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Mendes dos
Mendes
Santos
dos Santos
EDIL SILVA COSTA
LICENCIATURA EM LETRAS,
LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
EDUNEB
Salvador
2014
© UNEB 2014
Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida ou gravada, por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros,
sem a prévia autorização, por escrito, da Coordenação UAB/UNEB.
Depósito Legal na Biblioteca Nacional
Impresso no Brasil 2014
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DIRETORA
Maria Nadja Nunes Bittencourt
COORDENADOR EDITORIAL
Ricardo Baroud
COORDENAÇÃO UAB/UNEB
COLABORADORES REVISÃO
SUPERVISÃO DE MATERIAL DIDÁTICO Nayara Sena
Girlene Nunes Teixeira
Tiago da Silva Alves ELABORAÇÃO
Edil Silva Costa
PROJETO GRÁFICO e CRIAÇÃO
NORMALIZAÇÃO
João Victor Souza Dourado
Carla Honorato
Carla Cristiani Honorato de Souza
DIAGRAMAÇÃO
Joatan Balbino de Oliveira
REVISOR EAD
Jeudy Aragão Hosana Iracema Freitas de Jesus
O conteúdo deste Material Didático é de inteira responsabilidade do(s)/da(s) autores (as), por cuja criação assume(m) ampla
e total responsabilidade quanto a titularidade, originalidade do conteúdo intelectual produzido, uso de citações de obras
consultadas, referências, imagens e outros elementos que façam parte desta publicação.
Estamos começando uma nova etapa de trabalho e para auxiliá-lo no desenvolvimento da sua aprendizagem
estruturamos este material didático que atenderá ao Curso de Licenciatura na modalidade de Educação a Distância
(EaD).
O componente curricular que agora lhe apresentamos foi preparado por profissionais habilitados, especialistas
da área, pesquisadores, docentes que tiveram a preocupação em alinhar o conhecimento teórico e prático de
maneira contextualizada, fazendo uso de uma linguagem motivacional, capaz de aprofundar o conhecimento
prévio dos envolvidos com a disciplina em questão. Cabe salientar, porém, que esse não deve ser o único material
a ser utilizado na disciplina, além dele, o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), as atividades propostas pelo
Professor Formador e pelo Tutor, as atividades complementares, os horários destinados aos estudos individuais,
tudo isso somado compõe os estudos relacionados à EaD.
É importante também que vocês estejam sempe atentos às caixas de diálogos e ícones específicos que
aparecem durante todo o texto apresentando informações complementares ao conteúdo. A ideia é mediar junto
ao leitor, uma forma de dialogar questões para o aprofundamento dos assuntos, a fim de que o mesmo se torne
interlocutor ativo desse material.
VOCÊ SABIA?
– convida o leitor a conhecer outros aspectos daquele tema/
conteúdo. São curiosidades ou informações relevantes que podem ser associadas à discussão proposta.
SAIBA MAIS
– apresenta notas, textos para aprofundamento de assuntos
diversos e desenvolvimento da argumentação, conceitos, fatos, biografias, enfim, elementos que o auxiliam a
compreender melhor o conteúdo abordado.
INDICAÇÃO DE LEITURA
– neste campo, você encontrará sugestões de livros, sites,
vídeos. A partir deles, você poderá aprofundar seu estudo, conhecer melhor determinadas perspectivas teóricas
ou outros olhares e interpretações sobre determinado tema.
SUGESTÃO DE ATIVIDADE
– consiste num conjunto de atividades para você realizar
autonomamente em seu processo de autoestudo. Estas atividades podem (ou não) ser aproveitadas pelo professor-
formador como instrumentos de avaliação, mas o objetivo principal é o de provocá-lo, desafiá-lo em seu processo
de autoaprendizagem.
Sua postura será essencial para o aproveitamento completo desta disciplina. Contamos com seu empenho e
entusiasmo para juntos desenvolvermos uma prática pedagógica significativa.
ÁREA DE AMBIENTAÇÃO
Dados Pessoais
Nome:
Telefones: E-mail:
Residência:
Município/Pólo do curso EaD:
Dados do Curso
Identificação da Turma
Prezado(a) Cursista,
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
1.1 O QUE É LITERATURA ORAL?
1.2 CULTURA POPULAR
1.3 CULTURA DE MASSA
1.4 GÊNEROS E FORMAS DA LITERATURA ORAL
2. CAPÍTULO I - LITERATURA DE CORDEL
2.1 UM POUCO DE HISTÓRIA
2.2 O CORDEL NO BRASIL
2.3 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E RECEPÇÃO
2.3.1 O cordel e as narrativas orais
2.4 O CORDEL NA CONTEMPORANEIDADE
3. CAPÍTULO II - O CONTO POPULAR
3.1 AS NARRATIVAS ORAIS: CONTOS, CAUSOS, LENDAS
3.2 TEORIAS DE GÊNESIS DO CONTO
3.3 TIPOLOGIA DOS CONTOS
3.3.1 Contos de encantamento
3.3.2 Contos de exemplo
3.3.3 Contos religiosos
3.3.4 Outros tipos
4. CAPÍTULO III – O ROMANCE TRADICIONAL
4.1 DEFINIÇÃO E ORIGENS DO ROMANCEIRO
4.2 TIPOS DE ROMANCES
4.3 O ROMANCEIRO NO BRASIL
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
GLOSSÁRIO
REFERÊNCIAS
ANOTAÇÕES
10 LICENCIATURAEM
LICENCIATURA EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD
INTRODUÇÃO
EaD
EaD UNIVERSIDADE
UNIVERSIDADE DO
DO ESTADO
ESTADO DA
DA BAHIA
BAHIA
ANOTAÇÕES
12 LICENCIATURA
12 LICENCIATURA EM
LICENCIATURAEM LETRAS:
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
EMHISTÓRIA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD
SAIBA MAIS
INDICAÇÃO DE LEITURA
1.2 CULTURA POPULAR E FOLCLORE
1.3 CULTURA DE MASSA E INDÚSTRIA CULTURAL No mundo contemporâneo, com o avanço das
novas tecnologias, as formas de reprodução e difusão
Enquanto que a cultura tradicional é marcada pela das produções artísticas e culturais se ampliaram e
conservação e repetição do já dito e conhecido pela diversificaram. As sociedades, mesmo as de caráter
comunidade de seu entorno, a cultura de massa, embora mais tradicionais que se mantiveram por mais tempo
também seja a repetição de uma fórmula pré-aprovada, isoladas e com contato mais restrito com os meios de
caminha no sentido da inovação, do criar algo novo e comunicação de massa, tem acesso ao rádio, a televisão,
descartável para o rápido consumo e realimentação de a internet. Esse contato facilita e intensifica as trocas
um mercado cultural. culturais. Desse modo, a cultura de massa e a cultura
tradicional muitas vezes se entrelaçam.
FIG. 4 – A transformação da cultura popular em espetáculo muda Muito provavelmente os acalantos ou cantigas de
suas formas de produção e recepção. ninar são os primeiros textos orais que conhecemos.
Fonte: http://www.morguefile.com/ Cantados de forma suave são canções que servem para
archive#/?q=file0002100084501. Acesso em 20 fev. 2013. acalmar e embalar o sono de crianças.
Que no Brasil, por causa do processo de Tente lembrar as brincadeiras de sua infância ou
colonização, muitos dos acalantos foram cantados das cantigas que já ouviu e/ou cantou. Exercite sua
por negras amas de leite que cuidavam de crianças memória e socialize com seus colegas, trocando
brancas? Por isso os temas das canções fazem informações e listando exemplos de seu contato
referência a essa situação ou trazem palavras de com a literatura oral.
dialetos africanos.
As parlendas são textos em verso, ritmados e muitas
vezes com rimas. Servem para exercitar a memória e
treinar a dicção. Por exemplo:
INDICAÇÃO DE LEITURA Hoje é domingo pé de cachimbo
Cachimbo de ouro
Que dá no besouro
Para saber mais sobre acalantos e a contribuição Besouro valente
africana recomenda-se o artigo As vozes do saber, Que dá no tenente
da Profa. Dra. Yeda Pessoa de Castro, publicado Tenente mofino
na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Que dá no menino...
Bahia v. 103 (jan-dez) 2008. Salvador: IGHB, 2008.
Disponível em: http://www.ighb.org.br/wp-content/
Semelhantes às parlendas são os trava-línguas,
uploads/2012/03/103-2008.pdf. Acessado em 23
formas curtas que aglutinam palavras e funcionam como
de março de 2013.
desafios. Objetivam também, além do divertimento,
melhorar a dicção. Exemplo de trava-língua:
Cantigas de roda são textos que podem estar Num ninho de magarfagarfos,
presentes em momentos de trabalho ou de lazer. Podem Cinco magarfagarfinhos há.
ser brincadeiras infantis cantadas por um grupo que, de Quem desmargafagar meu magarfagarfinho
mãos dadas, interagem. Na brincadeira, os participantes
vão alternando sua posição na roda: ora no centro, ora Bom desmagarfagador será.
fora dela. A brincadeira de roda pode também ter um
enredo dramatizado com as crianças assumindo papeis As adivinhas são jogos também conhecidos como
pré-determinados. “perguntas”. A partir da fórmula “o que é, o que é?” e
utilizando figuras de linguagem e duplo sentido, consiste
em um desafio de resolução de enigmas. Exemplos:
As cantigas de roda de estrutura aberta são utilizadas
também como cantos de trabalho quando um grupo
executa algum tipo de tarefa coletiva como raspagem O que é, o que é?
de mandioca em casas de farinha, lavagem de roupa ou De dia estão unidos e à noite estão brigados?
colheita. São chamadas abertas porque sua estrutura é (resposta: os colchetes)
composta de refrão e quadrinhas variadas: o grupo canta
a refrão e os demais, cada um a sua vez, vão “tirando O que é, o que é?
versos”. Cai em pé e corre deitado?
(resposta: chuva)
INDICAÇÃO DE LEITURA SAIBA MAIS
Uma importante publicação sobre adivinhas nos Segundo o Prof. Manuel Viegas Guerreiro, a
países de língua portuguesa (Angola, Cabo Verde, expressão “literatura oral” é contraditória, pois o
Brasil, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São vocábulo “literatura”, littera, é a mensagem expressa
Tomé e Príncipe e Timor-Leste) é a coletânea da em palavra escrita, representada por letras. Apesar
professora Amélia Mingas: das controvérsias, é aceita hoje para designar as
MINGAS, Amélia Arlete (org.). Cole(c)tâneas de produções poéticas produzidas e transmitidas
literatura oral de/em língua portuguesa: advinhas. oralmente. No entanto, o medievalista Paul Zumthor
Angola: Instituto Internacional de Língua Portuguesa, e seus seguidores preferem o termo “poesia oral”.
2010.
As anedotas são narrativas curtas com fim humorístico No próximo capítulo veremos a Literatura de Cordel,
ou moralizante. São semelhantes aos contos ou causos uma das formas de produção popular mais representativa
que veremos mais adiante, às vezes até se confundindo da nossa cultura e que desper ta o interesse de
com eles. Alguns fragmentos de contos podem até serem pesquisadores do Brasil e do exterior. Embora impressos,
narrados como anedotas. O que difere as anedotas dos os folhetos de cordel fazem parte da literatura oral, como
outros tipos de narrativas é que sua estrutura é mais veremos adiante.
sintética, com uma única sequencia temática.
INDICAÇÃO DE LEITURA
ANOTAÇÕES
ANOTAÇÕES
20 LICENCIATURA
20 LICENCIATURAEM
EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD
LITERATURA DE CORDEL
CAPÍTULO 1
EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
ANOTAÇÕES
22 LICENCIATURA
22 LICENCIATURAEM
EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD
ainda no século XIX e primeiras décadas do século XX. Uma das formas mais comuns de estrofe é a quadra,
Empreendedor, Leandro Gomes de Barros foi poeta, autor ou seja, estrofes de quatro versos, geralmente, de sete
de inúmeros folhetos, editor, além de responsável pela sílabas. Hoje a quadra é pouco utilizada no cordel, sendo
comercialização de folhetos em João Pessoa Guarabira mais comum nas cantigas, nas emboladas e outras
e em diversos Estados do Nordeste. No entanto, as formas de poesia popular. Pode-se rimar apenas dois dos
primeiras tipografias eram no Recife. quatro versos ou rimar todos os versos alternadamente,
como no exemplo de Zé da Luz (s.d.):
No Brasil, os folhetos são escritos geralmente em
versos. As formas mais comuns são a sextilhas (estrofes E nesta constante lida
de seis versos), as septilhas (sete versos) ou décimas Na luta de vida e morte
(dez versos). A métrica mais usada é a redondilha maior, O sertão é a própria vida
ou seja, versos de sete sílabas. O exemplo abaixo é um Do sertanejo do Norte
fragmento da História da Donzela Teodora, de Leandro
Gomes de Barros (1965):
A sextilha, como já se disse, é a forma mais utilizada.
Trata-se de estrofe de seis versos de sete sílabas,
Eis a real descrição rimando o segundo, o quarto e o sexto. É também
Da história da donzela adotado pelos cantadores. Um exemplo de sextilha é
Dos sábios que ela venceu do famoso folheto “O cavalo que defecava dinheiro”, de
E aposta ganha por ela Leandro Gomes de Barros (s.d.):
Tirado tudo direito
Na cidade de Macaé
Da história grande dela.
Antigamente existia
Um duque velho invejoso
Que nada o satisfazia
VOCÊ SABIA? Desejava possuir
Todo objeto que via
Que para se saber a métrica dos versos, conta-se Menos comum é a septilha ou estrofe de sete versos.
até última sílaba tônica? Assim: O poeta Apolônio Alves dos Santos usa a septinha no
Eis a real descrição (eis-a-re-al-des-cri-ção) folheto A Discussão do Carioca com o Pau-de-Arara do
Da história da donzela (da-his-tó-ria-da-don-zé) qual foram retirados os versos abaixo:
Dos sábios que ela venceu (dos-sa-bios-que-‘la-
ven-ceu) Já que sou simples poeta
E aposta ganha por ela (e’a-pos-ta-ga-nha-por-é) poesia é meu escudo
Etc. com ela é que me defendo
Desse modo, sabemos que se trata de versos já que não tive outro estudo
redondilhos de sete sílabas. vou mostrar para o leitor
que o poeta escritor
vive pesquisando tudo
Os versos são agrupados em estrofes. A seguir
veremos outros exemplos de estrofação e métrica
também usados, tanto na poesia popular quanto na
produção literária escrita e canônica.
As décimas são estrofes de dez versos de sete sílabas. Eu cantando a Galope ninguém me humilha,
São também muito usadas por repentistas e em desafios.
Tudo que existe no mar eu aproveito,
Por serem estrofes mais longas também apresentam
Na ilha, no cabo, península, estreito,
um grau de dificuldade maior o que favorece ao poeta
demostrar suas habilidades e fôlego. Nas cantorias, as Estreito, península, no cabo, na ilha,
décimas desenvolvem motes. Leandro Gomes de Barros Em navio, em proa, em bússola e milha!
utiliza décimas no seu poema épico de cavalaria do ciclo Medindo a distância para viajar,
carolíngio “A batalha de Oliveiros com Ferrabraz”: Não quero, da rota, jamais me afastar,
Porque me afastando o destino saí torto;
Eram doze cavalheiros Confio em Deus avistar o meu porto,
Homens muito valorosos Cantando Galope na beira do mar!
Destemidos, corajosos
Entre todos os Guerreiros
Como bem fosse Oliveiros
VOCÊ SABIA?
um dos pares de fiança
Que sua perseverança
Venceu todos os infiéis
Eram uns leões cruéis Que o galope à beira mar foi criado pelo repentista
Os doze pares de França. cearense José Pretinho? Conta-se que José Pretinho,
envergonhado após perder um desafio em martelo
agalopado, retirou-se à beira-mar e ficou ouvindo o
barulho das ondas. Imaginou o som de um galope
Quando a estrofe é de dez versos de dez sílabas e assim ele criou o galope à beira mar, com versos
chama-se “martelo agalopado”, uma das modalidades de onze sílabas e mesma estrutura de décima e
mais antigas na literatura de cordel. O exemplo a seguir esquema rímico do martelo agalopado.
é da Canção Agalopada, de Zé Ramalho (1981):
SAIBA MAIS
Rimas consoantes:
As que se conformam inteiramente no som desde
a vogal ou ditongo do acento tônico até a última letra
ou fonema. Exemplo: fecundo e mundo; amigo e
contigo; doce e fosse; pálido e válido; moita e afoita.
Rimas toantes:
Aquelas em que só há identidade de sons nas
vogais, a começar das vogais ou ditongos que levam
o acento tônico, ou, algumas vezes, só nas vogais
ou ditongos da sílaba tônica. Exemplo: fuso e veludo;
cálida e lágrima;
FIG. 7- Luiz Gonzaga, um dos ícones da cultura nordestina.
Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/Literatura_de_ Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Luiz-Gonzaga-
cordel#M.C3.A9trica_e_Rima.Acesso em 07 mar. Est%C3%A1tua-de-bronze.jpg. Acesso em 11 mar. 2013
2013.
Alguns poetas se destacam na arte dos folhetos no
século XX, dentre eles estão Leandro Gomes de Barros,
João Melquíades da Silva, José Martins de Athayde,
Há muita rigidez formal na literatura de cordel, pois é
Manoel Camilo dos Santos, José Costa Leite e Antônio
considerado um bom poeta aquele que segue um padrão,
Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do
mantendo do início ao fim do folheto coerência nas
Assaré. Vamos agora conhecer um pouco sobre esses
rimas e na métrica. Os versos que escapam ao esquema
poetas.
métrico proposto são chamados de “pé quebrado”. Em
um desafio, por exemplo, o cordelista perde pontos na
competição se não seguir o padrão pré-estabelecido. Leandro Gomes de Barros nasceu em Pombal (PB)
em 1865 e morreu em Recife em 04 de março de 1918. É
considerado pioneiro na arte do cordel no Brasil. Sua obra
reúne cerca de 240 folhetos. Também conhecido como
“o primeiro sem segundo”, teve sua obra apropriada por
escritores como Ariano Suassuna que usa o argumento
do folheto “O cavalo que defecava dinheiro” em sua
mais importante obra, o Auto da Compadecida. Leandro
se destaca como editor, pois em 1906 ele compra uma
pequena gráfica e passa e editar seus próprios textos,
mas também de outros cordelistas. Entre as suas obras
mais importantes, pode-se citar: “O cavalo que estercava
dinheiro”, “História de Juvenal e o Dragão”, “História do
pavão Misterioso”, “Batalha de Oliveiros com Ferrabrás” empreendedor e, em 1942, instalou em Guarabira uma
e “Suspiros de um Sertanejo”. pequena tipografia de nome “Tipografia e Folhetaria
Santos”. O negócio progrediu, o poeta transfere-se para
Campina Grande, na época uma cidade promissora, a
SAIBA MAIS tipografia se modernizou e passou a chamar “A Estrella
da Poesia”, uma das mais impor tantes tipografias
especializada em cordel no Brasil. É dele o famoso folheto
Viagem a São Saruê e O Sabido sem estudo.
Leandro Gomes de Barros se destacou na história
do cordel no Brasil porque foi o primeiro a escrever
e editar versos, vivendo exclusivamente desta arte. José Costa Leite, nascido em 1927 em Sapé, Paraíba,
Publicou mais de mil folhetos e é até hoje um dos além de cordelista, é também um grande xilogravurista.
poetas mais lidos no Brasil. Começou a escrever versos ainda muito jovem. Na
década de 1940 faz as primeiras xilogravuras para ilustrar
seus próprios folhetos. São seus O rapaz que virou bode
e a Peleja de Costa Leite e a poetisa baiana. Escreveu
João Melquíades Ferreira da Silva (1869-1933) é muitos folhetos de picardia ou de safadeza como por
outro paraibano. Nasceu em Bananeiras e faleceu em exemplo A mulher da coisa grande e A pulga na camisola,
João Pessoa e é considerado um dos grandes poetas preferindo assinar estes com pseudônimos. Em 2006
da primeira geração da literatura de cordel. Foi soldado recebeu o título de Patrimônio vivo de Pernambuco.
do exército, participando da campanha de Canudos em
1897. Fixou residência em João Pessoa em 1904, mas
Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido
ficou conhecido como “cantor da Borborema” por causa
como Patativa do Assaré (1909- 2002) foi um poeta,
de sua estreita relação com o mundo rural paraibano.
compositor e cantor do Cariri cearense. Destaca-se
Publicou diversos folhetos, dentre os quais pode-se
por se consagrar como poeta e conseguir publicar sua
destacar História do Valente Sertanejo Zé Garcia, Peleja
obra em livro, além de ter suas composições gravadas
de Joaquim Jaqueira com João Melquíades e o famoso
por artistas como Luís Gonzaga e Fagner. Publicou
Romance do Pavão Misterioso cuja autoria é disputada
seu primeiro livro, Inspiração Nordestina, em 1956, no
com José Camelo de Melo Rezende.
entanto, sua obra mais conhecida é Cante lá que eu canto
cá, publicada em 1978. Foi reconhecido nacionalmente,
João Martins de Athayde (1880-1959) nasceu em sendo nomeado por cinco vezes Doutor Honoris Causa.
Ingá (PB) e morreu no Recife. Foi também poeta e editor Seu poema A Triste Partida foi musicado e tornou-se um
da primeira geração. Como Leandro Gomes de Barros e grande sucesso na voz de Luís Gonzaga.
Manuel Camilo dos Santos, foi proprietário de uma editora
especializada em cordel, e desse modo pode contribuir
para a divulgação da literatura de cordel produzida no
Brasil no século XX. Inovou usando fotografias de artista
de cinema nas capas dos folhetos. Como editor, comprou
da viúva de Leandro Gomes de Barros os direitos da
obra que passou a publicar com seu nome, criando uma
confusão de autoria de dezenas de folhetos.
Na Bahia destacamos ainda dois cordelistas: Cuíca Franklin Machado ou Maxado Nordestino (1943) é
de Santo Amaro e Rodolfo Coelho Cavalcante: baiano de Feira de Santana, jornalista e advogado. Além
de editor e proprietário da Editora Codecri (RJ), é também
José Gomes era o nome de batismo do poeta popular xilogravurista e autor de livros sobre o cordel. Sua obra
e cronista do cotidiano conhecido como Cuíca de Santo acentua uma veia cômica e jornalística, abordando
Amaro. Cuíca viveu em Salvador, Bahia, dos anos 40 assuntos sociais e políticos. Alguns de seus folhetos que
aos 60 e sua atuação como agitador e uma espécie de demostram isso são Eu quero ser madamo e casar com
repórter do cotidiano da cidade, inspirou Jorge Amado feminista, Debate de Lampião com uma turista americana
em dois de seus romances. Seus versos eram vistos e A madame sulista que foi no mangue baiano, dentre
como perigo para os poderosos, pois muitas vezes se outros. Sobre cordel, escreveu O que é literatura de
propunham a revelar segredos escandalosos. Do mesmo cordel e O cordel televisivo – futuro, presente e passado
modo criticava as pessoas comuns e as hipocrisias da literatura de cordel, ambos editados pela Codecri.
da sociedade. Vendia seus folhetos na parte baixa do
Elevador Lacerda, próximo ao Mercado Modelo e foi João Antônio de Barros ou Jotabarros, como é mais
assim que ganhou a vida por cerca de vinte anos. conhecido, nasceu em Glória do Goitá, Pernambuco,
em 1973 e morreu em São Paulo em 2009. Foi
Enquanto Cuíca de Santo Amaro ficava na Cidade poeta e repentista, mas consagrou-se na ar te da
Baixa, Rodolfo Coelho Cavalcante (1919- 1987) xilogravura e, como poucos, Jotabarros conseguiu
ocupava a Praça Municipal, na saída do Elevador Lacerda. viver exclusivamente de sua obra. Entre seus folhetos,
destaca-se A metamorfose é só em São Paulo e Bebê
Nascido em Alagoas, Rodolfo Coelho Cavalcante diabo apareceu em São Paulo. Um tema recorrente em
chegou a Salvador em 1945, onde se fixou como seus folhetos é do nordestino como ele exilado na cidade
cordelista e editor de folhetos. Era um líder e fundou grande.
A voz do trovador, O trovador e Brasil poético, órgãos
do movimento trovadoresco. Em 1955, realizou, com
Manuel d'Almeida Filho, o I Congresso Nacional de
Trovadores e Violeiros, ocasião em que foi fundada a INDICAÇÃO DE LEITURA
Associação Nacional de Trovadores e Violeiros. Sua
obra, extensa e de temas variados, teve alguns títulos
publicados pela Editora Luzeiro. Dentre seus folhetos
mais conhecidos estão A chegada de Lampião no céu, Para conhecer mais cordelistas, recomenda-se a
ABC dos namorados, História do Príncipe Formoso, A leitura do dicionário:
moça que bateu na mãe e virou cachorra. ALMEIDA, Átila Augusto F. & SOBRINHO, José
Alves. Dicionário bio-bibliográfico de repentistas
e poetas de bancada. João Pessoa: Editora
Universitária, 1978.
INDICAÇÃO DE LEITURA
Tidas hoje como um ícone da cultura popular e O folheto de autor desconhecido A lamentável
valorizada no mercado de arte, a xilogravura surgiu morte de Getúlio Vargas, publicado no mesmo dia do
como uma espécie de “quebra-galho” para substituir suicídio do ex-presidente, vendeu 70.000 exemplares
as “capas cegas” (sem ilustração). em 48 horas.
Os folhetos estavam presentes nos serões para 2.3.1 O Cordel e as narrativas orais
a leitura coletiva nos tempos em que o índice de
analfabetismo no Brasil era enorme. O sujeito que
sabia ler recitava os versos para outros tantos, muitos O poeta popular é conhecedor de um vasto repertório
analfabetos e que conheciam a literatura através da voz que envolve tanto a literatura oral, quanto a escrita e a
do outro. Possuir os livretos era também motivo de cultura de massa. Como todo artista, seu texto é uma
orgulho entre os sertanejos por representar um símbolo síntese comunicativa dos textos dos quais ele lança mão
da cultura letrada. para compor sua obra. Dentre os textos que fazem parte
do repertório desses poetas temos a Bíblia, o Lunário – Ora menino, diga que quer ser na velhice porque nós já
Perpétuo, almanaques, livros de História e Geografia. estamo tudo de bom. Aí ele, dormindo, no outro dia, tornaram
a fazer esta pergunta. Ele disse assim:
Todos esses textos contribuem com informações que
– Eu quero na velhice.
serão matéria prima a ser versificada. Além desses textos
Manheceu o dia, ele saiu pra ir procurar as coisa. Ver as
escritos, os contos orais e os romances tradicionais
roça, fazenda, ver uns animais, essas coisa. Nisso chegou
oferecem temas variados que irão reaparecer nos um dos empregados, disse assim:
folhetos. – Ói patrão, tem uma fazendo do senhor pegando fogo.
Ele correu e foi. Tava tudo acabado. Quando ele vai
Sempre houve, desde as primeiras manifestações chegando em casa, vem um senhor, diz assim:
do cordel, uma estreita relação com a tradição oral. – Oh, seu João, morreram uns bois.
Muitos motivos e temas da oralidade são aproveitados – Quê?! Meus bois morreram? Por quê?
pelos poetas populares, assim como textos orais são – Morreu, não sei, mas morreu.
recriados nos livretos de cordel. Já na Península Ibérica, E foi indo, foi indo, menos de uns quinze dias, tava tudo
os pliegos sueltos divulgaram romances tradicionais acabado. Ela estava grávida. Teve esta uma criança, um dos
meninos. Ela cortando o que podia, já estava meia pobre,
como o Gerineldo e A penitência do rei Rodrigo. Do procurando assim, ele disse:
mesmo modo, folhetos são recontados em verso ou
– Eu vou deixar esse menino crescer que é pra nós se
prosificados por narradores que, por esquecimento ou mudar daqui. Como é que nós vamos ficar num lugar desse
comodidade, se apegam ao enredo e preferem contar a com esse povo todo... empregados meus tão indo me ajudar
história sem a versificação. a viver? Como é que eu viver? Tá vendo? Foi aquele maldito
daquele sonho!
Seja a partir de versões escritas ou da oralidade,
Aí a mulher dando todo apoio a ele, as empregado, todo
as narrativas vão sendo incorporadas, absorvidas e
mundo saiu. O menino já crescido, ela panhava e ia lavar
reelaboradas pelos poetas que transpõem em versos roupa. Quando ela está lavando roupa ali, cai o menino dentro
muitos textos da tradição oral popular. d’água e morre. E sai chorando e diz ao marido:
– Ai! Nosso filho pequeno morreu!
Folhetos de encantamento são contos de encantamento Ele fez o enterro, disse:
recontados em versos. Veremos mais detalhadamente – É, não tá dando mais pra eu ficar aqui não, de jeito
nenhum. Eu vou ver se vendo essa casa e mais essas
este assunto quando tratarmos do conto popular. Por
bobagezinha pra sair.
outro lado, também os folhetos de cordel podem sofrer
Ele não tinha costume de estar naqueles trabalhos braçal
um processo de prosificação e se tornarem contos assim, não é? Ela disse:
populares. É o que acontece com o folheto História – Eu vou lavar logo as roupas todas porque nós vamos
do Capitão do Navio de Silvino Pirauá de Lima (s.d.) e ver pra onde é que nós vamos.
a História de João Peregrino, narrada por Dona Carlo Aí quando ele está lavando, chega um escalerzinho de
Couto Farias: navio, pegou ela, botou dentro do escaler e ela gritando:
– Não! Eu tenho marido! Eu tenho gente! Não me leve!
Não me leve! Meu marido vai ... não posso! Não quero ir!
Aí pegaram, botaram naquele navio, botaram na borda do
A História de João Perigrino navio, prisioneira porque ela não aceitou nenhum daqueles
(o capitão do navio) homens. O Capitão disse:
– Você vai ficar prisioneira, só vai sair daí quando você
Diz que era um homem, casado, vivia muito bem, quiser ser minha.
tinha fazendas, tinha gado, tinha muitas coisas. Mas, ele – Mas antes vocês me jogarem logo aqui nesse alto mar,
estava dormindo um dia, a mulher viu ele estar se batendo: mas eu não quero.
– Ora, eu não quero ir! Quando o marido chega, nada de encontrar com os filho.
– O que foi? Chegou em casa, os filhos disse:
– Olhe, uma voz que está aqui me dizendo se eu quero – Mamãe não veio. Tava lavando, não sei pra onde ela
ser feliz agora na mocidade ou quero ser feliz na velhice. foi, já fui lá e ela não está.
A mulher, na inocência, disse assim: Aí ele disse assim:
– A coisa não tá boa. Vou-me embora. Nós vamos somente pra servir ao rei nas horas porque ele estava
embora porque aquela voz é uma voz maldita e eu vou acamado. Levou muitos anos. E aquele navio que saiu, que
terminar ficando sozinho. estava com a mulher dele, estava passando de portos em
Aí saíram. Ele pegou os dois e foram, fizeram viage. portos, passava anos em um canto, anos em outro, não
Fizeram viage, mas a viagem muito distante, ele não sabe? Ela ali prisioneira. O capitão sempre está fazendo
encontrava abrigo, um lugar pra ficar assim. Andando, aquela proposta a ela pra ver se ela queria, ela não aceitava.
andando, andando, andando... Quando chegou em um lugar, Quando chegou nessa ocasião, chegou naquele navio,
ele tinha uma alimentaçãozinha pra fazer com os dois filho, naquele porto, mas ele não mostrou o rei aquela criatura. O
ele aparou num lugar que tinha um lago. Ele disse para um navio fez o que tinha que fazer, saía novamente. E ele nada
dos meninos: de mostrar. Os rapazes, os filhos dele, foram criados no
mato, depois deram em outra cidade, chegou dezoito anos,
– Olhe, tem este lago, eu vou atravessar seu irmão, você
foram servir o exército. Nesse meio tempo, o rei morre,
sente aqui, não saia, eu vou atravessar seu outro irmão no
mas quando morreu, passou o reinado pra ele, não sabe?
outro lado.
Ele ficou sendo o rei. Depois de muitos anos, aparece lá um
Aí foi atravessar. Botou nas costa e foi nadando nos soldado que estava servindo o exército. Isso já tinha passado
lugares que podia nadar, no lugar que dava pra ele andar, dezoito anos. Ele estava sentado no navio, os dois menino,
ele andava com o menino nas costa. Chegou lá no outro contando. Um virava pro outro, disse assim:
lado, disse assim:
– Mas menino, eu estou aqui, tou me lembrando da
– Olhe, fique aí sentadinho que eu vou buscar seu outro minha vida. Eu já fui uma pessoa que tive dinheiro. Eu me
irmão que eu deixei lá sentado. lembro, quando eu era menino, meu pai tinha até boi, tinha
Quando ele voltou cá, não encontrou. Saiu por ali, isso, tinha aquilo...
chamou, chamou: – Meu pai também.
– Meu filho! Fulano! Venha cá, fulano! Aí, o que ele contava, o outro também... aí se abraçaram
Andou um pedaço, disse: e ela está ali na borda observando. Aí quando eles se
– Eu vou ver o outro. abraçaram que começaram a contar...
Quando ele chegou no outro lado, não encontrou o outro. – E minha mãe morreu afogada.
Ficou ele sozinho. Andou que foi horror. Andou, andou, Ela aí:
andou... nada de encontrar. Aí ele já chegou neste lugar, onde – Psiu! Psiu! Psiu!
ele encontrou um comércio grande, depois de muito tempo,
– Ih, tem uma pessoa que ouviu a nossa conversa. Nós
ele chegou em um lugar. Disse:
vamos ser preso.
– Eu vou até varrer rua, sabe? Qualquer trabalho. Tra-
Aí ele saltou pra poder contar aquilo ao rei, aí contou
balho em qualquer coisa. Eu sou uma pessoa de bem, vou
ao rei aquilo. Quando ela viu ele saltar, ela disse assim ao
chegar às autoridades pra falar pra não pensar que eu sou
Capitão:
uma pessoa à toa.
– Venha cá, eu hoje vou aceitar o senhor, mas eu preciso
Aí chegou, foi e disse que ele queria um trabalho. Aí
soltar pra comprar uma roupa. O senhor pode até ir comigo.
disseram:
Aí foi, acompanhando aqueles dois rapazes. Um rapaz
– Trabalho assim não tem.
aí procurou o rei. Aí ele disse:
Nisso o rei mandou chamar e disse assim:
– Ah, eu quero falar com esses dois rapazes... Achei tão
– Vá varrer a frente do palácio. bonitinho esses meninos.
Ele ficou varrendo somente ali o palácio. Com o passar Ela já sabia que era filho dela. Aí quando chegou ali,
dos tempos, muito tempo, o rei tomou amizade a ele, né? disse assim:
Disse assim:
– Rei, meu senhor, eu quero contar uma história que
– Mas que beleza! Ele como é tão bom! Interessante eu vi...
esse senhor.
– Ah, é?...
Sentavam pra conversar de noite, ficam amigos. Um dia,
– A senhora, o que é que quer?
o rei apareceu com uma doença. A rainha precisava ter uma
pessoa pra fazer aquele serviço, ele disse: – Eu quero ouvir a história que esses dois rapazes
estavam contando.
– Não, rei meu senhor, quem vai fazer sou eu.
– Não tava contando nada, minha senhora.
Ele ia, dava banho, cuidava, tudo. O rei pegava e dizia:
– Estava. Aquela história que vocês estavam contando
– Não, esse homem é uma pessoa boa, vamo botar
um ao outro, se abraçaram...
ele aqui.
– Ah, rei meu senhor, não foi nada. Não tava falando nada
Ele já não foi mais varrer rua, já ficou ali por dentro
de mais. Foi a minha vida.
– Conte sua vida, o que é que tem sua vida? quando velho ficar. O personagem segue o conselho de
Aí contou tudo. Aí ele saiu, se abraçou e disse: sua mulher que lhe diz:
– Ai! Vocês são a minha família! Queira padecer em moço
Aí terminou a história. antes de velho ficar
você enquanto for moço
Fonte: narrado por Carlota Couto Farias, 59 anos, natural de
tem força pra trabalhar.
Taperoá-BA. Salvador, 16.04.88. Recolhido por Doralice Alcoforado
e Edil Silva Costa.
INDICAÇÃO DE LEITURA
SUGESTÃO DE ATIVIDADE
de João Peregrino, narrado por Carlota Farias, e também a expressão desse conteúdo. Mesmo nos textos
no conto Árvore da Campanária, narrador por Esmeralda tradicionais escritos como o cordel, a tradição, marcada
Zuanny, em Salvador/BA: por uma fórmula-padrão, é mais importante que o autor
e, por essa razão, há uma tendência para o apagamento
Quando foi um dia, a princesa estava sentada assim no do mesmo. A fórmula-padrão, nesse caso, as sextilhas,
jardim, viu aquele pássaro dizer: podem ser conservadas ou não.
- Moça, ó moça! Cê quer passar trabalho na velhice ou
na mocidade? Menéndez-Pidal (1972) afirma que o texto tradicional
separa-se do autor e segue seu próprio caminho, sendo
Como no folheto, a pergunta é feita três vezes. Na modificado por seus recriadores. Nem sempre essa
terceira vez, aconselhada pelo rei sue pai, a princesa interferência se dá para empobrecer o texto, mas pode
responde: “Na mocidade!” Em seguida é apanhada pelos também, ao contrário, melhorá-lo, enriquecendo-o com
cabelos por um pássaro que a leva até a floresta. A partir detalhes e colorido. O narrador-poeta é aquele que amplia
daí, começam os trabalhos para a princesa, da mesma o texto, nunca reduz, acrescenta elementos novos de
forma que no cordel os sofrimentos para o homem e modo a não se perder a unidade e mesmo que retire algo
sua família. que não lhe agrade ou que censure, compensa a perda
com talento e habilidade.
Na versão de Dona Carlota conserva-se os motivos
básicos e o tema do folheto que é tomado como matriz Enquanto que na literatura canônica há tanta
(Ferreira, 1979) para a narrativa oral. Há aproximações e preocupação com a forma, principalmente na literatura
distanciamentos do texto oral para o folheto. É possível moderna, na literatura popular a forma está sempre
que a forma de aprendizado do texto interfira na maior sujeita a variações e é o conteúdo que exige maior
fidelidade ou não à matriz: quando o texto é aprendido atenção e cuidado. O que importa é criar um espaço
pela transmissão oral tem mais chances de ser inovador; simbólico e significativo onde tudo é possível e a fórmula-
quando aprendido diretamente do folheto, o texto padrão deve ser a que melhor se adapte ao que o narrador
oralizado é mais fiel ao texto impresso. A consciência queira expressar.
do narrador em relação ao autor do folheto e o respeito
à autoria é fundamental nessa fidelidade. O texto oral éÉ no simbólico que se entrecruzam o real e o
anônimo e a apropriação do que é ouvido é mais direta
maravilhoso que torna possível, por exemplo, o motivo
por parte de quem narra. Uma vez que o texto entre da voz misteriosa que, na versão de Dona Carlota,
em processo de tradicionalização e o autor vai sendomais realista que no cordel, aparece em sonho para o
esquecido e “ignorado”, o narrador vai refazendo o texto,
personagem. A resposta à voz é a resposta ao destino
recriando e produzindo novas versões e variantes. Pode-
do homem que aceita o convite para a aventura da vida
se encontrar versão em prosa que conservam alguns que se lhe apresenta. Ao responder, o indivíduo abre
versos, o que indica a presença do folheto na memória
mão de toda tranquilidade e segurança para enfrentar as
do narrador, enquanto que a forma totalmente em prosa
desventuras (necessárias) da mocidade. Seu processo
revela o esquecimento do folheto ou, pelo menos, suade aprendizado só termina quando, depois de despojado
desconsideração. Nesse caso, se diz que o folheto está
de seus bens materiais e de sua família, ele consegue
sendo tradicionalizado, uma vez que a prosa facilita a
firmar-se, graças à sua integridade moral. O texto
veiculação do texto e deixa o narrador mais à vontade
reflete bem a moral cristã que dita que só através do
para imprimir suas marcas pessoais no texto. sofrimento o homem consegue se reerguer e conquistar
seu equilíbrio. Tudo isso se dá de modo solitário, isolado.
Analisando a tradição como expressão e conteúdo, Cada personagem assume seu espaço simbólico,
nota-se não só a presença de temas e motivos dividido em facções bem definidas: seres ligados ao bem
tradicionais, como também de fórmulas-padrão para ou ao mal. De um lado, o capitão do navio, a meretriz; de
outro, a mulher fiel, o marido honesto, o rei (símbolo do
poder absoluto e da justiça), os filhos soldados (a lei). É tecnologizada. Fatores como a globalização e, em sua
claro o jogo de valores a que todos os personagens são consequência, como nos sinaliza Stuart Hall (1999), a
submetidos e é essa simbologia que deve ser transmitida, emersão das culturas locais têm favorecido essa conexão
independente da fórmula-padrão que seja escolhida. do tradicional com o inovador.
SUGESTÃO DE ATIVIDADE
ANOTAÇÕES
ANOTAÇÕES
40 LICENCIATURA
40 LICENCIATURAEM
EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD
O CONTO POPULAR
CAPÍTULO 2
EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
ANOTAÇÕES
42 LICENCIATURA
42 LICENCIATURAEM
EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD
3.1 AS NARRATIVAS ORAIS: CONTOS, CAUSOS, A interferência dos meios de comunicação de massa,
LENDAS e com eles a cultura oficial e não tradicional, também
contribui para a transformação da cultura popular. Não
Dentre as manifestações dessa cultura popular, o podendo ser esquecida a interferência da literatura
conto é uma das formas mais difundidas. Seu valor escrita, seja ela infantil, geralmente adaptações da
enquanto documento vivo, social, histórico e etnográfico matéria tradicional, ou outro texto literário de grande
(CASCUDO, 2004, p. 12), desde muito atrai a atenção popularidade que vai formando com a literatura oral
de pesquisadores de várias partes do mundo. Se por um popular uma teia coesa.
lado os temas conservados em um conto registram o
momento histórico e o local de procedência do texto, por O ato de narrar faz parte de nossa vida cotidiana. Longe
outro, as adaptações visíveis em versões de um mesmo da imagem do narrador tradicional das comunidades
conto atestam as transformações por ele sofridas em sua narrativas idealizado sob a copa de uma árvore ou à
viagem através de gerações. beira de uma fogueira, os narradores, assim com as
narrativas vão se atualizando e ganhando novos espaços
O narrador tem um papel decisivo no processo de na sociedade urbana.
variação. O autor se perdeu no tempo e no processo
de transmissão, mas há um recriador, reelaborador da
matéria tradicional, de acordo com o momento em que INDICAÇÃO DE LEITURA
é narrado, da interação com o público ouvinte e com o
contexto sócio cultural.
O texto essencial sobre o ato de narrar na socie-
Como todo texto oral, o conto é coletivo e anônimo, dade é O narrador de Walter Benjamin:
pois o autor não é um único indivíduo, embora em seus BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações
primórdios deva ter existido um autor que se perdeu de sobre a obra de Nicolai Leskov. In: Os Pensadores.
vista quando o texto passou a integrar a tradição, a ser São Paulo: Abril Cultural, 1975, v. 48.
propriedade do coletivo. Sendo assim, a autoria é de
todos os indivíduos que o transmitem, do autor-legião
de que fala Ramón Menéndez-Pidal (1972). Temos por
um lado, um texto enquanto sistema abstrato, virtual, A narrativa exerce um importante papel social, pois
narrar é estabelecer um vínculo com nosso semelhante e
conjunto de todas as versões do conto. Por outro lado,
para ouvir é preciso criar laços com o outro. O canto pode
cada texto é uma realização única, pois cada possibilidade
de concretização é uma versão-ocorrência. ser um ato solitário, não necessariamente direcionado a
um interlocutor. Podemos cantar enquanto fazemos um
Os motivos são as menores unidades temáticas do trabalho manual, a limpeza da casa ou a arrumação de
texto. Cada parte que compõe os contos populares um cômodo, sem nos preocuparmos com a audiência.
Cantamos como uma forma de entretenimento e também
para nos concentrarmos na tarefa executada. Com o ato O que caracteriza uma comunidade narrativa é o
de narrar não acontece a mesma coisa. Pressupõe um fato dos textos fazerem parte de um repertório comum,
ouvinte, de preferência atento para completar o processo seja entre os velhos, os adultos ou os jovens. Todos
comunicativo. Com a narrativa escrita este interlocutor compartilham do saber, embora o direito à palavra e
não é, na maior parte das vezes, uma presença física, a credibilidade da mensagem seja atribuída ao ancião.
mas virtual (o leitor). Na literatura oral o narrador está Nas comunidades tradicionais “antiguidade é posto”.
diante de seu(s) interlocutor(es), interagindo com eles(s). O respeito aos velhos é a tradução do respeito aos
É exatamente esta interação que faz do ato de narrar antepassados e ao saber ancestral.
um conto oral uma experiência única e que não pode
acontecer desconectada das relações humanas. Como foi dito, para que a transmissão dos textos
aconteça, é necessário haver condições favoráveis. No
Nas comunidades tradicionais, centradas em mundo contemporâneo, com a acelerada urbanização
valores bastante rígidos e conservadores, as narrativas e o crescimento das cidades, essas condições de
transmitem o modo de pensar e repetem as normas de transmissão não tem sido favoráveis. Ao contrário
comportamento do grupo. Essas comunidades são de das comunidades tradicionais, de ritmo lento, a
ritmo mais lento, cujo tempo “menos acelerado” favorece sociedade urbana tende à aceleração, estilo de vida
o encontro e oferece mais oportunidades de narrar. Os que se consolidou com a industrialização. A Revolução
textos são ouvidos da boca dos mais velhos e repetidos, Industrial transformou tempo em produção, pois é
procurando respeitar a fidelidade ao passado, deixando centrada na lógica de que “tempo é dinheiro”. Assim,
uma mensagem que deve ser seguida e retransmitida em uma sociedade em que até o entretenimento passa
pelos mais novos. Uma mensagem que ensina o que a ser vendido, há uma tendência a se valorizar a cultura
é certo, o que é errado, como se comportar, como do espetáculo e o desprezo pela cultura produzida nas
agir em relação às adversidades do mundo. Por isso, comunidades vinculadas às tradições.
a princípio, é um ensinamento dos mais velhos para
os mais novos. Desse modo, o ancião é o principal Muitos contos populares tem origem remota e trazem
responsável para continuidade do saber comunitário e indícios das formas de viver da sociedade anterior ao
sua voz o instrumento de transmissão das tradições. processo de urbanização e industrialização. Trata-se
de uma narrativa ficcional localizada em um tempo
impreciso, marcada pela fórmula do “era uma vez”. O
narrador ou a narradora do conto, quando localiza seu
texto, diz algo como “num reino distante...” São modos
de iniciar a narrativa, abrindo uma espécie de porta à
fantasia e inserindo o ouvinte em um tempo/espaço
particular. As narrativas se passam “no tempo em os
bichos falavam”, “no tempo em que Jesus andava no
mundo com São Pedro”, “em um reino distante”.
E assim, por “ordem real”, a roda de narrativas Diferentemente dos contos, os “causos” costumam
continua, um narrador passando a palavra para outro ser narrados como um acontecimento verdadeiro,
ou simplesmente estimulando a memória coletiva que, algo acontecido ou com o próprio narrador (que nesse
lembrando de outros textos, instiga o mesmo narrador caso diz que viu ou viveu a situação) ou com alguém
a continuar. Se o público estimula, se mostrando próximo a ele que lhe contou uma situação vivenciada.
interessado, as narrativas continuam. Se não, o narrador Nas comunidades litorâneas são comuns causos de
se cala ou abrevia os textos e o encontro. pescador, assim como na zona rural os causos de
Caipora ou Lobisomem.
O narrador tem em mente um texto virtual, aprendido
anteriormente e que ele “cria” ao exercer seu papel de Nos causos há o elemento fantástico, pois se não
produtor-transmissor. Nesse processo de transmissão, se tratasse de uma história extraordinária não valeria a
a estrutura verbal do texto está sujeita primeiramente às pena ser narrado. Como se os seres de um mundo oculto
Ele vai correr. Correr as quatro províncias do mundo. Começa que, embora racionais, guardando um lado instintivo e
às sete horas da noite, vai até meia-noite. animalesco que pode se manifestar em algum momento.
As sete províncias do mundo que o pessoal do interior Note-se que na narrativa está associado ao fato do sujeito
fala é negócio de hora [sabe?]. Porque ele corre das sete até
“virar lobisomem” com o interdito do incesto. Como
meia-noite. O povo chama assim sete províncias do mundo.
uma espécie de maldição. A má conduta do sujeito que
Ele vai, corre, quando chega aquele horário – tem que ser
o horário certo, porque se passar do horário ele não desvira larga a família para se amancebar com o agravante de
mais, fica virado lobisomem direto.[...] que ele se junta com as próprias filhas é rigorosamente
condenada. Ele é amaldiçoado e para o resto da vida a
Uma vez, ele atacou um amigo de meu avô. O amigo do se espojar como jumento.
meu avô foi, deu uma facada no bicho. Quando o lobisomem
deu o bote assim em cima do amigo de meu avô, ele foi,
correu o facão nele de baixo pra cima, cortou assim debaixo
do braço. Porque facada em lobisomen só pega debaixo do
braço ou na cova da viria. No corpo, não incorpa ele – ele faz
um troço lá que no corpo dele não entra bala, não corta. Só
debaixo do braço ou então na cova assim da viria é que pega.
Aí, todo mundo descobriu que era ele. Por causa que esse
amigo do meu avô tinha falado que tinha dado um corte num
lobisomem. Quando foi no outro dia, surgiu um caso que tava
um cara cortado debaixo do braço, um talho muito grande.
Minha mãe fala que a pessoa vira lobisomem quando
é casada e larga a família e vai se amancebar. Ainda mais
com uma filha, inclusive que ele era amancebado com duas
filhas e todas duas tinha filho. E só não ficou com as três,
porque a outra fugiu de casa.
E as filhas sabiam que ele era assim, que era elas quem
tratavam dele. Chegava o pessoal pra visitar, elas diziam:
- Meu pai tá doente. Não sei o que é que ele tem.
Isso faz muito tempo. Essa história é muito velha. Foi meu
avô quem conheceu. Meu avô fez tudo pra conhecer, pra ver
como era que ele fazia, que todo mundo ficava impressionado
como era que uma pessoa normal de repente virava um bicho
assim, todo cheio de argola, correno, correno todo mundo,
não conhecendo ninguém.
Agora, lobisomem não tem voz não. Ele dá um esturro.
Ele dá um esturro. Ele só dá esturro, se sacode todim. O
pessoal lá no Nordeste já sabe que existe isso. Aí, quando Figura 18 – Lobisomens
escuta o barulho, todo mundo já tá de porta fechada.
Inclusive, ele não entra em casa. Agora o que passar... Pra Distúrbios psiquiátricos podem ter dado origem ao mito dos
ele não entrar em casa, o pessoal faz uma cruz de cinza da lobisomens..
fogueira de São João na porta. Também se faz uma de cinza
Fonte: A imagem é uma representação de 1512 em ilustração
na testa pra se livrar de lobisomem...
de Lucas Cranach der Ältere Werwolf. Disponível em: <http://
commons.wikimedia.org/wiki/File:Werwolf.png>. Acesso em: 22
Lucinda Angélica de Brito fev. 2013.
Mobral – Escola Classe 108 Sul
Brasília, 29.9.1983.
A par tir da leitura do causo de lobisomem, Que o filme O homem que desafiou o diabo levado
responda as questões: às telas por Moacyr Góes, Lucy Barreto e Luiz Carlos
a) Observe as marcas de religiosidade no texto. Barreto é baseado no romance As pelejas de Ojuara:
Por que a cruz feita com as cinzas da fogueira de o homem que desafiou o diabo, de Nei Leandro de
São João teria poderes para afastar o lobisomem? Castro?
b) A narrativa é contada como verdadeiramente
acontecida. Quais as marcas do texto que enfatizam
isso?
SAIBA MAIS
c) O lobisomem parece ter o “corpo fechado”,
mas há partes do corpo em que ele fica vulnerável
(embaixo do braço e na virilha). O que isso quer
dizer? O filme O homem que desafiou o diabo tem como
tema central a eterna luta entre o bem e mal, retratada
Outro ser fantástico que encontramos nos causos com humor e erotismo. Tanto no livro As pelejas de
brasileiros é a mula sem cabeça. Diz-se de uma mulher Ojuara quanto no filme O homem que desafiou o
que é namorada de padre e que fica com a sina de se diabo, vemos uma boa colagem de textos da cultural
transformar em uma assombração. Banida do convívio popular nordestina, apresentando contos, causos,
social, do mesmo modo que o lobisomem, sua ação dramas, romances, cordel, cantorias, folguedos,
é punida. Ambas as narrativas encenam os valores assim como costumes sertanejos.
e preconceitos em relação às aqueles que fogem da
conduta normativa do meio social do universo judaico-
cristão.
As lendas urbanas são narrativas que abordam temas
em geral relacionados à sociedade atual. Mas temos
Diversos causos são também histórias de outros tipos de lendas tradicionais que procuram explicar
assombração. Relatos de tesouros escondidos, botijas as origens de um determinado fato. Na cultura brasileira
de ouro enterradas em solo amaldiçoado, mulheres temos muitas lendas indígenas como a lenda do guaraná,
misteriosas que tem um forte poder de sedução que da mandioca, do rio Amazonas.
levam à morte etc. Esses relatos tem se mantido com
bastante força no universo urbano e são o que chamamos
de lendas urbanas.
VOCÊ SABIA?
INDICAÇÃO DE LEITURA
Diferentes dos contos que, como vimos, a ação se compreendê-los. Hoje os estudos se direcionam mais
passa em um tempo e lugar remoto, a lenda nos remete para os processos de transmissão e recepção do que
a um tempo mítico e imemorial, anterior a este estado para a gênesis. No caso dos contos, muitas teorias foram
de coisas para justamente explicar como as coisas se formuladas e nenhuma delas foi suficiente para explicar
tornaram o que são. Uma das mais difundidas no Brasil como surgiram. Se por um lado, as narrativas remontam
é a Lenda da mandioca (GIACOMO, 1977): a um tempo imemorial, por outro a transmissão oral e
a ausência de registros escritos dificultam uma datação
A índia Mani mais precisa para as primeiras narrativas. É bem provável
Nasceu uma indiazinha linda e a mãe e o pai tupis que os relatos tenham começado a existir quando o
espantaram-se: homem começou a falar e a se relacionar socialmente,
- Como é branquinha esta criança! pois, como vimos, o conto é um modo de estabelecer
Chamaram-na de Mani. Comia pouco e pouco bebia. contato com o outro.
Mani parecia esconder um mistério. Uma bela manhã, Mani
não se levantou da rede. O Pajé deu ervas e bebidas à menina.
Mani sorria, muito doente, mas sem dores. E sorrindo Veremos algumas teorias que tentam explicar as
Mani morreu. Os pais enterraram-na dentro da própria oca origens dos contos. A pesquisadora francesa Michele
e regaram a sua cova com água, como era costume dos Simonsen (1987) estuda essas teorias assinalando que
índios tupis, mas também com muitas lágrimas de saudade.
elas mais se complementam que antagonizam e reitera
Um dia, perceberam que do túmulo de Mani rompia uma
que, ao final das contas, nenhuma delas é o bastante
plantinha verde e viçosa. A plantinha desconhecida crescia
depressa. Poucas luas se passaram e ela estava alta, com para uma ideia conclusiva. Vejamos rapidamente cada
um caule forte que até fazia a terra rachar ao redor. uma delas.
- Vamos cavar? - comentou a mãe de Mani.
Cavaram um pouco e, à flor da terra, viram umas raízes Marx Muller (1987) formula a uma teoria conhecida
grossas e morenas, quase da cor dos curumins, nome que
como indo europeia ou mítica. Segundo ele, mitos
dão aos indiozinhos. Mas, sob a casquinha marrom, lá estava
a polpa branquinha, quase da cor de Mani. cosmológicos deram origem aos contos, porém se
-Vamos chamá-la de Mani-oca - resolveram os índios. difundiram com a dispersão dos povos indo-europeus,
Transformaram a planta em alimento. se espalharam e perderem seu sentido primitivo. Ficaram
os relatos que guardam indícios dessa época.
Em seu livro sobre as raízes históricas do conto, Propp dos textos. Desse modo Contos populares do Brasil é
(1997) procura demonstrar que nas narrativas podemos dividido em três secções: Secção Primeira: Contos de
vislumbrar os estágios ou estados da sociedade que origem europeia; Secção Segunda: Contos de origem
deram origem às narrativas. indígena; Secção Terceira: Contos de origem africana e
mestiça. Sendo um homem do século XIX, adepto das
teorias raciais e da crença no branqueamento, Romero
INDICAÇÃO DE LEITURA (1985, pp. 23-24) valoriza a tradição europeia e aponta
as contribuições dos índios e dos negros como menores:
Considerando que os contos populares migram por volumes, é uma classificação de temas que, embora
meio da tradição oral, mas também da escrita, não muito útil e indispensável para a delimitação das
tem muito sentido hoje dizer que tal conto é de origem variantes, foi fundamentado em um corpus europeu e
europeia, indígena ou africana. O que se percebe na americano. A numeração é arbitrária e o próprio Aarne
coletânea de Silvio Romero é que a maior parte dos já deixou lacunas que poderiam ser preenchidas com os
contos que ele classifica como de origem indígena ou motivos e tipos existentes no folclore e não presentes no
africana são contos de animais: o jabuti, o macaco, a material por ele examinado. Dessa forma, surgem não só
onça, o sapo, ou seja, animais que figuram na fauna local. motivos e tipos não catalogados, como também novas
variantes, frutos da natural mutação dos contos.
Já sabemos que um texto oral é composto por
motivos, unidades temáticas limitadas que se combinam
ilimitadamente. Então, como afirmar que um determinado
motivo presente no Brasil pertence à tradição brasileira,
ibérica, europeia ou africana? Os motivos pertencem a
princípio a um grande texto virtual e sem nacionalidade.
O que determina a existência de um motivo ou outro
em uma tradição é a sua relação com o contexto e as
relações deste com a psicologia do povo que detém a
tradição. Se um motivo faz sentido, comunica algo e está
atualizado para o grupo, ele existe; do contrário, não faz
parte dessa tradição. Pode ocorrer sim a adaptação do
motivo à tradição local, fenômeno comum em culturas
como as latino-americanas, a exemplo da aclimatação
dos motivos da tradição ibérica nas colônias. Pensando
dessa forma, apesar dos motivos serem universais,
não deixa de ser instigante buscar a originalidade de
uma tradição, pois o traço original está justamente na
diferenciação de um motivo, na repetição diferencial em
um contexto, em uma época e por um povo diferente.
Os rins da ovelha
O Macaco e o rabo
VOCÊ SABIA?
O Macaco saiu pelo mundo. Andou, andou, andou,
quando chegou no meio da estrada, ele achou de parar
para descansar. Deixou o rabo bem no meio do caminho. Lá
Que as fábulas de Esopo serviram como base adiante, vinha um homem com um carro de boi:
para recriações de outros escritores ao longo dos – Macaco.
séculos, como Fedro e La Fontaine? – Que é?
– Tira teu rabo daí.
– Não tiro.
– Macaco, tira teu rabo daí que eu vou passar
com meu carro de boi.
Os contos de adivinhação são os que partem de uma Levou o homem num relâmpago até sua casa. Tratou
pergunta do tipo “O que é, o que é?”. Consistem em um muito bem e mostrou a casa toda. O médico viu um salão
cheio-cheio de velas acessas, de todos os tamanhos, uma
desafio que o herói ou heroína tem que desvendar para já se apagando, outras viva, outras esmorecendo. Perguntou
alcançar a vitória. o que era:
- É a vida do homem. Cada homem tem uma vela acessa.
Contos de natureza denunciante são os textos em Quando a vela acaba, o homem morre.
que algum elemento da natureza se manifesta para O médico foi perguntando pela vida dos amigos e co-
nhecidos e vendo o estado das vidas. Até que lhe palpitou
ajudar o protagonista, revelando os culpados por ações perguntar pela sua. A Morte mostrou um cotoquinho no fim.
condenáveis.
- Virgem Maria! Essa é que é a minha? Então eu estou,
morre-não-morre!
Temos ainda os contos do ciclo da morte que, ao con- A Morte disse:
trário do diabo, a Comadre Morte, personificada, sempre - Está com horas de vida e por isso eu trouxe você para
vence o ser humano que tenta engabelá-la. Um exemplo aqui como amigo mas você me fez jurar que voltaria e eu
vou levá-lo para você morrer em casa.
desses contos é O compadre da Morte, publicado por
O médico quando deu acordo de si estava na sua cama
Câmara Cascudo (2004, pp. 312-313.):
rodeado pela família. Chamou a comadre e pediu:
- Comadre, me faça o último favor. Deixe eu rezar um
O COMPADRE DA MORTE Padre-Nosso. Não me leves antes. Jura?
- Juro -, prometeu a Morte.
Diz que era uma vez um homem que tinha tantos filhos O homem começou a rezar o Padre-Nosso que estás no
que não achava mais quem fosse seu compadre. Nascendo céu... E calou-se. Vai a Morte e diz:
mais um filhinho, saiu para procurar quem o apadrinhasse e - Vamos, compadre, reze o resto da oração!
depois de muito andar encontrou a Morte a quem convidou. A - Nem pense nisso, comadre! Você jurou que me dava
Morte aceitou e foi a madrinha da criança. Quando acabou o tempo de rezar o Padre-Nosso mas eu não expliquei quanto
batizado voltaram para casa e a madrinha disse ao compadre: tempo vai durar minha reza. Vai durar anos e anos...
- Compadre! Quero fazer um presente ao meu afilhado A Morte foi-se embora, zangada pela sabedoria do com-
e penso que é melhor enriquecer o pai. Você vai ser médico padre. Anos e anos depois, o médico, velhinho e engelhado,
de hoje em diante e nunca errará no que disser. Quando for ia passeando nas suas grandes propriedades quando reparou
visitar um doente me verá sempre. Se eu estiver na cabeceira que os animais tinham furado a cerca e estragado o jardim,
do enfermo, receite até água pura que ele ficará bom. Se eu cheio de flores. O homem, bem contrariado disse:
estiver nos pés, não faça nada porque é um caso perdido.
- Só queria morrer para não ver uma miséria destas!...
O homem assim fez. Botou aviso que era médico e ficou
Não fechou a boca e a Morte bateu em cima, carregando-
rico do dia para a noite porque não errava. Olhava o doente
-o. A gente pode enganar a Morte duas vezes, mas na terceira
e ia logo dizendo:
é enganado por ela.
- Este escapa!
Ou então:
- Tratem do caixão dele!
João Monteiro
Quem ele tratava, ficava bom. O homem nadava em
Natal, Rio Grande do Norte.
dinheiro. Vai um dia adoeceu o filho do rei e este mandou
buscar o médico, oferecendo uma riqueza pela vida do
príncipe. O homem foi e viu a Morte sentada nos pés da
cama. Como não queria perder a fama, resolveu enganar a
comadre, e mandou que os criados virassem a cama, os
pés passaram para a cabeceira e a cabeceira para os pés.
A Morte, muito contrariada, foi-se embora, resmungando.
O médico estava em casa um dia quando apareceu sua
comadre e o convidou para visitá-la.
- Eu vou, disse o médico - se você jurar que voltarei!
- Prometo! - disse a Morte.
INDICAÇÃO DE LEITURA
ANOTAÇÕES
ANOTAÇÕES
62 LICENCIATURAEM
LICENCIATURA EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD
EaD
O ROMANCE TRADICIONAL
CAPÍTULO 3
LICENCIATURA EM LETRAS: LÍNGUA PORTUGUES E LITERATURAS 63
EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
ANOTAÇÕES
64 LICENCIATURA
64 LICENCIATURAEM
EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD
Até agora se falou do chamado romanceiro velho Em Portugal, no século XIX, com o advento do
que são os romances que teriam se originado na Idade Romantismo, ressurge o interesse pela cultura popular
Média. Porém, seis séculos nos separam dessa produção e com ele a valorização do romanceiro enquanto
medieval e a tradição vem se reelaborando. Menendez- “autêntica” expressão da alma portuguesa. Os estudos
Pidal (1972) aponta várias fases do romanceiro: do século XIX foram iniciados pelo poeta Almeida Garrett
a) Romances primitivos que, segundo ele, seriam que recriou da tradição oral os romances Adozinha e
originados dos cantares de gestas medievais. Bernal Frances. Garrett recolheu e publicou ainda o
Romanceiro português, em três volumes, entre 1843
b) Romances velhos que são recriações dos cantares
e 1851. Garrett, como os românticos, procuravam
de gestas, mas com temática mais variada.
nos romances o que consideram a mais pura poesia
c) Romanceiro Médio que dá continuidade ao portuguesa e por essa razão dedicou-se à recolha e
romanceiro velho no período renascentista. organização da coletânea. Graças ao trabalho de Almeida
d) Romanceiro Novo ou Moderno que é a produção Garrett temos hoje registrado um conjunto de textos e sua
romancística mais recente. resistência até o século XIX. Assim como Silvio Romero
fez no Brasil, Garrett também teve seus continuadores
O romanceiro Novo é datado do século XVII, ou ao longo do século XIX, a saber: José Maria da Costa e
seja, em pleno período Barroco. A Idade Média já vai Silva, António Pereira e Cunha, João Teixeira Soares de
longe enquanto momento histórico, apesar de que o Sousa, Teófilo Braga e José Leite de Vasconcelos.
Barroco traz de volta muitos dos valores medievais que
o Renascimento tenta apagar. Segundo o professor Pere No século XX, destacam-se Manuel da Costa
Férre (1984), especialista em romanceiro moderno, a Fontes, Joanne B. Purcell, Pere Ferré, Aliete Galhoz,
popularidade dos romances velhos decai em Portugal. Manuel Viegas Guerreiro e João David Pinto-Correia.
O advento do romanceiro Novo é a adequação do gênero No Brasil também temos uma tradição de estudos
ao novo gosto, mas os textos são criados tomando como sobre o romanceiro iniciado por Silvio Romero e que se
modelo e a estrutura formal do romanceiro velho. consolidou na segundo metade do século XX.
Romances Religiosos – Os romances de temática Segundo Maria Del Rosário Albán (1994, p.158),
religiosas são textos que revelam aspecto da crença
e da religiosidade cristã, geralmente em torno de um Passado de geração em geração, o romanceiro existe
personagem bíblico: Jesus Cristo, Virgem Maria, Santa hoje na tradição oral de praticamente todos os povos de
Iria etc. Uma curiosidade sobre o romanceiro religioso é expressão castelhana, catalã, por tuguesa e sefardita,
que muitos dos textos foram criados a partir de versões área hoje geograficamente ampliada por conta de ondas
migratórias de portugueses e espanhóis para os Estados
de romances profanos convertidos “a lo divino”, ou Unidos e países do norte europeu.
seja, o mesmo procedimento que é usado ainda hoje
para transformar a canção popular em um canto gospel,
trocando apenas algumas palavras e aproveitando a Assim, o romanceiro chegou ao Brasil e aqui
mesma melodia. permanece vivo, notadamente os romances novelescos
que são reelaborados em nossa tradição oral. A Formosa tapuia, que fazes perdida
classificação dada aos romances brasileiros geralmente nas matas sombrias do agreste sertão?
seguem a questão da herança ibérica e da recriação em As matas são frias e feias e tristes
não queiras tão moça morrer de sezão.
terras brasileiras. As propostas podem variar bastante,
desde Silvio Romero – que segue basicamente os
Não quero carinho, nas matas nasci
mesmos critérios da classificação dos contos: origem
se delas não gostas, não fiques aqui.
europeia, brasileira ou mestiça – a propostas mais
elaboradas, considerando também a estrutura dos Bem sabes que as matas são para as feras
romances e sua refuncionalização (adaptação ao drama, te digo deveras, não fiques aqui
por exemplo). eu tenho um engenho, criado e riqueza
eu tenho dinheiro e é só para ti.
Assim, temos propostas de classificação que
apontam para três vertentes: Não quero carinho, nem tenho ambição
se nada preciso aqui no sertão
a) Romances tradicionais
b) Narrativas tradicionais Tapuia, eu lhe peço, não percas fortuna
c) Outros textos tradicionais porque eu tenho punho de versos de linho
vamos pro porto tomar um conforto
estreladas de doces, um copo de vinho.
No Romanceiro ibérico na Bahia, as organizadoras
definem esses tipos da seguinte forma: Romances Não quero carinho, sou pobre tapuia
tradicionais são os romances cantados em verso “que não bebo no copo, só bebo na cuia
mantêm relação temática e estrutural” (ALCOFORADO;
ALBAN, 1996, p.17) com o romanceiro ibérico do século Se fosses comigo, pra minha cidade
XV e XVI, ou seja, o romanceiro velho. serias, tapuia, decerto feliz
sapatos de couro, vestidos de seda
adereços de ouro não são cousas ruins.
O segundo tipo, Narrativas tradicionais, são textos
que apresentam a mesma estrutura dos romances
Não quero carinho, teu ouro é falso
tradicionais, mas que não foram encontrados em
meus pés não se estragam por viver descalço.
coletâneas do século XV e XVI, o que pode significar
sua modernidade e ao mesmo tempo a vitalidade dessa Abasta, tapuia, não digas mais nada
literatura oral que se receia continuamente. não tenho maldade, não fiques zangada
passando o trabalho, serviço de roça
Por fim, os Outros textos tradicionais, são definidos podendo tão moça morar na cidade.
como “textos de natureza variada, também tradicionais,
que não se encaixam nos demais grupos”. (ALCOFORADO; Não quero carinho onde se nasce
Deus manda que a vida contente se passe.
ALBAN, 1996, p.17)
(Versão colhida em Porto da Folha, SE).
partes, quando cada um fala de seu lugar como melhor tapuia. Tanto do ponto de vista de gênero (homem/
e mais adequado. Vemos a visão de mundo do branco mulher), quanto da situação econômica (rico/pobre)
da cidade que diz que “as matas são frias e feias e ou de etnia (branco/índio), invertendo os papéis de
tristes” e da mulher tapuia que rebate dizendo que ali é subalternidade, ela expulsa o colonizador alegando
seu lugar e que é que ele deveria ir embora (“Não quero que “teu ouro é falso”. Desse modo, opta por morar
carinho, nas matas nasci/ se delas não gostas, não fiques nas matas e lá vive contente (“onde se nasce/Deus
aqui”). Interessante notar que a história oficial não dá manda que a vida contente se passe”). Este romance
ênfase às formas de resistência dos índios em relação de caráter tão brasileiro, tanto no tema como na forma,
ao contato com o português. A hostilidade que por certo está registrado em diversos Estados do Brasil.
existiu é substituída na história oficial pelo discurso da
cordialidade, tanto em relação aos indígenas quanto aos
negros. O fato de um romance tradicional apresentar uma VOCÊ SABIA?
versão diferente da história nos instiga e olhar com mais
atenção para esses textos que, à margem do discurso
hegemônico, nos dão uma visão mais complexa da
construção da identidade brasileira. Albert Eckhout (1610-1666) foi um pintor e
botânico holandês que viajou ao Nordeste Brasil,
em meados do século XVI, para retratar a fauna e a
paisagem local. Suas pinturas ficaram famosas por
ser o registro, a partir do olhar europeu, não só da
natureza como da forma de vida e costumes do povo
que aqui se encontrava.
As molduras, formas de abrir e fechar os contos, importante mostrar como há o dialoga desses autores
contornos da narrativa nos inserem e retiram do com a cultura popular. Observar os trânsitos e a
universo do texto. No entanto, há a demarcação dessas complexidade de relações entre os diversos estratos
fronteiras que ficam permeadas pela relação que o culturais, sem demarcar hierarquias. É possível assim
narrador estabelece do ficcional com o real: “poderia ter ampliar o leque de formas textuais e aproveitar o
acontecido” ou até “eu acho que essa história aconteceu conhecimento do sujeito, anterior ao seu ingresso da
mesmo”. São forma de relacionar com o cotidiano e escola.
trazer aos personagens aspectos de pessoas conhecidas,
possuidoras de vida própria e muito próximas de nós. O No Brasil, desde Silvio Romero, procura-se chamar
narrador faz também o exercício de vestir-se como os a atenção para as narrativas orais que circulam
personagens quando nos indaga a respeito, buscando pelas diversas regiões, adaptando-se e recriando-se
entre nós exemplos da vida real. E você, já agiu assim? continuamente. O narrador recupera todo esse passado
O que faria em uma situação como essa? São questões em seu texto e o transcritor condensa, muitas vezes
que levam os ouvintes a participarem da composição eliminando a diversidade das variações linguísticas e
do texto. estilísticas desse sujeito.
Os motivos da tradição que compõem o lastro da Paul Zumthor (2000) nos ajuda na reflexão sobre os
narrativa são assim complementados, enriquecidos, índices performanciais de leitura do texto oral. Como uma
substituídos por outros que o narrador vai apanhando espécie de escala, o texto transcrito e depois adaptado se
no próprio fazer narrativo. A urdidura do texto é algo aproxima e se afasta do texto falado, de modo a, neste
semelhante com a prática mais contemporânea em movimento pendular, tornar possível à leitura recuperar a
que a autoria se esgarça na apropriação de elementos performance. Não se trata de uma leitura dramática nem
diversificados, posto à disposição do autor, quase da dramatização da leitura, mas da oralização da escrita
que oferecidos às vezes, noutras rapto ou rapina. Não ao escriturar a oralidade.
descoladas da vida do narrador nem tampouco de seus
ouvintes e coautores do texto.
Desse modo, acredita-se contribuir para a formação
de leitores que hão de recuperar em sua memória
Assim, esse movimento da tradição pode ser visto com individual, a memória ancestral e coletiva. Todos esses
algo de vanguarda e as fronteiras do tradicional popular textos apresentados nos capítulos anteriores podem ser
permeiam-se, estabelece-se num continum com outros instrumentos importantes para tratar em sala de aula
textos e formatos. As narrativas transmitem os valores dos temas que estão na pauta do dia e para os quais os
compartilhados pelo narrador e seus ouvintes, que são professores devem estar preparados para abordar, entre
também narradores, responsáveis pela transmissão e os muros da escola e para além eles.
continuidade do saber tradicional.
BENZEDURAS. O mesmo que rezas, as benzeduras PARÓDIA. É uma recriação de um texto, explorando um
são palavras ditas em voz alta (porém em tom baixo para viés cômico, irônico ou debochado. Etimologicamente,
manter o segredo) com o intuito de proteção, tirar “mau paródia significa para-ode, ou seja, uma inversão de
olhado” ou enfermidade. Em geral, a benzedeira sacode uma composição poética. Resulta de um processo de
um ramo verde sobre a cabeça do sujeito durante a reza. intertextualidade, da relação de um texto matriz com outro
que dialoga com ele, acrescentando novos sentidos.
COMUNIDADE NARRATIVA. Uma comunidade que
partilha valores, costumes e os discursos que ensinam PERFORMANCE. O texto oral é produzido e transmitido
e reforçam esses costumes. Caracteriza a comunidade no mesmo instante. É esta simultaneidade do momento
narrativa o saber comum par tilhado por todas as de criação com a fruição do texto que chamamos de
gerações, desde os mais velhos – que têm sua palavra performance. Em última instância, a poesia oral só existe
respeitada como de autoridade – até os mais jovens a em performance e as condições do contexto de produção
quem é destinada a função principalmente de ouvir, mas – interação com a plateia, predisposição do intérprete etc.
que são narradores e transmissores em potencial do – influenciam diretamente na forma do texto.
saber aprendido com os mais velhos.
REDONDILHA. Forma de verso tradicional, considerado
ETNOCENTRISMO. Olhar centrado em sua própria redondilha maior se de sete sílabas e redondilha menor,
cultura que leva muitas vezes ao preconceito e a julgar se de cinco.
uma cultura como superior a outra. É um conceito
antropológico que se traduz em uma postura que dificulta XILOGRAVURA. Matriz de impressão rudimentar feita
a aceitação do outro enquanto semelhante, porém com madeira esculpida que funciona como uma espécie
diferente. de carimbo a reproduzir a imagem desejada.