Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Musica e Lietarura Nietzsche
Musica e Lietarura Nietzsche
DEPARTAMENTO DE MÚSICA
São Paulo
Agosto/2012
1
1. INTRODUÇÃO
Para tentar responder a tais questões, iremos analisar de maneira mais pormenorizada
os conceitos de dionisíaco e de apolíneo. Especial ênfase será dada ao estudo do
dionisíaco, bem como ao papel do coro e da música na tragédia antiga. Aliás, a
importância da arte dos sons para a concepção nietzscheana do trágico é indicada
desde o subtítulo do livro, quando o autor afirma que o nascimento da tragédia se dá
justamente a partir do espírito da música”. Nesse sentido é preciso notar que tanto o
“Prefácio” (1871) como a “Tentativa de autocrítica” (1886), que abrem o livro O
nascimento da tragédia (1872), de Nietzsche, apontam para uma influência e um
diálogo do autor com o pensamento e as ideias estéticas do compositor Richard
Wagner.
* * *
2
dessa relação interior que a música mantém com a verdadeira essência de todas as
coisas explica-se também que, ao soar uma música adequada a qualquer cena, ação,
ocorrência, ambiente, ela pareça descerrar-nos o sentido mais secreto destes e se
apresente como seu comentário mais justo e claro: do mesmo modo que aquele que se
entrega por inteiro à impressão de uma sinfonia vê como se todos os possíveis
sucessos da vida e do mundo já estivesses desfilando diante de si; no entanto, quando
reflete, não consegue indicar nenhuma semelhança entre aquele jogo sonoro e as
coisas que lhe passaram pela fantasia” (SCHOPENHAUER apud NIETZSCHE”, 1992,
p. 97). O efeito que a música dionisíaca exerce sobre a arte apolínea está presente na
medida em que ela traz a imagem de seu universo dionisíaco através de Apolo, dessa
forma nasce na mais verdadeira essência o mito trágico, e a partir desse fenômeno é
possível sentir alegria perante a existência “A alegria metafísica com o trágico é uma
transposição da sabedoria dionisíaca instintivamente inconsciente para a linguagem
das imagens: o herói, a mais elevada aparição da vontade, é, para o nosso prazer,
negado, porque é apenas aparência, e a vida eterna da vontade não é tocada de modo
nenhum pelo seu aniquilamento. ‘nós acreditamos na vida eterna’, assim exclama a
tragédia; enquanto a música é a ideia imediata dessa vida.” (NIETZSCHE, 1992, p. 99).
Nietzsche se faz bem claro quanto a sua crítica à ópera moderna, principalmente
quanto ao stilo rappresentativo e ao recitativo, de modo a se perguntar como a mesma
civilização posta em contato com a sublime arte de Palestrina, com o mais alto nível de
expressão da música, pôde receber tão calorosamente uma música tão superficial, em
que as palavras são pronunciadas dentro de um contexto que não chega nem a ser
musical? Essa apreciação pelo gênero semi-musical dessa ópera se dá pela ênfase
dada à palavra por meio de uma expressão patética dela, dessa maneira a música fica
em segundo plano. Porém o recitativo é intercalado com momentos de puro lirismo,
onde apenas a melodia se faz presente e muitas vezes sua intenção não está na
expressão de ideias, mas simplesmente serve para a satisfação do ego de cantores
virtuosísticos. É dessa alternância entre o gênero épico e lírico que se faz o stilo
rappresentativo, este que nunca alcança a verdadeira expressão da arte, que é
contrário à expressão dos impulsos dionisíacos e apolíneos. “A ópera é o fruto do
5
homem teórico, do leigo crítico, não do artista: um dos fatos mais estranhos na história
de todas as artes. Entender acima de tudo a palavra foi uma exigência dos ouvintes
propriamente amusicais: tanto assim que só se poderia esperar um renascimento da
arte dos sons se se descobrisse um modo de cantar em que a palavra do texto
dominasse o contraponto como o senhor domina o servo” (NIETZSCHE, 1992, p. 112).
A ópera não vê o ideal como inalcançável ou a natureza como algo perdido, mas ela
trata a arte como se fosse uma brincadeira, voltada para o simples entretenimento do
público, suas fontes não estão presentes no estético próprio da verdadeira arte, mas
possuem um valor moral que foi transportado para o âmbito artístico, o que torna a
ópera nada mais que um parasita se alimentando e tomando o lugar da verdadeira arte.
Em seu livro “Reflexões sobre a arte antiga”, Winckelmann expõe sua visão do mundo
grego sob a perspectiva da arte. Para ele, essa arte se baseava na busca pelas
proporções perfeitas, encontradas apenas na natureza. A arte grega era o culto à
beleza ideal, por esse motivo qualquer forma desnecessária do corpo era repugnada,
assim os jovens gregos através de seus jogos e exercícios físicos mantinham o corpo
perfeito. Também esses jovens eram motivados ao desenho, estudavam os traços e a
anatomia dos corpos, pois dessa maneira, conhecendo as proporções ideais da
natureza, seriam capazes de julgar a beleza natural e também criar a beleza acima da
natureza, na qual sua imaginação juntava o que havia de mais perfeito na natureza em
apenas um corpo: dessa maneira era representada a beleza de suas divindades.
Como veremos mais adiante, a arte grega, para Nietzsche, se dá na junção desses
dois elementos opostos: Dionísio, que primeiramente existia afirmando o caos, a
desordem, a desconstrução, colocava o homem no seu extremo, rompendo as
barreiras da moral, num estado de total embriaguez; e Apolo, que mais tarde
estabelecia a ordem e a moral com seu manto da razão, e construía, a partir do que
Dionísio havia deixado, a proporção dos belos traços gregos.
Schiller nos apresenta o ingênuo como sendo a natureza em sua forma primitiva,
essa que tem uma capacidade única de comoção do ser humano, não por sua beleza
estética, ou perfeição, mas por sua inocência. Não é necessária uma razão para sua
existência: existe na total simplicidade de apenas existir, através de suas leis imutáveis.
Esse prazer e comoção que o ser humano vê na natureza ingênua se deve justamente
a esse fato: é um prazer moral, gerado pela inocência dos seres naturais, que um dia
nós possuímos, e mais tarde nos libertamos: tornamo-nos mutáveis, pensantes e nos
separamos da irracionalidade ingênua da natureza. Por esse motivo, o homem
moderno (sentimental) está constantemente em busca da natureza. Diferentemente
dos antigos (ingênuos), os modernos cultivam um sentimento melancólico em relação
ao que é natural, buscando reconectar-se a ele.
Dessa maneira Schiller classifica a poesia dos antigos como sendo ingênua, e a
poesia moderna como sentimental. Os gregos antigos eram parte do mundo natural,
não era para eles um esforço buscar uma beleza plástica para suas artes na natureza,
a beleza plástica era naturalmente parte de sua cultura artística: “Quando se recorda a
bela natureza que envolvia os gregos antigos; quando se reflete sobre quão
8
intimamente esse povo podia viver com a natureza livre sob seu céu feliz; quão mais
próximos estavam da natureza simples seu modo de representar, sua maneira de
sentir, seus costumes, e que reprodução fiel dela são suas obras poéticas” (SCHILLER,
1991, p 54-55)
Schiller não desmerece o fato de que as belas artes estão diretamente ligadas
ao entretenimento, pois elas se voltam para a natureza, e o homem só pode encontrar
a felicidade na natureza, independente do modo com que este se relaciona com o
mundo natural, seja ele ingênuo, conectado à natureza, ou sentimental, buscando-a.
“Por isso, é com a natureza, ou melhor, com seu Autor, que as belas-artes têm o fim
comum de prodigalizar entretenimento e tornar felizes as pessoas. (...) Somente a arte
nos proporciona prazeres que não precisam antes ser merecidos” (SCHILLER, 1992, p
14).
Quando o homem tenta forçosamente impor um valor moral à arte, ela perde sua
função de livre entretenimento, perde sua naturalidade em função da moral imposta.
Porém, a arte quando atinge seu objetivo máximo de deleite do ser humano, ela
naturalmente cria um valor moral benéfico, e o entretenimento torna-se um meio para
que a moral verdadeira seja alcançada: “o entretenimento mesmo, que a arte
proporciona, torna-se, quanto à moral, um meio.” (SCHILLER, 1992, p 16).
Schiller ressalta que, como explanamos anteriormente, a tragédia não tem uma
forçosa finalidade moral, e é isso que a faz tão grandiosa em seu efeito sobre o ser
humano: “Não é só a obediência à lei moral que nos dá a representação de uma
adequação moral; também a dor ante a violação nos proporciona essa ideia. A tristeza
produzida pela consciência da imperfeição moral é adequada por opor-se à satisfação
que acompanha a perfeição moral” (SCHILLER, 1992, p 24). A tragédia nos eleva ao
sublime, e cumpre sua finalidade artística ao despertar, através deste, a consciência
moral que existe em todos os homens.
Tal como irá ocorrer com o compositor alemão Richard Wagner, também Nietzsche foi
profundamente influenciado pela filosofia de Schopenhauer, sobretudo no início de sua
carreira. Isso se mostra de maneira evidente a partir de seus textos de juventude, de
modo que se faz necessário, para que possamos compreender corretamente seus
argumentos, que façamos um pequeno excurso, explicando os principais conceitos da
filosofia de Schopenhauer e que reaparecerão em Nietzsche:
O indivíduo pode pensar que é livre, porém seus atos dependem de sua
necessidade, como numa relação de efeito e causa, assim como o fenômeno da
Vontade, por isso ele nunca é livre completamente, ele também está submetido ao
princípio de razão.
A Vontade não age apenas no âmbito da consciência do ser humano, ela age também
pelo instinto, tanto em nós como nos animais, sem nenhuma espécie de conhecimento
ser necessária, é uma atividade cega da vontade. Assim como uma aranha tece sua
teia sem ter o conhecimento de sua presa, nosso próprio corpo trabalha sem que
precisemos do conhecimento para isso, na digestão, crescimento, reprodução, etc. Por
esse motivo, nosso corpo inteiro é uma objetivação da Vontade, que nessa atividade
cega não é regida por motivos, mas sim excitações.
Para toda causa, existe uma ação proporcional a essa e conseqüentemente um efeito
proporcional, porém, Schopenhauer chama de excitação uma causa que não possui
um efeito proporcional, como as funções involuntárias do nosso organismo, sua causa
é a de manter-nos vivos, porém suas reações muitas vezes não são sentidas por nós,
ou ao contrário, uma ação muito pequena pode nos afetar de modo drástico. O autor
estende essa visão também às leis imutáveis da física, as quais independem de
qualquer motivo para existir, elas são, em sua essência, Vontade, enquanto suas
conseqüências, suas manifestações são fenômenos dessa Vontade.
O conceito de vontade é inseparável do princípio da representação, que se trata de
uma forma de visão do mundo onde este se compõe de duas metades: o sujeito e o
objeto, sendo que um não existe sem o outro, ou seja, são inseparáveis. O objeto tem
como sua característica o espaço e o tempo, e, portanto, a pluralidade, enquanto o
sujeito é indivisível, único: O mundo como representação se apresenta como o objeto
para o sujeito.
Para dar continuidade à crítica sobre a situação social da arte moderna, Wagner se
volta para as origens do desenvolvimento da arte: os gregos. Para ele, os gregos
encontraram na figura de Apolo, a expressão perfeita de sua fisionomia bela e forte.
Este, inspirado por Dionísio, dava vida ao drama grego: “ encontrava aí a mais perfeita
expressão; expressão em que os ouvidos e os olhos, a inteligência e o coração, tudo
captavam e percebiam como vida e realidade, tudo viam de facto, o físico e o espiritual,
que, desse modo, não eram apenas produto de um trabalho da imaginação”
(WAGNER, 1990, p 40). Era como se o poeta trágico fosse o instrumento direto do
deus, e este se manifestava na obra de arte. “(...) Ele exprimindo-se no todo, o todo
exprimindo-se nele; como uma fibra de entre os milhares que fazem uma planta
rebentar da terra, viver, elevar nos ares o seu recorte grácil e gerar aquela flor que
lança em redor o delicioso perfume da eternidade. Essa flor era a obra de arte e esse
perfume o espírito grego” (WAGNER, 1990, p 43).
A decadência da tragédia grega teve como motivo principal a repartição das artes nela
contidas, e coincidiu com a decadência do povo grego, não por motivos diferentes,
pois, assim como houve a individualização das artes, aconteceu o mesmo com a
14
Wagner vê o deus Romano Mercúrio, deus dos comerciantes e também o deus dos
ladrões e impostores, como o deus do mundo moderno, justamente pela relação
comercial entre tudo relacionado ao mundo moderno ser aquilo que é mais valorizado:
“Em carne e osso podeis vê-lo na figura de um mesquinho banqueiro inglês, que casou
a filha com um cavaleiro da ordem da jarreteira completamente arruinado, e põe a
cantar para si os primeiros cantores de uma ópera italiana, preferindo fazê-lo no seu
salão particular em vez do teatro público – embora, mesmo aí, de forma alguma no
santo dia de domingo – porque ganha assim a fama de ter que lhes pagar ainda mais
caro. Eis Mercúrio e sua solícita serva, a arte moderna” (WAGNER, 1990, p. 59). Nesse
trecho é muito clara a valoração do dinheiro em detrimento à arte, e que esta teria
apenas a função de entreter as pessoas entediadas e cansadas dos seus respectivos
trabalhos, e não o conhecimento e enobrecimento do espírito.
O simples fato da arte moderna estar subdividida em drama e ópera, torna essa arte
muito distante da verdadeira arte. O drama vê-se desvinculado da boa música,
enquanto a ópera é feita de uma série de ornamentos desnecessários, criados para
ostentar o ego de cantores virtuosos, ou apenas de belas melodias que agradam os
ouvidos do público preguiçoso e sem nenhum objetivo dramático. Aqui Wagner faz uma
grande comparação da arte moderna com a arte dos gregos “A arte pública dos Gregos
que atingiu o apogeu na tragédia era expressão do que havia de mais profundo e mais
nobre na consciência popular. O que há de mais profundo e de mais nobre na
consciência laica contemporânea é a pura contradição, a negatividade que atravessa a
nossa arte” (WAGNER, 1990, p.69). Nos teatros gregos, toda a população se fazia
presente, enquanto nos teatros modernos só se podia ver a classe alta da população.
Na educação, enquanto o homem grego era criado para servir à arte da melhor
maneira para o indivíduo, para cantar, dançar e atuar, podendo ser livre da maneira
que quisesse, o homem moderno é criado orgulhoso de sua inaptidão artística, e é
totalmente voltado para o lucro industrial.
16
Assim, Wagner irá defender que para haver uma mudança no cenário artístico
contemporâneo, uma Revolução se faz necessária: “Se a obra de arte grega sintetizava
o espírito de uma nação bela, a obra de arte do futuro tem que abarcar em si o espírito
da humanidade livre” (WAGNER, 1990, p.84). Conforme podemos depreender a partir
do trecho acima, é necessário que se crie uma nova arte, e não uma reprodução da
arte grega, não poderíamos ser gregos, pois sabemos coisas que os gregos não
sabiam, e, principalmente, sabemos os motivos de sua queda. Devemos nos identificar
com essa grande arte, e com isso, ela possa engrandecer o espírito do homem
moderno.
Onde devemos, portanto, buscar essa força, para que a Revolução se faça possível?
Devemos buscá-la na natureza “Se a cultura procedeu à negação do homem com base
na crença cristã na indignidade humana, criou ao mesmo tempo o inimigo que há de
aniquilar na exata medida em que ela não dispõe lugar para o homem. Esse inimigo é a
natureza, a única fonte perpétua de vida” (WAGNER, 1990, p. 87). A força, com que a
cultura reprime a natureza, fará com que essa a rebata com uma ainda maior, essa
será a força geradora do movimento revolucionário.
em honra dos dois mestres mais sublimes dos homens: Jesus, que sofreu pela
humanidade, e Apolo, que a ergueu ao júbilo da dignidade” (WAGNER, 1990, p 110)
artista Dioniso, está para a natureza assim como a estátua está para o artista
apolíneo” (NIETZSCHE, 2005, p.9). Ambas as forças (dionisíaca e apolínea) tiveram a
batalha vencida. Apolo pôs medida ao desmesurado Dionísio, e este, por sua vez, dava
à tragédia o enigma do mundo, a expressão direta da natureza.
O mundo olímpico dos deuses gregos não foi criado a partir de uma necessidade de
explicar a origem das coisas e do mundo, mas a partir das coisas já existentes, como
uma celebração da vida. “Elas não apresentam exigências: nelas o existente é
divinizado, seja ele bom ou mau” (NIETZSCHE, 2005, p. 15). A criação desses deuses
surgiu a partir da necessidade de viver: segundo a sabedoria do Sileno, a sabedoria
popular, explanada em “O Nascimento da Tragédia”: “O melhor, em primeiro lugar, é
não ser, em segundo lugar é morrer em breve” (NIETZSCHE, 2005, p.16). E sem o
mundo olímpico essa sabedoria seria posta em prática, porém o mundo olímpico atua
como um espelho transfigurador da realidade. “Ver sua existência, tal como ela é
inelutavelmente, em um espelho transfigurador e proteger-se com esse espelho contra
a medusa – essa foi a genial estratégia da ‘Vontade’ helênica para poder viver”
(NIETZSCHE, 2005, p.16). Pois, de que outra maneira o povo grego, com uma pré-
disposição tão forte para o sofrer, poderia viver se não vislumbrasse sua existência no
alto patamar de seu mundo olímpico? “A mesma pulsão (Trieb) que chama a arte à
vida, como o preenchimento e completude da existência seduzindo para o continuar
vivendo, deixou também que surgisse o mundo olímpico, um mundo da beleza, da
calma, do gozo” (NIETZSCHE, 2005, p.17). Nunca a Vontade se expressou tão
claramente como no povo grego, e é por esse motivo que o mundo moderno se volta
tanto a eles, nunca o homem e a arte estiveram tão intimamente unidos com a
natureza.
Como vimos acima, Nietzsche afirma que o domínio da arte apolínea é delimitado pela
visão, pelo belo e pela aparência: desse modo, ela se liga às artes plásticas (como, por
exemplo, a escultura, na qual o artista, por meio do mármore esculpido, nos guia ao
deus vivo visto por ele em sonho).
19
O livro foi escrito durante a guerra franco-prussiana, por esse motivo, para muitos
soaria um tanto quanto fútil o problema estético do que se trata frente a uma guerra,
porém, para o autor, não existe esse contraste entre a seriedade da guerra e a
discussão estética a que se propõe: para Nietzsche, a arte é mais que mera diversão
dispensável ante a seriedade da existência. Para ele, “a arte é tarefa suprema e
atividade propriamente metafísica desta vida” (NIETZSCHE, 1992, p. 23).
No primeiro capítulo do livro, podemos ver pela primeira vez a formação dos conceitos
Dionisíaco e Apolíneo, que o autor liga, à primeira vista, ao contínuo desenvolvimento
da arte tendo como dependência a duplicidade desses dois elementos, assim como o
homem e a mulher, como elementos opostos, unem-se para criar uma nova vida.
Essa visão que os gregos tinham da arte, não pôde ser formada através de conceitos
estabelecidos pelos próprios. Porém, para Nietzsche, a oposição entre esses dois
elementos está presente de maneira clara nas figuras de seu mundo dos deuses,
bastando uma mente perspicaz para notar este fato.
Ele aponta que, dos seus deuses da arte, Apolo e Dionísio, existe um contraste muito
grande entre o escultor e o desconstrutor. Ambos caminham lado a lado em discórdia,
assim a arte é o elemento que faz uma ponte entre eles, e dessa junção nasce a
tragédia.(NIETZSCHE, 1992, p. 24)
Para Nietzsche, toda a arte plástica se constitui do mundo dos sonhos, onde cada
homem é um artista, o homem de propensão filosófica considera a sua realidade como
sendo onírica, enquanto o homem de propensão artística observa o sonho, e através
do sonho interpreta a vida, ou seja, a arte plástica é originária da imagem do sonho,
através dele, o artista gera a arte como se essa fosse uma interpretação, um
espelhamento da imagem. (NIETZSCHE, 1992, p. 25)
Essa experiência onírica é expressa pelos gregos em Apolo, que tem poderes
configuradores, escultores, é o deus da verdade e reina “sobre a bela aparência do
mundo interior da fantasia”. (NIETZSCHE, 1992, p. 26) Apolo pode ser considerado
deus do principium individuationis (cf. item 5.2.1) descrito por Schopenhauer em “O
mundo como vontade e representação”, que em meio aos tormentos mundanos o
homem se encontra em seu bote sozinho, calmo e confiante.
22
parece a estátua de um deus sem cabeça” (NIETZSCHE, 1992, p.41), quer dizer que
a concepção de poesia lírica moderna é incompleta, e lhe falta a peça mais importante:
sua origem, de onde vêm todos os impulsos para a criação de suas intenções e
imagens concretas. Agora acerca do poeta lírico, podemos identificar seus processos
de criação a partir do que foi concluído acima: em um primeiro momento, enquanto
artista dionisíaco, como Uno primordial, um impulso musical (réplica desse Uno-
primordial, do que vem profundamente do interior do artista) se inicia, e é transformado
em imagem a partir da influencia apolínea, como se a música se transformasse em
imagem e a partir dessa imagem, uma cena de sonho fosse espelhada, e todo esse
processo se originou no impulso do “eu”, da subjetividade do artista.
Esse mesmo fenômeno acontece com o primeiro poeta lírico grego, Arquíloco, que ao
manifestar todo o seu amor e ao mesmo tempo ódio pelas filhas de Licambes, o autor
nos diz que podemos vê-lo em sono profundo, e que a partir da influência de Apolo,
são laçadas as imagens e poemas líricos concretos que “se chamam tragédias e
ditirambos dramáticos” (NIETZSCHE. 1992, p.41).
Fazendo uma comparação entre o artista subjetivo e objetivo, podemos concluir então
que, o artista plástico, assim como o épico em sua arte objetiva, busca puramente
contemplar as imagens mundanas e oníricas, enquanto o músico, o poeta lírico é isento
de imagens pré-concebidas, ele as cria diretamente da dor e contradição primordiais.
Ou seja, o artista plástico pode contemplar sua obra, cada um de seus menores traços
com seu imenso prazer na aparência, “as imagens do poeta lírico nada são exceto ele
mesmo e como que tão-somente objetivações diversas de si próprio” (NIETZSCHE.
1992, p.42), por esse motivo a arte lírica penetra com profundidade extrema no ser
humano, pois é a mais profunda verdade do “eu”.
Aqui encontramos um problema: se a arte subjetiva exprime o que há de mais íntimo e
profundo no artista singular, como poderia essa arte afetar o resto dos homens? Agora,
o autor nos dá a explicação: o artista vê a si mesmo, como sujeito, ou seja, como se
fosse uma terceira pessoa, todos os seus sentimentos e dores terão de se transformar
em algo concreto, para isso, é preciso transportá-las ao que ele chama de não-gênio.
Ele nos dá como exemplo, Arquíloco, que em toda sua intensidade sentimental por si
próprio, jamais poderia ser poeta, pois não poderia submeter-se a tal processo de
30
criação tão racional, porém quando já não é mais Arquíloco, se põe como um gênio
universal, o processo pode ser alcançado e junto a isso, a poesia lírica que tanto afeta
a humanidade.
Em seguida, Nietzsche se volta para a concepção schopenhaueriana do que julgou ser
o problema do poeta lírico, que acabamos de solucionar. Schopenhauer nos apresenta
uma outra solução (com a qual Nietzsche deixa bem claro que não concorda): para
Schopenhauer é a Vontade que se manifesta no ser que canta, tanto com um
sentimento de alegria ou luto porém sempre intensamente, e essa intensidade, ou
impulsão contrasta com a calma desse mesmo ser ao tomar consciência de que é
desprovido de querer. É nesse contraste entre a calma e o ímpeto que se faz a
condição lírica da canção.
Logo após apresentar o texto de Schopenhauer, Nietzsche se opõe dizendo que dessa
maneira, a lírica jamais poderia ser realizada, como se fosse um ciclo vicioso de
alternância entre o estado de pura contemplação e o querer, nunca atingindo seu
objetivo concreto, assim sendo uma semi-arte. Vai além dizendo que o indivíduo com
suas vontades egoísticas só poderia ser inimigo da arte, e não criador. O sujeito artista
é desprovido de vontade individual, ele é o gênio universal, se torna “um médium
através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra sua redenção na
aparência.” (NIETZSCHE, 1992, p. 44). Nós não podemos nos considerar criadores do
mundo da arte, nem que a arte é feita para nós mesmos, pois nós já somos aparência
artística para o verdadeiro criador desse mundo, porém toda a nossa dignidade é
expressa através de nosso mundo artístico “pois só como fenômeno estético podem a
existência e o mundo justificar-se eternamente” (NIETZSCHE, 1992, p.44). Nietzsche
faz agora, uma bela comparação entre nós seres humanos e soldados pintados em tela
representando uma batalha: nós temos tanta consciência a respeito do significado da
nossa existência, quanto esses soldados têm consciência da batalha representada,
todo nosso saber a respeito do mundo e da arte é totalmente ilusório. Apenas quando o
gênio criador da obra de arte se funde com o artista primordial de todas as coisas é que
ele toma levemente uma consciência do que é a essência da arte e do mundo.
(NIETZSCHE, 1992, p. 45)
31
O motivo pelo qual Arquíloco estaria ao lado de Homero na história da poesia grega,
era simplesmente porque foi através dele que a canção popular fora introduzida nessa
cultura. Essa canção popular seria a reunião dos elementos dionisíaco e apolíneo.
Nietzsche, porém, deixa claro que quem antes inicia as agitações para que seja criada
essa canção popular são correntes dionisíacas, e assim essas são seu “substrato e
pressuposto” (NIETZSCHE, 1992, p. 45). O que foi posto em discussão nesse
momento é o que ele quer dizer com canção popular, se estaria falando da melodia e
letra que conhecemos agora ou simplesmente dos poemas líricos melodiosos não por
possuírem notas musicais, mas por soarem melodiosamente.
Esse problema só poderá ser resolvido mais adiante, quando abordarmos mais
pormenorizadamente o conceito nietzscheano de canção popular. Em seguida,
Nietzsche (1992, p. 45) afirma que a canção popular é o espelho musical do mundo, e
a melodia é o que há de mais primordial no universo, ela que procura e dá origem a
uma aparência e assim se exprime na poesia, e a forma estrófica da canção popular se
dá ao fato desse processo se repetir sempre de novo. Por esse motivo, pode-se
encontrar um grande ímpeto irregular nessas poesias estróficas, devido ao grande
número de imagens geradas de novo e de novo, misturadas entre si, pela melodia
primordial. Essa característica abrupta e irregular da poesia lírica é condenada pelo
gênero épico, ele sendo, a partir desse ponto de vista, totalmente oposto, calmo e
regular, o reflexo do impulso apolíneo.
Podemos observar então que, na canção popular, a palavra é imitação da música, ou
seja, é a música transformada em imagem concreta. A partir desta análise podemos
observar duas correntes distintas na história da linguagem grega: quando a palavra
reflete o mundo da imagem e da aparência, e quando reflete a música. Um fenômeno
muito interessante que Nietzsche cita a respeito disso é o caso das sinfonias de
Beethoven, de como, ao ouvi-las, podemos perceber de imediato seu discurso
imagístico.
Agora o autor sugere que transportemos esse processo de criação musical ao povo
grego, à sua massa popular, a fim de investigarmos como é formada a canção estrófica
popular, e como, a partir desse princípio, a palavra e a linguagem procuram imitar
incessantemente a música. Ele faz então o seguinte questionamento: Sendo a poesia
32
não havia nada além do coro – que era uma representação da classe popular, uma
idéia um tanto quanto democrática, como se o coro representasse a moral da
democracia criticando o “os excessos e desregramentos dos reis” (NIETZSCHE, 1992,
p. 49). Para Nietzsche, essa explicação “política” do coro trágico, por mais conveniente
que seja para a modernidade, não possui nenhuma ligação sequer com a origem da
tragédia grega: a política que era feita na antiguidade ainda não sabia da possibilidade
de uma representação popular constitucional, poderiam então menos ainda colocar
essa idéia em suas tragédias.
Em seguida, Nietzsche se põe a criticar ironicamente outra concepção relativa ao coro
trágico, proposta por A. W. Schlegel: a de que o coro seria o expectador ideal da
tragédia. Ele faz uma comparação desse coro trágico, o “expectador ideal”, com o
público moderno. Tem-se em mente que o público adequado deve sempre estar
consciente de que o que vê é uma obra de arte, enquanto o coro trágico deve ver
diante de si a obra de arte como realidade viva. Até aquela tradição comentada
anteriormente, que dizia que antes da tragédia apenas havia o coro trágico, se põe
contra a concepção de Schlegel: O coro, sendo expectador, existiria sozinho?
Responde Nietzsche: “O expectador sem espetáculo é um conceito absurdo”
(NIETZSCHE, 1992, p. 50). Já a concepção proposta por Schiller parece satisfazer
mais plenamente a Nietzsche. Segundo ele, a concepção schilleriana nos daria uma
definição do coro trágico muito mais profunda que todas as anteriores: ele “é visto
como uma muralha viva que a tragédia estende à sua volta a fim de isolar-se do mundo
real e de salvaguardar para si seu chão ideal e sua liberdade poética” (NIETZSCHE,
1992, p. 51). Em suma, é aquilo que separa o expectador da obra de arte, e faz com
que essa tenha total liberdade de criação e total credibilidade.
Essa visão do coro como algo central se opõe ao naturalismo na arte, ao romance
naturalista de seus contemporâneos, a essa obsessiva crença de que quanto mais real
for a obra de arte, mais arte ela se torna, mais verdadeira é. Essa oposição se dá
justamente pelo fato do coro ser o véu que separa a arte da realidade, é o que dá
liberdade de criação do irreal ao artista. “O grego construiu para esse coro a armação
suspensa de um fingido estado natural e colocou nela fingidos seres naturais”
34
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pudemos observar que a música tem um papel central na filosofia de Nietzsche.
Para o autor, há um substrato musical-dionisíaco na tragédia, de modo que a própria
essência da tragédia é de ordem musical: tal essência deve ser interpretada
“unicamente como manifestação e configuração de estados dionisíacos, como
simbolização visível da música, como o mundo onírico de uma embriaguez dionisíaca”
(NIETZSCHE, 1992, p. 90). As influências de Schopenhauer e Wagner estão bastante
presentes no livro. Do primeiro, Nietzsche (1992, p. 97) irá assumir a visão segundo a
qual a música possuiria um caráter e origem diversos das demais artes, “porque ela
não é, como as demais, reflexo do fenômeno, porém, reflexo da vontade mesma”.
Como lemos no célebre § 52 de O mundo como vontade e como representação:
[A música] se encontra por inteiro separada de todas as demais artes.
Conhecemos nela não a cópia, a repetição no mundo de alguma Ideia
dos seres [...]. Do nosso ponto de vista, ao considerarmos o efeito
estético da música, temos de reconhecer-lhe uma significação muito
mais séria e profunda, referida à essência do mundo e de nós mesmos
[...]. A música, visto que ultrapassa as Ideias e também é
completamente independente do mundo fenomênico, ignorando-o por
inteiro, poderia em certa medida existir ainda que não houvesse mundo
– algo que não pode ser dito acerca das demais artes. De fato, a música
é uma tão IMEDIATA objetivação e cópia de toda a VONTADE, como o
mundo mesmo o é [...]. A música, portanto, de modo algum é
semelhante às outras artes, ou seja, cópia de Ideias, mas CÓPIA DA
VONTADE MESMA, cuja objetidade também são as Ideias. Justamente
por isso o efeito da música é tão mais poderoso e penetrante que o das
outras artes, já que estas falam apenas de sombras, enquanto aquela
fala da essência (SCHOPENHAUER, 2005, p. 336-39).
De Wagner, temos a ideia de que a música deve ser medida segundo princípios
estéticos completamente diferentes daqueles das artes figurativas (NIETZSCHE, 1992,
p. 98). Além disso, no livro A arte e a revolução, publicado em 1849, Wagner (1990, p.
36
37) já defendia a tese de que o drama grego seria a mais elevada expressão artística
concebível, ao passo que a ópera de seu tempo era duramente criticada como um
mero simulacro daquele:
Estamos de fato longe de poder reconhecer na arte dos nossos teatros
públicos a verdadeira arte dramática, a obra única, indivisível e
grandiosa do espírito humano. O nosso teatro limita-se a fornecer um
espaço complicado para uma apresentação atraente de fatos cênicos
isolados, superficialmente interligados, defeituosamente artísticos ou,
para ser mais exato, artificiosos. A própria separação em dois gêneros,
o dramático e a ópera, que subtrai ao drama a expressão idealizante da
música e retira em absoluto à ópera o núcleo verdadeiramente
dramático e intencional, mostra bem a incapacidade em que se
encontra a arte cênica dos nossos dias para efetuar a unificação dos
diversos ramos estéticos numa expressão mais elevada e mais perfeita,
ou seja, na verdadeira arte dramática” (WAGNER, 1990, p. 61).
É justamente na “obra de arte total” wagneriana que Nietzsche (1992, p. 120) irá
encontrar os primeiros indícios de um renascimento da tragédia no âmbito da cultura
alemã. Diferentemente do que ocorria na ópera tradicional, em que a música era vista
como serva da palavra, em Wagner a música se via restituída de sua verdadeira
dignidade, a saber, a de ser “o espelho dionisíaco do mundo”. Assim, o livro “O
Nascimento da Tragédia” pode ser lido também como uma refinada justificativa teórica
para a nova forma de fazer arte proposta por Richard Wagner.
37
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS