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Sumário
Apresenta çã o
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Introduçã o
— 15
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Apresenta çã o
* Carlos Alberto Steil é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e fez seu pós-
doutorado na Universidade da Califórnia, San Diego, sob a supervisão de Thomas Csordas.
** Luis Felipe Rosado Murillo é estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e realizou intercâmbio
na Universidade da Califó rnia , San Diego, no Projeto Capes/ Fipse, coordenado na época
por Thomas Csordas e Carlos Alberto Steil .
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
m
I; c reconhecimento, o que o torna um interlocutor central no di á logo Brasil-
Estados Unidos na á rea da antropologia.
Csordas pertence a uma tradi ção de pesquisa que o situa no â mbito da
I
antropologia psicológica, onde se destaca por su íyfabordagem fcnoincnoló-
F \ ^
gica especialmente pela proposta de uma antropologia da corporcidadc*
cinbodimcni) , apresentada como um paradigma complementar à antropo-
logia simbólica e interpretativa. Atualmente é professor na Universidade da
Califórnia, San Diego, no Departamento de Antropologia. Suas pesquisas
í sobre os carism á ticos católicos e sobre os navajo o têm projetado no campo
da etnologia e da religião. Mas é, com certeza, por sua abordagem teó rica e
metodol ógica que ele alcan çou reconhecimento e prest ígio nos Estados
Unidos e fora daquele país.
Thomas Csordas situa-se, por certo, entre os autores contemporâ neos
que, com diferentes orientações e em disdntas direções, se colocaram a tare-
fa de ultrapassar um certo limite encontrado nas abordagens interpretativa e
semiótica, as quais fizeram dojfsignnTcadõ/ o ponto de chegada da an álise
antropológica. Sua perspectiva , por sua vez, procura ir além do significado,
estabelecendo como horizonte de pesquisa a compreensão da experiência
/ j
“do que significa ser humano” , enquanto “um corpo no mundo”, entre
outros corpos e objetos, por meio de uma tentativa reiterada, ao longo de
toda sua obra, de responder a questão de “como nos tornamos humanos”.
A sua força argumentativa está em juntar consistentemente uma for-
mulação filosófico-metodológica com a riqueza do relato etnográfico, ela-
borado a partir de contextos diversificados de pesquisa de campo. Essa /
10
Apresenta çã o
^
existencial do sujeito e da cultura Ao dar essa formulação à sua abordagem,
Csordas estabelece, em suas pró prias palavras,Jj3 paradigma da corporeida-
de como um parceiro dial é tico ao paradigma da cultura enquanto texto” e
nos permite investigar o quanto o mundo nos é constitutive^
Na á rea da religião, o paradigma da corporeidade traz consigo a aposta
de que a experiência religiosa é um observató rio privilegiado das relações
entre corporeidade e significação. A pesquisa de Csordas sobre os carismá ti-
11
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
í
: cos católicos fornece elementos etnográficos muito ricos para pensar os
mecanismos e os dispositivos acionados na constituição do sujeito, enquan -
to um processo pelo qual nos tornamos humanos. Sua pergunta sobre “o
£
que é realmente ser curado pela performance do xam ã, do m édico ou do
curador religioso”, traz para o centro da sua investigação a questão da cura ,
1 como um elemento integrador de diferentes campos do conhecimento e da
experiê ncia humanã|Essas aproximações são realizadas em muitos dos capí-
i tulos que compõem este livro, com o objetivo de apontar para uma dimen-
! são da existência humana que ultrapassa os sistemas particulares de
significação. Seu tratamento da religião devolve-lhe a função heurística que
ela desempenhou na tradi ção clássica das ciê ncias sociais, retomando o di á-
logo da antropologia com a filosofia, em grande parte interrompido por
um certo particularismo interpretativista que dominou o pensamento an-
I tropológico contemporâneo.
[ No que diz respeito à busca pela saúde e a cura, o vetor de desenvolvi-
mento do trabalho de Csordas está també m referido ao campo de estudos
da antropologia médica O autor parte do conceito de Kleinman de “siste-
^ /
ma de saúde” para analiticamente tratar das diferentes respostas culturais
/ [’O' para manifestações de doença e enfermidade de diferentes grupos. A ênfase
é colocada não em um corpo individual, substrato biológico universal so-
bre o qual atua a cultura, mas em um corpo fenomênico, que é a sede de
diferentes formas de ser/estar no mundo, como condição para diferentes
formulações culturais de enfermidade/doença e de procedimentos de cur| ã
/ Cabe perguntar sobre o sentido complementar que Csordas reconhece
entre o paradigma da corporeidade e o paradigma da linguagem, na relação
entre corpo e texto. Ainda que reconhecidamente a abordagem discursiva
seja extremamente eficaz em seu propósito de desvelar os processos pelos
quais a linguagem é animada por relações de força , algo sempre escapa do
discurso, uma dimensão subjetiva que é da emoção, da intuição, do movi -
mento em suma, de elementos da experiência corp ó rea que n ão se reduzem
ao discurso. Ao invés de postular que a ú nica possibilidade de contato dos
sujeitos com o mundo é através da mediaçã o da linguagem , o paradigma da
/
corporeidade afirma que os sujeitos humanos só podem se conectar ao
mundo sob a condição de, anteriormente, trazerem a experiência de “estar
no mundo” para a linguagem/ Ou seja, é essa condição pré-objetiva, dir ía-
12
Apresenta çã o
13
\
I
Introdu çã o
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Introdu çã o
Primeiro, era comumcnte afirmado que havia uma analogia entre as vá rias
formas de cura religiosa e a psicoterapia. Seria possível tornar específica tal
analogia através de um estudo detalhado? Em um n ível existencial, quais
atributos os fen ômenos religioso e m édico compartilham, e o que os dis-
tingue um do outro ? Segundo, boa parte da literatura antropol ógica focava
no que diziam e faziam os curadores, presumir que isso tinha um efeito
sobre os pacientes sem tentar realmente entender a experiê ncia deles. Seria
possível documentar essa experiê ncia dando conta de quaisquer efeitos dos
rituais de cura executados?, Terceiro,j boa parte da literatura preocupava-se
em propor mecanismos psicol ógicos pelos quais a cura surtia efeito, tais
como a catarse, a sugestão, o efeito placebo e o transe ou a hipnose. O que
havia então de explicitamente religioso na cura religiosa ? Assumi essas ques -
tões desde o ponto de vista de que a cura religiosa poderia ser vista como
um tipo d ^ performance cultural altamente persuasiva] Quando comecei
esses estudos nos anos 1970, a definição mais influente de cultura era a de
—
que ela é um sistema de símbolos sem d úvida, naquela época era comum
entre antropólogos o uso do termo “cura simbólica” em referência à cura
religiosa. Infelizmente, por um lado, esse termo tinha, às vezes, a conotação
de que o que era simbólico não era, portanto, real. Por outro lado, ele
sugeria que, se a cura girava basicamente em torno da manipulação de sím-
bolos, então havia pouca necessidade de examinar a experiência real dos
participantes. Felizmente, havia um, nexo entre símbolo e exper
/ íênciã)na
noção de que h á um?' retó rica na performancf r ã.vé s da quãT os símbolos
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moldam o significado paxa õs participantes. A retó rica nesse sentido é~o
poder de persuasão imanente na ação simbólica e nã performance ritual
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1 Couro / SIGNIFICADO / CURA
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I
Introdu çã o
cer que o nosso ser corpó reo n ã o é menos um produto da cultura que da
biologia tem o potencial de transformar nossa compreensão tanto de corpo / !/
quanto de cultura / Por um lado, se o corpo pode ser mostrado como base
existencial da cultura e do sujeito em vez de o simples substrato biol ógico
de ambos, o caminho estaria livre para a compreensã o do corpo como n ão
apenas essencialmente biol ógico, mas igualmente religioso, lingu ístico, his-
tó rico, cognitivo, emocional e artístico. Por outro lado, se até a linguagem
pode ser apresentada como o surgimento da corporeidade e n ão apenas da
fun ção representativa do cogito cartesiano, o caminho estaria aberto para
definir cultura n ã o só em termos de símbolos, esquemas, traços, regras,
costumes, textos ou comunicação, mas, igualmente, em termos de sentido,
movimento, intersubjetividade, espacialidade, paixã o, desejo, h á bito, evo -
cação e intuição/
/ -
Reunir essas duas percepções levou me a uma conceituação do sujeito
com base na corporeidade. O argumento é o de que ao desfazer a distin çã o
« (
entre mente e corpo, sujeito e objeto, os processos orgânicos end ógenos,
um tanto misteriosos que são retoricamente controlados na cura ritual (Ca -
-
pítulo Um), tornam se compreensíveis como processos do self baseados na
-
corporeidade (Capítulo Dois). A pró pria linguagem torna se compreensí - ' *
19
I
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
mento ao fato de que esses dois temas estão relacionados n ão apenas como
i uma progressão, mas continuam a reagir dialeticamente um ao outro du -
rante todo o desenvolvi mento de meu trabalho. Escolhi começar com capí-
tulos sobre meus estudos etnográficos da cura carismá tica cat ólica. Prossigo,
então, para o meu trabalho sobre a cura navajo , no qual , mais uma vez, os
temas do processo terapê utico e da corporeidade estão intimamente entre-
i laçados. Por fim, eu induí dois capítulos sobre as modulações da corporeida-
de, um que propõe um constructo com a intenção de avançar os estudos
comparativos da cultura e da experiência corpórea; e outro que dá uma nova
guinada empírica ao colocar questões sobre representação e ser-no-mundo.
O Capítulo Um formula um modelo retó rico ou um quadro de refe-
rência para a compreensão do processo terapê utico como experiê ncia trans-
formativa, baseado em dados de curadores carismáticos e relatos retrospectivos
^
de experiências de cura Na primeira parte desse capítulo, eu sugiro que a
retórica da prática de cura evoca uma variedade de processos endógenos que
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são o locus de qualquer eficácia que a cura religiosa possa tery Em minfiã
formulação, essa retórica possui três componentes que incluem predisposi-
ção, empoderamento e transformação, e sugiro que juntos eles formam um
modelo de processo terapêutico que poderia ser aplicado a qualquer forma
de cura para determinar sua eficácia: se todos esses três componentes forem
completados ou desempenhados de forma convincente, pode-se dizer que a
cura acontecõjyfNa segunda pane do capítulo, eu refino essa idéia de pro-
cesso terapê utico baseado em relatos experienciais de pacientes à medida
que eles passam por uma série de sessões de cura. Ao traçar aquilo que os
— -
pacientes ou suplicantes, pois o processo terapê utico predica se na suplica
-
divina através da prece identificaram como os eventos mais significativos
nessas sessões e como eles integraram os resultados em suas vidas, concluo
que a idéia de uma cura milagrosa deixa necessariamente de capturar os
tipos de efeito que observei, e o que ocorreu de fato foi um processo de
[ wud ãnçalincrèmêntãll í Curar é muito mais parecido com plantar uma se -
mente ou com tocar uma bola em movimento mudando ligeiramente a sua
trajetória para que ela termine em um outro lugar do que com raios que
caem ou montanhas que se movimj 1
O Capítulo Dois é uma tentativa de formular a noção de corporeida -
de, traçando várias linhas de trabalho teórico para assentar a base conceituai
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II Ji
Introdu çã o
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CORTO / SIGNIFICADO / CURA
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Introdu çã o
concertado para ampliar o quadro de referê ncia esboçado nos capítulos pre-
cedentes, n ã o apenas mudando o foco para uma cultura diferente, mas tam-
bé m abordando a diferen ça e similaridade cultural do processo terapê utico
cm três formas de cura coexistentes. Eu examino casos da sociedade navajo
contemporâ nea representando o uso de cerim ó nias tradicionais navajos,
-
encontros de ora çã o da Igreja Nativa Americana e a cura pela fé cristã nava
jo, todos os quais são recursos na busca cotidiana de sa ú de e bem -estar. Eu
documento como essas três formas de cura diferem em relação aos seus
princípios terapê uticos e filosofias subjacentes, ao mesmo tempo em que
possuem um cará ter e um apelo distintivamente navajo. Os quatro compo-
nentes do processo terapê utico servem como uma heurística para dar senti -
do a como um vasto leque de interesses de sa ú de navajo entra em jogo na
experiê ncia de pacientes em cada uma dessas três formas de cura.
O Capítulo Sete coloca a questão de como as pessoas experimentam e
d ão sentido à doen ça grave, nesse caso o câncer, dado o meio cultural em
que vivem. Eu dou ênfase especial ao raciocínio causal, isto é, as compreen-
sões de pacientes sobre como surgiu a doen ça. Um elemento central do
capítulo é a comparação entre as idéias expressadas por pacientes de câncer
navajo e por grupos comparáveis de pacientes euro-americanos com a mes-
ma doen ça, dentre os quais parece haver um padrã o intrincado de diferen ças
e semelhan ças. Apresento também uma extensa discussão do que os pacien-
tes navajos querem dizer quando atribuem seu câncer à sua exposi ção a
rel âmpagos, na qual a importâ ncia da corporeidade torna-se espantosamen-
te evidente. O capítulo termina com uma discussão das dificuldades meto- _
^
dológicas inerentes a dar especificidade experiencial adequada à an álise de
questões como a compreensão causal nos sistemas médicos de diferentes
culturas, focalizando as distinções conceituais entre causa e sintoma feitas
em diferentes culturas, entre a compreensão da doença como entidade ou
processo, entre sistemas biomédicos e tradicionais de raciocínio causal e,
finalmente, entre corpo e mente/
O Capítulo Oito disseca o caso de um dos pacientes que participou
do estudo do câ ncer navajo, um jovem que padecia dos efeitos de um tu-
mor temporal- parietal esquerdo no cé rebro. A discussão mostra como ele
fez uso dos recursos simbólicos de sua cultura navajo a fim de criar signifi-
cado a uma vida mergulhada em uma crise existencial profunda, interpre-
23
I CtoRro / SIGNIFICADO / CURA
^
objetivado sobre nosso ser corpó reo A segunda é definir o sentido no qual
n ós já estamos sempre no mundo social como seres corpó reos, mesmo
antes de sermos capazes de simbolizar ou objetivar nossa experiê nci /
O Capítulo Nove promove a viabilidade da corporeidade como uma ^
posição metodológica coerente ao elaborar o constnicto dos modos somáticos
de atenção, os quais defino como formas culturalmente elaborados de aten-
der a e com o corpo em um meio que inclui a presença corporificada de
outros. Mais uma vez, eu adoto a estratégia hermenê utica de começar com
1
um argumento teó rico, mais abstrato, esgotando-o nos termos de exem-
plos empíricos concretos, e retornando finalmente a um argumento concei-
tuai mais geral. Os exemplos empíricos, nesse caso, são de fenômenos
reveladores redrados de uma série de formas religiosas e não-religiosas de
cura, inclusive as da Renovação Carism ática Católica, do espiritismo porto-
riquenho, da medicina siddha sul-asiádca e da psicoterapia norte-america-
na. Isso nos leva de volta à discussão da indeterminação de categorias analíticas
tais como intuição, imaginação, percepção e sensação como ferramentas
para compreender tais fenômenos; daí para a importâ ncia de apreender a
indeterminação essencial da existência no que se refere à relação entre textu-
alidade e corporeidade.
Finalmente, o Capítulo Dez passa a um outro tópico, embora mante-
nha a preocupação teórica com a relação entre representação e ser-no-mun-
do do ponto de vista da corporeidade. Minha principal motivação ao fazer
essa passagem é a de enfrentar o desafio bastante ó bvio de que se a fenome -
nologia cultural baseada na corporeidade vai ter ampla relevâ ncia para a
antropologia, ela precisa ser capaz de oferecer interpretações distintas para
outras esferas de cultura além da cura ritual. Como vem sendo cada vez
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i \ 24
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l íiL
Introdu çã o
25
PARTE I
Transforma ções Carism á ticas
í
CAP ÍTULO UM
A Retó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
A cura em sua acepção mais humana não é uma fuga para a irrealidade
e a mistificação, mas uma intensificação do contato entre o sofrimento e a
esperança no momento em que encontra uma voz, onde o choque angusti-
ado da vida nua e da existência primeira emerge da mudez para a articula-
ção.ytjma compreensão da cura como um processo existencial requer a
descrição dos processos de tratamento e especificação dos efeitos sociais e
psicológicos concretos de práticas terapêuticas, bem como a determinação
do que é considerado doença com necessidade de tratamento em contextos
culturais específicos, e quando se pode dizer que a cura foi realizada. Embo-
ra complexa, essa tarefa constitui um problema de significado essencial em
antropologia, pois diz respeito à questão fundamental do que significa ser
um ser humano, inteiro e são, ou angustiado e doente A dimensão inter-
/
_
pretativa do problema é destacada pelo fato de que muitas formas de cura
são_ religiosas por natureza, o que exige considerar o papel de entidades e
forças divinas (Csordas; Lewton, 1998). Dadas a prevalência da cura religi-
osa e a inter-relação global da religi ã o e da cura ã categoria do santo pode,
^
em sua própria forma, ser fundamental para nossa compreensão da sa úde e
dos problemas de sa ú dêT)Uma abordagem completa da cura religiosa per se
teria então de examinarn ão apenas a construção da realidade clínica relacio-
nada a motivos m édicos, mas também a construção da realidade sagrada
relacionada a motivos religiosos.
CORTO /SIGNIFICADO / CURA
2
Alguns escudos foram feitos sobre a compatibilidade de sistemas de crença científicos e
religiosos no tratamento de afli ção emocional (Cox, 1973) e sobre o efeito da crença
religiosa no trabalho de psicoterapeutas praticantes (Gaines, 1982b) . Ao contrá rio dos
informantes de Gaines, que eram psiquiatras introduzindo idéias religiosas nas suas terapias,
o informante nesse exemplo é uma curadora religiosa introduzindo seus conhecimentos de
psicoterapia em seu trabalho ritual . Sobre essas questões, veja também Csordas ( 1990),
SchumaJcer (1992) e Koenig ( 1998).
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A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
31
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
33
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
Pentecostalismo e cura
O ano de 1967 foi um divisor de águas na história da religião Na aclue "
le ano foi feita uma síntese de duas formas de cristianismo que antes esta-
vam tão separadas quanto se poderia imaginar no espectro da experiên '
da prática religiosas. O catolicismo romano tem a maior e mais velha
do mundo, altamente litúrgica e hierárquica, caracterizada por uma
lidade europ éia, na qual os pontos relevantes da espiritualidade
*” semibT
tomaram a
forma de um misticismo e monasricismo altamente cultivados O movi
mento pentecostal começou na virada do século XX nos Estados UnbdoYe
se caracteriza por congregações independentes cujos participantes recebem o
“Batismo no Espírito Santo” que preenche o indivíduo com poder divino e
dons espirituais, tais como a glossolalia (falar em línguas) e a cura pela fé
Os jovens católicos com educação universitária que criaram o “pentecosta-
lismo católico” e o institucionalizaram como a Renovação Carismática Ca-
tólica iniciaram um movimento que se tornou global em seu escopo, uma
força poderosa para o evangelismo em oposição ao evangelismo protestante
3 Uma notável exceção a essa tendência é a discussão em Good et al . ( 1982) da transferê ncia
e da contratransferéncia em uma colaboração entre curadores tradicionais e profissionais da
sa úde mental .
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A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
33
CORPO / STGNIPICAOO / CURA
/
mon íaca na raiz do problema A técnica de cura física consiste simplesmen
te na imposição de mãos acompanhada de oração para que a doença seja
curada, embora, em casos como os de recuperação de ossos quebrados ou
de remissão do câncer, a visualização do processo de cura possa ser incluída
A cura í f sica é com frequência o primeiro tipo de cura encontrado pelos
carismáticos, e, com frequência, ela se dá no contexto de grandes grupos
Em alguns casos ela pode ser acompanhada, ou até tida como condiciona-
da, por um dos outros tipos. Apesar de sua importância, n ão vou considerar
a cura f ísica aqui pelas razões que apresento a seguir ( mas veja Csordas,
1994a). Primeiro, embora sua estrutura de significado seja essencialmente a
mesma , como forma de discurso ritual, ela não foi elaborada no mesmo
nível de outros tipos de cura e, assim , é menos acessível à interpreta çã o.
Segundo, dada a natureza dos problemas de doença abordados, ela não pode
ser adequadamente analisada à parte de uma avaliação dos resultados que
34
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
4
A Libertação é considerada apropriada apenas em casos de opressão demoníaca; os casos de
possessão completa devem ser levados ao conhecimento de um sacerdote para tratamento
com o rito de exorcismo oficial da Igreja e também , possivelmente, a um psicoterapeuta
profissional .
35
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
espíritos malignos tem nomes que geralmentc são os dos vá rios pecados,
há bitos ou tra ços desfavoráveis de comportamento, e tendem a aparecer cm
erupos. Assim um indivíduo pode abrigar um grupo de sexualidade ( por
exemplo, Lascívia, Perversão, Masturbação, Adulté rio) ou um grupo de
falsidade (por exemplo, Falsidade, Mentira, Engano, Exagero) A tropa de .
demó nios muitas vezes é chefiada por um “espírito gerente” que é compara
-
do por analogia à raiz principal de uma em mais difícil de arrancar, mas
-
^
ue se sai, as menores acompanham. O curador começa o processo de
libertação “amarrando” o demó nio em nome de Cristo de forma que ele
'ão se manifeste e desarranje o procedimento, como costuma fazer (os pen -
;
:
^ costais “clássicos” ou fundamentalistas discordam nesse ponto - eles exi
Tmalgum tipo de manifestação como sinal de que o espírito foi embora).
Ordena-se então ao espírito que diga o seu nome, o que é feito pela boca do
licante. Alguns pentecostais católicos, no entanto, fazem tanta questão
-
i
levitar
C o sensacionalismo e a teatralidade na libertação que impedem o
'rito até mesmo de fazer isso, valendo-se do curador para identific
^OT meios á-lo
sobrenaturais, através dos dons espirituais de “discernimento”. O
emónio então é mandado embora em nome de Nosso Senhor Jesus Cris-
dem
to, uma autoridade a que ele não pode resistir. Todavia, se essas três coisas
n ão forem feitas - amarrar o espírito, chamá-lo pelo nome e falar em nome
epor autoridade de Jesus - o dem ónio pode causar problemas recusando-se
! a sair, falando algum ripo de abuso verbal através de seu anfitrião ou aba
* lando o anfitrião fisicamente.
5
36
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
com certa fama atra íam os católicos que, sem isso, poderiam n ã o ter parti -
cipado da Renovação Carism á tica. As orações de cura ou petições para si e
para outros podem ocorrer també m num segmento de encontros de oraçã o
semanais menores. Depois desses encontros de oração, pode haver orações
para suplicantes individuais em “salas de cura” separadas, conduzidas por
uma equipe de ministros de cura especialmente escolhida dentro do grupo,
que fazem imposi ção de m ãos nos suplicantes e oram por qualquer proble -
ma que eles possam ter. Grupos de cura mais intensivos ocorrem também
em retiros menores de um dia ou de fim de semana e em “dias de renova-
ção”. Sessões particulares podem ser organizadas com um ministro de cura
experiente ou uma equipe de cura, e as curas mais sérias e profundas aconte -
cem em tais sessões. Alguns daqueles que praticam no cen á rio privado tam -
bém possuem formação profissional em aconselhamento ou psicoterapia e
integram essas prá ticas com a cura ritual. Além disso, a oração de cura par -
ticular às vezes ocorre pelo telefone. As comunidades mais altamente orga -
nizadas tamb ém incorporam formas de aconselhamento pastoral em suas
atividades diárias. Finalmente, a oração de cura para si pró prio ou para os
outros pode ser praticada na solid ão da devoção privada.
—
Curadores nessa tradição ou seja, aqueles que “oram com os outros
—
para curar” são vistos como depositários de um carisma especial, ou “dom
do Espírito Santo”, para esse fim. Um padre que seja membro de um grupo
de oração provavelmente receberá pedidos de oração de cura em virtude do
seu status ritual. Da mesma forma, uma pessoa com treinamento em acon -
selhamento ou uma forma convencional de psicoterapia pode ter, aos olhos
do grupo, um papel a desempenhar nas orações de cura. (Pentecostais cató -
licos não rejeitam sumariamente a medicina ocidental e estão dispostos a
indicar médicos convencionais quando necessário). O dom de curar não se
manifesta necessariamente de maneira espontânea ou dram á tica, e não se
exige uma experiência de cura do futuro curador como parte de uma inici -
ação. À medida que o grupo se desenvolve, seus membros podem decidir
instituir uma equipe de cura ou “ministério” como fun ção de grupo, em
cujo caso os membros serão solicitados a orar pedindo orientação para saber
-
se sentem se chamados para participar desse trabalho. As equipes de cura
-
re ú nem se regularmente para cultivar os seus dons e conhecimentos de cura
e podem até viajar a outros locais para oficinas de cura ritual. Os curadores
37
CoRro / SiGNincAno / CURA
—
dor pastoral . O que se segue é o relato de um curador sobre como uma
pessoa que apresenta uma queixa é recebida na ‘ sala de cura” do seu grupo
depois de cada encontro de ora ção regular:
“
'1
L Í ,
-
g que voten P splicer, velhos pecãdos veihas
c os atormentam; um monte de culpa. E uma das prune , tas coisas
que a sala de cura perguntaria a eles e como ,sso esta acontecendo; é um
Memo
—
°U 3C flutuação que entra e sai, geralmente é o Senhor, se é a
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estã
Vest
!ãõ lTrealmenre
C
condenação,
Gcralmente eles estão passando por períodos em que muitas
ão retornando e eles estão sendo atormentados por elas, e
se sentindo bem com Cristo. Então, o que eles fa
é alguém da sala de cura, um amigo ou uma pessoa qualquer diz,
“Olha aqui , eu acho que o Senhor está preparando você para a Cura de
ê
órias você precisa consultar a sala de cura”. De alguma maneira
e cs enten
,
-
Esse relato sugere que o critério principal que determina o uso da psi-
coterapia ritual é a disponibilidade de uma interpretação de certos elemen-
tos da experi ência como sinais indicativos de uma necessidade de oração de
cura. É importante reconhecer, num movimento em que mesmo os cura-
dores mais experientes estão trabalhando há pouco mais de uma década ,
que a habilidade de fazer tal interpretação é produto da socialização secun-
dária. Ao contrário da consciênciapresumida em certas sociedades tradicio-
nais de que o xamã é um recurso de cuidado à saúde , o recruta do
pentecostalismo católico aprende uma maneira nova e não-familiar de in-
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A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
6
Bourguignon ( 1976) , para fazer uma ampla revisão, prefere não distinguir entre movimentos
de cura religiosa e cura religiosa em outros contextos. Mesmo assim , na prá tica , o fàto de a
participação num movimento de cura ser produto de socialização secundária pode
representar uma diferença significativa em relação a situações em que uma forma espec ífica
de cura religiosa seja uma opção naturalizada na hierarquia de recursos terapê uticos de uma
sociedade. Além disso , o fato de movimentos religiosos ( nos termos de Kroeber) formarem
“sociedades- parte” , com técnicas de cura relevantes apenas para os participantes do
movimento , pode representar uma diferença significativa em relação a situações em que a
cura religiosa esteja dispon ível para sociedades inteiras.
39
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
Eu estava orando por um homem que tinha uma verdadeira histó ria de
L ; dor. Ele devia ter uns 55 anos de idade e se entregara completamente ao
I Senhor uns três anos antes, mas não tinha crescido muito. Ele resolveu
realmente que precisava de alguma cura para muita dor. Nós acabamos
; fazendo umas seis ou sete sessões com esse homem, e ainda não termina-
!
mos. A cura continua, já dura um ano. Algumas visões realmente espe-
ciais ocorreram naquela situação específica, e o Senhor vem trabalhando
Jentamente. Numa visão, me veio a figura de um garotinho num beco -
i í o homem não rinha me dito nada, mas tive a visão de um menino de uns
li dez anos, num beco, que estava amedrontado e estava escuro.
E eu a mandei - eu chamo isso de “mandar de volta ao Senhor”: antes de
testar alguma coisa com a pessoa, eu geralmente a testo com o Senhor e
pergunto ao Senhor se aquilo é Ele [mandando a visãó]. Se n ã o é eu
40
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
41
Couro / SIGNIFICADO / CURA
submundo
—
revelação guia o sofrimento individual pelo mundo dos espíritos n ão o
m ítico do xamanismo, mas o submundo pós-freudiano de me-
mórias suprimidas, rcmitologizadas ao serem submetidas a técnicas religiosas.
A cura ritual n ão fica completamcntc registrada com essas observa-
ções, entretanto, pois a curadora notou que alé m da Cura de Memó rias o
suplicante rinha necessidade de Libertação. Observe que o suplicante é visto
como algu é m que se tornou suscetível à influencia de demonios “através de
diferentes coisas com que ele tinha se envolvido na sua vida”; isto é, várias
ações ou experi ê ncias no passado tinham produzido nele uma condição de
fraqueza espiritual que permitira aos espíritos malignos conquistar uma
posição da qual eles o assediavam ou oprimiam (mas n ão o “possu íam” no
sentido estrito da palavra). Esses demó nios era “discernidos” ou diagnostica-
.
dos pela curadora como pertencentes a dois "grupos” O primeiro inclu ía
Lascívia, Masturbação e Homossexualidade/Adulté rio ("/ ” indica dois ou
mais espíritos intimamente entrelaçados dentro de um grupo); o segundo
inclu ía Amargura/ Ressentimento/Raiva, Culpa, Rebeldia, Vaidade/ Orgu -
lho / Inseguran ça. Nesse caso, n ão está claro até onde a identificação dessas
forças demon íacas envolve um processo endógeno (externalização) na psi-
que do suplicante, pois parece que alguns dos nomes foram discernidos pela
curadora. Entretanto, acontece que o suplicante também precisa discernir,
ou admitir a presen ça de, um espírito maligno. O que é significativo é a
maneira pela qual os grupos de demonios são usados como significadores
para definir uma condição espiritual-psicodinâmica, ou como “sintomas”
espirituais para definir uma “síndrome” espiritual.
É interessante, considerando-se os antecedentes da info rmante como
psicóloga clínica, os grupos de demónios terem sido interpretados como
circunscritivos de conflitos de personalidade específicos: o primeiro grupo
representando um “conflito bissexual” e o segundo (descrito como “grupo
de personalidade”) representando um “conflito de autoconfiança”. A cura-
dora interpretou o último conflito da seguinte maneira:
42
!
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
quase tudo que fez. E ainda assim , ao mesmo tempo, havia um espírito
dc Orgulho c Vaidade. Num minuto, ele podia estar orgulhoso e vaido-
so c ficar com raiva se algu é m pisasse nele e o chamasse, por exemplo, de
in ú til. E isso é uma coisa muito comum.
Exemplo Dois
Nesse contexto o termo “andar” é uma contração da frase “andar com o Senhor , que, no
14
7
43
teceu foi
Urri • , .verdadeira liberdade, um in ício
U a
ac
° Um dc consciência sobre o que consciente
. .
come• p E ela ainda não perdeu todo o peso, mas está ^ mcsm
I
L
daquela liberdade; csri tomando «ais tolerante cona go mesma ^ cm
diferentes coisas. Agora, uma das coisas que seriam mu to utets nesse caso
;
que
eu fiz ,sso com outras pessoas) seria sugerir que ela olhe as comidas
r
í 7
ela come agora e adote um sistema dc recompensa para si mesma cm ,
termos de comidas que são boas para ela contra aquelas que nao sao. essa
>
recompensa seria realizada pelo encorajamento através do mando dela ou
de membros da fkm ília, ou encorajamento através de outras pessoas.
í Há um espírito de Manipulação nisso, também, onde ela manipula ou-
tras pessoas e a si própria, por meio de comentários que ela fez a si
mesma a respeito de comida. Por exemplo, “Vou comer só um pedaço de
bolo. Ora , um pedaço de bolo de aniversário não pode fazer mal . Você
acha errado comer um pedaço de bolo de aniversário, quer dizer, é uma
comemoração!?” Você sabe, esse ripo de coisa que as pessoas costumam
dizer para elas mesmas; elas tendem a racionalizar cada grama de ali-
mento que ingerem.
;
í O primeiro elemento digno de nota nesse relato é a presença de uma
resistência inicial, ou negação do problema, que é superada quando a pessoa
aceita a necessidade de terapia ritual. Segundo, o curador admite explicita-
mente que a terapia ritual lida com as dimensõ es espiritual e psicológica do
problema psicossomá tico. A cura não remove o excesso de peso, mas ativa
os processos endógenos, inclusive uma transformação de atitude em uma
: de auto-aceitação positiva, e a geração de certa intuição por parte do supli-
cante. Terceiro, os grupos de demónios cujos nomes constituem o meio
i principal de persuasão, nesse caso, incluem dois tipos distintos: aqueles que
i rotulam v/cios, pecados, ou sintomas, e correspondem a nomes na demo -
nologia cristã tradicional, tais como Lascívia e Gula; e aqueles que rotulam
44
:
I
I T
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
Exemplo Três
Parte A
45
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
.
do e dizendo claramcnrc, "Este <5 o segundo que perdi hoje” . Ele me pôs
“ rodos lã trabalhando 11a minha mãe. E era um
!
h Sp í“
< nh, uma ftch* U bem , cu csreu pulando „a
-
pam baixôqvcndõ «do nos menores deta-
lhei
„5o na minha cabeç c disse Voei va. «ver porque eu tenho co.sas
E o Senhor em cena
entrou
a ,'
vez
outra de pd
, ao meu lado. Ele pos a
°
°nfmcnte
n
anos, [causado] inconscientemente - ela a n
nao f
ão fez
^ isso
Mas os pais fazem isso; eu mesmo fiz isso , tenho certeza, em
30
mtenci-
r —
Eu diria que uma das maiores que eu já tive foi uma cura bem , primei -
ro eu posso lhe dar algumas estatísticas. Entre os homens a masturbação
'
46
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
cos — —
problemas muito dif íceis com a culpa principalmente homens católi
porque sempre lhes ensinaram que isso era pecado, uma coisa
-
muito ruim para estar envolvido. Mesmo assim , é uma coisa muito nor -
mal. Não tem nenhum homem por aí que n ão tenha. Bem , eu andei por
— —
a í desde que eu tinha 14 12, 13, 14 anos até mais ou menos um ano
atrás com aquele problema. E orei logo que descobri que a cura era
verdadeira; e també m li uma coisa no livro do padre MacNutt. Ele ape-
nas mencionou por alto que tinha visto homens curados daquilo, e do
—
alcoolismo ele simplesmente juntou as duas coisas. Bem, eu orei pela
cura. Acho que orei duas semanas, sem parar. E finalmente uma noite
—
caiu a ficha eu estava curado e eu sabia disso. E nunca mais; nem
vontade, nem nada. Tinha passado. A culpa é a grande coisa que passou;
acabou a culpa... [e] tinha aquela imagina ção. Eu n ão diria imagina ção
— é real. Ele estava bem ali e Ele me tocou e disse, “Eu estou aqui e
acabou”. Ele levou aquilo embora. Foi a maior cura da minha vida, até
aquele momento. Eu estava apenas caminhando nas nuvens. Eu estava
aliviado. Foi fantástico. Isso foi há um ano, e eu aguentei. Veja só, quan -
do eu estava envolvido em outras atividades religiosas, cursilho e vá rias
outras coisas, o problema ainda estava lá. Quando se aproximava a data
de algum evento do qual eu estava encarregado ou tinha alguma fun ção
a desempenhar, eu podia ficar afastado daquilo por duas ou três sema-
nas, mas a tentação era horrível. Eles eram impiedosos e eu ficava lutan -
do para afastá-los. Agora acabou. Com a cura, n ão tem mais tentação,
nada. Simplesmente acabou. Grande cura.
9 O fato de esse suplicante ser também um curador pode explicar a sua vontade de tentar a
autocura, mas não diminui a significação da natureza solitária dela.
47
í
CORPO / SIGNIFICADO
nas um episódio dc uma experiê ncia mais longa de um fim de tarde que
incluiu, al ém da cena do nascimento revivida , uma cura de mem ó rias res -
sentidas de uma freira que tinha sido professora dele na escola fundamental ,
e a cura de uma fobia sobre espanadores de pena enraizada nas lembran ças
de um certo espanador agitado por uma empregada doméstica na casa de
-
1
sua inf ância. Terceiro, observe a relevâ ncia da culpa enquanto estado afetivo
que precisa de cura: na Parte A o suplicante atribui peso igual ao al ívio da
culpa instilada por sua m ãe c os vestígios emocionais da experiência traum á
-
tica de proximidade com sua própria morte, sendo a melhora do seu relaci
onamento com a mãe no momento vista aparentemente quase como efeito
-
colateral da cura; na Parte B o suplicante dá maior importância ao alívio de
sua culpa a respeito da masturbação do que à sua libertação da vontade de
masturbar-se. Quarto, deve-se chamar a atenção para a definição cultural-
mente específica na Parte B de masturbação como um problema que preci-
sa ser curado, pois em algumas sociedades, e em segmentos da pró pria
sociedade do informante, a auto-estimulação eró tica n ão é considerada nem
pecaminosa nem má para a sa úde. Finalmente, observe a importância da
visualização vívida e específica, inclusive da presença de Jesus como curador,
l como um processo end ógeno crucial para o impacto terapêutico da cura.
A idéia da importância dos processos endógenos em terapia ocorreu a
Prince (1980) a partir de sua observação de um ritual de cura em que não
havia curador, realizado diante do túmulo de um santo muç ulmano em
Lucknow, na índia. O ponto de Prince e reforçado pelo nosso pró prio
Exemplo Três, no qual uma experiência de cura normalmente dirigida por
um terapeuta ritual acontece ao suplicante em solidão. Os dois casos suge-
rem que um relato abrangente de eficácia terapê utica deve ter o seu locus em
algum lugar que n ão seja a transferência ativada na interação diádica pacien-
te-terapeuta. Todavia, a identificação de processos endógenos n ão fornece
por si só um locus adequado para interpretação, pois é preciso perguntar
como os processos são ativados em terapia, e por que diferentes processos
li endógenos são prevalences em diferentes cenários. Por exemplo, no caso
que Prince observou, a dissociação era o processo terapêutico principal, en-
!
: quanto na cura pentecostal católica a dissociação tem apenas um papel se-
cundário e na verdade é vista com certa desconfiança. Além disso, os mesmos
processos podem se manifestar de formas significativamente diversas se -
48
y
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
10
Discurso pode ser definido simplesmente como desempenho linguístico contrastando com
competência, ou parole contrastando com langue, embora inclua modos e formas semi ó ticos
-
não lingiiísticos de comunicação (Ricoeur, 1979). Na sua formulação mais forte, a estrutura
do discurso é o locus das próprias condições de possibilidade do conhecimento (Foucault,
1970, 1972). As noções de discurso elaboradas por Ricoeur e Foucault são derivadas da
análise de texto e não da an álise de tradução oral ou prá tica cultural; assim a autonomia do
discurso é baseada na observação da independência entre texto e autor após a composição.
Os antropólogos que desconfiam das analogias provenientes da análise textual deveriam se
lembrar de que, em todas as formulações, exceto as mais rigidamente mentalisras, a cultura
é pensada como possuidora de propriedades sistémicas que a tornam semi-autônoma em
relação aos portadores de cultura individuais. Nesse aspecto, a contribuição do discurso
para o estudo da cultura é dupla: 1) sem deixar de enfatizar a cultura como um sistema
semi-autô nomo, o discurso é por definição um tipo de processo, superando assim a tendência
da cultura de ser concebida como um sistema está tico e as dificuldades conceituais decorrentes
de explicar a mudança cultural e permitir uma análise n ão-forçada da cultura em ação; 2)
como o discurso é por definição um produto (comunicativo) social que por sua vez influencia
a ação social de uma maneira dialé tica, a semi-autonomia do discurso pode ser postulada
sem apelar para um n ível ontológico “superorgânico” à la Kroeber. O conceito de cultura
associado com a noção de discurso não é nem superorgânico nem mentalista, mas é mais
• próximo do de Sapir, para quem o locus de cultura estava na interação entre indivíduos.
49
Couro / SIGNIFICADO /
^, , A
é um processo semi -aurônomo que tanto pode ser ajudado como aprovei -
tado por quem está familiarizado com suas convenções. Levado adiante
^
pela sua própria estrutura de implicações, próprio discurso incorpora a
eficácia terapêutica c o poder m ístico do divino “outrçTj
Para compreender a natureza específica dessa eficácia á preciso cons-
truir uma hermenêutica da retórica cultural cm funcionamento no discurso
da cura." A noção de retórica, comparada às noções de sugestão , de apoio e
de sustento, ou efeito placebo, ajuda no reconhecimento de queja cura
depende de um discurso significativo c convincente que transforma as con-
Tv dições fenomenológicas sob as quais o paciente existe e experiencia sofri -
/ í ' /
mento ou afli ção Pode-se demonstrar que essa retórica redireciona a atenção
do suplicante para novos aspectos de suas ações e experiências , ou o persua-
de a lidar com os aspectos habituais da ação e da experiência a partir de
novas perspect • Secundo
b Schutz (1967), para quem a maneira particu
/
experiências constitui o significado
-
lar de as dessas
expenências, jes redirecionamento da atenção equivale à criação de signi-
medida em que esse novo significado
"
3
,
«
°
peri
^ P“soa' 3 ““ ‘ CIÍar Para Cla uma
abrange
nova reali -
Como um aspecto do discurso, a retórica pode ser entendida como o seu “fio de corte” o
-
‘
elo qual os participantes no discurso são convencidos de sua validade e relevâ ncia.
tT ^'0o reocupa ção com a retórica foi introduzida nas ciências humanas em parte através do
de Kenneth Burke (1970a, 1970b), e está evidente na abordagem “centrada no
desempenho” em folclore (Abrahams, 1968), sociolingii ística (Hymes, 1975) e na
, rA rrm
-O81973 do “desempenho cultural” na antropologia cultural (Fernandez, 1972, 1974;
Geercz ; Singer, 1958; Turner, V., 1974; confira Csordas, 1997).
É melhor resumir a abordagem de Schutz (1967, p. 63) do significado nos seus próprios
-
ermos “ É errado dizer que as experiências tê m significado. O significado não reside na
experiência Ao invés disso, as experiências significativas são aquelas que são apreendidas
reflexivamente O significado é a maneira pela qual o ego considera a sua experiê ncia [. .
.
;
“ f Um] significado n ão está realmente anexado a uma ação. Se dissermos que est á, devemos
entender essa afirmação como uma maneira metafórica de dizer que direc o namos -nossa - - ---
aten ção às nossas experiências de forma a constituir a partir delas uma açao unificada
. / .
(Schtritz 1967 p. 63) “0 significado é apenas a maneira especial pela qual o suje to lida
com sua experiência viVida; é isso que eleva a experiê ncia em uma açao. É incorreto, pois,
olhar o significado como se fosse um tipo de predicado que pudesse ser anexado a uma
.
ação ” (Schultz, 1967, p 215 . y
50
J
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
rrw\
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
Ness (1980, p. 178) faz a importante observação de que essa forma de interação pode
come 13 ter
pohi .
maior efeito terapêutico a longo prazo do que os próprios rituais de cura
plcsn
sede li -
.
52
U
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
Retórica de predisposição
53
"I
M Mills ( 1940, p. 905 ) define motivos da seguinte forma: “Motivos são palavras. Geralmente,
eles se referem a quê? Eles não denotam elementos cm’ indiv í duos . Eles representam
consequências situacionais antecipadas de conduta . A intenção ou o propósito (como
apresentados como um ‘programa’) é a consciência de consequências antecipadas; motivos são
nomes para situações conseqlienciais, e substitutos para as ações que levam até elas [. . .].
54
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
^
à Comunidade [de crentes] A Comunidade é o instrumento através do qual
o Plano de Deus pode ser realizado e o Seu Reino alcançado, precisando
portanto ser composta de membros EspiritualmenteMaduros.fCurar é uma
função da Comunidade que promove a Maturidade Espiritual, removendo
os obstáculos à continuação do Crescimento e pondo Ordem na vida de
uma pessoa. Sem o apoio da Comunidade, considera-se muito difícil atin-
gir a meta de Crescimento e Ordení j
55
CORTO / SIGNIFICADO / CUPA
56
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
Q Retórica de empoderamento
57
T
^
como fronteira do self social Um exemplo concreto disso é a situação na
qual um grupo está “orando sobre” um indivíduo. É necessário que apenas
duas ou três pessoas estejam em contato físico com o suplicante; as que
estão em volta podem manter as m ãos nos ombros daquelas que estiverem
entre elas e o suplicante. Não há qualquer evid ê ncia de que o conceito pen-
15
Em francês no original (N. deT.).
58
A Retórica da Transforma çã o no Ritual de Cura
16 Isso não serve para argumentar que o elemento mágico está completamente ausente (confira
McGuire, 1982), mas que o gesto é muito mais complexo do que uma transferência
m ágica. Mesmo quando um carism á tico põe as m ãos no capô do seu carro quando ele não
pega de manhã, o gesto “mágico” vem acompanhado do ato de oração “religioso”. Pode
parecer que a pessoa nessa situação careça de conhecimento técnico sobre o seu carro numa
forma semelhante a dos pensadores “mágicos” de sociedade tradicional descritos por
Malinowski. Mesmo assim , a inten ção da oração tanto pode ser que as atividades do dia
não sejam prejudicadas pela necessidade de chamar um mecânico como que se desencadeie
um processo milagroso no misterioso motor. Além disso, fazer um gesto como esse tem o
significado de uma exibição de fé de quem chega a ser abertamente “tolo pelo Senhor”.
17 Agradeço a Jay Geller por sua observação a respeito das m ãos como um escudo. Geller
também sugere que parte da força retó rica da imposição de m ãos pode vir de uma inversão
na qual o gesto, que normalmente é marginal e ancilar do discurso estritamente definido
como palavra falada, torna-se central no cenário ritual. Na verdade, isso pode contribuir
para o sentido do poder m ístico dado pelo gesto. Não é necessariamente o caso de a
linguagem perder o seu lugar central , todavia; e h á ao mesmo tempo uma inversão
retoricamente poderosa dentro do próprio componente linguístico, a saber, a inversão de
inteligibilidade alcançada na glossolalia.
59
T
1
direito divino dc ligação com Deus. A conexão com o toque real é evidente
também no complexo motivacional definido pelos termos Realeza , Senho-
ria, Autoridades Submissão. Os pentecostais católicos enfatizam constante-
mente a natureza Régia de Deus, sendo eles pró prios construtores e s úditos
em Seu Reino. A Autoridade exercida por l íderes da comunidade, bem
como a Autoridade sobre espíritos malignos reivindicada na Libertação , são
captadas diretamente dessa fonte Régia. A submissão à Autoridade e ao
desejo e Plano de Deus é um motivo altamente articulado , presente tam-
bém em frases como "submeter-se ao dom de falar em línguas” e “dar [um
problema] ao Senhor”. Assim a mensagem retórica comunicada pelo con-
sentimento de que as mios sejam postas sobre alguém é de Submissão à
Autoridade divina e também de recepção do Poder divino. No gesto de
imposição de mios, o suplicante é colocado, e coloca-se, nas mãos do Senhor.
A linha gen ética de significado tem a ver com a experiência do
toque
como intimidade. Os l íderes do movimento reconhecem a possibilidade da
intimidade fora de lugar ao recomendarem que os curadores trabalhem em
equipes e nunca a sós com um membro do sexo oposto. O toque quebra
uma barreira interpessoal culturalmente construída com base numa noção
do indivíduo como uma entidade distinta e independente, no conceito de
privacidade e na ordem de “não tocar” embutida na maioria das situações
sociais (Montagu, 1978; Shweder; Bourne, 1982). Montagu (1978) rese-
nha um conjunto considerável de pesquisas que indica a importância da
estimulação tátil adequada na infância para o desenvolvimento sadio e, ao
mesmo tempo, mostra a relativa falta de tal estimulação entre crianças ame-
ricanas numaperspectiva transcultural. Além disso, ele cita a literatura que
indica o valor terapê utico do toque no tratamento de problemas de pele,
asma e até de esquizofrenia. Essas considerações sugerem que, como uma
technique du corps, imposição de mãos pode ter significação mais do que
simbólica, ajudando realmente a compensar uma deficiência de desenvolvi-
mento/ A pesquisa transcultural, ao correlacionar o grau de estimulação tá til
na infância com a prevalência de terapias tácteis de várias intensidades, da
imposição de mãos superficial à massagem corporal completa (veja Finkler,
5! 1980), seria ú tiJ para esclarecer esse ponto. Ao restringir por enquanto o
nosso olhar ao pentecostalismo católico, bastará observar como as imagens
tácteis básicas são metaforicamente ampliadas na cura. Alguns curadores
60
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
18
Uma curiosa digressão histórica é a forte crença de um dos iniciadores da imersão literal
(hidroterapia) , no começo do século XVIII , na sua eficácia simultânea como tratamento
médico e espiritual: “ Eu tornei a Imersão praticamente um Remédio Universal para nossos
Corpos enfermos, bem como um miraculoso Purificador e Limpador da Alma por sua
virtude Sobrenatural . . . As Instituições Divinas têm Virtudes tão amplas e difusas para
remediar as Desordens tanto do Corpo como da Mente” (Floyer apud Gabbay, 1982, p. 38).
61
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
19 Sem rela ção direta com a Cura de Mem ó rias ou a Libertação, mas um exemplo importan
te
do elo entre a experi ência do sagrado e a do bem-estar í
f sico/emocional, a technique du corps
è conhedda como Sacrificar no Espírito” ou “ Repousar no Esp írito”. Uma pessoa
sacrificada
no Espírito está num estado de dissociação motora, definida pela perda de controle das
atividades musculares voluntárias por um período de dez minutos a meia hora , seguido de
uma sensa çã o de relaxamento e rejuvenescimento. Na libera ção do poder do Esp írito
Santo acionado pela imposição de mãos o tão citado mecanismo de sugest ão (Calestro,
1972) é sem d ú vida convocado a entrar em cena para ativar o processo end ógeno de
dissociação. Pelas descri ções de informantes desse maravilhoso estado de êxtase, parece que
o seu correlato fisiológico pode ser a liberação de endorfina no sistema nervoso central
(confira Prince [1982] para a an álise do papel das endorfinas nas religiões extá ticas). Ainda
assim , nem o mecanismo psicológico de sugestão nem o mecanismo fisiológico de endorfinas
são suficientes para uma interpretação de como o Sacrificar no Espírito contribui para a
—
cura isto é , por que as pessoas são suscetíveis a essa experiê ncia e que benefício elas retiram
dela. Na verdade, a experiê ncia é entendida como uma infusão gratuita de poder divino
destinada a aumentar o bem-estar geral. A extensão do controle retó rico sobre o processo
fisiológico endógeno está evidente na alegação dos suplicantes de que, apesar da dissociação,
eles nunca perdem a consciê ncia. As razões, consistentes com as noções pentecostais católicas
de pessoalidade e espiritualidade, são que a experi ê ncia é para ser apreciada e gozada , e que
Deus jamais privaria de suas faculdades aqueles que Ele quer como Servos. Um Sacrif ício
no Espírito em que a pessoa perdesse a consciê ncia seria interpretado como de inspiração
demon íaca. A experi ê ncia som á tica total é uma simboliza çã o fisiológica da uni ão m ística ,
na qual o suplicante é litcralmente engolido pelo poder divino.
62
A Retórica da Transforma çã o no Ritual de Cura
20
Um elemento da retórica facilmente observado, mas n ão tão facilmente explicado, é a sua
extraordiná ria imunidade à contradi ção. No presente caso a Espontaneidade continua
sendo um motivo poderoso apesar dos fatos de os encontros de oração terem” ficado sujeitos
se tornado
h conformidade com normas cada vez mais autoritá rias, e o santo abraço ter
“
63
Cortro / SIGNIFICADO / CURA
alto c considerada pelo curador como além daquilo onde ele poderia chegar
através de seus próprios processos mentais. O Discernimento é concebido
tanto como um tipo de sexto sentido espiritual para intuir a presen ça con-
creta do mal quanto como um tipo de bom senso espiritualmente intensi-
ficado para dirigir os trabalhos c chegar à raiz do problema do suplicante.
jTÊnglobando esses dons está o dom da “Cura” per se, que é visto como uma
intensificação divina do poder comum da oraçab|
O impacto retórico imediato no contexto de uma sessão de cura varia
entre esses dons. Uma determinada visão irresist ível ou uma profecia
fará
provavelmente um grande efeito na sessão, ao passo que o curador pode
nem se dar conta de que o conselho dado por ele foi fruto de uma
Palavra
de Sabedoria até que os eventos posteriores provem ter sido esse o
caso. A
vantagem principal dessa bateria de técnicas espirituais tomadas em
conjun-
to, todavia, é que ela d á ao curador acesso ao divino reservató rio
de Conhe-
cimento, Sabedoria, Discernimento - resumindo, de onisciência
suplicante. Dessa forma, o exercício dos dons espirituais tem o — sobre o
mesmo
impacto retó rico da “ jornada” do xamã: ele permite ao curador partici
par
misticamente da vida interior do suplicante e permite ao suplicante
partici-
par dos resultados de processos endógenos experimentados pelo
curador.
64
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura
Retórica de transformação
21
Kapferer ( 1979c) constrói um relato igualmente convincente de transformação na cura,
começando na direção oposta da que foi tomada neste capí tulo.jEmbora nosso foco esteja
nos meios de transformação retóricos, e a análise mostre como a atenção é redirecionada e
um novo mundo e um novo eu são criados, o foco de Kapferer está no sujeito da
transformação , e sua análise meadiana mostra como o self em enfermidade e cura entra
numa variedade de relacionamentos com o Outro e o Outro generalizado. As diferenças i, // )"
\[
r
básicas são sua ênfase maior na interação frente à nossa ênfase maior nos processos endógenos
e a recriação do mundo fenomenológico (predisposi ção e empoderamento) , bem como do /
self ( transformação) . A última diferença pode ser menos uma questão de metodologia do
que de cenário de pesquisa: movimento social transformativo para nós, prática social cotidiana
para Kapferer
^
65
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
^
o longo tratamento da psican á lise A configuração temporal de uma vida é
reduzida de tal forma que pode ser experienciada como um todo no presen
te. Essa combinação concreta de presença divina e de construção de uma
-
vida nova (ou passado novo) no presente é a chave retó rica para a transfor
ma ção pessoal na Cura de Memó rias.22 A cura não é efetuada por m ãos
-
humanas, mas pelo próprio Jesus, em pessoa. Em um meio religioso onde
o abraço, ou “santo abraço”, é uma saudação convencional e a imposição de
m ãos é um gesto ritual comum, é significativo que a figura de Jesus nessas
visualizações seja percebida muitas vezes curando com um toque ou um
abraço. Há poucas imagens tão simbolicamente carregadas quanto a de ser
tocado pela mão de Deus. Ao mesmo tempo, o papel do suplicante não é
inteiramente passivo. Ao enfatizar a necessidade do perdão para os respon-
sáveis por danos emocionais passados, a retórica de transformação exige a
participação ativa do suplicante e o seu compromisso declarado de “mudar
as ideias”.
O processo endógeno básico ativado na Libertação é a externalizaçlo.
Como foi observado acima, os nomes de demó nios de cuja influê ncia as
pessoas são liberadas indicam que eles são entidades espirituais que contro-
lam pecados, vícios, desvios de cará ter, fraquezas pessoais ou negatividades
particulares. Embora o curador às vezes perceba a presença de espíritos ma-
lignos e faça a interpretação da ação deles em grupos, geralmente os espí ri-
1 tos são identificados pelo próprio suplicante. Na verdade, é o dem ó nio que
supostamente se identifica pela boca do suplicante, em um tipo de profeda
66
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
J
CORPQ / SlGNinCADO / CURA
68
\
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
69
CoRt'o / SlGNinCADO / ClJIlA
.
a ação ocorre dentro do indivíduo Na Libertação, que ativa a cxtcrnaliza-
ção, a ação ocorre entre o indivíduo c as forças que tem origem fora elo
sujeito. Al ém do mais, na Cura de Mem ó rias a meta ó perdoar c rcconciliar-
sc com o passado, reinterpretando-o como parte do plano de Deus que
conduziu a pessoa ao seu atual relacionamento com Jesus no bojo do movi-
mento carism ático. Na Libertação, por outro lado , a atitude ó de envolvi
mento ativo c peremptó rio com a expulsão de influê ncias malignas. Nesse
-
sentido, pode-se argumentar que, tomados em conjunto, esses dois rituais
oferecem à cura uma abordagem equilibrada, que lida tanto com fatores
intrapsíquicos internos como com fatores externos do ambiente social que
contribuem para o sofrimento emocional.
jOs rituais, na medida em que tratam de problemas que podem ser
identificados como fobias com origem cm eventos traumáticos do passado,
ou como padrões obsessivos fora do controle de um suplicante, podem
ser
entendidos claramcntc como formas de etnopsiquiatria. Como observa
Kapfcrer (1979a, 1979c) no caso dos ritos de exorcismo cingaleses, no en
tanto, eles são estruturalmente reminiscências de certos ritos
-
de passagemf
A semelhan ça pode ser mais do que estrutural no caso pentecostal cató ,
lico
no qual alguns participantes sustentam que todos deveriam se
submeter à
experiência de cura como ajuda ao “crescimento espiritual” , aprofundando
assim o seu envolvimento e compromisso com o mundo fenomenoló
gico
criado pelo movimento. O vocabulário de motivos fornece o termo que
orienta a mudança de status impl ícita na noção de um rito de passagem, que
é Maturidade espiritual. Estamos, pois, mais uma vez, diante de relatos
simultâ neos das mesmas prá ticas dos pontos de vista da Sa ú de e do Santo.
Mais tarde retornaremos às implicações metodológicas dessa dualidade
analítica.
í
:
' Elementos de persuas ã o carismá tica e cura
70
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
23
Cada paciente recrutado concordou com a minha presença nas sessões; considerando
como muitas questões eram íntimas e dolorosas, esse foi um privil égio pelo qual eu continuo
profundamente agradecido. Para cada participante, cu gravei até cinco sessões de cura cm
audiocassetcs. Durante as entrevistas subsequentes, eu pedi a cada participante para
identificar o evento mais importante ou significativo dentro da sessão. Eu toquei a gravação
de cada evento e solicitei coment á rios de cada pessoa, usando uma forma adaptada do
Processo de Lembrança Interpessoal ( IPR) , mé todo desenvolvido por pesquisadores dc
processo dc psicotcrapia ( Elliott , 1984 , 1986). Uma entrevista de fundo adicional cobriu
a história de vida e histó ria médico-psiquiá trica básicas, a natureza e o n ível dc envolvimento
na Renovação Carismá tica, c as atitudes e expectativas de cura religiosa. A fim dc confirmar
a presença ou a ausê ncia dc desordens psiquiá tricas, essa entrevista inclu ía uma forma
adaptada e reduzida da Agenda de Desordens Afetivas e Esquizofrenia (SADS). Eu contatci
os participantes antes de cada primeira sessão observada para poder explicar o estudo,
obtendo informa ção consentida c iniciando a interação, de forma que minha presença n ão
fosse percebida como perturbadora. Eu ofereci aos ministros da cura a opção de gravarem
a sessão sem a presen ça do pesquisador, mas todos eles invariavelmente declinaram. Embora
vá rios participantes estivessem um pouco nervosos nas primeiras sessões, nenhum deles
decidiu terminar o envolvimento no projeto. Salvo em raras ocasiões, uma das quais é
relatada aqui, eu não fui atra ído de nenhuma forma para dentro dos procedimentos. A
importâ ncia desse mé todo é que ele permite a observa ção do comportamento n ão-verbal
nas sessões de cura e melhora a rela ção informante- pesquisador. O pesquisador com acesso
à intimidade da sessão de cura n ão é, no entanto, uma mera mosca na parede. De fato,
inevitavelmente alguns t ó picos discutidos cm entrevistas de pesquisa acabam retornando,
reciclados, ao processo de cura. O ato de ouvir a fita gravada das sessões desperta pensamentos
e emoções que, dc outra forma , poderiam n ão ser examinados. Essas questões de reflexividade
são amplas demais para serem discutidas adequadamente aqui. Essa pesquisa teve o apoio
do Instituto Nacional de Sa úde Mental ( NIMH ).
71
U
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
72
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura
fazer perguntas sobre as mudan ças que possam ter ocorrido desde a sessão
anterior. Ent ã o, ele coloca uma cadeira de encosto reto no centro da peque -
na sala, pede ao suplicante que se sente ali e unge a testa dele com o santo
ó leo. O padre fica de pé atrás dessa pessoa, com uma m ão na cabeça e outra
no ombro dela, orando em sil ê ncio durante uns cinco minutos. Muitas
vezes, nesse meio tempo, ele recebe “discernimento” sobre o suplicante e o
seu problema. Depois disso, ele questiona a pessoa sobre qualquer experiên-
cia que ela pode ter tido durante a ora ção. Passado esse breve segundo perí-
odo de conversação e aconselhamento, a sessão termina, raramente tendo
durado mais do que meia hora.
Padre Felix acredita firmemente na necessidade de “chegar à origem”
de um problema a fim de curá-lo. Na experiência dele, duas importantes
origens de problemas das pessoas são os espíritos malignos e as gerações
passadas. Para eliminar a influência de espíritos malignos ele usa a oração de
Libertação, e para eliminar a de gerações passadas ele usa a missa pela cura da
ancestralidade. Cada uma delas será descrita rapidamente.
No sistema pentecostal católico de cura, é normal dar nomes de emo-
ções e padrões comportamentais aos espíritos malignos. Ansiedade, De-
pressão, Lascívia e Rebelião são nomes comuns de espíritos. Padre Felix
concorda com a maioria dos outros curadores pentecostais católicos entre-
vistados, para os quais os espíritos atacam os indivíduos nos seus pontos
mais vulneráveis, sejam esses pontos a propensão para cometer algum tipo
especial de pecado ou os efeitos prolongados de uma experiência traumá ti-
ca. Ningué m pode ser completamente possuído por Satanás, a menos que
faça um pacto ou tome uma decisão consciente. Todas as outras aflições
espirituais vêm na forma de opressão ou de assédio num âmbito específico
da experiê ncia de vida. Todavia, padre Felix também admite a existência de
fontes humanas de emoções negativas sem a influência demoníaca, e é uma
questão de discernimento saber se a pessoa acometida de depressão ou lascí-
via está de fato sendo atacada pelo espírito de Depressão ou Lascívia. Na sua
experiência , um dos espíritos mais comuns é o Medo de Ser Descoberto,
que causa pensamentos do tipo “se as pessoas soubessem as coisas que fiz ou
que penso, eu não teria nenhum amigo”. Outro espírito muito comum é a
Desvalorização, semelhante ao Ódio de Si, que causa “ baixa auto-estima e
auto-imagem”.
73
1
74
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura
Caso Um
75
RI
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
menos
transferência.
ter contribu ído para o proble-
Dificuldades devida familiar parecem
ma. Ela vê o casamento de seus pais
como muito pobre, caracterizado por
seu pai como crítico, cruel e
frequentes discussões acaloradas. Ela descreve
física quando os filhos eram
autoritário, a ponto de abusar da disciplina
ã mais velha, mas sente neces-
pequenos. Ela é muito apegada à mãe e à irm
sidade de se distanciar do envolvimento emocional
excessivo e estabelecer
, um ano antes do
uma vida independente. Ela relata o desenvolvimento
aberta e ódio para com uma
início de sua enfermidade, de uma hostilidade
“
irmã de quem era muito próxima e que havia arruinado a pró pria vida e
”
voltado à casa da família após ter tido um bebê com um homem que ela
não desposou. Um fator adicional na sua aflição parece ser a morte acidental
de um irmão alguns anos antes. Dada essa constelação de padrões e eventos,
uma área maior de intensa ansiedade é a de relacionamentos com homens.
Através de psicoterapia ela veio a associar essa ansiedade com uma falta de
oportunidade para desenvolver uma confiança nos outros.
Margo é católica praticante e esteve envolvida com grupos de oração
carismática por alguns meses, vários anos antes da sua enfermidade, mas
sem uma razão clara ela deixou de frequentar. Desde o início de sua enfer-
midade, contudo, Margo participou muitas vezes de sessões públicas de
cura e recebe correspondência de dois influentes ministros carismáticos.
Nessas sessões ela freqíientemente experimenta “ Repousar no Espírito” uma
,
forma de dissociação motora em que uma pessoa, ao toque de seu ministro
de cura, cai num tranquilo, relaxante e rejuvenescedor estupor enquanto o
“Poder do Espírito Santo” a arrebata. Contudo, Margo ficou perturbada
num desses serviços quando a curadora declarou que
ela estava sendo cura-
” revelara
da. Indagada, a curadora explicou que seu “dom de discernimento
ter ficado confusa e
que o processo de cura já havia se iniciado. Margo alega
eu não me sinto nem
perplexa, pois “se a cura já começou, pessoalmente
um pouco diferente”.
, e ele a aconselhou a fre-
Margo chamou padre Felix para pedir ajuda
quentar seu serviço pú blico de cura.
Naquele evento, ela pediu orações para
para rezarem pela expul-
depressão aguda e o padre instruiu seus assistentes
76
J
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
sã o dc um “esp írito das Trcvas”. Ele sugeriu então que ela viesse vê lo para -
sessões privadas dc cura. Na sessã o inicial , ele relatou situa ções prévias de
curas bem -sucedidas, e declarou que ele sentia que ela podia ser curada rapi-
damente. Ele “corrigiu” a ideia dela de que orar daria melhor resultado se ela
esvaziasse a mente enquanto ele orasse, explicando que ela deveria esperar a
emergê ncia espontâ nea de imagens mentais e que Deus não precisava da
-
ajuda dela para que a ora ção fosse bem sucedida. Ele també m “corrigiu” a
id éia dela de que deveria interromper a psicoterapia semanal enquanto esti -
vesse se submetendo à cura ritual.
Na segunda sessão, Margo contou a padre Felix uma experiê ncia per-
turbadora que havia se repetido durante vários meses antes da irrupção de
sua enfermidade. Quando começava a cochilar, Margo “podia sentir uma
outra presen ça no meu quarto. Eu podia sentir que algu é m havia sentado na
ponta da minha cama.” Ela nunca havia mencionado isso ao seu psiquiatra
ou psicólogo, por medo de que eles a considerassem louca. Padre Felix
concordou que ela estava certa em não ter contado a eles, mas que ele mes -
mo estava bastante familiarizado com tais experiências: era um espírito
maligno. Isso confirmou o que ela suspeitava e deu-lhe segurança de que era
um fenômeno com o qual padre Felix podia lidar.25
Durante o período de oração silenciosa, talvez em resposta ao conse -
lho de padre Felix de permitir a vinda de pensamentos à sua mente, Margo
experimentou uma série de id éias “vindas de todas as direções”. Três temas
emergiram: as dificuldades que ela vivenciou no trabalho administrativo
anterior, se deveria ou não trocar de médicos (haviam dito a ela que tinham
tentado de tudo e nada parecia ajudar), e um relacionamento decepcionante
com um homem mais velho. Nessa última situação, o homem, que vivia
numa outra cidade, tinha lhe feito a corte durante algum tempo, até ela
descobrir que ele era casado. Ela gostava dele, mas estava com muita raiva, e
se sentia em conflito ao desejar estar com ele apesar da convicção de que
seria moralmente errado fazê-lo. Nenhum desses temas foi posteriormente
25
Padre Felix nunca explorou a conexão experiencial possível entre a presença assustadora e,
antes disso , a morte do irmão de Margo , pois a ocorrê ncia daquele evento nunca emergiu
nas sessões.
77
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
discutido com o curador. Padre Felix simplesmente disse íI Margo que ano-
tasse o que lhe viesse à mente durante a oração porque seria importante
.
”
para ela.
com o
U
° "“dedingt
ho do padre d " a ver
emoções
negativas c ordenar que elas saiam em nome de Jesus Cristo. Esse evento foi
como especialmente significativo
à^
^
C1
'
numa trevist posteriorinterpretou a recomendação no sentido
de
que o problema está “todo na maneira que você está pensando”. A
invoca
rão 'a Deus indica que Ele não quer que ela se sinta como se sente, e -
se ela
tem a força e a fé para dizer “saia” em Seu nome, as emoções negati
vas de
ansiedade e depressão devem partir
Durante a sessão seguinte, padre Felix descobriu que essa técnica
nao
tinha logrado êxito na realização do objedvo de mudar sua atitude. Houv
a seguinte conversa-chave:
e
78
.!
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura
Caso Dois
79
CORTO / SIGNTRCADO / CURA
Desde o advento desses medos ele tem sido incapaz de se manter num
emprego e acha praricamente intolerável estar
num grupo de pessoas. Outra
fonte maior de aflição é o seu irmão, que no passado também esteve sob
cuidados psiquiátricos. Ele não tolera o irmão, que ofende muito os seus
pais, então eles se revezam para morar com o avô numa cidade próxima.
Ralph parece ter um bom relacionamento com o pai, mas sente que a mãe
o critica e o fàz se sentir culpado com frequência mesmo em pequenos
eventos do dia-a-dia. Seu grande prazer é
escutar m úsica gravada e escrever
poesia num estilo que ele considera similar ao de Kerouac e Ginsberg, ape-
sar de achar extremamente dif ícil escrever criativamente sob a influê ncia de
sua medicação antipsicórica.
Segundo Ralph e seus pais, muitos médicos discordaram sobre se ele podia de fato
2C ser
diagnosticado como esquizofrénico paranóico e se ele tinha de fato uma lesão cerebral
, mas
80
:
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
81
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
82
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura
gcral era correta , mas que ele estava sendo inexato ao atribuir tal denegação
ao seu pai. Finalmcntc, numa sessão em que Ralph declarou que nenhuma
mudan ça havia ocorrido desde a sessã o anterior, padre Felix voltou-se para o
pesquisador e perguntou se de fato eu n ão podia observar qualquer mudan-
ça. Ralph interpretou essa tentativa de solicitar impressões de mudan ças
comportamcntais visíveis como uma contradição frontal de seu relato de
nenhuma experi ê ncia de mudan ça interna. Ele declarou que isso lhe deu
raiva, embora “n ão tivesse nada a ver com a oração” enquanto forma de
tratamento.
Apesar dessa aparente disposição de separar os efeitos da ora çã o dos
visíveis tropeços do ministro de cura, os sucessivos mal-entendidos e inter-
pretaçõ es exageradas parecem ter minado o processo terapê utico. Ralph ter-
minou seu envolvimento ap ós cinco sessões e uma missa de cura de
ancestralidade. Depois disso, padre Felix esteve com o pai em diversas ses-
sões, orando ostensivamente pelo segundo filho e com o pai como “substi-
tuto”. Em particular, no entanto, ele admitiu que estava orando ao mesmo
tempo pelo próprio pai, que a seu ver tinha uma atitude excessivamente
crítica e negativa. O padre sentiu que as maneiras do homem melhoraram
um pouco ao longo da cura, e a família também relatou que o segundo
filho tornara-se menos raivoso e briguento. No entanto, o pai também
logo parou suas sessões com padre Felix.
Numa entrevista dois meses depois de ter parado, Ralph descreveu
interações com um novo psiquiatra, que duvidava do diagnóstico de esqui-
zofrenia paranoica e que conseguiu hipnotizá-lo para que ele não se sentisse
nervoso num encontro recente com uma mulher.23 Ele tentou minimizar a
aparente semelhança entre a sensação de paz ao receber de olhos fechados as
orações sobre si e a de ser colocado em transe leve, mostrando-se esperan ço-
so quanto à sua nova linha de tratamento.
28 Ralph trouxe à tona o fato de que outros médicos o tinham prevenido contra a hipnose por
medo de que ele pudesse desenvolver a idéia de que o médico estivesse controlando a sua
mente, mas ele nega ter tido tais delusões.
83
go^O f SlGNiriCADO / CimA
Mudança incremental, sucesso inconclusivo
^ ^
( significadojb q)eriênda)no processo terapêutico Na sessão precedente, eu
propus que o processo terapêutico no ritual de cura fosse analisado em
termos de um modelo composto de três elementos. O acompanhamento
prospectivo dos casos permitiu um refinamento desse modelo, cuja especi-
ficidade consiste na disposição de participantes, experiência do sagrado, ne-
gociação de possibilidades ou elaboração de alternativas, e realização da
mudança. Nós analisaremos os dois casos à luz desses quatro elementos do
processo terapê utico.
Disposição de participantes
Experiência do sagrado
JA. capacidade humana de lidar com o mundo como algo sagrado, dife-
rente e poderoso foi documentada repetidamente por fenomenologistas da jV /'j
religi Eliade 1958 Van der Leeuw, 1938). Cada sistema de cura atende
ã o ( , ; J.
à condição humana diferenciadamente, elaborando um repertório de ele- -
mentos rituais que constituem manifestações legítimas do poder divino. Y
Num sistema de cura específico, nos interessamos pela variação individual na
/
experiência do sagrado que possa influenciar o curso do processo terapê utico
85
CORTO / SIGNIHC\DO / CURA
86
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
^
aflita \ experiência concreta do sagrado n ão é uma experiência do sobrena-
tural, mas uma maneira transformada de cuidar do mundo humanõf Para
Margo, mas não para Ralph, o elo entre transcendência e reordenação da
vida foi forjado na matéria biográfica de seu momento transcendente.
29 Contudo , não sabemos até que ponto Margo partilhou essa atitude com a sua mãe.
Ironicamente, enquanto psicólogo, padre Felix se opunha ao uso de terapia eletroconvulsiva.
37
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
Realização de mudança
O que vale como mudança, assim como o grau em que tal mudança é
vista como significativa pelos participantes, não pode ser aceito como dado
nos estudos comparativos de processos terapê uticos. Toda essa intui ção é
ainda mais importante para essa discussão quando n ão há nada de estabele-
cido e nossa preocupação é definir elementos m ínimos de eficácia.
A principal evidê ncia para a mudança incremental na cura de Margo é
seu an úncio da decisão de partilhar seus problemas com uma cunhada mais
jovem. Embora uma razão para essa decisão não tenha emergido explicita-
mente em mais entrevistas, é possível que o discurso do curador sobre o
“ Medo de Ser Descoberto” tenha plantado a id éia de buscar apoio de outros
ao invés de tentar esconder deles suas dificuldades./'Vtribuir sua conduta
anterior a um medo que é não apenas negativo, mas pode també m repre-
sentar a atividade de um espírito maligno, é nessa instâ ncia o traço-chave da
/
retórica da transformação Ao passo que o desejo de esconder sua aflição
havia levado a um isolamento social crescente, sua vinculação à id éia de um
88
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura
esp írito maligno passou a motivar Margo a tornar sua pró pria aflição em
ocasi ão para cngajar-sc socialmcnte.
A falha de realizar a mudan ça na cura de Ralph é evidente nessa rejei ção
expl ícita clc seja o que for que padre Felix tenha oferecido como evid ê ncia
de mudan ça terapê utica. Ir à missa com o avô n ã o contava, porque só acon-
teceu uma vez; ir a um restaurante com o avô n ão era significativo, porque
ele fazia essas coisas habitualmente sem quaisquer consequ ê ncias em todo
caso; c a opini ã o de outra pessoa sobre se ele havia mudado era desprezada ,
porque ele n ão tinha indicações de outros de ser esse o caso e especialmente
porque o que importava era que ele n ã o se sentia diferente. Quando o pes-
quisador perguntou se sua recente falta de perturbação com movimentos
descontrolados do olho era um possível resultado da oração de cura, Ralph
n ã o rejeitou inteiramente a possibilidade, mas saudou-a com ambivalência,
excluindo-a da classifica ção de experiê ncia de transformação. A percepção
do curador de uma mudan ça positiva no pai de Ralph certamente teve efei-
to m ínimo, já que o pai e o filho tinham um relacionamento próximo. Da
mesma forma, o relato dos pais de mudan ça no seu irm ão teve efeito m íni-
mo, já que as rela ções tensas entre os irm ãos perduraram a ponto de eles não
mais poderem viver sob o mesmo teto.
Em suma, o processo terapêutico para Margo foi caracterizado por
uma disposição inicialmente positiva; experiências de poder divino com
conte ú do distinto, intelig ível; a elaboração de possibilidades viáveis; e mu-
dan ças significativas, embora incrementais. Ralph manifestou disposição
ambivalente, diminuição de empoderamento, n ão reconhecimento de possi-
bilidades e rejeição da mudan ça, com uma fone percepção de não estar sendo
compreendido pelo ministro de cura. Nesses termos, a cura deu melhor resul-
tado para Margo do que para Ralph, e assim a an álise esclarece os modos
diversos em que os dois terminaram suas sessões. Ralph deixou o processo
religioso de cura para encontrar aparentemente maior satisfação com um psi-
quiatra / hipnotizador, sem qualquer senso de continuidade do seu encontro
carismático de cura. Margo, que estava inicialmente desiludida com a psiqui-
atria e a psicoterapia, deixou o processo de cura para tentar mais um trata-
mento psicoterapê utico internada e provavelmente teria continuado a cura
religiosa se o padre não tivesse deixado a área por um período prolongado.
Embora se movendo na direção certa, essa análise ainda não estabelece
o significado dessas transformações em comparação com o que o pensa-
S9
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
mento cl ínico chamaria de uma cura. O que é notá vel nos exemplos apre-
sentados c o seu cará ter incremental, sem qualquer garantia de que eles serã o
permanentemente integrados na Anda da pessoa. O processo incremental c
aberto da cura religiosa pode se revelar como uma caracter ística essencial,
v exigindo que algumas curas religiosas sejam “simbió ticas” (Crapanzano,
~
y1\ 1973) j/ralvcz não haja conclusão terapêutica, somente processo terapêuticoj
A cura pentecosral católica pode incluir o objetivo simbió tico, encorajando
suplicantes a incorporarem significado religioso e habitarem uma comuni-
dade religiosamente definida. Ainda assim , no contexto sociocultural nor-
te-americano do fim do século XX, nós podemos prontamente discern
ir
fatores que contribuem com a natureza fragmentá ria e inconclusiva do pro-
cesso de cura e que n ão são particularmente inerentes às sociedades tradicio
-
nais das quais advém a maior parte do conhecimento etnográ fico.
Primeiro, considere a tentativa de padre Felix de atrair as fam ílias de
Margo e Ralph para o processo de cura através da missa de cura de ancestra-
Iidade. Se há algo de singular na prática de cura de padre Felix, em compa-
ração com outros ministros de cura pentecostais católicos, é a sua prá tica de
adentrar no lar e mobilizar o apoio da família através da participação nesse
evento. A maior parte da cura carismatica e baseada no modelo do
encontro
individual, e não é coisa inédita uma mulher estar no processo de cura para
desprazer de seu marido. Mesmo quando o curador toma a iniciativa de
mobilizar o suporte social, sua autoridade nã o é tal que ele possa intervir do
modo algumas vezes descrito para os curadores tradicionais. O pai de Margo
estava propositalmente ausente da missa de ancestralidade dela, assim como o
irmão de Ralph estava da dele. O pai de Ralph participou com entusiasmo de
diversas sessões privadas com o padre, mas as interrompeu sem resolução,
simplesmente deixando de agendar outra consulta. Assim , o apoio social,
frequentemente citado como uma das marcas registradas da cura ritual , não é
de forma alguma autom ático. O apoio da fam ília e o apoio da comunidade
de crentes religiosos não são idênticos ou sequer necessariamente compatíveis.
O apoio de qualquer uma delas pode ser menos acentuado do que seria de se
esperar dos casos comumente relatados na literatura etnográ fica.
Considere, ainda, a facilidade com que as pessoas podem entrar e dei -
xar o processo de cura nesses exemplos. Na perspectiva transcultural esse
tipo de mobilidade entre os recursos de cura parece ser uma fun ção do
90
A Ret órica da Transforma çã o no Ritual de Cura
n ú mero clc recursos dispon íveis , bem como da exclusividade de cada forma
de cura. Finkler ( 1985) observou uma diferen ça entre os espiritualistas me -
xicanos que eram devotos e aqueles que faziam uso casual ou periódico da
cura cspiritualista Crapanzano ( 1973) notou uma distin ção similar entre
^
devotos hamadsha que experimentaram uma cura simbiótica e outros que
receberam uma cura exorcista de sessão ú nicâf Na medida em que o pente -
costalismo católico se desenvolveu nas duas últimas d écadas, suas formas de
cura se tornaram mais acessíveis àqueles apenas marginalmente expostos ao
movimento.30 Como Ralph e Margo, eles estão menos propensos a se en-
volverem numa “cura simbió tica” total e mais provavelmente experimenta -
rão os tipos de transformações incrementais aqui documentadas. Assim,
pouco entendimento resultará se a pesquisa for direcionada a um resultado
terapê utico definitivo, ao invés de ir em direção às ambiguidades e sucessos
parciais (e falhas) embutidos no processo terapê utico.
Alé m do mais, se os seus diagnósticos são corretos, Ralph sofre de
uma condição esquizofrénica séria caracteristicamente associada com fracas-
sos na psicoterapia, ao passo que os problemas de depressão e pânico de
Margo respondem tipicamente bem a uma variedade de intervenções psico -
terapêuticas. A pesquisa em sociedades tradicionais é frequentemente com-
plicada pelo fato de o antropólogo não possuir informação comparável de
diagn ósticos; por outro lado, a pesquisa na sociedade contemporânea pode
ser complicada pelo fato de o informante possuir essa informação. A rejei-
ção de Ralph ao comentá rio de padre Felix “se você pensar em nervosismo,
você ficará nervoso”, foi baseada na sua concepção de que a paranoia clínica
não pode ser banida simplesmente por uma mudança de atitude. Ao con -
trá rio, a disposi ção de Margo de falar da sua experiência de uma aparição
apenas ao padre e não ao psicoterapeuta era baseada na preocupação de po-
der receber um diagnóstico pior do que depressão e transtorno do pânico.
30 A comunicação pessoal de l íderes do movimento indica que desde o seu início, em 1967,
dez milhões de católicos norte-americanos foram expostos ao movimento, junto com 20
milhões de católicos em outras partes do mundo. A participação ativa, contudo, no momento
desta escrita , é estimada em 162.500 . Esse continua sendo um número substancial ,
especialmente quando posto ao lado do maior número de carismáticos e pentecostais
protestantes .
91
I
r
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
92
A Retórica da Transforma çã o no Ritual de Cura
31 Por essa razão , a despeito da natureza preliminar das suas análises, os trabalhos de Richard
Noll ( 1983) , Larry Peters ( 1981 ) , e Larry Peters e Douglas Price-Williams ( 1980) sobre
xamanismo são passos importantes para a compreensão de estados alterados como lugares
para transformação pessoal , como ritos sociais de passagem e como ativação simultânea de
processos fisiol ógicos e simbólicos.
93
j
1
\\f ^ -
P 63). A analogia do termostato é demasiadamente mecanicista O /
V„./ 9 ue é necessá rio a essa altura do desenvolvimento de uma teoria da cura é a
J especificação áefTomo o processo terapêutico efetua a transformação cm
estados existenciais/ ^
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
32 Pode-sc ir além cio ponto de partida relativ ístico unicamente no contexto de uma ampla ,
radical e eficaz crí tica cultural; na conexão presente , veja , por exemplo, a anãlisc de La Barre
( 1972) do impacto da neurose sexual de São Paulo na cultura cristã.
95
1
. é m é evi-
escolha conflituosa entre o estado de casado e o sacerd ócio Tamb
dolorosas
dente no Exemplo Três, Parte B, no qual o suplicante relatou
,
tentativas de controlar seu h á bito de masturbação particularmente
durante
períodos cm que ele desempenhava tarefas ou
frinçõcs religiosas especiais, c
talvez ainda no Exemplo Dois, se a resistência inicial suplicante à terapia
do
dimensão religiosa para a sua
ritual for vista como uma recusa a admidr uma
obesidade. Finalmcntc, a intuição de Von der Heydt parece se confirmar pela
de cada um dos três exemplos.33
proeminência da culpa como um elemento
Podem ser interpretadas a atribuição de problemas a um esp í rito ma-
do passado na Cura de Memó rias como
ligno na Libertação c a constru ção
uma forma de fuga da responsabilidade
pelo seu pró prio bem-estar emoci-
de
onal? Essa é, de fato, uma atitude comum terapeutas clí nicos frente à
adotada indiscriminadamente. Para a
cura religiosa, mas que não deveria ser
o da participação do suplicante versus a
cura carismática católica, a questã
passividade foi anteriormente tratada neste capítulo, ao observar como na
Cura de Memórias a pessoa é encorajada perdoar aqueles que a ofenderam
a
e como na Libertação um indiví
duo frequente e pessoalmente identifica os
espíritos que estão lhe perturbando
. A responsabilidade pessoal é indicada
pelo fato de o suplicante estar sujeito a aconselhamento que pode incluir
recomendações para uma mudança comportamental. Além disso, a crença de
que experiências e ações no passado dão oportunidade aos demónios de inici-
de responsabilidade no sentido de
ar uma influência na pessoa sugere um grau
que algumas dessas ações passadas podem ser tomadas por pecaminosas.
Na medida em que o indivíduo / aliviado de algum grau de responsa-
bilidade, o efeito retóricopode ser muito diferente do que foi sugerido pela
noção de escapismo. rimèirõTjno reconhecimento de que mal represen-
^ ,
o
tado pelos demónios não é essencial ao seu próprio ser o sentimento
da
96
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
97
T li '
v
/
dido das orações.34 O segundo paradoxo é que o critério da efetividade
pode variar tanto que por um conjunto de parâmetros um paciente d clccla-
,\ ) rado curado, enquanto por outro ele continua doente. Enquanto para um
T V? módico ocidental o al ívio dos sintomas é um critério importante de cura,
jri Kleinman c Sung ( 1979) relatam que em Taiwan, mesmo com o al ívio dos
/N , ; sintomas, um xamá pode julgar enfermo um suplicante até que seja banido
’
'
ll . um espírito maligno; c um médico chinês pode fazer o mesmo julgamento
se a harmonia não for restaurada entre yinglyang, quente/ frio ou as cinco
/
esferas corporais Do mesmo modo, McGuire (1982) observa que carismá-
ticos católicos podem não ser considerados curados se retiverem qualquer
resíduo de pecado; ela chega ao ponto de sugerir uma significativa sobrepo-
sição entre os contínuos qualitativos de saúde/enfermidade e santidadc/ pc-
caminosidadcjN Õvamente, em que sentido os fenômenos constitu ídos desse
modo podem ser considerados pertencentes ao mesmo universo de discur-
so que o da medicina dínjcã _ |
Esses paradoxos se remetem ao problema crucial de substratos de enfer-
midade, sejam eles doenças no sentido biomédico, desarmonia no sentido
chinês tradicional ou experiência do sagrado no sentido religioso. O senso de
paradoxo é aumentado quando a análise confronta métodos de cura para as
quais é impossível especificar não apenas condições de possíveis falhas, mas
í[ até mesmo o problema da enfermidade sendo tratada e a pessoa beneficiada
i pela terapií)De fato, em que sentido tais práticas podem ser consideradas
pertencentes à mesma categoria de fenômenos dos outros tratamentos médi-
cos? Sua incapacidade de falhar banaliza seu significado médico ou coloca a
34
O recente livro de McGuire (1982) sobre pentecostalismo católico inclui uma discussão
geral da cura que focaliza primeiramente a enfermidade física. As idéias dela serão revistas
em detalhe em outro momento.
í 3i ,
98
J
A Ret ó rica da Transforma çã o no Ritual de Cura
natureza clc sua eficácia na gaveta residual dos efeitos placebo? Sua extrema
indeterminação cm termos m édicos coloca-as no domínio de alguma outra
disciplina que não a antropologia médialyou faz delas exemplos de patologia
ao invés de terapia, ou simplesmente as atira no lixo da irracionalidade?
Um exame renovado dos modos religiosos de cura com a intenção de
gerar interpretações que levem igualmcntc cm consideração sua identidade
enquanto fenômenos médicos c religiosos oferece, se não um modo de
resolver esses paradoxos, ao menos um modo de confrontá-los - c esse é
um dos temas a que devo cxplicitamcnte retornar no Capí tulo Quatro e
Capí tulo Oito. A premissa de tal exame é que/ doença e sagrado são catcgo- 'V
rias do mesmo nível fcnomcnológico, que remetem às quest ões últimas dc Y(
vidac morte, ativando processos endógenos tais como os que se encontram / / V
aqui, c gerando campos dc discurso interpretativo cuja interseção é o discur-
so sobre a
cnfermidadcJComo nós mostramos, no caso da cura carismática
católica, rituais terapêuticos podem ser vistos ao mesmo tempo como for-
mas de etnopsiquiatria e como ritos de passagem. Assim, não se pode dizer
que uma forma de terapia é religiosa num sentido “êmico”, mas médica
num sentido “é tico”, como parece ter se tornado o caso na medida em que
o interesse antropológico nos fenômenos relacionados à saúde desenvolveu
uma identidade enquanto subdisciplina clínica ou aplicada da antropologia
médica(Nós devemos reconhecer, ao invés disso, que tanto podem ser for-
mulados relatos cientí ficos da cura religiosa enquanto religiosa quanto em
termos clínicõs O locus de nossos paradoxos pode então mudar das própri-
^
as formas de cura para a inabilidade metodológica da religião e da medicina
comparadas de gerar relatos mutuamente inteligíveis dos mesmos fenôme-
nos. Mas se as experiências de doença e de sagrado levantam algumas das
mesmas questões existenciais (confira Comaroff, 1982, p. 51-52; Young,
1976), e portanto não são inteiramente distintasjpode muito bem haver uma
dimensão religiosa em todas as formas de cura(Nesse caso, uma abordagem
hermenêutica é indicada não apenas para a análise das terapias abertamente
religiosas e populares, mas também para a cura convencional e biomédicZ)
Nada disso deve levar a pensar que os antropólogos devam abandonar
as preocupações clínicas e aplicadas e começ ar a interpretar símbolos pelos
símbolos, ou subordinar tais preocupações exclusivamente aos interesses
teóricos da antropologia cultural mais amplamente concebida. Significa que
99
CORTO / SIGNIFICADO / CURA.
100
CAP ÍTULO DOIS
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia’
* Agradecimentos: a pesquisa apresentada neste capítulo foi financiada pelo NIMH, auxílio
1R01MH 40473-03. Agradeço aos participantes do seminário semanal sobre Antropologia
Médica de Relevância Clínica na Universidade de Harvard, dirigido por Arthur Kleinman
e Byron Good - por criarem um ambiente que estimulou o desenvolvimento deste trabalho
em vários estágios. Comentários sobre uma primeira versão do estudo foram oferecidos por
Pierre Maranda e Byron Good durante um simpósio organizado por Gilles Bibeau e Ellen
Corin no ICAES XII em Zagreb, Croácia. Gananath Obeyesekere, Robert Levine e Nancy
Scheper-Hughes deram grande encorajamento ao selecionar o trabalho como vencedor do
Prémio Stirling. O argumento foi refinado em resposta a uma crítica construtiva de Richard
Shweder. Finalmente, agradeço a Janis Jenkins, cujo diálogo teó rico e caneta editorial
muito contribuíram para o que, de qualquer ponto de vista, é um argumento experimental.
37 Além dos trabalhos citados no texto, vários grandes teó ricos desenvolveram
perspecrivas
sobre o corpo (Douglas, 1973; Foucault, 1973, 1977; Ong, W., 1967; Straus, E., 1963).
Antropólogos examinaram periodicamente o significado social e simbólico do corpo e dos
CORPOI SIGNIFICADO / CURA
senridos (porexemplo, Benthall; Polhemus, 1975; Blacking, 1977; Hanna , 1988; Hern,
1960; Howes, 1987; Leach, 1958; Obeyesekere, 1981; Tyler, 1988) . Campos particulares
que deram contribui ções recentes incluem antropologia médica e psiquiátrica (Devisch,
1983; Favazza, 1987; Frank, G„ 1986; Good, 1988; Kleinman , 1980 , 1986; Kirmayer,
1984; Martin , 1987; Scheper-Hughes; Lock, 1987), antropologia social (Jackson , 1981),
sociologia (Armstrong, 1983; Turner, B. , 1984) , filosofia (Johnson, 1987; Levin, 1985;
Tymieniecka, 1988), história (Bell , 1985; Bynum, 1987; Feher, 1989) , e crí tica literária
(Berger, 1987; Scarry, 1985; Suleiman, 1986) . Esta é naturalmente apenas uma amostragem
de trabalhos relevantes, e a lista segue se expandindo. [Para bibliografia adicional desde a
publicação da versão original deste capítulo em 1990, veja Lock ( 1993) e Csordas ( 1999a.
1999b)].
3 t O argumento que estou desenvolvendo sobre o corpo como fundamento existencial da
J cultura deve ser distinguido daquele de Johnson ( 1987), que analisa o corpo enquanto
fundamento cognitivo da cultura.
102
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
^
argumento presente, posto que a teoria da prática pode se estabelecer me-
lhor no corpo socialmente informado, como veremosj
Há outros modos de justificar a necessidade de um paradigma da cor-
poreidade, dos quais mencionarei um apenas. Mauss (1950 b), em sua frag-
mentá ria porém influente discussão sobre a noção de pessoa, sugeriu que
todos os humanos possuem uma noção de individualidade espiritual e cor-
poral. Ao mesmo tempo, ele argumentou que condições sociais particulares
103
r
104
A
A Corporeidacle como um Paradigma para a Antropologia
cm
/ A problem á tica de ambos, Merleau-Ponty e Bourdieu, é formulada
termos de dualidades incó modas. Para Merleau-Ponty, a principal dua-
lidade no dom í nio da percepção é a do sujeito-objeto, ao passo que, para
Bourdieu, no dom ínio da prá tica, é estrutura-prática. Ambos tentam não
mediar, mas colapsar essas dualidades, e a corporeidade é o princípio meto-
dológico invocado por ambos. O colapso das dualidades na corporeidade
exige que o corpo enquanto figura metodológica seja ele mesmo não-dua-
—
lista, isto é, n ão distinto de ou em interação com - um princípio antagó-
nico da mente. Assim, para Merleau-Ponty o corpo é um “contexto em
relação ao mundo” , e a consciê ncia é o corpo sejprojetando no mundo) para
^ ^
Bourdieu, o corpo socialmente informado é ( “princípio gerador e unifica-
^
dor de todas as práticas e a consciência é uma forma de cálculo estratégico
fundido com um sistema de potencialidades objetivas. Eu devo elaborar
brevemente essas visões como estão sintetizadas no conceito de pré objetivo -
de Merleau-Ponty e no conceito de habitus de Bourdieu
105
1
CORPO /SlGNIFlCADO / CURA
como realmente iguais, ou para ver quc o triâ ngulo n ão passa realmente de
três linhas rdacionadas por cerras propriedades geomé tricas, estamos fazen-
do uma abstração, n ão descobrindo o que realmente percebemos e depois
chamamos de triângulo ou ilusão. Aquilo que “realmente” percebemos é,
no primeiro caso, uma linha sendo mais longa do que outra, e no segundo,
o triângulo. Começar do ponto de vista objetivo (o triâ ngulo como objeto
geométrico e as linhas de comprimentos objetivamente paralelos) e retroce-
der analiticamente ao sujeito perceptivo n ão apreende precisamente a per-
cepção como um processo constitutivo.41
( Assim, MerJeau-Ponty quer que nosso ponto de partida seja a experi-
ência de perceber em toda a sua riqueza e indeterminação, pois, de fato, não
temos quaisquer objetos anteriores à percepçãô)Pelo contrário, “nossa per-
cepção termina nos objetos”, o que equivale a dizer que os objetos são um
produto secundário do pensamento reflexivo; no nível da percepção, não
existem ob/etos, nóssimplesmente estamos no mundo. Merleau-Ponty quer,
asse
^
então, pergunta ondeapercepção começ ela termina nos objetos) , ea
r ostac/nocorpõ Be quer(Tecuarjlo ( mundo objetivo/ e começar com o
^ ^
( corpo no mundajísso também deveria serpõssrvêTpara o estudo do sujeito
41
-
A referência de Merleau Pomy à desigualdade de linhas de uma ilusão de ótica é o bem
conhecido diagrama deMuller Lyer.Estudos transculturais sugerem que tanto a moldagem
-
da percepção geoméuica no ambiente comportamental (a hipó tese do mundo fruto da
carpintaria ) como fatores psicofisíológicos (variações na pigmentação retiniana) podem
ajudar a determinar se o diagrama é percebido enquanto ilusó rio (Cole; Scribner, 1974).
São essas mesmas diferenças que tornam importante que se comece com o sujeito perceptivo
ao invés do objeto analiticamente constituído no estudo da percepção como processo
/ psicocultural, especialmente quando mudamos da percepção visual para autopercepção.
106
A Corporeidacle como um Paradigma para a Antropologia
^
capturar aquele momento de transcêndê nclãliÕ quãrapercepção começa, e,
em meio à arbitrariedãdèlf à mdeterminação, constitui e é constituída peia
^j ju
ilí
j cultura
^
Pode-se objetar que o conceito de pré-objetivo implica que a existên-
cia corporificada se encontra no exterior ou antes da cultura. Tal objeção
não estaria de acordo com a idéia de Merleau-Ponty (1962, p. 303, 311),
!
I
107
J
CORRO / SIGNIFICADO / CURA
42
-
Hallow ell (1955) observa de forma semelhante que os recursos ambientais náosáo
objetificados na qualidade de “recursos” até serem reconhecidos como tal por um povo eatí
que haja uma tecnologia desenvolvida para a sua exploração.
4 > 0 primeiro árbitro dedara, “Eu apito a jogada como ela é”. O segundo replica, “ Eu apito
ela como eu a vejo”. 0 terceiro anuncia, “A jogada n ão é nada enquanto eu não apitar’.
44 Bourdieu rejeita a fenomenologia de Schutz e dos etnometodologistas de um lado ede
/ -
Sartre de outro, citando favoravelmente os antigos trabalhos de Merleau Ponty (1942)
. sobre comportamento.
m
£
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
^
Bourdieu (1977, p. 72) vai além dessa concepção de habitus como
uma coleção de práticas, definindo-o como um sistema de disposições du
ráveis, princípio inconsciente e coletivamente inculcado para a geração e a
-
estruturação de prá ticas e representações. Essa definição é promissora, pois
focaliza o conteúdo psicologicamente internalizado do ambiente compor-
tamental. Para os nossos propósitos, é importante que o habitus não gere
práticas assistemáticas ou aleatórias, porque se trata dcj
.
[ .J princípio gerador e unificador de todas as prá ticas, o sistema das
inseparáveis estruturas cognitiva e avaliativa que organizam a visão do
mundo de acordo com as estruturas objedvas de um determinado esta-
í do do mundo social: esse princípio nada mais é do que o corpo social-
mente informado, com seus gostos e desgostos, suas compulsões e
repulsões, com, numa palavra, todos os seus sentidos, isto é, não apenas
i
i
áí A distinção entre existência e ser é essencial ao pensamento de Merleau-Ponty e, em geral , h
à fenomenologia e à psicologia existencial. Em termos antropológicos, ela pode ser grosso íi
modo traduzida como a distinção entre ação intencional e cultura constituída.
109
J
CORPO / Si GNIFICADO / CURA
<( Náo acredito que a referência de Bourdieu a um princípio gerativo implique uma busca
por uma “gramá tica profunda das práticas”, como numa reminiscência da linguística de
Chomsky. Na medida em que o princípio gerativo e unificador de Bourdieu é o corpo
110
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
socialmente informado, ele deve ser considerado como dado num sentido existencial ao
invés de inato no sentido da instalação cognitiva. Bourdieu (1977, p. 10-30) inclui
explicitamente Chomsky em sua cr ítica da concepção objetivista da regra na teoria social e
lingu ística. A distinção crítica é que o habitus e suas disposições consumavas são não-
representacionais, ao contrário do modelo objetivista e de suas regras constitutivas. Ao explicar
prá ticas governadas por regras desconhecidas pelos agentes e, assim, fora de sua experiência,
ele evita a “falácia da regra que implicitamente coloca na consciê ncia dos agentes individuais
um conhecimento constru ído contra aquela experiência” (Bourdieu, 1977, p. 29).
*7 Sobre a relação entre Merleau-Ponty e o estruturalismo propriamente dito, veja Edie
(1971). Boon (1982, p. 281) oferece uma breve mas inspirada análise do paralelismo
entre as tentativas m ú tuas de Lévi-Strauss e Merleau- Ponty de superar a dualidade sujeito-
objeto promulgada por Sartre: “ Para Lévi-Strauss, totemismos institucionalizam relações
recíprocas objeto-objeto do ponto de vista do sistema de classificação totalizante ( langue) .
Para Merleau-Ponty, pronomes, arte, etc., institucionalizam relações recíprocas sujeito sujeito
-
(artistas e pronomes ‘veem’ objetos enquanto sujeitos) do ponto de visra da intersubjerividade.”
|i
111
i
-
k'
CoRTo / SiGNincADo / CURA
1
45
Roman Catholic MolhaAngelica: Freira Católica Romana Madre Angélica. Praise the Lord:
Louvemos ao Senhor (N. deT.).
45
Eu oito o termo “imagérico mental ” porque ele levanta a questão de nossas distinções
problemáricas entre corpo e mente, porque ele tende a implicar um foco no imagérico
«suai ao invés de na integração dos sentidos em processos de imagem (confira Ong, W.,
1967 sobre o “sensorium”), c porque ele desqualifica a necessidade de examinar a relação de
imagem eemoção.
112
1
113
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
114
A Corporeiclacle como um Paradigma para a Antropologia
I ,
115
! IJí
r;
CORPO /SIGNIFICADO / CURA
116
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
118
1
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
li
CORPO/ SlGNIFlCADO / CURA
120
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
121
I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
n ão tinha “dor no pulmão”. Ela foi motivada, cm vez disso, por uma sensa-
ção de que a mulher cuja inspiração caiu no vazio era aquela identificada por
uma outra palavra de conhecimento como necessitada de aconselhamento.
Já que a mulher mal ajustada aparentemente não podia reconhecer tal ne -
cessidade, e já que a própria mulher mais jovem estava treinando para ser
conselheira, esta ú ltima tomou a iniciativa de se apresentar, prevenindo o
: desapontamento e oferecendo uma intera ção de apoio.
O jogo entre modalidades sensoriais, intera ção social e atribui ção de
significado é ilustrado pela experiência de uma outra pessoa que pude acom-
panhar durante a sessão. Ele tinha 30 anos de idade, era casado c trabalhava
como assistente da gerência de uma loja. O episódio ocorreu depois de um
período de oração de cura guiada durante o qual um dos temas do l íder era
a necessidade de se curar das experi ências de rejeição. O homem estava rece-
bendo a oração com imposição de m ãos de um amigo que o acompanhava
e de um membro da equipe de cura; a m ão livre deste ú ltimo se agitava
continuamcnre durante a reza. O jovem começou a rir, e continuou por
vários minutos até que um dos l íderes reagiu levando os três para o fundo
do saguão, onde a oração podia seguir com maior privacidade. Ele pergun -
-
tou ao jovem o que estava acontecendo, agachando se ao lado dele enquan -
to ele e o amigo sentavam e o membro da equipe de cura ficava de pé do
Jado deles. O homem disse que tinha respondido ao tema da rejei ção, e
depois ao da passividade, com a imagem de um riacho correndo sobre pe-
dras através de um muro quebrado. Ao surgir esta imagem ele sentiu alegria
e começou a rir. Ele declarou ao l íder que aquilo tinha sido um duplo al ívio
para ele, tanto pelo lado de n ão estar sendo aceito por outros como pelo de
que normalmente ele apenas ria por dentro, e de repente foi capaz de rir
abertamente. Seu amigo então relatou a imagem de uma m á quina de lavar
roupas em a ção, o que foi entendido como uma “confirma ção” divina de
que a experiência era de limpeza e libertação da emoçã o negativa. O l íder do
grupo de atendimento resumiu dizendo que Deus queria continuar esse
processo, mas avisando que o jovem seria “testado”. Esse período de acom -
panhamento durou menos de dez minutos.
Nesse breve exemplo encontramos a invocação de uma influência ne-
gativa culturalmente comum, levantada pelo jovem através de um imagéti-
co ao mesmo tempo visual e cinestésico. Em contraste com a compulsão
122
'I '
r
nal de rejeição e passividade. Isso exclui a experiê ncia t ípica para as mulheres
norte-americanas em contextos de devoção, do tipo: “ Eu n ão me sinto mais
I|
rejeitada porque me sinto amada por Deus.” Enquanto a variante feminina
tradicional substitui a rejeição pela aceitação (frequentemente passiva na
imagem somá tica de ser segurada e nutrida) , esse exemplo masculino a subs- :
titui por alegria (ativa na capacidade de rir altojj
Como no caso do gracejo, que como Bourdieu (1977, p. 79) assinala
muitas vezes surpreende tanto o seu autor quanto a audiência, as imagens
religiosas espontâ neas invocam “aquela parte das prá ticas que permanece
obscura aos olhos de seus pró prios produtores”, o reino da possibilidade
:
123
1
CORTO / SIGNI FICADO / CURA
oculra no qual as prá ticas são “objetivamente ajustadas a outras prá ticas e às
estruturas cujo princípio de produção é ele mesmo o produto”. Através
dessas imagens corporificadas, as disposições do habitus são manifestadas
em comportamento ritual. Por serem compartilhadas em um n ível abaixo
do consciente, elas são inevitável mente confundidas, e o princípio de sua
produ ção é identificado como Deus e n ão como o corpo socialmente infor-
mado. Esta conclusão deve tanto ser diferenciada da abstração fiincionalista
de Durkheim - do sagrado como auto-afirmação da moralidade social e da
solidariedade - quanto de uma aceitação encarnada de que “ Deus” habita o
A
U
/
corpo sodalmente informado. Em vez disso, ela sugere que o corpo vivido
é um princípio irredut ível, a base existencial da cultura e do sagrado /
^
0 entrelaçamento, a mimese e a intersubjetividade
-
HL Uma vez eu estava orando sobre um homem [para curar]. Ele tinha
um tumor no cérebro e o doutor o mandou para casa e disse, “ Esqueça.
Acabou.” E eu tinha uma imagem muito forte do tumor encolhendo.
Quando ele saiu o tumor ainda estava lá, veja só, mas eu senti, quando
eu tinha minha m ão sobre a cabeça dele, eu senti como se fosse uma
bola na mão e ela foi ficando cada vez menor. E eu apenas, não só através
do sensorial, mas através de uma imagem na minha mente, eu senti que
estava encolhendo. Bem, eu acho que foi uma ou duas semanas mais
tarde, e [ele voltou e] disse que os médicos simplesmente não sabiam o
que havia acontecido. Sumiu. Não estava mais lá.
TC: Espere um pouco, você sentiu com a sua mão, encolhendo também.
HL: Não estava encolhendo na realidade, o tumor ainda estava ali [den -
tro da cabeça dele]. Mas eu o senti na minha m ão. Eu o senti na minha
mão encolhendo. Mas n ão foi na realidade. E eu tinha, e então eu tinha
uma imagem dele encolhendo, também, na minha mente.
124
1
125
m
w
COHro / SlGNIFlCADQ / CURA
126
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
cia chega a scr compreendida como a elocu ção de uma mensagem inspirada
ou profecia divina. Ela pode ser falada ou entoada de improviso, e pode ser
usada na devoção privada ou cm um ritual coletivo. É um princípio doutri-
n á rio que os poderes expressivos da glossolalia transcendem as inadequações
das l ínguas naturais (veja Csordas, 1997).
127
m!
CORtWSlGNinCADO / CURA
51 A narrativa de Field pode ser comparada com a proibi ção dos tambores entre escravos
africanos nos Estados Unidos pré-Guerra Civil . Aqui havia uma situação onde a grande
ameaça não era explicitameme linguística, mas semanticamente era uma forma mais completa
de comunicação corporificada na medida em que verdadeiras mensagens podem ser enviadas
por “tambores falantes''. Da perspectiva dos donos de escravos o tamborilar era , ao mesmo
tempo, ininteligível e uma ameaça concreta à ordem social .
128
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
131 |
l|
J
1
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
130
1
i -
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
"
i I li
tica, que baseamos na falta de um componente semântico da glossolalia e
no seu consequente c claro desafio aos câ nones da inteligibilidade. Parece
que a glossolalia oferece n ão apenas uma crítica da linguagem, mas uma ; '
l
asserção positiva sobre a expressividade, sendo sua força crítica realçada pela
força moral de sua reivindicação ser pura comunicação, incapaz de enunciar
quaisquer “palavras erradas”.
O aspecto totalizante da glossolalia n ão impede a possibilidade acima
observada dos glossolalistas terem mais de uma configuração fonética sintá-
tica ou glosa, usadas em diferentes situações e comportando diferentes va- !
lências expressivas e emocionais. Podemos perceber isso como uma t:
contradição, ou como um dos frutos da indeterminação e do “gênio para
ambiguidade”. Contudo, a multiplicidade de l ínguas reverbera com a su - !
-
gestão de Merleau Ponty de que a forma verbal pode não ser tão arbitrária :
quanto a teoria lingu ística a teria considerado. Ele sugere que as estruturas
fonéticas de várias línguas constituem “vários modos para o corpo humano 1:
cantar as gló rias do mundo e em último recurso vivê-las” (Merleau-Ponty,
1962, p. 187). Da perspectiva da corporeidade, portanto, é compreensível
que a glossolalia adapte seus contornos fon éticos aos contornos afetivos de
diferentes situações; e numa validação inesperada da metáfora de Merleau-
Ponty, eu noto outra vez que a glossolalia pentecostal é consistentemente
tematizada como oração de glorificação, e que é frequentemente entoada
ou salmodiada com linhas melódicas e harmonias improvisadas. I.
131
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
>1 Porque os sistemas rituais de diferentes ramos do cristianismo carism á tico variam de algum
modo, a discussão nesta sessão se restringe à Renovação Carismá tica Católica Romana.
132
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
111f
Espírito representa a corporeidade na prática ritual de diferenças no habitus
geracional e de classe.
.
A perspectiva da corporeidade também pode nos ajudar a entender a
relação entre oração glossolálica e uma segunda forma de linguagem ritual
carismá tica, a profecia. A profecia inclui um componente semântico do
tipo mais sagrado, pois a elocução profética é compreendida como uma
mensagem direta de Deus. O falante não é inteiramente passivo, já que deve
“discernir” quando, onde e se deve proferir as palavras inspiradas, mas a
elocução é invariavelmente na primeira pessoa, tendo Deus como falante
ostensivo. A profecia carismática raramente prediz o futuro, mas em vez í
Iíi
disso estabelece ritualmente um estado de coisas no mundo (por exemplo,
“Vocês são o meu povo, eu estou fazendo um grande trabalho com vocês,
sacrifiquem suas vidas por mim”). A natureza gestual da elocução profé tica
é evidente no seu conteúdo, quase como uma forma verbal de apontar com
o dedo. Esse significado gestual é concretizado na prá tica por um vínculo
direto com a glossolalia, no qual a profecia pode às vezes ser expressa pri-
meiro em línguas, e subseq úentemente “ interpretada” numa elocu ção ver -
nacular idêntica a qualquer outra profecia. A diferença entre oração e profecia
em línguas é inteiramente baseada no tom de voz, volume e estridência.
Assim, por meio do corpo, a relação entre glossolalia como oração e como
í
profecia é estabelecida n ão como relação atividade/ passividade, mas como 1
133
!
í l íi!
I
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i y
V
134
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
l í i!
Na medida em que o argumento acima delineado logra vincular ou
integrar domínios de percepção, prática e experiência religiosa, eu diria que
um paradigma da corporeidade tem, de fato, implicações paradigm á ticas. I !
Nas duas seções de conclusão vou discutir algumas dessas implicações. Ten-
do me concentrado no domínio da experiência religiosa, eu me voltarei
135
m
Couro / SIGNIFICADO / CURA
136
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
13 '
jd
1
138
A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia
humana mais
do que uma realidade objetiva, qualquer coisa pode ser perce -
, ndo das condições e configuração de circuns- í
bida como “outra” depende
tâncias, de
modo que definir o sagrado se torna um.problema etnográfico.^
Então, o significado
paradigm á tico da corporeidade é oferecer os funda -
uma identificação empírica (n ão empirista) de
mentos metodológicos para : f l l;
de, e para estudar conseqiientemente o sagrado como
instâ ncias dessa alterida
uma modalidade da experiência humana. §1
Dualidades colapsadas: antropologia psicológica e o corpo no
mundo
51 Bourdieu talvez não se saia tão bem quando vai além da dial é tica para o colapso das
li
dualidades, permanecendo fixado em oximoros articulados sobre disposi ções espontâ neas,
improvisação regulada , ou invenção não-intencional . Assim , a discussão desta seção se
debruça mais sobre o trabalho de Merleau-Ponty.
:
55 Eu apresentei o conceito de Bourdieu do habitus para evitar o lapso da fenomenologia na
139 31
m !
V
railisesJldeParasujeito
levar adiante um paradigma da corporeidade, é vital aplicar aná-
e objeto a nossas distin ções corpo
e mente entre
entre , selfe
a
60
As ramificações são grandes demais para abordar aqui . Considere apenas a dependência da
teoria do desenvolvimento cognitivo, que deve muito a Piaget , da noção objetiva de
representação intervindo entre est í mulo e resposta (Kohlberg, 1969) . Uma fenomenologia
do corpo não postula esse tipo de objeto e não se concentra na intermediação da referência
e da representação, mas na relação imediata e na conformidade do corpo com o mundo I I:
( Hottois, 1988) .
|
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141
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CORTO / SIGNIFICADO / CURA
142
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1'
!
61 A própria distin ção entre duro e macio está imbu ída de machismo, pois n ão há d úvida sobre
sua conotação cultural de que dados sólidos são mais realistas e conseq úentemente melhores. !
,
! i
143 !
Couro / SIGNIFICADO / CURA
^
ência interior” subjetivista. defini ção mais fecunda do real é a que foi
citada acima , uma serie indefinida dc pontos dc vista pcrspectivados, ne-
nhum dos quais exaure os objetos dados. A objetividade não é um ponto
62
144
A Corporeldade como um Paradigma para a Antropologia
Reprise
a
1
CORTO / SlGNIFICADO / CURA
^
ao colapso da distin ção convencional entre sujeito c objeto Essc colapso
nos permite investigar como os objetos culturais (incluindo sujeitos) são
constitu ídos ou objetificados, n ão nos processos de ontogênese e socializa-
ção de crianças, mas no fluxo c na indeterminação em curso da vida cultural
^
adulta Sem d úvida os exemplos empíricos que escolhi (espíritos malignos,
imagético muldssensorial, glossolalia, profecia, e “ Repousar no Espírito”)
vêm do domínio especializado da prá tica ritual. Poré m , se, como suspeito,
a corporeidade possui um escopo paradigm á tico, as vá rias an álises de outros
dom ínios que começaram a ser publicadas na última d écada partilham de
caracterísdcas comuns que podem ser elucidadas em futuros trabalhos. Isso
é sugerido, como argumento, pela maneira como a corporeidade coloca
novas questões sobre experiência e percepção religiosas além daquelas nor-
malmente formuladas na antropologia psicológica. É ainda enfaticamente
sugerido pela aplicação das an álises sujeito-objeto a outras dualidades (men-
-
te corpo, rr Outro, cognição-emoção, subjedvidade-objetividade) que sub-
^
jazem a grande parte do pensamento antropológico.
i
146
ê
CAPÍTULO TRÊS
A História da Aia
I I
’i
A
CORPO / SlGNinCADO / CURA
especializado para um lar cristão que inclu ía mais membros que uma fam í-
“ ”
lia nuclear. Existia o ofício de aia , assumidamente sem função reproduti -
va, mas compreendido como um papel no qual algumas mulheres tinham
responsabilidades adicionais para com o serviço da comunidade, especial -
menre com respeito ao bem-estar de outras mulheres, mas sempre sob a
“chefia” ou autoridade masculina. Quase como um presságio , na principal
comunidade de crentes, o ofício de aia foi suspenso por vários anos, presu-
mivelmente porque as que o praticavam estavam se arrogando mais autori -
dade do que era visto como biblicamente justificado pela elite dirigente
masculina. A elite dirigente dessas comunidades, que se consideravam pos-
tos avançados de um reino vindouro de Deus (cuja extensão lógica me pare-
cia ser a Rep ú blica de Gilead de Atwood ), comportava-se n ã o como
comandantes dentro de um Estado policial religioso, mas, numa veia ligei-
ramente mais burocrá tica, como “coordenadores” (Csordas, 1997).
A possibilidade de ver os carismá ticos como “protogiladeanos” veio à
baila durante meu estudo do seu sistema de cura ritual quando descobri o
rito que descreverei abaixo. Deixe-me notar logo de sa ída que alguns católi-
cos carism áticos são bastante ativos na oposição pol ítica ao aborto, instiga-
dos pela influência dupla de abraçar a posi ção conservadora da hierarquia
católica romana e abraçar o fimdamentalismo conservador do neopentecos-
ralismo. Alguns são, além disso, ativos numa campanha para lograr o reco-
nhecimento m édico daquilo que chamam de “síndrome pós-aborto”, uma
síndromepsiquiá trica fabricada, formulada nos moldes da definição de “trans-
torno de estresse pós-traum á tico” encontrada no Manual de Estatística e
Diagnóstico da Associação Psiquiátrica Americana. Tal transtorno é, estrita-
mente falando, um distú rbio culturalmente específico no sentido de ser
relevante apenas no âmbito da cultura carismá tica, que define a experiência
do aborto como necessariamente traumá tica.
Ao deixar esse ponto temporariamente de lado, cabe notar que as prá -
ticas de cura que discutimos entre carismá ticos católicos mostram uma uni -
formidade notá vel através das regiões e localidades, ao menos na Am érica
148
'
!
A História da Ala
B
entre mães, que rapidamente volta o foco para o aborto e argumenta que a
dor e a culpa são comuns entre as mulheres que escolheram abortar.
Os autores narram dois casos de oração para tais mulheres. O primeiro
foi o de uma mulher que tinha feito um aborto, e também tentara abortar
Para uma discussão abrangente da cura carismática católica, veja Csordas ( 1994a) e McGuire
( 1982 , 1983) .
65 Para uma aná lise cultural da perda de uma gravidez desejada que inclui respostas simbó licas
li
e religiosas, veja Layne ( 1992).
:ií
<
149
m
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
outra filha - agora com 1S anos de idade - que estava tendo frequentes
explosões contra membros da fam ília. Durante uma missa oferecida para o
feto abortado c para “qualquer parte da” filha viva que tivesse morrido du-
rante a tentativa de aborto, a mulher adulta caiu no ch ão e experimentou
todas as dores e contrações do parto, depois que os curadores a iniciaram
simbolicamente para que ‘entregasse seu bebê a Jesus e Maria para ser cuida-
do”. Subseq ú entementc a mulher afirmou que suas dores crónicas nas cos-
tas melhoraram , bem como as violentas explosões da sua filha. Ambas
mudan ças foram interpretadas pelos curadores como evid ê ncia de alívio
"do trauma do aborto”. O segundo caso foi o de uma mulher para quem a
cura de dor e de ódio de si por ter feito um aborto nove anos antes causou
a emergência de uma variedade de outras dores, incluindo os efeitos perina-
tais de sofrimento vivenciado por sua própria mãe com a morte do pai e
raiva dos parentes que n ão permitiram que a mulher grávida visitasse o
moribundo, assim como os efeitos de ter nascido com o cordão umbilical
enlaçado no pescoço e ter sido fisicamente e sexualmente abusada durante a
infinda.
Esses exemplos exibem uma etnopsicologia na qual o aborto (num grau
maior que fetos perdidos ou natimortos) é um agente patogênico poderoso,
e no qual o ritual de cura é um poderoso e ocasionalmente dramático antído-
to. 0 rito frequentemente indui técnicas imagé ticas específicas. Linn, Linn e
Fabricant (1985, p. 138-139) descrevem quatro passos: 1) a paciente visuali-
za Jesus e Maria segurando a crian ça, e a paciente a segura com eles, pedindo
o perdão da deidade e da crian ça por qualquer mal que tenha feito à crian ça
e é instruída a imageticamente “ver o que Jesus ou a criança dizem ou fazem
em resposta a você”, e a perdoar com eles qualquer outra pessoa que possa
ter machucado a crian ça; 2) a paciente escolhe um nome para o feto morto
e simbolicamente o batiza, com a instru ção de “sentir a água purificando e
renovando todas as coisas”, garantindo assim ao feto o status cultural de
uma pessoa e, de fato, ritualmente “desfazendo” o aborto; 3) a paciente reza
para que o feto receba amor divino, e é instru ída para imageticamente “co -
Jocá-lo nos braços de Jesus e Maria e vê-los fazer todas as coisas que você
não pode fazer” e para pedir ao feto que se torne um intercessor para a
paciente e a família da paciente; 4) a paciente oferece uma missa para a
crian ça e, enquanto está recebendo a Eucaristia, é instru í da a “deixar o amor
150
A História da Aia
c o sangue misericordioso de Jesus flu írem através de você para a criança e para
todos os outros membros falecidos de sua árvore familiar”.
O grau de vividez multissensória que pode ser atingido nisso que po-
demos chamar de performance imagética corporificada (veja também Csor -
das, 1994a) é evidente no seguinte caso narrado por uma equipe de dois
curadores carismá ticos (G e H):
G: [...] uma senhora sobre quem n ós oramos por causa de um aborto
[estava tão agitada que] a uma certa altura ficou roxa... Em todo caso,
n ós pedimos ao Senhor se ela podia ter a visão do seu bebé, bebê aborta-
do. E ela fisicamente pôs as mãos, braços e mãos, em concha, como se
estivesse segurando um bebê. E se você a visse, se você visse qualquer um
I
de nós, provavelmente pensaria que estávamos todos malucos. Mas se
você a visse, era como se ela estivesse segurando um bebê. Eu quero dizer ii
! •!
que ela estava ali assim. E falando com ele. Claro que não havia nada ali I il if
que algu ém pudesse ver. Mas nós acabávamos de perguntar ao Senhor se
Ele permitiria que ela segurasse o bebê. E no momento seguinte ela
estava segurando o seu bebê.
í:
TC: Vocês perguntaram em voz alta com ela ou vocês perguntaram [a
Deus] silenciosamente se ela poderia...
G: Não, nós perguntamos a ela primeiro, em voz alta. E ela disse que
queria. E aí n ão tinha nada que a fizesse desistir. Então ficamos lá um
f t:
bom tempo até que ela conseguiu deixar o bebê ir.
H: E nós apenas ficamos quietos e continuamos orando em silêncio e r' iíi 1
com as mãos sobre ela. Para que então Ele [Deus] adentrasse nela... liiíí h
G: Verdadeira manifestação física. .. li ! lij íí
H: Dava para sentir por todo canto, no ar, o Senhor apenas a amando.
C: Ela teve a experiência física de estar segurando o bebê? ii !
G: Oh, sim. Ij, j!
TC: E o que significava o roxo no rosto dela?
I; I í :
G: Bem , aquilo foi antes [da sequ ência imagé tica]. Eu acho apenas que I {
foi a culpa e ela estava de luto.
I1
151 íí i
ill
1
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
H: Veja, o negócio é que ela n ão queria admitir que tinha qualquer coisa a
ver com o aborto. Era "tudo culpa do marido”. E quando ela finalmcntcsc
deu conta de que teria de assumir também uma responsabilidade.. .
G: Ela começou a gritar.
H: E a í foi meio assustador, sabe. Mas [nós] ficamos ali, só a amando, c
Ele estava l á com a gente. Então foi uma experiência bonita.
G: E uma coisa muito interessante nisso é que, quando nós lidamos com
a cura de um aborto, nós sempre perguntamos se eles tê m um senti-
mento de que vai ser menino ou menina e se eles têm algum nome... se
eles escutaram um nome ou viram um nome ou o Senhor colocou um
nome em seu coração. E eu esqueci que nome era, mas era uma menina.
E os dois... nós tratamos os dois separadamente. Os dois tiveram a sen-
sação de que era uma menina e ambos vieram com o mesmo nome.
Marido e mulher. E eles não tinham consultado um ao outro. Porque
nós a vimos antes, e a conduzimos para fora da sala. Não havia comuni-
cação entre os dois. E os dois sentiram que era uma menina, e os dois
deram com exaramente o mesmo nome. E nenhum deles tinha falado
sobre isto desde o dia em que aconteceu o aborto. Nunca tocaram mais
no assunto. Então o que eu quero dizer é que n ão tinha como eles terem
dado um nome ao bebé... de eles terem ao menos pensado nisso antes
do aborro.
152
A Histó ria da Aia
:
vável que a suplicante com sua crian ça tenha sido guiada através de toda
uma performance imagé tica de batizar o bebê e finalmente entregá-lo nas ! !;
mãos de Jesus.
Enquanto a forma imagética e a qualidade eidética dessas experiências
definem-nas como sagradas, seu conteúdo cumpre a terceira fun ção tera-
pê utica da elaboração de alternativas. Duas das alternativas estão implícitas
nesse episódio. A primeira é a de ter de fato um bebê, elaborada no embalar
imagético do bebê e a sua temá tica cultural de intimidade mãe-criança. A
segunda é a de o feto morrer de uma maneira culturalmente apropriada,
isto é, como um bebê com gênero definido, nome e batismo cristão. ili! ! .
Esta ú ltima alternativa é que é retomada enquanto parte da realização
í! :
da mudança, pois parte da eficácia da performance ritual é precisamente
transformar o feto numa pessoa. Uma pessoa nesse sentido é uma represen-
Iill
153
ifm
1
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
154
A Histó ria da Aia
to, em todos esses exemplos, o contraste com a prá tica carismá tica não
poderia ser mais chocante: enquanto nesses casos uma criança já nascida
ainda não é uma pessoa, na cura carism á tica um feto que jamais nascerá
ninda è uma pessoa. A diferen ça é, sem d úvida, fundamentada na circuns -
tância de que nos casos do primeiro tipo, em que a mortalidade infantil é
alta, n ão se espera que nenhuma crian ça necessariamente sobreviva, enquan-
-
to na classe m édia norte americana dos carism á ticos jamais se espera que
qualquer criança morra. Apesar disso, em cada caso é a ação ritual de nome-
ar (e batizar ou algo equivalente) que confere o estatuto cultural de pessoa.
Fenomenologicamente reforçada pela performance imagé tica, uma parte da
realização da mudança na cura de aborto é a criação de uma pessoa pela qual
se pode posteriormente orar e que pode ser vista como algu ém que está
“com Jesus”.
Mas isso n ão é tudo, pois nesse caso a realização da mudança inclui o
movimento dual de “aceitar responsabilidade” e “abrir mão”. Na considera-
ção dos curadores os gritos da suplicante devem ser categorizados como um
tipo de choque terapêutico que foi amortecido enquanto eles “a amavam
em colaboração com a presença divina”. A justaposição um tanto peculiar
de “assustador” e “ bonito” para descrever a situação traz uma mensagem
dual relacionada à eficácia da dinâmica situacional. Redefinir uma situação
assustadora como bonita é dizer que aquilo que era potencialmente negati-
vo e perigoso foi, de fato, altamente bem-sucedido - beleza é sin ónimo de
eficácia. Ao mesmo tempo, é um reconhecimento de que a dinâmica da
situação quase saiu do controle, mas n ão saiu, e aqui, beleza é sinónimo de
controle. Finalmente, a realização de “abrir mão” é o epitome da entrega
carism á tica do controle à deidade em troca de liberdade emocional. Nova-
mente aqui encontramos um significado dual. Por um lado, a suplicante
“abre m ão” da culpa expressa em seu grito catártico, e, por outro, ela “abre
mão” da tão estimada intimidade materna e da consternação associada à sua
ausência ao desistir do bebê imagé tico.
Em resumo, no rito carismá tico de cura de abortos, nós vemos o po-
der retó rico da performance imagé tica multissensória na criação de uma rea-
lidade cultural protogileadeana para mulheres que participam do sistema de
cura ritual da renovação carism á tica. Uma clara escolha ideológica é feita
n ão para fazê-las se sentir bem em relação ao que fizeram, mas para presu-
155
hi
CORPO / SIGNIPIQVDO / CURA
mir sua culpa e absolvê-las através do perd ão divino; n ã o para afirmar a pré-
pessoalidade do foto, mas para criar uma pessoa e atribuir-lhe uma identida-
de, nomeando-a/ batizando-a e especificando o seu gênero; n ão para enfatizar
o té rmino da gravidez da mulher e sim o trauma da morte do feto, e resol-
vê-lo encomendando a alma do n ão-nascido ao cuidado do divino.
Em sua importante an álise cultural do debate sobre o aborto nos Esta-
dos Unidos contemporâneo, Faye Ginsburg (1989) identifica a série daqui-
lo que ela chama de “campos de batalha interpretativos” na luta entre as
forças pró-escolha e pró-vida. O ritual carism á tico n ão é uma arena pú blica,
mas um exercido ideológico interno onde o que está em jogo é a intensifica-
ção da visão de mundo que liga as fileiras dos combatentes antiaborto pela
representação ritual dessa visão de mundo de forma a apresentar suas qualida-
des dóxicas. O desenrolar espontâneo das imagens multissensórias é um pro-
duto de disposições prof úndamente inculcadas de um há bito patriarcal, e,
por sua espontaneidade, é um poderoso dispositivo retó rico de uma reali-
dade etnopsicol ógica. Nessa capacidade, a cura ritual vai além da preocupa-
ção com a pessoalidade do feto para desempenhar um poderoso papel no
que Ginsburg (1989, p. 110) chama de “renegociação de gravidez, parto e
criação dos filhos [...] na construção da identidade de gê nero feminino na
cultura americana”. Desde a legalização do aborto, não se pode mais pressu-
por que a maternidade tenha um status atribu ído e seja o resultado inevitá-
vel da gravidez concebida como um processo inevitável da vida das mulheres.
Ela se torna, em vez disso, um status adquirido, o resultado de uma decisão
que “vem a significar uma afirmação de uma constru ção específica de iden-
tidade feminina”, frente à necessidade de estratégias retó ricas para reprodu-
zir a cultura na ausência de sua auto-reprodução anteriormente presumida
(Ginsburg, 1989, p. 109). O ritual que desfaz o aborto é exatamente esse
ripo de estratégia, restituindo através da performance imagé tica a inevitabili-
dade da gravidez, do parto e de cuidar dos filhos. Ginsburg (1989, p. 110)
argumenta que um aspecto essencial da ação pol ítica pró-vida é “o redese-
nhar de uma paisagem de gênero através de oração, demonstração e esforços
para converter outros, especialmente mulheres em estado vulnerável e limi-
nar de uma gravidez indesejada”. A cura carism á tica de abortos estende este
novo desenho desde mulheres que escolhem sustentar uma gravidez indeseja -
da até mulheres que alguma vez escolheram não levar a gravidez adiante.
156
A Hist ória da Aia
!
i
llil !
67
Sou grato a Susan Sered por chamar minha atenção para o caso japonês.
(!I
157 wm
1
CORPO/ SIGNIFICADO / CURA
a Minha discussão de mizuko kuyo e aborto no Japão se apóia forremente no excelente relato
de LaFJeur (1992).
158
A Histó ria da Aia
I!
69 A necessidade é às vezes concebida sob a metáfora da “seleção de mudas", executada a fim de
aumentar a viabilidade daquelas que sobrevivem (LaFleur, 1992, p. 99). A noção de tatari,
de que os espíritos daqueles que morrem antes do tempo, de forma não natural ou injusta
podem procurar se vingar nos vivos, é muito antiga no Japão e atualmente é um assunto
muito controvertido em relação à prática de mizuko kuyo (LaFleur, 1992, p. 55, 163- 172).
Ui
159
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
mo ritual da água e da nomea ção. No ritual carism á tico imagé tico a água é
usada para batizar o feto, um ato que assegura a reunião do feto com Jesus.
No caso japon ês, a água é um elemento essencial na própria definição do
feto: o termo mizuko significa literalmente “criança das águas”, que em sen -
160
A História da Aia
tido literal rcfcrc-se aos fluidos amni ó ticos, enquanto em sentido ontológi-
co refere-se ao estatuto amb íguo do feto que estivemos discutindo. En-
quanto para carism á ticos o batismo de água e o retorno a Jesus representam
a constituição cultural do feto como pessoa, o uso do simbolismo da água
no Japã o real ça a fluidez do ser que caracteriza o estatuto ontológico do
feto. Dado que no budismo a imperman ência, o sofrimento e a ausência do
sujeito são características fundamentais de todas as coisas, “o feto enquanto
mizuko no processo de deslizar do seu relativo feitio de ser humano para um
estado de liquefação progressiva n ão está fazendo mais do que seguir a lei
mais básica da experi ê ncia” (LaFleur, 1992, p. 28). Uma observação seme -
lhante pode ser feita a respeito de dar um nome ao feto abortado. Para os
carism á ticos americanos, a nomeação é um aspecto do batismo que contri-
bui para a objetifica çã o do feto enquanto pessoa. Para os japoneses, embora
o processo de conferir um nome ancestral póstumo { kaimyo ) seja parte fre-
quente do ritual, muitas vezes é discutível se o mais apropriado é permitir
que um feto sem nome “deslize de volta” ao pré-ser ou dar-lhe um nome,
promovendo-o assim a um estado comparável à ancestralidade.
A civilização contemporânea avan çou demais no processo de globali-
zação para nos permitir supor que os dois rituais que vimos discutindo sã o
necessariamente isolados um do outro. Werblowsky (1991, p. 327, 328)
refere-se criticamente a alegações de que há um movimento nos Estados
Unidos que está aprendendo com o Japão a preencher as lacunas no cristia-
nismo, e sarcasticamente pergunta se “alé m de sua crença em almas eles
também acreditam ( no melhor estilo japonês) em árvores geneal ógicas de
almas, nas quais as almas até mesmo de crianças n ão-nascidas permanecem
intimamente relacionadas com os ancestrais”. Nesse aspecto, Werblowsky
parece confundir o movimento associado ao ró tulo de “catolicismo zen”
entre monges católicos progressistas com a bem diversa e nitidamente mais
conservadora Renovação Carismá tica Católica. O primeiro certamente cem
alguma ligação com a revista católica de estudos religiosos baseada no Japão
na qual o pró prio artigo de Werblowsky aparece. No seu pró prio texto,
contudo, ele implicitamente se refere à Renovação Carismá tica Cacólica,
inclusive citando o trabalho de Linn, Linn e Fabricant. Embora somado ao
catolicismo zen haja algum proselitismo sobre o mizuko kuyo da pane dos
budistas japoneses no Oeste (confira LaFleur, 1992, p. 150, 172), se tal
161
Hi
J
influ ê ncia está presente entre carismá ticos, ela é certamente menos direta do
que Werblowsky supõe. Os curadores carismá ticos Linn , Linn c Fabricant
(1985, p. 128) fazem uma referência rá pida ao mizuko kuyo, citando outro
autor carism á tico que por sua vez cita um artigo em The Wall Street Journal,
da prádea de mulheres japonesas “indo cada vez mais a templos budistas
onde elas pagam 115 d ólares por um serviço ritualizado para se livrar da
culpa do aborto, experimentada em recorrentes sonhos ruins”.
Por outro lado, para responder ao comentá rio de Werblowsky sobre as
árvores geneal ógicas, nos anos 1980 muitos carismá ticos adotaram uma
forma de cura ora chamada cura de ancestralidade, ora cura da á rvore fami-
liar. Junto com suas interpretações mais psicológicas da culpa e do sofri-
mento, Linn, Linn e Fabricant (1985) citam favoravelmente esta noção,
popularizada pelo psiquiatra carismático britânico Kenneth McCall (1982).
Eles escrevem que o feto que não foi carinhosamente aceito por sua família
e entregue a Deus “vai chorar pedindo amor e oração a um membro vivo da
família”, com impacto psicológico subsequente sobre os pais, sobre a capa-
cidade dos pais de se relacionar com crian ças mais velhas ou crianças ainda
por nascer e sobre as próprias crian ças. O que vale a pena notar aqui é que a
prática de McCall foi inspirada na observação de prá ticas chinesas a respeito
de ancestrais e fantasmas, assimilando-os implicitamente a almas no purga-
tó rio ou no limbo, enquanto vivia e praticava no exterior. Mais significati-
vo do que saber se a prá tica carismá tica é uma instância de difusão cultural
clássica ou de empréstimo cultural esp ú rio, o que isso sugere é que apesar de
suas tendências abertamente fundamentalistas, a renovação carismá tica ca-
tólica e a nova religião /budismo contemporâ nea sã o participantes m ú tuas
na condição pós-moderna da cultura globalmente predominante.
Conclus ã o
162
um ritual que participa retoricamente desse
de americana contemporânea além de sério debate
^ ftória da Aia
163
I
t
CAP ÍTULO QUATRO
A Afliçã o de Martin *
^ Dizer que “o copo está meio vazio” ou “meio cheio” é fazer um relato
existencial de uma circunstância objetiva: o nível do fluido está na metade
do copo. Dizer que um indivíduo está atormentado por “opressão demoní-
aca” ou “psicopatologia” é fazer um relato cultural de uma circunstância
\,
-ic
fl
é-
das experi dois relatos
cultural emmental e ministros
ja satide
^
ê ncias de Martin.70 ) que se segue é uma discussão da lógica
do caso baseados cm comentá rios de profissionais M
de cura carism á ticos. Por fim , uma an álise jUL
mê nõíógica )da experiê ncia corporal fornecerá os fundamentos para a yi\
c-
a>
a
/
^^
demonstração de como ambos os relatos são objctificaçõcs culturais de sig-
nificados que já são inerentes à experiência sensorial bisicaj
i-
>5
)•
A af|i çã o de Martin
a
la À época do nosso primeiro encontro, Peggy tinha 42 anos e era m ãe de
três crianças (outra morreu no pano). Ela estava casada com um profissio-
nal de sucesso havia 20 anos. Ela tinha um interesse de longa data pelas
i- coisas do espírito, tendo praticado ioga desde os 14 anos e tido experiências
>s fora do corpo e visões de figuras de devoção católica como Theresa de Li -
sieux. Ela fez dois anos de matem á tica e qu ímica na faculdade e trabalhou
0 como técnica de laborató rio logo depois de casada, mas tinha sido dona de
casa nos últimos 17 anos. Todos na sua fam ília são católicos praticantes; o
é marido é um leigo atuante e desempenha um papel no treinamento religio-
so de adultos (catequese) em sua paróquia. Ele sabe das atividades dela como
curadora e de certa forma as apóia, mas, na prática, se mantém distante; ele
nunca participou das nossas sessões de entrevista, que Peggy propositalmen-
te agendou para ocasiões em que ele estava fora de casa, e nunca participa
das suas sessões de cura.
70
Ao todo, conduzi três entrevistas com Peggy durante a primavera e o verão de 1986. Estas
foram seguidas de conversações periódicas ao telefone que continuaram por dois anos e
meio. Embora fosse evidente que eu não oferecia qualquer ajuda terapêutica ou contribuição
à resolução religiosa do problema , Peggy permaneceu aberta às minhas perguntas acreditando
que, ao menos, o relato das provações de Martin poderia ajudar outras pessoas similarmente
afetadas no futuro . Com esse pensamento, ela também procurou encorajar (sem sucesso)
Martin a completar uma lista padronizada de verificação de sintomas psiquiátricos (SCL-
90) . Embora ela compreendesse que a lista fora projetada para avaliar sintomas de
psicopatologia , tinha a firme convicção de que o problema dele era religioso, ao invés de
psiquiátrico.
167
CORPO / SiGNincADo / CURA
166
A Afliçã o de Martin
^
das experi ê ncias de Martin . } que se segue c uma discussão da l ógica
70
A afliçã o de Martin
Ao todo, conduzi três entrevistas com Peggy durante a primavera e o verão de 1986. Estas
foram seguidas de conversações periódicas ao telefone que continuaram por dois anos e
meio. Embora fosse evidente que eu não oferecia qualquer ajuda terapêutica ou contribuição
à resolução religiosa do problema , Peggy permaneceu aberta às minhas perguntas acreditando
ao menos , o relato das provações de Martin poderia ajudar outras pessoas similarmente
afctadas no futuro. Com esse pensamento, ela também procurou encorajar (sem sucesso)
Martin a completar uma lista padronizada de verificação de sintomas psiquiátricos (SCL-
90) . Embora ela compreendesse que a lista fora projetada para avaliar sintomas de
psicopatologia, tinha a firme convicção de que o problema dele era religioso, ao invés de
psiquiátrico..
167
f
:
Embora n ão seja estritamente exigido entre carism á ticos cató licos que
um curador ou uma curadora experimente sua pró pria cura a fim de orar
pelos outros, Peggy declarou com surpreendente veem ê ncia que nunca sen-
tiu qualquer necessidade de cura porque seu passado não teve trauma ( mes-
mo tendo perdido uma crian ça ao nascer) e porque suas relações com os
pais sempre foram boas. Contudo, ela citou experiê ncias específicas para
validar sua autodefinição de curadora, inclusive a de ter ouvido uma voz
que disse: “Você vai curar para mim.”
Peggy já havia experimentado esta habilidade para curar quando, aos
35 anos, encontrou a Renovaçã o Carismá tica Católica. Seu marido ouvira
falar de um grupo de oração local e sugeriu que ela poderia estar interessada.
Ela frequentou o programa iniciató rio padrão do movimento (Seminário
Vida no Espírito) durante o qual ouviu Deus dizer “venha me seguir”, e rece-
beu o dom das l ínguas (glossolalia). Após essa experiência ela frequentou o
grupo católico de oração e um grupo pentecostal não sectário, e alega ter sido
reconhecida como curadora em ambos os grupos. No grupo católico, a supli-
ca da cura sempre era feita em uma oração coletiva, e o conflito emergiu
quando uma mulher pediu a Peggy uma sessão de cura particular, a sós. Ela
continuou com as orações de cura individuais, mas por ocasião do nosso
primeiro encontro já não tinha envolvimento com um grupo há quatro anos.
Os métodos de cura de Peggy são pouco ortodoxos em relação à linha
predominante da cura pentecostal católica. Embora seus métodos princi-
pais (Cura de Memórias e Libertação) sejam os mesmos reconhecidos pelos
carismáticos, ela começou a curar antes e independentemente de seu envol-
vimento com o movimento. Ela não recebeu nenhuma orientação de ou-
tros curadores nem leu nada da vasta literatura do movimento sobre a cura,
mas afirma que o seu treinamento veio diretamente de Deus. Ela sempre
ora para saber se deve aceitar um suplicante na cura, mas nem sempre opera
através da oração; se a pessoa n ão é particularmente religiosa, é possível que
ela nem fale em Deus ao longo da cura.
Seu diagnóstico do problema de uma pessoa é baseado em seus dons
“psíquicos”: ela “se torna” a outra pessoa, no sentido de conhecer a mente
subconsciente e o passado dessa pessoa, e faz um “miniescaneamento” do
suplicante por meio de um “olhar” visionário, embora sempre respeite a
privacidade da pessoa, sem jamais ir mais fundo do que pode sentir que a
! 168
A Afliçã o de Martin
pessoa deseja que ela vá. Ela també m l ê a “aura” e interpreta o significado da
luz que brilha em torno de cada um dos “cakras” (ou seja, chakras - este é
um empréstimo idiossincrá tico de Peggy ao hindu ísmo e n ão é típico do
pensamento carismá tico católico) de uma pessoa. Ela toma decisões astro-
l ógicas quando as considera apropriadas, experiencia sonhos pré-cognitivos,
interage com espíritos benignos e malignos, entoa palavras de profecia e
també m dá aconselhamento nutricional. Ocasionalmente, ela consulta
médiuns não-cristãos para auxiliar ou confirmar alguma linha de ação em
seu pró prio trabalho.
Peggy tem um amigo íntimo, um homem de cerca de 30 anos de
idade, que chamaremos de Randy. Eles partilham dos mesmos interesses e
orientação espiritual e frequentemente participam de sessões de evangelistas
e curadores visitantes. Randy muitas vezes passa os fins de tarde com Peggy
e sua fam ília, conversando ou olhando televisão. Três anos antes de nossas
entrevistas, Randy convenceu seu amigo Martin, com quem divide o apar-
tamento, a ver Peggy para uma cura espiritual. Martin tinha 22 anos naque
la época, mas sua história, segundo o relato de Peggy e dele próprio, começa
-
muito antes, aos nove anos.
Durante a sua infância, a relação entre os pais de Martin não havia sido
tranquila. Ele se lembra do pai como um homem cruel, que brigava com a
sua mãe e abusava dele física e verbalmente. Acredita que seus pais pratica-
mente não mantinham relações sexuais. A mãe suspeitou que algo estava
errado com o marido, mas o médico da família n ão pensou que fosse um
problema sério. Então, quando Martin tinha nove anos, seu pai cometeu
suicídio dando um tiro na cabeça. Martin ouviu o tiro e encontrou o corpo.
Pouco depois desse acontecimento, sua mãe teve uma “crise nervosa” e foi
internada em um hospital psiquiá trico; ela esteve hospitalizada diversas ve-
zes desde então.
Martin e seu irmão (cinco anos mais novo) foram colocados num
orfanato. Mais tarde eles foram confiados a pais adotivos, seguidores de
uma forma estrita de cristianismo evangélico. O irmão de Martín por fim
se revoltou contra esse ambiente e se mudou para o exterior, cortando rela-
ções com sua m ãe, com Martin e também com seus pais adotivos. Martin
n ão se revoltou abertamente, e se recorda de estar sempre tentando agradar
seus pais adotivos. Peggy acredita que o temor a Deus inspirado por sua
169
í
I: i
1I
•
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
170
A Afliçã o de Martin
171
! ! !:
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
71 Na rradição religiosa carismá tica, demónios geralmcnte têm nomes retirados do repertório
cultural de emoções negativas, traços de personalidade e comportamentos (veja Capí tulo
Um).
7- Peggy
; rejeitou a noção de que se poderia negociar com /ou “converter” o espírito sob o
argumento de ser ele um dos subordinados de Satanás e, enquanto tal , irremediavelmente
diabólico. Ela também rejeitou a noção de que o espírito fosse o falecido pai dc Martin ,
embora tal identifica çã o pudesse ser aceita por alguns curadores carismá ticos católicos que
praticam cura “gcracional" ou “ancestral ” (veja Capítulo Um).
:
1 •'
172
|
i !
A Aflição de Martin
173
"1
1
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. 1 CORPO/ SIGNIFICADO / CURA
174
A Afliçã o de Martin
175
I!
!
|
;
quarto de h óspedes na casa de Peggy, a filhinha dela notou que o quarto
"cheirava exatamente como a boca de Martin”.
1 : Distorções específicas de pensamento e emoçã o també m se entrela-
çam nessa configuração da aflição. Martin tem extrema dificuldade de manter
i a concentração, especialmente em tó picos religiosos. Quando ele acompa-
nha Peggy e sua fam ília à igreja aos domingos, ele considera difícil rezar. Os
i textos de leitura religiosa normal “se apagam” à sua frente. Do nosso pró-
i
! prio ponto de vista analítico, a experiência dele parece fundir concentração
e atenção com intensidade de sensação e fé religiosa, pois junto com esses
exemplos Martin incluiu a observação de que quando estava lendo o ritual
católico de exorcismo, “eu n ão tinha certeza de estar acreditando no que
estava fazendo”. Além disso, apenas com muita força de vontade ele pode
J desempenhar atividades normais como conversar ou trabalhar no computa-
dor. Como em suas experiências com a leitura religiosa, se a conversa muda
. para assuntos teológicos, ele perde a concentração, seus olhos embaçam e as
pálpebras ficam visivelmente mais espessas.
Entre as distorções emocionais ele relata experi ências de raiva que seri-
am , em retrospecto, ou sem motivo, ou reações obviamente exageradas a
pequenas irritações. Ele experiencia também fortes sentimentos de ansieda-
de e medo. Martin resume o efeito geral de sua tribulação como uma cria-
;
I 176
, !
A Afliçã o de Martin
7J
Contudo, nessas imprecações, ele jamais enuncia diretamente o nome “Jesus”. Esse é um
elemento notável de formatação ou modclagem cultural e religiosa da audição espontânea
e pode ser interpretado de acordo com a crença de que Jesus é tão poderoso que um
demó nio teme em usar seu nome atá mesmo numa maldição.
177
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
'
.
mente Ela diz: “ Você se sente como se você fosse pornografia.” As visualiza-
ções ocorrem sem qualquer aviso, dia ou noite, algumas vezes acordando-a
do seu sono. No meio de uma de nossas entrevistas, por exemplo, Peggy
disse que a imagem vívida da vagina de uma mulher surgira cm seu campo
de visão, embora ao mesmo tempo ela ainda pudesse nos ver.74
' Peggy disse que era especialmente suscetível às imagens pornográficas
!•
quando estava cansada e perdia a calma. O espírito também provocou dire-
tamente raiva e vontade de dizer coisas vulgares (coprolalia) . Embora ela se
í considere “temperamental ” por sua origem étnica, o espírito intensifica essa
característica. O espírito também controlava seus m úsculos faciais, mode-
lando-os numa expressão de ira, tentando assim ludibriá-la para que sentisse
raiva mesmo quando ela sabia subjetivamente que não sentia.75 Contudo,
Peggy sentia que tinha mais controle sobre suas experiências do que Martin,
pois ainda podia encontrar alívio e conexão m ística com Deus através da
oração apesar da dor inevitável. Ela também se sentia mais capaz de distin-
guir entre seu próprio pensamento ou emoção e algo provocado pelo espí-
; rito. Por exemplo, ela disse que várias vezes sentiu raiva da minha presença,
mas se deu conta de que era a raiva do espírito. Isto é, o espírito percebia
uma ameaça, e sua raiva indicava portanto que devíamos continuar as entre-
i
vistas. Por outro lado, Martin só pode comparecer à primeira das nossas três
entrevistas; o demónio o havia persuadido de que sua participação seria
literalmente dolorosa demais.
Peggy interpretou seu próprio sofrimento como essencial para a liber-
tação de Martin do espírito maligno. Deus “disse a ela” que sua dor perma-
neceria até ele sair de Martin; o fim da dor seria o sinal de que ele estava
livre. Ela senda que era apenas um alvo indireto para o espírito maligno, e
que Deus queria que ela servisse dessa forma como “ barómetro” do sofri-
! mento de Martin para ela poder entender sua din âmica e então falar por
Martin. Ela própria n ão precisaria de uma Libertação, pensava, mas seria
178
A Afliçã o de Martin
Peggy fez várias tentativas para obter ajuda externa, mas sentia uma
relutância geral da parte de outros para lidar com problemas de origem
demoníaca, e a obstinada resistência do próprio espírito também militava
contra o sucesso. Três vezes Martin esteve na presen ça de um curador cató-
lico altamente reputado que teoricamente poderia ter ajudado. A primeira
vez foi quando Peggy e Randy o levaram a um serviço p ú blico de cura
numa cidade próxima, conduzido por um padre curador da Nova Inglater-
ra conhecido nacionalmente. Martin ficou chateado e com raiva; ele saiu
sem receber uma un ção (com óleo bento) e vociferou contra Peggy no carro
voltando para casa. Eles consideraram essa conduta completamente contro-
lada pelo espírito maligno, cujos interesses correram grande risco na sessão
de cura.
Os canais formais dentro da Igreja tampouco serviram para obter aju-
da. Os padres da paróquia de Peggy alegaram falta de familiaridade com
fenômenos demon íacos e declinaram qualquer engajamento na situação. O
bispo local respondeu que não entendia dessas coisas, e indicou um padre
179
I! r
i ; jesu íta que era respeitado como conselheiro na dioccsc. Dc acorclo com
I Peggy, esse padre reconheceu a realidade dos seus dons dc cura , mas n ão
estava convencido da necessidade dc Libertação ou exorcismo no caso dc
Martin.76
Peggy deu apenas um passo nas preliminares do exorcismo formal,
uma entrevista obrigató ria com um psiquiatra. Vale a pena notar que ela, c
n ão Martin, realizou essa entrevista. Peggy conta que após ouvir o seu relato
da oração para Cura de Memórias aplicada às cicatrizes emocionais do pas-
sado dc Martin , a psiquiatra concluiu que Peggy já havia feito o que ela
mesma faria cm terapia, e que era questão de tempo até que Martin mclho-
nsse. A detalhada apresentação feita por Peggy, dos sintomas provocados
pelo espírito, aparentemente pouco impressionou a profissional da sa ú de
mental, seja para convencê-la da imputação demoníaca, seja para sugerir a
necessidade de intervenção terapêutica posterior. Contudo, a psiquiatra no-
tou que três anos depois de ter se tornado quase um membro da fam ília de
.
Peggy, a dificuldade de separar-se poderia estar criando um obstáculo para a
recuperação de Martin. Peggy reconheceu essa possibilidade, mas também
expressou confian ça na sua habilidade e motivação (cessação de sua própria
dor) para levar a termo a situação. Assim, isolados e num doloroso impasse
7Í
O rito formal de exorcismo da Igreja difere da oração de Libertação cm dois Pont°*
importantes. Primeiro, implica uma possessão plcnamcntc materializada na qual se enten
que o demónio está dentro da pessoa e cm controle dc todas as suas faculdades. u^n
situação que demanda Libertação, o demónio está geralmentc fora da pessoa, atormentan
c “oprimindo’’ ao invés de possuí-la. Esta distinção em grau de severidade é crucia p
reivindica ção dc legitimidade da oração dc liberta ção , que é emprestada da tr v^
pentecostal protestante, no contexto católico . Isso incide dirctamcntc sobre a SCB
diferença entre as duas formas rituais, qual seja, o exorcismo deve ser executado P°r U ,
^
padre com a autorização formal do bispo local , e requer um procedimento dc elegio* i
no qual todas as outras causas , incluindo psicopatologia , devem ser sistem á tica
excluídas antes da causalidade ser atribu ída a um esp í rito maligno. A oração dc Libert
cm tese, por ser supostamente menos séria, 6 frcqucntemcntc conduzida por leigos-
formato da oração é muito mais flexível que o do exorcismo, c a presença de um &P
maligno é estabelecida n ã o através de um procedimento formal , mas atrav s
discernimento do curador ou curadores. (A oração dc Libertação é freqUcntcmcntc c ^
em equipes de vá rios curadores cujos “dons espirituais" s
ão complementares).
180
!
A Afliçã o de Martin
Não houve qualquer manifestação perccptível do espí rito maligno durante aquela porção
do r to batismal , que inclui uma oração de exorcismo; nem houve qualquer evidência de
'
^ o dom í nio do espí rito ficasse enfraquecido pelo rito. Embora eu tenha questionado
Pc8gy cspccificamcntc sobre isso , ela pareceu não ter considerado aquele momento
significativo. Com respeito a “manifestações" comportamentais explíciras, contudo, abe
llotar fine o espí rito maligno fazia sentir sua presença em qualquer situação que pudesse
resultar em embaraço público para os envolvidos.
181
:
it
víduos que atraíam sua atenção não eram necessariamente aqueles que
“chamariam normalmente aten ção” dele, e ele achava “irritante olhar para
um sujeito de 120 quilos e querer dar em cima”. Peggy explicou que o
espírito “vê através de seus olhos”, então embora ele não veja ninguém que
o atraia no n ível “real”, no “outro” n ível, ele quer “pular em cima de tudo o
que se move”. Peggy confirmou que Martin tinha se mantido distante das
garotas na faculdade por causa de seu problema, sugerindo que ele n ão na-
morava por causa da dificuldade de “controlar seus sentimentos”. Ele não
tinha amigas, e Peggy achou que isso não seria recomendável a não ser que
fosse algu ém da mesma orientação espiritual, com quem ele pudesse se
I abrir sobre seus pensamentos.
Martin também temia que os outros fossem capazes de perceber a
atividade demon íaca através do seu comportamento. Em particular, havia
um “movimento em seus olhos” que Peggy podia perceber porque ela tem
poderes psíquicos. Parecia “quase um outro olho atrás do seu olho” , ela
disse, mas n ão conseguiu explicar melhor: ela não sabia se o espírito real -
mente possui olhos próprios ou n ão, mas sua percepção do olho oculto est á
de acordo com sua interpretação de que o espírito via através dos olhos de
182
,
A Afliçã o de Martin
183
rn
^é
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
!
' Uma manh ã, nos primeiros dias de trabalho dele, cia mais uma vez
mandou o espírito ir embora, e o tórax de Martin “fez znpe" e ela o viu
:
sendo empurrado de dentro para fora como se houvesse um “punho esmur-
rando lá de dentro”. A despeito desse assalto demon íaco, Martin havia sc
ajustado ao trabalho nos dois meses anteriores à minha entrevista final com
Peggy. Sua rotina semanal inclu ía escola todas as manhãs e trabalho todas as
tardes. Após o trabalho ele freqiientemente nadava na piscina da faculdade,
o que, segundo Peggy, tinha um efeito “refrescante” benéfico dada a inten-
sidade incessante de seu sofrimento. Toda noite ele jantava com Peggy e sua
! fam ília, e, como o seu computador estava instalado na casa deles, passava ali
uma boa parte de seu tempo livre. Ele tinha visitado a m ãe cada sexta-feira
durante um ano até que ela “deslizou” e largou a medicação para transtorno
I
depressivo bipolar. Aos domingos, ele ia à missa e comungava regularmen-
te. Randy, que havia formulado um plano de viver como escritor e susten-
tar-secom um emprego pú blico pouco estressante, normalmente juntava-se
à fam ília para o jantar de domingo.
A principal diferen ça que Peggy viu em Martin foi uma maior capaci-
dade de “discernir” seus próprios pensamentos e reações daqueles do demó-
nio. Ela exemplificou dizendo que certa vez ele perdera de vista sua própria
dor, distanciando-se dela e tendo assim menos sensibilidade e sensações no
corpo. Martin teria afirmado que no in ício de sua aflição ele podia distin-
guir entre seu próprio selft a presença estranha, mas que perdera essa habi-
,
lidade enquanto o dem ónio progressivamente se fundiu com o seu self Ele .
agora parecia estar recuperando essa capacidade, e às vezes podia dizer “ isso
não é pensamento meu”. Ele ainda sentia claramente as imagens pornográ-
ficas, mas também as considerava exteriores. Segundo Peggy, ele expressou
um desejo de “liberdade” e se tornou capaz de enunciar a oraçã o de “coman-
do” para que o espírito saísse dele. Uma dificuldade importante que restou
foi que ele tinha pouco ou nenhum contato com suas emoções - nenhum
“sentimento do coração”, de acordo com Peggy - sendo incapaz, por exem-
plo, de distinguir entre “amor” e “sexo”. Apesar desse isolamento das pró-
prias emoções, ele vinha aprendendo a conduzir sua vida através de uma
compreensão “intelectual ” de o que é “certo ou errado”.
A interpretação de Peggy da situação nessa época era que embora o
espírito maligno fosse de um escalão bastante alto na hierarquia demon íaca
184
I
A Aflição de Martin
(como seu nome misterioso indicava), a persistê ncia das suas orações fora
capaz de evitar que ele tivesse acesso à ajuda de outros espí ritos mais altos,
de modo que ele estava isolado e ( presumivelmente) na defensiva. Martin
ainda exalava, às vezes, o “odor de uma enfermaria” , fosse em seu hálito ou
em seu odor corporal , e Peggy ainda podia perceber psiquicamente uma
aura cinzenta em volta dele indicando “ insalubridade”; ela podia ver tam-
bém o espírito “se mover por trás dos olhos dele”. Assim, o problema ainda
estava lá , mas Martin estava “seguindo em frente a despeito das desvanta-
gens enormes” porque “você vai em frente com a vida”.
0 relato carismático
185
•;
jit ;] I I
r !i
!i :
r : CORPO / SIGNIFICADO / CURA
ii r
sclhamento pastoral por padres e freiras como parte do treinamento religi-
oso, o conhecimento dos demais vem apenas da prá tica de cura carism á tica.
i Assim como os profissionais da sa úde mental , eles foram informados dc
que o objetivo dos seus comentá rios era “ajudar a separar os significados
psiquiá tricos e religiosos” do caso. De acordo com os princípios do seu
sistema de cura, nã o lhes foi solicitado um “diagn óstico com impressões
i ‘
: dinâmicas”, mas sim o seu “discernimento” religioso sobre se um espírito
maligno estava ou não presente no caso, uma interpretação daquilo que
estava errado e uma razão para a cura ter sido aparentemente ineficaz.
O resultado mais surpreendente desse exercício é a concord â ncia geral
I de que uma das origens do problema está na curadora, enquanto a questão
da presen ça de um espírito maligno parece secundária e é, de fato, objeto de
alguma discordâ ncia entre os consultores. Essas duas observações estão liga-
I das por uma importante característica do sistema de cura. Isto é, o conheci-
mento que os curadores participantes trazem para o estudo desse caso é
í i
conhecimento empírico, baseado em experiências concretas em encontros
de cura e sistematizado por compartilhamento através de veículos como
publicações e conferências.
Na avaliação da descrição do caso, houve menos ambiguidade dos cu-
radores em aplicar seu conhecimento empírico às prá ticas e experiências de
sua colega curadora do que em determinar a presença de um espírito malig-
no, o que exige uma interação frente a frente com a pessoa atormentada.
Mais do que isso, no entanto, os curadores assumem implicitamente que se
alguém tem o dom e a competência para identificar espíritos malignos e
;
saber como lidar com eles, então essa pessoa pode usar as técnicas espirituais
mais ou menos rotineiras para ordenar a saída do dem ónio invocando um
poder divino que é, por definição, maior do que o demoníaco. Portanto,
antes de analisar os comentá rios dos ministros de cura sobre a questão da
presen ça demon íaca perse, devemos analisar a crítica que eles fazem de Peg-
gy enquanto curadora.
Nenhum dos comentaristas questiona a motivação de Peggy para aju-
dar as pessoas como curadora, mas a validade de sua “voca ção” para desem-
penhar tal papel é explicitamente questionada pelos curadores 1 e 4 e
implicitamente pelo 5. Eles olham de muito perto os detalhes da histó ria
de quando ela começa a curar. O que parece ser um tema arquetípico no
í
186
A Afliçã o de Martin
187
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
188
(\
A Afliçã o de Martin
189
H 1I ,
I
durante discussões teológicas, insónia, ser acordado por imagens pornográ -
ficas, incapacidade de tolerar a presença de um ministro de cura religiosa de
comprovada competência, uma voz que grita e insulta, mas é incapaz de
pronunciar o nome de Jesus, raiva, ansiedade e medo. Quando considera a
íí hipótese semidinâmica de que as três últimas emoções podem estar ligadas
a problemas de desenvolvimento da infância de Martin, ela espiritualiza
1 1' mais uma vez: o problema pode n ão ser com um espírito demon íaco, mas
com o espírito inquieto do pai de Martin. A relação de sintomas psicó ticos
feita pelo ministro 4 inclui visualização, a voz desincorporada, alucinações
auditivas, dores de cabeça insuportáveis, ansiedade incapacitante, transtor -
nos de sono, sensação de puxadas e safanões (sensações viscerais indicando
furia contra o pai), sexualidade indiferenciada, gosto ruim de comida, fedor
-
do corpo e pontadas de dor indicando auto sugestão e auto hipnose.-
Embora esses dois conjuntos de evidência por si só não sejam suficien -
tes para contrastar dois estilos l ógicos, vá rias provocações podem ser feitas.
Primeiro, h á muita sobreposi ção entre a evid ê ncia de espíritos malignos e a
psicopatologia: fen ômenos auditivos e visuais, insónia, raiva, ansiedade.
Entretanto, o relato mais espiritualizado d á muito mais aten ção ao conteú -
do do que à forma dos sintomas. Assim , é importante n ã o apenas que haja
fen ómenos visuais, mas que eles sejam pornográficos, e n ão apenas que haja
fenómenos auditivos, mas que a voz grite e xingue. A ênfase no conte ú do
190
A Aflição de Martin
pode estar relacionada à aparente ê nfase maior na ação que na sensação so-
m á tica; assim a ministra de cura 1 enfatiza assistir a uma sessão espirita,
oração, conversa ção c reação à presen ça de outra pessoa, enquanto o minis-
tro 4 menciona dor, gosto ruim , mau cheiro do corpo c sensações de puxa -
das c safan ões.
Talvez outras pesquisas consigam especificar os diferentes estilos de
abordagens religiosas psicologizadas c espiritualizadas dentro desse sistema
de cura, mas por enquanto basta lembrar que a influê ncia demon íaca e a
psicopatologia n ão são mutuamente excludentes. Assim , entre os exemplos
mais claros de 1 e 4, o ministro de cura 3 reconheceu especificamente uma
alta “atividade do espírito”, sugerindo ao mesmo tempo que Martin sofre
de esquizofrenia. O ministro de cura 5 resumiu o problema como um
desequil íbrio entre os aspectos demon íaco/espiritual e psicológico/emocio -
nal do caso.
O exame da relação entre o espírito maligno e as emoções esclarece
ainda mais a lógica do sistema de cura. No pentecostalismo católico é raro,
embora n ão inaudito, que demónios tenham nomes, como Andronius nes-
se caso. Geralmente, eles têm nomes de pecados ( Lascívia, Gula), compor-
tamentos negativos (Autodestruição, Rebeldia) ou emoções negativas (Raiva,
Medo). Isso leva a uma ambiguidade sistemá tica ao determinar onde o
comportamento e a emoção humana acabam e onde começa a influê ncia
dos espíritos malignos. A ministra de cura 1 n ão rotula explicitamente o
medo, a ansiedade e a raiva de Martin como demónios, mas chama essas
emoções de “marcas registradas de Satanás”. Ao mesmo tempo, ela relacio-
na raiva a problemas crónicos arraigados na infanda de Martin. O ministro
de cura 2 indica que Martin é oprimido por desobediência, rebeldia e rejei-
ção. Este termo é usado tecnicamente para designar um nível específico de
influência demoníaca; vale lembrar que a ministra de cura 1 achou que
Martin era obsessivo, indicando um nível de influência mais alto. No en-
tanto, ela diz que sem um verdadeiro encontro de cura não é poss ível discer-
nir se eles são demónios “no sentido estrito” de entidades espirituais inteligentes
tnas malignas.
O ministro de cura 3 identifica homossexualismo, culpa, ódio de si
mesmo e baixa auto-estima como problemas especificamente psiquiátricos,
cm vez de demon íacos, mas reconhece a existê ncia de alguma atividade de
191
*
f I !
i!
I : CORPO / SIGNIFICADO / CURA
1 ;
192
A Afliçã o de Martin
em vez de psicopatologia, mas també m admite a influ ê ncia demon íaca como
uma qualificação de psicopatologia.
0 relato clínico
193
/ CÁ
i ' I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
!
194
I
A Afliçã o de Martin
195
1
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
! 196
A Afli çã o de Martin
197
m CORPO / SIGNIFICADO / CURA
i
198
!
A Aflição de Martin
Convergência e divergência
200
,
A Aflição de Martin
201
]
202
A Afliçã o de Martin
203
rr n
^ I ,
;
i
I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
7Í
A situação é mais complexa do que evidente em relação aos casos que geralmente ganham
notoriedade, nos quais os pais de um menor afligido por uma doença que ameaça sua vida
recusam tratamento médico com base em argumentos religiosos (veja, por exemplo, Redliner
e Scott, 1979) . Em qualquer sistema de sa úde, a relação entre duas formas quaisquer de
cura pode ser caracterizada como alternativas compat íveis, alternativas conflitantes ou
contraditórias, formas complementares tratando diferentes aspectos de um problema ou
formas coexistentes e não interativas.
204
A Afliçã o de Martin
^ ^
o(sujeito )da percepçãõ A pessoa n ão percebe o próprio corpo; a pessoa é seu
jorpoj percebe com ele tanto no sentido de ser uma ferramenta perfeita -
mente familiar (Mauss, 1950a) conuTiíò sentido de serem, selft corpo,-
'
205
I l l
CORPO/ SIGNI FICADO / CURA
I 206
A Aflição de Martin
207
I
'M !
:
:
: I
c um cmba çamcnto dos olhos quando seus pensamentos saem de foco,
uma conversação densa, sensações de peso, sobrecarga, ou energia esgotada.
Pode-se argumentar que o gosto ruim na boca de Martin , junto a sua hali-
tosc e o odor do corpo, se incluem nessa constelação de significados girando
1
I
«
em torno de peso e espessura. O tema que engloba essas palavras indicativas
.
de “peso” parece ser o da imobilidade Note que essa imobilidade pode ser
objetivada como o tipo de lentid ão sintomá tica da depressão clínica, ou
como uma manifestaçã o literal de opressão por um espírito maligno. Para
'
Martin , ela foi tematizada pelo reconhecimento de que ele poderia “ficar
imobilizado ou ir adiante”.
! Uma fenomenologia cultural da situação existencial exibida nessa lin-
guagem dos sentidos pode ser resumida como um estreitamento radical do
: horizonte de perccpção e experiência. Enquanto a pessoa não afligida no
quotidiano pode continuar ininterruptamente a exploração do mundo, para
Martin os horizontes do mundo se tornaram opacos e impenetráveis. A
li; > imagem do desmembramento se refere ao horizonte interno em que as
-
partes do corpo da pessoa implicam se mutuamente ou comunicam-se de
um modo experiencialmente indiferenciado e autom á tico, selado pela te-
matização das partes individuais do corpo em sofrimento. A imagem da
;
dissolu ção se refere ao horizonte que e' a fronteira do corpo da pessoa com o
mundo. Nesse caso, n ão se pode dizer que o horizonte está selado, mas que
não há horizonte, não há realidade pessoal em destaque ou em pano de
fundo, n ão h á uma direção para explorar nem qualquer sujeito distinto
como explorador. A imagem da imobilidade refere-se ao horizonte da ação
no mundo, onde se pode formular um n ú mero ilimitado de projetos de
vida em aberto, mas que para Martin está vedado pela total preocupação com
a aflição. A voz vivenciada na modalidadeauditiva participa de todas as três na
; •
medida em que seu enunciado se conecta diretamente com a dor, dificulta
para Martin o discernimento entre seus próprios pensamentos e os pensa-
! mentos estranhos, e o impedem de se envolver nas suas atividades preferidas.
A enxurrada constante de imagens sexuais, por outro lado, tem seu
significado existencial no descortinar de um horizonte artificial de um mun -
do inesgotavelmente sexual. Nesse ponto, as frases-chave são que Martin é
impelido a ver o mundo exclusivamente em termos sexuais e que ele sente
a “pornografia como um estado de espírito”. Essas frases n ão devem ser
208
;
ií
T
A Afliçã o de Martin
^
manipulado para expressar e adotar uma postura de raiva.j ssim, cognição
e afeto n ão devem ser compreendidos separadamente da experiência corpo-
ral. Eles são igualmente componentes daquilo que Schilder (1950) chama
de “modelo postural” que está sujeito a transmutação em uma variedade de
situações, principalmente nas de afliçãõ j
Uma descrição paralela poderia ser feita da experiência de Peggy com
referê ncia ao seu pró prio reconhecimento de que o espírito maligno a ataca
209
wm
:Ills 1
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
!
nos seus próprios pontos frágeis. Em síntese, h á três difcren ças-chavc nas
suas experi ê ncias: 1) ela ouve a voz basicamente gritando, praguejando, con-
i denando-a, ameaçando a sua fam ília e concomitantcmcnte causando-lhe
coprofilia; 2) imagens sexuais aparecem em episódios como um programa
I de televisão e vão do anonimato até a inclusão de pessoas reais (Martin
persistiu por algum tempo na modalidade de violência sexual an ónima); 3)
ausência de halitose ou odor corporal. Os dois primeiros traços podem ser
compreendidos como representações concretas de conflitos entre seu papel
como curadora de Martin e seu papel no seio da fam ília, e conflitos sobre
intimidade sexual. O terceiro representa a ausência de pelo menos uma
I dimensão do peso (a olf àtiva), que para Martin constitui um horizonte
vivencial obstruído.
f Êssz, então, é a nossa reconstrução aproximada da experiência pré-ob-
jetiva de sofrimento de Martin e sua tematização inicial desse sofrimento,
anterior à objetivação da sua experiência nos relatos de cura religiosa ou de
} psiquiatria. Meu argumento é que cada sistemapressupõe essa experiência,
e que seu relato é nesse sentido preciso uma abstração (veja Figura 4.1).
> Cada relato tematiza a experiência pré-objetiva de acordo com seus própri-
os princípios. No sistema religioso, o princípio relevante é moral, e pode ser
postulado enquanto contradi ção entre bem e mal. No sistema psiquiá trico,
I o princípio relevante é empírico, e pode ser postulado enquanto dicotomia
entre corpo e mente. Baseados nesses princípios, os sistemas postulam ou
: Wl ! !
!!
um demónio ou uma doença como uma entidade objetiv
^
í! Relato religioso
Princípio moral: bem/mal
Relato psiquiá trico
Princípio empírico: corpo/mente
Origem: ocasião Origem: causa
Entidade: demónio Entidade: doença
Evidência: manifestaçã o Evidência: sintoma ? Síndrome
Processo em primeira pessoa: Processo em terceira pessoa:
opressã o/luta desordem/somatiza çã o
210
ri
:
A Aflição de Martin
211
1!
'
t 1 !í
' CORPO / SIGNIFICAPO / CURA
i Essa disjun ção responde pelo modo diverso com que as duas categori-
;! as nomeiam o problema e o modo como elas são postuladas enquanto
; entidades|Uma doença é mais do que uma etiqueta sumá ria para uma cons-
telação de sintomas, como um dem ó nio é mais do que uma etiqueta sum á-
ria para uma constelação de manifestações. Uma doen ça d á nome na terceira
!
pessoa a um processo cujo curso pode ser especificado e que tem uma histó-
ria natural , ou uma gama de resultados previsíveisjf Um demónio geralmen-
te d á nome a um traço comportamental ou estado afetivo e o postula como
um processo em primeira pessoa, dotando-o de intencionalidade e, assim,
í 1
evitando a possibilidade tanto de um conjunto de sintomas completamen-
te circunscritos quanto de uma história natural que possa ser completamen-
te especificada. É precisamente ao atribuir intencionalidade ao traço
comportamental ou ao estado afetivo que o sistema religioso estabelece a
: 1 entidade demoníaca como uma causa ao invés de algo que é causado. No
sistema psiquiátrico, os traços e estados equivalentes são objetivados n ão
como entidades ontologicamente reais, mas no nível descritivo ou de atri-
butos mais específicos dos sintomas.
Desse modo, embora os fen ômenos da experiência pré-objetiva sejam
tratados ou tematizados por ambos sistemas como um tipo de evidência
para a entidade objetiva postulada, o status epistemológico dessa evidência é
diferente em cada instância. Do lado religioso, uma visão de luz é uma
1
i
manifestação de um dem ónio possuindo o “cakra” de alguém ; dor é a mani-
íl festação de um ser que punirá a pessoa em caso de resistência à sua vontade;
e o embotamento da mente é uma manifestação do intento de um ser de
interferir no desempenho da pessoa no trabalho de Deus. Do lado psiquiá-
trico, sensações gustativas peculiares são sintomas de epilepsia do lobo tem-
poral; insónia, perda de peso e m á concentração são sintomas de depressão;
e ouvir pensamentos e experienciar imagens visuais são sintomas de psicose
atípica. Dada essa formula ção, pode ser sugerido que uma das dificuldades
nas tentativas de Peggy de curar foi exatamente a preocupação com o fen ô-
meno enquanto evidência, e uma consequente incapacidade de lidar ade-
t
. ií quadamente com a tarefa de curar. No seu isolamento dos indivíduos de
mentalidade parecida, ela se esforçou tanto para provar seu diagnóstico que
acabou cultivando o próprio fen ômeno que esperava eliminar.
Contudo, a relaçã o entre manifestações de um dem ó nio n ão precisa
ser tão sistem á tica quanto aquela entre sintomas de um transtorno. Con-
!
212
!! !
:• iJL
A Afliçã o de Martin
213
• 1
.
Coíipo / SIGNIFICADO / CURA
i
- li :
tomas som á ticos como uma expressão alternada de problemas pessoais ou
sociais, ou um mecanismo pelo qual as emoções originam sinais som á ticos
e sintomas ( Kirmayer, 19S4). No caso atual, embora a patologia orgâ nica
na forma de epilepsia do lobo temporal ou a depressão biol ógica (hereditá-
i ria) n ão estejam exclu ídas, a somatização pode ser compreendida como uma
transmutação de cognição e afeto.
i
214
U: i !
A
V
'
A Afliçã o de Martin
215
ii
disso, como cada doença implica uma história natural diferente, ela implica
também um tratamento diferente; o psiquiatra fica muito menos confortá-
vel ao dizer que a psicoterapia é apropriada para todas as doenças psiquiá tri-
cas do que o curador ao dizer que a oração de Libertação é apropriada para
todas as instâncias de opressão demoníaca.
Novamente, porque um demónio é uma entidade em primeira pes-
soa, ele pode desempenhar um papel retórico imediato como um ator no
processo de cura, embora alguns ministros de cura carismá ticos se abste-
80
A distinção entre “eu tenho” e “eu sou” numa doença foi recentemente discutida
especificamente em relação à esquizofrenia por Estroff ( 1989) .
216
A Afliçã o de Martin
nliam dc informar aos suplicantes que discerniram uma presença demon ía-
ca, preferindo expulsá-la silenciosamente e assim evitar cenas melodramáti-
cas e dc confusão. Por outro lado, porque uma doença é essencialmente
uma entidade em terceira pessoa ela pode mais facilmente ainda ser conside-
rada tratável sem que, por exemplo, o paciente psiquiá trico jamais saiba que
cia é chamada de esquizofrenia. Mas, mesmo nesse caso, alguns defensores
de programas “psicoeducacionais” consideram essencial nomear e compre-
ender a doença para tratá-la. Além disso, num sentido retórico, pode-se às
vezes atribuir pelo menos uma intencionalidade metafórica às doen ças, como
quando o câncer é descrito como um “assassino cruel ” ou um “invasor” Há
uma lacuna qualitativa profunda, todavia, entre compreender a audição de
vozes como um sintoma e como uma verbalização intencional. Martin ex -
perienciou algumas vezes o que parecia ser três diferentes vozes. Porém, ele
acreditava que, de fato, um ú nico espírito estava “fingindo” ser três. A inter-
pretação religiosa de Peggy foi que isso era, antes de tudo, exatamente um
ardil típico do comportamento do espírito, e, em segundo lugar, que a
ilusão do três-em-um foi uma blasfêmia intencional da pane do espírito,
numa imitação diabólica da trindade divina do cristianismo.
Se o potencial de multiplicação das vozes de Martin puder ser com-
preendido como potencial de dissociação e fragmentação do self, então a
racionalização de Peggy para mantê-las unificadas parece um tipo de con-
trole de danos espiritual. Esse é o caso especialmente pela presença agouren-
ta de Andronius, o espírito mestre. Para além do controle, atribuir uma
multiplicidade de vozes e identidades ao espírito certamente aumentaria o
sentido de perigo na situação. Por outro lado, em casos mais ítpicos pode
haver uma vantagem retórica em ter grupos de espíritos presentes, porque
isso permite uma interpretação mais complexa daquilo que pode ser uma
situação pessoal muito complexa, e també m porque propicia um senti-
mento de progresso crescente se os dem ónios puderem ser expelidos um por
um ao longo de várias sessões de cura (Capítulo Um; Csordas, 1994a). Parece
não haver nada diretamente paralelo a isso em tratamento psiquiá trico, o que
n ão quer dizer que doenças psiquiá tricas n ão tenham suas próprias proprieda-
des retóricas. Certamente, tanto doutores como pacientes podem construir
discursos elaborados (“deixe-me dizer algo sobre a minha esquizofrenia... )
sobre uma doença de modo a influenciar o curso de uma enfermidade.
217
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
Conclus ã o
218
J
A Aflição de Martin
às mesmas críticas que podem ser feitas a qualquer tipo de empirismo me-
canicista (Merleau-Ponty, 1962). Por outro lado, ao propor que toda mani-
festação sensória, som á tica, cognitiva e afetiva é causada por um dem ónio,
a noção de opressão admite que as experi ê ncias som á ticas e psíquicas são
todas uma coisa só, colocando-as lado a lado. Essa noção, todavia, comete o
erro de atribuir a unidade a uma consciência constitutiva abstrata, ou seja,
ao esp írito maligno, ao invés de à unidade essencial do ser humano na qual
aida modalidade perceptiva é condicionada por todas as outras. Desse modo,
ela está sujeita às mesmas críticas que podem ser feitas a qualquer tipo de
intelectualismo racionalista (Merleau-Ponty, 1962).
| Eu argumentei que o paradigma da corporeidade é útil para comparar
diferentes relatos culturais da experiência fazendo uma descrição da base
comum de onde esses relatos são abstraídos. Será que, apesar de tal vanta-
gem, a descrição fenomenológica da experiê ncia corporificada oferece ape-
nas uma outra objetificação da mesma ordem que o dem ónio, a doença ou
a emoção? Minha resposta necessariamente breve será a de mostrar como o
paradigma da corporeidade ajuda a revelar os temas embutidos - que são
elaborados como objetos culturais -, acompanhando a experiência de Martín
até o seu eventual retorno a um nível moderado de funcionalidade socià|j [
Voltemos às imagens de dissolução, desmembramento e imobilidade
que, como descobrimos, são temas da experiência corporal vivida de Mar-
tin. Durante o período final do meu acompanhamento desse caso, Peggy
informou que as sensações de fluidez e dissolução não mais caracterizavam
a experiência de Martin, enquanto a maioria dos outros problemas persis-
tia. Era como se a reintegração da imagem do corpo fosse a sua realização
crucial. A julgar pela linguagem de pânico e auto-alienação com que ela
descreveu isso, essa tinha sido a dimensão mais angustiante da aflição de
Martin.
Certamente, numa sociedade onde a etnopsicologia do ego ideal é ra-
dicalmente individualista, poderia se esperar que uma imagem integrada de
corpo fosse decisiva para um funcionamento cotidiano aceitável. Dessa pers-
pectiva de corporeidade, uma informação que de outro modo poderia pare-
cer menor emerge como proeminente no movimento de Martin em direção
ao comprometimento com o mundo da vida diária: ele havia começado a
nadar quase todos os dias. Em seu idioma, Peggy interpretou isso como
219
' il I
:
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
'
| ,
ser libertado é uma metáfora de cronicidadê
^
Além das questões de metáfora, tradução ou equivalência de significa-
do, a análise de significados religiosos e psiquiátricos nesse caso sugere a
fecundidade de uma fenomenologia cultural na comparação de relatos da
experiência radicalmente diferentes. Um retorno aos fenômenos da experi-
ência pré-objetiva revela a base comum a partir da qual tais relatos são cons-
truídos, através de tematizações alternativas que conduzem à postulação de
objetos culturais como dem ónios e doen ças. Tentei descrever a base existen-
cial pressuposta pela reflexão religiosa e clínica, e, ao fazê-lo, argumentei
1
|explicar fenômenos religiosos de aflição somente em termos médicos é
que
colocar uma visão de mundo no lugar de outrã
^
!
|
|
220
i'
PARTE II
Transforma ções Navajos
I
)
iI
I
j.
CAPÍTULO CINCO
Cura Ritual e a Política de Identidade
’
na Sociedade Navajo Contemporâ nea
81
Este capí tulo é baseado em dados de um projeto de cinco anos sobre cura ritual na sociedade
navajo contemporâ nea financiado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental , auxí lio
MH 50394-05 . O Projeto de Cura Navajo foi executado sob a Permissão de Pesquisa de
Recursos Culturais da Nação Navajo C9708-E e com o apoio de cinco Conselhos de Saúde
Comunitária nas regiões da reserva navajo em que o projeto foi conduzido. Este capítulo foi
revisado e aprovado pelo Conselho de Pesquisa de Saúde da Nação Navajo em 12 de outubro
de 1999. A pesquisa foi conduzida por quatro equipes, cada qual composta de um etnógrafo,
um intérprete e um psiquiatra com bastante experiência cl ínica com pacientes navajos. Como
pesquisador principal , cu supervisionei a condução de toda a pesquisa. A fase inicial do
projeto consistiu de entrevistas etnográficas com 95 curadores distribuídos através de formas
de cura tradicional , da Igreja Americana Nativa e cristã. Trabalhando com um grupo seleto e
menor de curadores, nós acompanhamos 84 pacientes entre quatro e seis meses através de
entrevistas cl ínicas e etnográficas, e também de observações de cerimónias de cura e ambientes
domésticos. Veja também Csordas (2000) . As entrevistas com os três pacientes discutidas
neste capí tulo foram conduzidas pela equipe de Elizabeth Lewton e Victoria Bydone.
225
I
'
226
r
>
227
I
ill
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
12 “Anglo” é o termo inglês genérico usado pelos navajos para os euro-americanos; o termo
navajo correspondente é bilagaana. Os afro -americanos e os mexicanos são reconhecidos
como grupos distintos.
!
•
! 228
Cura Ritual e Pol í tica de Identidade na Sociedade Navajo Contempor ânea
,J Como
Keith Basso ( 1979) documentou entre os apaches vizinhos, mis histórias constituem
um gênero maior da cultura expressiva navajo contemporânea.
229
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
mente insultados com a sugestão aparente de que eles eram um povo cheio
de doença ou, pior ainda, de que eram de alguma forma responsá veis pelo
surto. No m ínimo, a transformação da epidemia em um evento da m ídia
I global enfocou uma aten ção negativa sobre a reserva e sua gente. Nos fren é-
ticos dez dias que antecederam a identificação da enfermidade, a intensida-
de e o contraste entre opini ões de dentro e de fora da reserva foram
i especialmente vívidos para mim, posto que as opini ões estavam sendo emi-
tidas semanas antes da data em que eu e minha mulher devíamos sair para
um verão de trabalho de campo nas terras navajos com nossas crian ças gê-
meas que tinham , então, seis meses de idade. Amigos na comunidade uni-
versitária, incluindo o pediatra da fom ília, expressaram sérias d ú vidas sobre
a sensatez de nossa partida antes de conhecer a natureza e o grau de contágio
II da enfermidade misteriosa. Amigos na reserva, inclusive m édicos anglos,
estavam desorientados com o episódio, indicando que a vida ali seguia como
de costume, que o surto parecia ser bastante localizado e que, em todo caso,
fatalidades aconteciam todos os dias por uma variedade de causas entre as
quais essa era apenas mais uma.
Com nossa avaliaçã o da situaçã o suspensa entre esses polos de pânico e
complacência, pusemo-nos a caminho, esperando que por ocasião de nossa
! chegada a Albuquerque o mistério estivesse resolvido. Confer íamos as in-
formações telefónicas do CCD a cada parada noturna ao longo da estrada.
O dia em que chegamos a Albuquerque foi quando o CCD anunciou a
'( causa da enfermidade: uma nova cepa de um vírus asiá tico raro chamado
! hanta, até então conhecido por atacar o sistema renal , e não o respiratório.
Aconselhados por navajo tradicionais mais idosos que haviam observado
que muitos surtos de doen ças graves no início do século eram associados
com estações de muita chuva , safras abundantes de pinh ã o e um aumento
correspondente das populações de roedores (Schwarz, 1995), os pesquisa-
dores conclu íram que o vírus se espalhava pela saliva, a urina e as fezes de
! .
um rato da espécie Peromyscus ma? jiculatus. Esse rato não é conhecido por
invadir habitações humanas exceto ocasionalmente, em invernos frios. A
doença n ão parecia ser transmissível entre humanos. Os Centros de Con -
1
: trole de Doen ça, o Servi ço de Sa ú de do índio, o estado do Novo México,
e as agências tribais de sa úde estavam todos envolvidos na divulgaçã o da
i informação. A tribo divulgou orientação de como capturar e se desfazer de
I
230
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporânea
ratos com seguran ça. Muitos navajos levaram as advertê ncias a sé rio e toma-
ram precauções. Mas a situação pol ítica novamente se deteriorou, quando
uma agencia sugeriu que os navajos deixassem de realizar cerim ónias tradici-
onais em hogans com pisos sujos. A implicação de que suas cerimónias
sagradas eram conduzidas em estruturas potencialmente imundas com ex-
crementos de rato era mais uma vez profundamente insultuosa. Os hogans
são usados para habitação ou para cerim ónias, e a terra em seu interior é
cuidadosamente varrida e vista como muito limpa, de fato sagrada, pelos
navajos.
O resultado previsível do episódio foi um certo ressentimento e resis -
tê ncia. Uma mulher navajo, uma pessoa sofisticada e bicultural (ou seja,
igualmente familiarizada com as culturas angla e navajo) que era ativa em
política tribal e questões sanitárias, traçou o seguinte paralelo entre o surto
de hantavirus e as graves enchentes que estavam acontecendo ao mesmo
tempo naquele verão na região do Vale do Mississippi. Ela indicou que os
dois eventos estavam conectados - que considerando a inclinação da Mãe
Terra em manter toda a natureza em equil íbrio, n ão era de se surpreender
que os “ brancos” estivessem enfrentando dificuldades na medida em que
pessoas brancas haviam injuriado os navajos em relação à enfermidade mis-
teriosa. Como evidência, ela mostrou que por causa das enchentes muitos
brancos ao longo do Mississippi estavam sendo obrigados a carregar sua
própria água, exatamente como os navajos vinham fazendo há muitos anos
em sua á rida terra natal.
Ainda mais significativo foi o entendimento expresso por um curador
ancião da Igreja Americana Nativa (veja abaixo). Ele tinha sido consultado
pelos parentes de um jovem casal que estava entre as primeiras vítimas fatais
do surto. Eles estavam preocupados com o perigo espiritual, perguntando-
se o que teria causado as mortes e se deveriam agora tomar algumas medidas
cerimoniais. A resposta dele foi que era equivocado culpar os ratos, pois eles
são criaturas inofensivas sem qualquer capacidade aparente de animosidade
contra os humanos. Na sua estimativa, a morte do casal foi causada pela
exposição a uma contaminação atmosférica - veneno no ar de algum tipo
de teste do governo, ou veneno que atravessou o oceano vindo de alguma
fonte estrangeira (por exemplo, Chernobyl ou a Guerra do Golfo). Os
jovens haviam sucumbido por terem ido recentemente a mais de um fiine-
231
; I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
í
ral, fãzendo-se assim vulneráveis pela exposição aos mortos de uma forma
:! hoje bastante comum , mas que é considerada altamente inapropriada na
prá tica navajo tradicional. Tradicionalmentc apenas uns poucos parentes
mais próximos tomam encargo de um corpo morto e mesmo assim apenas
com cuidadosos procedimentos cerimoniais que os habilitam a lidar com o
espírito da pessoa e seus pertences com segurança. A explanação dual do
! curador é etiologicamente racional ao evocar um fator de vulnerabilidade
I individual combinado com um agente ao qual outros também estão expos-
tos, mas n ão sucumbem necessariamente. Mais impressionante, contudo, é
a sua lógica cultural com respeito à política de identidade, através da qual
11 í l combina a falta de adesão à prá tica tradicional pelos navajos com a patoge-
nicidade da sociedade dominante.
Histó rias de poluição atmosférica, ocasionalmente vinculadas a teorias
conspiratórias, são relativamente comuns na reserva, significando que elas
precedem o episódio do hantavirus. Tais histó rias não são ficcionais nem
' delirantes. Revelações sobre muitos anos passados confirmam que houve de
fato testes ambientalmente perigosos no Sudoeste (veja, por exemplo, o
programa Turning Point da ABC News, levado ao ar em 2 de fevereiro de
l i; ti 1994). Segredos de governo apenas recentemente divulgados pela m ídia
(para surpresa da maioria dos americanos) podem muito bem ter sido co-
nhecidos por observação ao longo de d écadas pelas pessoas que moram nas
áreas onde tais testes foram conduzidos. Dada a variedade de formas através
das quais os navajos (e outros) veem o ambiente e o modo de vida da
!
i! sociedade contemporânea em sério desequilíbrio, a sugestão de um simples
•
I rato pelas autoridades estimulou uma suspeita adicional. Eram comuns, na
época, comentários do tipo “minha avó tem ratos em volta da casa, e nin-
] I ! guém lá jamais ficou doente”. Alguns navajos assinalaram que as pessoas
1 I
tinham vivido ao lado de ratos durante séculos e apenas recentemente se
ouviu falar que ratos podiam fazer mal - assim como tinham usado as
mesmas fontes de água durante anos e apenas recentemente (por exemplo,
desde o advento da mineração de urânio) a contaminaçã o das águas tornou-
:
232
;;
lL MiL
'
.
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporâ nea
As aparições da seca
233
|
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í fn
;
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
:s!
!Í
na maior redu ção da criação de animais desde a redu ção dc 1930 imposta
peio governo. Aberle (1982) argumentou que a popularidade inicial da re-
I ligião do peiote entre os navajos foi uma resposta religiosa às condições dos
anos 1930; da mesma forma, eu vejo as aparições de 1996 como uma res-
posta reiigiosa à seca c às privações que as acompanharam. O mais impor-
tante é que as deidades deixaram uma mensagem para o povo navajo. Por
razões que elaborarei em um instante, eu n ão disponho das palavras exatas
do relato de uma das mulheres para quem as deidades apareceram, mas ouvi
várias interpretações daquela mensagem narradas por Navajos em diferentes
' regiões da reserva. Apesar dessas interpretações variarem em urgência e im-
portância, elas têm uma semelhança distintamente familiar. A interpretação
mais branda foi que a aparição era um aviso de que a seca estava chegando e
que os cantadores (mestres de cerim ónia tradicionais navajos ou curandei -
ros) deviam realizar as cerimónias apropriadas para prevenir ou amenizar os
efeitos. Uma outra foi que a seca e outras dificuldades estavam ocorrendo
!! porque as oferendas rituais certas n ão tinham sido feitas. A mais forte foi
que a seca rinha acontecido porque os navajos estavam deixando de apren-
der sua própria língua e cultura. Oferendas deviam ser feitas no local da
aparição, e não levar a advertência a sério podia acarretar o fim do mundo.
'm Esses relatos mostram a relevância da mensagem divina tanto para a
política identitária como para a cura entre os navajos contemporâ neos..As
oferendas solicitadas podem ser compreendidas como rituais de cura na
medida em que seu intento é a remoção de obstáculos à existência humana
5 ; ^
e a restauração do equilíbrio nas questões humanas e naturais A idéia de
que essa desordem é de responsabilidade dos próprios navajos por terem
renegado sua própria identidade está expl ícita na forma forte, enquanto na
forma branda poderia se interpretar que as deidades estão simplesmente
JM -
fazendo um favor ao povo navajo instruindo o nos modos rituais para a
; superação de uma situação dif ícil. O tema central n ão é uma nova revela -
ção, mas reflete o sentimento de muitos navajos preocupados com a viabi -
lidade cultural. Um cantador que entrevistei vá rios anos antes da seca
expressou isso com propriedade. Para ele, o atributo central dos cantos,
dan ças e cerim ónias é que eles curam as pessoas. Não realizar as cerim ónias
com tanta frequ ência quanto outrora, desconhecer os ensinamentos e os
planejamentos das gerações mais antigas, desarmonizar as cerimónias secu-
: 234
|. ;í
L : l:l íL •
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporâ nea
84 Essas raras hierofanias pú blicas podem ser particularmente associadas com momentos de
estresse coletivo , tais como a seca de 1996. Clyde Kluckhohn ( 1942 , p. 59- 60) relata duas
aparições de Povo Santo em 1936, durante o traumá tico per íodo da redução de animais de
criação forçada pelo governo dos EUA na reserva. Nestes casos particulares a mensagem
divina também inclu ía instruções para que a atividade cerimonial fosse realizada.
85
H á evidência , contudo, de que algumas cerimónias navajos se originaram em sonhos ou
visões ( Haile, 1940; Kluckhohn, 1942).
235
iiiii
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
i \i
duas mulheres tinha pedido que não se publicassem detalhes até que elas
decidissem divulgar a “história correta” de sua experiência e a mensagem do
Povo Santo, o que à época ainda não haviam feito.86
Os pedidos de circunspeção do presidente e da fam ília podem ou n ão
; ter conexão - isto é, o presidente pode ou n ão ter retransmitido o pedido da
;;
família ao mais amplo p ú blico navajo. A declarada preocupação com a exa-
tidão do detalhe pode ser o reconhecimento do que estava em jogo para o
£í
Esse pedido de sil êncio põe a pol ítica identitária navajo frente a frente com a pol í tica de
representação etnográfica no sentido de que, embora na época indivíduos navajos estivessem
dispostos a discutir a apari ção comigo, não estava claro de que maneira eu poderia escrever
respeitosamentesobre o incidente em um artigo etnográfico. Na presente discussão, eu me
oriento pelo artigo do jornal tribal citado no texto, mantendo um respeito cauteloso pelo
i sagrado ao não publicar os nomes do Povo Santo específico que apareceu, nem os detalhes
do seu modo de aparição.
!
236
;
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporânea
^
de espiritualidade navajo Não menos perturbadora poderia ser uma inva-
são de bem intencionados mas pouco educados “aspirantes” a índios da
Nova Era, que podem ter todo tipo de noção ultrajante do que seja uma
oferenda correta a deidades que não são as suas. Do ponto de vista tradicio-
nal, essa seria de fato uma situação perigosa. Em relação a tudo isso, o
pedido de circunspeção tão amplamente atendido foi um ato político notá-
vel de auto-identificação coletiva frente à sociedade dominante n ão-navajo.
Internamente, questões sagradas e pragm á ticas envolveram a interpre-
tação das apari ções, especialmente no que diz respeito à sua autenticidade.
Curandeiros de algumas partes da reserva objetaram que eles já vinham
conduzindo cerimonias, e conduzindo-as corretamente; portanto, eles eram
cé ticos quanto à aparente necessidade das deidades descerem para trazer uma
tal mensagem. Além disso, os planos para uma cerimónia p ú blica no local
da aparição em benefício de toda a tribo pareciam pouco ortodoxos aos
olhos de alguns anciãos, que consideravam mais apropriadas as cerim ó nias
para chuva realizadas de forma localizada e privada por famílias individuais.
237
ft
i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
: i i! r
Outros ainda temiam que os navajos tradicionais estivessem ( nova reminis-
cência do episódio do hantavirus) sendo indevidamente exclu ídos c que a
mensagem do Povo Santo também era relevante para navajo de outras con-
, i, -
vicções religiosas c até mesmo para os n ão navajo. Nesse ponto de vista, o
povo todo, inclusive cristãos, precisa voltar às suas tradi ções. Pragmatica-
mente, alguns navajos expressaram a preocupa ção de que a legitimidade das
: aparições, ou ao menos seu impacto positivo, estivesse sendo minada pelo
! !|í benefício financeiro extraído dos eventos. Auferir lucros de um evento sa-
grado é rigorosamente distinto das remunerações pagas a um cantador que
conferem respeitabilidade à sua cerim ónia e legitimidade frente ao Povo
Santo. Nesse caso, algumas pessoas reclamaram que a fam ília anfitriã estava
“vendendo tacos” lá fora e que havia um curandeiro ( hataalii) pedindo di-
nheiro aos visitantes. Em contraste, um curandeiro respeitado que realizou
uma cerim ónia no local disse que mesmo com todo o dinheiro sendo arre-
cadado, a remuneração que ele recebeu foi muito pequena para pagar ade-
quadamente seus assistentes cerimoniais.
í :
• . crucial é a coexistência de três formas de cura espiritual na sociedade navajo
i !
! contemporânea: a cura navajo tradicional, a cura da Igreja Americana Nati-
va e cura pela fé cristã navajo.87 A cura tradicional é praticada pelo curandei-
ro com seu canto, sua pintura de areia e pelo diagnosticador que trabalha
com m étodos como o de tremer a mão, de fitar cristais ou fitar estrelas. A
,
£7
Um relato abrangente de sistema de saúde navajo teria quatro componentes, incluindo
cuidados biom édicos praticados nas instalações do Servi ço de Saúde Ind ígena e hospitais
públicos e particulares tanto dentro como fora da reserva (Csordas; Garrity, 1992). A
interação das tradi ções espirituais com os cuidados biomédicos está al ém do â mbito do
presente argumento.
I
.
? 238
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporâ nea
na
cllra da lBrcja America Nativa c praticada pelo andarilho, com seu altar de
barro» o peiote sacramental e a cabana sudatoria de estilo indígena das Gran-
ja Plan ícies. Finalmente, a cura pela fé cristã é praticada pelo pregador
pcntecostal navajo independente, com seus encontros de revivificação e
imposição de mãos, c pelos grupos de oração carismáticos católicos com
sua integração comunitá ria de prá ticas navajos e católicas romanas.
Todas essas formas de cura são recursos dispon íveis na reserva navajo,
mas apenas a ,que é ;baseada na religião tradicional é nativa para o povo
navajo (Farella 1984 Reichard, 1950; Witherspoon, 1977). A Igreja Ame-
ricana Nativa (IAN) é um movimento pan-ind ígena que desenvolveu o uso
sacramental do peiote em sua forma contemporânea iniciando em torno da
virada do século XX com as tribos ind ígenas das plan ícies. Com sua intro -
du ção nas terras navajos na década de 1930, os adeptos sofreram pressões
legais de seu próprio governo tribal, que decretou ilegal o peiotismo em
2940 e n ão mudou para a tolerância até 1966 (Aberle, 1982; La Barre,
1975; Stewart; Aberle, 1984). A introdução e influência do cristianismo
em muitas de suas formas contemporâneas foi apenas esporadicamente do-
cumentada para a sociedade navajo (Bowden, 1981; Hodge, 1969; Som-
brero, 1996). O catolicismo veio em larga medida com a influência de
missionários franciscanos, e o mormonismo chegou com missionários de
Utah. Muitas das principais denominações protestantes estão representadas,
mas assim como entre cristãos noutras sociedades, a maioria dos rituais de
cura é conduzida por adeptos de várias formas de pentecostalismo. Isso
inclui ramos de denominações como as Assembléias de Deus e participantes
de grupos de oração carismá ticos em paróquias cristãs. Notavelmente, con-
tudo, elas também incluem várias congregações independentes e redes de
congregações que parecem ser protodenominações, todas encabeçadas por
pastores ind ígenas navajos. Elas constituem uma forma emergente e distin-
tamente navajo de cristianismo.
É possível delinear um modelo de relacionamento entre as formas de
cura associadas com estas três tradições religiosas com respeito ao que elas
têm em comum enquanto aspectos da cultura navajo e o que as distingue
uma da outra como componentes de um sistema cultural de saúde. Para
resumir um argumento que desenvolverei detalhadamente no próximo
capítulo, todas as três têm como objetivo comum que o paciente com-
239
1 ( 1:
:
I :
preenda - os curadores navajos geralmente dizem que um curador dcvc
' ;
falar com eles de modo que eles entendam. Em contraste com uma ê nfase
psicanalítica no “insight” acerca das origens conflitivas do problema , esse
tipo de compreensão tem mais a ver com o lugar atual de uma pessoa no
mundo, e está de acordo com a preeminê ncia frequentemente observada da
linguagem e do pensamento na cultura navajo (Farella, 1984; Witherspo-
on, 1977). No entanto, cada uma das três formas de cura navajo se aproxi-
ma do objetivo da compreensão em termos de uma filosofia distinta e por
meio de um princípio terapê utico diferente. A cura navajo tradicional é
í baseada no que pode ser chamado de uma filosofia de obstáculos. Nada
acontece sem uma razão, e a razão do infortú nio é encontrar um obstáculo.
. í O princípio terapêutico da cura tradicional é did á tico, pois o curador engaja
o paciente no processo terapêutico usando mé todos que guiam o pensa-
mento em direção ao objetivo da compreensão. Em contraste com a filoso-
fia de obstáculos da cura tradicional, a cura da Igreja Americana Nativa
: (IAN) é baseada numa filosofia da auto-estima. Através da ingestão sacra-
mental de peiote, os pacientes logram uma profunda conexão pessoal com
o sagrado e suas vozes e presen ças são valorizadas. O princípio terapê utico
i na cura da Igreja Americana Nativa é confessional, pois os pacientes oram,
I ' f confessam ou falam de seus problemas, se emocionam e choram. A cura
cristã navajo é caracterizada por uma filosofia da identidade moral, respon-
dendo à pergunta “quem sou eu ?”, de modo a incluir freq úentemente entre
f úndamentalistas a compreensão de que a pessoa respondendo à pergunta
não é um tradicionalista ou um peiotista. Finalmente, o princípio terapê u-
tico da cura cristã é conversional, com a cura geralmente baseada na adoção
de valores cristãos e de um modo de vida cristão.
Além dessas relações em princípio relativamente abstratas, as políticas
identitárias na sociedade navajo se manifestam na interação e negociação
entre essas três formas de cura na prá tica de cada dia. As três toleram vá rios
graus de ecletismo com respeito à mistura de formas, mais entre peiotistas e
católicos romanos, e menos entre cristãos f ú ndamentalistas e tradicionalis-
BI tas conservadores. Os cristãos f ú ndamentalistas, incluindo pentecostais pro-
testantes, normalmente exigem que os convertidos queimem a parafern ália
cerimonial pertencente a prá ticas tradicionais ou da LAN - dar tais objetos a
parentes n ão convertidos não basta. Por outro lado, tradicionalistas conser-
240
[; i 1 4 -
MIJ
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporânea
Isso é uma nova moda. Isso é uma prá tica nova. Eles a reivindicam como
uma cerimó nia navajo, mas você os ouve cantar parabé ns junto com as
m úsicas da Igreja Americana Nativa deles. Nós curandeiros navajos n ão
241
;
I
cantamos assim ... Agora, com a Igreja Americana Nativa, eles usam o
• i! i í broto de peiote e cantam can ções. Eu n ão entendo as can ções. Mas sã o
I? muitas c ainda tem emocionalismo demais nelas. També m , o broto de
peiote, ele funciona como analgésico. Então, dizer que é cura de verda-
pií i I
de, tem dois lados nisso e é duvidoso.
242
T
'
guir o rem édio. Entre os tradicionais, clcs conseguem as ervas das mon-
tanhas. Nós cristãos n ão precisamos ir às montanhas ou ao México ou ao
Texas.
Cura tradicional
^
Sylvia é uma mulher de 30 anos em seu terceiro ano de faculdade
numa pequena seção da universidade do estado em uma das cidades adja-
centes à reserva. Ela é muito ligada à fam ília, especialmente à mãe, a quem
ela admira por sua força, seu respeito, conforto e apoio. Ela se vê como uma
243
fl
lí
i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
O problema dela começou com a morte do pai sete anos antes, quan-
do, como a mais velha de seis filhos, ela assumiu boa parte do papel e das
responsabilidades dele. Desde então, ela vem literalmente carregando o peso
de sua morte nos ombros, com o início de dores no ombro e no braço do
lado esquerdo. No hospital, os raios X foram inconclusivos e ela desenvol-
veu uma depend ência do medicamento contra a dor que inflamou a parede
do seu estômago. O tratamento frequente com quiroprá ticos ajudou tem-
porariamente, mas a dor sempre voltava. Ela sentiu que havia um compo-
nente espiritual no problema e que esse componente só podia ser abordado
através de uma cerim ónia tradicional. Esse sentimento pode dever-se em
pane ao fato de seu pai ter sido um forte crente na religião tradicional, e,
como em outros aspectos da vida, ela sentiu a necessidade continuar nos
caminhos dele. De fato, havia um significativo componente emocional na
sua aflição. Ela relatou que ela n ão era ela mesma ( uma autodescrição co -
mum entre Navajos enfermos ou aflitos) e que estava solitá ria e infeliz. Ela
disse que pensava no pai e sonhava com ele, tinha pensamentos sobre as
mortes de outros e experimentava sentimentos negativos: “ Como se hou-
;
L 244
íirL
Cura Ritual e Política de Identidade na Sociedade Navajo Contemporânea
" Alguns navajos criticam o uso do termo “Caminho do Mal” pan traduzir o nome da
cerimónia Hochxooji. Na opini ão deles, os efeitos deletérios da exposição aos espíritos dos
mortos não estão bem descritos em uma palavra que conota profunda malevolência e até
mesmo influência demon íaca.
245
íl
,
CORPO/ SIGNIFICADO / CURA
í
í
necessito. Toda essa coisa que eu sinto. Acho que é isso que uma pessoa
tradicional hz... Me deu muita coragem e determinação dizer que eu
não vou terminar. Suponho que essa seja uma motivação para, você sabe,
ter dentro de mim não apenas o caminho inglês como também o cami-
í ií jiii
i ! • nho tradicional navajo. Simplesmente faz você querer mais, lutar por
mais, você sabe, saber que onde quer que você vá, você está sempre pro-
1 tegido... Depois que eu soube - uma vez que a cerimónia ou a parte
principal concluiu - para o que eu estava ali, e o que deveria ter feito por
mim, foi feito porque, você sabe, eles dizem que esta oração é poderosís-
í!l sima E você sabe aquelas coisas que você segura, têm a ponta de flecha e
aquilo tudo. São muito poderosas. Tudo isso vem com, você sabe, histó-
rias e por trás disso h á um significado para tudo aquilo ... eu podia
lií Ml í '
]
:
• sentir dentro de mim. Eu podia sentir uma mistura de tudo o que ele
'
estava orando a respeito. E eu podia sentir. Você precisa mesmo enten -
i
lU I
246
m
fcl II
J - tf
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contempor ânea
der, você sabe, por que sua cerim ónia está sendo conduzida , você sabe, e
as razões para isso c o propósito do que ela vai fazer por você no final.
Você sabe por que eles usaram aquelas orações. E també m por trás de
cada oração c de cada canto que é entoado tradicionalmente, o curandei-
ro sempre lhe diz por que aquela m úsica surgiu c qual c o propósito dela
c para que ela serviu. Então sabendo disso, sabendo depois que ele te
contar, você sabe, você pensa “ OK, é assim que eu vou atravessar esse
processo de consciê ncia.” [...] Então penso que tudo diminuiu ... Eu
n ão sei exatamente quando foi, ou você n ão sabe exatamente, “ OK, de-
pois dessa m úsica eu estou curada.” Geralmente leva tempo.
Assim, a cura tradicional iniciou uma série de mudan ças para Sylvia.
Ela foi capaz de dar sentido à morte de seu pai sem culpá-lo; de se sentir
segura do bem-estar dele na outra vida e de largar a aflitiva presença da outra
vida dele na sua vida; de aprender a vivenciar as memórias positivas de seu
pai, ao invés das negativas; de questionar e finalmente reafirmar sua própria
identidade em termos de aspirações, passado, família e cultura; a aliviar sua
dor física e seus pensamentos negativos; e a tornar-se mais próxima de seu
namorado e de sua família.
Cura cristã
247
„ .( 1[ 1'
!
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
1
.
I 248
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporâ nea
qual o seu segundo marido infiel era seguidor, e outra extremamente posi-
tiva com a cura tradicional , na qual o seu pai é curandeiro. Ela recorda o seu
segundo marido ameaçando-a com a volta do peiote, que de alguma forma
“virá atrás de você c fará alguma coisa com você” se ela não o ouvisse e
respeitasse. Ela deixou o marido praticar e ter peiote em casa, e deixou até
um andarilho conhecido morar com eles algum tempo e fazer uma sessão
de peiote para ela. Ela sentiu, no entanto, que esse andarilho estava também
“usando peiote para sexo e amor”, fazendo com que o marido dela a deixas-
se, envolvendo-o no seu abuso do poder espiritual do peiote. Ela expulsou
o andarilho corrupto de casa, dizendo que preferia o caminho da quimiote-
rapia do que se submeter ao tratamento dele; em todo caso, ela n ão acredi-
tava que uma cerim ó nia de uma noite pudesse curá-la. Ela afirmou que um
médico lhe disse que o peiote poderia fazer o câncer crescer, e chegou à
conclusão que seu marido e o andarilho estavam conspirando para matá-la.
Por outro lado, embora em princípio ela sinta que n ão pode mais
participar de cerimónias tradicionais porque já “me dediquei ao Senhor”,
pouco depois que o marido saiu de casa ela se submeteu a uma cerimónia de
Benzedura feita por um benzedor contratado pelo pai. Nesse caso, o prag-
matismo na lógica da escolha terapê utica, na forma de aceitação de um
tratamento alternativo que poderá não apenas ser eficaz, mas também agra-
dar um membro da fam ília, se choca com a política identitária no n ível
pessoal. Embora Nancy pertença a uma clássica congregação fundamenta-
lista navajo independente, a pessoa amiga a quem ela pediu conselho antes
de decidir disse-lhe para seguir em frente, desde que a cerim ónia fosse de
Benzedura e não de Maldição e que ela fizesse uma oração, “pois assim você
recebe um raio da luz do Senhor”. De fato, a pessoa amiga aconselhou-a a
dar uma bênção cristã à cerimó nia tradicional. Nancy relatou o seguinte
efeito da cerimónia:
249
1
CORPO / SiGNincADo / CUR/\
í
Para Nancy, a experiê ncia de “ser puxada de três maneiras” foi resolvida
!
íl !! por ter sido salva. Ela expressou a necessidade de “saber de que lado estou”,
dc “me encontrar” c de “saber o que está acontecendo na minha vida”. Esse
Ui li ! conhecimento emergiu por um ato de comprometimento com o cristianis-
mo. Ela diz: “E então, quando eu fui salva, tive de fazer a minha própria
prece dc dentro do meu próprio coração, do meu eu interior, e simples-
'
mente entregar tudo, todos os meus problemas, de volta ao Senhor e deixar
!! ! clc cuidar de tudo. ”
250
L
Cura Ritual e Pol í tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporânea
só saber que você está sendo ajudado. E é só isso. Quer dizer, eu assisto
a isso desde crian ça, então você simplesmente sabe que vai funcionar, eu
acho. É uma ideia. E você relaciona os seus problemas com outras coisas,
e às vezes pode ver a fonte do seu problema, por que ele está acontecen -
do, por que ele lhe deixa cego.
iti!>' ação familiar muito melhor. Ele continuou com a namorada c vá rios mcscs
!.V mais tarde ela engravidou.
'
George parece estar explicitamente preocupado com a sua pró pria idea
HlHj! tidade e ter orgulho de sua experiência e receptividade a novas ideias. £|e
i: ^
.
um rapaz que deseja fazer tudo, que está interessado em tudo e que
“Minha vida inteira é uma experiência.” Segundo George, sua religi ão ensi-
na-lhe a como “se conduzir”. Ele receia que “a sociedade vai derrubar todos
n ós” e se preocupa com os “novos navajos” que “não querem ver”, qUe são
materialistas e não querem que os seus colegas saibam que eles falam a
i
l íngua navajo ou que eles participam de cerimonias. Para ele, o próprio
peiote é menos um espírito ou uma identidade do que um meio de prote-
ção e um remédio que permite pensar e expressar com clareza e ensina a
[
^
liberar emoções. Nesse caso, a cura foi uma maneira de atravessar um perí-
odo de transição difícil, no qual a identidade como navajo - um homem
navajo bicultural, adulto, responsável, com profundos laços de família e
aspirações significativas no mundo contemporâneo - era a questão imediataj
t Cura e política, a política da cura, política de cura, cura política
jcomo formular então essa relação - como está sendo feita a política
de identidade através da prática de cura ritual entre os navajos? Para respon-
'
'
der essa questão é preciso tomar uma posição sobre a série de religiões con-
ceituais que identifiquei no início entre religião e política, tradição e
modernidade, individual e coletivo, microssocial e macrossocial. Ao elabo-
rar uma tal posição, quero rever a parte da literatura antropológica em que
se começou a discutir como a relevância da cura ritual, que já é uma forma
de poder cultural, vai muito além de um problema, uma enfermidade ou
um transtorno específico /Arthur Kleinman (1980, 1986) foi pioneiro nes -
sa área com seus estudos ae cura e transtorno psiqui átrico depois da Revolu -
ção Cultural chinesa, mostrando que o sofrimento deve ser compreendido
tanto no contexto das realidades políticas mais amplas como dos universos
morais‘
locais. Trabalhando também na China, Thomas Ots (1994) docu -
mentou mudanças em prá ticas corporais e experiências emocionais em um
movimento de cura catártica baseado em qigong (terapia respiratória) enl
252
L
Cura Ritual e Polí tica de Identidade na Sociedade Navajo Contemporâ nea
^
figura central no discurso cultural do colonialism Libbet Crandon (19S9)
253
19 !
HI
i CORPO / SIGNIFICADO / CUR \/
cepções ind ígenas de etiologia mudaram , mas as prá ticas dc cura mudaram
! j; ! j !
i pouco. Manter um senso crítico de equil íbrio cosmológico baseado na ne-
i! " ;í|j cessidade de aplacar tanto as divindades andinas como as cristãs ficou cada
m\ vez mais difícil, c a preservação de prá ticas de cura tradicionais tornou-se
uma forma de resistência política. Ramirez de Jara e Pinzon Castano (1992)
discutiram como os xamãs sibundoy na Colômbia integram a estrutura de
pensamento ind ígena e os desafios da sociedade nacional com as diversas
manifestações da cultura popular colombiana. J. Waldram (1993) exami-
nou a cura simbólica em penitenciárias canadenses, observando especifica-
mente infratores aborígenes em programas de conscientização culturalJUs
/ programas dão novo sentido a vidas destruídas e ajudam os prisioneiros a
! í: i
j | resolver conflitos de identidade. Como muitos infratores vêm de diferentes
!j jljl í0
grupos nativos, o estabelecimento de uma base cultural e um mundo míti-
co comuns também é uma adaptação a uma situação de crescente pluralida-
r
!
/
' 1 .
de cultural
/integrar essas poucas fontes é apenas um pequeno primeiro passo no
detalhamento de uma problemá tica em que a discussão tende com extrema
; facilidade a polarizar interpretações simplistas. Ou a cura ritual é uma ex-
I pressão futil de frustração - a interpretação tipo ópio das massas - ou a cura
ritual é uma forma sutil de resistência política - a interpretação tipo liberta-
1 ção pós-moderna da voz indígena. Eu sugiro que o tipo de an álise que
iniciei, da situação navajo, oferece oportunidade mais nuançada de esclare-
/
cer as relações entre os recortes conceituais que identifiquei aqui Para tornar
: minha posição explícita, a á rea de conhecimento precisa ir além' de definir o
projeto como um estudo de cura ritual no contexto da pol ítica, ou como a
abertura de uma janela de pregões sobre processos políticos mais amplos, na
direção de uma compreensão do tipo de transdutor experiencial eficiente
entre os campos religioso e pol ítico. A experi ência corporal pode ser um
: exemplo primeiro de tal transdutor e, além do mais, um exemplo relevante
254
i
cm todos os três n íveis da relaçã o entre cura e pol ítica identitá ria que iden -
tifiquei (veja Figura 5.1).
Representa çã o
entre sociedades
Corpo pol ítico
Negocia çã o
Cura ritual dentro dn sociedade Polfilca idcrttrrá ria
Corpo social
Transforma çã o
Pessoa na sociedade
Corpo Individual
255
mí i\I
ill CORPO / SIGNIFICADO / CURA
,
: ! os problemas de identidade individual e coletiva se juntaram, porque a
identidade individual foi moldada por aquilo que Foucault chamou de
novas disciplinas de poder, e também porque foi levantada a questão de
que tipo de identidade individual qualifica uma pessoa para participar
nos discursos p ú blicos que moldam as pol íticas e influenciam opoderj
256
í
Cura Ritual e Pol í tica de Identidade na Sociedade Navajo Contempor â nea
257
. CAP ÍTULO SEIS
Fale com Eles para que Entendam'
\
IT
: í
<
;í
: Pólen de milho, lareira e cruz
! j
i lf j l
Para os navajos adeptos da religi ão tradicional do seu povo, o pólen do
milho que fornece grande parte de sua nutri ção d um símbolo poderoso de
i
vida , crescimento c bem-estar. Frequentemente, eles carregam um pouco
j s ;i consigo numa pequena bolsa, e ele d usado em muitas cerimonias. A reli-
>. giã o e a cura tradicionais às vezes são chamadas de “caminho do pólen dc
milho”. Essa forma de cura inclui as prá ticas do curandeiro com seus câ nti-
| I cos e pinturas de areia, e do diagnosticador que utiliza mdtodos como tre-
!
mer a mão ou fitar cristal. Para aqueles que seguem os ensinamentos da
Igreja Americana Nativa, o símbolo central d a lareira aberta em torno da
qual os participantes se re únem para orar. É uma fonte de calor, energia e
inspiração considerada algumas vezes como um tipo de avô nutridor. A
cura da Igreja Americana Nativa d aquela do andarilho com o seu altar em
forma de meia-lua e o peiote sacramental dispostos em relação ao fogo, e
' 1
j do chefe da cabana sudatoria que muitas vezes segue a forma cerimonial dos
: 1 índios das Grandes Planícies em vez da praticada nas pequenas cabanas su-
I
I datórias de argila tradicionais dos navajos. Finalmente, para os navajos que
if 1
260
Fale com Eles para que Entendam
êxito na cura: guc o paciente venha a “entenderj Para ser específico, quando
/
algu é m pergunta como o trabalho deles ajuda as pessoas, os curadores nava -
jos não se referem ao efeito espiritual do seu desempenho ritual com os
pacientes, mas normalmcnte dizem que “é preciso falar com eles para que
cies entendam”. Esse entendimento é culturalmente distinto da noção de
percepção dos processos psicodin âmicos como critério de êxito encontrada
na psicotcrapia euro-americana. Ele é, cm vez disso, uma contextualizaçã o
da experiê ncia de vida em termos de uma filosofia específica e por meio de
um princípio terapê utico específico. Independentementedequal dessas três
formas de cura eles praticam, os curadores contemporâ neos são participan-
tes da cultura navajo e articulam “entendimento” como critério de êxito
terapêutico. De fato, isso está em conformidade com a preemin ência da
linguagem e do pensamento muitas vezes observada na cultura navajo. Como
Gary Witherspoon (1977) observou, “o mundo foi realmente criado ou
organizado por meio de linguagem. A forma do mundo foi concebida pri-
meiro em pensamento e, então, essa forma foi projetada na substância de-
sordenada primordial através do poder compulsivo de fala e canto”. A
continuidade entre as formas de cura com relação a essas noções fornece as
condições de possibilidade para a sua coexistência dentro do mesmo siste-
ma cultural de cuidado à sa úde. Dentro desse sistema, todavia, seus modos
de abordar a meta do entendimento são diferenciados por distintos princí-
/
pios terapêuticos e filosofias Esboçarei as prá ticas de cura upicas de cada
tradição, apresentando cada uma delas em termos de sua filosofia e seu
^
princípio terapê utico característico
261
I ill il
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
i; l
existencial que vem desde os tempos da criação do mundo. Até o alimento
que comemos é um desses problemas. Ele vem de lugares estranhos, estran-
geiros, inimigos, causando enfermidades como diabetes c câ ncer. O mesmo
íi entoador diz: “E que tipo de alimento é o álcool ? Ele faz você vomitar c n ão
pensar direito, ele mata as pessoas. Quem faz uma coisa dessas, que envene-
na e mata as pessoas?”
JÕ princípio terapêutico da cura tradicional é didático. Há uma quan-
tidade de técnicas à disposição do curador e, ao contrá rio de muito do que
se pensa sobre a cura ritual, elas não são manipulações rituais que o paciente
observa como espectador. Em vez disso, são mé todos para envolver o paci-
ente no processo terapê utico, guiando o pensamento em direção à meta do
entendimento. Esse envolvimento do paciente no processo terapê utico foi
sugerido em uma conversa com uma diagnosticadora navajo tradicional.
Ela disse que sua instrução para um adolescente cheio de problemas era:
i “pensa nos teus pais e como eles te criaram”, para levá-lo a rever sua vida.
:
Ela, então, se voltou para minha assistente de pesquisa e disse, referindo-se
a mim: “Ele provavelmente está pensando nos pais dele neste momentoFJ
Abordar a técnica rimai dessa maneira joga uma luz experiencial em
!
n :
prá ticas como a de fazer o paciente sentar numa pintura de areia ou segurar
uma bolsa de montanha sagrada. O paciente também se envolve no proces-
so terapêutico acompanhando a enumeração do curador de todos os pontos
do seu corpo, dos dedos dos pés até a cabeça. Para dar um exemplo mais
específico, a utilização de pedras recolhidas de manha cedo pelo curador -
pedras pretas, madrepérola, turquesa, pedra vermelha - têm mais do que o
significado simbólico da aurora e dos quatro pontos cardeais com suas cores
cosmologicamente significativas. Para uma diagnosticadora tradicional com
quem falei, as pedras têm um valor terapê utico mnemó nico, pelo qual o
paciente incorpora na primeira pedra a inten ção de parar a vontade de beber,
: na segunda, a de tornar-se uma pessoa melhor, na terceira, a de ser nova-
mente um pessoa inteira, considerando integralmente seu lar, seu alimento,
5 sua água, e, na quarta, a de encontrar um emprego para prosperar e poder
comprar um carro. A curadora explica que os problemas do paciente são
:
l “compactados como numa bola de barro”. Ela diz a eles que a cura n ão
3 acontece da noite para o dia, mas é uma coisa gradual como a mudan ça de
pensamentos.
262
i
j ;
Fale com Eles para que Entendam
263
ill: 1
i; i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
i
sendo dito. Olhar o fogo na tenda cerimonial tendo a escuridão como
n pano de fundo geral cria concentração, como num transe, focando seus
i; :; h pensamentos. O gosto amargo da planta dá atenção/alerta ã vida - c n ão
adianta adoçar. [Você está] sentindo os efeitos por todo o seu sistema,
sentindo o fogo c a fumaça cm torno do seu corpo.
264
Fale com Eles para que Entendam
Cura cristã
^
e a fez ajoelhar ao lado do sofá, rezando Depois desse incidente, a vizinha e
o marido renunciaram ao antigo h á bito de usar peiote e se tornaram cris-
tãos. A narradora acrescentou que depois de ter “testemunhado” ou relatado
esse evento à congregação, um homem dizendo que tinha problemas com
álcool e com peiote e não conseguia se livrar de nenhum deles se apresentou
265
í
5 ! CORTO / SIGNIFICADO / CURA
I : É
I i
1 durante a “chamada ao altar”. Ele disse que realmentc entendeu as palavras
n: ;
dela, e elas realmente tiveram efeito nele. Aparentemente, ele se livrou da
influ ência das duas substâ ncias, ambas consideradas drogas perigosas c peca-
minosas.
266
Fale com Eles para que Entendam
267
11 !h !
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
I
/dentro
A elaboração de alternativas ou negociação de possibilidades que existem
do “mundo presumido” da pessoa afligida. Os sistemas de cura
podem formular essas alternativas cm termos de uma variedade de
metáforas e podem utilizar meios rituais ou pragm á ticos que encorajem
a atividade ou a passividade, mas as possibilidades devem ser percebidas
como reais e realísticas
^
A realização da mudança, inclusive o que conta como mudança e o
grau até o qual essa mudan ça é considerada significativa pelos
participantes. Isso pode ocorrer de forma incremental e irrestrita, sem
H: i um resultado definitivo.
í
.
;
n e autoritário, embora o pai tivesse sido seu “companheiro de trago” quando
eles trabalharam juntos na ferrovia e ele tinha entre 19 e 20 anos. Jesse
frequentou por pouco tempo um semi-internato, mas disse que tudo que
í
; 268
:
Fale com Eles para que Entendam
eles faziam l á era catar Jixo c, quando n ão catavam o bastante, eram surra -
dos. Depois de largar a escola ele trabalhou em diversos lugares, inclusive na
agricultura local e migrante, numa olaria fazendo adobe e tijolos, em ferro -
vias, na construção de redes de água e esgoto e, por um curto período de três
ou quatro meses, em uma mina de urâ nio. Ele contou que teve doze espo-
sas, embora a maioria desses relacionamentos tivessem sido curtos, e ele
tem apenas quatro filhos com as duas mulheres com quem se casou oficial-
mente. Sua esposa mais recente faleceu dois meses antes de nossas entrevis-
tas. Parece que ele tinha profunda afeição por ela, mas disse que eles falaram
sobre divórcio. Ele contou que ela queria ir embora, em parte porque acre-
ditava que havia uma abund ância de yenaldooshi (feiticeiros) em torno da
casa deles e também que as bruxas tinham enterrado coisas por ali.
Como um típico navajo tradicional, Jesse ora todas as manhãs ao nas -
cer do sol com pólen de milho, e suas crenças sobre a etiologia dos seus
vá rios problemas médicos e sociais sempre revelam causas tradicionais.
Quando questionado sobre como ele ora, Jesse respondeu: “Indo lá em
cima do morro, geralmente eu me recupero com orações navajos. Isso é o
pólen de milho, o pólen de milho menino, o pólen de milho menina, e a
terra, a aurora, sol, lua, lusco-fusco, escurid ão, e... qualquer coisa.” Ele leva
um saquinho plástico transparente na carteira, contendo pólen de milho
misturado com suco biliar de leão da montanha, de urso ou de lobo. Ele
disse que carrega isto para se prevenir contra bruxaria, especialmente em
dan ças sociais como a yeibichei. Ele mencionou que seus avós contaram
muitas histó rias de coiote e outras histó rias a ele e seus irmãos para que
soubessem distinguir entre o bom e o mau comportamento.
Jesse liga a raiz dos seus problemas a uma cerimónia tradicional do
Caminho do Relâmpago em 1957, quando ele tinha uns 30 anos. A ceri-
mó nia estava sendo celebrada para um paciente que também era cantador
do Caminho do Relâmpago. Durante um intervalo da cerim ó nia, o hogan
foi atingido por um raio, e uma chama azul desceu hogan adentro através da
abertura da saída de fumaça no teto. Duas das oito pessoas no hogan foram
mortas, inclusive o pai de Jesse: “Ele estava dormindo, enrolado nos cober-
tores. Tinha um outro homem deitado aqui... deitado assim de lado, e ele
foi jogado para cima e cortado no meio. Meu pai estava lá, deitado, e o
relâ mpago atravessou ele completamente. Havia dois." O curandeiro estava
269
fill ! '
'; I i
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
:: í i
liill
.1 ,
'
deitado c n ão foi atingido. O paciente estava fora do hogan naquele mo-
mento, e também n ão foi atingido. Al ém dos dois mortos, um outro ho-
mem foi atingido pelo raio, mas apenas nas pernas, e sobreviveu. Jcssc foi
i‘
| jogado contra a parede c caiu sem sentidos ao lado da porta. Durante o
|!
tempo em que ficou desmaiado, cie se viu do alto do hogan, fora do corpo.
Jesse e vá rios outros membros da .fà m ília acordaram com ásperas mar-
cas em forma de relâmpago estampadas no peito. Duas de suas irm ãs que
n ão estavam participando da cerimonia entraram no hogan para ajudar, fi-
i
cando também expostas aos efeitos do relâ mpago. Após o incidente e antes
: de se recuperar totalmente, Jesse fez sexo com sua mulher. Ela morreu me-
nos de um ano depois. Mais tarde, Jesse compreendeu o seu erro e se deu
í f conta de que tinha causado a morte dela. Jesse vê muito do que ocorreu
: subseqiicntemente em sua vida como relacionado a esse evento. Sem d úvi-
da, aquilo foi um trauma permanente para toda a fam ília, ainda mais levan-
-
do cm consideração o perigo espiritual e o poder ritual associado na religião
navajo com relâmpagos e cerimonias associadas com relâmpagos (veja tam-
bém Capítulos Sete e Oito). No entanto, ele sentiu que o contato com o
i' V relâmpago foi um tipo de iniciação e que, tendo escapado ileso, ele foi
“aceito pelo relâmpago”, sugerindo assim um tipo de afinidade permanente
com essa força poderosa. De fato, o incidente pode tê-lo deixado com men-
sagens altamente divergentes de sua própria força espiritual combinadas com
: um sentimento de isolamento ou mesmo de alienação das outras pessoas
em sua vida. Em outras palavras, pode ser descrito como a combinação de
i uma resposta a um estresse pós-traum á tico com a intensificação de senti-
i
mentos associados com a violação de fortes conven ções sociais.
Jesse disse que tinha mandado realizar cerimónias para o problema,
i mas que foram cantorias menores e ele achou que elas n ão deram resultado,
i
em parte porque “os cantadores n ão fazem um bom trabalho, completo
i
,!
[ ..] hoje em dia tudo é feito às pressas, na hora que você faz o pagamento”.
.
É importante observar que algo catastrófico como o incidente do raio que
matou o pai de Jesse nunca foi tratado em uma grande cerim ó nia. Todavia,
\ m\ como acontece com frequência, Jesse disse que seus sintomas só surgiram
muito depois (15 a 20 anos) porque, quando ele era jovem, ele tinha um
:
“corpo forte”. Na visão navajo, esses efeitos retardados poderiam ter sido
i
evitados se o cantador original tivesse tomado medidas para corrigir a situ -
270
Fale com Eles para que Entendam
271
ff CORPO / SIGNIFICADO / CURA
:
I
onde ela foi celebrada, dando in ício a um período de quatro dias durante os
quais um paciente deve permanecer quieto e reverente. Ele disse que sentiu
que a cerim ónia foi bem-sucedida. Questionado sobre qual teria sido a
! í S if
im !
parte mais importante, ele respondeu “a coisa toda”. Ele disse que n ão estava
sentindo nem pensando sobre muitas coisas durante a cerimonia, mas ape-
1 si nas se concentrando nos procedimentos. No entanto, mencionou que fi-
cou nervoso o tempo todo. “Eu me senti como uma pilha de nervos”, ele
disse. “ Pode ter sido o efeito que o tabaco e as ervas juntos fizeram em
il mim”, mas durante a maior parte do trabalho feito com tabaco e ervas
“todo o meu ser se sentiu bem”. Jcsse também afirmou que teve dificulda-
í
I des para acompanhar e repetir as orações do cantador, um aspecto funda-
mental da participação do paciente tradicional. Ele indicou que achava que
i ; . a cerimónia o ajudaria, mas fez uma ressalva, dizendo que era melhor n ão
: ficar confiante demais. Ele disse que ter fé na cura era muito importante.
:
“Eles dizem que tem de ter fé absoluta, só assim você se cura , é isso que eles
li dizem. O Povo Santo é assim, você tem de ter fé neles para eles ajudarem
você. Com Deus é a mesma coisa.” Sua atitude pode ser chamada de oti-
I mismo fiel, mas cauteloso. “Você tem de ter cuidado aqui”, ele disse. “ Não
pode gritar e dizer, eu estou completamente bem, e está tudo bem bom.
Você pode estar mentindo. Então você não sabe se eles foram verdadeiros.
Depende do Povo Santo.” Como a maioria das pessoas tradicionais, ele
achava que uma cura n ão vem imediatamente, mas, sim, que ela virá com o
: tempo:
.
272
í
:
Fale com Eles para que Entendam
Minha falecida esposa costumava viver aqui e estar aqui presente. A pre-
sença dela está em toda parte, os óleos de suas mãos e do seu corpo ainda
estão em tudo. Ela ainda tem alguns de seus objetos pessoais pela casa,
lá está um. Talvez seja isso que está afetando a casa. Por causa disso eu
n ão vou mudar de volta enquanto o hogan n ão tiver sido limpo correta-
273
i
•>
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
MIM ; I
I :? li >iM mente. Aí então cu venho morar aqui de novo. Agora, estã o me dizendo
1 11 i
para ficar bom primeiro c dormir na outra casa por enquanto. Isso é o
que a minha irm ã mais velha quer que cu faça. Ela vai limpar este hogan
.
primeiro, antes de cu mudar de volta para cá Então, esta d uma á rea de
problema, que me faz ter aquele problema, parece que d isso. A atmosfera
, !I i do Caminho do Mal está enuviando o ar aqui dentro, d isso que cu sinto.
Ç j: ,
Junto com essa inquietação, Jesse estava preocupado com a possibili-
dade de que algumas das dificuldades de sa úde de sua esposa fossem relaci-
onadas com o desrespeito que ele próprio demonstrara no passado pelos
valores, atitudes e regras do Povo Santo ou causadas por esse desrespeito.
i Finalmente, ele estava preocupado por ter visto e matado uma cobra logo
depois de sua recente cerim ónia. Ele pensou que o aparecimento da cobra
, significava que algu ém estava tentando enfeitiçá-lo ou, como ele disse, que
algu ém “ainda” estava tentando enfeitiçá-lo, sugerindo que a feitiçaria devia
I 1
274
Fale com Eles para que Entendam
275
\
r
f
r
CORPO / SlGNl FICADO / CURA
'
::
:
:
< mas. No entanto, suas entrevistas estão cheias de afirmações positivas sobre
seus efeitos. Esses efeitos vão desde o alívio da dor e a melhora dos sintomas
físicos até a melhora de sua atitude e da capacidade de levantar cedo e dar
: conta do trabalho na fazenda. Mais uma vez, h á outros sintomas, especifi-
camente umas dores nas pernas e nos pés, que ele n ão sentiu que tinham
i
i , 276
Fale com Eles para que Entendam
277
;
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
O remédio de peiote assustou-o tanto que depois disso ele nunca mais
pôde “se entregar completamente ao rem édio”. Isso pode explicar também
por que ele continuou a ter problemas de bebida, pois os andarilhos dizem
que o abandono é absolutamente necessá rio para melhorar, da mesma for -
ma que os ministros cristãos dizem que a pessoa tem de entregar a vida
completamente a Jesus. Hoje Marvin só toma peiote no contexto de um
encontro de oração sob a orientação de um andarilho experiente.
Na época da participação dele no nosso projeto de pesquisa, Marvin
estava envolvido em um processo de cura em dois n íveis. Em um nível
explícito, e talvez mais superficial, ele estava tendo uma cerimónia para
garantir o sucesso e protegê-lo durante uma cirurgia já marcada para remo-
ver um tumor na sua garganta. Em um n ível mais profundo e mais dura-
douro, ele continuava a procurar a cura (ainda que indiretamente) para seus
problemas crónicos de alcoolismo; nossas entrevistas clínicas sugeriam uma
longa história de depend ência de álcool e a possibilidade de uma enfermida-
: de depressiva importante. Para Marvin, as duas eram experiencialmente co-
nectadas no sentido de que a crise constitu ída por sua enfermidade física
dava-lhe oportunidade de realmente refletir sobre sua vida e os seus proble-
mas com o álcool. O tratamento dele foi conduzido por um ilustre andari-
lho que é um amigo íntimo e de longa data. Durante muitos anos de seus
problemas com a bebida , o andarilho e sua fam ília ficaram do lado de Mar-
vin e o encorajaram a levar a LAN mais a sério, considerando-o ao mesmo
)
tempo “um pioneiro da LAN ” e “um alcoólatra”. No presente caso, antes do
internamento de Marvin no hospital para a cirurgia, o andarilho tinha con-
duzido uma sessão diagnóstica de “fitar estrela” e uma Ora ção Escudo / Pro-
teçã o tradicional como uma “ b ên çã o para tudo correr bem”. O sentimento
278
!
;
Fale com Eles para que Entendam
geral dc Marvin era dc que as curas da IAN, navajo tradicional e biom édica
tinham todas atuado juntas para ajud á-lo.
Marvin reconheceu diversos fatores que ele achou que contribu íram
para sua enfermidade física, incluindo bruxaria , hereditariedade, poluição
do trabalho na ferrovia, estresse c preocupações, dieta, exposi ção a relâmpa-
gos e outras enfermidades navajos tradicionais, e álcool. O andarilho intro-
duziu uma outra interpretação diagn óstica importante, de que Marvin
Bem, faz muitos anos que essa coisa me incomodava e era isso que mar-
cava minha atitude com tudo à minha volta. Eu andava bebendo tam-
b é m. Então o doutor disse, você tem que parar de beber, se quiser
continuar melhorando. Então, para mim isso quer dizer que para viver
nesta terra tenho que parar de beber. Nunca mais beber. E eu quero
fazer o que eles mandam, porque eu quero viver nesta terra. Essa coisa de
beber, é horrível. Muitos parentes me pediram para parar. Eles tentaram
e eu n ão consegui. Até que isso aconteceu comigo. Olha só o que fez
comigo. Foi isso que aconteceu.
279
J
.. CORTO / SIGNIFICADO / CURA
sido adicionalmentc causados por Marvin ter perseguido esses animais quando
era jovem. Ele interpretou a aparição deles como um aug ú rio de morte
iminente, e orou de acordo. Durante a cerimó nia o andarilho também teve
uma visã o dos cé us e as estrelas “se despedaçando” que parecia indicar a ele
que a cerim ó nia e as ora ções estavam funcionando.
Na verdade, Marvin teve duas cerim ó nias de peiote ou nahagha. A
primeira foi antes da cirurgia, “com a finalidade de passar por esse teste”.
í> Após a opera çã o bem-sucedida foi realizado um segundo encontro “de apre-
ciação” c agradecimento. Marvin conta que em preparação para esse ú ltimo
encontro “cu tomei muitas doses de remédio. Comecei a tomar durante o
dia enquanto cuidava das ovelhas. Se você contasse uma por uma havia
muitas”. No intensificado estado de consciê ncia induzido pelo peiote, Mar-
vin teve duas experiê ncias profundamente emocionantes. Uma delas foi ao
ouvir as palavras pronunciadas pelo andarilho, no momento em que o cura-
dor preparava uma mistura de tabaco para a cerimó nia de fumar, encorajan-
do-o a se envolver ainda mais com a religiã o e a se tornar ele pró prio um
'
andarilho:
Quando ele estava preparando o tabaco. Ele fàlou. Ele disse: “Você con-
seguiu fazer o que você queria e aqui está tudo bem feito. Agora você
chegou a um ponto em que aquilo que você esperou e desejou pode
!
acontecer. Agora você pode fazer as coisas que eu posso fazer e estou
fazendo aqui para você, ele disse, lembra ? No futuro você pode sentar
onde eu estou sentado e onde eu fico e pode fazer o que estou fazendo.”
Então depende de mim , mas eu ainda sinto que n ão depende de mim,
ainda n ã o. Muito tempo atrás, no começo vieram esses dois e rezaram
para mim e marcaram o caminho a seguir para ficar melhor. Um desses
n ós cuidamos aqui nesse nahagha. Está na m ão de Deus e por vontade
dele, eles vieram até mim. Ele diz que eu devia pegar e fazer este naha-
gha para os outros. Entã o foi isso que ele disse. No futuro para mim
i tudo bem. Pode acontecer.
!
í O segundo momento profundo para Marvin na cerim ó nia aconteceu
í quando o seu filho, que também estava desempenhando o importante pa-
pel cerimonial de “homem do fogo”, auxiliando o andarilho a manter o
1
fogo e as brasas diante do altar, tomou a palavra na sua vez de orar:
,
280
i
Fale com Eles para que Entendam
/vlcu menino que tomou conta do fogo falou para Deus, mas falou para
mim també m. Então, o meu menino está falando de como cu bebia e
me comportava antes. Ele pediu a Deus para lhe dar um pai de quem ele
pudesse ficar orgulhoso c o pai que ele sempre quis ter. Eu entendo o
que ele quer dizer. Eu amo ele muito c ouvi as palavras dele c sei o que
ele está pedindo para mim. Eu tenho muito orgulho dele. Nunca
pedi
uma coisa que ele não fizesse para mim. Dou valor às palavras dele. Ele
também nunca me pediu nada que cu não fizesse para ele. Ele voltou
para me ajudar foi isso. Todos aqueles que falaram mc conhecem e eles
voltaram para me ajudar. Ele especialmente n ão gosta quando eu
bebo.
Toda vez que a gente fizer um nahagha ele vai falar dessa
bebida. Outros també m fizeram isso. Mas agora para mim quest da
ão
tudo bem.
Eu aceito o que eles dizem. Dou valor à preocupação deles.
Não fico
chateado. Sei que eles estão preocupados que se isso que eu
mor] piorar futuramente, vai ser mais difícil de curar.
tive [o tu
Isso é que eles
-
querem dizer. É por isso que eles me deixam saber desse jeito
o que eles
pensam. É isso, meu neto.
2S 1
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
S
II iiS í
aparentemente n ão faz qualquer restrição ao seu envolvimento como parti-
cipante ou paciente. Como cie disse, invocando os mais reveladores símbo-
los navajos de intimidade e segurança emocional, “eu chamo o remédio dc
minha m ãe. É como voltar para casa depois de ficar longe durante um
longo tempo e sua m ãe estar aqui com você.” Apesar dessa disposição dc
modo geral positiva em relação à cura, ele se debateu ainda no alcoolismo
por 40 anos. Na época em que ele participou do nosso projeto, dois n íveis
de cura estavam sendo experimentados simultaneamente - o problema ex-
plícito de um tumor na garganta potencialmente letal e a cura impl ícita
para resolver, ou, pelo menos, enfrentar seu alcoolismo. O medo provoca-
do pela enfermidade í f sica e a id éia de que sua vida podia terminar por causa
do seu modo de vida foram importantes para sua disposição de ser curado.
: A enfermidade í f sica precipitou uma crise que deu a Marvin uma oportuni-
dade de refletir realmente sobre sua vida e seus problemas relacionados com
' o álcool. Merece também ser observado que a disposição imediata de Mar-
! vin na hora da cerimó nia foi muito provavelmente intensificada pelo con-
f •
sumo de uma grande quantidade de peiote antes e durante o ritual, enquanto
sua disposição de longo prazo foi claramente intensificada como resultado,
i .
i
como demonstra o seu comentário de que “eu acho que nunca mais vou
duvidar outra vez do poder e da presença deste remédio e do que ele pode
fazer por mim. Não vou mudar de idéia outra vez.” Dois momentos imer-
; sos em uma experi ência do sagrado para Marvin durante a sua cerimó nia
foram as palavras do andarilho, encorajando-o a dedicar-se mais profunda-
Ii
mente ao rem édio, e as do seu filho, que pediu a Deus para lhe dar um pai
que não beba e de quem ele possa se orgulhar. As orações extemporâ neas nas
cerim ó nias da IAN são um meio indireto mas muito poderoso para os
;
h ! participantes e membros da fam ília se dirigirem uns aos outros enquanto,
sob a influ ência do peiote em um cen á rio sagrado, estão mais sensíveis e
receptivos. Vale a pena refletir sobre essa forma de experiência sagrada no
!
que diz respeito ao sentido pelo qual o peiote é caracterizado como deten-
tor de propriedades “alucinógenas”. Embora nesse caso o andarilho tenha
tido experiências visionárias sagradas relevantes para o diagn óstico de Mar -
vin e a eficácia da cerim ónia, a experi ência do sagrado do próprio Marvin
:
teve a ver com um senso ampliado ou intensificado do significado da sua
í
282
Fale com Eles para que Entendam
283
1
I
;
Bem , cu disse isso antes na sua presença. Antes de cu ficar doente, cu
i: vivia meio despreocupado. Eu era irresponsá vel com a minha vida c pro-
í 1
!:
; !
: vavelmcnte fiz coisas de que devia me envergonhar. Eu errei na vida até
1 essa doen ça acontecer comigo. Eu descobri que minha fc cm Deus era
superficial e n ão profunda. Na minha idade descobrir isso c uma ilumi-
nação. Eu descobri isso. Antes, minhas palavras eram superficiais c vazi-
as. Eu dizia que ia fazer isso c aquilo c às vezes fanfarronava. Bem , agora
eu me dou conta do que isso significa. É como escamotear a verdade. Eu
quero corrigir isso, cu disse isso na sua frente. Eu costumava tomar o
rem édio c logo depois estava bebendo vinho e u ísque de novo. Eu rezava
e depois esquecia para que cu tinha rezado. Eu estava na margem da vida
que corria à minha volta. Antes de eu ficar doente era assim. Agora me
' arrependo e queria ter feito algo melhor da minha vida. Eu devia ter
realizado mais com a minha vida. Agora que tive o nahagha feito para
mim , eu quero ser como o andarilho. Certo do meu papel aqui mesmo e
certo do meu futuro. Foi isso que aprendi, meu neto. E então tudo que
era dito pelas pessoas à minha volta no nahagha era coisa boa. Ouvi o
!!í que as pessoas tinham a dizer e gosto do que disseram. Estou muito feliz
que as pessoas vieram orar e ofereceram apoio. Isso é bom.
Isso pode ser uma realização de mudança significativa para ele, embora
: não se possa dizer com certeza sem informação mais concisa sobre seus
há bitos com a bebida e a duração dos períodos de sobriedade anteriores. Na
verdade, ministros e andarilhos que conseguiram parar de beber parecem
discutir a questão muito mais abertamente do que Marvin estava disposto a
fazer. No caso dele, definido dentro da lógica terapêutica da LAN, a realiza-
ção da mudan ça definitiva para Marvin aconteceria se ele finalmente “co-
meçasse a lareira”, para a qual o seu amigo andarilho vinha oferecendo
iniciação há 40 anos, e se tornasse um andarilho.
Eileen é uma mulher católica de 70 anos que tem quatro filhos vivos
(três meninas e um menino) com idades de 30 a 51. Pelo menos dois ou -
tros filhos (e também o seu primeiro marido) morreram na d écada de 1950.
;
; Eileen foi criada em um hogan tradicional e educada até a oitava série. Ela
:
284
:
Fale com Eles para que Entendam
285
Kf
!
I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
; i
!i :
:
ela gesticula como se estivesse descascando uma cebola). Ela nega ter experi-
I !í mentado estresse pós-traum á tico incapacitante ou sintomas de humor/dor,
com o argumento de que n ão poderia, porque ter de cuidar das crian ças a
impedia de ser “arrastada para baixo” pelo peso de sua perda. No entanto, o
que ela descreveu como ficar entorpecida e abatida depois disso por muitos
anos foi, sem d ú vida, a sua resposta àqueles estressores e traumas (transtor-
no de estresse pós- traum á tico residual ). Logo depois desse período ela co-
nheceu o atual marido, já cristão, e ela explica que ele realmente a ajudou a
ti dar a volta por cima. Como diz Eileen: “Acho que as vezes ele estava lá,
sabe, e minha entidade espiritual estava lá comigo o tempo todo.”
K !i i Como católica, Eileen teve o primeiro contato com a cura cristã parti-
cipando de encontros de oração do movimento de Renovação Carism á tica
(veja capítulos de Um a Quatro):
1S 1i
.
* i .
[Quando] fui pela primeira vez [aos encontros de oração carism á ticos]
; nós estudamos as escrituras e o diretor espiritual mandava ler escrituras
específicas para o Espírito Santo vir; isso foi 20 anos atrás; eu era tão fria,
eu não tinha energia nenhuma. Tinha alguma coisa errada que eu não
conseguia localizar. Os homens e as mulheres ficavam separados no en-
contro e a mulher me perguntou sobre minha vida e ela orou comigo e
eu me senti aquecida e aquele calor ficou comigo até hoje. Tudo que cu
podia dizer é que meu marido e minha filha tinham morrido num aci-
dente de carro e eu estava num sanatório de tuberculosos e acabava de
sair e estava me sentindo completamente perdida. Eu n ão tinha para
onde ir. Eu peguei as crian ças e nós mendigamos por aí. Eu contei isso
para essa mulher [num encontro de oração, talvez 15 ou 20 anos depois
da morte do marido] e o amor simplesmente voltou para dentro de
mim. Eu comecei a reviver outra vez. É por isso que eu sei que existe um
espírito mais forte do que eu. Eu acredito. O amor e o fogo e a luz
voltaram para dentro de mim.
286
Fale com Eles para que Entendam
2S7
v \í
!! CORPO / SIGNIFICADO / CURA
;
'
!
I
!
gerações, cia disse: “É muiro bom estar nessa situação com a vida espiritual.
: i i
No caminho navajo cu n ão sou iniciada, entã o n ão posso rezar de algumas
f formas c tenho de pagar, mas com católicos, podemos entrar em qualquer
!í á rea c rezar c è grá tis.”
> : Í!
A despeito da forte fd católica, Eileen tambdm está ligada à cultura
!
navajo de muitas formas. Por exemplo, embora ela vá à igreja para renovar
I í : :
a força espiritual , ela reza em l íngua navajo. Eileen declara ter considerado a
l i possibilidade de celebrar uma cerimó nia tradicional para a sua perda de
visã o. Contudo, ela decidiu contra uma tal ação porque n ão tem muita fd
nos jovens curandeiros de hoje que “tendem a beber”. Ela relembra os ve-
1 liillí fl lhos tempos quando seu avô, que tambdm era curandeiro, sabia em quais
|
| especialistas de ritual podia confiar. Eileen tambdm menciona que teria usa-
do ervas como forma de tratamento se tivesse se lembrado do remddio
ji: !i 'j apropriado usado por sua mãe.
De fã to, a narrativa de Eileen fornece algumas atitudes de comparação
t particularmente interessantes, e não atípicas, entre a cura tradicional e a cura
Él! cristã. Ela explica, por exemplo, que tinha sempre acreditado a vida inteira
que o cristianismo era apenas para os n ão-navajo que têm uma concepção
particular de “Deus”. Sua opinião foi mudada, no entanto, por uma discus-
são com um padre que “a endireitou”. Adicionalmente, Eileen diz que sua
identidade como cristã desenvolveu-se ainda mais quando ela começou a
!
;j
frequentar um programa de 12 passos no qual as discussões se centravam
em um “poder superior” em vez de “Deus” ou “Jesus Cristo”. Ela explica:
“Isso realmente tornou as coisas mais fáceis para mim. Você sabe, acreditar
em um poder superior como a gente fazia nas maneiras tradicionais.” Assim
Eileen superou seu ceticismo inicial diante do cristianismo enraizando-o no
contexto da religi ão navajo.
Eileen também faz algumas distinções importantes entre as duas tradi-
ções. A primeira dessas distin ções é a percepção de Eileen de que a cura cristã
envolve um papel muito mais ativo da parte do paciente do que a cura
tradicional. Ela explica:
288
Ií
Fale com Eles para que Entendam
289
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
;
I
Eileen diz que seus olhos doem quando ela está cansada. Ela sente
irritação e dor de um lado perto do canto do olho. Ela n ão pode ver muito
bem e seus olhos doem quando ela está cansada. Eileen expressa preocupa-
ção, se ela perder a visão ficará dependente de outras pessoas, especialmente
do marido. Ela está claramente com medo de ficar cega e també m parccc
temer ir ao m édico. Embora os problemas de olho de Eileen n ã o pareçam
restringir seriamente a sua vida, eles são uma grande fonte de preocupaçã o.
290
Fale com Eles para que Entendam
Além da idade, Eileen també m discute vários outros fatores que po-
dem ter contribu ído para o seu estado de sa ú de. Ela observa, por exemplo,
que o seu pai foi cego durante muito tempo e o problema dela pode ter um
componente genético. Ela também diz que esteve envolvida em um aciden-
te de trânsito cerca de sete anos atrás e bateu a cabeça no pára-brisa, sofrendo
contusões no ombro e no pescoço. Eileen também fala rapidamente sobre
estresse como um fator potencial de sua condição e explica que é diabética,
o que também pode contribuir para seus problemas de vista.
Quando perguntada se alguma tragédia ou perda pessoal poderia ser a
causa de seus problemas de vista, Eileen respondeu com uma referência
ambígua a id éias navajos tradicionais sobre o efeito da exposi ção aos mortos
em funerais de estilo contemporâ neo:
Ela fez outra referê ncia a lágrimas e dor quando estava discutindo a
relação entre a sua condiçã o e os momentos difíceis que teve de enfrentar ao
longo da vida, especialmente na d écada de 1950, quando estava hospitaliza-
da com tuberculose e perdeu o marido e filhos. Ela sugeriu que “[...] só o
fato de estar tão frustrada e de chorar tanto, penar tanto, isso pode ter
estragado os meus olhos, eu n ão sei ”.
291
1'flí
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
! : Embora inicialmente a inten ção dela fosse apenas renovar a receita dos
Il i Il1 í
;
1 ! ;
óculos, com o diagn óstico de degeneração da visão ela foi encaminhada a
um hospital fora da reserva, onde se submeteu à cirurgia laser cm ambos os
olhos. Seu tratamento com oração cristã, primeiro por um conhecido cura-
||i! í = dor navajo e depois pelo marido, foi para complementar o tratamento bio-
m édico. De feto, antes de toda consulta medica , seu marido orava para ela
I
I não sentir dor nem ter qualquer problema , e para ajudar o m ódico a ter
sucesso de forma que os olhos dela se curassem. Eileen relata que seu maior
medo era de ficar cega e que as orações ajudavam a lhe dar confiança, redu-
]l 4 .i zindo seus temores. Parece que Eileen recorre a orações com frequência em
momentos de necessidade, especialmente por ser sensível a muitos remédios e
I !;
: i
por considerações financeiras. Eu sugeriria que há também uma sensibilida-
de moral em jogo no seu relato altamente personalizado de como a oração
de cura consolidou seus laços conjugais com o marido. O princípio conver-
i
sivo n ão é tão pronunciado como entre muitos navajos pentecostais, especi-
almente considerando a propensão católica a sintetizar elementos tradicionais
e cristãos, mas vale a pena lembrar que Eileen e o marido se conheceram em
:í
! 1 uma atividade da igreja e ambos estão intensamente envolvidos na manu -
'
ten ção de sua paróquia.
Voltando agora à nossa compreensão dos elementos do processo tera-
pê utico, a disposi ção de Eileen está solidamente enraizada na cura cristã,
constru ída em um terreno preexistente na espiritualidade tradicional. Ela
,
também teve fé nos dons de seu marido na oração de cura. Embora a rede
social de Eileen n ão pareça ser muito bem desenvolvida, especialmente des-
" de sua recente mudan ça, ela parece ter todo o apoio de que necessita do
marido e na comunidade da igreja local. A melhor descrição para a experi-
ência do sagrado de Eileen é um sentimento de paz. Ela conta que durante
a oração estava realmente se concentrando em como estava sendo ajudada.
.
: 292
I
Fale com Eles para que Entendam
293
\
I nmi
> ii CORPO / SIGNIFICADO / CURA
f !
sim , cu tive dc aprender. E ganhar a confian ça deles. E ter isso profun-
damente, orando por mim o tempo todo.
:
:
A elaboraçã o dc alternativas para Eileen parece depender do sentimen-
. I j; i : ; to de confian ça acima mencionado que a torna capaz de enfrentar seu medo
dc ficar cega e dependente de outras pessoas. Alem disso, a experiê ncia de
cura deu-lhe também um meio de expressar e consolidar sua ligação com o
marido, que foi o seu primeiro curador. Eileen elabora da seguinte forma:
“Eu só fiquei agradecida, muito agradecida por ele poder me ajudar dessa
maneira. Orando comigo. É uma coisa linda a gente poder fazer isso um
í: i para o outro, o que a maioria dos casais n ão pode. E [.. .] eu nunca vi o meu
avô fazer nada disso para a vovó.” Finalmentc, a primeira realização de
mudan ça para Eileen parece ser exatamente o fato de ela ter menos medo e
•
se sentir mais em paz e confiante antes de suas consultas m édicas, especifica-
mente, e em sua vida, de maneira geral. Ela tinha fé na oração, no marido e
em Deus. Além disso, durante o acompanhamento de 12 meses ela relatou
que os seus olhos não tinham piorado nem um pouco.
: 1
•
:i terapê utico em termos de autoprocessos distintos de linguagem, emoção,
imaginação e memória, e mostrou como esses autoprocessos estão baseados
em experiências corporais. Nosso trabalho subsequente com pacientes na -
:: vajos tem o objetivo de contribuir para uma teoria comparativa intercultu -
ral de processo terapê utico fazendo o modelo dialogar com dados empíricos
/
r novamente. Para ser exato, montamos uma dialé tica na qual o modelo ser-
jh ve de suporte para a compreensão de elementos culturais do processo tera-
y pê utico distintamente navajo, enquanto sua aplicação em um cen ário cultural
J\
r diferente daquele em que foi originalmente elaborado serve para aperfeiçoar
ainda mais o próprio modelo Até aqui, neste capítulo eu enfatizei a segun-
/
da metade dessa dialé tica, usando o modelo retórico como uma ferramenta
1I para interpretar relatos narrativos de casos individuais. Nesta seção final
í
; 294
; 6
Fale com Eles para que Entendam
295
í
: CORPO/ SIGNIFICADO / CURA
: !:
i ficamente a experiência do sagrado como o meio no qual ocorre a elabora-
a! i
ção de alternativas, uma forma pela qual essas alternativas são vivificadas c
legitimadas para os participantes, uma fonte de revigoramento e al ívio dc
desmoralização (veja Frank; Frank, 1991 ), um manancial de motivação no
1
II
sentido da realização da mudança para pessoas em qualquer estado dc dis-
posi ção inicial, e uma validação que acompanha essa mudan ça desde o seu
I
^
in ício O que essa formulação ainda pressupõe é que n ós procuramos o
sagrado de uma forma mais ou menos dramá tica, uma colocação que se
»
remete em última análise à advertência de William James (1961) de que a
melhor maneira de estudar religião é focar os momentos mais religiosos do
homem mais religioso. Além do fato mais ó bvio de que as experiências vão
desde as leves e sem importância até as irresistivelmente poderosas, o traba-
lho com os navajos nos permitiu identificar duas modulações do sagrado
relacionadas porém distintas. A primeira é aquela entre o implícito e o ex-
plícito: em vez de ser explicitamente ou leve ou poderoso, o sagrado pode
permanecer implícito no sentido de não ser abertamente reconhecido como
i i: tal. O exemplo mais contundente disso é a paciente de cura tradicional cuja
resposta ao interesse do entrevistador pela cura religiosa foi a de que ela
realmente nunca tinha pensado que as cerimonias fossem religiosas. Tais
i respostas exigem cuidadosa reconsideração da natureza do sagrado e seu
' papel na cura. A segunda modulação é entre o que podemos chamar de
experiência transcendente e imanente do sagrado e tem a ver com a qualida-
r de sensorial da experiência. A primeira é numinosa, sobrenatural, etérea e
fora do comum, enquanto a última é íntima e encravada no ambiente natu-
ral e/ou mundano. Um exemplo é a diferença entre as imagens reveladoras
I que aparecem transcendentalmente “no olho da mente” (como se numa tela
sem local determinado diante da pessoa), e as imagens que aparecem ima-
nentemente encravadas ou sobrepostas em objetos perceptíveis (como na
aparência de significado na forma de uma nuvem) (Csordas, 2001).
Nós tínhamos concebido a elaboração de alternativas em termos de
possibilidades que se abrem aos pacientes por meio do processo de cura para
a resolução de problemas, sofrimentos ou enfermidades. Um sustentáculo
i
296
Fale com Eles para que Entendam
297
-
f 1
i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
interven ção de emergê ncia, em cujo caso a mudan ça desejada pode ser pali-
'; i
'
! ativa, um tipo de triagem para prevenir deterioração ou um rá pido conserto
cura-tudo.
i-
essa intuição estava ligada à compreensão religiosa de que “todos precisam
de cura”, uma formulação que ligava explicitamente a cura à totalidade do
processo da vida de crescimento espiritual. No cenário navajo, nós observa -
m mos em todas as três tradições episódios m últiplos de cura estendendo-se
\ ao longo da trajetó ria de vida dos indivíduos. De fato, tornou-se ú til intro-
duzir, entre a noção do evento ritual distinto e da trajetória de vida, um
conceito intermediário de “carreira de cura” (Garrity, 1998) que abarca
m últiplos eventos de cura, episódios de enfermidade e reformulações de
ir 1 problemas já reconhecidos. Finalmente, à medida que avaliamos a contri -
i
-
bui ção do modelo fazendo o dialogar com os dados navajos, vamos colo -
cando a questão crítica de se ele deve ser tomado primordialmente como
descritivo, no sentido de servir como um ú til esboço heurístico da especifi -
cidade expericncial em cura religiosa, ou como avaliató rio, no sentido de
constituir um adequado esboço empírico de critérios de eficácia na cura.
.
Em qualquer um dos casos, fazer uso disso em uma pesquisa futura sobre as
tradi ções de cura ritual talvez possa levar a uma teoria mais abrangente e
experiencialmente relevante de processo terapê utico.
m 298
i ; 1.11
t, 8
CAPÍTULO SETE
A Ferida que nã o Cura*
300
II
I '
• :
A Ferida que nã o Cura
50
Essa posi ção vem da formulação de Kleinman ( 19S0) do “modelo explanatório" de um
episódio de enfermidade, que indui não apenas atribuições causais perse, mas a compreensão
da pessoa afligida da patofisiologia e também do curso da enfermidade. Esses aspectos
foram minimizados por pesquisadores que afirmavam utilizar o modelo de Kleinman.
301
m
í í !
I! CORPO / SIGNIPICADO / CURA
! Jl A cabeia não mostra índices de prevalência nem de incidência , mas sim a preval ê ncia real de
casos em um momento específico, quando a presente pesquisa foi conduzida . Portanto , é
preciso ter cuidado, por exemplo, ao interpretar os n úmeros relativamente inflados de
câncer cervical . As diferenças na prevalência de diferentes tipos de câ ncer podem em
grande parte ser atribu ídas a diferentes durações ( tempos de sobrevivência ) e índices de
cura, à amplitude dos programas de dctecção e/ou à porcentagem de falsos positivos em
testes diagn ósticos.
302
A Ferida que n á o Cura
Tabela 7.1 Proporção dc diagnósticos dc câncer por local anatômico para pacientes navajos:
junho 1986
Olho 5
Boca 1 9
Garganta /nariz 0 4
Cérebro 1 6
Tireóide/pituitá ria 5 50
Outras partes não especificadas do sistema nervoso 0 2
Estômago 1 12
Cólon/reto 4 38
Fígado/pâncreas 1 8
Vesícula biliar 1 10
Rins 2 20
Bexiga 0 4
Brônquios/pulmão 1 5
Sinus/laringe 0 3
Sangue 2 15
Nódulos linfáticos 1 7
Osso/articulaçõ es/cartilagem 1 9
Tecido conectivo, subcutâneo e outros tecidos moles 2 17
Pele 1 8
Mama (feminina) 6 55
Útero (cérvix ) 47 447
Placenta /ovário/vagina /vulva 17 157
Próstata/testículos 5 48
Especial 1
1 5
Local primário desconhecido 1 5
b
Total 102 949
Fonte: baseado em dados fornecidos pelo Registro de Tumores do Novo México para todas as
unidades do Serviço de Saúde do Indio da Reserva Navajo.
* Locais Interpostos em nasofaringe (um caso), em pâ ncreas (um caso), em bexiga (trés casos).
6
Mais de 100 por cento devido a arredondamento.
303
mill
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
cia de doen ças infecciosas e parasíticas para doen ças cró nicas degenerativas c
produzidas pelo homem ( Broudy; May, 19S3). Uma explicação um pouco
mais simples é a sobrevivência de um maior n ú mero de idosos navajos com
deficiências crónicas, sobrevivência essa ocasionada pela melhoria gradual
dos cuidados médicos que eliminaram causas primárias de mortalidade como
a tuberculose (Kunitz; Levy, 1981). Para nossos propósitos imediatos, bas-
if; tará dizer que, embora o câncer não esteja de forma alguma entre as causas
principais de mortalidade navajo, o aumento gradual da incid ência de cân-
cer n ão passou despercebido entre os navajos e é portanto uma fonte cres-
if ?(
mr cente de preocupação.
A parte navajo desse estudo foi conduzida entre pacientes de câncer
que utilizaram dois hospitais do Serviço de Saúde Pú blica na reserva navajo,
!' !!
í 1
1
UTAH COLORADO
:
' - I NOVO M ÉXICO
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ARIZONA
• = ddade ou comunidade
=
» local de resid ência
'
Figura 7.1 Locais aproximados de residência de pacientes em 1988
{• t í
í
í; 304
A Ferida que nã o Cura
92
Para os propósitos dessa pesquisa , desenvolvi uma ferramenta para respostas espontâneas
elaborando sobre o modelo de entrevista expositiva para casos especí ficos de enfermidade
desenvolvido por Kleinman (1980) . A entrevista cobriu uma variedade de aspectos de
experiência de enfermidade e comunicação paciente-médico e forneceu dados sobre
causalidade para ambos os grupos . A versão inglesa original foi traduzida para o navajo e
revisada mais tarde à luz das adaptações em conceitos e em sintaxe que se tornaram necessárias
na preparação da versão navajo . Os navajos que preferiram ser entrevistados em inglês
receberam a mesma versão da entrevista que os membros do grupo de Boston receberam.
53 O
estudo de Boston , usando protocolos de entrevista paralelos, foi conduzido por uma
equipe chefiada por Mary-Jo Delvecchio-Good e incluindo o presente autor. Os resultados
desse trabalho foram relatados em Delvecchio- Good et al. ( 1990, 1993, 1994).
305
Itfl
r M CORPO / SIGNIFICADO / CURA
ir '
Boston
* (iiií
Fort Defiance Tuba City
Dados demográ ficos N = 55
N = 12 N 16=
Masculino 6 7 25
, Feminino 6 9 30
• p
I
Faixa etá ria 19 86 - 27 82 - 19 78-
Língua da entrevista
!
navajo 4 12 0
‘
inglês 8 4 55
Estado civil
casado(a ) 6 11 32
vi ú vo(a) 2 1 5
I!
i; divorciado(a )/separado(a ) 4
2 1
solteiro(a) 2 3 14
\\m Educa çã o
diploma superior 0 0 3
faculdade 2 0 16
escola secund á ria 5 3 20
menos que escola secund á ria 2 3 9
nenhuma 3 10 (em falta ) 7
\ Religiã o
‘
' 0
navajo 3 8
Igreja Americana Nativa 1 4 0
j católica 3 0 18
protestante 4 4 13
I m órmon 1 0 0
judaica 0 0 6
ortodoxa grega 0 0 1
*
nenhuma ou em falta 0 0 17
'
l
i
306
;
A Ferida que nã o Cura
Endometrial 1 0 0
Cervical 1 1 0
Ovário 1 0 0
Mama 3 4 19
Testículo/pr óstata 2 5
Estômago 2 0 2
Cólon/reto 0 2 6
Fígado/vesícula biliar/pâ ncreas 0 0 3
Rins/bexiga 0 4 3
Tireoide 0 1 0
Linfoma 1 2 1
Cérebro/sistema nervoso central 1 0 2
Leucemia 0 1 0
Pulmão 0 0 8
Ossos/tecidos moles 0 0 4
Desconhecido 0 0 2
307
I
!
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
I
.
(Salisbury, 1937). Rcichard (1950, p 97) cita dois casos, provavelmente da
década de 1940, um de câ ncer de mama e um de um homem diagnosticado
i com câ ncer terminal do reto que foi curado por um curandeiro tradicional.
Na d écada de 1960 um surto de câ ncer de pulm ã o amplamente divulgado
í ocorreu entre mineiros de urânio navajo (Gottlieb; Huscn , 1982) . Esse
evento contribuiu muito provavelmente para disseminar o termo ingl ês
1
ií
ii; “cancer” entre os navajos. Na década de 1970 funcion á rios do Serviço dc
; Sa úde do índio da Área Navajo, em colaboração com curandeiros tradicio -
nais, iniciaram um projeto de controle de câ ncer com o objetivo dc aumen -
!1 '
I!
- tar a cooperação entre os dois sistemas de sa ú de. Uma das metas principais
era convencer os curandeiros a encaminhar os pacientes de câncer para trata-
i
!l mento m édico simultâneo, em vez de esperar para ver se uma cerim ónia
, tradicional surtia efeito.
Um requisito para a validade da comparação intercultural é determi-
ii nar se existe um conceito indígena paralelo àquele de câncer como um tipo
distinto de enfermidade. Com certeza, embora os oncologistas tecnicamen-
te considerem cada câncer como uma doen ça separada, a cultura popular
!I americana reconhece o câncer como uma entidade global. Afora os contatos
;
com a biomedicina cosmopolita, nã o h á nenhuma necessidade imediata de
if :
um sistema nosol ógico ind ígena classificar câ nceres que afetam diferentes
partes do corpo com manifestações sintomáticas diferentes como perten-
I centes à mesma categoria nosológica. Além disso, é relevante lembrar a ob-
1 t servação de Werner (1965) de que a língua navajo nunca teve uma longa
lista de nomes de doenças, mas sim uma série de maneiras sobrepostas e
conotativas de descrever e se referir à mol éstia e à dor. Assim, tampouco há
uma necessidade imediata de o câncer ser diferenciado como uma entidade
i
de doen ça distinta em primeiro lugar.
Os curandeiros biculturais consultados colocaram a origem do câncer,
junto com outras doen ças, na segunda criação m ítica, o mundo amarelo.
í
Uma dimensão dessa origem está em abusos sexuais cometidos pelos habi-
tantes do mundo amarelo, tais como incesto, homossexualismo e transexu -
alismo, e, dessa forma, o câ ncer é ligado às doen ças ven éreas. Uma segunda
dimensão é a tentativa equivocada dos habitantes de controlar a natureza e o
ti consequente mau uso que eles fazem das forças naturais como radia çã o e
eletricidade, e dessa forma os navajos entendem por que os hospitais tratam
l 308
LIl f
A Ferida que n ã o Cura
309
..
li: í
' vez disso, que a inchação negativa, sem controle, é uma metáfora menos
evidente para os navajos do que para nós mesmos. No pensamento navajo,
o crescimento é inerentemente positivo, enquanto a degeneração e a deteri-
i I ; oração são processos caracteristicamente negativos. A concepção navajo tra-
dicional do ciclo da vida é de energia ascendente e realizações até os 50 anos
de idade e declínio e deterioração progressivos até os 100 anos. Conceber o
câncer como algo que “vai apodrecendo” é mais coerente com essa visão, ao
; passo que nossa própria concepção de “inchação sem controle” é coerente
'
com o nosso medo da natureza (e sociedade) fora de controle. Até mesmo
i
a única paciente navajo que usou a palavra “tumor ”, quando foi questiona -
l
da sobre sua percepçã o de como a doença funcionava no seu corpo (patofi -
siologia), respondeu que provavelmente ela “estava me comendo por dentro”.
1: / Aimplicação mais ampla desse argumento é para o papel da metáfora
í na relação entre cultura e enfermidade. As enfermidades n ão apenas podem
.
ser usadas como metáforas de sociedade e processo social, como foi defen -
dido por Sontag (1978) e outros, mas os próprios processos e características
:
r
atribu ídos às enfermidades e depois projetados nas situações sociais são for -
: mulados em termos de metáforas culturais dominantes (Lalcoff; Johnson ,
-
ri: i 1980). Isso não quer dizer, por exemplo, que nossa percepção da tubérculo
í : 310
! Í1
A Ferida que n á o Cura
se está mudada por cia n ão ser mais associada com a paixão febril e a criati-
vidade. Nós ainda podemos conceber a tuberculose como um tipo de pro-
cesso “consumptivo” mesmo se n ão damos mais a mesma conotação à
consumpção. Em vez disso, se uma doença é uma metáfora apropriada para
certos processos sociais, é apenas porque sua patofisiologia já foi lan çada em
metá foras geradas no processo de vida social, metáforas essas que podem
não se apresentar como tal em outra sociedade. Assim a relação metafó rica
entre culturas e enfermidades deve ser entendida como rec íproca /
Para retornar à questão mais imediata, todavia, precisamos determinar
se a concepção navajo nativa admite a possibilidade de o câncer ser curável
ou invariavelmente fatal. Essa pergunta está vinculada à questão, frequente-
mente levantada por profissionais de sa ú de da reserva, de se os navajos ten-
dem a “negar” enfermidades sérias como o câncer. Na elaboração da entrevista,
vários consultores navajos desaconselharam qualquer referência direta a pos-
sível morte e menção específica do termo “câncer”, pois fazer isso poderia
parecer aos pacientes uma invocação da doença e da morte. Na verdade,
poucos pacientes hesitaram em nomear sua enfermidade quando foi per-
guntado qual era ela, embora apenas um paciente tenha se referido explici-
tamente à imin ê ncia da morte. Apenas uma paciente, que só tinha
concordado em fazer uma histerectomia no tratamento de câncer uterino
depois que a dor e o sangramento se agravaram, demonstrou abertamente
um grau de negação, e mesmo ela reconheceu que sua enfermidade “teria
virado câncer” se não tivesse feito a cirurgia.
Para nós, a noção de negação implica acima de tudo um processo ina-
dequado de enfrentamento da morte iminente. Evitar referências e pensa-
mentos sobre a morte pode parecer muito diferente do ponto de vista navajo.
Quando questionados sobre como a enfermidade afetava os seus pensa-
mentos, era comum os pacientes navajos insistirem que eles só pensavam
em ficar bem , dando a entender que capitular à inevitabilidade da morte era
uma atitude moralmente inapropriada. De maneira semelhante, um educa-
dor de sa úde navajo expressou admiração por um tio que morrera de câncer
exatamente porque o tio “nunca perdeu a esperan ça” até a hora da morte.
Essa atitude sugere que em certo sentido seria incorreto reconhecer qual-
quer doença como necessariamente fatal, mesmo que tal temor esteja im-
plícito.
311
V
-
if
312
A Ferida que ná o Cura
313
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4*
Causa Informante
1 2 3 4 5 Ct
6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28
Lesã o XXX X X X X X X X X X X X X -
Relâ mpago XXX X X X X XXX X
Feitiç aria X X X X X X X X X
Fadiga X X X X X X X
Dieta X X X X X
Violaçã o de - X X X X X
animal
Ambiente X X X X
Medica ção X X X
Heredita- X X X
riedade
Álcool X X
Estresse X
Enfermidade - X
Velhice X
Cerimónia X
Não sabe X X X
Total pessoal 4 5 6 0 4 4 0 2 1 4 2 5 2 2 2 0 1 1 4 3 2 1 5 2 3 1 1 1
de causas l
A Ferida que nã o Cura
315
!í
: CORPO / SIGNIFICADO / CURA
i !
calóricos, pouco nutritivos e com aditivos, à poluição ambiental c aos efei-
I tos colaterais adversos do tratamento biom édico. A hereditariedade é um
!I caso especial aqui, pois dois dos três pacientes navajos que a citaram vieram
de uma fam ília extensa na qual havia a presença documentada de um raro
;
"
i; câncer de cólon de base gen ética. O consumo de álcool, estresse, enfermida-
;
de e velhice foram citados raramente, e o ú nico caso de contaminação ceri-
monial foi relatado pelo único curandeiro entre nossos pacientes informantes,
que declarou que o in ício do seu linfoma ocorreu pouco depois de ele exe-
cutar uma cerimó nia para uma mulher com uma inflamação na garganta.
Esses dados navajos são colocados em perspectiva intercultural pelos
dados comparativos apresentados na Tabela 7.5. Para os dados anglo-ameri-
t i\ canos, foi possível distinguir respostas às questões de o que os pacientes
acreditavam ser a “causa” de sua doen ça e quais outros fatores eles pensavam
I estar “relacionados” à sua doença, ao passo que as dificuldades linguística e
conceituais tornaram tal análise impossível para os dados navajos. Assim,
para os pacientes anglo-americanos, a causa mais frequentemente citada foi
hereditariedade, enquanto o fator relacionado mais frequentemente citado
foi o estresse. Quando “causas” e “fatores relacionados” são colapsados em
uma ú nica categoria, os dez principais elementos de interpretação causal
citados pelos pacientes anglo-americanos foram estresse, hereditariedade,
lesão, fumo, álcool, dieta, medicação, enfermidade, raios X e estilo de vida,
nessa ordem. Apenas cinco desses elementos principais apareceram també m
entre as dez causas de câncer mais freq ú entemente citadas pelos navajos, e
; eles apareceram em uma ordem de prioridade muito diferente. É preciso ter
: cuidado ao interpretar essas diferenças, todavia, como fica evidente contras-
' tando nossos resultados com os de Linn, Linn e Stein (1982) sobre crenças
enológicas entre pacientes de câncer anglo-americanos. Naquele estudo, tanto
hereditariedade quanto estresse foram citados, mas em quarto e sé timo lu-
‘
gar, respectivamente. Os três elementos principais foram fumo, vontade de
; ;
Deus e tipo de trabalho (em contraste com os elementos principais de es-
tresse, hereditariedade e lesão no presente estudo), e apenas seis dos dez
elementos principais foram citados também por meus consultantes anglo-
: americanos.
i, I: !
:
H 316
A Ferida que ná
^
oj
15 5 4
Lesão
11 0 0
Relâmpagos
9 0 0
Feitiçaria
7 0 0
Fadiga
5 3 2
Dieta
5 0 0
Violaçã o de animal
4 1 1
Ambiente
Medicaçã o 3 5 0
Hereditariedade 3 0 14
Álcool 2 5 2
Estresse 1 13 4
Enfermidade 1 1 4
Velhice 1 0 0
Cerimónia 1 0 0
Peso 0 1 0
Dist úrbio psicológico 0 2 0
Estilo de vida 0 •
3 0
Fumo 0 5 3
Raios X 0 2 1
Contágio 0 1 0
Implante de seio 0 1 0
Má sorte 0 0 2
Total 68 48 37
Nota: os Ns 50 e 49 para anglos excluem pacientes para os quais nã o havia dados sobre
interpreta çã o causal.
317
f
r < *
i
if !I
i 1
ausentes nos dados anglo-americanos, mas tambdm na sua maioria cram
íj i
proeminentes nos dados navajos. O principal elemento cm comum que
requer interpretação do construto causal dos dois grupos d a lesão. Uma
! !!
I hipótese experimental é que, assim como a atribuição navajo pode ser base-
ii ada na concepção cultural de que uma lesã o pode se tornar uma ferida que
n ão cura, a atribuição anglo-americana tambdm pode ser baseada na con-
1 :ii 1
;í
cepção cultural de que uma lesã o pode dar in ício a um processo de cresci-
mento anormal, assumindo uma analogia entre o “inchaço” causado pela
lesão e um tumor. Afora isso, podemos concluir que, apesar de mais de um
século de pressão assimiladora e apesar do fato de que todos os pacientes
navajos tinham recebido tratamento hospitalar biomédico, a interpretação
causal navajo do câncer permanece culturalmente distinta da dos anglo-
! ,
americanos. Apresentada essa conclusão geral, vamos nos aprofundar um
pouco mais na etnoteoria navajo de etiologia da doença, examinando o
'
'
segundo principal elemento causal para os navajos, o relâmpago.
|; 318
A Ferida que não Cura
Um passo experimental para determinar com que frequ ê ncia o rel âm-
pago c associado com outras doen ças pareceu inicialmentc desconfirmar a
hipó tese da especificidade. Um colega m ódico relatou casos de dez pacientes
tradicionais navajos, nenhum dos quais tinha câ ncer; cinco deles atribu íram
suas doenças até um certo ponto a rel â mpagos. No entanto, dois desses
pacientes disseram explicitamentc ao médico que temiam que o seu problc -
ma pudesse se transformar em câ ncer. Esse grupo incluía um paciente que
tinha sido atingido diretamente e algu ém que havia sido atacado por uma
bruxa com madeira de uma á rvore atingida por um raio. Um terceiro estava
sofrendo de ú lceras no estô mago, que sã o relacionadas ao câncer por perten-
cerem a uma classe de feridas que n ã o curam.
Esses dados não são conclusivos, mas garantem a perquirição da ques-
tão. Ao considerar que as cerimó nias navajos são dirigidas principalmente à
remoção de quaisquer fatores etiológicos definidos como ativos, pode-se
reunir evid ê ncias indiretas com base em quais tipos de cerim ó nias de cura
tradicionais são usados para pacientes de câncer. Com respeito a isso, deve-
mos considerar a observação de Jerrold Levy (1983, p. 132) de que “nenhu-
ma doen ça navajo é conhecida pelos sintomas que produz ou pela pane do
corpo que se pensa que ela afeta [. ..] No entanto, cenos grupos de cerim ó-
nias de cura parecem estar associados com alguns sintomas e não com ou-
tros, enquanto várias outras cerim ó nias parecem ser boas para uma longa
série de sintomas”. Essa questão de generalidade na eficácia das cerim ó nias
de cura é complicada pela observação de que o câncer n ão é uma ú nica
doença, mas uma classe de doenças que exibem uma variedade de padrões
de sintomas. Todavia , eu mostrei acima que o conceito de câncer está sufi-
cientemente integrado no pensamento navajo para ser geralmente associado
com uma causa mais ou menos distinta.
O papel do raio nas concepções de causação de câncer é afirmado por
relatos de pacientes sobre o uso que fazem de cerimónias de cura tradicio-
nais em conjun ção com o tratamento biomédico (Tabela 7.6). A cerimó-
nia- padrã o usada para remover efeitos adversos de raio é o Cântico de Atirar
{ naatoeé). Em contraste, a concepção de câncer como um tipo de ferida
( lóód) n ão parece motivar o uso daquelas cerim ó nias descritas como especi-
almente apropriadas para feridas e bolhas, que são Caminho da Águia, Ca-
minho de Captura da Águia e Caminho da Conta (Sandner, 1979, p. 45;
Wyman; Kluckhohn, 1938, p. 29).
319
d li
Ííí .
i CORPO / SIGNIFICADO / CURA
:
: Um teste mais sistem á tico pode ser executado de acordo com o m é to-
, do usado por Levy, Neutra e Parker (1987) para estabelecer um grau dc
! especificidade no uso de certas cerim ónias para transtornos de convulsã o c
5 :
1
Cânticos principais
Caminho de Atirar 12
Não específico (Caminho do Mal; Caminho do Inimigo; 14
Caminho de Vida; Caminho de Bênção; Caminho de Vida
Inimigo; Caminho de Vento)
Acasalamento de R épteis 2
Outro tratamento
Ervas navajos (Caminho de Vida; Comedor de Pus;ora çõ es 17
de proteção)
Peiote 8
Cura de Chupada 3
'
!
N = 28.
!
! jí 94 Embora tenha sido mostrado que os navajos idosos usam Caminho de Atirar com
significativamente maior frequência do que o grupo de controle (Levy, comunicação verbal ),
esse fator não pode explicar os resultados entre os pacientes dc câ ncer, pois a execução de
Caminho de Atirar foi distribu ída pelas faixas etá rias da nossa amostragem .
,
320
í i
A Ferida que nã o Cura
Caminhos do Mal 12 76
Todos os outros 8 160
Total 20 236
Caminhos de Atirar 12 24
Todos os outros 14 117
Total 261 141
321
A Ferida que nã o Cura
Diante desse fato etnográ fico, continua incerto qu ão antiga pode ser a
associação. Dos dois casos de câ ncer citados por Reichard ( 1950, p. 97),
nenhum foi atribu ído a raio. Esses casos poderiam ser interpretados como
contrá rios aos presentes resultados ou poderiam indicar uma mudan ça des-
de a época de Reichard na compreensão tradicional do câ ncer, uma mudan-
ça talvez relacionada à consciê ncia de que o tratamento de “radiação”
freqiientemente usado para o câ ncer comporta algumas semelhan ças con-
ceituais com o raio. Na verdade, um dos meus informantes curandeiros
comparou os tratamentos navajos e biom édico de câncer observando que,
assim como os médicos de hospital, “n ós navajos também temos uma ceri-
mónia de radiação”.
Ainda que essa questão não possa ser definitivamente resolvida, algo
mais pode ser dito sobre o lugar do raio no mito, na vida cotidiana e na
experiê ncia de enfermidade navajo. Apesar de os pacientes usarem consis -
tentemente o termo genérico do dia-a-dia para raio (ó oosní ), o raio desem-
penha um papel proeminente no mito navajo, no qual ele é diferenciado
em variedades de ziguezague ( 'atsiniltl’ish) , engarfado (hajilgish) e relâmpa-
go ou direto ( hatso ‘oolghal). Em mito, o raio pertence à classe de coisas más
ou inerentemente perigosas, usadas por deidades como ferramenta, arma
ou veículo (Reichard , 1950). Sob outro aspecto, o pró prio raio é a manifes-
tação de uma classe de divindades ou do Povo Santo, o Povo do Raio.
No entanto, o raio não é apenas um fato cosmológico de vida para os
navajos, mas também um fato ecológico da vida. Ele é um elemento extre-
mamente comum no ambiente desértico do Sudoeste, tanto assim que em
certas épocas do ano podem-se ver diferentes chuvas de trovoadas cruzando
a imensidão do cé u ao mesmo tempo. As crianças navajos aprendem a ter o
mesmo cuidado ao brincar perto dos relâmpagos que as crianças anglo-
americanas urbanas aprendem a ter ao brincar perto de automóveis. A li ção
fica perfeitamente clara com as mortes peri ódicas em decorrê ncia de conta-
tos com raio, que, de acordo com um m édico da reserva, ocorrem pelo
menos uma vez por ano.
A generalização do raio é ilustrada pelas diversas circunstâncias da ex-
posição citadas pelos informantes. Um homem explicou que um raio atin-
giu a rede elé trica que ia para a sua casa e cortou a energia quatro anos antes
de sua doença, enquanto um outro contou como o raio atingiu a linha
323
1'i ll CORTO/ SIGNIFICADO / CURA
1
if I
ram quais delas tinham sido executadas para eles, mas quando especifica-
ram , foi sempre a variante masculina, exceto em um caso. Essa exceção foi
o ú nico curandeiro entre os pacientes entrevistados, e ele receitou a versão
feminina para si mesmo porque já tivera a versão masculina anos antes. Nas
minhas entrevistas era mais comum os pacientes se referirem à cerim ó nia
especificamcnte como ó oosniji (Caminho do Raio) ou il hodiidiizbji (Ca-
minho do Raio Caído). Aqueles que eram capazes de especificar que o Ca-
minho de Atirar era da versão masculina (nnatoee bikdjt) tendiam a ser
também os que especificavam que a cerim ónia era do Caminho do Raio
Caído, descrevendo os efeitos de choque direto. Na verdade, Wyman e
Kluckhohn (1938, p. 23) distinguem subvariedades do Caminho de Atirar
Masculino (Lado das Regiões Altas e Lado do Raio Caído) que correspon-
dem grosso modo h distin ção entre ó oosniji e ilhodiitliizhji. No entanto, eles
indicam que o primeiro é provavelmente associado a piscadas de relâmpa-
gos, enquanto o último é associado a relâmpagos fortes acompanhados de
trovão. Os presentes dados sugerem mais que é feita uma distin ção entre
exposição indireta (passar ao lado de uma árvore atingida por raio) e expo-
sição direta (ter contato com o próprio raio) ou talvez que ó’oosm’ji é um
termo mais generalizado para qualquer Caminho de Atirar direcionado ao
raio como fetor etiol ógico
Apesar do apoio estatístico fornecido pelos dados sobre uso cerimoni -
al, é compreensível que se fique inseguro a respeito da hipó tese da especifi -
cidade associando câncer e raio. Uma peça final de evid ência que apóia a
associação foi fornecida por uma m édica de primeiros socorros da reserva.
Eu felei com essa m édica depois de um verão particularmente cheio de
quedas de raios, que resultara no encaminhamento de um grande n ú mero
de pacientes para tratamento no hospital do Serviço de Sa ú de do índio e na
onda decorrente de cerim ónias profilá ticas de Caminho de Atirar entre fun-
cion ários do hospital expostos a esses pacientes. A médica afirmou categori-
camente que - embora se eu n ão tivesse mencionado minha teoria sobre
raios e câncer alguns meses antes ela n ão teria notado - ela tinha observado
que os pacientes atingidos por raios invariavelmente expressavam a preocu-
pação de que suas lesões pudessem se transformar em câ ncer. Baseado nisso
e nos dados acima, pode-se afirmar que o raio tem mais do que uma associ -
ação casual com o câ ncer entre os navajos.
322
A Ferida que nã o Cura
323
ill;
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
t
telefónica enquanto ele estava falando, derrubando o telefone da sua m ão,
'
; 5 i ensurdecendo-o c dando in ício ao seu câ ncer. Uma mulher citou um inci-
dente de inf ância no qual um raio caiu num carro abandonado cm que elae
I .
outras crian ças estavam brincando, queimando algumas delas. Outro ho-
í mem lembrou que quando era menino caíram raios muitas vezes em torno
da carroça na qual ele estava andando. Um informante afirmou que havia
muitos raios em volta do seu rancho. E um outro relatou uma série de
p incidentes nos quais ele ajudou a salvar uma vaca atingida por um raio, o
milharal da família foi atingido por raio, e ele, como um jovem impruden-
te, contou os ossos das ovelhas atingidas por raios.
11
Ir , !
Um homem informou que a morte de uma parente de tumor malig-
no no cérebro tinha a ver com um raio que caiu numa árvore próxima,
quando ela estava juntando as ovelhas. A metade do rebanho foi morta,
enquanto tudo em volta ficava azul, ela respirou o cheiro de fumaça, carne
í e lã queimadas. Ela ficou meio desacordada, sentindo dorm ência por todo
o corpo junto com ondas de frio e de calor, e sua percepção da fogueira
ficou distorcida, parecendo um pontinho brilhante. Durante vários anos
seguintes, ela teve constantes dores de cabeça, começando entã o a desmaiar;
finalmente, sofreu uma convulsão e foi levada para o hospital, onde o cân-
1 hi!
I
- í outro informante foi um soldador que comparou sua exposi ção às chamas
e à fumaça de sua tocha (“o cheiro entrou dentro de mim”) com a experiê n-
cia de ter sido exposto a um raio natural na infância quando cuidava de
ovelhas. Um informante citou a aspiração de fumaça quando combatia um
I
f:1
V; 324
i!
I
A Ferida que nã o Cura
325
f t ;|j '
i
f iii
i :
326
A Ferida que nã o Cura
327
li
fill i'
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
:
i nentes de condi ções. Ele també m n ão diferencia os elementos de cujo en -
I : volvimento determinados informantes estão certos daqueles que eles espe-
culam que poderiam estar envolvidos. Tampouco delineia possíveis diferenças
entre as atribui ções leigas e aquelas aprendidas por pacientes através de con-
sultas com curandeiros especialistas. A maioria dos pacientes navajos gerou
uma interpretação causal formada de até seis elementos, com apenas sete
desses pacientes citando um elemento causal ú nico. Em comparação como
os dados anglo-americanos, o raio pode então ser considerado como uma
causa de câncer específica da etnomedicina navajo, mas o raio não se conci-
lia de forma alguma com a doutrina biom édica da etiologia específica. Além
disso, vimos que o pró prio raio é uma categoria que representa um conjun-
to de fen ômenos maior que o meteorológico.
Por causa da natureza m últipla tanto do câncer quanto do raio como
categorias culturais, sua conexão causal deve ser compreendida por um mé to-
do menos direto que os que acabam de ser esboçados acima. É preciso definir
a rede semântica de enfermidade (Good, 1977), o sistema de conceitos inter-
1| relacionados relevantes dentro do sistema cultural. O elo conceituai mais
importante no nosso caso é entre a compreensão de câncer como uma ferida
emputrefação e os efeitos da radiação como algo que queima e come a pessoa
por dentro. O mecanismo primário pelo qual a doença entra na pessoa é a
inalação, que pode incluir os vapores elétricos de um choque direto, fumaça
de um incêndio florestal causado por raio, a putrefação da carne de um ani-
mal atingido por raio e, por extensão, o fedor de um animal apodrecendo
: ! ^
mono na estrada O raio é a forma prototípica de radiação, mas a radiação
nada mais é do que uma interpretação contemporânea da ampla categoria
tradicional dos fen ômenos de tiro, embora com menos ênfase em exemplares
í :!
^
tradicionais como cobras e flechas categoria inclui a eletricidade e a afirma-
,
’
I < 328
s
A Ferida que nã o Cura
96
As médias de 2,7 e 2, 1 foram calculadas dividindo o número total de respostas (68 para os
navajos, 85 para os anglos, combinando as categorias “relacionado” e “causado”) pelo
número total de respondentes (25 para os navajos , excluindo 3 que náo deram nenhuma
resposta , e 40 para os anglos , excluindo 10 que não deram nenhuma resposta) . A
porcentagem daqueles que não deram nenhuma interpretação causal é, então, 3 de 28 ( 11
• por cento) para os navajos e 10 de 50 (20 por cento) para os anglos (compareTabela 7.5).
329
I!
lit
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
I
I diferentes aspectos da experiê ncia de enfermidade. A queixa do idoso nava-
; jo de que eles “n ã o me dizem qual é a minha doen ça no hospital” pode
í significar n ão que os médicos deixaram de informá-lo sobre um tumor nos
rins, mas que deixaram de informá-lo por que ele tem o tumor. Além disso,
! !i ' os m édicos estão diante do fato de que os seus pacientes navajos estão pre-
! ocupados com o raio como uma causa suficiente de enfermidade; embora
;
assintom á tico, um navajo pode ser considerado doente após uma exposi ção
a raios. Em geral, profissionais biom édicos não familiarizados com inter-
pretações causais ctnomédicas desconhecem os temores do paciente de que
1
330
A Ferida que nã o Cura
A pró pria noção dc causa , todavia , assume um cará ter ontol ógico es-
pecial porque ela é compreendida em relação com a doen ça como uma
coisa ou entidade, em vez dc um processo ou evento. No caso da etnome-
dicina navajo, n ão é, então, suficiente observar uma mudança no conceito
^
dc câ ncer de descritivo para ctiológico Na medida em que o câncer é incor-
porado no padrão cultural navajo, ele se torna menos uma entidade e mais
um evento ou processo, com a consequente mudan ça em o que pode ser
^
levado a constituir uma causa Em âmbito mais amplo, a compara ção de
sistemas etiológicos com ou sem entidades de doença explicitamente defi-
nidas deve levar em consideração n ão apenas o seu reconhecimento de dife-
rentes tipos de causas poss íveis e de diferentes possibilidades de causas
interativas m últiplas, mas também a possibilidade de um diferente status
ontológico da própria noção de causa.
Terceiro, a importância desses problemas não deve nos fazer presumir
uma distinção indelével entre os sistemas biomédico e tradicional de raciocínio
causal. Essa questão concerne diretamente à etnopsicologia da cognição, pois
o raciocínio causal revela a estrutura da mente como uma capacidade para
gerar proposições e buscar explanações sobre o mundo. Meus dados sobre
atribuições causais para o câncer me levam a concluir que dar sentido à enfer-
midade coloca em jogo diferentes modos de raciocínio causal, mas que esses
modos são válidos nos sistemas anglo-americano e navajo de emomedicina.
Lesão, dieta e exposições ambientais como a radiação estão incluídas nas in-
terpretações causais de ambos os grupos, embora em graus diferentes e com
racionalidades variáveis. É uma questão para determinação empírica se tais
elementos co-ocorrentes são autóctones ou emprestados. Da mesma forma, é
preciso determinar se elementos de diferentes repertó rios culturais são consi-
derados compatíveis ou incompatíveis, se eles podem ser assimilados uns aos
outros por processos metafó ricos e se os repertó rios culturais interagentes, nas
suas totalidades, ocupam nichos cognitivos integrados ou disjuntivos.
Um exemplo impressionante dessa complexidade vem de uma entre-
vista com uma mulher de trinta e poucos anos, com curso secundário com-
pleto e experiê ncia de trabalho em serviços sociais de saúde, que estava em
aparente remitê ncia de um câ ncer de mama. Em resposta a uma questão
sobre tratamentos e cerimó nias tradicionais, ela falou bastante sobre a influ-
ência causal do raio. Mais tarde, quando questionada especificamente sobre
331
!
: I CORTO / SIGNIFICADO / CURA
’ ,
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M M: : i
o que ela pensava que tinha causado a sua enfermidade, ela respondeu pon -
i fj !; . t I deradamente que havia três fatores possíveis, os quais ela enumerou por
II ordem de importâ ncia. Primeiro foi o fato de sua avó c uma tia terem
contraído câ ncer, portanto podia ser hereditá rio. Segundo, foi que ela tinha
1
,
t
! ; feito um regime usando o medicamento Depoprovcra que, era sua impres-
?(
> são, podia ter tido um efeito carcinogê nico. Terceiro, e um tanto cé tica, ela
lembrou que tinha estado em um acidente de automóvel no qual batera o
seio contra o volante de direção; ela n ão parecia acreditar muito nessa causa,
mas evitou tirá-la completamente de cogitação. Eu, então, observei que
|
!i
v
! antes ela dnha mencionado uma quarta causa, a exposição ao raio. Parecen-
do um pouco perplexa, ela disse: “ Nesse caso, vou pôr o raio em terceiro
[ :i .
lugar e a batida no volante em quarto.”
Surpresa ao ter o produto de raciocínio causal tradicional justaposto
ao produto hierárquico de um modelo explanatório mais anglo-americano,
essa mulher, não obstante, passou rapidamente a integrar os dois. A impli-
cação é que as etiologias navajos e anglo-americana são cognitivamente dis-
tintas, mas não cognitivamente incompatíveis. Resta saber por que uma
questão explícita sobre causa pode eliciar uma resposta que exclui elemen-
M l : '
tos do repertó rio tradicional, a menos que haja uma disjunção cultural em
formas de raciocínio sobre relações de causa e efeito. Como apontei acima
i
ao citar o curandeiro informante de Adair e como(Ruth Benedict (1934 p
;
'
observou há muito tempo sobre os dobu, os sistemas terapê uticos tradicio-
nais, ao se depararem com novas doenças, podem n ão desenvolver novas
U' -
técnicas terapê uticas para lidar com elas ou podem considerá las fora da
: competência tradicional. Da mesma forma, os sistemas etiol ógicos tradici-
'
onais podem incorporar ou n ão tanto os novos elementos causais como as
!i novas racionalidades causais.
,
Finalmente, a sugestão de que há diferentes modos de raciocínio cau -
sal leva-nos a reconsiderar nossa dependência metodológica na distin ção
entre corpo e mente, ou nos termos mais precisos d < Evans-Pritchãrd (1937)y
^ rP-
^
:
i
entre causas sensíveis e m ísticas. Essa questão se relacio racionalidade^
I
;
^
existencial da cultura, pois como(ÍJnd baum 979
^ 56yobservou , “as
cren ças sobre a etiologia da doen ça são afirmações soEreTnatureza da exis-
"
s
i í 332
i
A Ferida que nã o Cura
97
A discussão de Lamphere dos fenômenos naturais contrasta o que ela considera uma ênfase
navajo em elementos do ambiente externo, tais como animais e fenômenos meteorológicos,
com a descri ção de Victor Turner, V. ( 1966) da ênfase ndembu em fenômenos corporais.
Especialmente, ela argumenta que o simbolismo das cores navajo está mais associado com
tais fenô menos naturais externos do que com substâncias corporais. No entanto, os dados
de curandeiros biculturais entrevistados no presente estudo indicam que embora as cores
venham do sol , as cores do arco- íris são as mesmas cores da pedra de areia e do corpo. O
seguinte esquema de sete cores e sete órgãos do corpo (não emissões do corpo como com os
ndembu) é apresentado: branco - osso , amarelo - tutano, brilho - gordura , marrom -
pele, cinza - órgãos internos, vermelho - sangue e preto - cabelo. Esses sete órgãos internos
se relacionam com sete partes externas do corpo (a ordem de relação é incerta) que são pé,
perna , cintura , tronco, braço , cabeça e nariz, e com uma série de sete ervas usadas para curar
debilidades dos órgãos e membros correspondentes.
333
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ff ff I
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í :
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
-
!
^
Pode-se argumentar que, colocado dessa forma , o problema d, cm par-
te, um artef à to da distin ção entre o natural e o sobrenatural que estava em
voga na antropologia 20 anos atrás. Essa distinção metodológica tem três
características relevantes. Primeiro, ela d essencialmente atribu ída a distin-
ções entre físico e espiritual, material e imaterial, tangível e intangível ou
sensível e m ístico, todas elas pressupondo uma distin ção normalmente cha-
11i i| mada de “cartesiana” entre corpo e mente. Segundo, ela pressupõe que o
í1 ' :
sobrenatural d mais verdadeiramente “cultural ” do que o natural, de uma
maneira mais ou menos análoga ao modo como Kroeber teorizou que o
il M!
:
!'
superorgânico se coloca em relação ao orgânico. Finalmente, a abordagem
tradicional focou quase exclusivamente a definição cultural abstrata do agente
causal , deixando de lado a questão de como aquela causa produziu seus
efeitos em termos de uma fenomenologia cultural.
A antropologia hoje está melhor preparada para ocupar-se do físico
911 em uma definição do sagrado, da experiência corporal em uma compreen-
são da cultura e das práticas etnomddicas concretas em adição às crenças. O
exame do processo causal associado com a exposição ao raio exemplifica
esse câmbio metodológico. Os pacientes no presente estudo que menciona-
ram raios referiram-se tipicamente a um evento específico no qual o raio
caiu tão perto deles que eles viram um clarão azulado e inalaram o acre
vapor elé trico. Para descrever essa experiência, eles usaram a frase navajo shil
hodiitl iizh, que pode ser traduzida como “eu fui contaminado pelo raio”.
Baseada na vividez das declara ções dos informantes e na existência de uma
convenção linguística para descrever a experiência, a dimensão sensorial con-
creta dessa exposição não pode ser minimizada em favor de um conceito de
contágio espiritual. Não é apenas o fato da proximidade que define a expo-
sição ao raio; imediatamente, o corpo da pessoa é envolvido (exposição
1 externa) em azul (modalidade visual) e incorpora pela inalação (exposição
!f i interna) a acre névoa (modalidade olfativa)
/ ^
ko enfatizar essa dimensão corporificada da experiência, podemos co-
meçar a resolver a questão de se o raio é um fen ômeno natural ou sobrena-
tural para os navajos. Ele é certamente natural no sentido de afetar as pessoas
de uma maneira física, orgânica. Ao mesmo tempo, a enormidade da expe-
ri ência, sua avassaladora “alteridade”, qualifica-o como um fen ômeno quin-
tessencialmente sagrado, culturalmente elaborado em mito e em rituais de
334
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A Ferida que n ã o Cura
335
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CAPÍTULO OITO , ,
Palavras do Povo Santo*
* Agradecimentos: a pesquisa apresentada neste capí tulo foi apoiada por auxílios do Centro
Nacional de Pesquisa de Saúde Mental para o índio Americano e o Alasquiano Nativo, o
Fundo Milton da Escola de Medicina de Harvard , o Centro Arnold para Pesquisa e
Tratamento da Dor do Deaconess Hospital da Nova Inglaterra.
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CORPO / SIGNIFICADO / CURA
r
1 I i
;! corpo humano, uma mente à alma, c o existencial mente, c então cantar
i mais alto do que antes os louvores da mente, apenas para deixar tudo
!! ' I ;
!
: recair em “experiência de vida”. [...] Assim como a essê ncia do homem
mi ! não consiste em ser um organismo animal, essa definição insuficiente da
essência humana não pode ser superada ou compensada revestindo o ho-
" í mem com uma alma imortal, o poder da razão ou o cará ter de uma pessoa.
:!
! I Heidegger considera que a aplicação ad hoc de componentes a um
í
i corpo essencialmente animal expõe a inadequação de distin ções entre men-
< ;
te/corpo/alma/pessoa, e trai o cará ter existencial do corpo humano como
essencialmente humano. Deixando de lado o problema se Heidegger essen-
;
cializa o corpo humano a ponto de negar o Ser de animais (Caputo, 1991),
3i ijj será que a necessidade de remodelar nosso entendimento do corpo em ter-
mos fenomenológicos n ão nega equivocadamente a importante relação en-
I (
-
i
. . -
É tão falso colocarmo nos na sociedade como um objeto entre outros
í objetos quanto colocar a sociedade dentro de n ós como um objeto de
pensamento, e, em ambos os casos,(o erro está em tratar o social como
I
um objetu?) Nós devemos retornar ao social com o qual estamos em con -
. tato pelo mero fato de existir e que trazemos inseparavelmente conosco
*
-
antes de qualquer objetificação. (Merleau Ponty, 1962, p. 362).
::
i
/ Negar que o social é um objeto põe em d úvida o status dos “fatos
sociais”, cuja existência teria sido estabelecida definitivamente por DurkheimJ
í
! A exigência da análise cultural iniciar numa experiência pré-objetiva n ão
presume equivocadamente uma dimensão pré-social ou pré-cultural da exis-
i [i !
338
ffj
;i ! í ^
Palavras do Povo Santo
tência humana ? A resposta está cm definir o sentido que atribu ímos a carre -
gar o social “ inseparavelmente conosco antes de qualquer objetificação ” .
/
Dessa forma, o segundo objetivo deste capítulo é mostrar como o significa -
do cultural é intrínseco à experiência corporificada no plano existencial do
ser-no-mundo /
O antropólogo abordando questões nesse contexto pode ser diferenci-
ado do fil ósofo por um crité rio simples: o antropólogo só se satisfaz quan-
do argumenta em termos de dados empíricos. Os dados para o exercício de
“trabalho de campo em filosofia” ( Bourdieu , 1987) deste capítulo são ex-
traídos do caso de um rapaz navajo acometido por um câncer do cérebro.
Eu introduzirei e contextualizarei o caso, n ão em termos biológicos ou
culturais, mas clínicos. Buscarei, então, conduzir a discussão do ser-no-
mundo entre os dois pólos da objetificação, mostrando como ele mobili-
zou os recursos simbólicos da sua cultura para dar sentido a uma vida imersa
em profunda crise existencial e formular um plano de vida consistente com
sua experiência de uma doença neurológica cró nica.
Perfil cl ínico
meio de faculdade. Ele vinha de uma fam ília bicultural relativamente acul-
turada; sua mãe era professora primária e seu pai um chefe de cerimónia ou
“andarilho” na Igreja Americana Nativa ( peiotista), e um irm ão estava fre-
quentando faculdade. Dan era divorciado e, desde o in ício da sua doen ça,
foi carinhosamente cuidado pela pró pria fam ília.
Seu diagnóstico foi astrocitoma de grau II, um tumor cerebral no lobo
temporal-parietal esquerdo. Após a remoção do tumor, ele fez quimiotera-
339
"
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'
: 5Í
Isso traz a questão de pressupostos culturais sobre a reabilitação e a recuperação, um tópico
ainda muito inadequadamente examinado. É possível que a suposição anglo-americana de
que alguma forma de reabilitação formal deve começar o mais cedo possível esteja aqui
contradita por uma suposição navajo de que se deve esperar pela reabilitação, ou até que as
capacidades “tenham voltado” antes de entrar em qualquer reaprendizado formal , mesmo
I que este próprio reaprendizado vise evitar esforços excessivos para o paciente.
340
i
t !!
I
Palavras do Povo Santo
gcns até um centro m édico universitá rio fora da reserva, sob a alegação de
que os doutores ali “n ão fazem nada”, e ele preferia o atendimento domici -
liar dos agentes de sa ú de. Nesse meio tempo, Dan desenvolveu sua própria
estratégia de reabilitação para reaprender o vocabulá rio ao descobrir a exis-
tê ncia de livros de palavras cruzadas, com jogos de páginas de letras nas
quais se deve identificar palavras cm linhas verticais, horizontais ou diago-
nais. Completar esses quebra-cabeças era a principal auvidade de Dan. Em-
bora o trabalho muito duro nesses jogos eventualmente lhe causasse dores
de cabeça, essa atividade parecia lhe oferecer uma forma automotivada de
terapia linguística e reabilitação cognitiva.
No verão de 1988, a mem ória e a capacidade de ler de Dan haviam
voltado. Mesmo tendo estado deprimido e permanecendo inseguro de sí e
de suas habilidades, ele declarou estar novamente “tentando”. Ele conti-
nuou trabalhando em seus quebra-cabeças de palavras, registrando o au-
mento da velocidade com que conseguia completá-los e comparando sua
maneira cada vez mais Empa de circular as palavras com os primeiros jogos,
que, segundo ele, pareciam ter sido feitos “por uma criança”. Ele admitiu ter
se “tornado um perfeccionista no vestir e na aparência” a ponto de suas
irmãs brincarem dizendo que o cirurgião “deve ter adicionado algumas cé-
lulas cerebrais”. Ele tinha começado novamente a falar em ter uma fam ília e
a fazer piada sobre “ ir à luta para arrumar uma gata”. Sua condição física
naquela época era estável.
341
!í fill
-
It
: I CORPO / SIGNIFICADO / CURA
! ;
: de. EIc indicou que essa estratégia surgiu num encontro direto com deida-
! S des navajos ou Povo Santo, que o inspiraram com palavras de ora çã o.9’
'
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l i ;; H í i .
Sim Sim. Eu acho, viu , cu nunca tive o costume dessa ajuda , esse tipo
de ajuda vindo, mas. .. ah , minha vida está mudando, mas ainda agora
ela meio que me machuca [...] algumas vezes cu tenho umas orações -
jh l i quando cu era muito pequeno, aprendendo, cu orava na frente de mi -
Ii li li '
11 ;l —
nha m ãe c meu pai ou cu falava com eles viu , algumas dessas [novas]
palavras, eu nunca soube, cu nunca soube. Minha m ãe c meu pai apenas
I disseram que na verdade eles nunca tinham ouvido elas [serem ditas
’ pelos navajos]. Mas então cu contei a eles c disse que tem coisa que cu
I posso ouvir. Eu disse “Alguém me acordando quer que eu escute”, mas
I ;í então eu rcalmcntc tenho dor na minha cabeça e a í cu costumo me
levantar. Mas [quando ocorreu pela primeira vez durante o tratamento
!
de Dan num hospital fora da reserva] n ós estávamos ficando no motel c
meu pai estava, meu pai cuidou mim , entã o n ós ficamos no motel o
tempo todo, entã o alguma vez vamos dormir pelas 7 e a í n ão consigo
dormir [pausa] meus olhos simplesmente abrem como se cu estou sem
sono c eu digo, bem , tanto fàz se cu ligar a TV, então vou ligar a TV,
: Mí naquela época [logo após a cirurgia] també m eu n ão podia entender o
que era TV, sabe, o que uma TV era ou o, o diferente programa, eu só
olho eles, eu só sento lá assim sem rir porque esqueci [o que significava]
!
— —
cu n ão faço mais isso e daí cu sento ali e eu digo bem eu acho que cu
— —
posso ir dormir c acabo ficando lá deitado eu tentei ir pô! só arregalo
os olhos de novo, só como uma fala vem , vem, vem e eles me mantê m
aqui por uma boa hora e meia. Então, eu pego uma dor de cabeça se cu
‘
não, se cu não falo coisa nenhuma. Eu posso sentir isso, então meu pai,
cu sei que ele está cansado também e ele tem , eu digo “pai por favor você
! pode sentar ”. Eu disse: “Algumas palavras vindo a mim cu gostaria de
; ;: ' mencionar a você. Eu quero que você me diga se estas sã o certas são ou se
elas são erradas. A palavra que eu , que eu tenho.” Então é o caminho
i . navajo sobre muito tempo atrás e meu pai diz “como você pode saber
> 99 As transcrições das palavras de Dan evidenciam uma cont ínua incapacidade ling íi ística
relacionada à doen ça, e, por essa razão, elas n ão foram editadas para aumentar sua fluência .
’ !
|f 342
r
i :
í
-Jk
Palavras do Povo Santo
porque você nunca nem soube que estas enquanto você acorda elas são
colocadas no seu cé rebro”. E ele diz então cu tenho que perguntar a
algu é m , cu tenho que falar ou com minha m ãe ou meu pai c perguntar
a eles cada coisas que algumas vezes são - cu mudo ela c é a í que eles
ficam chateados comigo. . . [ passagem confusa]... então cu mudei uma
daquelas palavras c eles ca íram [ i.c., foram induzidos ao erro] minha
mãe c meu pai eles caíram eles n ão conseguiam pensar por que isso saiu
desse jeito entã o eles estavam tentando pensar sobre qual [das suas pala -
vras] estava indo certa , eles estavam dizendo que isso que eles costuma -
vam fazer muito tempo atrás. Entã o enquanto cu fazia, mudar só um
pouco cu mesmo cu podia sentir isso, bem como se você vai vomitar,
ééé, c a dor bem vazia de novo você está só fazendo “duu! duu! duu!” [faz
sons descrevendo uma sensação corporal /cognitiva] pois é, c eu apenas
sentei lá e então eu só tive uma audição que diz “manda de volta , manda
de volta”. Então, eu só sentei l á c eu , eu disse “m ãe, pai”, eu disse, “vocês
tem que ouvir isso dessa forma”. Eu disse eu cometi um erro. Então cu
falei da forma que me veio. Então eles puderam responder assim então
eles ca íram direitinho.
343
f
I
V
i I 1
!
- 1
:: CORTO / SIGNIFICADO / CURA
t
!
! I! i:
;
cia que caracterizou a recuperação de Dan , seus pais c outros tiveram difi
culdade de comprccndê-Io. Essa dificuldade era composta de grave defici-
-
li
StUi# \\ ê ncia lingu ística e do entendimento de que a enuncia ção era uma revela çã o
direta de uma síntese nova e contemporâ nea da filosofia navajo tradicional
i em uma pessoa jovem que nunca antes havia conhecido tais coisas. Dan
indicou que seus pró prios esforços para corrigir sua fida eram ineficazes, e
1: 1 que, apenas quando ele consentia em “mandar de volta” e deixar sua fala sair
da forma como era inspirada, eles começavam a entender.
Seus pais também lhe disseram que ele devia falar diante dos anciãos
m; no encontro de peiote para que eles confirmassem. Ele fez isso em uma série
Ir 1
i
de quatro encontros de peiote realizados para a sua recuperação pós-cir ú rgi-
:
ca. Esses encontros duram uma noite inteira, durante a qual os participantes
fij) ingerem peiote, cantam e se revezam pronunciando orações frequentemen -
te longas, espontâneas e inspiradas (Aberle, 1982; La Barre, 1969). Nesse
I cenário, cada um dos oficiantes do ritual, os pacientes e muitas vezes outros
í* anciãos oram formalmente e h á intervalos nos quais a conversação discreta é
»
.11
•
344
u
Palavras do Povo Santo
345
rf
i i S!
: li
SÍ CORRO / SIGNIFICADO / CURA
.
Í
|!; í ' ! ponto de nossas entrevistas, ele disse que nunca teve o costume de falar
como fala agora, rcfcrindo-sc evidentemente n ão apenas ao conte ú do da sua
íi fala , mas ao fato de que antes da sua enfermidade ele era mais taciturno.
I Segundo, invocando um critério corporal de validade, os outros parti-
!11! : cipantes reconheceram que Dan teria ficado enfermo se sua oração tivesse
sido incorreta. É bem sabido que a ingestão de peiote pode causar fortes
i i! ,
vó mitos. Uma interpretação é que o Povo Santo causa esse sofrimento para
! ! punir pensamentos ou falas incorretas. Posto que Dan n ão foi afetado pelo
peiote, suas palavras foram finalmente entendidas como detentoras de apro-
'i vação divina.
. .
•
i Terceiro, Dan argumentou que parte da razão para suas palavras serem
mal compreendidas era que elas eram endereçadas à situação contemporâ-
nca e problemas dos navajos mais novos. Embora reconhecendo que os
mais velhos podem ajudar jovens perturbados com encontros de peiote, ele
enfatizou que agora há muito mais gente no mundo e que as coisas são
diferentes do que eram 25 anos atrás. As pessoas idosas conhecem apenas a
reserva, mas os jovens viajaram e até estiveram em faculdades, e então estão
sendo inspirados com diferentes tipos de oração. Segundo Dan, os partici-
pantes reconheceram que suas palavras poderiam ajudá-los a entender me-
lhor os próprios netos. Ele alegou que alguns chegaram a chorar ouvindo
suas palavras, uma reação em conformidade com a ocorrência comum de
pranto sentido quando algué m se comove com a sinceridade do orador
durante as orações de peiote (Aberle, 1982, p. 156; La Barre, 1969, p. 50).
A experi ência da l íngua novamente desempenhou um papel notável e
pungente com respeito ao tema de que sua mensagem era voltada à juven-
tude navajo. Mesmo sendo o inglês a sua primeira língua e m ínimo o seu
conhecimento de navajo, pelo que disseram tanto ele como a sua m ãe, ele
atribuiu muito significado à perda aparentemente permanente da facilidade :
linguística em navajo enquanto recobrava a capacidade de falar em inglês:
dadcs, eles n ão entendem direito, mas então às vezes eles querem ajuda,
mas então eles n ão conseguem entender o navajo, então eles ficam cha-
teados. Sã o pessoas novas, eles fazem o trabalho inteiro para elas no
caminho navajo c elas rcalmcntc não dão conta do recado, n ão sabem o
que está sendo dito c então [elas] ficam meio irritadas com isso e então
n ão sabem mais para onde ir .
Ele concluiu que perdeu o seu navajo porque o Povo Santo queria que
ele apresentasse sua mensagem em inglês aos jovens que queriam ajuda das
cerimonias navajos tradicionais, mas que ficaram frustrados porque não
conseguiam entender os procedimentos cerimoniais. “Talvez eu possa dar
isso a eles”, disse Dan.
O fato de que Dan atribuiu grande parte da sua recuperação à ajuda
divina propiciada pelo peiote fica evidente no seguinte trecho de nossa se-
gunda entrevista. O contexto do trecho é a minha questão sobre a reação
dele ao peiote durante os encontros realizados em seu benefício, uma ques-
tão visando identificar qualquer interação experimental entre os efeitos da
substância psicoativa e a sua condição neurológica:
347
rf
i!
rf
' ! : CORPO / SIGNIFICADO / CURA
i a minha fala”. A pequena amostra de oração que Dan pronunciou para mim
também parece bastante apropriada no contexto peiotista. “Pai Celestial ” é
uma fó rmula comum de apresentação em orações de peiote navajo (Aberle,
1982, p. 153).
* • ;
i
A noção de Dan de que há uma “palavra que talvez eu n ão tenha fala-
1
1 348
Palavras do Povo Santo
significa tanto cura pessoal como capacidade de ajudar outros. A relevâ ncia
dessa síntese sc confirma na pró pria declaração seguinte, na qual Dan ora
para que o povo navajo seja capaz de sc entender gentilmente com o futuro
c pede que o divino “n ão force eles” - precisamente o conselho dado a Dan
por seus m ódicos sobre sua reabilitação.
Outras declarações em nossas entrevistas indicam que a mensagem de
Dan estava em conformidade com temas morais tradicionais do peiotismo
navajo, incluindo a preocupação com estudantes distantes da reserva, a im-
portância da educação no mundo contemporâneo, relações com pessoas
brancas e identificação com os Estados Unidos, bem como com a humani-
dade como um todo (Aberle, 1982, p. 154, 156). A cena altura Dan fez
um longo discurso sobre o conceito tradicional do ciclo de crescimento e o
decl ínio da vida, simbolizado pelo altar de peiote, lamentando como as
pessoas velhas eram negligenciadas pela juventude contemporânea e deixa-
das em asilos. Outro caso realça considerações morais globais:
349
min ! ii ii CORPO / SIGNIFICADO / CURA
; !
I
ii Nesse trecho Dan conta uma experi ê ncia prof ética que encorajou suas
aspirações espirituais e imprimiu nele a urgê ncia moral das preocupações
; globais. A experiência foi a de saber do desastre nuclear russo cm Chernobil
antes de ele ocorrer. O crescente círculo de perigo que ameaça os navajos cm
virtude de sua cooperação com os Estados Unidos em qualquer conflito
:
- com os (ex) soviéticos, e que da mesma forma identifica a boa vontade
americana em oferecer amistosa assistência técnica aos sovié ticos com o “ca-
minho navajo” da harmonia, é consoante com o “círculo de oração” em que
í as orações de peiotistas navajos geram “disseminação gradual das bênçãos do
grupo imediato, daqueles presentes para o mundo inteiro” (Aberle, 1982,
p. 153 ).
: . /Essa implicação cosmológica coroa a an álise existencial da linguagem
para Dan. Ser uma pessoa navajo de verdade significava ter a atualidade da
linguagem como um modo de envolvimento no mundo, ter o projeto de
tornar-se curandeiro era a razão fundamentando o retorno da linguagem, e
! a espiritualidade peiorista definia o horizonte moral do seu discurso como
um horizonte global. Sua luta n ão era pela langue, uma capacidade cogniti-
va abstrata ou representacional, mas pela parole, a capacidade de produzir
enun dações coerentes, social e moralmente relevantes
350
Palavras do Povo Santo
351
s
! CORPO / SIGNIFICADO / CURA
!
li ! Norman Geschwind (1975, p. 1584) sugerem sua relevâ ncia no caso de
Dan:
i -
)
352
Palavras do Povo Santo
353
,r
i. tf III
Ii CORPO / SIGNIFICADO / CURA
* :I
! 1 branco de 34 anos que tinha sido submetido a vá rias craniectomias para um
’
íi
|
abcesso temporal-parietal esquerdo, exatamente o local da lesã o de Dan:
: “ Trcs anos depois da cirurgia [...] sua ficha hospitalar registra que ‘agora ele
l i' expressa interesse em religião e, possivelmente, cm se tornar ministro e es-
! I
pera aumentar seu uso de boas palavras’ para este fim
I
Logo depois, ele mesmo sugeriu e fez vá rios serm ões na sua igreja.
Espontaneamente ele distribuiu cópias dos textos desses serm ões para os
'
seus m édicos. Os serm ões abordavam altas questões morais, que foram
|
' tratadas em “detalhe meticuloso e alramcnte circunstancial ” (Waxman; Ges-
í:
'
í
chwind , 1974, p. 633). A anomia de Dan e a afasia desse paciente - ou, para
ser mais específico, as características compartilhadas de suas recuperações -
; poderiam certamente ser objetificadas em termos neurológicos, mas a inca-
!
pacidade de encontrar uma palavra carrega um significado existencial pré-
objetivo que também se torna objetificado ou tematizado principalmente
’
em termos religiosos. Em outras palavras, a extraordinária semelhança des-
i ses casos deve-se muito provavelmente ao semelhante local da lesão neuro-
:
? lógica, mas embora a lesão explique facilmente o transtorno lingu ístico, ela
!
não explica adequadamente a elaboração do significado moral de encontrar
a palavra certa. Isso leva diretamente de volta à existência corporal e “ao
\
social que carregamos conosco por aí antes de qualquer objetificação”. No
caso de Dan podemos discernir essa base existencial de duas maneiras: em
relação a esquemas corporais que organizam interpretações de etiologia, ex-
.
peri ência prodrô mica e sequela pós-cir ú rgica; e em relação ao próprio status
existencial da linguagem.
A compreensão de Dan de como o seu câncer ocorreu segue o esque-
! ma101 etiológico navajo tradicional de contaminação por raio (veja Capítu -
lo Sete). Duas observações têm de ser feitas para se compreender a realidade
I
'
101Meu uso do termo esquema é vagamente relacionado à noção de esquema de imagem
proposto por Mark Johnson ( 1987) . Neste contexto, eu uso o termo mais por conveni ência
do que por convicção, pois a abordagem de Johnson 6 csscncialmente cognitiva em vez de
fenomenológica. No entanto, não querendo abrir um vasto campo de debate teórico, eu
sugeriria que a noção de hábito, elaborada corretamente como parte de uma fenomenologia
cultural , desempenharia um papel teórico equivalente e seria mais apropriada aos nossos
propósitos do que a noção de esquema.
í. ÍI
'
i!
354
!
Palavras do Povo Santo
^
como radiatividade c emanações de fornos de microondas. Dan citou uma
exposi çã o a raios naturais, quando era crian ça e cuidava de ovelhas, como
origem do seu tumor. Mas ele também citou a exposi ção, já adulto, ao fogo
e à fumaça do seu ferro de soldar como uma exposição secundá ria a raios
que precipitou o surgimento de sua enfermidade atual. Segundo, o raio não
é um fen ômeno cultural abstrato que age por contágio m ístico desprovido
de fenomenologia cultural. O protótipo da contaminação por raio é o en-
contro físico direto no qual o raio cai tão perto que a pessoa vê um clarão
—
azulado e aspira vapores elé tricos de cheiro penetrante - // hodiitluzh (com-
pare Young; Morgan, 1987, p. 453). A base pré-objetiva desse esquema de
contaminação na experiência corporal explica a assimilação do raio natural e
do raio produzido pelo ferro de solda
^
O esquema que regulou pré-objetivamente a experiência de Dan do
período prodrômico foi o da importância ritual da “quadratura” entre os
navajos, como nos quatro pontos cardeais, as quatro montanhas sagradas, a
execução de cerimó nias em grupos de quatro e assim por diante. Destacam-
se altamente na síntese pessoal de Dan os três eventos distintos que ocorre-
ram com intervalos de vá rios meses um do outro e culminaram em sua
hospitalização e diagnóstico. O primeiro ocorreu durante uma viagem com
alguns colegas de trabalho a uma grande cidade fora da reserva, quando ele
caiu desmaiado da sacada do segundo andar de um motel. O segundo ocor-
reu quando ele estava em casa com o pai, sentado em um sofá, e começou a
tremer incontrolavelmente ao preparar-se para ler um documento que seu
pai n ão conseguia entender. O episódio final ocorreu em um almoço com
colegas de trabalho, quando Dan desmaiou num restaurante e foi levado
para o hospital. Para ele, a possibilidade de um quarto ataque convulsivo
fatal estava profundamente ligada à sua vida cotidiana e aos seus planos de
^
tomar-se curandeiro Parafraseando Merleau-Ponty, o social que Dan carre-
gava consigo como um atributo de sua existê ncia corporificada era a polis-
semia profunda do sagrado n ú mero “quatro" j
Dan, de fato, experienciou algo próximo dessa quarta convulsão no
período pós-cir ú rgico de luta para recuperar a l íngua e a expressividade. Ele
estava sentado no seu quarto ouvindo rádio quando o aparelho começou a
355
Ilf:
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
,
\
,
inserido na sua cabeça para ele “nunca mais ser capaz de ter aquele tipo de
i pensamento, nunca mais ser capaz de falar de novo”.
i O status existencial da língua para os navajos foi apreendido por Rei -
! *
chard (1944) , que chamou a aten ção para a autoconsciência deles em rela-
I #
ção às palavras e às combinações de palavras, e deu à sua descrição da oração
navajo o subtítulo de “A Palavra Compulsiva”. A expressão de Reichard tem
.
um duplo sentido, pois a oração compele as deidades a responder e a eficá -
cia exige uma atenção compulsiva à correção do que é pronunciado. O caso
de Dan acrescenta um terceiro sentido, pois é ele que é compelido a falar
pelo Povo Santo. A implicação é que, por serem as inspiradoras das pala -
;
•
: vras, as deidades serão mais prontamente compelidas por elas, mas com o
paradoxo de que a pessoa que fala precisa lutar para dar-lhes forma l ú cida e
coerente. Esse acú mulo de camada sobre camada de compulsão ajusta se a -
ií um esquema que sustenta todo o pensamento navajo sobre a cura:
if ! Segundo a cren ça navajo, aquilo que fàz mal a uma pessoa é a ú nica coisa
que pode desfazer o mal. Portanto, o mal é invocado e colocado sob
í controle por compulsão ritualizada. Como o controle foi exercido e o
tij! mal cedeu à compulsão, ele tornou-se bem para a pessoa em benefício
da qual foi compelido. Dessa forma o mal torna-se bem, mas a mudança
ill " é calculada na base de resultados específicos. (Reichard, 1944, p. 5).
ganizado em ,
Na visão de mundo nava o ¥ ‘
!!
a
/
pensamento padroni
*
^n
^
forma da realidade: “ Este mundo ^ Uma influ ência constitutiva na
^ língua d° conhccimento’ or
e reaIizado em fda
^
'
'^ ,ntmç5 f *
*
'
‘
° ‘“ f
*
357
I i ;i
! I
! ; CORPO / SIGNIFICADO / CURA
! i
,
cujas formas mais graves sc revelam como psicopatologia” ( Hocppncr ct al.,
:• 1987, p. 40).
i :: Dan admitiu de forma inequ ívoca que é internamente compelido a
; falar e, quando se recusa, termina com dor de cabeça. Podemos inferir pela
: narrativa que no início a experiência dele de ouvir o Povo Santo era inde-
í .
!; pendente das palavras que então repetia a fim de verificar sua validade. Pare-
; ce ainda que com o tempo a experi ê ncia tornou-se uma inspiraçã o
não-auditiva direta à fàla. Sua descrição da inspiração, no relato inicial logo
depois da cirurgia, muda de ouvir palavras para palavras que lhe são dadas
. ou postas nele e, eventualmente, para simplesmente o espírito do peiote
que entra nele, e é quando “eu começo a fazer o meu discurso”. Assim,
iniciando com o que provavelmente pode-se descrever melhor como aluci -
nações auditivas, que são clinicamente mais comuns do que alucinações
í visuais em epilepsia do lobo temporal, parece que houve uma fusão feno-
i menológica daquilo que Dan ouviu com aquilo que Dan disse. Para Dan,
portanto, a adoção da meta de orar como um curandeiro serviu como uma
auto orienta ção que permitiu domesticar e transformar as alucinações audi-
-
tivas em elocu ções intencionais (ainda que inspiradas), devotar aten ção a
: detalhes ignorados por outros e procurar a significação mais profunda no
' aparentemente irrelevante. A partir desse ponto não podemos avan çar, pois
estamos na própria fronteira da fenomenologia cultural da linguagem.
1 ;:
i
j senvolvimento da oração “loquaz” em encontros de peiote fosse estimulado
por uma droga cujos efeitos neurológicos são an álogos aos das anomalias
lobo-temporais, mas isso seria uma afronta reducionista aos cânones firme -
mente estabelecidos da orató ria ind ígena americana que n ão têm nenhum
elo perceptível com estruturas cerebrais específicas. No entanto, La Barre
-
(1969, p. 139 143), no seu cuidadoso estudo do culto do peiote, enumera
I os efeitos do cacrus, inclusive loquacidade, digressão, tremura, fluxo rá pido
,
' de id éias, mudan ça de aten ção com manuten ção da clareza, falta de coorde -
nação da linguagem escrita. As alucinações auditivas estimuladas pelo peio-
te basicamente modificam a qualidade dos sons, embora talvez La Barre
; ;
!
. admitisse a possibilidade de audi ção de voz, como a experienciada por Danj
: Embora se saiba que o peiote produz convulsões em animais ( um de seus
. f
358
Palavras do Povo Santo
l 02
Sobre o conceito de indeterminação na teoria da corporeidade, veja o Capítulo Nove.
359
'
'
•
1'
' lia era peiotista e n ão a tinha diagnosticado, dando a entender que os pcio -
tistas navajos n ão reconhecem a epilepsia como um dist ú rbio ou então a
V
f consideram um problema a ser tratado exclusivamente com medicamento
de peiote. Na verdade, os aurores observaram que “alguns participantes dos
• j: encontros de peiote seguravam um braço para impedi-lo de tremer. Isso era
: ;
visto como sinal de alguma influência maligna em atividade e de que o
indivíduo em questão necessitava de orações especiais” (Levy; Neutra; Parker,
.
1987, p. 104).103 Eu n ão sei se o braço de Dan tremia durante os encontros
1
de peiote, mas a continuação geral de tais tremores no seu braço direito
;; pode estar intimamente relacionada ao diagnóstico do curandeiro, de influ-
ência maligna na forma de feitiçaria.
jh. conex
ill :
ão entre epilepsia e religião foi por muito tempo uma bete
noirpasa a antropologia. Durante d é cadas presumiu-se que os xamãs
e cura -
dores religiosos eram epilépticos ou esquizofrénicos, e a luta para normati-
zá-los na literatura era uma luta do relativismo cultural contra o reducionismo
i biológico, contra a patologização da experiência religiosa e em prol da sen-
;
sibilidade e do significado, onde parecia haver apenas comportamento bi-
I zarro e irracional. A antropologia lutou contra o erro lógico de que a
religiosidade do epiléptico implicava necessariamente em epilepsia no reli-
: gioso. Entretanto, em 1970 Kenneth Dewhurst e A. W Beard ainda escre -
veram um artigo descrevendo os casos de vários epilépticos do lobo temporal
que tinham passado por conversões religiosas, justapondo-os a uma série de
“possíveis epilépticos m ísticos” da tradição ocidental, incluindo, entre ou-
tros, São Paulo, Teresa de Ávila, Teresa de Lisieux e Joseph Smith. Pode-se
suspeitar da presen ça de uma agenda retórica em um estudo de religi ão que
; começa com a religiosidade de pacientes médicos explí Uma tal agen-
citosj
;
, 03 Isso é evidentemente diferente da interpretação navajo tradicional dc tais tremores como
I
um sinal de que o indivíduo é candidato à iniciação como diagnosticador ou “tremedor de
mão”.
í i
360
I
Li
Palavras do Povo Santo
361
i]l
f
• •
culturais ou interações “racial-culturais” e que a “linguagem metafó rica <5 a
mais profusa precursora dcTLTs” ( Persinger, 1983, p. 1260).
!
' O que está ausente de tais relatos d a análise da pessoa corporificada,
; que fala e toma uma posição existencial no mundo. Sem isto, arriscamo-
nos a encetar uma batalha de flechas causais voando cm ambas as direções,
da neurologia e da cultura, sem nenhum espaço anal ítico intermedi á rio.
Pelo mesmo motivo, eliminar a preocupa ção com a causalidade fàz parte da
i radicação da fenomcnologia na abertura do espaço do ser-no-mundo à aná-
lise existencial. Ao seguir essa linha , nosso argumento no caso de Dan suge-
1 ! re que pode fazer sentido considerar a loquacidade n ão como um traço de
personalidade baseado na mudança neuroanatômica, mas como uma estra -
tégia adaptativa que emerge espontaneamente da síntese corporal pré-obje-
tiva. Da mesma forma, ele sugere que a busca por palavras do paciente é
tematizada como religiosa não porque a experiência religiosa seja redutível a
i
uma descarga neurológica, mas porque ela é uma estratégia do sujeito, que
necessita de um idioma poderoso para orientar-se no mundo.
'
^ \qui reencontramos Heidegger e Merleau-Ponty; um condenando o
erro do biologismo que consiste em meramente adicionar uma mente ou
alma ao corpo humano, visto como um organismo animal; o outro conde-
nando o erro de tratar o social como um objeto em vez de reconhecer que
i
A nossos corpos carregam o social por aí conosco, inseparavelmente, antes de
! k „ ] qualquer objetificação. Os erros são sim étricos: em um caso, a biologia é
-
/ / tratada como objetiva (o substrato biológico), no outro o social é tratado
como objetivo (o campo dos fatos sociais) e em ambos os casos o corpo é
ix diminu ído e perde-se a síntese corporal pré-objetiva. Para o biologismo, o
corpo é o substrato biológico objetivo e mudo ao qual o significado é so-
breposto. Para o sociologismo, o corpo é uma lousa vazia sobre a qual o
i significado é inscrito, uma marca física para ser movida dentro de um am-
biente simbólico pré-estruturado, ou a matéria- prima da qual podem ser
gerados símbolos naturais para o discurso social/
Ao abordar o mesmo problema a partir da teoria feminista, Haraway
H i
.
' (1991, p. 200) argumenta que o corpo n ão é uma entidade objetiva porque
a própria biologia é situacionalmente determinada: “o corpo’ é um agente,
I :
*
n ão um recurso. A diferen ça é teorizada biologicamente como situacional .
i
n ão intrínseca, em cada n ível do gene ao padrã o de subsistê ncia, mudando
í 362
:
i
Palavras do Povo Santo
^
mas sim para o ponto inicial da análise Esse ponto inicial é uma fenomeno-
logia cultural da experiência corporificada que nos permite questionar a
diferença entre biologia e cultura, transformando nossa compreensão de i
D
ambas dessa form
l 04
Como Orcner ( 1974) argumentou a respeito da universalidade da dominação masculina
e a assimilação simbólica de homens à cultura e mulheres à natureza , a existê ncia de
estratégias semelhantes cruzando culturas e religiões não coloca tais estratégias fora da
cultura . Menos ainda coloca-as fora do “ser-no-mundo”.
363
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PARTE III
Modula ções da Corporeidade
CAPÍTULO NOVE
A/lodos Somá ticos de Aten çã o’
ca
JA corporeidade como um paradigma ou uma orientação metodológi-
exige que o corpo seja compreendido como base existencial da cultura
a
- não como um objeto que é “ bom para pensar”, mas como um sujeito que
é “necessá rio para ser”. Ao argumentar por analogia, um paradigma feno-
menológico da corporeidade pode ser dado como um equivalente comple-
mentar do paradigma semió tico da cultura como texto. Assim como Roland
Barthes (1986) faz uma distin ção entre o trabalho e o texto, pode se fazer -
uma distin ção entre o corpo e a corporeidade. Para Barthes, o trabalho é um
fragmento de substâ ncia, o objeto material que ocupa o espaço na prateleira
de uma livraria ou uma biblioteca. O texto, ao contrário, é um campo
metodológico indeterminado que existe apenas quando é capturado em
;
. ii CORPO / SIGNIFICADO / CURA
368
\
Modos Som á ticos de Aten çã o
experiê ncia”, c para Joan e Arthur KJcinman (1991) declarar uma “etnogra-
fia da experiê ncia” , em abordagens que são mais ou menos explicitamente
fenomcnológicas. Entre tais abordagens, alguns estudiosos - influenciados
especialmente por Mcrleau - Ponty (1962, 1964 b) e ocasionalmcnte por
pensadores como Marcel, Scheler, Straus e Schilder - destacaram uma fe-
nomcnologia do corpo que reconhece a corporeidade como a condição exis-
tencial na qual a cultura e o sujeito estão fundados (Corin, 1990; Csordas,
1990; Devisch;e Gailly, 1985; Frank, G., 1986; Jackson, 1989; Munn,
1986; Ots, 1991, 1994; Pandolfi, 1990).. Eles tendem a assumir o “corpo
vivido” conxo_um p_ontode partida~metodológico em vez de considerar o
^
^
corpo como um objeto de estudof
*
Da segunda dessas duas perspectivas, o contraste entre corporeidade e
textualidade entra em foco através dos vários tó picos examinados por uma
antropologia do corpo. Por exemplo, a influente síntese feita por Scheper-
(
^ ^
ugheTeLockQ 987 demarca claramente o terreno analítico reivindicado
por uma antropologia do corpo. Estes autores refazem os “dois corpos” de
—
Douglas (1973) em três o( côrpo individual, o corpo social e o corpo
^
pol ítico Eles consideram esses corpos domínios anal íticos inter-relaciona-
dos, mediados por emoções. Colocar o problema do corpo em termos da
relação entre corporeidade e textualidade nos convida a rever esse campo
com o foco na tensão metodológica correspondente entre abordagens semi-
óticas e fenomenológicasyEssa tensão metodológica atravessa todos os três
corpos esboçados por Scheper-Hughes e Lock. Isto é, cada um dos três
pode ser entendido seja do ponto de vista semiótico / textual do corpo como
representação, seja do ponto de vista fenomenológico /corporeidade do cor-
po como ser- no-mundo
^ ^
Todavia, a literatura antropológica e interdisciplinar contemporânea
continua desequilibrada nesse aspecto. Um forte viés representacionalista
está evidente principalmente no predom ínio das metáforas textuais fou-
caultianas, como a de que a realidade social está “inscrita no corpo”, e que
nossas análises são formas de “ ler o corpo”. Até mesmo a formulação predo-
minantemente fenomenológica de Jackson (1989) está cunhada em termos
do corpo como uma função do conhecimento e do pensamento, dois ter-
^
mos com forte conotação representacionalista Ainda assim, Jackson (19S9,
p. 122) foi talvez o primeiro a apontar as insuficiências do representaciona-
369
li
1
I
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
""
"
^
Good, 1992; Hanks, 1990; Munn, 1986; Ots, 1991). No entanto, como
para a antropologia a corporeidade ainda nao está bastante desenvolvida
'"
^
tica) Em suma, posto que os estudos de percepção em antropologia e psico-
logia são, de fato, estudos de categorias perceptivas e classificações,
:! Merleau-Ponty concentrou-se na constituição de objetos percegtivos. /Para
Merleau-Ponty, a percepção começa no corpo e, através deqxmsamento
! reflexivo) acaba em objetos/ No n ível da percepção ainda n ão h á uma dis-
I tin ção sujeito-objeto - nos simplesmente estamos no mundo. Merleau-
Ponty propôs que a análise começa com o ato pré-objetivo da percepção em
vez de com objetos já constituídos. Ele reconheceu que a percepção sempre
esteve integrada em um mundo cultural, de modo que o pré-objetivo n ão
implica de forma alguma um “pré-cultural ”. Ao mesmo tempo, ele admi-
tiu que o seu próprio trabalho não elaborou os passos entre a percepção e a
análise histórica e cultural explícita (Merleau-Ponty, 1964, p. 25).
Exatamente nesse ponto de retirada de Merleau-Ponty, é proveitoso
reintroduzir a ênfase de Bourdieu (1977, 1984) sobre o corpo socialmente
informado como a base da vida coletiva. A preocupação de Bourdieu com
o corpo, trabalhado no dom ínio empírico da(prtí tiaòé paralela e compat í -
Il
vel com a an álise de Merleau-Ponty no dom ínio da( percep ção ) Conjugar a
370
Modos Somá ticos de Atençã o
_
compreensão de Bourdicu do “ habitus” como uma orquestração não-auto
-
consciente de práticas com a noção de Mcrlcau-Poncy do “pré-objctivo”
.
sugere que a corporcidade nao precisa ser rescrita à raicroan álise pessoal ou
diádica geralmente associada com a fcnomenologia, mas també m é rclevan
te para as coletividades sociais.
/ befinir a dialética entre consciência perceptiva e prá tica coletiva é uma
maneira de elaborar a corporeidade como um campo metodológico (veia
Capítulo Sete). E dentro desse processo que mudamos da compreensão da
P e ção como um processo corporal para uma noção de modos somáti -
atenção que podem ser identificados em uma variedade de prá
ticas
culturais Nossa elaboração deste constructo fornecerá as bases para uma re-
flexão sobre a ambiguidade essencial dos nossos próprios conceitos analíti-
cos e sobre o status conceituai da “indeterminabilidade” no paradigma de
corporeidade e na etnografia contemporânea /
Uma definiçã o em construçã o
371
il
if ! : '
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
J
consciência da sa úde e o exercício habitual. O senso de contingê ncia som á-
í .| tica e transcend ência associado com a meditaçã o e os estados m ísticos tam -
>1 . bém se incluiria no nosso horizonte. Há, certamcntc, modos som á ticos de
aten ção para processos corporais básicos, como a gravidez e a menopausa,
1 cm diferentes culturas. No lado patológico, a hipervigilância associada com
hipocondria e com transtornos de somatização, e os vários graus de vaidade
jf i I ou tolerância à automor à ficação associados com anorexia e bulimia, podem
ser considerados como definidores de modos somá ticos de aten ção especiais.
<
É evidente que alguns desses exemplos sugerem elaboração cultural
•
mais ou menos espontânea, ao passo que outros sugerem modos que são
ii cultivados conscientemente (compare Shapiro, 1985). Alguns enfatizam
aten ção ao corpo e alguns com o corpo; alguns enfatizam aten ção ao pró-
prio corpo, alguns aten ção aos corpos de outros, e alguns a aten ção de ou-
^
tros aos nossos corpos. tf que quero dizer é que as maneiras pelas quais
damos atenção aos e com os nossos corpos, e mesmo a possibilidade de dar
atenção, não são nem arbitrárias nem biologicamente determinadas, mas
são culturalmente constituídas/ O estudo clássico de Leenhardt (1979) so-
bre os canaque da Nova Caledónia descreve n ão apenas uma maneira de
i conceituar o corpo radicalmente distinta da nossa, mas a exclusão do corpo
perse como um objeto de consciência, até as pessoas serem introduzidas por
mission ários ao corpo objetificado da cultura cristã. Isso sugere que nem a
atenção ao nem a atenção com o corpo podem ser subestimadas, mas de-
vem ser formuladas como modos somá ticos de aten ção culturalmente cons-
tituídos. Eu elucido este constnicto com exemplos de registros etnográficos
I na discussão que se segue.
;
Aten çã o som á tica e fen ô menos revelató rios
;
O modo som á tico de aten ção que delinearei nesta seção é o dos cura-
dores que tomam conhecimento dos problemas e estados emocionais de
I seus clientes através de experiências corporais consideradas comparáveis às
destes últimos. Eu descrevo o fen ômeno tanto para curadores carism á ticos
católicos de classe m édia, predominantemente anglo-americanos, como para
m édiuns espiritas de Porto Rico.
374
Modos Som á ticos de Atençã o
Vários tipos dc experi ê ncia somá tica são cultivados em prá ticas de cura
ritual carism á tica, mas vou me concentrar em dois tipos dc experiência rela-
tados por curadores durante sua interação com os suplicantes. Um deles c
chamado de “un ção”, e o segundo de “palavra de conhecimento”. Embora o
ato físico de ungir uma parte do corpo, geralmente a testa ou as m ãos, com
óleo bento seja uma forma comum de bên ção entre os carism á ticos envol-
vidos em prá ticas de cura, um uso diferente do termo é interessante no
presente contexto. Um curador que relata uma “un ção” por Deus refere-se a
uma experiência som á tica que é considerada uma indicação, seja da ativação
geral do poder divino, seja da cura específica de um indivíduo. Uma antro-
pologia convencional da cura ritual diria simplesmente que o curador entra
em transe, presumindo que o transe seja uma vari ável unitária, ou um tipo
de caixa-preta fatorada na equação ritual, e presumindo talvez que manifes-
tações somá ticas são epifen ômenos do transe. A an álise n ão iria al ém de
relatos de informantes de que esses epifenômenos “funcionam” como con-
firmações de cura e poder divinos. Dentro do paradigma da corporeidade,
em comparação, estamos interessados em uma fenomenologia que leve a
conclusões sobre a padronização cultural de experiência corporal, e também
sobre a constituição intersubjetiva de significado através dessa experiência.
A unção é descrita por alguns curadores como uma sensação geral de
peso, ou como uma sensação de leveza que chega quase ao ponto de levita-
ção. O curador pode sentir formigamento, calor ou um fluxo de “poder”
semelhante ao de uma corrente elé trica, ffeqiientemente nas mãos, mas às
vezes em outras partes do corpo. As mãos de alguns curadores tremem
visivelmente, e eu senti essa vibração quando um curador pôs a m ão no
meu ombro. Entre os próprios curadores, no entanto, a “autenticidade”
dessa vibração visível como uma manifestação de poder divino é por vezes
questionada, no sentido de que a un ção pode ser fingida ou sensacionaliza-
da. Em um grande serviço de cura de grupo, quando o curador vai de indi-
víduo em indivíduo, pondo as m ãos em cada um deles, a força da unção
pode variar com cada suplicante. Um curador descreveu um complemento
emocional da unção como um sentimento de empatia, simpatia e compai-
xão. Se esse sentimento está ausente quando ele chega a uma determinada
pessoa que aguarda na fila por sua oração, ele pode saltar essa pessoa, presu-
mindo que Deus n ão planejou curá-la naquele momento.
375
r I i
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
i O segundo fen ômeno carism á tico católico nesse modo som á tico dc
aten ção é a “palavra dc conhecimento”. Ele d considerado como um “dom
espiritual ” dc Deus, por meio do qual os curadores ficam sabendo dc fatos
sobre os suplicantes através de inspiração direta , sem serem informados pe-
los suplicantes nem por qualquer outra pessoa. A palavra de conhecimento
às vezes d expericnciada como uma “sensação” indeterminada de que alguma
coisa d o caso, mas muito frequentemente ocorre em modalidades sensori -
ais específicas. O curador pode ver uma parte doente do corpo com o “olho
da mente” ou ouvir o nome da parte do corpo ou da doença com “o cora-
ção”. Uma curadora distinguiu claramente que quando o problema d inter-
no, ela normalmente “vê” o ó rgão, ou câncer, surgir como uma massa preta,
mas quando o problema é externo, ela normalmente “ouve” a palavra que
dá nome à enfermidade ou à pane do corpo, como braços e pernas. Outro
curador contou que um estalo no seu ouvido significa que alguém na as-
sembleia está tendo uma cura de ouvido, e uma dor intensa no coração
significa uma cura de coração. Uma outra disse que certa vez sentiu um
calor no cotovelo, interpretando isso como sinal de cura de uma lesão ou
artrite. Alguns curadores afirmam que são capazes de detectar dor de cabeça
f , :| ou nas costas de um suplicante através da experiência de uma dor semelhan-
te durante o processo de cura.
O enjôo ou a agitação confusa pode indicar atividade de espíritos ma-
: lignos, e um espirro inesperado ou um bocejo pode indicar que o espírito
está saindo do suplicante através do curador. Uma curadora deu relatos de
í uma experi ência comum de “duplicação de dor” de pessoas cheias de ressen-
timento ou envolvidas anteriormente em atividades ocultas. A dor entrava-
I lhe no braço quando ela punha as m ãos na pessoa. Era necessá rio retirar o
braço e “sacudir para fora” aquela dor, ao passo que o suplicante nada sentia.
Com uma m ã o no peito e outra nas costas do suplicante, ela afirma sentir o
que se passa dentro da pessoa. Por exemplo, ela pode dizer se a pessoa está
sob o jugo de Satan ás, e ela tem uma sensação inespecífica quando a pessoa
é liberada. O cheiro de enxofre queimado ou de alguma coisa podre tam-
bém indica a presen ça de espíritos malignos, ao passo que o aroma de flores
indica a presen ça de Deus ou da Virgem Maria.
i I O relato fenomenológico mais abrangente foi dado por um curador
que distinguiu três componentes da palavra de conhecimento. O primeiro
376
Modos Somá ticos de Atençã o
era a sensação de certeza de que o que ele falava estava realmente acontecen-
do. O segundo era uma serie de palavras que lhe ocorriam em uma breve
sequência, como “coração... de uma senhora de n anos de idade... sentada
na ú ltima fileira.. Ele pronunciava essas palavras para a assembléia como
se estivesse lendo de um teleprompter, exceto que ele as ouvia mais do que
lia. Finalmente, ele sentia ao mesmo tempo um dedo pressionar levemente
a parte do seu corpo correspondente à parte enferma da pessoa sendo curada.
Agora vou me ocupar do que considero essencialmente o mesmo modo
som á tico de aten ção em uma diferente tradição de cura, o espiritismo de
Porto Rico (Harwood, 1977). Duas diferenças culturais principais distin-
guem a atenção somática na cura carismática e no espiritismo. Primeiro,
enquanto para os carismáticos católicos as unções são experiências diretas de
poder divino e as palavras de conhecimento são experiências diretas e divi
namente empoderadas do sofrimento do suplicante, para os espiritas as ex-
-
periências correspondentes são o trabalho de espíritos que possuem o curador
ou entram nele./Esses espíritos, ou são bons, os chamados “guias”, ou maus
~i
e causadores de sofrimento, chamados “causas”. Os espíritos dominam o
processo de cura por serem essenciais não apenas para o diagnóstico, mas
também para o tratamento; e assim, as experiências somáticas que recebem
atenção são até mais destacadas do que entre os carismáticos católicos / Espí-
ritos específicos podem ter vozes, odores, ou impactos no corpo do curador
distintos e reconhecíveis. No entanto, os pró prios espíritos são vistos e ou-
vidos mais freqiientemente entre os espiritas do que entre os carismáticos, e
os curadores espiritas podem distinguir entre bons guias e más causas.
A segunda diferença cultural importante diz respeito a conceitos do cor-
po que vão muito além da cura ritual. A capacidade de ver espíritos por detrás
dos olhos ( ojo oculto) pode ser associada com a saliência interpessoal dos olhos
e o olhar també m encontrado no olho mau ( ojo maio). A experiência de um
espírito entrando pelo estô mago pode ser associada com a ênfase cultural
naquele órgão, não apenas como centro de emoção, mas também com um
órgão expressivo com sua pró pria boca ( boca dei estômago ). A experiência de
espíritos asfluidos circulando pelo corpo pode ser associada com uma concep-
ção humoral de como o corpo funciona. Embora eu não ponha fora de cogi -
tação nenhuma dessas experiê ncias para carismáticos anglo-americanos, é
improvável que elas sejam cultivadas dentro do seu modo somático de atenção.
377
m\\ ’
\
I CORPO / SIGNIFICADO / CURA
If :1 !
•
'
as dores ou sofrimentos emocionais dos clientes dentro dos seus próprios
corpos. Hanvood (comunicação verbal) acrescenta que as plãsmaciones são
transmitidas por meio de plasma, que na doutrina espirita é uma substância
espiritual ligando pessoas aos espíritos e umas às outras.
De acordo com Hanvood , as plãsmaciones experimentadas por cura-
! dores podem incluir dor, formigamento, vibração ou um sentimento de
! oração se estão possuídos por um espírito guia. Embora Garrison (comuni-
>í; : e saindo na cabeça ou se movendo como uma cobra no corpo, fluidos como
;
energia sexual, zumbidos, leveza do corpo, pensamento rá pido, sensações
de contentamento e relaxamento na presen ça de um bom espírito, sensa-
} ções de nervosia, fadiga ou medo na presen ça de um mau espírito. Mais
uma vez, as principais diferen ças parecem estar associadas com o papel dos
espíritos e com experiências auditivas, olfativas ou proprioceptivas específi -
cas associadas com guias específicos. A elaboração da interação com espíri -
!
378
Modos Somá ticos de Atençã o
tos negativos aumenta o repertó rio espirita de experiê ncias negativas e com -
pulsões de falar ou ouvir involuntariamente. Entre os carismáticos católi -
cos, os espíritos malignos são muitas vezes “atados” ritualmentc para prevenir
sua manifestação na forma de gritarias, contorções, vómito ou desafio aos
^
procedimentos aquiescência de espíritos a essa prá tica de atar deve-se sem
,
379
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
li
11\
anormal do paciente indexa o desequil íbrio humoral , ao passo que o puISo
!Í
normal do médico indexa o equil íbrio humoral sadio. Na medida cm que
t I o pró prio pulso do m édico emerge c torna-se confluente com o do pacien
-
- te, a “distância indexadora” entre os signos diminui , até o
relacionamento
entre os dois pulsos ser transformado em uma unidade icô nica , e os dois
signos tornam-se um. Segundo Daniel (1984, p. 120), “neste momento de
perfeita iconicidade, pode-se dizer que o médico experimentou em certo
sentido o sofrimento e o desequil íbrio humoral do paciente”.
A an álise semiótica é valiosa ao permitir que Daniel compare os siste-
mas de cura tradicional siddha e similares com a biomedicina ocidental em
termos do poder relativo de indexibilidade ou iconicidade institucionaliza-
;
do dentro deles (confira Kirmayer, 1992 e Ots, 1991). Da perspectiva da
corporeidade, todavia, a noção de distância indexadora é abstrata demais, e
a an álise semiótica apenas permite concluir que o sofrimento é comparti-
lhado “em certo sentido”. Daniel é obrigado a usar um neologismo para
expressar sua compreensão de que, na medida em que o processo de to-
m mar o pulso neutraliza a separação entre paciente e médico, a objetividade
é substituída por uma “consubjetividade”. A problemá tica da corporeida-
de iniciaria precisamente nesse ponto uma descrição fenomenológica da
“consubjetividade” como característica de um modo somá tico de atenção
específico.
: Um exemplo final desse modo somá tico de aten ção vem da psicotera-
1
MA pia contemporânea. Relatos típicos de experiências clínicas incluem uma
agitação no pênis no encontro do terapeuta com uma “mulher histé rica”, ou
i: i a propensão a bocejar diante de um paciente obsessivo. Tais fen ômenos
ocorrem espontaneamente em psicoterapia, como nos cená rios religiosos
descritos acima, mas o modo de atenção para eles não é consistentemente
elaborado como indicativo de algo importante sobre o paciente ou a condi-
ção sendo tratada. Somente algumas escolas, tais como a psicologia experi-
i; encial, transpessoal e analítica, parecem simpatizar com o reconhecimento
II : mais expl ícito desses fen ômenos. Samuels (1985, p. 52), por exemplo, d á
vá rios exemplos de contratransferência como uma “expressão física, real,
material, sensual, no analista, de algo na psique do paciente”. Ele inclui
respostas comportamentais e corporais, como vestir roupas como as do paci -
ente, dar de cara num poste, sensação no plexo solar, dor em uma parte
í: [b|IN
íf i f í 380
:j iij
-J '
Modos Somá ticos de Aten çã o
3S1
11 : i
-É ui guntei à curadora como cia explicava o pulo do mcu joelho, c sc era poss ível
para um n ão-crente experimentar a palavra de conhecimento divinamente
inspirada. Ela respondeu que a experiê ncia n ão podia ser interpretada de
forma definitiva, mas poderia ser uma das três coisas: uma resposta som á ti-
ca causada por Deus, uma consequência de compartilhar alguns dos mes-
SI !
mos traços de personalidade do cliente ou o resultado natural de uma profunda
ligação com a experiência de outrem. Essa “exegese nativa” subsome noções
de agenciamento divino, contratransferência e compreensão psicossom ática
II í i de empatia. Na sua justaposição pós-moderna de possibilidades interpreta-
tivas, ela coloca um desafio de reflexividade para o observador participante
e, ao fâzer isso, afirma que o campo das possibilidades interpretativas é
contínuo entre as do observador e as do observado.
Pode-se argumentar que, embora uma categoria como contratransfe-
rência n ão possa ser mais correta, ela pode ser mais valiosa para uma análise
comparativa de tais fen ômenos, e que a própria comparação é a fonte da
i ‘i
^
;
validade. Entretanto, esse exemplo nos lembra que as categorias anal íticas
objetivas tornam-se objetivas através de um movimento reflexivo dentro
do processo de análise. Eu argumentaria que é a própria perspectiva da cor-
M poreidade que facilita essa percepção. Se se puder chegar à mesma percepção
através de outras abordagens, eu argumentaria pelo menos que a corporei-
dade oferece uma maneira de compreendê-la mais profundamenteí Seja
!
Ihi I como for, é necessário elaborar a conclusão de que a tentativa de definir um
modo somático de aten ção descentra a análise de forma que nenhuma cate-
h goria é privilegiada, e todas as categorias estão em fluxo entre a subjetivida-
í!
de e a objetividade.
iíí IIf! ; !
O fluxo de categorias anal íticas
383
3
| if
;
i!
1 CORPO / SIGNIFICADO / CURA
1
!. !
Mi
;
;: ;
^
Na falta dc descrições emp íricas adicionais de modos som á ticos de
aten ção, podemos nos dirigir temporariamente às implicações do constmcto
para um paradigma da corporeidade. Ao esboçar a fcnomenologia dos mo-
dos somá ticos de aten ção nos sistemas de cura espirita e carism ático católi-
co, evitei rigorosamente invocar qualquer categoria exceto a “experiê ncia” e
í fazer a descrição estritamente em termos de modalidades sensoriais. Na
: seção seguinte, mostrei que esses modos de atenção n ão podem ser subsu-
midos inteiramente na categoria de experiê ncia religiosa e que, ao colidir
com categorias mais convencionais como a contratransferência, eles apre-
^
sentam um desafio de reflexividadt A questão que quero levantar agora é
sobre a pobreza de nossas categorias antropológicas para ajudar na melhor
compreensão do que seja dar atenção ao nosso corpo em um modo como o
que foi descrito acima. Nós operamos com categorias de cognição e afeto,
:: ; nenhuma das quais pode sozinha fazer justiça a esses fenômenos, e entre as
: ] I
quais existe uma barreira analítica quase intransponível. As categorias de
í transe e estados alterados de consciência continuam sendo caixas-pretas vi-
: suais, e a sugestão de um colega de “delusão proprioceptiva” n ão ajuda em
m nada. Sugerir que elas sejam formas de “conhecimento corporificado” é pro-
vocante, mas n ão capta necessariamente a natureza intersubjetiva dos fenô-
i 1. I
li
(1977, p. 10) referiu-se à existência de “estados somáticos compartilhados”
como base para um tipo de “empatia corporal”, mas não ofereceu nenhum
!' exemplo específico de qualquer coisa semelhante ao que descrevemos acima.
Eu gostaria de avançar neste ponto e discutir rapidamente esses fen ô-
menos sob quatro categorias adicionais, nem que seja para enfatizar que
continuamos mal equipados para interpretá-los. Essas categorias são intui-
if ção, imaginação, perccpção e sensação. Restrinjo a discussão nesta seção aos
fenômenos revelatórios espiritas e carism á ticos descritos acima.
\\ : /Primeiro, considerem unções, palavras de conhecimento, vidências e
plasmaciones como tipos de intui ção. A m édica Rita Charon descreve sua
prática de escrever ficção para esclarecer seus sentimentos quando está con-
i fusa ou angustiada em relação a um paciente. Ela começa com fatos conhe-
cidos, juntando eventos, queixas e ações do paciente e colocando-se como
personagem da histó ria, que é contada do ponto de vista do paciente. “ Não
me surpreendo”, diz ela, “quando os detalhes que imagino sobre o paciente
384
l!
Modos Somá ticos de Atençã o
^
Mais uma vez, que tal levarmos a sé rio a afirmação nativa de que esses
fenômenos são formas de percepção, se n ão do divino, então de alguma
outra coisa que possamos aceitar como concreto? Essa é uma proposição
desafiadora, e merece evocar a tentativa de Schwartz-Salant (1987) de inte-
grar o pensamento alqu ímico à teoria psicoterapê utica atual. Ele sugere
imaginar entre duas pessoas um campo interativo que seja “capaz de mani-
festar energia com sua pró pria dinâmica e fenomenologia”. Esse campo “in -
l 0J
Comunicação verbal .
385
I ,
i:!
rjORTO / SlGNinCAPO / CUWA
I f !
termediário” c apenas palpável em certos n íveis de pcrccpção nos quais a
pró pria imaginação pode “tornar-se um ó rgão que percebe processos in-
conscientes” (Schwartz-Salant, 1987, p. 139). Samuels (1985), cujo traba-
,
: . ! lho foi discutido acima, oferece uma formulação an áloga a qual , como a de
Schwartz-Salant, é derivada da psicologia analítica.yfcle elabora o conceito
|
;
de Henry Corbin do mundus imaginalis, ou mundo imagin á rio, como uma
: : diferente ordem de realidade que existe tanto entre duas pessoas em análise
! tera pê utica como entre impressões e cognição ou espiritualidade. Embora o
,i
,:l ,!,, í
:; ato intelectual de apreensão de um est ímulo externo produzido por objetos
previamente dados. Em vez disso, ele argumentou que a síntese perceptiva
11 JLi !
386
Modos Som á ticos de Atençã o
^
de objeto, mas apenas real em termos de intersubjetividade
3S7
*
v
-
i
i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
!!
Para que serve a indetermina çã o ?
!l . Ironicamente, a abordagem através da corporeidade que nos permitiu
elaborar modos som á ticos de atenção como um constructo com algum va-
I
lor empírico demonstrável também revelou a noção bastante escorregadia
í: da indeterminação essencial da existência. Isso está sem d úvida relacionado
;
í com a descoberta da indeterminação metodológica e existencial em escritos
etnográficos recentes (confira Favret-Saada, 1980; Jackson, 1989; Pandolfi ,
i! 1991; Stoller, 1989). Inevitavelmente, talvez, quando tentamos dar for-
mula ção teó rica a essa indeterminação, caímos facilmente de volta na lin-
guagem da textualidade ou da corporeidade, representação ou ser-no-mundo.
í /
No presente contexto, posso apenas apontar para esse problema resumindo
brevemente o princípio de indeterminação como formulado por Merleau-
Ponty para a percepçã o, e por Bourdieu para a prá tica. Retornamos assim à
no ção de indeterminação, não a fim de torn á-la determinada como um
conceito que pode ser aplicado em nossa análise, mas a fim de dar alguma base
teó rica para aceitá-la como uma inevitável condição de fundo de nossa análise
Merleau-Ponty (1962, p. 169), tendo demonstrado que todas as fun-
ções humanas (por exemplo, sexualidade, mobilidade, inteligência) são unifi-
cadas em uma só síntese corporal, argumenta que a existência é indeterminada
^
na medida em que ela é o próprio processo pelo qual o até aqui insigni-
ficante ganha significado, com o que aquilo que tinha meramente uma
significação (por exemplo) sexual assume uma mais geral, a chance é
transformada em razão; na medida em que ela é o ato de ocupar-se de
uma situação de fato. Vamos dar o nome de “transcendência” a esse ato
no qual a existência assume, por sua própria conta, e transforma uma tal
situa ção. Precisamente porque ela é transcend ência, a existê ncia nunca
'
passa completamente à frente de coisa alguma, pois nesse caso a tensão
que para ela é essencial (entre mundo objetivo e significado existencial)
desapareceria. Ela jamais se abandona. O que ela é jamais permanece
externo e acidental a ela, pois isso é sempre assumido e integrado nela.
i
388
Modos Somá ticos de Atençã o
Para Bourdicu , a s í ntese de dom ínios prá ticos em um habitus unitá rio
c igualmentc baseada em indeterminaçã o, mas essa variante de indetermina-
ção n ão leva à transcend ê ncia. Em vez de uma indeterminação existencial, a
de Bourdieu é uma indeterminação l ógica, que
3S9
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
390
Modos Somá ticos de Atençã o
^ Bourdieu, ao rejeitar a distinção entre “em si” e “para si", pode evitar
esse problema conceituando o resultado da indeterminaçao como improvi-
sação regulada, em aberto mas circunscrita pelas disposições do habitus.
Nisso, porém , ele é confrontado com um diferente problema: explicar
mudança, criatividade, inovação, transgressão e violação. Ele afirma que,
“como um sistema adquirido de esquemas gerativos objetivamente ajusta-
dos às condições específicas nas quais ele é constituído, o habitus engendra
todos os pensamentos, todas as percepções e todas as ações consistentes
^
com aquelas condições e não quaisquer outras’ Bourdieu , 1977, p. 95)
391
*
í
a
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
!
• H Isso é difícil de conceber, ele afirma , se a pessoa fica trancada nos dilemas de
determinismo e liberdade, condicionamento e criatividade. Essas são talvez
! dualidades que ele está pronto demais para colapsar, todavia, a menos que a
“liberdade condicional e condicionada” da “ intermin ável capacidade de en-
li i gendrar produtos” do habitus inclua a capacidade para sua pró pria transfor-
; ma çã o ( Bourdieu , 1977, p. 95 ) . fOe outra forma, o princí pio de
r 1
indeterminação torna-se um disfarce para a falta de especificidade anal ítica,
e o habitus perde o seu valor como um constnicto anal ítico. Embora o habi-
tus carregue um pouco do esquematismo de um texto fixo, ele pode ser trans-
if cendido em existência corporificada!
I: Conclusã o
1
li 392
Modos Soni á t C0s
' de Atençà 0
qUC tá faltando
^ / O projeto deles foi
iniciado no paradigma
te* rdade, mas uma contribuição
tlj / substancial também pode semiótieo da
& e a oração de um paradigma fcnomenol
ógico da ser dada atravé
corporeidade. Poré s,
jeterminação é
56 fundamental
-Vd0sa de suas caracteristicas definidoras,exist
para a ência, apegas m
cuida a elaboração
Mer e
p
*aaimprecisí ^
e nprovisação)
cjência danõssã
oanalítlca
em
cóndição
“
'
Bourdieu
tais como
existencial sem ^
, permitirãõranscendênciã-em
quêêlã elorne
se tornar um ^
pretexto
393
CAP ÍTULO DEZ
* Agradecimentos: este capí tulo foi escrito quando eu era Professor Visitante na Fundação
Russel Sage. Recebi comentá rios valiosos de Stefnnia Pandolfo e Lawrence Cohen quando
apresentei este material na Universidade da Califórnia, Berkeley.
ifl
f
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
I
Se esse é o caso, então o que está em jogo é a natureza de nossa experi-
ê ncia como atores sociais cm um mundo cultural. O que cu quero dizer por
lit experi ê ncia , e o que está cm jogo nas aplicações biotecnológicas do compu-
i>
1 tador, é a interaçã o entre representações culturais na forma de fala, texto,
imagens, símbolos, mitos, sonhos e modos culturais de scr-no-mundo, que
para mim significam o modo pelo qual estamos presentes no mundo agora,
neste momento e nesta situação, com a qualificação de que este momento
:
^ Elaborar as consequ ências culturais das aplicações biotecnol ógicas do
computador em relação a ter e habitar os mundos requer uma fenomenolo-
gia cultural que enfatize esse entrelaçamento. Muita análise cultural recente
privilegia o pólo da representação, e entende a cultura como constitu ída por
símbolos, signos e imagens. Desse ponto de vista, a textualidade é a metáfo-
ra de maior destaque a guiar a interpretação da cultura, e o mundo é menos
:
! habitado do que representado em uma forma que pode ser lida. Embora
interpretativamente poderosa, todavia, a noção de textualidade é menos
apta a especificar modos culturais de ser-no-mundo - isto é, os tipos de
' envolvimento e participação de humanos em nossos mundos - do que a
noção complementar de corporeidade. Essa noção logo nos coloca na con-
;
dição mais geral e limitadora de nossa existência. Nossa existência corpórea,
!
ou corporeidade, considerada desse ponto de vista compreende uma série
de modalidades experienciais potenciais em relação à características de con -
texto histó rico e cultura\f
A interação entre representação e ser-no-mundo, e a complementari-
dade entre textualidade e corporeidade, está em jogo exatamente nas aplica-
: ções biotecnol ógicas do computador. Primeiro, o corpo humano é o alvo
.
;
objetivo da tecnologia. Ao ser acolhido no ambiente tecnológico ele é re-
fill
!; 1 !
presentado e, eu diria, o seu ser-no-mundo é alterado. Segundo, o usu á rio
do computador é o manipulador subjetivo corporificado da tecnologia.
Nessa capacidade uma pessoa encontra representações do corpo e, mais uma
; 396
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
397
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1Í! I CORPO/ SIGNIFICADO / CURA
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Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
399
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Figura 10.1 Homem Visível, vista frontal
Fonte; reproduzido com permissão da General
Electric.
\ \
401
ú
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
Ííí
atores /
ambíguos cujas identidades nunca são seguras Embora haja assim
uma preocupação com os tipos de relacionamento que existem no cibcrcs-
pa ço claramcnte articulada, tomar a metá fora do ciberespaço literalmcntc
,
f
como um terreno etnográfico nos permite formular uma preocupação pa-
ralela com os tipos de seres que habitam o ciberespaço. Podemos então
;
l propor um inventário preliminar de tais seres, com a advertê ncia de que o
“ciborgue” não está entre eles, pois um ciborgue é por definição uma criatu-
ra da interface tecnol ógica. Nós somos ciborgues sempre que as nossas ca-
pacidades corporais são alteradas ou intensificadas tecnologicamente, inclusive
í quando estamos com os nossos narizes espremidos contra a janela do cibe-
respaço por causa de uma inicialização. O objetivo aqui é um inventário de
seres que existem inteiramente no lado de lá da interface, no terreno etno-
|
* gráfico marcado pelo que identificamos como a interseção do ciberespaço e
da realidade virtual.
,! Da mesma forma, meu inventário preliminar consiste de três tipos de
seres: simulóides, avatares e sombras. Simulóides são entidades geradas por
:
} software que não têm contrapartida senciente na realidade. Na linguagem
da ind ústria, essas entidades recebem uma variedade de nomes como tecno-
i
i logias humanóides, humanos virtuais, sistemas de modelação humana, hu-
man óides gerados por computador ou criaturas autónomas. Os simulóides
'
!: :í
i'
são descritos como “autónomos” não no sentido de terem agência por direi-
to próprio, mas no sentido de serem independentes de agê ncia humana: eles
:
são controlados por software em vez de controlados por humanos. Eles
também são autónomos em relação a qualquer necessidade de se conformar
: ! a uma realidade concreta, e assim suas caracter ísticas podem transcender o
i
humano - eles podem tanto ser animais como máquinas ou monstros. No
li entanto, vem-se dando muita aten ção atualmente ao desenvolvimento de
humanos virtuais per se, definidos como “pessoas geradas por computador
que vivem, trabalham e brincam em mundos virtuais, tomando o lugar de
indivíduos reais ou executando trabalhos que pessoas reais n ão podem fa-
. ; zer ”. A história da agência de notícias que traz essa definição també m cita
: :
Sandra Kay Helsel , editora da VRNews, afirmando que “ Humanos virtuais
serão a ind ústria em crescimento dos anos 1990!” Os personagens de jogos
: de computador são simul óides, como são os personagens Max Headroom,
o computador chamado “ HAL” do filme 2001, Uma Odisséia do Espaço, e
, !í ;
í li ' 402
I
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
403
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
^
ções de pessoas vivas como pessoas digitalizada Para usar exemplos vívidos
da cultura popular, o vilão gerado por computador do filme Assassino Vir -
tual é um simulóide que cruza a interface da virtualidade para a realidade e
torna-se corporificado; o personagem Jobe no filme O Passageiro do Futuro
é um humano que cruza da realidade para a virtualidade para tornar-se lite-
ralmente seu avatar e abandonar seu corpo. O propósito desse contraste é
apresentar um terceiro tipo de ser bem diferente, que é nativo do ciberespa-
ço. Os cadáveres virtuais computadorizados do Projeto Humano Visível da
Biblioteca Nacional de Medicina são o que eu chamarei de “sombras”, deri-
vados do uso dessa palavra para denotar um espírito no mundo das som-
bras. Existem apenas dois desses seres atualmente, um masculino e um
feminino, mas suas existências têm consequências profundas que só agora
estamos ao poucos começando a entender. Estes sombras estão “no” ciberes-
paço e “na” realidade virtual em um sentido diferente tanto dos simulóides
404
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
como dos avatares. Assim como um simul óidc, o sombra pode operar como
um substituto de uma pessoa, mas diferentemente de um simul óidc ela é
uma distilação de uma pessoa real que pode ser digitalmcnte sobreposta em
outra pessoa real. Como um avatar, um sombra é uma projeção de uma
pessoa real no ciberespaço, mas diferentemente de um avatar essa pessoa
n ão apenas está morta, mas foi dissolvida como ente físico. Assim, ela
existe apenas no lado de l á da interface, onde ela n ão é uma animação,
—
mas uma reanimação um tipo de ser inteiramente novo. Elaboremos
essa análise examinando rapidamente a estrutura simbólica e biotecnoló-
gica das sombras.
405
iff
1
!
.
!. CORPO / SIGNIFICADO / CURA
i
' if 0
ção são noticiadas rotineiramente na m ídia, e o valor do artigo n ão vai alé m
da observação de que, pelo foto da reinstitucionalizaçã o da pena de morte
-
nos Estados Unidos continuar provocando pelo menos - uma morna
!!5
;í ÍÍ : S discussão pú blica, as execu ções continuam a ser notícia. Até abril de 1994
•1.1 sua existência anterior era uma distorcida nota de pé de página. Um artigo
J
assinado sobre a iminente divulgação do conjunto de dados do Humano
•f
• -
Visível Masculino publicado em vários jornais da rede Knight Ridder des-
creveu o cad áver como uma “vítima de overdose de droga” (este artigo incri-
ii velmente ruim também se refere ao filme Viagem Fantástica como Jornada
' I í vel), assim como fizeram artigos publicados em 1994 e 1995 no Den-
Incr
ver Post. O Denver Post mencionou o projeto em 1994 em um artigo sobre
{;
o processo “criônico”, a prá tica de congelar indivíduos doentes mortos na
.
;
esperança de trazê-los de volta à vida quando a tecnologia médica tiver avan-
çado o suficiente para curá-los, com o comentário final de que “o projeto
-
n ão visa reviver os indivíduos”. Fica se no entanto com a imagem excitante
‘
-í
!
de uma pessoa, cuja identidade pessoal não vem ao caso, que está em certo
sentido apta a ser reanimada.
if O sentido de “através do espelho” que define o status cultural das som -
-
bras fica mais evidente na série de metáforas invocadas para descrevê las. Há
; quatro conjuntos de metáforas, um descrevendo as sombras como Ad ão e
i Eva, um em imagens de nascimento ou imortalidade, outro como se elas
1 fossem um terreno virtual a ser mapeado, e mais um que invoca Leonardo
da Vinci. A metáfora de Adão e Eva é, sem d úvida, a mais carregada de
simbologia. Isso é evidente porque a inten ção original dos diretores do pro-
jeto era usar esses nomes como títulos formais para as suas sombras em vez
í dos mais sem graça “ Humano Visível Masculino” e “ Humano Visível Fe-
minino”. O plano teve de ser abandonado diante das ameaças de conflito
!í! :
;
legal com uma companhia que já tinha denominado a si e ao seu programa
de software de anatomia interativa de A.D.A.M., um acrónimo para Ani -
maçã o de Dissecação de Anatomia para Medicina. A competi ção não -
í!!
: li
•
.
importa que a própria companhia A.D.A.M. esteja hoje licenciada para usar
as sombras do Humano Visível no desenvolvimento de seus produtos -
i indica que alguma coisa bastante existencial pode realmente estar em jogo
no advento das sombras.
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I
m;í 406
li
Sombras da Representaçã o e
Ser na Realida
de Virtual
c Ciência
dc Maternities
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da Computação em Medicina, Univers dade
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Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
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CORPO / SIGNIFICADO / CURA
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Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
411
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107 Compare Ragland-Sullivan ( 1986, p. 138- 162) sobre a noção de imaginá rio de Lacan.
I 412
Sombras da Representação e Ser na Realidade Virtual
10!
Pode-se fazer uma observação semelhante a respeito da adição de cor vívida às imagens
anatômicas geradas com os dados do Humano Visível . No nível de literalidade, aqueles que
produzem as imagens dizem que estão usando cores para fins de contraste, de modo que os
diferentes órgãos e tecidos possam ser vistos mais facilmente. Mas acontece também que no
n ível do imaginário , para quem vê as imagens, essa coloração produz um tipo de alceridade,
fazendo a imagem parecer real e do outro mundo ao mesmo tempo, com um tipo de
dramatização análoga h das cores em uma revista de quadrinhos, e talvez acrescentando una
sentido heróico ao espetáculo de tudo isso.
413
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
ativamente no imagin á rio cultural , mas cada qual tem um interesse social-
mente posicionado na rela ção entre o imaginá rio cultural c a literalidade
cultural. O apelo ao literal através do uso da linguagem técnica c do plano
de ação é mais ou menos pronunciado dependendo de se ele está sendo feito
por coordenadores do projeto, cuja audiê ncia são fontes de financiamento
governamental, usu ários potenciais de banco de dados e a m ídia; por cria-
dores de aplicativos, cuja audiência é um mercado potencial para esses apli-
cativos; pela m ídia, cuja audiência é o p ú blico em geral; e por analistas
culturais, cuja audiê ncia é a academia. Cada um está completamente assen-
tado na dialética entre o imaginá rio e o literal, e essa dialé tica é constitu ída
pela soma de seus posicionamentos sociais.
Essa compreensão da relação entre o imaginário cultural e o cultural-
mente literal continua um tanto tensa a menos que leve em consideração
aquilo que assumo como uma distin ção ortogonal entre representação e
ser-no-mundo. A an álise cultural estará sempre sujeita a suspeitas de não
estar lidando com a realidade se for lan çada inteiramente em termos de
representação ou análise de representação. As metáforas populares em torno
das sombras do Humano Visível, e as próprias imagens, são necessariamen-
te de consequência limitada se analisadas somente no nível representacional.
As metáforas são, sem d úvida, frívolas a menos que sejam interpretadas
como indicativas ou reveladoras de uma mudan ça sutil em nosso modo de
ser-no-mundo. As notáveis imagens com todas as suas possibilidades com-
binatórias não carregam mais conexão íntima das pessoas com os cad áveres
originais do que uma fotografia rasgada em pedaços e colada novamente, a
menos que eles façam o mesmo. Minha tentativa ao introduzir a noção de
“sombra” é forçar-nos a pensar além da representação e em direção ao ser.
Porém, quando se lida com uma noção tão geral de ser, é importante
pensar globalmente para evitar essencializar uma particularidade cultural. As-
sim a disposi ção dos corpos reais pode não parecer mais radical para um nor-
-
te americano do que a de um cadáver m édico ou um defunto cremado.
Considere a integridade do ser exigida em uma sociedade budista como o
Japão, onde a pessoa não pode ocupar seu lugar entre os antepassados ou
esperar uma reencarnação mais alta se for para o tú mulo sem um pedaço do
corpo. Desse ponto de vista, alguém reagiria com complacê ncia em relação à
implica ção moral de criar sombras? À parte a cremação final, qual poderia ser
414
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
o status cosmol ógico dc um humano que foi moído até virar pó? Do outro
lado do espelho existencial, uma vez transformado em sombra, qual pode ser
o status de algu é m que pode ser dividido cm pedaços repetidamente? Em um
-
n ível é tico mais mundanamente norte americano, o que dizer do anonimato
e da privacidade? Um cad áver convencional usado cm aulas dc anatomia é
an ó nimo e não tem identidade. Uma sombra não é an ó nima, pois mesmo a
mulher de Maryland pode ser reconhecida por alguém de suas relações que
viu sua face reconstitu ída. Ackerman , o diretor do projeto, disse que “temos
esperança de que, se ela é reconhecível, que as pessoas respeitem seu anonima-
to. Não há nada que possamos fazer que não comprometa os dados” [ Balti -
more Sun, 29 de novembro de 1995). Al é m do mais, uma sombra retém a
idenddade, pois mesmo Jernigan , pelo menos em certo sentido, continua
sendo quem ele era, vindo ou não a ser chamado de “Adão” em vez de Joseph.
Em suma, o argumento sobre a existê ncia das sombras continuaria um
tanto forçado se não estivesse claro que a primeira preocupação é a nossa
pró pria existência em relação a elas, ou, em outras palavras, como a inova-
ção tecnológica induz uma modulação sutil em nossa pró pria corporeidade
e daí em nosso pró prio ser-no-mundo culturalmente situado. A subjetivi-
dade e a intersubjetividade são fenô menos corpó reos, e assim a questão se
torna a transformação potencial da subjetividade da parte daqueles que usam
a tecnologia, e especialmente no que se refere aos médicos, na relação inter-
subjetiva formada com aqueles seres corpó reos que são seus pacientes. A luz
desse esclarecimento, consideremos rapidamente os dois locais de impacto
mais imediato, que são as aulas de anatomia para estudantes de medicina e
as cirurgias com ajuda do computador.
415
! I ;! . CORTO / SIGNIFICADO / CURA
Illil DCUC, observou que "este conjunto de dados tornou-sc o novo padrão
para o ensino de fisiologia humana. Por exemplo, entre 30 e 40 por cento
dos trabalhos apresentados na conferência deste ano dependeram desse con-
Ui ! : junto de dados”. Várias escolas de medicina estão desenvolvendo currículos
de anatomia baseados nos dados do Humano Visível.109 O principal debate
é sc esses m étodos devem ser usados para complementar ou substituir a
li ! dissecação convencional no ensino de anatomia. Os tradicionalistas resis-
tem à ideia de estudantes de medicina não terem a experiência de trabalhar
manipulando corpos verdadeiros, o que é implicitamente sacrossanto como
um rito de passagem no treinamento médico. Os inovadores observam que
a provisão de cadáveres reais está cada vez mais limitada em comparação
com as sombras infinitamente reutilizáveis e que, em todo caso, a maioria
dos m édicos, com exceção dos cirurgiões, nunca terão a chance de trabalhar
nas partes internas de seus pacientes.
It i As consequências potenciais em relação à corporeidade tanto para es-
tudantes de medicina como para seus futuros pacientes devem ser compre-
:
i
endidas em relação às já profundas transformações fenomenológicas operadas
no treinamento convencional. Em seu estudo etnográfico de estudantes de
medicina, o antropólogo Byron Good (1994, p. 71) observou que as di -
i
i
416
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
417
,5!
< 11
I
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' CORPO/ SIGNIFICADO / CURA
' I
Surgem muitas questões sobre quais seriam as ú ltimas consequências
'
íí experienciais da aplicação dessa tecnologia. Quais serão as consequ ê ncias dc
!j
! isolar panes do corpo para o trabalho intensivo e detalhado ? Isso intensifi-
'i !
íí
: cará o sentido de intimidade observado por Good ou iniciará um sentido
mais fragmentado e objetificado do corpo? Quais serão as consequências da
dissecação digital excessivamente limpa e confortavelmente reversível cm
|Í! comparação com a dissecação verdadeira, de uma maneira tão parecida com
i ' o processamento de texto que permite deletar e substituir as palavras em
comparação com escrever e datilografar? Isso introduzirá um sentido de
' ! arbitrariedade do processo biológico, ou intensificará a compreensão do
detalhe meticuloso? Finalmente, qual será a consequência do empodera-
í mento ao qual o estudante de medicina faz alusão ? Será ela o poder de
i
humanizar a intimidade e a compaixão, ou o de apoteosar a onipotência e a
objetificação de seres iguais a nós? Será que isso refinará as sensibilidades dos
médicos como uma flor que desabrocha para revelar seus recessos mais ínfi-
mos sem ter de ser aberta em fatias ou feita em pedaços pétala por pé tala?
li
"De sangue e tripas a bits e bytes"
; !j )
rí 418
. !i í
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
Satava (1992, p. 360-361) faz uma distin ção entre realidade virtual
artificial c natural, sendo a primeira completamcnte sintética e imaginária,
como na simulação de se estar dentro de uma molécula, e a última uma
situação que poderia existir fisicamente, como em cirurgia ou uma recria -
ção realista de um corpo humano. Tanto a simulação cir ú rgica como a ci -
rurgia por telepresen ça sã o formas de realidade virtual natural, embora
obviamente apenas a ú ltima seja realizada em pacientes reais. Ainda assim,
Satava (1992, p. 363) diz que “pode chegar o dia em que não será mais
possível determinar se uma operaçã o está sendo feita em um paciente real
ou gerada por computador [...] o limite foi ultrapassado; e um novo mun -
do está se formando, meio real e meio virtual”. Ele e seus colegas estão
trabalhando justamente em um tal sistema, no qual o operador pode voar
em torno dos ó rgãos e viajar através do sistema digestivo, e o uso de dados
de sombra está permitindo que eles movam de uma apresentação visual
tipo cartum para uma cada vez mais semelhante à vida real. Da mesma
forma, a sobreposição e intensificação de dados vivos de TC/ IRM com
dados sombra promete aumentar a vividez da cirurgia por telepresen ça, en -
quanto a imediatidade da imagem eletró nica e da manipulação remota vem
“dissolver tempo e espaço”.
(O desenvolvimento da cirurgia por telepresença com intensificação da
sombra tem consequências para a corporeidade em relação às habilidades
que ela exige do cirurgião - como o que Mareei Mauss (1950a) chamou de
—
“técnica do corpo” e em relação a suas aplicações nos corpos de pacientes.
Em relação à primeira, o campo emergente da “Tecnologia de Interface
Humana” diz que um sistema deve ter intuição sensorial - que ele “deve ser
sentido e usado o mais naturalmente possível”. Como Satava observa, a
cirurgia por telepresença tem o mesmo eixo olho-mão que a cirurgia aberta
na medida em que o cirurgião olha para um monitor, preservando assim a
correspondê ncia dos sentidos proprioceptivo e de cinestesia com o visual. A
laparoscopia contemporâ nea exige dirigir visualmente o olhar para um
monitor de vídeo, enquanto a simulação cir ú rgica exige o uso de um capa-
cete de realidade virtual de modo que o cirurgião precisa passar pelo apren-
dizado da ferramenta em vez de a ferramenta adaptar-se ao cirurgião (Sarava,
j
1994, p. 819-820 ) . Em relação ao cuidado do paciente, a nova tecnologia
permitirá comparar ó rgãos normais e anormais por substituição de ima -
419
4
> ;
420
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
421
'
!í i
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
a subjetividade pessoal para elas está fora de questão. O que vem muito
mais ao caso é a subjetividade do resto de n ós - estudantes de medicina
especializados e cirurgi ões, sem d ú vida , mas també m as próximas gerações.
Na verdade, Spitzer, do CCSUC disse: “Acho que no futuro as crianças vão
crescer com ele” (certamente um avan ço em relação ao Barney). O mais
importante é que, enquanto pela mesma razão está fora de questã o definir
intersubjetividade entre sombras e usu ários, surge com mais força a questão
de como, dada a premissa de que a intersubjetividade também é baseada em
nosso ser corpó reo, ela pode ficar transformada, intensificada ou distorcida
pela existência e aplicação desombras. Como hão de ser as relações interpes-
soais quando eu puder casualmente visualizar o seu esqueleto enquanto con -
versamos, e você puder tatear as voltas do caminho dentro do meu cérebro?
Finalmente, se as inovações tecnológicas em realidade virtual, das quais
as sombras são apenas um exemplo, estão de fato apontando para uma
I! I modulação da corporeidade, isso só pode ocorrer por causa da condição
histórica na qual a cultura existe agora. Daniel Boorstin escreveu em 1961
.
! que o mundo contemporâneo já é um mundo “onde a fantasia é mais real
1
do que a realidade, onde a imagem tem mais dignidade do que o seu origi -
nal. Nós dificilmente ousamos enfrentar o nosso espanto, porque o conso-
'r : | lo de crer na realidade dissimulada é tão completamente real” (apud Kearney,
1988, p. 252). Isso quer dizer que o que estamos descrevendo não é um
determinismo tecnológico da corporeidade, mas um modo altamente espe -
' ! cífico de incorporar um desenvolvimento tecnológico na condição pós-
:! IBH moderna da cultura. Compreender esse processo exigirá uma fenomenologia
cultural que possa capturar a essência do particular numa corporeidade cons -
tituída no espaço existencial entre o virtual e o real, entre o imagin á rio
i I cultural e o culturalmente literal, entre distanciamento e intimidade e entre
-
representação e ser no-mundo.
Ep ílogo 2001
Mil 422
J
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
423
if ív
!i ! •
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
m nacionais. Ele também foi enf á tico ao afirmar que a longo prazo um projeto
de tal envergadura deveria ser conduzido sob a égide dos Institutos Nacionais
I de Sa ú de. Há uma história nisso que precisa ser acompanhada em trabalho
futuro sobre essa iniciativa.
Ê- A meta da iniciativa do Humano Virtual é realmente monumental, e
eu cito material do projeto:
*
<
Esse trabalho deverá exigir análise simultânea de centenas de milhares
1
de variáveis medidas e a colaboração multidisciplinar de milhares de pesqui-
sadores. A palavra-chave para os meus propósitos nesse trecho é “respostas ’,
que ocorre duas vezes. Os protótipos incluem simulações que podem, por
exemplo , prever os resultados de um trauma violento - essas imagens, aqui
i !!! congeladas, são animadas na apresentação por computador. Aplicações? Bem,
os Fuzileiros Navais querem simular a resposta de um corpo a balas de
borracha e outras armas cinéticas usadas para controlar civis desobedientes;
1
:l
:
o Exército quer ser capaz de saber se o pulm ão de um soldado colapsou
como resultado de um ferimento por perfuração , implicações? Acho que
I podemos conceber a possibilidade muito real de uma simulação ser fmal -
mente tão sofisticada , incluindo a dimensão psicol ógica , que ela responde
como uma forma de vida - e eu uso a palavra “como” intencionalmente
para explorar sua ambiguidade, pois “como” pode ser entendido Jireralmen -
te e também no sentido de “como se” ou “semelhante a” uma forma de
vida. Para ser especí fico, esse desenvolvimento antecipa a criação de uma
IV
il
figura de conhecimento inteiramente nova nas ciências da vida: atualmente
-
a pesquisa biol ógica pode ser conduzida in vivo ou in vitro a partir desse
ponto, ela poderá também ser capaz de ser conduzida in virtuo.
1
íI
424
iâ
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
Existe aqui uma questão de quem vai, de fato, “controlar” esse conhe-
cimento, e quem terá a capacidade de controlar - o paciente individual,
organizações de defesa do paciente, médicos, companhias de seguro, o go-
verno. Permitam-me, no entanto, que eu aborde essa questão a partir do
argumento que comecei a desenvolver neste capítulo.
Os termos que introduzi para tipos de seres no ciberespaço podem ser
ú teis para compreender a transformação que está ocorrendo entre o Huma-
no Visível e o Humano Virtual. Chamei o primeiro de “sombra” no senti-
do de ser ele o resto digital reconstituído de uma pessoa específica. Os
espectros virtuais agora em fase de prototipagem são o que chamei de simu-
lóides, no sentido de serem representações gené ricas construídas sobre a
plataforma anatô mica do Humano Visível, mas elaboradas de tal forma
que são um compósito altamente difuso e distribu ído de bancos de dados e
recursos computacionais. Os projetados chips personalizados de computa-
dor serão avatares no sentido de serem substitutos para pessoas reais e vivas.
Uma pista da ambiguidade cultural e ontológica dessas entidades pode ser
encontrada na aparê ncia in tandem dos termos “modelo” e ‘' dontjlJm
modelo é um tipo de representação, comportando uma relação abstrata e
neutra com aquilo de que é modelo. Um clone implica um certo tipo de
ser- no- mundo, que não é abstrato, mas concretamente paralelo ao ser do
|
qual ele foi clonado
425
[
J f
CORPO / SIGNIFICADO / CURA
1
I'
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!;
I
j
i!
!
iji
i
Figura 10.7 Os feixes são representações qualitativas dc feixes de radioterapia vindo de
' diferentes direções e focando em um ponto no torso humano que representa um tumor. A
ii imagem demonstra a capacidade de mostrar o corpo humano em três dimensões com os
feixes de radioterapia. O sofhvarepermite que o corpo seja girado em três dimensões para
j fácil avaliação do cen ário de tratamento.
Fonte: imagem e legenda reproduzidas com permissão da pesquisa patrocinada pelo Programa dc
Pesquisa c Desenvolvimento Dirigidos dc Laboratório, do Laborató rio Nacional de Oak Ridgc
ã (LNOR), administrado pelo UT-Batcllc, LLC para o Departamento dc Energia dos EUA, sob o
Contrato N° DE-AC05-00OR22725.
|:
•
1 426
i
Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
427
' •
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f
r1
i
i
CORTO / SIGNIFICADO / CURA
, j
1
! assim como os ditados usados cm uma nação marcam o seu cará ter, os
Provérbios do Inferno também demonstram a natureza da sabedoria infer-
í; nal melhor do que qualquer descrição de edifícios ou roupas” ( Erdman,
1988, p. 35). Tentei seguir as pegadas de Blake no meu trabalho com os
carism á ticos católicos sobre cura religiosa, linguagem religiosa em desem-
i penho c religião no contexto da globalização. Ao me tornar interessado na
! questão da tecnologia, tomei-me também consciente de que estou mais
uma vez, ou ainda, muito enfaticamente na zona da imaginação. Em outras
palavras, se por um lado eu encontrei, como esperava, um campo de estudo
. com seus próprios imperativos, agendas e problem áticas, por outro lado eu
vejo que as questões não são tão afastadas de uma preocupação com a reli-
/
1
gião e a imaginação religiosa como eu tinha esperado
Blake, além de basear sua compreensão da imaginação na experiência
corporal, reconheceu que imaginação e religião são uma só e que, quando
: -
elas são separadas, a imaginação se reduz à mera fantasia e a religião torna se
i
-
uma reivindicação da verdade absoluta. Ambas tornam se, por isso, nega-
: ções da vida e energia humanas, relegando seu poder criativo ao reino do
I! mistério. Se formos entender isso, nosso trabalho precisa ser mais amplo do
que uma invocação da liminaridade e mais específico do que uma definição
do imaginário como um espaço analítico ou uma zona de análise cultural,
-
um processo psicológico ou uma modalidade de ser no-mundo. Em vez
disso, precisamos identificar imaginários, no plural, como zonas etnografi -
camente especificáveis de criatividade humana, possibilidade, fantasia, dese -
i jo, horror, alteridade, santidade -, mas também de planejamento, pesquisa
II T
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.
e desenvolvimento, desenho-de-produto. Uma compreensão do imaginá -
rio deve ser pluralizada no sentido de identificar portais culturais para a
imaginação. Por exemplo, cada grupo de apoiadores do Projeto Humano
Visível que discuti neste capítulo tem sua própria posição ou seu pró prio
modo socialmente circunscrito de acesso ao imagin ário cultural. O grande
p ú blico exposto às imagens da m ídia habita um imagin á rio de espetáculo
L
* em relação aos cad áveres computadorizados, reminiscente da exposição do
corpo na execução e no esquartejamento p ú blico, ou no circo de horrores.
Estudantes de medicina e cirurgiões treinando para fazer telecirurgia habi
tam um imagin ário de iniciação, no qual são inculcados com disposições
-
para a anatomia e incorporam novas técnicas do corpo. Os .criadores do
. i;
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428
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Sombras da Representa çã o e Ser na Realidade Virtual
429
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: de perguntar se, dc fato, o que aconteceu é que ele foi morto ( n ã o pela
impunidade, mas pelo poder soberano do estado do Texas) c n ão sacrifica-
do. Mas a imolação de um corpo legado à ciência cortando-o cm fatias 6
um sacrifício? O ato de sacrifício é aquele conduzido por um clero tecnoci-
entífico, ou aquele alcan çado no ofertó rio dc si mesmo pelo homem con -
denado ? A inten çã o do homem condenado foi de sacrifício ou de
, auto-santificação? Aqui minhas observações terminam nas raízes religiosas
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Em diversas á reas de estudos, da sa ú de à religião, da etnologia à
psican á lise, a contribuiçã o de Thomas Csordas se mostra hoje co-
mo um fato inconteste. Herdeiro da longa tradi ção norte-ameri-
cana da antropologia psicol ógica, Csordas se destaca pela aborda-
gem fenomenológica e pela sistematização do paradigma da cor-
poreidade. Desde esse ponto de partida, ele se apresenta como um
interlocutor privilegiado e complementar da antropologia simbó-
lica e interpretativa. A sua busca incessante por responder a ques-
tão sobre “como nos tornamos humanos” leva-o a ultrapassar o
â mbito do significado, estabelecendo como horizonte de compre-
ensão a experiê ncia fundamental dos seres humanos que se per-
cebem como “corpos no mundo” , entre outros corpos e objetos.
Corpo/Significado/Cura é o livro-síntese de sua proposição, daí sua
importâ ncia como o primeiro livro do autor traduzido para o por-
tugu ês brasileiro.
&
UFROS
EDITORA