo íntimo e eficaz entre conhecimento, pensamento e fala. Reichard
í -
(1944, p. 9 19) observa que o pensamento n ã o dito e a palavra dita com -
li
:
356
L
'
Palavras do Povo Santo

partilham o mesmo potencial com


. I •
que, para os navajos i p e n s a m e n t o x C Wi.therspoon (1977) mostrou
conhecimento a “forma interior” do & *°rma ' t]Lr or" da linguagem, e o
sos, na medida em que todo co h P?, nsamcnt(yTodos ‘ os tr são podero-
transformar ou restaurar, todos CC ment0 é inerentemente “ o poder de
- cnunciacT
auto realizáveis, e todo PenSamentos tê m a forma de profecias

ganizado em ,
Na visão de mundo nava o ¥ ‘
!!
a
/
pensamento padroni
*
^n
^
forma da realidade: “ Este mundo ^ Uma influ ência constitutiva na
^ língua d° conhccimento’ or
e reaIizado em fda
^
'

realidade é um espelho da lingua m”


prisma, o dom da fala, experSdo C
como um dom espontâneo do Povo^ „ ????’ ^
sLTo
nhecimenco espiritual que deveria set usado
íí
*
“PClh° P^34)

'^ ,ntmç5 f *
*
'


° ‘“ f
*

sâo adjacentes os esforços de 1W?^ -


“° à
^
Utr0S

e pua ser capaz de enunciar uma mensa


TemT F' „°
o fetoT9 X Aman-
causa do itatus existencial atribuído à fala,
t
do ( « *
/Ao 7 “"Po
vislumbrar o
çõ es para
^
o que ele estava ten ndo falar.
habitue em cujo interior aconteceu a luta de Dan pela
linguagem podemos retornar a uma questão levantada
co, aquele dos loquazes pacientes epilépticos n por um estudo clíni -
dos e ataques convulsivos parciais complexos.
ão-navajos com focos esquer -
Esse grupo de pacientes era
relativamente mats velho do que outros estudados
dores, e não apresentou nenhuma anomia notável
pelos mesmos pesquisa -
e nenhum desempenho
de tarefas verbais inferior ao de outros pacientes epilé
pticos. No entanto,
seu desempenho em uma tarefa de evocação de hist
ória foi caracterizado
por “detalhes desnecessários e, às vezes, curiosos” (Hoeppner et al., 1987).
-
Interessam nos aqui as tres hipó teses alternativas oferecidas pelos pesquisa-
dores para explicar essa verbosidade: ou os pacientes são internamente com
pelidos a falar, ou percebem coisas que passam despercebidas pelos outros,
-
ou atribuem significação especial a coisas que os outros consideram irrele -
vantes. Para os autores essas hipó teses indicam uma relação entre verbosida -
de e alucinação. Especialmente, eles sugerem que pode haver um continuum
entre notar ou comentar detalhes que para outros são triviais e a alucinação ]
Ao raciocinar a partir dessa idé ia , a loquacidade pode ser uma “manifestação
subcl ínica de um fenô meno complexo, envolvendo fala, percepção e afeto,

357
I i ;i
! I
! ; CORPO / SIGNIFICADO / CURA
! i
,
cujas formas mais graves sc revelam como psicopatologia” ( Hocppncr ct al.,
:• 1987, p. 40).
i :: Dan admitiu de forma inequ ívoca que é internamente compelido a
; falar e, quando se recusa, termina com dor de cabeça. Podemos inferir pela
: narrativa que no início a experiência dele de ouvir o Povo Santo era inde-
í .
!; pendente das palavras que então repetia a fim de verificar sua validade. Pare-
; ce ainda que com o tempo a experi ê ncia tornou-se uma inspiraçã o
não-auditiva direta à fàla. Sua descrição da inspiração, no relato inicial logo
depois da cirurgia, muda de ouvir palavras para palavras que lhe são dadas
. ou postas nele e, eventualmente, para simplesmente o espírito do peiote
que entra nele, e é quando “eu começo a fazer o meu discurso”. Assim,
iniciando com o que provavelmente pode-se descrever melhor como aluci -
nações auditivas, que são clinicamente mais comuns do que alucinações
í visuais em epilepsia do lobo temporal, parece que houve uma fusão feno-
i menológica daquilo que Dan ouviu com aquilo que Dan disse. Para Dan,
portanto, a adoção da meta de orar como um curandeiro serviu como uma
auto orienta ção que permitiu domesticar e transformar as alucinações audi-
-
tivas em elocu ções intencionais (ainda que inspiradas), devotar aten ção a
: detalhes ignorados por outros e procurar a significação mais profunda no
' aparentemente irrelevante. A partir desse ponto não podemos avan çar, pois
estamos na própria fronteira da fenomenologia cultural da linguagem.

Jh questão da alucinação leva diretamente, porém, aos efeitos neuroló-


gicos e psicotrópicos da ingestão de peiote. Poder-se-ia presumir que o de-

1 ;:
i
j senvolvimento da oração “loquaz” em encontros de peiote fosse estimulado
por uma droga cujos efeitos neurológicos são an álogos aos das anomalias
lobo-temporais, mas isso seria uma afronta reducionista aos cânones firme -
mente estabelecidos da orató ria ind ígena americana que n ão têm nenhum
elo perceptível com estruturas cerebrais específicas. No entanto, La Barre
-
(1969, p. 139 143), no seu cuidadoso estudo do culto do peiote, enumera
I os efeitos do cacrus, inclusive loquacidade, digressão, tremura, fluxo rá pido
,
' de id éias, mudan ça de aten ção com manuten ção da clareza, falta de coorde -
nação da linguagem escrita. As alucinações auditivas estimuladas pelo peio-
te basicamente modificam a qualidade dos sons, embora talvez La Barre
; ;
!
. admitisse a possibilidade de audi ção de voz, como a experienciada por Danj
: Embora se saiba que o peiote produz convulsões em animais ( um de seus
. f

358
Palavras do Povo Santo

alcal óidcs tem propriedades semelhantes à estriquinina) , ele n ão é conheci-


do por causar ataques convulsivos cm humanos c a localização de sua ação
permanece n ã o especificada. O importante trabalho fenomenol ógico de
Kluvcr (1966) sugere o envolvimento do sistema vestibular e que os efeitos
das lesões parietoccipitais apresentam algumas semelhan ças formais com os
do peiote, mas ele enfatizou em seu estudo os efeitos visuais, nenhum dos
quais tem papel importante no caso que estamos considerando.
O ú nico estudo existente sobre administração de mescalina a pacientes
epilépticos mostrou que o principal efeito sobre oito entre 12 deles foi
sonolência, letargia e apatia ou sono, em concordância com as propriedades
um tanto narcó ticas do alcaloide do peiote quando tomado isoladamente
(Denber, 1955). Uma descoberta mais significativa desse estudo foi que,
embora não tenha havido correlação entre onda cerebral (EEG) e resultados
clínicos, houve uma diminuição ou desaparição das ondas delta, e uma
desapari ção dos padrões de espícula-onda e de ondas lentas durante horas.
O autor observa que as atividades de solução de problemas também causam
um desaparecimento dos padrões de espícula-onda, mas apenas durante vá-
rios minutos. Aqui poder íamos sugerir que, como uma forma de resolver
problemas, a atividade de Dan de resolver palavras cruzadas pode ter rido
algum efeito na supressão da atividade convulsiva, possivelmente reforçan-
do os efeitos do peiote. Alé m disso, na medida em que a oração inspirada
tornou-se parte da síntese intencional de um projeto de vida para Dan, ela
pode ser entendida como um tipo de atividade moral de solução de proble -
mas e também como uma ação que evocou a experiência de peiote na for -
ma normalmente chamada de “flashback” psicodélico. Por esse prisma, as
fronteiras entre os efeitos da lesão neurológica e o significado cultural se
dissolvem, revelando no espaço intermediário um traço da indeterminação
pré-objetiva da experiência vivida, corporificada.102
Finalmente, uma breve menção ao peiote é feita no estudo de Levy,
Neutra e Parker (1987) sobre transtornos convulsivos entre os navajos. É
interessante notar que uma paciente ficou fora do estudo porque sua famí-

l 02
Sobre o conceito de indeterminação na teoria da corporeidade, veja o Capítulo Nove.

359
'
'

1'

J CORPO / SIGNIFICADO / CURA

' lia era peiotista e n ão a tinha diagnosticado, dando a entender que os pcio -
tistas navajos n ão reconhecem a epilepsia como um dist ú rbio ou então a
V
f consideram um problema a ser tratado exclusivamente com medicamento
de peiote. Na verdade, os aurores observaram que “alguns participantes dos
• j: encontros de peiote seguravam um braço para impedi-lo de tremer. Isso era
: ;
visto como sinal de alguma influência maligna em atividade e de que o
indivíduo em questão necessitava de orações especiais” (Levy; Neutra; Parker,
.
1987, p. 104).103 Eu n ão sei se o braço de Dan tremia durante os encontros
1
de peiote, mas a continuação geral de tais tremores no seu braço direito
;; pode estar intimamente relacionada ao diagnóstico do curandeiro, de influ-
ência maligna na forma de feitiçaria.

Significado e lesã o na existência corpórea


1
'

jh. conex
ill :
ão entre epilepsia e religião foi por muito tempo uma bete
noirpasa a antropologia. Durante d é cadas presumiu-se que os xamãs
e cura -
dores religiosos eram epilépticos ou esquizofrénicos, e a luta para normati-
zá-los na literatura era uma luta do relativismo cultural contra o reducionismo
i biológico, contra a patologização da experiência religiosa e em prol da sen-
;
sibilidade e do significado, onde parecia haver apenas comportamento bi-
I zarro e irracional. A antropologia lutou contra o erro lógico de que a
religiosidade do epiléptico implicava necessariamente em epilepsia no reli-
: gioso. Entretanto, em 1970 Kenneth Dewhurst e A. W Beard ainda escre -
veram um artigo descrevendo os casos de vários epilépticos do lobo temporal
que tinham passado por conversões religiosas, justapondo-os a uma série de
“possíveis epilépticos m ísticos” da tradição ocidental, incluindo, entre ou-
tros, São Paulo, Teresa de Ávila, Teresa de Lisieux e Joseph Smith. Pode-se
suspeitar da presen ça de uma agenda retórica em um estudo de religi ão que
; começa com a religiosidade de pacientes médicos explí Uma tal agen-
citosj
;
, 03 Isso é evidentemente diferente da interpretação navajo tradicional dc tais tremores como
I
um sinal de que o indivíduo é candidato à iniciação como diagnosticador ou “tremedor de
mão”.
í i

360
I

Li
Palavras do Povo Santo

da está mais do que evidente no seguinte trecho: “A chamada análise psico-


l ógica de Lcuba (1896) do estado mental imediatamente anterior à conver-
são inclui categorias teol ógicas tais como um sentimento de pecado e
auto -entrega’, n ã o h á qualquer men çã o de epilepsia lobo- temporal ”
(Dewhurst; Beard, 1970, p. 504). Os autores n ão permitem nenhum espa-
ço anal ítico entre o teol ógico e o neurol ógico, apesar do uso extensivo por
William James (1961) do trabalho de Leuba , que certamente reconheceu-o
como “psicológico”. Dewhurst e Beard (1970) depreciam claramente o es-
tudo de um “estado mental” em favor da determinação de um “estado neu-
rológico”. Mesmo assim, até eles admitem que o eminente neurologista
Hughlings Jackson n ão atribuiu conversã o religiosa diretamente a descarga
epiléptica, mas argumentou que a conversão era facilitada pela alteração no
n ível de consciência, a excitabilidade aumentada dos centros nervosos infe-
riores e os antecedentes religiosos.
Uma série de artigos mais recentes por Persinger (1983, 1984a, 1984 b;
Persinger e Vaillant, 1985) tenta validar uma hipó tese mais sutil sobre a
relação entre religião e função lobo-temporal. Ele argumenta que as “expe-
riências m ísticas e religiosas são consequências normais da estimulaçã o bio-
gênica espontânea das estruturas lobo-temporais” ( Persinger, 1983, p. 1255,
grifo do autor). Assim os fenômenos religioso, paranormal e ictal são dis-
tintos, exceto que todos eles se originam na atividade elé trica do lobo tem-
poral. A hipó tese se baseia na instabilidade pós-estimulação das estruturas
lobo-temporais, a suscetibilidade a vaso-espasmos transitórios e a tendência
das membranas celulares à fusão. Esta última contribui para misturas inco-
muns de conjuntos de células particularmente sensitivas a uma variedade de
fatores, inclusive tumorigê nese. Persinger propõe um constnicto Transiente
Lobo-Temporal (TLT) , definido como microconvulsões elé tricas aprendi-
das provocadas por est ímulos precipitadores e seguidas de redu ção de ansi-
edade, e o seu trabalho tenta demonstrar que as pessoas que relatam
experiências religiosas e paranormais também apresentam sinais de ativida-
de lobo-temporal. Quer estejamos ou não convencidos por esses resulta-
dos, é importante observar que Persinger se equivoca entre considerar a
experiência religiosa como normal e como aptid ão evolucionaria. Mais cla-
moroso ainda é seu equ ívoco entre reducionismo neurológico (origem bio-
gê nica) e afirmações de que as pessoas são predispostas a TLTs por prá ticas

361
i]l
f

CORPO / SIGNIFICADO / CURA


i1

• •
culturais ou interações “racial-culturais” e que a “linguagem metafó rica <5 a
mais profusa precursora dcTLTs” ( Persinger, 1983, p. 1260).
!
' O que está ausente de tais relatos d a análise da pessoa corporificada,
; que fala e toma uma posição existencial no mundo. Sem isto, arriscamo-
nos a encetar uma batalha de flechas causais voando cm ambas as direções,
da neurologia e da cultura, sem nenhum espaço anal ítico intermedi á rio.
Pelo mesmo motivo, eliminar a preocupa ção com a causalidade fàz parte da
i radicação da fenomcnologia na abertura do espaço do ser-no-mundo à aná-
lise existencial. Ao seguir essa linha , nosso argumento no caso de Dan suge-
1 ! re que pode fazer sentido considerar a loquacidade n ão como um traço de
personalidade baseado na mudança neuroanatômica, mas como uma estra -
tégia adaptativa que emerge espontaneamente da síntese corporal pré-obje-
tiva. Da mesma forma, ele sugere que a busca por palavras do paciente é
tematizada como religiosa não porque a experiência religiosa seja redutível a
i
uma descarga neurológica, mas porque ela é uma estratégia do sujeito, que
necessita de um idioma poderoso para orientar-se no mundo.

'
^ \qui reencontramos Heidegger e Merleau-Ponty; um condenando o
erro do biologismo que consiste em meramente adicionar uma mente ou
alma ao corpo humano, visto como um organismo animal; o outro conde-
nando o erro de tratar o social como um objeto em vez de reconhecer que
i
A nossos corpos carregam o social por aí conosco, inseparavelmente, antes de
! k „ ] qualquer objetificação. Os erros são sim étricos: em um caso, a biologia é
-
/ / tratada como objetiva (o substrato biológico), no outro o social é tratado
como objetivo (o campo dos fatos sociais) e em ambos os casos o corpo é
ix diminu ído e perde-se a síntese corporal pré-objetiva. Para o biologismo, o
corpo é o substrato biológico objetivo e mudo ao qual o significado é so-
breposto. Para o sociologismo, o corpo é uma lousa vazia sobre a qual o
i significado é inscrito, uma marca física para ser movida dentro de um am-
biente simbólico pré-estruturado, ou a matéria- prima da qual podem ser
gerados símbolos naturais para o discurso social/
Ao abordar o mesmo problema a partir da teoria feminista, Haraway
H i
.
' (1991, p. 200) argumenta que o corpo n ão é uma entidade objetiva porque
a própria biologia é situacionalmente determinada: “o corpo’ é um agente,
I :
*
n ão um recurso. A diferen ça é teorizada biologicamente como situacional .
i
n ão intrínseca, em cada n ível do gene ao padrã o de subsistê ncia, mudando

í 362
:
i
Palavras do Povo Santo

assim fundamentalmcnte a pol ítica biol ógica do corpo”. Com o reconheci-


mento dc que a diferen ça n ão 6 simplesmente uma cobertura cultural sobre
um substrato biol ógico, nosso argumento vai aldm da afirmação prosaica
dc que cultura c biologia determinam mutuamente a experiê ncia da enfer-
midade, rumo a uma descri ção da base fenomenológica tanto da biologia
como da cultura. A luta pela elocu ção expressiva correta tem uma significa-
ção existencial corporal e global , quer sejam índios ou anglos aqueles que
lutam, quer sejam eles neurologicamente aflitos ou n ão. IW Apenas em um
estágio avan çado do processo de objetificação anal ítica podemos dizer que
as características da síndrome do comportamento intericral dependem for-
malmente da natureza da lesão neurológica, e que as opções de tornar-se
curandeiro ou ministro, para falar nos gêneros de oração de peiote ou ser-
mão, e procurar a palavra correta que traga a cura para si próprio e ajude o
gênero humano dependem formalmente da cultura. Assim os problemas
colocados por Heidegger e Merleau-Ponty n ão nos enviam para o final,

^
mas sim para o ponto inicial da análise Esse ponto inicial é uma fenomeno-
logia cultural da experiência corporificada que nos permite questionar a
diferença entre biologia e cultura, transformando nossa compreensão de i
D
ambas dessa form

l 04
Como Orcner ( 1974) argumentou a respeito da universalidade da dominação masculina
e a assimilação simbólica de homens à cultura e mulheres à natureza , a existê ncia de
estratégias semelhantes cruzando culturas e religiões não coloca tais estratégias fora da
cultura . Menos ainda coloca-as fora do “ser-no-mundo”.

363
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PARTE III
Modula ções da Corporeidade
CAPÍTULO NOVE
A/lodos Somá ticos de Aten çã o’

ca
JA corporeidade como um paradigma ou uma orientação metodológi-
exige que o corpo seja compreendido como base existencial da cultura
a
- não como um objeto que é “ bom para pensar”, mas como um sujeito que
é “necessá rio para ser”. Ao argumentar por analogia, um paradigma feno-
menológico da corporeidade pode ser dado como um equivalente comple-
mentar do paradigma semió tico da cultura como texto. Assim como Roland
Barthes (1986) faz uma distin ção entre o trabalho e o texto, pode se fazer -
uma distin ção entre o corpo e a corporeidade. Para Barthes, o trabalho é um
fragmento de substâ ncia, o objeto material que ocupa o espaço na prateleira
de uma livraria ou uma biblioteca. O texto, ao contrário, é um campo
metodológico indeterminado que existe apenas quando é capturado em

Agradecimentos: partes deste capí tulo foram apresentadas em 19 S8 no simpósio Alem da


Semântica e da Racionalidade, organizado por Gilles Bibeau e Ellen Corin no 12a Congresso
Internacional de Ci ências Antropológicas e Etnológicas, em Zagreb . Uma versão foi
apresentada na sessão “Conhecimento Corporificado”, organizado por Deborah Gordon e
Jean Lave no Encontro Anual de 198S da Associação Antropológica Americana, cm Phoenix.
Desde aquela época , estou agradecido a Janis Jenkins pela discussão acadêmica corrente
que me desafiou a refinar meu argumento. Obrigado também aos dois pareceristas anónimos
de Cultural Anthropology. A pesquisa de campo entre os carismá ticos católicos foi financiada
pelo aux í lio R01 MH 40473 do NIMH .
:!

;
. ii CORPO / SIGNIFICADO / CURA

um discurso, e que é experienciado apenas como atividade c produçíío ( Bar-


M
;

thes, 1986, p. 57-68]/Paralelamente, o corpo 6 uma entidade material,


! 'h. biológica, enquanto a corporeidade pode ser entendida como um campo
if ! v n metodológico indeterminado, definido pela experiência perceptiva c pelo
. vv / modo de presen ça e engajamento no mundo. Aplicado à antropologia, o
~4vi r modelo do texto significa que as culturas podem ser compreendidas, para
:. s
/ \ fins de análise interna e comparativa, como tendo propriedades semclhan -
í! ' J ' tes a textos (Ricoeur, 1979)./Por outro lado, o paradigma da corporeidade
não significa que as culturas têm a mesma estrutura da experiência corporal,
mas que a experiência corporificada é o ponto de partida para analisar a
i ; !i
I I
f li participação humana em um mundo cultura
^
/Para compreender melhor a origem teó rica dessa problem á tica, é ú til
distinguir entre o que veio a ser chamado de antropologia do corpo e uma
linha da fenomenologia explicitamente preocupada com a corporificação.
1' Embora lampejos do corpo tenham aparecido regulamente ao longo da
i
I
histó ria da etnografia (por exemplo, Leenhardt, 1979), uma antropologia
' I / do corpo foi inaugurada por Douglas (1973) e elaborada nas coleções edita-
(y das por Benthall e Polhemus (1975) e Blacking (1977). A obra histórica de
: i

n ^y * Foucault (1973, 1977) dá novo ímpeto, evidente nos trabalhos de Scheper


Hughes e Lock (1987), Martin (1987) e do soci ólogo Bryan Turner (1984).
-
ililllf
I1 ;
A obra de Bourdieu (1977, 1984) mudou o foco inicial no corpo como
fonte de simbolismo ou meio de expressão para uma consciência do corpo
cor[\c[ locus)àe prática social. Isso fica poderosamente evidente no trabalho
t
6
de( omamff )( l 985), que mostra um movimento teórico do corpo social
de representação para o corpo socialmente informado de prá tica, enquanto
continua enfatizando o foco tradicional no simbolismo do corpcy
: jfenquanto ^
isso, uma abertura para a fenomenologia na teoria antropo -
lógica ocorreu com a possibilidade de articular um conceito de experi ê ncia
-
.

em torno das bordas do paradigma monol ítico textualista e representacio


nalista dominado por Lévi-Strauss, Derrida e Foucault. A preocupa ção de
Geertz (1973) com a cultura como texto foi complementada pelo interesse
;
na fenomenologia de Alfred Schutz, e com a distin ção entre os conceitos de
i -
experiência próxima e experiência distante. Finalmente, tornou-se legítimo
-
i para Wikan (1991) enfrentar o problema de uma antropologia da experiên -
-
cia próxima, para Turner e Bruner (1986) adotar uma “antropologia da

368

\
Modos Som á ticos de Aten çã o

experiê ncia”, c para Joan e Arthur KJcinman (1991) declarar uma “etnogra-
fia da experiê ncia” , em abordagens que são mais ou menos explicitamente
fenomcnológicas. Entre tais abordagens, alguns estudiosos - influenciados
especialmente por Mcrleau - Ponty (1962, 1964 b) e ocasionalmcnte por
pensadores como Marcel, Scheler, Straus e Schilder - destacaram uma fe-
nomcnologia do corpo que reconhece a corporeidade como a condição exis-
tencial na qual a cultura e o sujeito estão fundados (Corin, 1990; Csordas,
1990; Devisch;e Gailly, 1985; Frank, G., 1986; Jackson, 1989; Munn,
1986; Ots, 1991, 1994; Pandolfi, 1990).. Eles tendem a assumir o “corpo
vivido” conxo_um p_ontode partida~metodológico em vez de considerar o
^

^
corpo como um objeto de estudof
*
Da segunda dessas duas perspectivas, o contraste entre corporeidade e
textualidade entra em foco através dos vários tó picos examinados por uma
antropologia do corpo. Por exemplo, a influente síntese feita por Scheper-
(

^ ^
ugheTeLockQ 987 demarca claramente o terreno analítico reivindicado
por uma antropologia do corpo. Estes autores refazem os “dois corpos” de

Douglas (1973) em três o( côrpo individual, o corpo social e o corpo

^
pol ítico Eles consideram esses corpos domínios anal íticos inter-relaciona-
dos, mediados por emoções. Colocar o problema do corpo em termos da
relação entre corporeidade e textualidade nos convida a rever esse campo
com o foco na tensão metodológica correspondente entre abordagens semi-
óticas e fenomenológicasyEssa tensão metodológica atravessa todos os três
corpos esboçados por Scheper-Hughes e Lock. Isto é, cada um dos três
pode ser entendido seja do ponto de vista semiótico / textual do corpo como
representação, seja do ponto de vista fenomenológico /corporeidade do cor-
po como ser- no-mundo

^ ^
Todavia, a literatura antropológica e interdisciplinar contemporânea
continua desequilibrada nesse aspecto. Um forte viés representacionalista
está evidente principalmente no predom ínio das metáforas textuais fou-
caultianas, como a de que a realidade social está “inscrita no corpo”, e que
nossas análises são formas de “ ler o corpo”. Até mesmo a formulação predo-
minantemente fenomenológica de Jackson (1989) está cunhada em termos
do corpo como uma função do conhecimento e do pensamento, dois ter-

^
mos com forte conotação representacionalista Ainda assim, Jackson (19S9,
p. 122) foi talvez o primeiro a apontar as insuficiências do representaciona-

369
li
1
I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

: lismo na antropologia do corpo, argumentando que a “subjugação do cor-


t pó reo ao sem ântico é empiricamente insustentá vel ”. Eu endossaria a crítica
dTque( ojignificado não pode serTeduz õTum sígnõ uma estratégia que
:|
:
^
^
reforça uma preeminência cartesiana da mente sobre um corpo visto como
“inerte, passivo e está tico” (Jackson , 1989, p. 124). Essa crítica n ão deve ser
interpretada como negação do estudo dos signos com relação ao corpo, mas
como a construção de um lugar para um exame_complementar da corporei-
dade e do ser-no-mundo juntamente com a(textualidadê)e a(represêntáção)
O fato de que estes pontos de vista são complementares e n ão mutuamente
excludentes está demonstrado na aproximação entr semióticá7e(fenomeno-
^
íogiajem vários trabalhos recentes sobre o corpo CsõrdasTl 994a, 1994b; _
1

""
"
^
Good, 1992; Hanks, 1990; Munn, 1986; Ots, 1991). No entanto, como
para a antropologia a corporeidade ainda nao está bastante desenvolvida
'"

para ser verdadeiramente complementar a uma textualidade já madura


(Hanks, 1989), este capítulo tem a tarefa limitada de dar um passo mode-
! rado rumo à constituição da /:orporeidade como um campo metodoló gicoj
I
-
Uma reconsideração do trabalho de Merleau Ponty (1962, 1964 b) e
Bourdieu (1977, 1984) sugere pôr em relevo as noções d percepção e prá-
!

^
tica) Em suma, posto que os estudos de percepção em antropologia e psico-
logia são, de fato, estudos de categorias perceptivas e classificações,
:! Merleau-Ponty concentrou-se na constituição de objetos percegtivos. /Para
Merleau-Ponty, a percepção começa no corpo e, através deqxmsamento
! reflexivo) acaba em objetos/ No n ível da percepção ainda n ão h á uma dis-
I tin ção sujeito-objeto - nos simplesmente estamos no mundo. Merleau-
Ponty propôs que a análise começa com o ato pré-objetivo da percepção em
vez de com objetos já constituídos. Ele reconheceu que a percepção sempre
esteve integrada em um mundo cultural, de modo que o pré-objetivo n ão
implica de forma alguma um “pré-cultural ”. Ao mesmo tempo, ele admi-
tiu que o seu próprio trabalho não elaborou os passos entre a percepção e a
análise histórica e cultural explícita (Merleau-Ponty, 1964, p. 25).
Exatamente nesse ponto de retirada de Merleau-Ponty, é proveitoso
reintroduzir a ênfase de Bourdieu (1977, 1984) sobre o corpo socialmente
informado como a base da vida coletiva. A preocupação de Bourdieu com
o corpo, trabalhado no dom ínio empírico da(prtí tiaòé paralela e compat í -
Il
vel com a an álise de Merleau-Ponty no dom ínio da( percep ção ) Conjugar a

370
Modos Somá ticos de Atençã o

_
compreensão de Bourdicu do “ habitus” como uma orquestração não-auto
-
consciente de práticas com a noção de Mcrlcau-Poncy do “pré-objctivo”
.

sugere que a corporcidade nao precisa ser rescrita à raicroan álise pessoal ou
diádica geralmente associada com a fcnomenologia, mas també m é rclevan
te para as coletividades sociais.
/ befinir a dialética entre consciência perceptiva e prá tica coletiva é uma
maneira de elaborar a corporeidade como um campo metodológico (veia
Capítulo Sete). E dentro desse processo que mudamos da compreensão da
P e ção como um processo corporal para uma noção de modos somáti -
atenção que podem ser identificados em uma variedade de prá
ticas
culturais Nossa elaboração deste constructo fornecerá as bases para uma re-
flexão sobre a ambiguidade essencial dos nossos próprios conceitos analíti-
cos e sobre o status conceituai da “indeterminabilidade” no paradigma de
corporeidade e na etnografia contemporânea /
Uma definiçã o em construçã o

Alfred Schutz (1970, p. 316), o primeiro metodologista da ciência


social fenomenológica, entendeu que atenção/reside na “plena vigilância e
^
agudeza da apercepção conectada comvolver conscientemente para um
objeto, combinado com outras considerações e antecipações de seus usos e
características”. Merleau-Ponty (1962, p. 30) vai mais longe, indicando que
a atenção, de fato, confere existência ao objeto para a consciência perceptiva:

Prestar atenção não é meramente avançar na elucidação de dados pree-


xistentes, é induzir uma nova articulação deles tomando-os como figu-
ras. Eles são executados apenas como horizonte, eles constituem na
realidade novas regiões no mundo total [...]. Assim a atenção n ão é nem
uma associação de imagens nem o retorno a si mesmo do pensamento já
em controle de seus objetos, mas a constituição ativa de um novo objeto
que torna expl ícito e articulado aquilo que até então era apresentado
como n ão mais do que um horizonte indeterminado.

Qual é o papel da atenção na constituição da subjetividade e da inter-


subjetividade como fenômenos corporais? Se, como diz Schutz, a atenção é

371
il
if ! : '
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
J
consciência da sa úde e o exercício habitual. O senso de contingê ncia som á-
í .| tica e transcend ência associado com a meditaçã o e os estados m ísticos tam -
>1 . bém se incluiria no nosso horizonte. Há, certamcntc, modos som á ticos de
aten ção para processos corporais básicos, como a gravidez e a menopausa,
1 cm diferentes culturas. No lado patológico, a hipervigilância associada com
hipocondria e com transtornos de somatização, e os vários graus de vaidade
jf i I ou tolerância à automor à ficação associados com anorexia e bulimia, podem
ser considerados como definidores de modos somá ticos de aten ção especiais.
<
É evidente que alguns desses exemplos sugerem elaboração cultural

mais ou menos espontânea, ao passo que outros sugerem modos que são
ii cultivados conscientemente (compare Shapiro, 1985). Alguns enfatizam
aten ção ao corpo e alguns com o corpo; alguns enfatizam aten ção ao pró-
prio corpo, alguns aten ção aos corpos de outros, e alguns a aten ção de ou-

^
tros aos nossos corpos. tf que quero dizer é que as maneiras pelas quais
damos atenção aos e com os nossos corpos, e mesmo a possibilidade de dar
atenção, não são nem arbitrárias nem biologicamente determinadas, mas
são culturalmente constituídas/ O estudo clássico de Leenhardt (1979) so-
bre os canaque da Nova Caledónia descreve n ão apenas uma maneira de
i conceituar o corpo radicalmente distinta da nossa, mas a exclusão do corpo
perse como um objeto de consciência, até as pessoas serem introduzidas por
mission ários ao corpo objetificado da cultura cristã. Isso sugere que nem a
atenção ao nem a atenção com o corpo podem ser subestimadas, mas de-
vem ser formuladas como modos somá ticos de aten ção culturalmente cons-
tituídos. Eu elucido este constnicto com exemplos de registros etnográficos
I na discussão que se segue.

;
Aten çã o som á tica e fen ô menos revelató rios
;
O modo som á tico de aten ção que delinearei nesta seção é o dos cura-
dores que tomam conhecimento dos problemas e estados emocionais de
I seus clientes através de experiências corporais consideradas comparáveis às
destes últimos. Eu descrevo o fen ômeno tanto para curadores carism á ticos
católicos de classe m édia, predominantemente anglo-americanos, como para
m édiuns espiritas de Porto Rico.

374
Modos Som á ticos de Atençã o

Vários tipos dc experi ê ncia somá tica são cultivados em prá ticas de cura
ritual carism á tica, mas vou me concentrar em dois tipos dc experiência rela-
tados por curadores durante sua interação com os suplicantes. Um deles c
chamado de “un ção”, e o segundo de “palavra de conhecimento”. Embora o
ato físico de ungir uma parte do corpo, geralmente a testa ou as m ãos, com
óleo bento seja uma forma comum de bên ção entre os carism á ticos envol-
vidos em prá ticas de cura, um uso diferente do termo é interessante no
presente contexto. Um curador que relata uma “un ção” por Deus refere-se a
uma experiência som á tica que é considerada uma indicação, seja da ativação
geral do poder divino, seja da cura específica de um indivíduo. Uma antro-
pologia convencional da cura ritual diria simplesmente que o curador entra
em transe, presumindo que o transe seja uma vari ável unitária, ou um tipo
de caixa-preta fatorada na equação ritual, e presumindo talvez que manifes-
tações somá ticas são epifen ômenos do transe. A an álise n ão iria al ém de
relatos de informantes de que esses epifenômenos “funcionam” como con-
firmações de cura e poder divinos. Dentro do paradigma da corporeidade,
em comparação, estamos interessados em uma fenomenologia que leve a
conclusões sobre a padronização cultural de experiência corporal, e também
sobre a constituição intersubjetiva de significado através dessa experiência.
A unção é descrita por alguns curadores como uma sensação geral de
peso, ou como uma sensação de leveza que chega quase ao ponto de levita-
ção. O curador pode sentir formigamento, calor ou um fluxo de “poder”
semelhante ao de uma corrente elé trica, ffeqiientemente nas mãos, mas às
vezes em outras partes do corpo. As mãos de alguns curadores tremem
visivelmente, e eu senti essa vibração quando um curador pôs a m ão no
meu ombro. Entre os próprios curadores, no entanto, a “autenticidade”
dessa vibração visível como uma manifestação de poder divino é por vezes
questionada, no sentido de que a un ção pode ser fingida ou sensacionaliza-
da. Em um grande serviço de cura de grupo, quando o curador vai de indi-
víduo em indivíduo, pondo as m ãos em cada um deles, a força da unção
pode variar com cada suplicante. Um curador descreveu um complemento
emocional da unção como um sentimento de empatia, simpatia e compai-
xão. Se esse sentimento está ausente quando ele chega a uma determinada
pessoa que aguarda na fila por sua oração, ele pode saltar essa pessoa, presu-
mindo que Deus n ão planejou curá-la naquele momento.

375
r I i
CORTO / SIGNIFICADO / CURA

i O segundo fen ômeno carism á tico católico nesse modo som á tico dc
aten ção é a “palavra dc conhecimento”. Ele d considerado como um “dom
espiritual ” dc Deus, por meio do qual os curadores ficam sabendo dc fatos
sobre os suplicantes através de inspiração direta , sem serem informados pe-
los suplicantes nem por qualquer outra pessoa. A palavra de conhecimento
às vezes d expericnciada como uma “sensação” indeterminada de que alguma
coisa d o caso, mas muito frequentemente ocorre em modalidades sensori -
ais específicas. O curador pode ver uma parte doente do corpo com o “olho
da mente” ou ouvir o nome da parte do corpo ou da doença com “o cora-
ção”. Uma curadora distinguiu claramente que quando o problema d inter-
no, ela normalmente “vê” o ó rgão, ou câncer, surgir como uma massa preta,
mas quando o problema é externo, ela normalmente “ouve” a palavra que
dá nome à enfermidade ou à pane do corpo, como braços e pernas. Outro
curador contou que um estalo no seu ouvido significa que alguém na as-
sembleia está tendo uma cura de ouvido, e uma dor intensa no coração
significa uma cura de coração. Uma outra disse que certa vez sentiu um
calor no cotovelo, interpretando isso como sinal de cura de uma lesão ou
artrite. Alguns curadores afirmam que são capazes de detectar dor de cabeça
f , :| ou nas costas de um suplicante através da experiência de uma dor semelhan-
te durante o processo de cura.
O enjôo ou a agitação confusa pode indicar atividade de espíritos ma-
: lignos, e um espirro inesperado ou um bocejo pode indicar que o espírito
está saindo do suplicante através do curador. Uma curadora deu relatos de
í uma experi ência comum de “duplicação de dor” de pessoas cheias de ressen-
timento ou envolvidas anteriormente em atividades ocultas. A dor entrava-
I lhe no braço quando ela punha as m ãos na pessoa. Era necessá rio retirar o
braço e “sacudir para fora” aquela dor, ao passo que o suplicante nada sentia.
Com uma m ã o no peito e outra nas costas do suplicante, ela afirma sentir o
que se passa dentro da pessoa. Por exemplo, ela pode dizer se a pessoa está
sob o jugo de Satan ás, e ela tem uma sensação inespecífica quando a pessoa
é liberada. O cheiro de enxofre queimado ou de alguma coisa podre tam-
bém indica a presen ça de espíritos malignos, ao passo que o aroma de flores
indica a presen ça de Deus ou da Virgem Maria.
i I O relato fenomenológico mais abrangente foi dado por um curador
que distinguiu três componentes da palavra de conhecimento. O primeiro

376
Modos Somá ticos de Atençã o

era a sensação de certeza de que o que ele falava estava realmente acontecen-
do. O segundo era uma serie de palavras que lhe ocorriam em uma breve
sequência, como “coração... de uma senhora de n anos de idade... sentada
na ú ltima fileira.. Ele pronunciava essas palavras para a assembléia como
se estivesse lendo de um teleprompter, exceto que ele as ouvia mais do que
lia. Finalmente, ele sentia ao mesmo tempo um dedo pressionar levemente
a parte do seu corpo correspondente à parte enferma da pessoa sendo curada.
Agora vou me ocupar do que considero essencialmente o mesmo modo
som á tico de aten ção em uma diferente tradição de cura, o espiritismo de
Porto Rico (Harwood, 1977). Duas diferenças culturais principais distin-
guem a atenção somática na cura carismática e no espiritismo. Primeiro,
enquanto para os carismáticos católicos as unções são experiências diretas de
poder divino e as palavras de conhecimento são experiências diretas e divi
namente empoderadas do sofrimento do suplicante, para os espiritas as ex-
-
periências correspondentes são o trabalho de espíritos que possuem o curador
ou entram nele./Esses espíritos, ou são bons, os chamados “guias”, ou maus
~i
e causadores de sofrimento, chamados “causas”. Os espíritos dominam o
processo de cura por serem essenciais não apenas para o diagnóstico, mas
também para o tratamento; e assim, as experiências somáticas que recebem
atenção são até mais destacadas do que entre os carismáticos católicos / Espí-
ritos específicos podem ter vozes, odores, ou impactos no corpo do curador
distintos e reconhecíveis. No entanto, os pró prios espíritos são vistos e ou-
vidos mais freqiientemente entre os espiritas do que entre os carismáticos, e
os curadores espiritas podem distinguir entre bons guias e más causas.
A segunda diferença cultural importante diz respeito a conceitos do cor-
po que vão muito além da cura ritual. A capacidade de ver espíritos por detrás
dos olhos ( ojo oculto) pode ser associada com a saliência interpessoal dos olhos
e o olhar també m encontrado no olho mau ( ojo maio). A experiência de um
espírito entrando pelo estô mago pode ser associada com a ênfase cultural
naquele órgão, não apenas como centro de emoção, mas também com um
órgão expressivo com sua pró pria boca ( boca dei estômago ). A experiência de
espíritos asfluidos circulando pelo corpo pode ser associada com uma concep-
ção humoral de como o corpo funciona. Embora eu não ponha fora de cogi -
tação nenhuma dessas experiê ncias para carismáticos anglo-americanos, é
improvável que elas sejam cultivadas dentro do seu modo somático de atenção.

377
m\\ ’

\
I CORPO / SIGNIFICADO / CURA

! Apesar dessas diferenças, as experiências relatadas pelos dois tip0s J


curadores são notavelmente semelhantes, embora as categorias espiritas *
descrevem estas experiências sejam até mais expl ícitas ao distinguir modal
dades sensoriais do que as unções e palavras de conhecimento carism á ti
Com base em escritos e discussões com os principais pesquisadores do e
ritismo ( Koss-Chioino, Hanvood e Garrison) , os fen ômenos parecem cair
^
1

! em quatro categorias: ver os espíritos (vidências), ouvir os espíritos


falar
{ audicioncs) , sentir imediatamente o que está na mente do cliente (inspiraci
ones ) e sentir a dor e o sofrimento causados no cliente pelos espíritos ( pl
\
maciones) . ^
A maioria das diferenças estão nas experiências visuais, pois os carismá-
ticos normalmente vêem situações ou imagens de problemas, em vez de
problemas objetificados como espíritos. Talvez as mais semelhantes sejam
as experiências proprioceptivas, ou plãsmaciones. Koss-Chioino ([s.d.]) cita
í ; li o uso do verbo plasmaram referir-se aos m édiuns moldando ou formando

If :1 !

'
as dores ou sofrimentos emocionais dos clientes dentro dos seus próprios
corpos. Hanvood (comunicação verbal) acrescenta que as plãsmaciones são
transmitidas por meio de plasma, que na doutrina espirita é uma substância
espiritual ligando pessoas aos espíritos e umas às outras.
De acordo com Hanvood , as plãsmaciones experimentadas por cura-
! dores podem incluir dor, formigamento, vibração ou um sentimento de
! oração se estão possuídos por um espírito guia. Embora Garrison (comuni-

í i cação verbal) n ão reconheça o termo plãsmaciones, ela reconhece sensações


que podem incluir dor de cabeça, dor de estômago ou tensão transmitidas
lii do cliente. Koss-Chioino (1992; [s.d.]) apresenta um inventário mais ela-
borado, incluindo sensação de descarga elé trica, taquicardia, dor e outros
: sintomas sentidos no local correspondente no corpo, ar frio soprado sobre
a pele começando na cabeça, formigamento, energia entrando no estô mago
1

>í; : e saindo na cabeça ou se movendo como uma cobra no corpo, fluidos como
;
energia sexual, zumbidos, leveza do corpo, pensamento rá pido, sensações
de contentamento e relaxamento na presen ça de um bom espírito, sensa-
} ções de nervosia, fadiga ou medo na presen ça de um mau espírito. Mais
uma vez, as principais diferen ças parecem estar associadas com o papel dos
espíritos e com experiências auditivas, olfativas ou proprioceptivas específi -
cas associadas com guias específicos. A elaboração da interação com espíri -
!
378
Modos Somá ticos de Atençã o

tos negativos aumenta o repertó rio espirita de experiê ncias negativas e com -
pulsões de falar ou ouvir involuntariamente. Entre os carismáticos católi -
cos, os espíritos malignos são muitas vezes “atados” ritualmentc para prevenir
sua manifestação na forma de gritarias, contorções, vómito ou desafio aos

^
procedimentos aquiescência de espíritos a essa prá tica de atar deve-se sem
,

d úvida em parte ao habitus de classe ( Bourdieu , 1977) que encoraja a mo


deração comportamcntal entre carism á ticos de classe m édia. Os pentecosta
listas protestantes, quase sempre provenientes das classes trabalhadoras,
-
-
tendem a exigir alguma manifestação somática como sinal da saída do de -
m ó nio do seu hospedeiro. Além disso, os espíritos malignos no sistema
carismático se manifestam apenas nos afligidos, não através do curado

Fen ômenos relacionados na cura nã o-religiosa


^
O modo somático de atenção tanto no sistema espirita como no siste-
ma carism ático católico é articulado em termos nativos de revelação religi-
osa. Examinarei agora rapidamente fenô menos relacionados em dois sistemas
de cura que explicitamente não possuem esse caráter religioso. Daniel (1984)
descreve a tomada de pulso diagnóstica por praticantes da medicina siddha
no Sul da Ásia como um processo de três etapas, que culmina com os
médicos tornando os seus próprios pulsos “confluentes e concordantes” com
os de seus pacientes. Esse estágio final leva o nome de cama nilai, o estado
de eqúiponderância. Apenas depois de experimentar as pulsações comparti-
lhadas de cama nilai, o médico siddha realmente conhece o distúrbio hu-
moral do paciente. Nesse caso, a espontaneidade divinamente inspirada é
substituída por uma cultivada perícia diagnóstica, mas o modo somático de
atenção continua sendo caracterizado por sua referê ncia ao sofrimento de
uma outra pessoa.
A interpretação de Daniel do diagnóstico de pulso siddha també m
levanta uma questão metodológica , e exige que retornemos por um mo-
mento ao campo da análise semiótica. Ao adotar as categorias semió ticas
peirceanas, Daniel descreve a relação inicial entre as pontas dos dedos passi -
vas do médico e o pulso do paciente como indexadora - no seu contato,
eles indexam um ao outro como normal ou anormal. Também, o pulso

379
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
li
11\
anormal do paciente indexa o desequil íbrio humoral , ao passo que o puISo

normal do médico indexa o equil íbrio humoral sadio. Na medida cm que
t I o pró prio pulso do m édico emerge c torna-se confluente com o do pacien
-
- te, a “distância indexadora” entre os signos diminui , até o
relacionamento
entre os dois pulsos ser transformado em uma unidade icô nica , e os dois
signos tornam-se um. Segundo Daniel (1984, p. 120), “neste momento de
perfeita iconicidade, pode-se dizer que o médico experimentou em certo
sentido o sofrimento e o desequil íbrio humoral do paciente”.
A an álise semiótica é valiosa ao permitir que Daniel compare os siste-
mas de cura tradicional siddha e similares com a biomedicina ocidental em
termos do poder relativo de indexibilidade ou iconicidade institucionaliza-
;
do dentro deles (confira Kirmayer, 1992 e Ots, 1991). Da perspectiva da
corporeidade, todavia, a noção de distância indexadora é abstrata demais, e
a an álise semiótica apenas permite concluir que o sofrimento é comparti-
lhado “em certo sentido”. Daniel é obrigado a usar um neologismo para
expressar sua compreensão de que, na medida em que o processo de to-
m mar o pulso neutraliza a separação entre paciente e médico, a objetividade
é substituída por uma “consubjetividade”. A problemá tica da corporeida-
de iniciaria precisamente nesse ponto uma descrição fenomenológica da
“consubjetividade” como característica de um modo somá tico de atenção
específico.
: Um exemplo final desse modo somá tico de aten ção vem da psicotera-
1
MA pia contemporânea. Relatos típicos de experiências clínicas incluem uma
agitação no pênis no encontro do terapeuta com uma “mulher histé rica”, ou
i: i a propensão a bocejar diante de um paciente obsessivo. Tais fen ômenos
ocorrem espontaneamente em psicoterapia, como nos cená rios religiosos
descritos acima, mas o modo de atenção para eles não é consistentemente
elaborado como indicativo de algo importante sobre o paciente ou a condi-
ção sendo tratada. Somente algumas escolas, tais como a psicologia experi-
i; encial, transpessoal e analítica, parecem simpatizar com o reconhecimento
II : mais expl ícito desses fen ômenos. Samuels (1985, p. 52), por exemplo, d á
vá rios exemplos de contratransferência como uma “expressão física, real,
material, sensual, no analista, de algo na psique do paciente”. Ele inclui
respostas comportamentais e corporais, como vestir roupas como as do paci -
ente, dar de cara num poste, sensação no plexo solar, dor em uma parte
í: [b|IN
íf i f í 380
:j iij
-J '
Modos Somá ticos de Aten çã o

específica do corpo; respostas afetivas, como raiva, impaciê ncia, potência,


impotê ncia; e respostas fantasiosas, como pensamentos delusórios repenti-
nos, imagens mentais ou distorções sensoriais. Mais importante, ele argu-
menta que tais experiências são comunicação de pacientes, e contra teorias
tradicionais de contratransferência que as impugnam como reações patoló-
gicas do terapeuta.
/ ESSE novo exemplo levanta uma outra questão metodológica, a do
relacionamento sujeito-objeto no que concerne aos quadros interpretativos
que trazemos aos objetos de nossas análises. Não estou me referindo aqui à
nossa análise “objetiva” dos fenômenos subjetivos, como os modos somáti-
cos de atenção, mas à maneira como a nossa subjetividade interpretativa
constitui ou objetifica os fenômenos de interesse. Para a presente discussão,
o trabalho sobre contratransferência na psicologia analídea pode aparente-
mente oferecer um quadro interpretative válido. Mas como pode ser assim,
quando a pró pria psicologia analítica é a fonte exata do dpo de dados que
queremos analisar sob o t ítulo de modo somático de atenção? Será que
devemos colocar palavras de conhecimento, plasmaciones, cama nilai e con-
tratransferência corporificada em pé de igualdade como fenômenos a serem
interpretados, ou podemos justificar o uso desta última como um quadro
para a interpretação das três primeiras
^
A natureza desse problema é ilustrada pela seguinte ocorrência no meu
trabalho de campo. O cenário era uma sessão de cura carismática católica,
conduzida por uma curadora que também tinha formação de psicoterapeu-
ta e fazia uso especial de técnicas de “trabalho de
corpo”. Nessa sessão, ela
pediu ao cliente, um homem de 37 anos, que executasse as posturas de uma
técnica conhecida por grounding e relatasse o que ele tinha sentido no seu
corpo. No contexto da atenção terapê utica ao tema do excesso de disciplina
e necessidade excessiva de controle, que ocorria, não surpreendeu ter ele
observado que os seus punhos estavam fechados e os seus joelhos trancados.
No entanto, quando ele mencionou os joelhos trancados, a minha pró pria
perna cruzada pulou como se tivesse sido tocada pelo maneio de um médi-
co num teste de reflexos.
Na medida em que o meu pró prio modo somático de atenção estava
circunscrito pelos motivos da etnografia, não hesitei em usar a minha pró-
pria experiê ncia como uma oportunidade de colher dados. Mais tarde, per-

3S1
11 : i

:I CoRPO / SlGNl FICADO / CURA

-É ui guntei à curadora como cia explicava o pulo do mcu joelho, c sc era poss ível
para um n ão-crente experimentar a palavra de conhecimento divinamente
inspirada. Ela respondeu que a experiê ncia n ão podia ser interpretada de
forma definitiva, mas poderia ser uma das três coisas: uma resposta som á ti-
ca causada por Deus, uma consequência de compartilhar alguns dos mes-
SI !
mos traços de personalidade do cliente ou o resultado natural de uma profunda
ligação com a experiência de outrem. Essa “exegese nativa” subsome noções
de agenciamento divino, contratransferência e compreensão psicossom ática
II í i de empatia. Na sua justaposição pós-moderna de possibilidades interpreta-
tivas, ela coloca um desafio de reflexividade para o observador participante
e, ao fâzer isso, afirma que o campo das possibilidades interpretativas é
contínuo entre as do observador e as do observado.
Pode-se argumentar que, embora uma categoria como contratransfe-
rência n ão possa ser mais correta, ela pode ser mais valiosa para uma análise
comparativa de tais fen ômenos, e que a própria comparação é a fonte da
i ‘i
^
;
validade. Entretanto, esse exemplo nos lembra que as categorias anal íticas
objetivas tornam-se objetivas através de um movimento reflexivo dentro
do processo de análise. Eu argumentaria que é a própria perspectiva da cor-
M poreidade que facilita essa percepção. Se se puder chegar à mesma percepção
através de outras abordagens, eu argumentaria pelo menos que a corporei-
dade oferece uma maneira de compreendê-la mais profundamenteí Seja
!
Ihi I como for, é necessário elaborar a conclusão de que a tentativa de definir um
modo somático de aten ção descentra a análise de forma que nenhuma cate-
h goria é privilegiada, e todas as categorias estão em fluxo entre a subjetivida-
í!
de e a objetividade.
iíí IIf! ; !
O fluxo de categorias anal íticas

Todos os exemplos a que recorremos para ilustrar a noção de modos


somá ticos de aten ção são retirados do campo da cura. Se tais modos de
aten ção são fen ômenos gerais da consciência humana, é de se esperar que
eles possam ser identificados também em outros campos. Por exemplo,
.
Becker (1994, 1995) observou que na cultura fijiana o corpo não é uma
fun ção do . individual como na cultura euro-americana, mas sim da co-
^
I 382
Modos Som á ticos de Atençã o

munidadc. Um trabalho dc observação, monitoramento e comentário so-


bre a forma do corpo inclui as mudanças que começam quando uma mu-
lher engravida. Os fijianos consideram essencial que uma mulher torne
p ú blica a sua gravidez, para evitar que o poder de seu sigilo faça os barcos
virarem , contamine a comida c estrague os esforços do grupo. Os casos de
gravidez n ão revelada podem se manifestar nas experiê ncias corporais de
outros: enfermidade ou perda de peso causadas pela comida preparada pela
mulher grávida; perda de cabelo causada por cortá-lo; o esgotamento do
leite de uma mãe lactante por causa de um olhar. Esse fenômeno foi total-
mente cultivado como modo som ático de aten ção por uma mulher que
sentia uma coceira no seio todas as vezes que alguém de sua família engravi-
dava. Tal evidência normalmente levava o chefe a reunir todas as mulheres
jovens da fam ília e exigir que uma delas revelasse a sua gravidez antes que
ocorresse alguma adversidade.
Uma abordagem dos fenômenos culturais através da corporeidade deve
também tornar possível a reinterpretação dos dados já analisados a partir de
outras perspectivas. Seríamos, então, capazes não apenas de descobrir mo-
dos somáticos de atenção não documentados como no caso fijiano, mas
também capazes de reconhecê-los bem debaixo dos nossos narizes etnográ-
ficos em situações fartamente documentadas. Eu proponho (baseado em
observações feitas quando minha esposa e eu esperávamos o nascimento
dos nossos gêmeos) que uma tal reinterpretação da couvade seja feita. O
n úcleo do fenômeno é que um pai expectante experimenta sensações cor-
porais afinadas com aquelas de sua parceira grávida. A couvade foi entendida
de duas maneiras na literatura. Por um lado, ela é vista como um costume
bastante estranho segundo o qual o homem “simula” ou “imita” o trabalho
do parto (Broude, 1988; Dawson, 1929; Munroe; Munroe; Whiting, 1973).
Por outro lado, ela é considerada um fen ômeno médico ou “síndrome”
(Enoch eTrethowan , 1991; Klein , 1991; Schodt, 1989). Assim , 2. couva-
de ou é exoticizada como uma charada primitiva, ou patologizada como
uma superidentificação psicossomá tica. Reconceituada como um modo
somá tico de atenção, ela aparece em vez disso como um fenômeno de
intersubjetividade corporificada que é elaborado como um desempenho
em certas sociedades, enquanto em outras é menosprezado ou temido
como anormal.

383
3
| if
;

i!
1 CORPO / SIGNIFICADO / CURA

1
!. !
Mi
;
;: ;
^
Na falta dc descrições emp íricas adicionais de modos som á ticos de
aten ção, podemos nos dirigir temporariamente às implicações do constmcto
para um paradigma da corporeidade. Ao esboçar a fcnomenologia dos mo-
dos somá ticos de aten ção nos sistemas de cura espirita e carism ático católi-
co, evitei rigorosamente invocar qualquer categoria exceto a “experiê ncia” e
í fazer a descrição estritamente em termos de modalidades sensoriais. Na
: seção seguinte, mostrei que esses modos de atenção n ão podem ser subsu-
midos inteiramente na categoria de experiê ncia religiosa e que, ao colidir
com categorias mais convencionais como a contratransferência, eles apre-

^
sentam um desafio de reflexividadt A questão que quero levantar agora é
sobre a pobreza de nossas categorias antropológicas para ajudar na melhor
compreensão do que seja dar atenção ao nosso corpo em um modo como o
que foi descrito acima. Nós operamos com categorias de cognição e afeto,
:: ; nenhuma das quais pode sozinha fazer justiça a esses fenômenos, e entre as
: ] I
quais existe uma barreira analítica quase intransponível. As categorias de
í transe e estados alterados de consciência continuam sendo caixas-pretas vi-
: suais, e a sugestão de um colega de “delusão proprioceptiva” n ão ajuda em
m nada. Sugerir que elas sejam formas de “conhecimento corporificado” é pro-
vocante, mas n ão capta necessariamente a natureza intersubjetiva dos fenô-

: menos que descrevemos. No seu trabalho programático inicial, Blacking

i 1. I

li
(1977, p. 10) referiu-se à existência de “estados somáticos compartilhados”
como base para um tipo de “empatia corporal”, mas não ofereceu nenhum
!' exemplo específico de qualquer coisa semelhante ao que descrevemos acima.
Eu gostaria de avançar neste ponto e discutir rapidamente esses fen ô-
menos sob quatro categorias adicionais, nem que seja para enfatizar que
continuamos mal equipados para interpretá-los. Essas categorias são intui-
if ção, imaginação, perccpção e sensação. Restrinjo a discussão nesta seção aos
fenômenos revelatórios espiritas e carism á ticos descritos acima.
\\ : /Primeiro, considerem unções, palavras de conhecimento, vidências e
plasmaciones como tipos de intui ção. A m édica Rita Charon descreve sua
prática de escrever ficção para esclarecer seus sentimentos quando está con-
i fusa ou angustiada em relação a um paciente. Ela começa com fatos conhe-
cidos, juntando eventos, queixas e ações do paciente e colocando-se como
personagem da histó ria, que é contada do ponto de vista do paciente. “ Não
me surpreendo”, diz ela, “quando os detalhes que imagino sobre o paciente

384

l!
Modos Somá ticos de Atençã o

revclam-sc verdadeiros. Existe, afinal, uma fonte profunda de conhecimen-


to sobre os nossos pacientes que é apenas levemente aproveitada em nosso
trabalho consciente.” (Charon , 1985). l 0 jfPcnso que não é difícil conceber
intuição como conhecimento corporificado. Então, por que n ão conceber
fenômenos revelatórios como intuição sensorial ? Os curadores e os médicos
não apenas compartilham com seus pacientes um conjunto altamente organi-
zado de disposições corporais resumidas por Bourdieu (1977) sob o termo
habitus, mas também adquirem um conhecimento empírico cumulativo da
extensão do sofrimento humano enquanto expandem sua experiência.
Novamente, tentemos compreender os fenô menos revelató rios como
formas de imaginação. Em estudos atuais, a imaginação é discutida quase
exclusivamente em termos de imagens visuais, que são, por sua vez, pronta-
mente consideradas como imagens “mentais”. O conceito de imagens men-
tais está tão arraigado que o termo imagens físicas dá quase a impressão de
ser um oximoro. Porém, se concedêssemos às outras modalidades sensoriais
um status anal ítico igual ao da modalidade visual, um conceito expandido
de imagens sensoriais nos permidria evitar a dicotomia arbitrária que nos
tenta a analisar as palavras de conhecimento carismá ticas em diferentes cate-
gorias de imagens mentais e sensações físicas, e separar analiticamente vi -
j^
dências espiritas de plasmaciones. tzii^mos , então, nos afastando com um
passo metodológico de um conceito empirista de imaginação como repre-
sentação abstrata para um conceito fenomenológico de imaginação como
um aspecto da síntese corporal, que Merleau-Ponty (1962) descreveu como
característica de uma consciência humana que se projeta no mundo cultura

^
Mais uma vez, que tal levarmos a sé rio a afirmação nativa de que esses
fenômenos são formas de percepção, se n ão do divino, então de alguma
outra coisa que possamos aceitar como concreto? Essa é uma proposição
desafiadora, e merece evocar a tentativa de Schwartz-Salant (1987) de inte-
grar o pensamento alqu ímico à teoria psicoterapê utica atual. Ele sugere
imaginar entre duas pessoas um campo interativo que seja “capaz de mani-
festar energia com sua pró pria dinâmica e fenomenologia”. Esse campo “in -

l 0J
Comunicação verbal .

385
I ,

i:!
rjORTO / SlGNinCAPO / CUWA

I f !
termediário” c apenas palpável em certos n íveis de pcrccpção nos quais a
pró pria imaginação pode “tornar-se um ó rgão que percebe processos in-
conscientes” (Schwartz-Salant, 1987, p. 139). Samuels (1985), cujo traba-
,
: . ! lho foi discutido acima, oferece uma formulação an áloga a qual , como a de
Schwartz-Salant, é derivada da psicologia analítica.yfcle elabora o conceito
|
;
de Henry Corbin do mundus imaginalis, ou mundo imagin á rio, como uma
: : diferente ordem de realidade que existe tanto entre duas pessoas em análise
! tera pê utica como entre impressões e cognição ou espiritualidade. Embora o
,i

conceito de imaginação como um órgão dos sentidos tenha a sua atração,


! ele cria problemas metodológicos comuns a qualquer modelo que tenta
M definir “níveis” de percepção ou consciê ncia. Além disso, ele não trata o
problema de n ão termos nenhuma maneira independente de “perceber” pro-
j cessos inconscientes para verificar o que está sendo percebido em fenôme-
nos revelatórios/’
tf A./knsação )é ainda uma outra categoria sob a qual podemos querer
sub/urmr esses fenômenos. A sensação é inerentemente empirista, todavia,
e força uma concepção de significado cultural como significado referencial
|f imposto em um substrato sensório. As questões relevantes se tornam se o
aquecimento que o curador sente é realmente o mesmo que sentimos quan-
do coramos, se o formigamento é realmente o mesmo formigamento de
* antecipação que sentimos em outras situações altamente significativas, se a
; “duplicação da dor” no braço da curadora quando ela põe as m ãos no om-
bro de uma pessoa é realmente a mesma sensação que temos quando nosso
braço “adormece” depois de ficar muito tempo em uma posição desconfor-
: tável. Todas essas determinações seriam interessantes, mas não atenderiam
; aos objetivos de uma fenomenologia cultural. Ao reduzir significado a sen-
sação ou fun ção biológica, essa abordagem requer uma reconstituição de
significado que desvia a síntese da experiência sensória e a síntese cultural da
li 3 experiênciasagrady
A indeterminação em nossas categorias anal íticas é revelada quando
encontramos fen ô menos tão essencialmente ambíguos como os modos so-
m áticos de aten ção. Essa indeterminação, por fim, é um elemento essencial
de nossa existência. Merleau-Ponty objetou à id éia de percepção como um

,:l ,!,, í
:; ato intelectual de apreensão de um est ímulo externo produzido por objetos
previamente dados. Em vez disso, ele argumentou que a síntese perceptiva

11 JLi !
386
Modos Som á ticos de Atençã o

do objeto é alcançada pelo sujeito, que é o corpo como um conjunto de


pcrccpção e prá tica ( Merleau- Ponty, 1964b, p. 15- 16) . Na verdade, a análi-
se existencial de Merleau-Ponty colapsa a dualidade sujeito-objeto a fim de
colocar mais exatamente a questão de como a atenção e outros processos
reflexivos do intelecto constituem objetos culturais.
/ Ao assumir esse empreendimento , descobrimos que a ambiguidade
entre sujeito e objeto se estende às nossas distinções entre mente e corpo,
entre o eu e o Outro . Com relação à primeira dessas distin ções, se começa-
mos com o mundo vivido de fenômenos perceptivos, nossos corpos não
são objetos para nós . Muito pelo contrário , eles são uma parte integral do
sujeito que percebe. No n ível de percepção não é legítimo distinguir mente
e corpo, pois o próprio corpo é o “poder geral de habitar todos os ambien-
tes que o mundo contém” (Merleau-Ponty, 1962, p. 311 ) . Ao começar da
realidade perceptiva, todavia, toma-se então relevante perguntar como os
nossos corpos podem tomar-se objetificados através de processos de refle-
/
xão Da mesma forma , no mundo vivido, não percebemos os outros como
objetos. Uma outra pessoa é percebida como um outro “eu”, livrando-se de
ser simplesmente um fenômeno em meu campo perceptivo, apropriando
meus fenômenos e conferindo-lhes a dimensão de ser intersubjetivo, e ofe-
recendo assim “a tarefa de uma verdadeira comunicação” (Merleau-Ponty,
1964b , p. 18) . Como no caso do corpo, outras pessoas podem se tomar
objetos para nós apenas de forma secundária, como resultado da reflexão.
É nessa realidade corporificada que tivemos de iniciar a análise da pala-
vra de conhecimento, plasmacione, cama miai e contratransferência corpori-
ficada. Ao ter origem na experiência primordial caracterizada pela ausência
da dualidade entre mente e corpo, eu e Outro, os fenômenos são objetifica-
dos em prática reflexiva através de um modo somático de atenção especí fi-
co. Longe de dar uma explicação causal desses fenômenos, nossa análise
mostrou a dificuldade até mesmo de encontrar categorias descritivas. O que
é revelado por um retorno aos fenômenos - e a consequente necessidade de
colapsar dualidades de mente e corpo, eu e Outro - é em vez disso um
princípio fundamental de indeterminação que apresenta um profundo de-
safio metodológico ao ideal científico. /0 “volver para” que constitui o ob- \ .
jeto da atenção não pode ser determinado em termos nem de sujeito nem Lu

^
de objeto, mas apenas real em termos de intersubjetividade

3S7
*
v
-

i
i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

!!
Para que serve a indetermina çã o ?
!l . Ironicamente, a abordagem através da corporeidade que nos permitiu
elaborar modos som á ticos de atenção como um constructo com algum va-
I
lor empírico demonstrável também revelou a noção bastante escorregadia
í: da indeterminação essencial da existência. Isso está sem d úvida relacionado
;
í com a descoberta da indeterminação metodológica e existencial em escritos
etnográficos recentes (confira Favret-Saada, 1980; Jackson, 1989; Pandolfi ,
i! 1991; Stoller, 1989). Inevitavelmente, talvez, quando tentamos dar for-
mula ção teó rica a essa indeterminação, caímos facilmente de volta na lin-
guagem da textualidade ou da corporeidade, representação ou ser-no-mundo.
í /
No presente contexto, posso apenas apontar para esse problema resumindo
brevemente o princípio de indeterminação como formulado por Merleau-
Ponty para a percepçã o, e por Bourdieu para a prá tica. Retornamos assim à
no ção de indeterminação, não a fim de torn á-la determinada como um
conceito que pode ser aplicado em nossa análise, mas a fim de dar alguma base
teó rica para aceitá-la como uma inevitável condição de fundo de nossa análise
Merleau-Ponty (1962, p. 169), tendo demonstrado que todas as fun-
ções humanas (por exemplo, sexualidade, mobilidade, inteligência) são unifi-
cadas em uma só síntese corporal, argumenta que a existência é indeterminada
^
na medida em que ela é o próprio processo pelo qual o até aqui insigni-
ficante ganha significado, com o que aquilo que tinha meramente uma
significação (por exemplo) sexual assume uma mais geral, a chance é
transformada em razão; na medida em que ela é o ato de ocupar-se de
uma situação de fato. Vamos dar o nome de “transcendência” a esse ato
no qual a existência assume, por sua própria conta, e transforma uma tal
situa ção. Precisamente porque ela é transcend ência, a existê ncia nunca
'
passa completamente à frente de coisa alguma, pois nesse caso a tensão
que para ela é essencial (entre mundo objetivo e significado existencial)
desapareceria. Ela jamais se abandona. O que ela é jamais permanece
externo e acidental a ela, pois isso é sempre assumido e integrado nela.
i

; A transcend ê ncia descrita por Merleau-Ponty é assim não m ística, mas


sim fundamentada no mundo, de forma que a indeterminação existencial
torna-se a base para uma liberdade humana inalien ável.

388
Modos Somá ticos de Atençã o

Para Bourdicu , a s í ntese de dom ínios prá ticos em um habitus unitá rio
c igualmentc baseada em indeterminaçã o, mas essa variante de indetermina-
ção n ão leva à transcend ê ncia. Em vez de uma indeterminação existencial, a
de Bourdieu é uma indeterminação l ógica, que

jamais se limita expl ícita ou sistematicamente a qualquer aspecto dos


termos que liga, mas toma cada um , cada vez, como um todo, exploran-
do por inteiro o fato de que dois “dados” nunca sã o completamente
semelhantes em todos os aspectos, mas são sempre semelhantes em al -
guns aspectos [...]. A prá tica ritual funciona pondo o mesmo símbolo
em diferentes relações através de diferentes aspectos ou pondo diferentes
aspectos do mesmo referente na mesma relação de oposi ção. (Bourdieu,
1977, p. 111-112).

A indeterminação lógica é a base para a transposição de diferentes es-


quemas em diferentes domínios prá ticos, exemplificada na sua etnografia
pela aplicação cabila da oposição macho-fêmea a fora-dentro de casa e, no-
vamente, a diferentes áreas dentro da casa. Ela é também a base para a polis-
semia e a ambiguidade epitomadas pela concha de cozinha cabila que às
vezes é macho, às vezes é fê mea.
/Em resumo, Merleau-Ponty (1962, p. 361) vê na indeterminação da
percepção uma transcendência que não ultrapassaasuasituação corporifica-
da, mas que sempre “afirma mais coisas do que apreende: quando eu digo
que vejo o cinzeiro ali, eu presumo completado um desdobramento da
experiê ncia que poderia continuar ad infinitum, e eu cometo todo um íu-
turo perceptivo”. Bourdieu (1977, p. 79) vê na indeterminação da prá tica
que, como nenhuma pessoa tem domínio consciente do modus operandi
que integra as prá ticas e os esquemas simbólicos, o desdobramento de seus
trabalhos e ações “sempre ultrapassa suas intenções conscientes”. Seria con-
veniente se pudéssemos colocar essas idé ias de indeterminação como perfei-
tamente complementares. Assim, poderíamos dizer que a ação humana é
transcendente ao assumir situações e dotá-las de um significado em aberto
que é inexaurível sem jamais ultrapassar essas situações; e situações não po-
dem ser ultrapassadas porque elas são estruturadas de acordo com um siste-
ma duradouro de disposições que regula as prá ticas ajustando-as a outros
procedimentos, criando com isso a condição de possibilidade para a ação

3S9
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

em aberto. Todavia, há sérias diferen ças conceituais entre os dois tcorizado-


rcs que põem em d úvida essa interpretaçãq/
ÍDo lado de Bourdieu, c( /£ãí)dessas diferenças é sua rejeição dos concei-
tos de experiência vivida, intencionalidade e a distinção entre consciê ncia em
si e para si. Essa rejei ção exige que Bourdieu (1977, p. 80) baseie as condições
para inteligibilidade na vida social inteiramente na homogeneização do habitus
dentro de grupos ou classes, e explique a variação individual em termos de
homologia entre indivíduos, de modo que os sistemas de disposições de indi-
víduos são variantes estruturais do habitus de grupo, ou desvios em relação a
um estilo (Bourdieu , 1977, p. 86). Merleau-Ponty, por outro lado, insiste
na necessidade a priori de intersubjetividade, observando que qualquer ado-
ção de uma posi ção por um ator pressupõe que ele está situado em um
mundo intersubjetivo, e que a própria ci ência é sustentada por esta doxa
básica. Essa intersubjetividade n ão é uma interpenetração de intencionalida-
des, mas um entretecimento de padrões familiares de comportamento

Eu percebo o outro como uma porção de comportamento, por exemplo,


percebo a dor ou a raiva do outro em sua conduta, em sua face ou suas
^
m ãos, sem recorrer a nenhuma experiência “interior” de sofrimento ou
raiva e, porque dor e raiva são variações de pertencimento ao mundo,
indiviso entre o corpo e a consciência, e igualmente aplicável à conduta
do outro, visível no seu corpo fenomênico, como na minha própria con-
duta como ela me é apresentada. (Merleau-Ponty, 1962, p. 356).

Essa análise é ecoada por Jackson ( 1989, p. 135) :

Reconhecer a corporeidade do nosso ser-no-mundo é descobrir um ter-


reno comum onde eu e Outro somos um, pois usando o corpo da mes-
ma maneira que outros no mesmo ambiente a pessoa se sente informada
por uma compreensão que pode então ser interpretada de acordo com
seu próprio costume ou pendor, que ainda assim permanece baseada em
um campo de atividade prá tica e por isso permanece em conson â ncia
com a experiê ncia daqueles entre os quais se viveu.

forque o corpo e a consciência são um, a intersubjetividade é também


uma co-presença; a emoção de outrem é imediata porque ela é apreendida

390
Modos Somá ticos de Atençã o

pré-objctivamentc, c é familiar na medida cm que compartilhamos o mes-


mo hnbitusj
No final, o princípio dc indeterminaçao lógica de Bourdieu torna-se a
condição para improvisaçã o regulada, enquanto o princípio de indetermi-
nação existencial de Merleau-Ponty torna-se a condição para transcendê ncia
na vida social. Cada princípio tem uma fraqueza, baseada no favorecimento
impl ícito da textualidade ou da corporeidade, representação ou ser-no-mun-
do. Deixaremos nossa discussão com um resumo dessas questões.
Para Merleau-Ponty, atos autê nticos de expressão constituem um
mundo “para si mesmos” e são transcendentes, mas uma vez que um mun-
do cultural e linguístico já está constituído, a reiteração desses atos não é
mais transcendente, não se projeta mais no mundo, e comparte mais do ser
“em si”. Para Merleau-Ponty esse problema subsiste principalmente no campo
da fala, onde a palavra que fala torna-se sedimentada como a palavra fala-
da. Aqui, a análise de Bourdieu de universos de prática subsistindo ao lado
de universos de discurso fornece um corretivo, forçando-nos a generalizar
essa sedimentação da linguagem para o resto do habitus, e a reconhecer o
problema de Merleau-Ponty como endémico para sua concepção de exis-
tê ncia. O problema, exigido pela dualidade ( n ão-colapsadaounão-colapsá-
vel) do “em si” (ser) e “para si” (existência), é ter que distinguir a expressão
genuína e transcendente da reiteração. Isso leva diretamente ao dilema de ter
que especificar condições sob as quais as pessoas podem se tomar objetos
para outros e para si mesmas, e sob as quais as classes socioecon ômicas
podem se tornar objetos para outras classes e para si mesmas, em oposição a
serem sujeitos de sua pró pria ação. Enquanto existência não ê texto, ela é
essencialmente textualizável.

^ Bourdieu, ao rejeitar a distinção entre “em si” e “para si", pode evitar
esse problema conceituando o resultado da indeterminaçao como improvi-
sação regulada, em aberto mas circunscrita pelas disposições do habitus.
Nisso, porém , ele é confrontado com um diferente problema: explicar
mudança, criatividade, inovação, transgressão e violação. Ele afirma que,
“como um sistema adquirido de esquemas gerativos objetivamente ajusta-
dos às condições específicas nas quais ele é constituído, o habitus engendra
todos os pensamentos, todas as percepções e todas as ações consistentes

^
com aquelas condições e não quaisquer outras’ Bourdieu , 1977, p. 95)

391
*
í
a
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
!
• H Isso é difícil de conceber, ele afirma , se a pessoa fica trancada nos dilemas de
determinismo e liberdade, condicionamento e criatividade. Essas são talvez
! dualidades que ele está pronto demais para colapsar, todavia, a menos que a
“liberdade condicional e condicionada” da “ intermin ável capacidade de en-
li i gendrar produtos” do habitus inclua a capacidade para sua pró pria transfor-
; ma çã o ( Bourdieu , 1977, p. 95 ) . fOe outra forma, o princí pio de
r 1
indeterminação torna-se um disfarce para a falta de especificidade anal ítica,
e o habitus perde o seu valor como um constnicto anal ítico. Embora o habi-
tus carregue um pouco do esquematismo de um texto fixo, ele pode ser trans-
if cendido em existência corporificada!
I: Conclusã o
1

Abordar fen ômenos culturais do ponto de vista da corporeidade nos


l
! permitiu definir um constructo de modos somáticos de atenção, que, por
sua vez, nos levou a um princípio de indeterminação que solapa as dualida-
i des entre sujeito e objeto, mente e corpo, eu e Outro. Em nossa compara-
!! ção final de Merleau-Ponty e Bourdieu, vimos que as relações entre a própria
corporeidade e a textualidade, entre representação e ser-no-mundo, tam-
bém são indeterminadas. Essas relações indeterminadas constituem o terre-
no existencial cambiante no qual a etnografia contemporânea sugere que
lí devemos situar cada vez mais os fenômenos culturais. Nossas tentativas de
objetificar em análise são an álogas ao gesto definitivo do vidente Senufo
. que bate na coxa (Zempleni, 1988) para confirmar seu pronunciamento. O
r! . 1 ato n ão é tanto uma invocação do sagrado quanto é uma declaração corpo-

I rificada, em desafio à sabedoria de que nunca se entra duas vezes no mesmo
rio, que se agarrou um resultado definitivo do fluxo indeterminado da vida
e que, de uma vez por todas, “é assim que é”.
I jÉ esse mesmo princípio de indeterminação, inerente à vida social, que
li veio à tona no movimento consciente do pós-modernismo em arte e na
. dissocia ção inconsciente de signos e referentes, símbolos e dom ínios, na
:I
,
i cultura contemporânea. É a indeterminação fundamental da existência que
í aqueles antropólogos atraídos para o câ mbio metodológico pós-moderno
i. í do padrão para o pastiche, de símbolos-chave para gê neros confusos sentem

li 392
Modos Soni á t C0s
' de Atençà 0
qUC tá faltando
^ / O projeto deles foi
iniciado no paradigma
te* rdade, mas uma contribuição
tlj / substancial também pode semiótieo da
& e a oração de um paradigma fcnomenol
ógico da ser dada atravé
corporeidade. Poré s,
jeterminação é
56 fundamental
-Vd0sa de suas caracteristicas definidoras,exist
para a ência, apegas m
cuida a elaboração
Mer e

p
*aaimprecisí ^
e nprovisação)
cjência danõssã
oanalítlca
em
cóndição

'
Bourdieu
tais como

existencial sem ^
, permitirãõranscendênciã-em
quêêlã elorne
se tornar um ^
pretexto

393
CAP ÍTULO DEZ

Sombras da Representa ção e Ser na Realidade Virtual'

Uma maneira de tratar a questão de o que significa ser humano é co-


meçar com a observação de que nós temos um mundo e habitamos um
mundo. A partir daí a investigação parece desdobrar-se sozinha, com o con-
junto de questões tendo necessariamente a ver com a forma como os mun-
dos (pois eles são sempre m últiplos) são consdtuídos, o que significa tê-los
e como precisamente nós os habitamos. Na sociedade contemporânea a
biotecnologia está cada vez mais envolvida em transformar as próprias con-
dições corporais para ter e habitar qualquer mundo. Esse é, sem d úvida, o
caso quando a biotecnologia inclui sofisticadas aplicações de computador,
pois se reconhece que os computadores e as redes de computador têm um
enorme potencial de transformação. Na verdade, Sherry Turkle (1995) su-
geriu que importantes modulações do self estão em fabricação, e o filósofo
Michael Heim (1993) sugeriu que o computador está à frente de uma
mudança ontológica maior - uma modulação na pró pria estrutura da reali-
dade humana.

* Agradecimentos: este capí tulo foi escrito quando eu era Professor Visitante na Fundação
Russel Sage. Recebi comentá rios valiosos de Stefnnia Pandolfo e Lawrence Cohen quando
apresentei este material na Universidade da Califórnia, Berkeley.
ifl
f
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
I
Se esse é o caso, então o que está em jogo é a natureza de nossa experi-
ê ncia como atores sociais cm um mundo cultural. O que cu quero dizer por
lit experi ê ncia , e o que está cm jogo nas aplicações biotecnológicas do compu-
i>
1 tador, é a interaçã o entre representações culturais na forma de fala, texto,
imagens, símbolos, mitos, sonhos e modos culturais de scr-no-mundo, que
para mim significam o modo pelo qual estamos presentes no mundo agora,
neste momento e nesta situação, com a qualificação de que este momento

- está totalmente imerso na temporalidade. Eu preferiria, por enquanto, n ão


falar mais por meio da definição abstrata de representação e ser-no-mundo.
O desafio teórico n ão é abandonar o ser-no-mundo como inacessível e con-
finarmo-nos ao estudo das representações, nem afirmar que o ser pode ser
estudado independentemente de representação, mas insistir no necessário
entrelaçamento dos dois.

:
^ Elaborar as consequ ências culturais das aplicações biotecnol ógicas do
computador em relação a ter e habitar os mundos requer uma fenomenolo-
gia cultural que enfatize esse entrelaçamento. Muita análise cultural recente
privilegia o pólo da representação, e entende a cultura como constitu ída por
símbolos, signos e imagens. Desse ponto de vista, a textualidade é a metáfo-
ra de maior destaque a guiar a interpretação da cultura, e o mundo é menos
:
! habitado do que representado em uma forma que pode ser lida. Embora
interpretativamente poderosa, todavia, a noção de textualidade é menos
apta a especificar modos culturais de ser-no-mundo - isto é, os tipos de
' envolvimento e participação de humanos em nossos mundos - do que a
noção complementar de corporeidade. Essa noção logo nos coloca na con-
;
dição mais geral e limitadora de nossa existência. Nossa existência corpórea,
!
ou corporeidade, considerada desse ponto de vista compreende uma série
de modalidades experienciais potenciais em relação à características de con -
texto histó rico e cultura\f
A interação entre representação e ser-no-mundo, e a complementari-
dade entre textualidade e corporeidade, está em jogo exatamente nas aplica-
: ções biotecnol ógicas do computador. Primeiro, o corpo humano é o alvo
.
;
objetivo da tecnologia. Ao ser acolhido no ambiente tecnológico ele é re-

fill
!; 1 !
presentado e, eu diria, o seu ser-no-mundo é alterado. Segundo, o usu á rio
do computador é o manipulador subjetivo corporificado da tecnologia.
Nessa capacidade uma pessoa encontra representações do corpo e, mais uma

; 396
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

vez, eu diria cm conson â ncia com as sugestões dcTurkic c Hcim supracita-


das, o seu scr-no-mundo é alterado. O exemplo que ofereço neste capítulo
envolve o uso da realidade virtual gerada por computador para criar os cha-
mados cadáveres virtuais, que são criados com propósitos como o de ensi-
nar anatomia humana e o de ajudar em cirurgias assistidas por computador.
A discussão que se segue toma essas questões como elas estão sendo apresen-
tadas no Projeto Humano Visível e conclui com uma reflexão sobre suas
consequências para a corporeidadc com relação à representação e ao ser-no-
mundo.

A cria çã o de cadá veres computadorizados

A criação dos cadáveres “ Humanos Visíveis” foi uma façanha tecnoló-


gica extraordinária, realizada com financiamento do governo dos EUA. O
diretor da Biblioteca Nacional de Medicina ( BNM) Donald Lindberg ob -
serva que o Projeto Humano Visível nasceu do seu comentário em 1987 de
que “a comunidade das escolas de medicina precisava de uma maneira me-
lhor de ensinar anatomia”. Em 1991 a BNM outorgou um contrato para o
desenvolvimento do conjunto de dados propostos ao Centro de Simulação
Humana da Universidade do Colorado, com um subcontrato para a criação
de visualizações volumétricas tridimensionais dos cadáveres computadori-
zados para o Grupo de Visualização da Divisão de Computação Científica
do Centro Nacional de Pesquisa Atmosfé rica. O primeiro passo era encon-
trar um cad áver apropriado, começando com um macho. Em 1993, depois
de dois anos e meio de procura por um cadáver fresco que fosse “‘normal’ e
dentro das determinaçõ es de tamanho e idade”, um homem qualificado de
39 anos chamado Joseph P. Jernigan , condenado à morte no Texas, concor-
dou em doar seu corpo para a ciência em troca de poder morrer com uma
injeção letal e n ão eletrocutado. Isso servia bem aos propósitos dos pesqui-
sadores, já que a eletrocução altera os tecidos de tal maneira que invalidaria
o prop ósito de ter um corpo de aparê ncia tão viva quanto poss ível.
O segundo passo era criar três conjuntos harmó nicos de imagens, com-
postos de seções transversais ou “fatias” do corpo de Jernigan. Os dois pri-
meiros conjuntos foram obtidos por imagem de resson â ncia magné tica

397
f !i ill i
i
1Í! I CORPO/ SIGNIFICADO / CURA

i (IRM ) e tomografia computadorizada (TC). Em seguida o corpo foi en -


volvido em gelatina, congelado a -106 °C e cortado em quatro seções. De -
pois ele foi seccionado cm 1878 fatias transversais de um mil ímetro de
ila j espessura cada uma, correspondendo exatamente às imagens de IRM eTC.
!• Fotografias digitais em cores de alta resolução foram tiradas do bloco de-
ir ; -
pois de cada fatia. Quando um cad áver feminino uma mulher de 59 anos
'
11 } ! morta de uma doença do coração e cuja fam ília insistiu que ela permaneces-
se an ó nima - foi submetido ao mesmo procedimento um ano mais tarde,
i os pesquisadores decidiram que poderiam conseguir um detalhamento maior
e uma resolu ção mais alta fazendo as fatias com um terço da espessura.
Consequentemente, ela foi seccionada em 5189 fatias transversais. Para
' ambos foram criadas imagens IRM e TC de todo o corpo antes do conge-
: lamento. As imagens fotográficas foram da face de cada seção e não das
! fatias retiradas por um macrótomo criogênico guiado por laser especial-
I mente desenhado. Os restos f ísicos se tornaram assim um monte de raspas
congeladas, que então foram cremadas, de forma que seus restos digitais
í têm agora, em um certo sentido ainda a ser compreendido que vamos exa-
minar em breve, uma existência mais concreta.
Cada um dos três tipos de imagens transversais foi capturado digital -
mente em 2048 por 2048 por 42 bits, e alinhado com suas imagens acom -
j ff ’ . panhantes e com as imagens das fatias adjacentes. Os conjuntos de dados
combinados são astronomicamente altos: o cadáver masculino ocupa 15
i gigabytes e o feminino 39 gigabytes. Esses dados estão guardados em um
Br§ i site FTP e podem ser baixados gratuitamente da Internet.106 Donald Lind-
ll berg afirma que, “com o Projeto Humano Visível, estamos retornando à
idéia de que uma biblioteca guarda o conhecimento de uma profissão - não
I apenas reimpressões, revistas e livros. O advento da tecnologia nos d á a

I Internet nos seguintes


106 As imagens humanas visí veis aqui apresentadas estão dispon íveis na

endereços: General Electric http:// www.crd .ge.com /esl /cgsp/projects/ vm / e http://


(
www.crd.ge.com /esl /cgsp/projects/ vw/) , UC San Diego (http://cybermed . ucsd.edu) , e
Universidade de Hamburgo (http://www.voxel-man .de/gallery/). Cada um desses pode
ser acessado através da Biblioteca Nacional de Medicina: (http:// www. nlm . nih .gov/
research/visible/animations.html ). Uma impressionante variedade de imagens baseadas
no Humano Visível pode ser encontrada em Tsiaras ( 1997).

li; :;
IH. 398

É
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

oportunidade de conservar o conhecimento eletronicamente e distribu í-lo


de maneira virtualmcnte instantânea pelo mundo afora”. Um relatório de
projeto da BNM de 1996 observa que os dados do Humano Visível já
“estão sendo aplicados para uma grande variedade de usos educacionais,
diagnósticos, de planejamento de tratamento, de realidade virtual, artísti -
cos, matemáticos e industriais” e no final do ano mais de 700 licen ças havi-
am sido emitidas para usuários em 27 países.
Examinemos agora o potencial dos dois cadáveres virtuais para produ-
zir imagens computadorizadas do corpo humano. A forma básica é a seção
transversa (cada qual no seu arquivo de computador) , mas, pelo fato de as
imagens serem perfeitamente alinhadas, é possível também produzir seções
horizontais e verticais virtualmente em qualquer plano. Programas mais
sofisticados são capazes de produzir representações tridimensionais empi-
lhando as fatias e isolando os locais correspondentes a estruturas anatômicas
externas ou internas específicas. Por exemplo, as cabeças masculina e femi-
nina que acompanham o texto, geradas por William Lorenson, da General
Electric Corporation, não são fotografias, mas reconstruções de aspectos da
superfície das fatias (215 fatias físicas para a masculina, 209 fatias de TC
para a feminina). Pela manipulação e combinação dessas imagens usando os
programas de visualização mais avançados é possível penetrar no corpo -
dando a sensação de atravessá-lo caminhando ou voando (como no atraves-
sar paredes, ou na “visão de raio X” de um super-herói). Diferentes n íveis de
profundidade ou sistemas (pele, m úsculos, esqueleto) podem ser sobrepos-
tos para serem vistos simultaneamente e estruturas anatô micas distintas
podem ser isoladas. Alé m disso, essas imagens podem ser giradas para serem
vistas de diferentes perspectivas, não apenas em imagens fixas sucessivas,
mas em animações de computador. Atualmente isso avançou tanto que
permite simulações cir ú rgicas - a serem discutidas com um pouco mais de
detalhe abaixo - semelhantes às simulações de vôo usadas em treinamento
de pilotos. Em uma demonstração facilmente dispon ível do Centro de Si-
mulação Humana , pode-se ver um escalpelo computadorizado, fazer uma
incisão em uma coxa seccionada do corpo acima e abaixo do joelho. A
incisão abre gradativamente para revelar m úsculo e gordura, a seção gira no
centro da tela e entra em um close-up que mostra vários ângulos da incisão.
Os criadores desses métodos garantem que suas animações - fica-se indina-

399

_ . *
'
m

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

do a dizer reanimações - incluirão eventuaJmentc o sangue correndo nas


veias e em torno dos órgã os e a respiração pulsando através dos pulm ões.
Além disso, existe o prospecto de transformações que simularã o os proces-
sos de envelhecimento (bem como, é claro, o de voltar a ser jovem) e de
patologia (bem como o seu reverso). Tudo isso no contexto da aspiração
técnica de cortar futuros candidatos em fatias cada vez mais finas para entrar
em bancos de dados cada vez maiores. Pode-se imaginar uma corrida de
cadáveres virtuais reanimados fiéis à forma humana até no n ível celular,
infinitamente mutáveis, aptos a serem submetidos a muitos procedimentos
cir úrgicos e processos de cura simultâneos, capazes de reanimação e regene-
ração por inteiro ou em qualquer parte.

'
'
*
/
.

\
V
.

^>
V »


*! 1
Figura 10.1 Homem Visível, vista frontal
Fonte; reproduzido com permissão da General
Electric.

\ \

10.2 Mulher Visível, visa


orne reproduzido com permiss fronal
ão da General
Eleerric.
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

Simulóides, avatares e sombras

Os cadáveres virtuais são fen ô menos no e do ciberespaço e da realidade


virtual. Deixem-me esclarecer minha compreensão de como esses termos
-
estão relacionados. Uma pessoa que envia e mail ou navega em sites da In-
ternet está no ciberespaço, mas n ão está entrando na realidade virtual em
um sentido estrito. Aqui o computador é uma ferramenta de comunicação,
um aperfeiçoamento cibernético do correio e da m ídia. Uma pessoa com
luvas digitais e óculos de realidade virtual envolvida em simulação compu-
tadorizada avançada está entrando em uma realidade virtual, mas não está
no ciberespaço. Aqui o computador é uma ferramenta estética, um aperfei-
çoamento cibernético de técnicas dram á ticas e interpretativas através das
quais nós criamos campos imaginativos. Em uma melhor formulação, o
ciberespaço é um meio intersubjetivo socialmente consutuído (constituído
por interação entre participantes no meio comunicativo), enquanto a reali-
dade virtual é a presença sensó ria subjetiva naquele meio (constituída por
interação entre usuário individual e tecnologia). A interseção dos dois reside
no total engajamento sensorial e corpóreo em uma realidade virtual que
també m está totalmente conectada em rede e plugada no ciberespaço - em
outras palavras, a versão completamente desenvolvida, gibsonesca de ficção
científica da realidade virtual dentro do ciberespaço. É importante identifi-
car essa interseção porque é ela, sem d úvida, o locus cultural exato dos cadá-
veres virtuais.
yfo que queremos dizer com “ locus cultural” nesse caso? Vamos aceitar a
metáfora do ciberespaço com literalidade suficiente para concebê-lo não
como um “dom ínio cultural” , mas como um “terreno etnográfico" bem
claro, sendo legítimo, portanto, falar de uma etnografia do ciberespaço. Na
verdade, muito recentemente houve um florescimento de trabalhos dentro
dessa linha em antropologia, e o n úmero de sessões dedicadas a tó picos
relacionados nos últimos vários encontros da Associação Antropológica
Americana indica uma onda de interesse. O conceito mais notável nessa
área é o das “comunidades virtuais”, ou redes de interação social com limites
fluidos e graus variáveis de permanê ncia aparente, compostas de atores cuja
agência é expandida ao ponto de controlar e manipular suas pró prias identi-
dades como puras formas de representação, e que interagem com outros

401
ú
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

Ííí
atores /
ambíguos cujas identidades nunca são seguras Embora haja assim
uma preocupação com os tipos de relacionamento que existem no cibcrcs-
pa ço claramcnte articulada, tomar a metá fora do ciberespaço literalmcntc
,
f
como um terreno etnográfico nos permite formular uma preocupação pa-
ralela com os tipos de seres que habitam o ciberespaço. Podemos então
;
l propor um inventário preliminar de tais seres, com a advertê ncia de que o
“ciborgue” não está entre eles, pois um ciborgue é por definição uma criatu-
ra da interface tecnol ógica. Nós somos ciborgues sempre que as nossas ca-
pacidades corporais são alteradas ou intensificadas tecnologicamente, inclusive
í quando estamos com os nossos narizes espremidos contra a janela do cibe-
respaço por causa de uma inicialização. O objetivo aqui é um inventário de
seres que existem inteiramente no lado de lá da interface, no terreno etno-
|
* gráfico marcado pelo que identificamos como a interseção do ciberespaço e
da realidade virtual.
,! Da mesma forma, meu inventário preliminar consiste de três tipos de
seres: simulóides, avatares e sombras. Simulóides são entidades geradas por
:
} software que não têm contrapartida senciente na realidade. Na linguagem
da ind ústria, essas entidades recebem uma variedade de nomes como tecno-
i
i logias humanóides, humanos virtuais, sistemas de modelação humana, hu-
man óides gerados por computador ou criaturas autónomas. Os simulóides
'

!: :í
i'
são descritos como “autónomos” não no sentido de terem agência por direi-
to próprio, mas no sentido de serem independentes de agê ncia humana: eles
:
são controlados por software em vez de controlados por humanos. Eles
também são autónomos em relação a qualquer necessidade de se conformar
: ! a uma realidade concreta, e assim suas caracter ísticas podem transcender o
i
humano - eles podem tanto ser animais como máquinas ou monstros. No
li entanto, vem-se dando muita aten ção atualmente ao desenvolvimento de
humanos virtuais per se, definidos como “pessoas geradas por computador
que vivem, trabalham e brincam em mundos virtuais, tomando o lugar de
indivíduos reais ou executando trabalhos que pessoas reais n ão podem fa-
. ; zer ”. A história da agência de notícias que traz essa definição també m cita
: :
Sandra Kay Helsel , editora da VRNews, afirmando que “ Humanos virtuais
serão a ind ústria em crescimento dos anos 1990!” Os personagens de jogos
: de computador são simul óides, como são os personagens Max Headroom,
o computador chamado “ HAL” do filme 2001, Uma Odisséia do Espaço, e
, !í ;

í li ' 402

I
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

o cibcr-homcm vil ã o do filme Assassino Virtual. Os simulóides mais avan-


çados incluem os humanos virtuais desenvolvidos por Nadia Thalmann,
I
com o seu programa Marilyn , que pode simular Marilyn Monroe c tam-
bém Humphrey Bogart , e inclui características como expressões emotivas,
fala, roupas, cabelo e a capacidade de responder a usuá rios de computador.
O sistema de modelação humana Jack, de Norman Badler, é baseado em
uma figura desenhada segundo as especificações de um americano médio,
do sexo masculino, capaz de articular movimentos inclusive de modifica-
ção de equilíbrio e desvio de colisão, gestos e expressões faciais, processa -
mento de linguagem natural e de transformação em tamanho e cor.
O termo “avatar” já é de uso comum e aplica-se, às vezes, ao que cha-
mei de simulóides, mas quero restringir seu significado a encarnações virtu -
ais de atores humanos deste lado da interface que são controladas diretamente
por esses atores. Vale a pena usar algumas das conotações culturais da noção
de avatar por causa das implicações relacionadas a sujeito, agê ncia e ser que
podem ser vistas nela. O significado primordial do termo, evidentemente,
é a encarnação de uma divindade hindu em forma humana real. Por outro
lado, o operador humano do computador é, por extensão, análogo a um
tipo de divindade que manipula o avatar computadorizado em forma hu-
mana virtual. A extensão, por outro lado, inverte o significado do termo
sânscrito de maneira sutil: enquanto o avatar hindu é uma encarnação de
uma divindade numa forma terrena, o avatar do computador é uma apote-
ose virtual de um ser terreno em um reino imagin ário de poderes fantásti-
cos e formas cambiantes. Um uso mais secularizado do termo oferecido
pelo dicionário Webster sugere que um avatar pode ser uma corporificação,
como a de um conceito ou filosofia, geralmente em forma humana, defini-
ção essa que enseja a observação de que o que está sendo corporificado pelo
avatar do computador é a pró pria forma humana.
Uma outra definição do Webster, mais exaustivamente abstraída, dá o
avatar como “ uma fase variante ou versão de uma entidade básica constan-
te”. Essa definição enseja a pergunta de se é melhor considerar o avatar
como a representação de uma pessoa, uma extensão cibernética da pessoa, a
projeção de uma pessoa no ciberespaço, ou, de fato, uma “fase variante ou
versão” de uma pessoa, pois certamente o avatar é muito mais do que um
duplo computadorizado ou uma simulação programada para agir como

403
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

uma pessoa. De fato, cm fevereiro de 1996 houve um casamento virtual


em Los Angeles no qual os votos foram trocados na tela via avatarcs en -
quanto na realidade os participantes permaneceram em locais geográ ficos
separados. 0 que varia de um ponto de vista técnico é o grau de engajamen-
to sensório do operador no avatar. Na prá tica, avatares podem ser formas
imaginadas descritas para outros usu ários digitando em textos, como nas
redes interativas de sexo por computador, onde as pessoas se tornam ani-
mais ou criaturas dotadas dos mais fantásticos e criativos órgãos sexuais e
gêneros m últiplos. Os avatares podem ser também “ícones do corpo” visu -
ais que podem ser manipulados e vir à presença virtual dos ícones do corpo
de outros usuários, mas são agora geralmente pouco mais do que “l úgubres
formas de bonecos de pano” sem faces ou pés. Os mais avançados incluem
feedback multissensório no qual os avatares não são tanto representações do
usuário, mas projeções do usuário no espaço virtual. Tais projeções são, elas
próprias, formas customizadas geradas por computador, mas podem, em
princípio, também ser imagens de vídeo animadas por computador, como
na tecnologia “sintespiana” pioneira desenvolvida por Jeff Kleiser e Diana
Waczak.
/
Para resumir a distinção entre os tipos de seres que descrevi aqui, os
“simul óides” são substitutos para pessoas, gerados por computador, sem
nenhuma conexão com qualquer pessoa real, enquanto “avatares” são proje-

^
ções de pessoas vivas como pessoas digitalizada Para usar exemplos vívidos
da cultura popular, o vilão gerado por computador do filme Assassino Vir -
tual é um simulóide que cruza a interface da virtualidade para a realidade e
torna-se corporificado; o personagem Jobe no filme O Passageiro do Futuro
é um humano que cruza da realidade para a virtualidade para tornar-se lite-
ralmente seu avatar e abandonar seu corpo. O propósito desse contraste é
apresentar um terceiro tipo de ser bem diferente, que é nativo do ciberespa-
ço. Os cadáveres virtuais computadorizados do Projeto Humano Visível da
Biblioteca Nacional de Medicina são o que eu chamarei de “sombras”, deri-
vados do uso dessa palavra para denotar um espírito no mundo das som-
bras. Existem apenas dois desses seres atualmente, um masculino e um
feminino, mas suas existências têm consequências profundas que só agora
estamos ao poucos começando a entender. Estes sombras estão “no” ciberes-
paço e “na” realidade virtual em um sentido diferente tanto dos simulóides

404
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

como dos avatares. Assim como um simul óidc, o sombra pode operar como
um substituto de uma pessoa, mas diferentemente de um simul óidc ela é
uma distilação de uma pessoa real que pode ser digitalmcnte sobreposta em
outra pessoa real. Como um avatar, um sombra é uma projeção de uma
pessoa real no ciberespaço, mas diferentemente de um avatar essa pessoa
n ão apenas está morta, mas foi dissolvida como ente físico. Assim, ela
existe apenas no lado de l á da interface, onde ela n ão é uma animação,

mas uma reanimação um tipo de ser inteiramente novo. Elaboremos
essa análise examinando rapidamente a estrutura simbólica e biotecnoló-
gica das sombras.

Adão e Eva no mundo virtual dos mortos

Quando as primeiras imagens do Humano Visível masculino foram


apresentadas, os membros do Conselho da BNM explodiram espontanea-
mente em aplausos, ensejando um comentário de Ackerman, diretor do
projeto, citado pelo Denver Post “ Foi como aplaudir ao finai de um movi-
mento em um concerto. Foi inapropriado, e n ão seguiu as regras do decoro.
Mas foi uma indicação clara de como as pessoas estão excitadas” (Schrader,
1994). Dada a excitação gerada por esse rolo compressor biotecnológico,
vamos colocar a seguinte questão: qual é a relação entre Joseph Jemingan, a
dona-de-casa de Maryland e os conjuntos de dados que eles se tomaram ?
Em outras palavras, o que constitui o seu status cultural (ser) como som-
bras? Para uma resposta preliminar, eu tomei como dados as representações
do evento em boletins da Biblioteca Nacional de Medicina e cerca de 55
artigos da mídia popular.
Uma maneira de pensar sobre a mudança de status cultural é mais
evidente com Jemigan, cuja sorte foi a mais p ú blica. Aqui há um sentido de
“através do espelho” em relação à representação da sua pessoalidade. A pri-
meira menção de Jernigan é em retrospecto espantosamente inconsciente
de sua subsequente celebridade póstuma. É um artigo típico distribuído
pela Reuters no New York Times de 6 de agosto de 1993, noticiando que ele
foi executado com uma injeção letal depois de admitir ter matado o dono
de uma casa que o surpreendeu durante um roubo. Tais mortes por execu-

405
iff
1

!
.
!. CORPO / SIGNIFICADO / CURA
i

' if 0
ção são noticiadas rotineiramente na m ídia, e o valor do artigo n ão vai alé m
da observação de que, pelo foto da reinstitucionalizaçã o da pena de morte
-
nos Estados Unidos continuar provocando pelo menos - uma morna
!!5
;í ÍÍ : S discussão pú blica, as execu ções continuam a ser notícia. Até abril de 1994
•1.1 sua existência anterior era uma distorcida nota de pé de página. Um artigo
J
assinado sobre a iminente divulgação do conjunto de dados do Humano
•f
• -
Visível Masculino publicado em vários jornais da rede Knight Ridder des-
creveu o cad áver como uma “vítima de overdose de droga” (este artigo incri-
ii velmente ruim também se refere ao filme Viagem Fantástica como Jornada
' I í vel), assim como fizeram artigos publicados em 1994 e 1995 no Den-
Incr
ver Post. O Denver Post mencionou o projeto em 1994 em um artigo sobre
{;
o processo “criônico”, a prá tica de congelar indivíduos doentes mortos na
.
;
esperança de trazê-los de volta à vida quando a tecnologia médica tiver avan-
çado o suficiente para curá-los, com o comentário final de que “o projeto
-
n ão visa reviver os indivíduos”. Fica se no entanto com a imagem excitante


!
de uma pessoa, cuja identidade pessoal não vem ao caso, que está em certo
sentido apta a ser reanimada.
if O sentido de “através do espelho” que define o status cultural das som -
-
bras fica mais evidente na série de metáforas invocadas para descrevê las. Há
; quatro conjuntos de metáforas, um descrevendo as sombras como Ad ão e
i Eva, um em imagens de nascimento ou imortalidade, outro como se elas
1 fossem um terreno virtual a ser mapeado, e mais um que invoca Leonardo
da Vinci. A metáfora de Adão e Eva é, sem d úvida, a mais carregada de
simbologia. Isso é evidente porque a inten ção original dos diretores do pro-
jeto era usar esses nomes como títulos formais para as suas sombras em vez
í dos mais sem graça “ Humano Visível Masculino” e “ Humano Visível Fe-
minino”. O plano teve de ser abandonado diante das ameaças de conflito
!í! :
;
legal com uma companhia que já tinha denominado a si e ao seu programa
de software de anatomia interativa de A.D.A.M., um acrónimo para Ani -
maçã o de Dissecação de Anatomia para Medicina. A competi ção não -
í!!
: li

.
importa que a própria companhia A.D.A.M. esteja hoje licenciada para usar
as sombras do Humano Visível no desenvolvimento de seus produtos -
i indica que alguma coisa bastante existencial pode realmente estar em jogo
no advento das sombras.
jif
I
m;í 406

li
Sombras da Representaçã o e
Ser na Realida
de Virtual

c Ciência
dc Maternities

.
da Computação em Medicina, Univers dade
[ li

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

\
j

Figura 10.4 Cabeça do Homem Visível mostrando órgãos internos


Fonte: reproduzido com permissão de Karl Heinz Hõhne do Instituto de Matemá ticas e Ciência
da Computação em Medicina, Universidade de Hamburgo, Alemanha.

Uma amostragem dessas metáforas dará uma idéia do que eu quero


dl: dizer. O jornal Philadelphia Inquirer (14 de abril de 1994) refere-se às som-
bras como um ‘“casal perfeito’ - um Adão e Eva para a imortalidade no
' computador”. O Denver Post (6 de junho de 1994) chamou-as de “primei -
ro casal”. O Baltimore Sun (29 de novembro de 1995) anuncia que a som-
bra feminina é uma “Sócia para o ‘Homem Visível’”, e o New York Times
(29 de novembro de 1994) noticia que a BNM estava “procurando uma
doadora feminina para partilhar sua vida na rede”. The Economist (5 de
março de 1994) vai ainda mais longe em sua referência a “ Uma nova fam ília
- Adão, Eva e seu rebento embriónico”, associando os Humanos Visíveis
com o Projeto Embrião Visível, do Instituto de Patologia das Forças Arma-
1 das. Em outro lugar no artigo, eles são chamados de “Adão, Eva e pequeno

408
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

Caim” , e a Biblioteca Nacional de Medicina de seu "Jardim do Éden eletró-


nico”. Referindo-se a planos de aumentar o inventá rio de sombras, o San
Diego Union-Tribune (15 de março de 1995) observa que “o futuro pode
também trazer progénie Visível, Vovô e Vovó, ou uma mulher mais jovem
em pré-menopausa”.

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% /
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Figura 10.5 Torso de Homem Visível mostrando órgãos internos


Fonte: reproduzido com permissão de Karl Heinz H õhne do Instituto de Matemá ticas c Gência
da Computação em Medicina, Universidade de Hamburgo, Alemanha.

409
•f if ff I

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!i 111
, i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

A metáfora de Ad ão e Eva n ão pode ser descartada como banal nem


1 I como oportunistamente comercial - ela simplesmente cncaixa-sc bem de-
mais no simbolismo do gênero contemporâneo (veja també m Treichlcr,
!•
1998). Embora n ão tenha havido maior relação entre Jernigan c a dona de
:
casa de Maryland do que entre quaisquer dois cad áveres doados para pes-
!
quisa medica, h á um encanto evidente em transform á-los em um primeiro
casal m ítico de um mundo novo virtual , reanimados digitalmente e capazes
de procriação necrosscxual de uma família ou espécie de sombras. Conveni-
entemente, dessa vez Adão e Eva são ambos brancos. Naturalmente o ho-
mem foi criado primeiro e a mulher veio em segundo lugar, embora dessa
vez não da costela de Adão. Como é o caso geralmente na sociedade con-
:
temporânea, o homem tem uma identidade garantida (embora fortuita
porque sua causa de morte foi p ú blica, por ordem de um tribunal), en-
quanto a mulher permanece an ónima (embora do lado de cá do espelho
II esse anonimato fosse considerado um direito). A imagem de Adão apresen-
!i kl tada em fatias de um milímetro é mais grosseira, enquanto Eva é mais
m refinada ou, no trocadilho de um jornalista, ela “ parece mais fina” do que
seu par masculino Dito de outra forma, no idioma foucaultiano da vigi-
!
^
lância do corpo, se o macho pode ser analisado, a fêmea pode ser analisada
mais minuciosamente. O macho era um assassino malévolo morto por
uma injeção letal, a fêmea era uma vítima inocente que morreu de um
ataque do coração (como em “um beijo no seu coração” / Adão é suficiente
ii i »
por si mesmo, um espécime realmente magnífico que fazia musculação,
í enquanto se diz que Eva precisa ser suplementada por uma colega em pré-
menopausa - podemos esperar poligamia no ciberespaço.
; O segundo conjunto de metáforas tem a ver com nascimento e imor-

I! talidade. Por um lado, uma autodescri ção colocada na Internet em 1996


pela equipe do Centro de Simulação Humana do Centro de Ciências da
Sa úde da Universidade do Colorado (CCSUC) observa que seu laboratório
de imagens anatômicas “deu à luz o Humano Visível - Homem e Mlilher”,
I jf ! enquanto o New York Times (29 de novembro de 1994) noticia que o “as-
sassino executado renasce como ‘homem visível’ na Internet”. Por outro
lado, o boletim da Biblioteca Nacional de Medicina ( National Library of
!
Medicine News, 1995) informou que os humanos visíveis estão “ imortali-
' zados na Internet”. O jornal The Independent (29 de novembro de 1994)

I
!
410

!
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

anunciou que “um assassino foi solto ontem na rede de computadores” e a


revista NetGuidc ( Io de abril de 1995) que “um assassino (...) foi imortali-
zado [...] ”. A revista Life (fevereiro de 1997) refere-se ao “além túmulo
-
eletró nico”, o Baltimore Sun (29 de novembro de 1995) afirma que a som-
bra “ [...] ganhou um pouco de imortalidade computadorizada”, e o Den
ver Post (6 de junho, 1994 ) , que o projeto “ promete vida eterna aos
-
participantes”. Essas metáforas n ão são nem ociosas nem contraditórias,
mas refletem visões de diferentes lados do espelho. Os humanos são, em
certo sentido, imortais na sua nova forma, suas sombras são, em certo sen
-
tido, seres renascidos em um novo espaço.
Duas metáforas um pouco menos desenvolvidas e que ainda assim
indicam algo do status cultural das sombras podem ser identificadas. Uma é
a elevação das sombras em uma celebração da forma humana que as colo
-
cam lado a lado com as versões de Leonardo da Vinci. Um grupo do Hos-
pital Universitário de Hamburgo, Alemanha, que criou um impressionante
Atlas 3-D chamado VoxelMan, traça uma linha histó rica direta de Leonar-
do da Vinci ao desenvolvimento dos raios X, depois à invenção da tecnolo-
gia de TC e IRM e daí aos Humanos Visíveis. Um grupo de artistas no
Japão está justapondo explicitamente representações de Leonardo da Vinci
com representações das sombras do Humano Visível. Está implícita a idéia
de abordar a realidade via virtualidade, uma conotação que também está
evidente na frase um tanto brusca do Baltimore Sun (29 de novembro de
1995) referindo-se a “corpos reais num computador”. A imagem final, que
encontrei somente uma vez em uma citação de um dos coordenadores do
projeto, é reveladora pelo seu apelo ao inanimado. Foi numa referência de
Ackerman , o diretor do projeto, à necessidade de rotular cada sítio e seg-
mento dos Humanos Visíveis, pois “neste momento, olhar para eles é como
olhar para o mapa de uma cidade sem os nomes das ruas”. Aqui as sombras
são entendidas como um terreno a ser atravessado - não um território vir-
gem , mas um mapa ainda sem utilidade porque ainda não foi rotulado.
Tomados em conjunto, eu diria que esses grupos de metáforas reve-
lam o mecanismo de um profundo essencialismo que constitui o status
cultural das sombras. As metáforas de Adão e Eva apontam para essências
de gê nero definidas pelo casal reprodutivo heterossexual - as duas sombras
poderiam ter sido definidas como irm ãs, ou mesmo, dada a diferença de

411
TT
mu

CORPO / SIGNIFICADO / CURA

suas idades , como mãe e filho. As metáforas de imortalidade definem uma


essência moral , seja concebida como um ser imaculado antes da Queda ou
um ser reabilitado na pele de um condenado renascido. A metáfora de Leo-
? nardo da Vinci esboça uma essência estética do homem ideal apoteosado -
notavelmente sem a mulher. A metáfora do mapa implica uma essência
cósmica ao assimilar o corpo a um terreno , mas especialmente um terreno
que ainda precisa ser mapeado. A postulação de essências nessas metáforas
populares é implicitamente uma estratégia de identidade, tornada mais irre-
sistível por duas características. Primeiro , postular a essência do Outro (o
não-eu, a sombra) é um ato de autodefinição de dois gumes, seja pela nega-
ção (eu como o oposto do não-eu) ou pelo desejo (o eu desejado) . Segun-
do, a força desse gume duplo é intensificada pela condição paradoxal das
I í sombras como virtualidade na realidade, sua existência aparente como “cor-
pos reais na Internet”. Mas como pode tudo isso ser assim?

111 O significado da metáfora: virtual ou real ?

ti ; JDOIS pontos metodológicos podem ajudar a avaliar as consequências da


discussão de metáforas populares que acaba de ser feita. Primeiro, a discussão
i presume que tais metáforas oferecem uma brecha interpretativa para o signi-
,! • !
ficado cultural. A análise só pode ser válida, por exemplo, se a descrição meta -
'
fó rica das primeiras sombras como “Adão e Eva” for aceita como não-trivial,
I
u!
• mais do que um tmque jornalístico para atrair atenção. Ela foi, com certeza,

bastante comum apenas o sóbrio Daily Telegraph britânico cobriu consis
tentemente o projeto sem recorrer à metáfora. Uma vez aceita, essa presunção
-
permite que as implicações das metáforas sejam desfiadas e consideradas como
dados sobre o “ imaginário cultural” que é, por sua vez, supostamente tão
m
\
importante quanto o que poderíamos chamar de “culturalmente literal”, que é
a linguagem da tecnologia e sua aplicação. Nesse contexto, o imaginário cultu -
ral é um reino de possibilidade, desejo e medo no qual participamos passiva i -
/
foi .
i
mente na medida em que ele espreita ansiosamente sob a atenção consciente107

107 Compare Ragland-Sullivan ( 1986, p. 138- 162) sobre a noção de imaginá rio de Lacan.

I 412
Sombras da Representação e Ser na Realidade Virtual

e no qual participamos ativamente pelo exercício da imaginação, a “capaci -


dade de articular o que costumava estar separado [...] que permite que se
faça um novo movimento ou que se mude as regras do jogo” (Lyotard ,
1984, p. 52). Ao olhar o texto do ponto de vista culturalmente literal,
poder-se-ia argumentar que a met áfora é apenas uma analogia colorida para
ajudar a esclarecer uma relação ou função objetiva - a metáfora é discursiva-
/
mente subordinada à função. Considerar a metáfora como uma abertura
para o imagin ário cultural garante-lhe um papel muito mais importante,
no qual o imagin ário cultural tem um status equivalente ao do - de fato
está em relação dialética com o - culturalmente literal.103 Da perspectiva do
copo meio cheio esta é uma dialé tica na qual eles constituem mutuamente
um ao outro j Da perspectiva do copo meio vazio é uma dialética na qual
des desestabilizam mutuamente um ao outro. No mínimo, poder-se-ia dizer
que o imaginário cultural fornece o contexto por meio do qual as implicações
existenciais da inovação técnica podem ser examinadas, enquanto o cultural-
mente literal deixa a discussão no nível das implicações do plano de ação.
O segundo ponto é a importância de identificar as origens sociais e
desdnações dos significados culturais que são desfiados no tecido etéreo do
imaginário cultural. No caso dos cadáveres computadorizados, o processo
de fazer sentido que acompanha o desenvolvimento tecnológico vem prin-
cipalmente dos coordenadores do Projeto Humano Visível, dos grupos
que desenvolvem os aplicativos do projeto e dos meios de comunicação
que disseminam informação sobre o projeto. Outra fonte ainda é o meta-
discurso de analistas culturais - nós precisamos incluir reflexivamente, por
exemplo, a oferta metafó rica de “sombras” para definir os cad áveres compu-
tadorizados. Os membros de cada grupo participam tanto passiva como

10!
Pode-se fazer uma observação semelhante a respeito da adição de cor vívida às imagens
anatômicas geradas com os dados do Humano Visível . No nível de literalidade, aqueles que
produzem as imagens dizem que estão usando cores para fins de contraste, de modo que os
diferentes órgãos e tecidos possam ser vistos mais facilmente. Mas acontece também que no
n ível do imaginário , para quem vê as imagens, essa coloração produz um tipo de alceridade,
fazendo a imagem parecer real e do outro mundo ao mesmo tempo, com um tipo de
dramatização análoga h das cores em uma revista de quadrinhos, e talvez acrescentando una
sentido heróico ao espetáculo de tudo isso.

413
CORTO / SIGNIFICADO / CURA

ativamente no imagin á rio cultural , mas cada qual tem um interesse social-
mente posicionado na rela ção entre o imaginá rio cultural c a literalidade
cultural. O apelo ao literal através do uso da linguagem técnica c do plano
de ação é mais ou menos pronunciado dependendo de se ele está sendo feito
por coordenadores do projeto, cuja audiê ncia são fontes de financiamento
governamental, usu ários potenciais de banco de dados e a m ídia; por cria-
dores de aplicativos, cuja audiência é um mercado potencial para esses apli-
cativos; pela m ídia, cuja audiência é o p ú blico em geral; e por analistas
culturais, cuja audiê ncia é a academia. Cada um está completamente assen-
tado na dialética entre o imaginá rio e o literal, e essa dialé tica é constitu ída
pela soma de seus posicionamentos sociais.
Essa compreensão da relação entre o imaginário cultural e o cultural-
mente literal continua um tanto tensa a menos que leve em consideração
aquilo que assumo como uma distin ção ortogonal entre representação e
ser-no-mundo. A an álise cultural estará sempre sujeita a suspeitas de não
estar lidando com a realidade se for lan çada inteiramente em termos de
representação ou análise de representação. As metáforas populares em torno
das sombras do Humano Visível, e as próprias imagens, são necessariamen-
te de consequência limitada se analisadas somente no nível representacional.
As metáforas são, sem d úvida, frívolas a menos que sejam interpretadas
como indicativas ou reveladoras de uma mudan ça sutil em nosso modo de
ser-no-mundo. As notáveis imagens com todas as suas possibilidades com-
binatórias não carregam mais conexão íntima das pessoas com os cad áveres
originais do que uma fotografia rasgada em pedaços e colada novamente, a
menos que eles façam o mesmo. Minha tentativa ao introduzir a noção de
“sombra” é forçar-nos a pensar além da representação e em direção ao ser.
Porém, quando se lida com uma noção tão geral de ser, é importante
pensar globalmente para evitar essencializar uma particularidade cultural. As-
sim a disposi ção dos corpos reais pode não parecer mais radical para um nor-
-
te americano do que a de um cadáver m édico ou um defunto cremado.
Considere a integridade do ser exigida em uma sociedade budista como o
Japão, onde a pessoa não pode ocupar seu lugar entre os antepassados ou
esperar uma reencarnação mais alta se for para o tú mulo sem um pedaço do
corpo. Desse ponto de vista, alguém reagiria com complacê ncia em relação à
implica ção moral de criar sombras? À parte a cremação final, qual poderia ser

414
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

o status cosmol ógico dc um humano que foi moído até virar pó? Do outro
lado do espelho existencial, uma vez transformado em sombra, qual pode ser
o status de algu é m que pode ser dividido cm pedaços repetidamente? Em um
-
n ível é tico mais mundanamente norte americano, o que dizer do anonimato
e da privacidade? Um cad áver convencional usado cm aulas dc anatomia é
an ó nimo e não tem identidade. Uma sombra não é an ó nima, pois mesmo a
mulher de Maryland pode ser reconhecida por alguém de suas relações que
viu sua face reconstitu ída. Ackerman , o diretor do projeto, disse que “temos
esperança de que, se ela é reconhecível, que as pessoas respeitem seu anonima-
to. Não há nada que possamos fazer que não comprometa os dados” [ Balti -
more Sun, 29 de novembro de 1995). Al é m do mais, uma sombra retém a
idenddade, pois mesmo Jernigan , pelo menos em certo sentido, continua
sendo quem ele era, vindo ou não a ser chamado de “Adão” em vez de Joseph.
Em suma, o argumento sobre a existê ncia das sombras continuaria um
tanto forçado se não estivesse claro que a primeira preocupação é a nossa
pró pria existência em relação a elas, ou, em outras palavras, como a inova-
ção tecnológica induz uma modulação sutil em nossa pró pria corporeidade
e daí em nosso pró prio ser-no-mundo culturalmente situado. A subjetivi-
dade e a intersubjetividade são fenô menos corpó reos, e assim a questão se
torna a transformação potencial da subjetividade da parte daqueles que usam
a tecnologia, e especialmente no que se refere aos médicos, na relação inter-
subjetiva formada com aqueles seres corpó reos que são seus pacientes. A luz
desse esclarecimento, consideremos rapidamente os dois locais de impacto
mais imediato, que são as aulas de anatomia para estudantes de medicina e
as cirurgias com ajuda do computador.

"Ele nos empodera"

Na quarta conferê ncia anual sobre Medicina e Realidade Virtual em


janeiro de 1996, Michael Ackerman e Victor Spitzer, diretor do projeto na
BNM e diretor do grupo contratado do CCSUC, receberam o pré mio
Satava, assim chamado em homenagem ao Coronel Richard Satava, um
pioneiro da telecirurgia em RV. Helene Hoffman, diretora do programa de
anatomia com uso de dados do Humano Vis ível na escola de medicina do

415
! I ;! . CORTO / SIGNIFICADO / CURA

Illil DCUC, observou que "este conjunto de dados tornou-sc o novo padrão
para o ensino de fisiologia humana. Por exemplo, entre 30 e 40 por cento
dos trabalhos apresentados na conferência deste ano dependeram desse con-
Ui ! : junto de dados”. Várias escolas de medicina estão desenvolvendo currículos
de anatomia baseados nos dados do Humano Visível.109 O principal debate
é sc esses m étodos devem ser usados para complementar ou substituir a
li ! dissecação convencional no ensino de anatomia. Os tradicionalistas resis-
tem à ideia de estudantes de medicina não terem a experiência de trabalhar
manipulando corpos verdadeiros, o que é implicitamente sacrossanto como
um rito de passagem no treinamento médico. Os inovadores observam que
a provisão de cadáveres reais está cada vez mais limitada em comparação
com as sombras infinitamente reutilizáveis e que, em todo caso, a maioria
dos m édicos, com exceção dos cirurgiões, nunca terão a chance de trabalhar
nas partes internas de seus pacientes.
It i As consequências potenciais em relação à corporeidade tanto para es-
tudantes de medicina como para seus futuros pacientes devem ser compre-
:
i
endidas em relação às já profundas transformações fenomenológicas operadas
no treinamento convencional. Em seu estudo etnográfico de estudantes de
medicina, o antropólogo Byron Good (1994, p. 71) observou que as di -
i

I1I mensões do mundo da experiência construído no treinamento deles era


“mais profundamente diferente do meu mundo cotidiano do que pratica -
mente qualquer um dos que experimentei em outras pesquisas de campo”.
Ao lembrar do mapa sem nome de ruas que mencionei acima, os alunos
- 1
!
que aprendem anatomia são “como geógrafos movendo da topografia dura
para o detalhe da microecologia” (Good, 1994, p. 72). Good fala muitas
í;
í
m , 09 Entreelas estão a Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em San Diego, Escola
Stritch de Medicina da Universidade Loyola , Johns Hopkins em colaboração com a
Universidade Nacional de Cingapura, SUNY Stony Brook, Centro Médico da Universidade
da Pensilvânia , Escola de Medicina da Universidade de Washington , Universidade de
Inia
i Chicago em colaboração com o Laboratório Nacional Argonne, e Escola de Medicina da
Universidade de Columbia em colaboração com o Instituto de Tecnologia Stephens. Fora
Ij ’ dos Estados Unidos, há projetos em andamento na Escola de Medicina da Universidade
de Hamburgo, Escola de Medicina da Universidade Keio em Tóquio , Universidade

I Nacional Australiana e Universidade de Tecnologia de Queensland .

i
416
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

vezes da intimidade com que os estudantes de medicina vê m a conhecer o


corpo, e descreve o laborató rio de anatomia como um tipo de espaço ritual
no qual ocorre a reconstituição da experiência. As superfícies habituais do
corpo que definem a pessoalidade são retiradas, revelando um “interior”
que consiste n ão da vida emocional interior de uma pessoa, mas de um
espaço tridimensional complexo com camadas de tecido que são separadas
para distinguir as divisas de formas grossas e estruturas finas. Como disse
um estudante, “emocionalmente uma perna tem um significado tão dife-
rente depois que você tira a pele fora” (1994, p. 72). A nova maneira de ver
sob a superfície que é central para o olhar m édico pode geralmente ser liga-
da e desligada, mas também se esparge na percepção cotidiana que o estu-
dante tem de outras pessoas, na medida em que elas são constituídas e
reconstitu ídas - traduzidas e retraduzidas - entre as linguagens perceptivas
da medicina e da vida cotidiana. Good observa que este treinamento é pro-
fimdamente visual, e a profundidade da transformação fenomenológica só
pode ser intensificada pelos novos currículos de anatomia baseados em rea-
lidade virtual. A penetração em níveis cada vez mais diminutos da hierar-
quia biológica (epidemiológico-clínico-histológico-celular-molecular/
gené tico) será complementada por uma penetração baseada em transparên-
cias, o sentido de “visão de raio X”.
Uma visão preliminar da mudan ça potencial vem da reflexão de um
estudante de medicina que assistiu à apresentação do Humano Visível Fe-
minino em 1995. Ao referir-se ao Humano Visível como um ótimo exem-
plo dc computação de alto desempenho aplicada à ciência biomédica, ele
escreve: “ Ele nos empodera. Nós estudantes sabemos que há um mundo de
informação ali a um toque de nossos dedos” (Roberts, 1996). Ele estava
impressionado pelo fato de as seções do cé rebro n ão caírem aos pedaços
como às vezes acontece na dissecação de um cadáver real, de se poder isolar
as seções do corpo em vez de “ lidar com toda aquela coisa pavorosa”, de o
sistema circulatório parecer um verdadeiro circuito tridimensional em vez
de achatado como em um livro de texto, de o banco de dados poder ser
reformatado para mudar as características do corpo, de se poder girar, disse-
car e eviscerar as imagens, e de algum dia ele poder acessar aquelas imagens
em seu consultó rio para ajudar os pacientes a compreender as enfermidades
c os procedimentos.

417
,5!

< 11
I
á
ill
' CORPO/ SIGNIFICADO / CURA

' I
Surgem muitas questões sobre quais seriam as ú ltimas consequências
'
íí experienciais da aplicação dessa tecnologia. Quais serão as consequ ê ncias dc
!j
! isolar panes do corpo para o trabalho intensivo e detalhado ? Isso intensifi-
'i !
íí
: cará o sentido de intimidade observado por Good ou iniciará um sentido
mais fragmentado e objetificado do corpo? Quais serão as consequências da
dissecação digital excessivamente limpa e confortavelmente reversível cm
|Í! comparação com a dissecação verdadeira, de uma maneira tão parecida com
i ' o processamento de texto que permite deletar e substituir as palavras em
comparação com escrever e datilografar? Isso introduzirá um sentido de
' ! arbitrariedade do processo biológico, ou intensificará a compreensão do
detalhe meticuloso? Finalmente, qual será a consequência do empodera-
í mento ao qual o estudante de medicina faz alusão ? Será ela o poder de
i
humanizar a intimidade e a compaixão, ou o de apoteosar a onipotência e a
objetificação de seres iguais a nós? Será que isso refinará as sensibilidades dos
médicos como uma flor que desabrocha para revelar seus recessos mais ínfi-
mos sem ter de ser aberta em fatias ou feita em pedaços pétala por pé tala?
li
"De sangue e tripas a bits e bytes"

Al ém de treinar estudantes de medicina, as sombras participarão cada


vez mais do desenvolvimento do treinamento cir ú rgico e daquilo que se
i chama de “cirurgia por telepresença”. O título desta seção é uma das frases
i
ÍÍ ! favoritas do Coronel Richard Satava, médico e uma das figuras de proa
nesta área, ao referir-se à grande mudança de paradigma na qual o sangue e
; as tripas da cirurgia convencional são substituídos pelos bits e bytes que
facilitarão o trabalho de uma nova geração de “médicos digitais” e “cirurgi-
ões Nintendo”. Já existem simulações cir úrgicas de realidade virtual para
próstata, olho, perna e procedimentos de colicistectomia. A cirurgia por
telepresen ça permite que o m édico ou a médica se projete via monitores de
vídeo e de á udio para locais remotos, com instrumentos controlados por
computador manipulados no local remoto com m ãos robó ticas capazes de

fornecer um feedback força que dá ao cirurgião ou cirurgiões colaboran-
do em rede de diferentes lugares geográficos - uma sensação de imediatida -
de tá til.
Is
'

; !j )
rí 418
. !i í
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

Satava (1992, p. 360-361) faz uma distin ção entre realidade virtual
artificial c natural, sendo a primeira completamcnte sintética e imaginária,
como na simulação de se estar dentro de uma molécula, e a última uma
situação que poderia existir fisicamente, como em cirurgia ou uma recria -
ção realista de um corpo humano. Tanto a simulação cir ú rgica como a ci -
rurgia por telepresen ça sã o formas de realidade virtual natural, embora
obviamente apenas a ú ltima seja realizada em pacientes reais. Ainda assim,
Satava (1992, p. 363) diz que “pode chegar o dia em que não será mais
possível determinar se uma operaçã o está sendo feita em um paciente real
ou gerada por computador [...] o limite foi ultrapassado; e um novo mun -
do está se formando, meio real e meio virtual”. Ele e seus colegas estão
trabalhando justamente em um tal sistema, no qual o operador pode voar
em torno dos ó rgãos e viajar através do sistema digestivo, e o uso de dados
de sombra está permitindo que eles movam de uma apresentação visual
tipo cartum para uma cada vez mais semelhante à vida real. Da mesma
forma, a sobreposição e intensificação de dados vivos de TC/ IRM com
dados sombra promete aumentar a vividez da cirurgia por telepresen ça, en -
quanto a imediatidade da imagem eletró nica e da manipulação remota vem
“dissolver tempo e espaço”.
(O desenvolvimento da cirurgia por telepresença com intensificação da
sombra tem consequências para a corporeidade em relação às habilidades
que ela exige do cirurgião - como o que Mareei Mauss (1950a) chamou de

“técnica do corpo” e em relação a suas aplicações nos corpos de pacientes.
Em relação à primeira, o campo emergente da “Tecnologia de Interface
Humana” diz que um sistema deve ter intuição sensorial - que ele “deve ser
sentido e usado o mais naturalmente possível”. Como Satava observa, a
cirurgia por telepresença tem o mesmo eixo olho-mão que a cirurgia aberta
na medida em que o cirurgião olha para um monitor, preservando assim a
correspondê ncia dos sentidos proprioceptivo e de cinestesia com o visual. A
laparoscopia contemporâ nea exige dirigir visualmente o olhar para um
monitor de vídeo, enquanto a simulação cir ú rgica exige o uso de um capa-
cete de realidade virtual de modo que o cirurgião precisa passar pelo apren-
dizado da ferramenta em vez de a ferramenta adaptar-se ao cirurgião (Sarava,
j
1994, p. 819-820 ) . Em relação ao cuidado do paciente, a nova tecnologia
permitirá comparar ó rgãos normais e anormais por substituição de ima -

419
4
> ;

Com*o / SlGNl FICADO / CUR/\


'! I !
gens, simular a biomecânica de m úsculos c articulações para fazer articula-
! ções de reposição rnais eficazes, c demonstrar os cursos de tratamento pro-
jetados para os pacientes. As aplicações militares - um dos principais
interesses do Coronel Sarava - da simulação intensificada por sombra in-
: cluiriam mapear o percurso de uma bala antes de tratar um ferimento a
bala , c as aplicações de cirurgia por tclcprcsença incluiriam “projetar meta-
foricamente um cirurgião em cada trincheira” (Satava, [s.d.], p. 12).
Pelo menos duas questões são levantadas por esses desenvolvimentos.
i; A primeira vem da consideração de que tanto a simulação cir ú rgica como a
cirurgia por telepresen ça apresentam o paradoxo de simultaneamente au-

mentar o distanciamento e intensificar a intimidade. A simulaçã o está dis-
tanciada das pessoas vivas e a telecirurgia está geograficamente distanciada;
f I ambas partilham da intimidade proporcionada pelo olhar médico tecnolo-
gicamente intensificado. Quais serão as consequ ências desse paradoxo, e
I quais os limites de acesso aos recessos internos do processo biológico? A
segunda questão surge ao considerar a análise de Drew Leder (1990, p. 53)
!
do desaparecimento típico do corpo da consciência na vida cotidiana en-
: quanto ele “não apenas se projeta adiante em experi ência, mas cai de volta
i em profundezas inexperienciáveis”. Leder argumenta que é a própria estru-
tura do corpo que leva ao seu auto-ocultamento e à noção da imaterialidade
da mente e do pensamento que é reificada como dualismo mente-corpo.
I j Estaria no horizonte da cultura tecnológica o sinal de que a realidade virtual
j! intensificada por sombra tornará o âmago dos processos corporais acessíveis
de uma nova maneira, oferecendo a possibilidade de transcender esse carte-
;
;

! sianismo da atitude natural ?


S Í ii
II Representa çã o congelada e ser- no -mundo virtual

11 Quero retornar à questão mais ampla da significação cultural das som-


bras n ão em termos da relação entre o imagin ário cultural e a prá tica cultu-
I ral, mas em termos da rela ção entre representação e ser-no-mundo. A noção
de representação tem uma virtual hegemonia sobre a an álise cultural con-
I ;
temporânea , lado a lado com a metá fora metodol ógica da textualidade a ela
; associada. Isso se estende à análise cultural do corpo, de modo que os traba-

420
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

lhos acadê micosjfcst ão repletos de frases do tipo o corpo enquanto texto,


escrever no corpo, corpos de texto, a inscrição de significado no/sobre o
corpo, representações do corpo, ler o corpo. Uma tradi çã o menos destaca-
damente articulada compreende a cultura do ponto de vista da corporeida-
de como nosso modo fundamental e culturalmentc condicional de
/
ser-no-mundo Como seres corpó reos n ós habitamos o mundo em termos
do espaço e da extensão de nossos corpos, nós nos engajamos cm movi-
mento e experimentamos resistência àquele movimento, n ós incorporamos
e exploramos o mundo por via dos nossos sentidos, n ós interagimos com
outros ou nos descobrimos em solid ão. Os modos de representação e ser-
no-mundo são intimamente entrelaçados na prá tica, por exemplo na ma-
neira em que sua relação pode ser sobreposta na relação entre sujeito e objeto:
(st o corpo é concebido como um objeto, as representações do corpo são o
sítio da subjetividade; se o corpo é concebido como sujeito, as representa-
ções são objetificações do corpoj
Eu argumentaria que compreender a interação entre o corpo como
representação e o corpo como ser-no-mundo é crucial para a análise cultural
em geral (veja Csordas, 1994 b), e, além disso, que essa interação define o
processo cultural que está criticamente em jogo na análise cultural das som-
bras criadas pelo Projeto Humano Visível. Do ponto de vista de Jernigan e
da dona de casa de Maryland, são as suas sombras nada mais do que versões
de hipertexto de uma representação fotográfica, n ão mais conectadas a suas
essências particulares do que uma foto que poderia ser rasgada em pedaços e
depois remontada com cola e fita adesiva? Ou existe algo da transformação
de quantidade em qualidade no grau de especificidade com a qual seus seres
f ísicos foram digitalizados, alguma maneira na qual eles tenham passado
“através do espelho” ?
É possível debater até à exaustão se mesmo uma simples fotografia
capta algo essencial sobre uma pessoa (e os antropólogos sabem que em
algumas sociedades considera-se que isso acontece literalmente), ou é me-
lhor entendida como uma simulação momentâ nea e arbitrá ria que pode ser
repetida sem limite até a degradação ú ltima do significado, semelhante ao
que poderia acontecer ao significado da palavra “ovo” se ela fosse repetida
cem vezes. Todavia, a pró pria questão do ser-no- mundo das sombras é aca-
d ê mica na medida em que, pondo de lado a ferramenta da ficção cient ífica,

421
'

!í i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

a subjetividade pessoal para elas está fora de questão. O que vem muito
mais ao caso é a subjetividade do resto de n ós - estudantes de medicina
especializados e cirurgi ões, sem d ú vida , mas també m as próximas gerações.
Na verdade, Spitzer, do CCSUC disse: “Acho que no futuro as crianças vão
crescer com ele” (certamente um avan ço em relação ao Barney). O mais
importante é que, enquanto pela mesma razão está fora de questã o definir
intersubjetividade entre sombras e usu ários, surge com mais força a questão
de como, dada a premissa de que a intersubjetividade também é baseada em
nosso ser corpó reo, ela pode ficar transformada, intensificada ou distorcida
pela existência e aplicação desombras. Como hão de ser as relações interpes-
soais quando eu puder casualmente visualizar o seu esqueleto enquanto con -
versamos, e você puder tatear as voltas do caminho dentro do meu cérebro?
Finalmente, se as inovações tecnológicas em realidade virtual, das quais
as sombras são apenas um exemplo, estão de fato apontando para uma
I! I modulação da corporeidade, isso só pode ocorrer por causa da condição
histórica na qual a cultura existe agora. Daniel Boorstin escreveu em 1961
.
! que o mundo contemporâneo já é um mundo “onde a fantasia é mais real
1
do que a realidade, onde a imagem tem mais dignidade do que o seu origi -
nal. Nós dificilmente ousamos enfrentar o nosso espanto, porque o conso-
'r : | lo de crer na realidade dissimulada é tão completamente real” (apud Kearney,
1988, p. 252). Isso quer dizer que o que estamos descrevendo não é um
determinismo tecnológico da corporeidade, mas um modo altamente espe -
' ! cífico de incorporar um desenvolvimento tecnológico na condição pós-
:! IBH moderna da cultura. Compreender esse processo exigirá uma fenomenologia
cultural que possa capturar a essência do particular numa corporeidade cons -
tituída no espaço existencial entre o virtual e o real, entre o imagin á rio
i I cultural e o culturalmente literal, entre distanciamento e intimidade e entre
-
representação e ser no-mundo.

Ep ílogo 2001

! : Desde que a primeira versão deste capítulo foi preparada em 1996/7,


surgiram vá rios estudos do projeto Humano Visível (Cartwright, 1998,
[s.dj; Curtis, 1999; Kember, 1998, Van Dijk, n.d.; Waldby, 1997a, 1997 b,

Mil 422
J
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

1999). Cada um deles dá uma contribuição importante usando o projeto


como sintom á tico de questões nos estudos culturais de ciê ncia e de teoria
feminista. Nessa encruzilhada, em vez de resumir ou analisar esses traba-
lhos, quero atualizar a discussão anterior apresentando algum material adi-
cional que coloca em evidência as implicações biopol íticas - e religiosas -
do humano vis ível que encontrou um lugar no ciberespaço e na pesquisa
tecnocient ífica. Do final de 1996 até o final do ano 2000 o n ú mero de
licenças de acesso aos dados do Humano Visível armazenados em um site
FTP do governo duplicou, de cerca de 700 pra 1419. Minha discussão
enfoca um projeto que faz uso desses dados e cujas implicações são real-
mente notáveis. Ele tem a ver com biopolítica tanto no sentido da compe-
tição institucional por recursos para pesquisa biotecnológica como no sentido
foucaultiano da criação de conhecimento que institui controle sobre corpos
individuais e populações.
Em janeiro de 2000, eu assisti à conferência anual Medicina Encontra
Realidade Virtual, a fim de ter uma idéia do perfil do trabalho do Humano
Visível entre as pessoas nessa área e de quais outros tipos de tecnologias
potencialmente autotransformadoras estavam sendo desenvolvidos. O gru-
po que decidi acompanhar tem como meta o desenvolvimento de o que
eles chamam de Projeto Humano Virtual, destinado a ser um salto quânti-
co para além do Humano Visível no que diz respeito à capacidade de simu-
lação. O grupo é dirigido por várias pessoas dos Laborat ó rios Nacionais de
Oak Ridge, e inclui preeminentemente o líder do grupo da Universidade
do Colorado que, de fato, converteu os Humanos Visíveis de cadáveres
reais em conjuntos de dados, e o pioneiro da telecirugia Richard Satava, ex-
oficial do Exé rcito dos EUA e atualmente da Escola de Medicina de Yale. É
a í que a forma institucional de biopol ítica está em evidência na forma de
competição entre agências e de cooperação interna no mundo da pesquisa
governamental que envolve altos interesses e atrai tanto a universidade como
o setor privado. Michael Ackerman , diretor de projeto da BNM para o
Humano Visível , estava conspicuamente ausente da sessão da conferência.
Em minha entrevista com ele, Ackerman disse que no seu entender os pes-
quisadores de Oak Ridge estavam sendo oportunistas e tentando garantir
suas posições diante de uma situação indefinida na qual uma troca de guar-
da na á rea dos contratos do governo estava em andamento nos laborató rios

423
if ív
!i ! •
CORPO / SIGNIFICADO / CURA

m nacionais. Ele também foi enf á tico ao afirmar que a longo prazo um projeto
de tal envergadura deveria ser conduzido sob a égide dos Institutos Nacionais
I de Sa ú de. Há uma história nisso que precisa ser acompanhada em trabalho
futuro sobre essa iniciativa.
Ê- A meta da iniciativa do Humano Virtual é realmente monumental, e
eu cito material do projeto:

O Humano Virtual integrará dados, modelos biofísicos (e outros) c al-


goriuiíos computacionais avan çados em um ambiente de pesquisa usa-
I, ; do para invesdgar respostas humanas a estímulos. Esse esforço irá muito
!í alem da visualização da anatomia produzida pelo Projeto Humano Visí-
; vel para incorporar a física ( propriedades mecânicas e elétricas do tecido,
por exemplo) c a biologia ( da informação fisiológica â bioquímica) em
'
uma plataforma , de modo que as respostas a variados estímulos (biológi-
cos, químicos, físicos e - é de se esperar - psicológicos) possam ser pre
!
:
!I vistas e os resultados vistos [em três dimensões].
-

*
<
Esse trabalho deverá exigir análise simultânea de centenas de milhares
1
de variáveis medidas e a colaboração multidisciplinar de milhares de pesqui-
sadores. A palavra-chave para os meus propósitos nesse trecho é “respostas ’,
que ocorre duas vezes. Os protótipos incluem simulações que podem, por
exemplo , prever os resultados de um trauma violento - essas imagens, aqui
i !!! congeladas, são animadas na apresentação por computador. Aplicações? Bem,
os Fuzileiros Navais querem simular a resposta de um corpo a balas de
borracha e outras armas cinéticas usadas para controlar civis desobedientes;
1

:l
:
o Exército quer ser capaz de saber se o pulm ão de um soldado colapsou
como resultado de um ferimento por perfuração , implicações? Acho que
I podemos conceber a possibilidade muito real de uma simulação ser fmal -
mente tão sofisticada , incluindo a dimensão psicol ógica , que ela responde
como uma forma de vida - e eu uso a palavra “como” intencionalmente
para explorar sua ambiguidade, pois “como” pode ser entendido Jireralmen -
te e também no sentido de “como se” ou “semelhante a” uma forma de
vida. Para ser especí fico, esse desenvolvimento antecipa a criação de uma

IV
il
figura de conhecimento inteiramente nova nas ciências da vida: atualmente
-
a pesquisa biol ógica pode ser conduzida in vivo ou in vitro a partir desse
ponto, ela poderá também ser capaz de ser conduzida in virtuo.
1

íI
424

Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

Tem mais, no entanto. Eu cito novamente o material de Oak Ridge:

A beleza de um modelo computadorizado dc um humano é que ele


pode ser personalizado para um indivíduo espec ífico a qualquer mo-
mento [ . . . ]. Usando equações c mudando alguns parâmetros, podemos
tornar o coração maior ou menor. Podemos fazer o modelo humano ou
espectro envelhecer. O uso de um modelo seu personalizado - um clone
computadorizado dc você que inclua seu perfil gen é tico - tornará possí-
vel predizer como você responderia a diferentes doses de radiação, quí-
micos e drogas, ou que danos você sofreria se estivesse em um acidente
de automóvel ou de avião [. . .]. Olhando em frente, daqui a cinco ou dez
anos, [vemos] “um modelo humano em um chip” [...] [afinal de con-
tas,] quanto mais você sabe sobre o seu corpo [. ..] mais você pode con-
trolar o seu bem-estar.

Existe aqui uma questão de quem vai, de fato, “controlar” esse conhe-
cimento, e quem terá a capacidade de controlar - o paciente individual,
organizações de defesa do paciente, médicos, companhias de seguro, o go-
verno. Permitam-me, no entanto, que eu aborde essa questão a partir do
argumento que comecei a desenvolver neste capítulo.
Os termos que introduzi para tipos de seres no ciberespaço podem ser
ú teis para compreender a transformação que está ocorrendo entre o Huma-
no Visível e o Humano Virtual. Chamei o primeiro de “sombra” no senti-
do de ser ele o resto digital reconstituído de uma pessoa específica. Os
espectros virtuais agora em fase de prototipagem são o que chamei de simu-
lóides, no sentido de serem representações gené ricas construídas sobre a
plataforma anatô mica do Humano Visível, mas elaboradas de tal forma
que são um compósito altamente difuso e distribu ído de bancos de dados e
recursos computacionais. Os projetados chips personalizados de computa-
dor serão avatares no sentido de serem substitutos para pessoas reais e vivas.
Uma pista da ambiguidade cultural e ontológica dessas entidades pode ser
encontrada na aparê ncia in tandem dos termos “modelo” e ‘' dontjlJm
modelo é um tipo de representação, comportando uma relação abstrata e
neutra com aquilo de que é modelo. Um clone implica um certo tipo de
ser- no- mundo, que não é abstrato, mas concretamente paralelo ao ser do
|
qual ele foi clonado

425
[
J f
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
1
I'

; j jiKJ

!;
I

Figura 10.6 Modelo dc elemento finito de um bloco de madeira movendo-se a uma


veloddade constante de 1m/s impactando um modelo de elemento finito do torso humano
! c deformando o torso. O impacto dura 0,0001 segundo. Esta é uma simulação qualitativa
para testar os modelos deelemento finito e o sofavare dc simulação. Neste estágio da pesquisa,
as constantes elásticas do tecido utilizadas eram apenas aproximadamente relacionadas à
verdadeira elasticidade do tecido.
Fonte: imagem c legenda reproduzidas com permissão da pesquisa patrocinada pelo Programa dc
III! Pesquisa c Desenvolvimento Dirigidos de Laboratório, do Laboratório Nacional de Oak Ridgc
(LNOR), administrado pelo UT-Batellc, LLC para o Departamento de Energia dos EUA, sob o
-
Contrato N° DE-AC05 00OR22725.
:
i

j
i!
!
iji

i
Figura 10.7 Os feixes são representações qualitativas dc feixes de radioterapia vindo de
' diferentes direções e focando em um ponto no torso humano que representa um tumor. A
ii imagem demonstra a capacidade de mostrar o corpo humano em três dimensões com os
feixes de radioterapia. O sofhvarepermite que o corpo seja girado em três dimensões para
j fácil avaliação do cen ário de tratamento.
Fonte: imagem e legenda reproduzidas com permissão da pesquisa patrocinada pelo Programa dc
Pesquisa c Desenvolvimento Dirigidos dc Laboratório, do Laborató rio Nacional de Oak Ridgc
ã (LNOR), administrado pelo UT-Batcllc, LLC para o Departamento dc Energia dos EUA, sob o
Contrato N° DE-AC05-00OR22725.

|:

1 426

i
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

Antes de concluir com minha reflexão sobre representação e ser-no-


mundo, permitam- me estender a compara ção entre o Humano Visível e o
Humano Virtual cm termos foucaultianos. O Humano Visível levanta
questões sobre o que Foucault chamaria de anatomopol ítica do corpo, mas
no sentido bem específico da utilização da anatomia como um discurso
sobre a vida. Os problemas bioéticos convencionados em discussão nesse
n ível são os dos direitos ao anonimato como tema médico daqueles que se
tornam cad áveres virtuais, e os problemas pedagógicos sobre o valor das
simulações no ensino de anatomia e treinamento cirúrgico. O Humano
Virtual cruza o limiar para uma outra preocupação de Foucault, a da biopo-
lítica de populações. O filósofo Giorgio Agamben (1998, p. 6) colocou a
^

seguinte questão a respeito de uma certa ambiguidade em Foucault: “[...]


onde, no corpo de poder, está a zona de indistinção (ou, pelo menos, o
ponto de interseção) no qual as técnicas de individualização [características
da anatomopolítica] e os procedimentos totalizantes [característicos da bio-
política] convergem ?”. Se isso pode ser entendido como uma questão etno-
gráfica, então uma resposta possível é “aqui mesmo”. O modelo humano
personalizado ou clone em um chip é um ponto final de individualização
biotécnica, e o fato de tal chip poder ser gerado para todos é um ponto final
de totalização através de uma iniciativa governamental/ privada/acadêmica,
cujo poder é difuso, pois, como em qualquer grande ciência, ele é altamente
distributivo e colaborativo. A questão aberta para reflexão aqui é se esse
momento de interseção indica a possibilidade de uma nova forma de exis-
tência humana, ou pelo menos uma nova forma de compreender a vida
humana, ou se ele é explicitamente uma forma potencial de vigilância que
penetra o pró prio cerne do sujeito. Nos termos que apresentei acima, a
resposta pode ter a ver com a questão de se a nossa participação no imaginá-
rio cultural é de modo ativo ou passivo.

^ Essas considerações levam diretamente à etnografia da imaginação, e


de volta à religião. Meu pensamento sobre representação e ser- no-mundo
foi desenvolvido nos meus estudos etnográficos em andamento da imagi-
nação religiosa. Para mim , a etnografia da imaginação prototípica foi con-
duzida pelo poeta e escultor inglês William Blake, enquanto ele viajava
imaginativamente entre os fogos do inferno, inventando a etnografia de
falar enquanto “ ... colecionava alguns de seus Prové rbios; pensando que,

427
' •
; <i í \
f
r1
i
i
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
, j
1

! assim como os ditados usados cm uma nação marcam o seu cará ter, os
Provérbios do Inferno também demonstram a natureza da sabedoria infer-
í; nal melhor do que qualquer descrição de edifícios ou roupas” ( Erdman,
1988, p. 35). Tentei seguir as pegadas de Blake no meu trabalho com os
carism á ticos católicos sobre cura religiosa, linguagem religiosa em desem-
i penho c religião no contexto da globalização. Ao me tornar interessado na
! questão da tecnologia, tomei-me também consciente de que estou mais
uma vez, ou ainda, muito enfaticamente na zona da imaginação. Em outras
palavras, se por um lado eu encontrei, como esperava, um campo de estudo
. com seus próprios imperativos, agendas e problem áticas, por outro lado eu
vejo que as questões não são tão afastadas de uma preocupação com a reli-
/
1
gião e a imaginação religiosa como eu tinha esperado
Blake, além de basear sua compreensão da imaginação na experiência
corporal, reconheceu que imaginação e religião são uma só e que, quando
: -
elas são separadas, a imaginação se reduz à mera fantasia e a religião torna se
i
-
uma reivindicação da verdade absoluta. Ambas tornam se, por isso, nega-
: ções da vida e energia humanas, relegando seu poder criativo ao reino do
I! mistério. Se formos entender isso, nosso trabalho precisa ser mais amplo do
que uma invocação da liminaridade e mais específico do que uma definição
do imaginário como um espaço analítico ou uma zona de análise cultural,
-
um processo psicológico ou uma modalidade de ser no-mundo. Em vez
disso, precisamos identificar imaginários, no plural, como zonas etnografi -
camente especificáveis de criatividade humana, possibilidade, fantasia, dese -
i jo, horror, alteridade, santidade -, mas também de planejamento, pesquisa
II T
Í
.
e desenvolvimento, desenho-de-produto. Uma compreensão do imaginá -
rio deve ser pluralizada no sentido de identificar portais culturais para a
imaginação. Por exemplo, cada grupo de apoiadores do Projeto Humano
Visível que discuti neste capítulo tem sua própria posição ou seu pró prio
modo socialmente circunscrito de acesso ao imagin ário cultural. O grande
p ú blico exposto às imagens da m ídia habita um imagin á rio de espetáculo
L
* em relação aos cad áveres computadorizados, reminiscente da exposição do
corpo na execução e no esquartejamento p ú blico, ou no circo de horrores.
Estudantes de medicina e cirurgiões treinando para fazer telecirurgia habi
tam um imagin ário de iniciação, no qual são inculcados com disposições
-
para a anatomia e incorporam novas técnicas do corpo. Os .criadores do
. i;
,
428

i
iLi:
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual

Humano Virtual habitam um imagin á rio dc criação, aspirando à produção


de novas formas dc conhecimento sobre vida c resposta.
Na medida em que se voltar para a questão da tecnologia n ão é, de
forma alguma, dar as costas ao estudo da religi ão, isso deve també m ser
entendido no sentido da observaçã o de Martin Heidegger em seu ensaio
sobre tecnologia, de que n ós geralmente presumimos ter a tecnologia “espi-
ritualmente sob controle”. Heidegger quer que estejamos conscientes de
que o tipo de revelação da realidade e do ser que alcan çamos através da
tecnologia n ão é o tipo que é baseado numa poesis que traz à frente algo,
mas é baseado em um enquadramento que, na sua expressão um tanto
curiosa (pelo menos em tradu ção) desafia à frente. Esse enquadramento
transforma coisas e objetos em um tipo de reserva permanente para aplica-
ção técnica. Heidegger (1977 b) diz que “o vir à presen ça da tecnologia ame-
aça revelar a possibilidade de que tudo se apresente apenas na qualidade
indissimulável de reserva permanente”. Ele provavelmente estaria preocu-
pado pelo Projeto Genoma Humano pressagiar que a expressão “ banco de
genes” corre o risco de ser transformada em algo análogo a “ banco de moto-

res” não uma reserva permanente de carros e caminhões, mas de DNA.
Ele provavelmente estaria preocupado porque o que o Projeto Humano
Virtual oferece espiritualmente é a criação de uma reserva permanente n ão de
DNA, mas de reatividade humana. O que podemos perguntar é se a distinção
de Heidegger entre poesis e enquadramento condena nosso engajamento com
a tecnologia ao modo passivo do imaginário - podemos perguntar, na medi-
da em que a tecnologia revela não apenas a vida nua, mas também a existência
primeira, se ela pode ser objeto de poesis e do imaginário advo. E devemos
pedir a nós mesmos uma vigilância crítica em relação às consequências.
Em outro sentido, o trabalho de Agamben nos lembra que o Huma-
no Visível masculino original, Richard Jernigan , preenche o critério do sig-

nificado original de homo sacer que é o “ homem sagrado” no direito romano
arcaico. É o homem condenado por um crime, que pode ser morto com
impunidade por qualquer pessoa e ainda assim n ão pode ser sacrificado.
Resolver o paradoxo nessa asserção é um objetivo central do trabalho de
Agamben , mas ele també m fala de algo particularmente fantástico sobre
um mito original para a raça das sombras, cujo progenitor é esse tipo de
homem sagrado. E se fôssemos seguir essa linha de pensamento, teríamos

429

i
illí ! 1
i
I CORPO / SIGNIFICADO / CURA
! f I
,
: de perguntar se, dc fato, o que aconteceu é que ele foi morto ( n ã o pela
impunidade, mas pelo poder soberano do estado do Texas) c n ão sacrifica-
do. Mas a imolação de um corpo legado à ciência cortando-o cm fatias 6
um sacrifício? O ato de sacrifício é aquele conduzido por um clero tecnoci-
entífico, ou aquele alcan çado no ofertó rio dc si mesmo pelo homem con -
denado ? A inten çã o do homem condenado foi de sacrifício ou de
, auto-santificação? Aqui minhas observações terminam nas raízes religiosas

!! I emaranhadas de nossa civilização, raízes constituídas, em parte, por ques-


tões sobre a natureza da vida e o problema da morte. Isso é o que vemos nas
imagens de Ad ão e Eva no imaginário cultural armado pela imprensa popu-
lar, a consciência transformada do corpo e da percepção de vida e morte na
transformação da consciência experimentada por estudantes de medicina e
praticantes de telecirurgia, a criação de vida in virtuo na simulação biopolí-
tica de resposta pelos defensores do Humano Virtual, e a questão implícita
da santidade e inviolabilidade da vida em todas elas.

i i

II

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!

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Em diversas á reas de estudos, da sa ú de à religião, da etnologia à
psican á lise, a contribuiçã o de Thomas Csordas se mostra hoje co-
mo um fato inconteste. Herdeiro da longa tradi ção norte-ameri-
cana da antropologia psicol ógica, Csordas se destaca pela aborda-
gem fenomenológica e pela sistematização do paradigma da cor-
poreidade. Desde esse ponto de partida, ele se apresenta como um
interlocutor privilegiado e complementar da antropologia simbó-
lica e interpretativa. A sua busca incessante por responder a ques-
tão sobre “como nos tornamos humanos” leva-o a ultrapassar o
â mbito do significado, estabelecendo como horizonte de compre-
ensão a experiê ncia fundamental dos seres humanos que se per-
cebem como “corpos no mundo” , entre outros corpos e objetos.
Corpo/Significado/Cura é o livro-síntese de sua proposição, daí sua
importâ ncia como o primeiro livro do autor traduzido para o por-
tugu ês brasileiro.

&
UFROS
EDITORA

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