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MISCELÂNEA

CERÂMICANORIO
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Contra a Banalização da Cerâmica


Gilberto R. Paim

              Gostaria de estimular a reflexão sobre um fenômeno atualmente


bastante difundido entre os ateliês de cerâmica do Rio de Janeiro: a
presença de oleiros que realizam as formas tanto para os ceramistas
quanto para os seus alunos. Para quem não sabe, oleiros são profissionais
do torno que, no nosso Estado, costumam trabalhar em fábricas
especializadas na produção de vasos para plantas, localizadas na baixada
fluminense, principalmente no município de Itaboraí. Os vasos para
plantas são queimados em baixas temperaturas e dispensam a aplicação
de vidrados. A produção de grande quantidade é vendida a preços baixos
que são mais ou menos condizentes com a sua futura utilização. O trabalho
dos oleiros caracteriza-se pela repetição em escala de um número reduzido
de formas e pela rapidez na execução.

Até pouco tempo atrás, a presença de oleiros era restrita a alguns


poucos ateliês de cerâmica, e ainda assim, de modo esporádico. O oleiro
costumava ser chamado quando o ceramista precisava de um auxiliar de
emergência para ajudá-lo numa encomenda de maior volume cujo prazo de
entrega era apertado. A contribuição do oleiro consistia na aceleração de
um processo que o ceramista dominava perfeitamente bem. Nestas
situações excepcionais, o artista-ceramista sabia orientar a contribuição
do oleiro de modo a garantir a qualidade dos resultados. De todo modo, o
trabalho do oleiro não era incorporado à rotina dos ateliês, sem risco de
substituição dos ceramistas na elaboração e na produção das formas.
Muitos ceramistas, entretanto, jamais se serviram da colaboração dos
oleiros mesmo quando sobrecarregados de trabalho. Para eles, a
realização das próprias formas sempre foi uma condição sine qua non.

            Hoje, infelizmente, os oleiros são responsáveis pela produção das


formas em numerosos ateliês da cidade e do Estado do Rio de Janeiro.
Freqüentemente os oleiros trabalham como diaristas em ateliês
coordenados por ceramistas que jamais se dedicaram seriamente ao torno.
Vale lembrar que o torno está longe de ser o único processo de modelagem
disponível. A cerâmica é rica em técnicas formativas como cobrinhas,
placas, barbotina em moldes, extrusão, assim como todas as combinações
entre estas técnicas que são continuamente inventadas e reinventadas. O
aprendiz que não se interessa pelo trabalho no torno tem muitas outras
maneiras igualmente interessantes e legítimas de se desenvolver na
cerâmica. Apesar disso, há um número crescente de ceramistas (não estou
usando aspas em ceramistas para suavizar o tom deste artigo) que não
sabem tornear e, no entanto, baseiam a produção do seu ateliê quase
exclusivamente no trabalho do oleiro. O mais estranho é que a evidente má
fé destes ceramistas não é questionada e a sua prática aberrante está se
tornando corriqueira, passando quase por “natural”.

            Muitos ceramistas da nova geração que passaram por ateliês que
utilizam oleiros como diaristas acreditam firmemente que não é necessário
aprender a tornear, pois o trabalho do torno é sem importância, e pode-se
pagar relativamente pouco por ele ¾ uma deformação bem terceiro-
mundista, impensável entre os ceramistas europeus ou norte-americanos.
Esta percepção totalmente equivocada foi transmitida ao aprendiz por um
professor de cerâmica que, possivelmente, tornou-se, ao longo do tempo,
infiel ao seu próprio desejo de fazer cerâmica. Alguém que gostava ou
tinha vocação para trabalhar com cobrinhas, mas que não se aprofundou
na técnica; alguém que tinha jeito para fazer montagens com placas, mas
que não levou a sério este seu talento; alguém que queria utilizar moldes
para fazer formas inusitadas ou acelerar a produção, mas não o suficiente
para procurar orientação especializada; alguém que não encontrou os
meios para a elaboração da sua linguagem artística em nenhum dos
métodos de modelagem mencionados acima e tampouco dedicou-se
seriamente ao trabalho no torno, e para quem supostamente restou
apenas uma solução para a sua carreira dentro da cerâmica: chamar o
oleiro. Sendo incapaz de permitir a si mesmo o amadurecimento ¾ e isso
poderia ter acontecido de muitas maneiras diferentes, com ou sem o torno
¾ só resta a esse ceramista banalizar o ofício que, no entanto, escolheu
voluntariamente. Rompe, assim, o contrato ético que deve existir entre o
artista e si mesmo e entre o artista e o seu público. O seu trabalho é uma
agressão contra os ceramistas realmente dedicados e apaixonados pela
sua arte.

          Nunca será suficiente repetir que o aprendizado do torno exige uma
dedicação muito grande. Em alguns ateliês, porém, o oleiro está diante do
aluno não para ensiná-lo, mas para se submeter aos seus caprichos: “hoje
vou querer cinco vasos de alturas diferentes, seguindo o modelo aqui desta
revista”. Anos de prática são necessários para que o ceramista se sinta
realmente à vontade em relação aos procedimentos técnicos que escolheu
para auxiliá-lo no desenvolvimento de sua linguagem artística. Para o
ceramista que aprecia o trabalho no torno, o tempo de formação, por mais
longo que seja, em nada se assemelha a um calvário. O aprendiz motivado
aceita com naturalidade o fato de que é preciso se exercitar muito e
continuamente. Não encara o seu esforço como a assimilação fria de uma
técnica, mas como uma oportunidade única e insubstituível de
experimentar de modo rico e intenso as nuances da forma. Uma grande
dedicação é cada vez mais necessária em todas as profissões, artísticas ou
não, e costuma ser recompensada pelo prazer e pelo reconhecimento
diante do trabalho consistente e inovador. O ceramista que optou
seriamente pelo torno desenvolve a própria percepção de modo a realizar
formas cada vez mais leves e definidas. A evolução da forma torna-se uma
dança para as suas mãos e os seus olhos, e um grande estímulo para a sua
imaginação criadora. Todo o processo nada tem de mecânico e exige muito
da sensibilidade de cada um. Não existe um único modo de trabalhar no
torno, tampouco um padrão universal de qualidade. A “imperfeição” no
trabalho do aprendiz ou do próprio ceramista tem o seu próprio valor.

É preciso dizer com todas as palavras: os ceramistas que delegam


aos oleiros uma parte ESSENCIAL do seu trabalho estão enganando o
público apreciador da cerâmica de ateliê - ainda em frágil processo de
formação no Brasil; os seus eventuais alunos; e, de algum modo, também a
si mesmos. Fazem regredir o movimento artesanal de cerâmica, pois
descartam o compromisso tão importante que consiste em fortalecer a
união entre a criação e a realização. Os ceramistas modernos pretenderam
algo qualitativamente melhor do que meramente acelerar o frenesi na
circulação e a na obsolescência dos objetos. Contra a uniformização “fria”
das sociedades modernas, renovaram as práticas artesanais da cerâmica
através de suas aventuras criativas únicas e singulares. Suas soluções
nunca foram preguiçosas ou fáceis. Dedicaram suas vidas ao
desdobramento de suas escolhas mais pessoais, exercendo sua reflexão
crítica sobre a produção dominante e, acima de
tudo, evitando a banalização da sua arte.

Hoje, o ceramista dispõe de uma variedade inédita de equipamentos,


materiais, livros e revistas. Muitos cursos especializados são oferecidos
(sobre argilas, engobes, esmaltes, sobre novas técnicas de modelagem
etc.), como complemento ao ensino regular nos ateliês. As informações
técnicas sobre a cerâmica estão cada vez mais acessíveis aos interessados,
e isso é ótimo em comparação à penúria reinante há dez ou vinte anos.
Infelizmente, no entanto, a reflexão sobre valores parece ter sido
suspensa ou interrompida. Mais vale o objeto de consumo isolado do que o
desenvolvimento pessoal e artístico do indivíduo?

O aventureiros preferem queimar etapas fundamentais e se auto-


proclamam ceramistas enquanto meramente patinam na superfície.
Querem gerenciar uma produção farta sem conhecer razoavelmente os
vários aspectos de um ofício que está longe de ser fácil. Que cerâmicas
tentam impor ao mercado, senão pálidos simulacros de outras cerâmicas
que nasceram genuinamente da experiência dos criadores mergulhados na
sua arte? Com muita freqüência a assinatura sob a tigela ou o vaso é uma
farsa que ameaça a credibilidade de todo um esforço coletivo que antecede
em várias décadas a atitude leviana e oportunista do ceramista que usa o
oleiro para compensar a sua fraqueza ou a sua pressa, ou a fraqueza que é
a sua pressa.
Que diferença existe entre o ceramista que assina a peça feita pelo
oleiro e o empresário que, desvinculado da história recente da cerâmica de
ateliê, produz cerâmicas com o selo “hand-made”? A cerâmica industrial
ou semi-industrial com o selo “hand-made” é facilmente reconhecível pelo
que realmente é, e ninguém se sente enganado, pois se trata de um truque
de marketing conhecido do grande público ¾ aliás, o design da cerâmica
industrial melhorou tanto nos últimos anos que o selo tornou-se um
artifício perfeitamente dispensável. Entretanto, aqueles que assinam peças
feitas por oleiros estabelecem uma concorrência desleal com os ceramistas
que realmente se dedicaram a aprender o seu ofício. A apreciação do
trabalho dos primeiros está atrelada e depende de modo perverso do longo
esforço de tantos ceramistas na transformação e na valorização da arte da
cerâmica.

O aprendiz que leva para a casa peças feitas pelo oleiro para mostrá-
las a seus familiares e amigos, ou tentar vendê-las em alguma loja ou
bazar, precisa ser alertado sobre o fato de que está exibindo publicamente
os piores obstáculos ao seu desenvolvimento artístico pessoal. Os
professores de cerâmica que se habituaram a revender para seus alunos
horas ou minutos do trabalho dos oleiros estão lhes oferecendo o máximo
da frivolidade em termos de consumo, porém uma experiência miserável
da arte da cerâmica.

Gilberto R. Paim
Agosto de 2002

              Gilberto R. Paim tem 45 anos e é carioca. Vive e trabalha em Nova Friburgo, RJ, onde
divide ateliê de cerâmica com Elizabeth Fonseca. Participou de várias exposições coletivas como “A
Nova Presença da Cerâmica”, no Paço Imperial, “Cerâmica: Tradição Redefinida” e “5XCerâmica” na
Galeria do Centro Cultural Cândido Mendes, e “Mestres da Cerâmica”, no Espaço Cultural dos
Correios, no Rio de Janeiro; “Cerâmica Contemporânea” no Paço das Artes, “Artesãos do Brasil” na
Fundação Armando Álvares Penteado e “Cerâmica Brasileira, Construção de uma Linguagem” no
Centro Cultural Brasileiro-Britânico, em São Paulo; e na Galeria de Arte Aplicada Wilson and Gough,
em Londres. Realizou exposição individual no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
acompanhada do livro-catálogo “A Cerâmica e o Horla”. Paim é também autor de “A Beleza sob
Suspeita, o ornamento em Ruskin, Lloyd Wright, Loos, Le Corbusier e outros”, ensaio crítico no qual
procurou situar as preocupações do movimento moderno de cerâmica no contexto mais amplo do
debate sobre o ornamento. O livro foi publicado por Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.  

Seu site é: www.netflash.com.br/gilberto-elizabeth.


 

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