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228 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Práticas de saúde e modelo de atenção


no âmbito do Núcleo de Apoio à Saúde da
Família em Salvador (BA)
Health practices and healthcare model in the scope of the Family
Health Support Center in Salvador (BA)

Vladimir Andrei Rodrigues Arce1, Carmen Fontes Teixeira2

RESUMO Buscou-se analisar a organização tecnológica do processo de trabalho dos profis-


sionais que atuam no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf ) em Salvador (BA), de modo
a verificar a possível contribuição desta proposta à mudança do modelo de atenção à saúde.
Trata-se de pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso. Verificou-se que os profissionais
buscam realizar um cuidado ampliado aos usuários, porém, prevalece uma organização do
processo de trabalho fundamentada na atenção clínica individualizada, com algumas ações de
cunho preventivo, coadunando os modelos da Clínica Ampliada e Sanitarista. Faz-se necessá-
ria a apropriação de instrumentos de trabalho que permitam a compreensão das necessidades
sociais da população, com vistas à integralidade da atenção.

PALAVRAS-CHAVE Saúde da família. Atenção Primária à Saúde. Prática de saúde pública.


Política de saúde. Serviços de saúde.

ABSTRACT The aim of this article was to analyze the technological organization of the work
process of the professionals working in the Family Health Suppport Center (Nasf ) in Salvador
(BA), in order to verify the possible contribution of this proposal to the change in the health
attention model. This is a qualitative research, of case study type. It was verified that profes-
1 Universidade Federal da sionals seek to carry out an extended care to the users, however, the individualized clinical at-
Bahia (UFBA), Instituto tention prevails in the work process organization, with some preventive actions, corroborating
de Ciências da Saúde
(ICS), Departamento de the Broadened and Sanitary Clinic models. It is necessary the appropriation of labor instruments
Fonoaudiologia e Instituto that allow the understanding of the population social needs, with a view to the integrality of the
de Saúde Coletiva (ISC),
Programa de Pós- healthcare.
Graduação em Saúde
Coletiva – Salvador (BA),
Brasil. KEYWORDS Family health. Primary Health Care. Public health practice. Health policy. Health
vladimir.arce@ufba.br services.
2 Universidade Federal da

Bahia (UFBA), Instituto


de Humanidades, Artes
e Ciências (IHAC) e
Instituto de Saúde Coletiva
(ISC), Programa de Pós-
Graduação em Saúde
Coletiva – Salvador (BA),
Brasil.
carment@ufba.br

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. ESPECIAL 3, P. 228-240, SET 2017 DOI: 10.1590/0103-11042017S317
Práticas de saúde e modelo de atenção no âmbito do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Salvador (BA) 229

Introdução devem ser compreendidas como processo


de trabalho, não podendo ser reduzidas a
A implantação dos Núcleos de Apoio à Saúde seus aspectos técnicos, mas como conjuntos
da Família (Nasf ) representa uma inova- estruturados de práticas sociais, históricas
ção organizacional no âmbito da Atenção (MENDES-GONÇALVES, 1988, 1992), que resultam da ar-
Primária à Saúde (APS), no Sistema Único de ticulação dos diferentes componentes, quais
Saúde (SUS), e tem por objetivo contribuir sejam: o objeto, os instrumentos ou meios uti-
para a integralidade da atenção à saúde da lizados no trabalho, a finalidade das ativida-
população coberta pela Estratégia Saúde da des, a necessidade que orienta o trabalho e as
Família (ESF). Deste modo, espera-se que as relações sociais estabelecidas neste processo
equipes multiprofissionais que atuam nestes (MENDES-GONÇALVES, 1992), através das quais seus
núcleos organizem seus processos de traba- agentes articulam sua prática à totalidade
lho a partir da realidade socioeconômica e social (PEDUZZI, 2003).
epidemiológica dos territórios, não enfocan- Nessa perspectiva, o presente trabalho tem
do apenas as ações clínicas individuais, mas como objetivo analisar a organização tecnoló-
também a articulação dos serviços de saúde gica do processo de trabalho dos profissionais
e demais equipamentos sociais, identifican- que atuam no Nasf em Salvador (BA), de modo
do prioridades, prevenindo riscos e promo- a verificar a possível contribuição desta propos-
vendo saúde (BRASIL, 2012, 2009). ta à mudança do modelo de atenção à saúde.
Dado o pouco tempo de implantação dos
Nasf, poucas são as evidências científicas
acerca dos efeitos destes núcleos sobre o Metodologia
perfil de oferta da rede básica. Entretanto,
não é raro perceber a reprodução de práti- Trata-se de pesquisa qualitativa do tipo
cas profissionais reduzidas a seus aspectos estudo de caso (YIN, 2005) sobre o proces-
técnicos e descontextualizadas, geralmente so de trabalho dos profissionais dos Nasf
orientadas pelo conhecimento específico de Salvador (BA). Em 2015, o município
das especialidades, sobretudo relacionadas a dispunha de 11 equipes Nasf, sendo duas
ações de tratamento ou reabilitação (ARAÚJO; delas registradas no Cadastro Nacional
GALIMBERTTI, 2013; COSTA ET AL., 2013; LEITE; ANDRADE; BOSI, de Estabelecimentos de Saúde (CNES) há
2013; RODRIGUES; BOSI, 2014; SOUSA; OLIVEIRA; COSTA, 2015). menos de um ano da realização da pes-
Logo, identifica-se uma tendência ao privi- quisa, que dão apoio a aproximadamente
légio de práticas clínicas, em detrimento das 100 Equipes de Saúde da Família (EqSF).
ações de promoção da saúde e prevenção de Compõem estas equipes profissionais de
riscos e agravos, que continuariam, portanto, educação física, fisioterapia, nutrição, psico-
subalternas ao modelo médico hegemônico logia, serviço social e terapia ocupacional.
(TEIXEIRA; VILASBÔAS, 2014). A definição dos sujeitos da pesquisa foi
Considerando que a mudança desse feita com a utilização da técnica Snow Ball,
modelo implica na reorientação das práti- sendo consideradas as indicações da área
cas profissionais, é importante analisar as técnica responsável pelos Nasf na Secretaria
práticas de saúde desenvolvidas pelos pro- Municipal de Saúde (SMS) do município,
fissionais dos Nasf, buscando entender as po- de docentes da Universidade Federal da
tencialidades e os limites das mesmas para o Bahia que desenvolveram estágios com estas
apoio à reorientação do modelo de atenção à equipes, e dos próprios profissionais inicial-
saúde, em suas várias dimensões – gerencial, mente indicados. Utilizou-se como critérios
organizativa e técnico-assistencial (TEIXEIRA, de inclusão: a) profissionais considerados re-
2006). Ressalta-se que as práticas de saúde ferências em suas equipes por se destacarem

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no processo de implantação e desenvolvimen- impressões subjetivas relevantes para a pes-


to do Nasf, de forma geral; b) profissionais quisa. O material obtido foi submetido à
que atuavam há aproximadamente um ano análise de conteúdo (BAUER, 2002), de modo a
na mesma equipe Nasf; e c) profissionais de contemplar a caracterização das ‘práticas de
equipes cadastradas há pelo menos um ano no saúde/processo de trabalho dos profissionais
CNES. Estes dois últimos critérios buscaram do NASF’, especificamente seus elementos
favorecer a escolha de profissionais capazes estruturais – ‘objeto, atividades, instrumentos
de reconhecer as principais características do de trabalho, finalidades, necessidades e rela-
cotidiano do trabalho das equipes. Buscou-se ções sociais’ –, de acordo com o referencial
garantir ao menos um representante de cada teórico adotado (MENDES-GONÇALVES, 1992, 1988). A
categoria profissional que compunha o Nasf partir destes dados, foi possível realizar uma
em Salvador (BA), e ao menos um profissio- análise comparativa entre as práticas iden-
nal de cada equipe, o que permitiu a seleção e tificadas com os modelos hegemônicos e as
inclusão de 12 profissionais de 9 equipes Nasf. propostas alternativas descritas na literatura
Para a produção dos dados, foram reali- (quadro 1), de modo a verificar se está ocor-
zadas entrevistas semiestruturadas com os rendo, na realidade estudada, um ‘processo
sujeitos, e também foi elaborado um diário de mudança ou conservação do modelo de
de campo para o registro de situações e atenção à saúde’ no âmbito do Nasf.

Quadro 1. Características dos modelos hegemônicos e das propostas de mudança na organização da atenção à saúde no SUS

Modelos de atenção Principais características


Hegemônicos Modelo médico- Fundamenta-se na clínica e na medicina científica, centrando-se na figura do
-assistencial hospita- médico; Atuação com foco na doença e nos doentes, na perspectiva individual;
locêntrico Hospital e rede de serviços privados como principais lócus de organização;
Instrumentos de trabalho centrados na tecnologia médica.
Sanitarista Subalterno ao modelo médico-assistencial hospitalocêntrico;
Foco nas campanhas sanitárias e na elaboração e implantação dos programas
especiais verticais de controle de doenças e outros agravos, o que influencia o
surgimento de sistemas de vigilância em saúde;
Os sujeitos das práticas são os sanitaristas;
O objeto central da atuação está nos modelos de transmissão das doenças,
com especial foco nos fatores de risco;
Instrumentos de trabalho são centrados na tecnologia sanitária, a exemplo de
ações de educação em saúde, controle de vetores e imunização.
Propostas Distritos sanitários Estratégia de reorganização dos serviços na perspectiva sistêmica;
alternativas Ênfase na delimitação dos territórios/áreas de abrangência da rede de serviços
e na articulação dos diversos níveis de complexidade;
Foco no perfil da demanda e nas necessidades de saúde da população;
Articula instrumentos advindos da geografia crítica, da epidemiologia e do
enfoque situacional de planejamento.
Oferta organizada/ Foco na reorganização do processo de trabalho e do processo de produção de
ações programáticas serviços desenvolvido em uma unidade de saúde, visando superar a lógica da
de saúde demanda espontânea;
A programação em saúde busca articular diversas ofertas vinculadas ao aten-
dimento das necessidades e dos problemas específicos da população, incorpo-
rando uma lógica epidemiológica e social.

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Quadro 1. (cont.)
Propostas Vigilância da Saúde Incorpora experiências de distritos sanitários e o debate da promoção da saúde e da
alternativas determinação social do processo saúde-doença em coletividades humanas;
Integralidade da atenção, articulando práticas de controle dos determinantes,
riscos e agravos à saúde, por meio de práticas de promoção, prevenção e assis-
tência;
O objeto do trabalho se refere aos problemas de saúde;
Tem como instrumentos de trabalho as abordagens participativas de planeja-
mento, sobretudo aquelas com enfoque estratégico-situacional, além de tecno-
logias médicas, sanitárias e de comunicação social;
Apoia-se na ação intersetorial, utilizando o conceito epidemiológico de risco e
intervindo sob a forma de operações.
Acolhimento Preocupação com a gestão e a organização do trabalho no âmbito das unidades
de saúde;
Foco no acolhimento e no estabelecimento de vínculos entre profissionais e
população;
Base do modelo em defesa da vida;
Foco na humanização e na melhoria da qualidade da atenção
Clínica Ampliada Impulsionada pela proposta do acolhimento;
Constituída nos pressupostos das equipes de referência, no apoio matricial e na
elaboração de Projeto Terapêutico Singular (PTS), visando ajudar trabalhadores
e usuários a lidarem com a complexidade dos sujeitos e a multiplicidade dos
problemas de saúde.
Saúde da Família Articulação de elementos provindos de vários movimentos ideológicos, incorporan-
do propostas alternativas, tais como a Vigilância da Saúde e o acolhimento;
Torna-se estratégia de mudança do modelo de atenção à saúde no SUS,
buscando-se cobertura universal e reorganização do processo de trabalho em
saúde da atenção básica, além de buscar promover mudanças nos demais
níveis de atenção do sistema.
Fonte: Elaborado a partir de Teixeira e Vilasbôas (2014).

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de ou estavam cursando pós-graduação em área
Ética em Pesquisa, do Hospital Universitário correlata ao campo da saúde coletiva, sendo
Professor Edgar Santos da Universidade que apenas um profissional possuía mes-
Federal da Bahia (Hupes/UFBA), sob o trado na área e 16% tinham especialização
número 473.854/2013, seguindo as diretrizes voltada para atuação clínica.
da Resolução nº 466, de 2012, do Conselho
Nacional de Saúde. Atividades e instrumentos de traba-
lho no Nasf

Resultados As ‘atividades clínicas voltadas para os usu-


ários’ foram as mais citadas, observando-se
A idade média dos sujeitos da pesquisa, a o predomínio de atendimentos clínicos de
maioria mulheres, era de 32 anos, variando curta duração, compartilhados principal-
de 26 a 39, com tempo médio de formação mente com outros profissionais do Nasf e,
igual a 8,3 anos, variando entre 4 e 16 anos. em menor expressão, com profissionais das
A média de tempo em que trabalhavam em EqSF, além de atendimentos em grupo e
suas equipes foi equivalente a dois anos. Do visitas domiciliares. Constatou-se, porém,
total, 58% se formaram em universidades uma grande dificuldade dos profissionais
públicas e 75% não fizeram estágio na ESF para dar continuidade aos processos te-
durante a graduação. Ainda, 58% possuíam rapêuticos iniciados, por não possuírem

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estrutura física adequada nem agenda espe- a articulação com escolas, por meio do de-
cífica de atendimento, além da baixa adesão senvolvimento de ações preventivas junto ao
das EqSF a essas atividades. Programa Saúde na Escola (PSE). Também
Também é significativa a realização de ‘ati- foram relatadas visitas a serviços de saúde
vidades educativas de prevenção’, sobretudo especializados para encaminhamento de usu-
em grupos conduzidos pelas EqSF (controle ários e, de maneira bastante incipiente, visitas
do tabagismo, hiperdia, grupo de idosos e a demais equipamentos sociais ou contato
gestantes), bem como em grupos organiza- com lideranças comunitárias.
dos pelo próprio Nasf (grupo de atividades Em relação aos ‘instrumentos de trabalho’
físicas, controle da obesidade e saúde mental) utilizados nas atividades do Nasf, a maioria
ou atividades pontuais (salas de espera, feiras dos entrevistados referiu-se a instrumentos
de saúde e campanhas sanitárias promovidas imateriais, a exemplo da capacidade comuni-
pela SMS). Estas são orientadas principal- cacional criativa e proativa que o profissional
mente pela agenda programática dos serviços deve ter para desenvolver seu trabalho em
e pelo perfil do profissional. equipe, de maneira flexível, comprometi-
Também são desenvolvidas ‘atividades de da e participativa, valorizando o diálogo e a
apoio às EqSF’, prioritariamente em reuni- criação de vínculos, sendo capaz de resolver
ões para discussão de casos, capacitação em conflitos e de lidar com imprevistos de forma
relação a temáticas específicas e organização planejada. Referem também a importância da
do processo de trabalho das EqSF. Nota-se, ampliação do olhar sobre o cuidado à popula-
principalmente, neste contexto, o propósito ção, inserindo novas abordagens e metodolo-
da instrumentalização dos profissionais em gias de trabalho na relação com os usuários,
relação às questões técnicas do cuidado. como a terapia comunitária e práticas inte-
As ‘atividades de planejamento, gestão, ca- grativas, sobretudo voltadas para o acolhi-
pacitação e organização do trabalho da equipe mento humanizado e para a valorização da
Nasf’ foram relatadas por oito entrevistados, subjetividade. A capacidade crítica de articu-
sendo que estas atividades acontecem, em lação política foi apontada como necessária
sua maioria, durante as reuniões semanais ao trabalho por apenas dois entrevistados.
da equipe Nasf para planejamento das ações Os instrumentos materiais referidos
a serem propostas às EqSF, embora também incluem o uso de formulários e prontu-
sirvam, de maneira assistemática e menos ex- ários para o registro dos Planejamentos
pressiva, para confeccionar material informa- Terapêuticos Singulares (PTS), livros-ata
tivo, bem como sistematizar informações em para o registro das atividades coletivas e a
saúde. Ademais, são realizadas discussões de comunicação entre profissionais, e lista de
casos entre os profissionais do Nasf, que se ca- critérios para a definição de atendimentos
pacitam não apenas em relação a determina- individuais, bem como materiais necessários
dos agravos à saúde, mas, também, acerca do à operacionalização de atividades educativas
próprio trabalho. Um entrevistado afirmou com os usuários (audiovisuais e de escritório).
que tais atividades representam um espaço
também de avaliação permanente do traba- Objetos e necessidades
lho. Foram citadas, ainda, reuniões com áreas
técnicas da SMS, reuniões gerais das unida- Em relação aos ‘objetos’, é possível verificar
des de saúde onde estão lotados e atividades maior enfoque das ações sobre o indivíduo
pontuais de apoio aos gestores locais. e a doença, ainda que de forma ampliada,
As ‘atividades de articulação da rede de ou seja, considerando a subjetividade e o
saúde/território’ foram as menos citadas contexto familiar e social em que os usuá-
pelos entrevistados, sendo a principal delas rios vivem. Em menor escala, foi possível

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perceber que o trabalho das EqSF também trabalho do Nasf foram agrupadas em quatro
se configura como um dos objetos de traba- eixos. As ‘relações com a gestão’ prevalece-
lho do Nasf, na medida em que ampliá-lo, ram no discurso de todos os entrevistados,
qualificá-lo e transformá-lo são propósitos com grande referência à situação precária
assumidos por seis entrevistados. As ‘con- em que se encontra a ESF no município,
dições de vida da população’ também são que é percebida pelos profissionais como
consideradas objetos sobre os quais atuam burocratizada, desestruturada e negligen-
os profissionais, porém, de forma assistemá- ciada pelo poder público. Para os entrevis-
tica e pontual. E, por fim, os ‘modos de ado- tados, esta situação interfere nas condições
ecimento’ e ‘fatores de risco’ são apontados de trabalho, que são agravadas pela falta de
por metade dos entrevistados como focos do uma política de gestão do trabalho e pela in-
trabalho do Nasf, abordados a partir de prá- suficiência de uma rede de atenção à saúde
ticas de prevenção de doenças voltadas para para dar suporte à APS. Já o vínculo de tra-
a mudança de comportamento da população. balho estável e a existência de uma técnica
Já em relação às ‘necessidades que orien- de referência para o Nasf no município que
tam o trabalho dos profissionais’, os entrevis- compreende e apoia, em alguma medida, o
tados fazem referência às condições de vida e trabalho dos profissionais, ainda que com
trabalho da população, o que inclui questões pouca governabilidade no âmbito da gestão,
de acesso a moradia, educação de qualidade, foram considerados fatores positivos.
lazer, saneamento e emprego, entre outros, As ‘relações com as EqSF’ também foram
ou seja, necessidades sociais determinantes bastante citadas pelos entrevistados. Todos
da saúde. Sete dos entrevistados apontam a referiram que vem ocorrendo uma melhora
necessidade de maior acesso da população a neste aspecto desde que os Nasf foram rees-
profissionais e serviços de saúde, consideran- truturados com a chegada dos novos servido-
do a elevada demanda por atendimentos es- res, embora conflitos e tensionamentos sigam
pecializados, que são pouco estruturados na existindo, pois há uma tendência à desres-
rede de atenção à saúde do município. ponsabilização da EqSF pelo andamento dos
casos, quando acionam o Nasf, o que ocorre
Finalidades frequentemente de maneira improvisada.
Para os entrevistados, as EqSF são instigadas
A finalidade do trabalho do Nasf, segundo os a mudarem suas práticas centradas no atendi-
entrevistados, é a “transformação das práticas mento ambulatorial, o que incomoda e afasta
de saúde dos profissionais das EqSF, de forma algumas equipes. Neste contexto, dois en-
a provocar mudanças no modelo de atenção”. trevistados demonstraram o incômodo de se
Neste sentido, consideram que o modo como sentirem dependentes das equipes, uma vez
as EqSF organizam seu trabalho não está de que o trabalho do Nasf demanda necessaria-
acordo com o propósito central da ESF, por mente uma articulação com a EqSF.
ser focado no atendimento ambulatorial in- De forma geral, os profissionais do Nasf
dividual, com pouca ação interdisciplinar, se sentem subutilizados, tendo que, a todo
sendo as ações coletivas de prevenção e pro- momento, convencer as equipes a buscá-los
moção da saúde negligenciadas no cotidiano, para construírem ações em conjunto, o que
ou resumidas à execução das ações previstas gera desânimo e, até mesmo, sofrimento.
em programas verticais. Todos os núcleos buscaram construir víncu-
los com as EqSF, a partir do acolhimento ou
Relações sociais mesmo do atendimento ambulatorial a casos
que eram encaminhados ou demandados, de
As relações estabelecidas no cotidiano do forma a abrir possibilidades de diálogo entre

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as equipes, o que acabou dando maior centrali- Discussão


dade à prática voltada para o indivíduo e para os
agravos/doenças. Percebe-se maior vinculação Considerando-se que as práticas de saúde não
aos enfermeiros e aos Agentes Comunitários de devem se limitar às características técnicas,
Saúde (ACS), e menor aos médicos, sobretudo nota-se um movimento dos profissionais do
por estes rodiziarem bastante no serviço, oca- Nasf para reforçar a ampliação destas práticas
sionando menor disponibilidade para a prática no sentido da construção de um cuidado am-
em conjunto com o Nasf. As relações desiguais pliado aos usuários dos diferentes territórios
de poder também foram citadas por quatro en- estudados. Entretanto, este movimento não
trevistados, sendo que a desvalorização do ACS demonstra ser suficiente para afirmar uma
ou as disputas entre profissões que compõem nova socialidade no âmbito da ESF baseada na
as EqSF foram citadas como complicadores do efetiva integralidade da atenção e na atuação
estabelecimento de uma melhor articulação de sobre os problemas de saúde, uma vez que o
trabalho com o Nasf. olhar sobre o indivíduo tende a prevalecer em
As ‘relações estabelecidas entre os pro- relação ao olhar sobre o coletivo.
fissionais do Nasf’, por sua vez, foram Essa questão tem seu início na constata-
consideradas positivas pela maioria dos en- ção do perfil dos profissionais que partici-
trevistados, havendo o estabelecimento de param da pesquisa, pois embora tenham, em
parcerias interdisciplinares de forma efetiva, geral, pouco tempo de formados, a maioria
horizontal e coesa em diferentes atividades. não vivenciou a ESF durante a graduação,
O perfil dos profissionais foi considerado um evidenciando que a formação generalista,
potencial para o desenvolvimento da propos- integrada ao sistema de saúde e interdisci-
ta, uma vez que a grande maioria apresenta plinar, ainda segue sendo um desafio para o
disponibilidade para o trabalho, ainda que a SUS (VENDRUSCOLO; PRADO; KLEBA, 2014). De toda
formação específica para isto seja incipiente. forma, a busca individual por qualificação em
A relação efetiva entre as diferentes equipes cursos de pós-graduação em Saúde Coletiva
Nasf do município possibilitou a criação de demonstra a disponibilidade destes profissio-
um movimento político a favor da capacitação nais para este trabalho em especial.
para o trabalho, o que levou à constituição da Em relação às ‘práticas de saúde/processo
comissão de educação permanente do Nasf, de trabalho dos profissionais do Nasf’, o pre-
propiciando a articulação entre as equipes e domínio de atividades de cunho clínico-assis-
a socialização de ideias, ações e dúvidas, pro- tencial evidencia o peso que é dado à clínica,
cesso que avançou para o questionamento da aos diferentes agravos/doenças e aos sujeitos
situação de precarização da saúde em todo o adoecidos. Esta questão também pode ser per-
município, com intensa participação no movi- cebida nas ações técnico-pedagógicas junto às
mento de greve dos servidores municipais da EqSF, quando há uma centralidade no conhe-
saúde ocorrida em 2015. cimento específico para a instrumentalização
Por fim, quanto às ‘relações do Nasf dos profissionais em relação às questões téc-
com a população’, além de terem sido as nicas do cuidado, o que tem limitado o desen-
menos citadas, apresentaram variações volvimento de outras práticas, tais como a de
entre as equipes. Metade dos entrevista- promoção da saúde e a de vigilância da saúde,
dos afirmou que “a população não com- como demonstrado em outros estudos (ARAÚJO;
preende o que é o Nasf ”, e frequentemente GALIMBERTTI, 2013; COSTA ET AL., 2013; RODRIGUES; BOSI,
“cobra abertura de agenda para atendimen- 2014) e evidenciado, também, nesta pesquisa.
tos ambulatoriais”. Apenas dois entrevis- O principal objeto de trabalho do Nasf em
tados afirmaram que há uma boa inserção Salvador (BA), que se refere aos indivíduos e
do Nasf na comunidade. às doenças/agravos à saúde contextualizados

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nas relações familiares e sociais, evidencia um como objetos do trabalho de forma assiste-
cuidado clínico que perpassa, sobretudo, pela mática e pontual, ainda que sejam percebi-
valorização do sujeito, da singularidade e das das como necessidades da população. Desta
relações imbricadas em seu processo de ado- forma, verifica-se que as práticas de preven-
ecimento, corroborando Cunha (2005), e pelo ção ora desenvolvidas tendem a responder
compartilhamento do conhecimento e pelo principalmente às propostas verticais de
estabelecimento de vínculos, de forma que educação em saúde, por vezes independentes
os usuários possam lidar melhor com suas da análise de situação de saúde do território,
questões, ou mesmo resolvê-las, reforçando o que também foi observado por Costa et al.
a perspectiva de cuidado humanizado e am- (2013). Com isto, de forma geral, reforça-se
pliado, conforme defende Ayres (2004). uma perspectiva tradicional de educação
A constatação de que há um predomínio em saúde, centrada no conteúdo, ainda que
de instrumentos imateriais sobre os materiais algumas propostas com caráter emancipató-
reforça a perspectiva de construção dessa rio possam ser percebidas em menor grau.
nova abordagem clínica na ESF. Entretanto, há Isso evidencia uma possível contradição
pouca referência ao uso de novas tecnologias do trabalho, já que, embora os profissionais
imateriais de planejamento, de intervenções afirmem perceber a magnitude das necessi-
clínicas ou mesmo de comunicação social, ou dades sociais que incidem sobre a saúde da
seja, o trabalho aparenta estar sendo desen- população, não demonstram enfrentá-las sis-
volvido de forma intuitiva, baseado na relação tematicamente no âmbito do território, oca-
subjetiva e nas características pessoais dos sionando a construção de um olhar ampliado
profissionais, o que pode limitar o alcance das para os indivíduos e agravos à saúde, sem que,
práticas desenvolvidas, devendo ser objeto de necessariamente, os determinantes deste
capacitação para a qualificação do trabalho. processo e os impactos sobre o coletivo sejam
Ao se constatar que o Nasf também possui, concretizados como objetos do trabalho.
como objeto de trabalho, os modos de ado- Reforça esta ideia a constatação de que parte
ecimento e fatores de risco, reconhece-se a das necessidades da população identificada
busca por uma ampliação da prática, para pelos profissionais se refere ao acesso a tra-
além da clínica, o que ocorre por meio de prá- tamentos ou serviços de referência em outros
ticas educativas, que demandam os principais níveis de atenção, o que evidencia a falta de
instrumentos materiais usados no trabalho. uma rede estruturada de atenção à saúde para
Entretanto, a pouca realização de práticas de dar suporte à grande demanda da população,
promoção da saúde evidencia a fragilidade da sendo a articulação desta rede um papel de-
articulação com demais equipamentos sociais sempenhado de maneira precária pelos profis-
do território, ou mesmo com as lideranças sionais, ainda que esta coordenação seja uma
comunitárias, reforçando o lugar de margina- função da APS, conforme apontam Rodrigues
lidade da promoção da saúde na APS, sendo et al. (2014). Esta fragilidade da rede interfere
esta uma das limitações da ESF para dar conta diretamente no trabalho do Nasf, na medida
de reorientar o modelo de atenção à saúde em que exerce pressão para uma ênfase maior
(TEIXEIRA, 2006). na dimensão clínico-assistencial.
Essa questão é ainda mais notória quando O fato de a atuação das EqSF também ser
a capacidade crítica de articulação política do identificada como um dos objetos de trabalho
profissional no âmbito da saúde é apontada do Nasf demonstra o quão estratégico este
como necessária por poucos profissionais, núcleo pode ser nas propostas de qualificação
bem como quando as condições de vida e tra- da ESF, podendo ser um instrumento mobi-
balho da população, que deveriam ser objeto lizador e provocador de mudanças, uma vez
central do trabalho na ESF, configuram-se que sua característica pressupõe a inserção

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de novas rotinas no cotidiano das EqSF, ainda destes profissionais para o trabalho, corro-
que encontre resistências, como foi observado borando a ideia de que o maior desafio para o
neste estudo. Neste sentido, verifica-se que o SUS é o político (PAIM ET AL., 2011), dificultando o
trabalho no Nasf, enquanto política pública, papel de reorientação do modelo de atenção à
possui uma dimensão gerencial importante, saúde que se espera da ESF.
sendo que práticas de planejamento e gestão do Os problemas na relação com as EqSF
próprio trabalho são recorrentes e necessárias persistem, em menor grau, ainda hoje em
para a operacionalização do apoio às equipes, algumas realidades locais, e estão diretamen-
o que inclui ações voltadas para a capacitação. te ligados ao fato de o Nasf não aceitar suprir a
Essa dimensão demonstra ser essencial demanda de atendimentos clínicos ambulato-
para a definição e a articulação de todas as riais solicitada pelas EqSF, o que também foi
demais atividades realizadas pela equipe. constatado por Lancman et al. (2013). As con-
Entretanto, faz-se necessário que as práticas cessões feitas de modo a lidar com os tensio-
de planejamento e gestão sejam mais bem es- namentos iniciais e construir algum vínculo
truturadas no âmbito do Nasf, como também com as EqSF acabaram por tornar esta prática
apontam Araújo e Galimbertti (2013), devendo central no trabalho, o que precisa ser revisto.
ser parte essencial do processo de trabalho, Além disto, o fato de a construção destas prá-
e não apenas vivenciadas de forma impro- ticas clínicas ocorrerem sem a efetiva adesão
visada ou intuitiva, o que deverá favorecer a das EqSF, e também sem a disponibilidade de
democratização e a redução da alienação no recursos materiais específicos para interven-
trabalho, de forma a mobilizar as vontades ções de ordem clínica, ainda que diferenciada,
de diferentes atores, conforme aponta Paim sinaliza o risco de estarem sendo construí-
(2006), de forma estratégica e participativa, o das práticas simplificadas de cuidado, que
que é frágil na realidade observada. são reforçadas pelas dificuldades apontadas
Diante desse contexto, é interessante notar pelos profissionais em dar seguimento aos
que há uma preocupação dos profissionais do casos abordados, o que poderia reforçar uma
Nasf em promover mudanças nas práticas das perspectiva reducionista de extensão de co-
EqSF, que são entendidas como fragmentadas bertura de serviços básicos de APS, como
e centradas no modelo médico hegemônico. caracteriza Paim (2012), o que precisa ser mais
Este dado demonstra que os profissionais bem analisado.
do Nasf avaliam que as EqSF não cumprem De toda forma, o fato de o Nasf não ceder
com seu papel de ampliação da APS, o que à lógica do encaminhamento e atendimento
frequentemente ocasiona tensionamentos ambulatorial tradicional evidencia que há,
entre as equipes, ainda que diversas parcerias ainda que de maneira incipiente, uma dife-
ocorram, evidenciando a complexidade que renciação em relação às propostas de trabalho
marca as relações sociais estabelecidas na re- dessas equipes, nas quais o Nasf ocupa e sus-
alidade estudada. tenta o lugar de crítica e de mudança, refor-
A começar pela relação com a gestão, há çando a potencialidade desta proposta para
um entendimento comum a todos os entre- a qualificação da ESF no município. Porém,
vistados de que o Nasf ocupa um lugar de não percebe-se que há uma relação desigual entre
prioridade no âmbito da gestão municipal, essas equipes, sendo o Nasf colocado em um
por não haver uma política clara de incentivo lugar de subordinação, tendo que, a todo
ao seu pleno funcionamento. Esta realidade se momento, convencê-las a aderirem ao traba-
estende à ESF como um todo, que conta com lho, o que gera desgaste e desânimo em alguns
baixa cobertura populacional e pouco investi- profissionais.
mento político e financeiro, o que tem afetado O fato de as relações profissionais serem
também a disponibilidade e a motivação mais profícuas com enfermeiros e ACS, e

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Práticas de saúde e modelo de atenção no âmbito do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Salvador (BA) 237

menos com médicos, demonstra que ainda que evidencia os desafios que devem ser en-
há um distanciamento do médico em relação frentados pelos profissionais, gestores e pela
às propostas de trabalho em equipe na APS, própria população, que dizem respeito, sobre-
também observado por Costa et al. (2013), tudo, a um maior envolvimento dos usuários
tornado ainda mais difícil pelas situações de na construção, na efetivação e na avaliação
alta rotatividade deste profissional nos ser- das políticas de APS.
viços. Este é um importante desafio a ser en- Diante desses achados, verifica-se a exis-
frentado, uma vez que o médico segue sendo tência de um processo contraditório na rea-
o elemento central do processo assistencial lidade estudada, uma vez que as práticas de
em saúde no nível institucional (PIRES, 2000). saúde dos profissionais do Nasf tendem a con-
Entretanto, a recente renovação de muitos cretizar a perspectiva da Clínica Ampliada,
profissionais das EqSF tem sido considerada ao mesmo tempo em que reproduzem ativi-
uma potencialidade do momento atual da dades características do modelo Sanitarista.
ESF em Salvador (BA), onde novos arranjos Ou seja, ao mesmo tempo em que buscam
e pactuações se tornaram possíveis devido a superar as práticas clínicas biomédicas das
uma maior motivação para o trabalho destes EqSF, buscam extrapolar o âmbito da clínica
novos profissionais. por meio de práticas centradas na prevenção
A boa relação estabelecida entre os profis- dos problemas que são objetos de programas
sionais que atuam no Nasf evidencia a poten- prioritários, porém ainda majoritariamente
cialidade desta proposta para a efetivação da de forma pouco integrada à análise da situ-
interdisciplinaridade, o que representa um ação de saúde dos territórios. Deste modo,
avanço para o trabalho na APS. Entretanto, avançam, por um lado, na implementação de
faz-se necessário ampliar esta questão em uma proposta de mudança, ao mesmo tempo
direção às EqSF, o que foi observado também em que reforçam a conservação do modelo de
por Gonçalves et al. (2015), considerando-se o atenção hegemônico.
risco de haver um processo de autonomização Essa situação é fortemente influenciada
da equipe, que pode gerar a fragmentação do pelo contexto técnico e político no qual o
trabalho e um maior distanciamento entre as Nasf está inserido, enquanto parte da política
equipes. Ainda sobre este aspecto, cabe re- de atenção básica, mas sua gênese também
gistrar que o movimento de articulação dos reside na dificuldade de articular práticas
profissionais de todas as equipes de Salvador profissionais historicamente voltadas para a
(BA) tem permitido não apenas as trocas de clínica e para o conhecimento especializado.
experiências de trabalho como também a Ressalta-se que a fragilidade do processo de
construção de um sujeito coletivo, que vem construção da integralidade da atenção faz
desenvolvendo ações que explicitam e defen- com que propostas cunhadas sob o olhar epi-
dem os interesses coletivos, o que também demiológico – como é o caso da Vigilância da
tem possibilitado a construção de um pro- Saúde (Visau) – sejam pouco fomentadas, o
cesso de trabalho relativamente homogêneo que é evidenciado na incipiência de ações de
entre as equipes, ainda que com algumas dife- vigilância e de promoção da saúde no âmbito
renças, ao contrário do que foi observado por do Nasf. Neste sentido, faz-se necessário que
Leite, Nascimento e Oliveira (2014). os propósitos do trabalho do Nasf sejam mais
A fragilidade da relação do Nasf com a bem definidos e assumidos pela gestão, uma
população, por sua vez, acaba limitando a vez que a Visau seja o modelo de atenção as-
prática de ações individuais, ou grupais, de sumido pelo município como orientador da
forma pontual, enfraquecendo a possibilida- reorganização da APS e do SUS, o que pode
de de esta relação constituir uma estratégia gerar convergências e contradições que preci-
política de melhoria da atenção à saúde, o sam ser analisadas em novas pesquisas.

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Assim, a situação do Nasf em Salvador (BA) mas ainda se faz necessário que os processos
evidencia as lacunas que devem ser enfrenta- de trabalho do próprio Nasf sejam mais bem
das nos campos da formação e do trabalho em estruturados, com definições de finalidades,
saúde, que vão desde a qualificação técnica atividades e instrumentos de trabalho coe-
para o trabalho cotidiano até o aprimora- rentes com um objeto ampliado, para além
mento do processo de gestão da proposta. do indivíduo e da doença, o que deve ocorrer
Entretanto, é principalmente a capacidade de de forma atrelada à ESF em geral.
ação política dos sujeitos envolvidos na cons- De todo modo, a presença de uma pro-
trução cotidiana destes núcleos que deve ser posta tensionadora do modelo hegemôni-
estrategicamente fortalecida, sobretudo em co, que persiste mesmo na ESF, representa
contextos atuais de fragilização das políticas uma janela de oportunidade a ser cada vez
públicas em geral, e da saúde, em particular, mais explorada, de forma que a sensibilida-
o que torna permanentemente necessário o de para as questões sociais demonstrada no
debate sobre as práticas de saúde e os modelos cotidiano do trabalho se traduza em ações
de atenção. planejadas e executadas por esses profis-
sionais na perspectiva da integralidade da
atenção. Esta questão requer, além de po-
Considerações finais líticas de capacitação da força de trabalho
que ora atua nesses núcleos, investimento
Os achados deste estudo evidenciam que o político e financeiro na proposta, além de
processo de trabalho dos profissionais do maior compromisso das instituições forma-
Nasf ainda está em construção e amadure- doras com a mudança no desenvolvimento
cimento, havendo características por vezes dos profissionais de saúde, para que não se
contraditórias no que diz respeito à sua capa- corra o risco de que esta proposta se torne a
cidade de contribuir para a reorientação do expressão de uma contrarreforma no cerne
modelo de atenção à saúde. Assim, reconhe- da APS, sobretudo em contextos onde a ESF
ce-se a potencialidade do Nasf em provocar esteja fragilizada, como é o caso da realida-
mudanças no processo de trabalho das EqSF, de estudada. s

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Práticas de saúde e modelo de atenção no âmbito do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Salvador (BA) 239

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SOUSA, D.; OLIVEIRA, I. F.; COSTA, A. L. F. Entre


Recebido para publicação em março de 2017
o especialismo e o apoio: psicólogos no Núcleo Versão final em agosto de 2017
Conflito de interesses: inexistente
de Apoio à Saúde da Família. Psicologia USP, São
Suporte financeiro: apoio financeiro para transcrição das
Paulo, v. 26, n. 3, p. 474-83, 2015. Disponível em: entrevistas: Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS/
ISC/UFBA) – Chamada MCTI / CNPq / CT-Saúde / MS / SCTIE/
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