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Nobambo nunca havia se sentido tão perdidamente só e sem esperança.

Se a Luz
estava fora de alcance, o que haveria de ser do seu espírito se morresse ali? Será
que a Luz não o receberia? Estaria a essência dele condenada a uma eternidade
de perambulação pelo vazio?

Levou uma vida honrada. Ainda assim... seria isso alguma espécie de punição?

Mesmo enquanto a mente procurava respostas, ele esticou a mão e,


imediatamente, tateou a rocha fria. Aos poucos, foi percebendo que estava
deitado em uma posição muito estranha, que uma massa tenra e grande estava
imprensada a seu lado e que a perna esquerda estava certamente quebrada.

Nobambo rolou para a direita e respirou fundo, tentando ignorar a dor nas costelas
e na perna. Sem poder recorrer à Luz, ele não tinha como se curar, então teria
que conviver com a dor por ora. Ao menos a sensibilidade do lado esquerdo do
corpo voltou. E... ele podia ouvir os ruídos abafados causados pelos seus
movimentos, o que significava que a audição também estava normal.

Como conseguia respirar, isso significava que o ar o alcançava de algum lugar. À


medida que os olhos se acostumavam à sombra, ele avistou uma pequena
abertura, não de luz, mas apenas um tom de escuridão mais claro do que as
trevas que o cercavam. Nobambo se esticou e alcançou, com a mão, um objeto
cilíndrico familiar: a haste do seu martelo.

Com a pouca força que lhe restava, Nobambo agarrou o cabo e empurrou-o em
direção à abertura. Alguns destroços dos entalhes cederam, revelando um vão
estreito criado pelos gigantescos blocos de pedra que caíram.

Imediatamente, o guerreiro foi recebido pelo som de gritos abafados, lamentos de


puro terror, vindos de certa distância. Usou o martelo para puxar a parte de cima
do torso pelo buraco e para dentro do espaço restrito. Enquanto fazia isso, ouviu
um gemido vindo das profundezas dos escombros.

Com uma explosão de força, Nobambo se puxou passagem adentro, contendo a


vontade de gritar ao passar a perna quebrada pela quina serrilhada das pedras, o
que fez doer todo o corpo. Os lamentos continuavam. As pedras que o cercavam
se moviam, despejando areia e pó pelas rachaduras. O guerreiro se arrastou
rapidamente em direção e um caminho irregular, onde uma luz fraquíssima era
visível.

A julgar pelo volume do gemido entre os escombros, agora mais alto, Nobambo
supôs que se tratava de um ogro tentando desesperadamente se soltar. O
guerreiro ficou de costas e arrastou-se sobre os cotovelos até o ar noturno,
enquanto o ogro fazia outro esforço para se soltar. Agora, Nobambo conseguia ver
todo o monte de entulho. O ogro urrou enfurecido mais uma vez, e toda a pilha
cedeu por completo, projetando uma nuvem de poeira em todas as direções e
interrompendo abruptamente o grito.

Outro urro se seguiu imediatamente, mas agora de alguma distância, e acima


deles: o som de uma fêmea aterrorizada.

Nobambo se virou e viu algo que jamais esqueceria, não importa o quanto
tentasse, daquele dia em diante.

Todo Bairro Inferior, iluminado pela lua e por tochas, havia se tornado um depósito
de cadáveres de draeneis. E, apesar de a chuva ter parado, as montanhas de
corpos ainda estavam molhadas de vômito, sangue e toda espécie de detritos.

O coração de Nobambo retorceu-se ao identificar crianças em meio aos mortos.


Apesar de jovens, muitas delas se ofereceram bravamente para ficar com os pais,
pois os orcs desconfiariam de uma cidade draenei sem crianças e caçariam todas
até a extinção. Uma parte de Nobambo torceu e rezou com toda a força para que
essas crianças pudessem ser protegidas, para que elas ficassem seguras nos
esconderijos apressadamente escavados nas montanhas. Uma esperança tola,
ele bem sabia, mas se ateve a ela ainda assim.

Haveria algo mais desprovido de sentido do que a execução de crianças?

Mais uma vez, seus ouvidos foram atacados pelos gritos de uma fêmea,
acompanhados por provocações e escárnio. Os orcs estavam celebrando,
deleitando-se com a vitória. Ao olhar para cima, localizou a origem do ruído: bem
acima, projetando-se sobre os Picos da barreira, os draeneis ergueram o Terraço
dos Aldor. E lá estavam os orcs, torturando uma pobre draenaia.

“Tenho de detê-los.”

Mas como? Sozinho, com uma perna quebrada, um contra centenas...


abandonado pela Luz, armado com nada além de um martelo. Como ele poderia
dar um basta na loucura que ocorria lá em cima?

“Preciso descobrir uma forma!”

Exasperadamente, Nobambo engatinhou sobre os cadáveres, escorregando nos


fluidos, ignorando o fedor pútrido e as vísceras expostas. Arrastou-se até o círculo
externo do Bairro Inferior, em direção à base dos picos, onde a muralha
encontrava a montanha. Ele encontraria alguma forma de escalar até lá. Ele
encontraria...

A gritaria cessou. Nobambo olhou para cima e viu silhuetas à luz da lua que
carregaram uma figura imóvel até a beira do mirante e a balançaram, atirando a
massa sem vida às profundezas. O corpo aterrissou com um baque surdo não
muito longe de onde Nobambo estava, paralisado.

O guerreiro prosseguiu, procurando qualquer sinal de vida da draenaia... “Shaka!”,


percebeu ao chegar perto o bastante para distinguir os traços dela. Ele a vira
muitas vezes antes, apesar de terem se falado em poucas e breves ocasiões.
Sempre a achou encantadora. Agora, lá estava ela, surrada e machucada pelas
agressões, a garganta cortada, exangue. Ao menos, o sofrimento dela havia
acabado.

Outro grito veio de cima, a voz de outra fêmea. A raiva ferveu dentro do guerreiro.
Raiva, frustração e um desejo incontrolável de vingança.

“Não podes fazer coisa alguma.”

Desesperadamente, Nobambo agarrou o martelo com força e tentou, mais uma


vez, convocar a Luz. Com a ajuda de tal força, talvez fosse possível fazer alguma
coisa, qualquer coisa... Mas, novamente, o silêncio foi a única resposta.

Algo dentro dele o impelia a sair de lá o mais rápido possível, a se esconder com
os demais, a viver... para, um dia, cumprir um propósito maior.

“Isso é covardia. Preciso descobrir um jeito. Tenho que conseguir.”

Mas, no fundo, Nobambo sabia que a batalha havia terminado. Se, de fato, algum
destino maior o aguardava, ele tinha que ir embora de imediato. Não conseguiria
nada além de uma morte sem significado, se tentasse chegar ao topo. Gritos
angustiados tornaram a dominar o ar da noite. Nobambo olhou para uma parte da
muralha externa que estava parcialmente destruída. Era um obstáculo perigoso,
mas não insuperável – e que não estava sendo vigiado.

“Esta é a hora. Faça tua escolha.”

Era uma oportunidade. Uma chance de viver e, algum dia, fazer a diferença mais
uma vez.

“Tens de conseguir. Tu tens de continuar.”

Aquele longo gemido soou novamente mas, dessa vez, foi interrompido
misericordiosamente. Então, o som das vozes de orcs, do outro lado da muralha
interna, chegou a ele. Elas soavam como se estivessem vasculhando em meio
aos cadáveres, em busca de algo ou alguém. O tempo havia acabado.

Nobambo pegou o martelo. Mesmo lhe custando tempo e esforço consideráveis e


a pouca força que lhe restava, conseguir transpassar os corpos à frente e passou
pelo vão na parede.

Enquanto cambaleava vagarosa e dolorosamente, para a Mata Terokkar, gritos


femininos voltaram a retumbar no topo do Terraço dos Aldor.

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– Certamente tua sobrevivência é um sinal, uma mensagem da Luz, que abençoa


cada um de nós à sua própria maneira. Quando chegar a hora, tu a encontrarás
novamente.

– Espero que seja verdade, velho amigo. Eu, simplesmente... Não me sinto o
mesmo. Algo mudou dentro de mim.

– Não digas bobagem. Estás cansado e confuso, e após tudo por que passou,
nem podemos culpar-te por sentir-te assim. Descansa um pouco.

Rolc saiu da caverna. Nobambo se recostou e fechou os olhos...

Gritos. Apelos exasperados das fêmeas.

Os olhos de Nobambo se abriram. Já estava ali havia vários dias, em um dos


acampamentos montados pelos que se esconderam antes da batalha. Contudo,
não conseguia escapar dos comoventes gritos das mulheres que deixou para
morrer. Elas chamavam por ele toda vez que seus olhos se fechavam, implorando
por ajuda, por salvação.

“Você não teve escolha.”

Mas isso seria verdade mesmo? Ele não tinha certeza. Nos últimos tempos,
Nobambo tinha cada vez mais dificuldade em pensar direito. Os pensamentos
eram turvos, desconexos. O draenei suspirou profundamente e se levantou do
cobertor estendido sobre o chão de pedra, gemendo por causa das juntas
doloridas.

Nobambo saiu entre a névoa do pântano e abriu caminho por entre o solo alagado
e repleto de juncos. O Pântano Zíngaro era um território inóspito mas, por ora,
seria seu lar.

Aquele pantanal sempre fora evitado pelos orcs, e com razão. Toda a região
estava coberta por uma camada rasa de água salobra. Grande parte da flora e da
fauna era venenosa se não preparadas adequadamente. Muitas criaturas do
pântano comeriam qualquer coisa que não as devorasse primeiro.
Enquanto avançava por entre cogumelos gigantes, altos como torres, o
sobrevivente ouviu gritos: um tumulto se formara perto do acampamento.

Nobambo correu para ver o que estava acontecendo. Três draeneis espancados,
dois machos e uma fêmea, estavam sendo acudidos por membros do
acampamento, logo após a guarda do perímetro. Outro, inconsciente, estava
sendo carregado por eles.

Nobambo lançou um olhar questionador para um dos guardas, que respondeu à


pergunta silenciosa:

– Sobreviventes de Shattrath.

Alarmado, Nobambo seguiu o grupo de volta às cavernas, onde os sobreviventes


foram cuidadosamente deitados sobre cobertores. Rolc tocou o draenei
inconsciente, mas não conseguiu acordá-lo.

A fêmea, aparentemente atordoada, murmurava:

– Onde estamos? O que aconteceu? Não estou sentindo... Alguma coisa está...

Rolc se aproximou e fez ela se calar:

– Acalma-te. Estás entre amigos agora. Tudo vai ficar bem.

Nobambo fazia-se perguntas. Tudo realmente ficaria bem? Já acontecera de


grupos de orcs caçadores descobriram um acampamento e o exterminarem. E
esses quatro, como sobreviveram? Quantos horrores essa fêmea teria
presenciado? O que teria levado o draenei inconsciente a tal estado catatônico?
Além disso, a aparência deles e o jeito como agiam... Nobambo se perguntava se
os ferimentos deles transcendiam o físico: eles pareciam exauridos, desprovidos
de espírito.

Eles pareciam como ele próprio se sentia.

Muitos dias depois, os sobreviventes haviam se recuperado o suficiente para que


Nobambo se sentisse confortável para perguntar-lhes sobre Shattrath.

A fêmea, Korin, falou primeiro. A voz dela falhava ao relatar a experiência:

– Tivemos sorte. Ficamos nas profundezas da montanha, em um dos poucos


esconderijos que não foram descobertos... ao menos em sua maior parte.

Nobambo estava intrigado.

– Em um certo ponto – continuou a sobrevivente – os monstros de pele verde nos


encontraram. A batalha que ocorreu foi... Eu nunca tinha visto coisas assim.
Quatro dos homens que se ofereceram para defender o grupo foram
massacrados, mas também mataram muitos orcs. Finalmente, restaram apenas
Herac e Estes. Eles mataram as criaturas que restaram, feras selvagens. E
aqueles olhos, aqueles olhos terríveis... – Korin estremeceu ao lembrar.

Estes acrescentou:

– Houve uma explosão. Momentos depois, um gás pútrido invadiu o nosso


esconderijo, sufocando-nos, causando um enjoo como nenhum outro que já
tínhamos sentido.

Nobambo lembrou da névoa vermelha artificial e logo reprimiu a lembrança. Herac


interrompeu Estes:

– Sentíamos como se estivéssemos morrendo. Quase todos desmaiamos.


Quando acordamos, já era manhã. Os níveis superiores estavam desertos.
Conseguimos chegar nos Picos da Barreira e, de lá, seguimos viagem para
Nagrand, onde fomos encontrados muitos dias depois.

– Quantos de vocês estavam lá? – perguntou Nobambo.

– Vinte, talvez mais. Principalmente mulheres, algumas crianças. Outros


chegaram alguns dias depois, como o draenei que está inconsciente na caverna...
Akama, ele disse que se chamava assim. Nos disseram que ele foi exposto a mais
gás do que qualquer outro sobrevivente. Rolc ainda não sabe ao certo se... –
Herac deteve-se e permaneceu em silêncio.

Estes prosseguiu:

– Acabamos sendo separados e enviados para diversos acampamentos no


Pântano Zíngaro e em Nagrand. Uma precaução, para que, se um dos
acampamentos fosse descoberto pelos orcs, não fôssemos todos mortos.

– Havia algum sacerdote ou Vindicante dentre vocês? Algum portador da Luz?

Os três menearam a cabeça negativamente, e Herac explicou:

– Não posso falar por Akama, mas Estes e eu éramos simples artesãos, sem
familiaridade com qualquer tipo de arma. Foi por isso que nos mandaram para as
cavernas, para sermos a última linha de defesa.

Korin dirigiu-se a Nobambo:

– Quando escapaste, mais alguém conseguiu ir contigo? Houve mais


sobreviventes? Ouvimos os orcs nos níveis inferiores, mas não queríamos correr o
risco de sermos descobertos, então fugimos.

Nobambo pensou nas pilhas de corpos no Bairro Inferior... Ouviu as súplicas


vindas do Terraço dos Aldor, tentou expulsar da mente os gritos das fêmeas
torturadas.

– Não – respondeu. – Não sei de mais ninguém.

Estações se passaram.

Velen, o profeta líder dos draeneis, visitara os sobreviventes havia dois dias... ou
seriam quatro? Ultimamente, Nobambo estava tendo dificuldade em lembrar de
algumas coisas. Velen viera de um dos acampamentos vizinhos. A localização
exata dele era um segredo guardado a sete chaves, dado o risco de alguém ser
sequestrado e torturado. Ninguém poderia revelar informações que não
conhecesse. De qualquer forma, Velen falara com eles sobre o futuro que os
aguardava, sobre a importância de permanecerem discretos por muito tempo,
possivelmente por anos, para observar e aguardar o que aconteceria com os orcs.

De acordo com Velen, os orcs haviam dado início à construção de algo que
parecia tomar todo o tempo e todos os recursos deles. O projeto tinha,
aparentemente, desviado a atenção dos monstros esverdeados da caça aos
draeneis, ao menos por ora. O que estavam construindo, não muito longe da
principal cidadela órquica nas terras calcinadas, parecia ser algum tipo de portal.

Velen parecia saber muito mais do que havia contado, mas ele era, afinal de
contas um profeta, um vidente. Nobambo pensou que o nobre sábio devia saber
muitas coisas, coisas que ele e outros simplesmente não entendiam por faltar-lhes
a sabedoria necessária.

Mais tarde, Nobambo assistia a Korin entrar na água com uma lança de pesca
quando reparou que algo nela parecia diferente. Ele tinha a impressão de que o
físico dela havia mudado nas últimas semanas. Os antebraços estavam
ligeiramente maiores; o rosto dela parecia sem energia; e a postura dela havia se
deteriorado. Por mais improvável que isso soasse, a cauda parecia ter encolhido.

Herac e Estes se aproximaram, e Nobambo podia jurar ter notado transformações


similares neles. Ele olhou para baixo, para os próprios antebraços. Estaria ele
imaginando coisas, ou eles pareciam inchados mesmo? Ele não se sentia bem
desde... desde aquela noite. Mas imaginou que se recuperaria com o tempo.
Agora, estava ficando cada vez mais preocupado.

Korin se aproximou e disse, entregando a lança para Nobambo:

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