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LICENCIATURA EM LETRAS,

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS

LITERATURA ORAL E POPULAR


EaD
EaD UNIVERSIDADE
UNIVERSIDADE DODO ESTADO
ESTADO DADA BAHIA
BAHIA

PRESIDENTE
PRESIDENTE
DA REPÚBLICA
DA REPÚBLICA
Dilma Roussef
Dilma Roussef
MINISTRO
MINISTRO
DA EDUCAÇÃO
DA EDUCAÇÃO
José Henrique
Jose Henrique
Paim Fernades
Paim Fernandes
SISTEMASISTEMA
UNIVERSIDADE
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ABERTA DO
ABERTA
BRASIL
DO BRASIL
PRESIDENTE
PRESIDENTE
DA CAPES
DA CAPES
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Jorge Guimarães
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DE EDUCAÇÃO
DE EDUCAÇÃO
A DISTÂNCIA
A DISTÂNCIA
DA CAPES
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João Teatini
João Teatini

GOVERNO
GOVERNO
DO ESTADO
DO DA
ESTADO
BAHIADA BAHIA
GOVERNADOR
GOVERNADOR
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Jaques Wagner
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Otto Mendonça
Roberto Mendonça
de Alencar
de Alencar
SECRETÁRIO
SECRETÁRIO
DA EDUCAÇÃO
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OsvaldoFilho
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UNIVERSIDADE
UNIVERSIDADE
DO ESTADO
DO DA
ESTADO
BAHIADA- UNEB
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José Bites
José
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Bites de Carvalho
VICE-REITORA
VICE-REITORA
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Carla
Nascimento
Liane Nascimento
dos Santos
dos Santos
PRÓ-REITOR
PRÓ-REITOR
DE ENSINO
DE DE
ENSINO
GRADUAÇÃO
DE GRADUAÇÃO
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Marcius
Almeida
de Almeida
Gomes Gomes
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COORDENADOR
UAB/UNEB
UAB/UNEB
Kathia Marise
KathiaBorges
MariseSales
Borges Sales
COORDENADOR
COORDENADOR
UAB/UNEB
UAB/UNEB
ADJUNTOADJUNTO
Francine Francine
Mendes dos
Mendes
Santos
dos Santos
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LICENCIATURA EM LETRAS,
LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS

LITERATURA ORAL E POPULAR

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Estamos começando uma nova etapa de trabalho e para auxiliá-lo no desenvolvimento da sua aprendizagem
estruturamos este material didático que atenderá ao Curso de Licenciatura na modalidade de Educação a Distância
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O componente curricular que agora lhe apresentamos foi preparado por profissionais habilitados, especialistas
da área, pesquisadores, docentes que tiveram a preocupação em alinhar o conhecimento teórico e prático de
maneira contextualizada, fazendo uso de uma linguagem motivacional, capaz de aprofundar o conhecimento
prévio dos envolvidos com a disciplina em questão. Cabe salientar, porém, que esse não deve ser o único material
a ser utilizado na disciplina, além dele, o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), as atividades propostas pelo
Professor Formador e pelo Tutor, as atividades complementares, os horários destinados aos estudos individuais,
tudo isso somado compõe os estudos relacionados à EaD.
É importante também que vocês estejam sempe atentos às caixas de diálogos e ícones específicos que
aparecem durante todo o texto apresentando informações complementares ao conteúdo. A ideia é mediar junto
ao leitor, uma forma de dialogar questões para o aprofundamento dos assuntos, a fim de que o mesmo se torne
interlocutor ativo desse material.

São objetivos dos ícones em destaque:

VOCÊ SABIA?
– convida o leitor a conhecer outros aspectos daquele tema/
conteúdo. São curiosidades ou informações relevantes que podem ser associadas à discussão proposta.

SAIBA MAIS
– apresenta notas, textos para aprofundamento de assuntos
diversos e desenvolvimento da argumentação, conceitos, fatos, biografias, enfim, elementos que o auxiliam a
compreender melhor o conteúdo abordado.

INDICAÇÃO DE LEITURA
– neste campo, você encontrará sugestões de livros, sites,
vídeos. A partir deles, você poderá aprofundar seu estudo, conhecer melhor determinadas perspectivas teóricas
ou outros olhares e interpretações sobre determinado tema.

SUGESTÃO DE ATIVIDADE
– consiste num conjunto de atividades para você realizar
autonomamente em seu processo de autoestudo. Estas atividades podem (ou não) ser aproveitadas pelo professor-
formador como instrumentos de avaliação, mas o objetivo principal é o de provocá-lo, desafiá-lo em seu processo
de autoaprendizagem.

Sua postura será essencial para o aproveitamento completo desta disciplina. Contamos com seu empenho e
entusiasmo para juntos desenvolvermos uma prática pedagógica significativa.

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LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

Prezado(a) Cursista,

A Literatura Oral e Popular consiste no estudo das poéticas da


oralidade, suas formas de produção e recepção.
Os manuais de Teoria da Literatura privilegiam a produção literária
escrita, assim como a Crítica Literária costuma focar nos autores
canônicos, consagrados pela História da Literatura. Porém, em todas
as culturas há uma literatura oral cuja produção em geral faz parte da
tradição e da cultura popular. Este Módulo irá tratar dessa produção
cultural.
Com os conteúdos selecionados para este módulo, objetivamos
proporcionar ao estudante uma reflexão sobre as diversas formas de
produção, transmissão e recepção de obras literárias. Assim, este
material contém informações sobre o texto oral, seus narradores ou
intérpretes e as peculiaridades da criação literária cuja transmissão
se dá principalmente pela oralidade.
Na introdução, veremos os conceitos básicos para o entendimento
do tema da disciplina. Iremos conceituar literatura oral, cultura
popular e cultura de massa, além de apresentar de modo sucinto os
gêneros e formas da literatura oral e popular. O Capítulo I apresenta
um breve histórico da literatura de cordel na Europa e no Brasil.
Trata ainda das condições de produção e recepção dessa literatura
popular tão difundida no Brasil e que se tornou um marco da cultura
nordestina, suas relações com as narrativas orais e com a literatura
escrita. No Capítulo II faremos um estudo mais específico sobre as
narrativas orais e os diversos tipos de contos populares. No Capítulo
III estudaremos o romanceiro tradicional ibérico e sua permanência e
recriação em terras brasileiras. Nas Considerações Finais, propomos
uma reflexão sobre o lugar da literatura popular nos estudos literários
e sua presença na escola.
Esperamos com isso ampliar seu conhecimento sobre as várias
formas de criação literária, incluindo as poéticas da oralidade e a
produção popular. Será também um bom momento para recordar as
histórias de memória ancestral que ouvimos, guardamos, recriamos,
esquecemos e lembramos.
Seja bem vindo e bom estudo!

A Autora

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

LISTA DE FIGURAS (1641)


Figura 28 Garrafa de vinho
Figura 1 O acalanto: uma das formas da literatura Figura 29 Circo: um dos espaços para apresenta-
oral que primeiro conhecemos ção dos romances dramatizados
Figura 2 Brincadeiras infantis
Figura 3 Luís da Câmara Cascudo
Figura 4 Show musical
Figura 5 Caravela
Figura 6 Xilogravura do século XVI
Figura 7 Luiz Gonzaga: um dos ícones da cultura
nordestina
Figura 8 Literatura de cordel: folhetos pendurados
no cordão
Figura 9 Capa do folheto O pavão misterioso de
José de Melo Rezende
Figura 10 Os folhetos de cordel funcionavam como
jornais
Figura 11 Capa do folheto História do Capitão do
navio
Figura 12 Computador
Figura 13 Prensa de uma tipografia
Figura 14 Capas de folhetos: a transformação do
livreto ao longo do tempo
Figura 15 Mulher idosa
Figura 16 Reuniões à beira da fogueira: um convite
à contação de histórias
Figura 17 Caipora
Figura 18 Lobisomens
Figura 19 Silvio Romero: um pioneiro nos estudos
do folclore no Brasil
Figura 20 Antti Amatus Aarne (1867-1925)
Figura 21 Caveira: representa a morte da qual
ninguém escapa
Figura 22 Chapeuzinho Vermelho por Gustave Doré
(1883)
Figura 23 A Cigarra e a Formiga por Milo Winter
Figura 24 Esopo em pintura de Diego Velázquez
(1599-1660)
Figura 25 Castelo medieval
Figura 26 Gil Vicente
Figura 27 A Mulher Tapuia por Alber t Eckhout

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
1.1 O QUE É LITERATURA ORAL?
1.2 CULTURA POPULAR
1.3 CULTURA DE MASSA
1.4 GÊNEROS E FORMAS DA LITERATURA ORAL
2. CAPÍTULO I - LITERATURA DE CORDEL
2.1 UM POUCO DE HISTÓRIA
2.2 O CORDEL NO BRASIL
2.3 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E RECEPÇÃO
2.3.1 O cordel e as narrativas orais
2.4 O CORDEL NA CONTEMPORANEIDADE
3. CAPÍTULO II - O CONTO POPULAR
3.1 AS NARRATIVAS ORAIS: CONTOS, CAUSOS, LENDAS
3.2 TEORIAS DE GÊNESIS DO CONTO
3.3 TIPOLOGIA DOS CONTOS
3.3.1 Contos de encantamento
3.3.2 Contos de exemplo
3.3.3 Contos religiosos
3.3.4 Outros tipos
4. CAPÍTULO III – O ROMANCE TRADICIONAL
4.1 DEFINIÇÃO E ORIGENS DO ROMANCEIRO
4.2 TIPOS DE ROMANCES
4.3 O ROMANCEIRO NO BRASIL
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
GLOSSÁRIO
REFERÊNCIAS

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EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

ANOTAÇÕES

10 LICENCIATURAEM
LICENCIATURA EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

INTRODUÇÃO
EaD
EaD UNIVERSIDADE
UNIVERSIDADE DO
DO ESTADO
ESTADO DA
DA BAHIA
BAHIA

ANOTAÇÕES

12 LICENCIATURA
12 LICENCIATURA EM
LICENCIATURAEM LETRAS:
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
EMHISTÓRIA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

Assim como a literatura escrita que conhecemos,


em geral através das obras dos autores clássicos de
1.1 LITERATURA ORAL nossa literatura, a literatura oral expressa emoções e
sentimentos. Configura-se como um trabalho artístico
com a linguagem, além de revelar valores e modos de
Dentre as formas de expressão artística e cultural, a vida de um grupo social, como veremos mais adiante.
literatura é uma das que mais cedo entra em nossas vidas. A arte literária de um povo ou nação é um dos bens
Aprendemos na infância a falar e, logo que ingressamos simbólicos mais expressivos de sua identidade cultural.
na escola ou que adquirimos o conhecimento da escrita,
o estudo da linguagem nos proporciona o contato com
textos literários, em versos ou em prosa.
VOCÊ SABIA?
Porém, antes mesmo de nascer ou ainda na mais tenra
infância, quando acalentados no seio materno, ouvimos
canções de ninar. No início de nossa socialização, no A expressão “literatura oral” foi criada por Paul
convívio com outras crianças, brincamos com cantigas Sébillot e aparece pela primeira vez em 1881 na obra
de roda. Nas rodas de conversa, as narrativas se fazem Littérature oral de la Haute-Bretagne.
presentes. Os textos cantados ou narrados fazem assim
parte de nossas vidas desde muito cedo. Pois essa
produção literária que é transmitida pela oralidade e que
muitas vezes não sabemos a origem ou a autoria faz Todos os povos, mesmo aqueles que privilegiam
parte da tradição e nossa cultura. a escrita como forma de registrar e transmitir seus
conhecimentos, tem ou tiveram uma literatura oral
popular e tradicional. Em língua por tuguesa, ao
estudarmos o florescimento da poesia na Península
Ibérica, tomamos conhecimento de uma literatura
cantada, criada em associação à música e que era
executada pelos trovadores, jograis ou menestréis.
Inicialmente cantada, ou seja, transmitida oralmente, essa
literatura só mais tarde ganhou seu registro escrito nos
chamados cancioneiros, através dos quais chegou até
nós. Ao deixar de ser cantada nas cortes e palácios, a
literatura ganhou a forma escrita e passou a ser produzida
e recebida principalmente dessa forma. No entanto, nas
feiras, nas ruas e mercados, a produção oral e popular
seguiu ricamente, as vezes de forma paralela à produção
escrita, noutras se relacionando e trocando com ela.

FIG. 1- O acalanto é uma das formas da literatura oral que


primeiro conhecemos.
Fonte: http://www.morguefile.com/archive/display/43082.
Acesso em 24 jan. 2013.

LICENCIATURA EM LETRAS: LÍNGUA PORTUGUES E LITERATURAS 13


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

SAIBA MAIS

O mais importante estudioso da cultura popular


no Brasil do século XX foi Luís da Câmara Cascudo.
Ele nasceu no Rio Grande do Norte, na cidade
de Natal em 1898 e morreu em 1986. Publicou
mais de cem livros, com os mais variados temas,
dentre eles os contos, mitos, lendas, alimentação,
folguedos, jogos infantis, práticas funerárias,
jangada, rede, superstições. Foi uma vida inteira
dedicada ao estudo da cultura brasileira, à pesquisa
e catalogação de manifestações e a publicação de
obras que dão visibilidade a tudo isso. Sua obra o fez
reconhecido dentro e fora do país, tornando-se um
nome de referencia nos estudos folclóricos no Brasil.

FIG. 2 – Brincadeiras infantis


Fonte: http://www.morguefile.com/
archive/#/?q=file0001180986280. Acesso em 24 jan. 2013.

Desse modo é que temos hoje uma literatura


produzida e recebida através da escrita – ainda que possa
ser oralizada – e uma vasta literatura oral que, por seu
caráter popular, está presente em vários espaços sociais
como expressão de nossos valores e modos de vida.

Diferente da literatura escrita cujos autores são


nomeados, a literatura oral, por fazer parte da tradição, é
de autoria desconhecida. Sendo recriado cada vez que é
dito, um texto oral vai lentamente sofrendo modificações
ao longo do tempo e sendo composto coletivamente.
Desse modo, os textos são de domínio público, o que não
quer dizer que não tenha um autor, mas este se perdeu
no tempo e nas inúmeras recriações. FIG. 3 – Luís da Câmara Cascudo é considerado o mais
importante estudioso do folclore no Brasil do século XX.
Fo n t e : h t t p : / / c o m m o n s . w i k i m e d i a . o r g / w i k i / F i l e : A _
Cola%C3%A7%C3%A3o_de_grau_na_Faculdade_de_Direito_de_
Recife,_em_1928..jpg. Acesso em 07 mar. 2013.

14 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

de vida dos camponeses, diferenciando-o do modo de


INDICAÇÃO DE LEITURA vida burguês, em um momento histórico em que era
importante afirmar essas diferenças. Note-se que a
cultura serve para demarcar fronteiras hierarquizantes e
consolidar o poder de uma classe burguesa que já detém
Segundo Luís da Câmara Cascudo, o fato o dinheiro e que se utiliza de bens simbólicos para as
folclórico se caracteriza por: anonimato, transmissão acomodações sociais a seu favor.
oral, antiguidade, tradicionalidade. Confira em:
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no A partir dessa acomodação, a cultura dos pobres
Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, passa a ser vista como “folclore” e a da burguesia como
1984. “cultura”.

INDICAÇÃO DE LEITURA
1.2 CULTURA POPULAR E FOLCLORE

A sociedade de classes se organiza por estratos e


Para saber mais sobre este tema e sobre formula-
desse modo separa também as formas de expressão
ção do folclore enquanto ciência veja: BURKE, Peter.
cultural, hierarquizando. As culturas, entendidas aqui
Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia
como modos de vida (WILLIAMS,1992) de classes
das Letras, 1989.
populares ou de grupos hegemônicos são delimitações
de territórios sociais. Desse modo, a cultura popular
pode ser entendida como o modo de vida de pessoas que
estão à margem do poder, cujas formas de transmissão Porém, o conceito de cultura popular vem ao longo
de conhecimento, de festejar, de louvar a deus, de comer desses anos sendo revisto e reelaborado. Stuart Hall,
ou vestir se diferenciam dos modos de viver daqueles em Notas sobre a desconstrução do popular faz uma
que ocupam uma posição privilegiada na pirâmide social. importante reflexão sobre o tema e diz que “a cultura
popular é um dos locais onde a luta a favor ou contra
a cultura dos poderosos é engajada” (HALL, 2003, p.
VOCÊ SABIA? 263). E é enquanto tensão entre as diversas expressões
artísticas e culturais, atentos às relações entre os
diversos estratos sociais, que estudaremos a literatura
oral e popular.
Que o termo “folclore” foi criado por William
John Thoms? Utilizada pela primeira vez em 1846
na Inglaterra em uma carta publicada na Revista INDICAÇÃO DE LEITURA
Ateneu, a expressão foi usada no sentido de “resgate
de sobrevivências de uma cultura em extinção”.
Até hoje os estudos folclóricos apresentam essa
Para acompanhar melhor a discussão sobre
preocupação de preservar o que existia de curioso
cultura popular recomenda-se a leitura do texto:
e interessante em “antiguidades populares”.
HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do
popular. In: Da Diáspora: Identidades e Mediações
Data do século XIX a formulação do conceito de Culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
folclore (ou do inglês folk lore). O termo, utilizado para
indicar a “cultura do povo”, serve para delimitar o modo

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 15


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

1.3 CULTURA DE MASSA E INDÚSTRIA CULTURAL No mundo contemporâneo, com o avanço das
novas tecnologias, as formas de reprodução e difusão
Enquanto que a cultura tradicional é marcada pela das produções artísticas e culturais se ampliaram e
conservação e repetição do já dito e conhecido pela diversificaram. As sociedades, mesmo as de caráter
comunidade de seu entorno, a cultura de massa, embora mais tradicionais que se mantiveram por mais tempo
também seja a repetição de uma fórmula pré-aprovada, isoladas e com contato mais restrito com os meios de
caminha no sentido da inovação, do criar algo novo e comunicação de massa, tem acesso ao rádio, a televisão,
descartável para o rápido consumo e realimentação de a internet. Esse contato facilita e intensifica as trocas
um mercado cultural. culturais. Desse modo, a cultura de massa e a cultura
tradicional muitas vezes se entrelaçam.

A cultura popular tradicional não está, a princípio,


sujeita às leis do mercado e sua produção/recepção
relaciona-se a um fazer que identifica o grupo social VOCÊ SABIA?
e lhe dá sentido, diferenciando-o de outros. É local e
particular, mas produzida com a participação do grupo
como um todo, apagando as diferenças entre produtor/ Que a música sertaneja que ouvimos nas rádios
expectador. A cultura de massa tende a homogeneizar, e na televisão tem como base as modas de viola e
abrandando as diferenças locais para ampliar o público a música caipira de raiz? E que muitos dos artistas
alvo a quem se destina como espectador e consumidor. que formam duplas sertanejas famosas começaram
tocando e cantando a música tradicional?
Quando a cultura se transforma em bem de consumo
passa a ser vendida para gerar lucro e alimentar a
indústria cultural. A cultura popular tradicional na maior 1.4 GÊNEROS E FORMAS DA LITERATURA ORAL
das vezes está na base e realimenta a cultura de massa.
Por outro lado, o poeta popular também lança mão de
A literatura oral é vasta e diversa, incluindo muitos
elementos da cultura de massa na produção de sua arte.
tipos de textos. Nos capítulos seguintes estudaremos
mais detalhadamente o conto, a literatura de cordel e o
romance. Por ora veremos mais rapidamente algumas
outras formas da literatura oral popular.

Assim como na literatura escrita, os textos orais


podem ser em prosa, em versos ou dramatizados. E
do mesmo modo, contrariando a teoria clássica de
separação dos gêneros literários, há uma mistura de
tipos. Por exemplo, um romance é uma narrativa em
versos cantada e que pode ser dramatizada. Assim,
veremos algumas formas mais difundidas na literatura
oral no Brasil.

FIG. 4 – A transformação da cultura popular em espetáculo muda Muito provavelmente os acalantos ou cantigas de
suas formas de produção e recepção. ninar são os primeiros textos orais que conhecemos.
Fonte: http://www.morguefile.com/ Cantados de forma suave são canções que servem para
archive#/?q=file0002100084501. Acesso em 20 fev. 2013. acalmar e embalar o sono de crianças.

16 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

VOCÊ SABIA? SUGESTÃO DE ATIVIDADE

Que no Brasil, por causa do processo de Tente lembrar as brincadeiras de sua infância ou
colonização, muitos dos acalantos foram cantados das cantigas que já ouviu e/ou cantou. Exercite sua
por negras amas de leite que cuidavam de crianças memória e socialize com seus colegas, trocando
brancas? Por isso os temas das canções fazem informações e listando exemplos de seu contato
referência a essa situação ou trazem palavras de com a literatura oral.
dialetos africanos.
As parlendas são textos em verso, ritmados e muitas
vezes com rimas. Servem para exercitar a memória e
treinar a dicção. Por exemplo:
INDICAÇÃO DE LEITURA Hoje é domingo pé de cachimbo
Cachimbo de ouro
Que dá no besouro
Para saber mais sobre acalantos e a contribuição Besouro valente
africana recomenda-se o artigo As vozes do saber, Que dá no tenente
da Profa. Dra. Yeda Pessoa de Castro, publicado Tenente mofino
na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Que dá no menino...
Bahia v. 103 (jan-dez) 2008. Salvador: IGHB, 2008.
Disponível em: http://www.ighb.org.br/wp-content/
Semelhantes às parlendas são os trava-línguas,
uploads/2012/03/103-2008.pdf. Acessado em 23
formas curtas que aglutinam palavras e funcionam como
de março de 2013.
desafios. Objetivam também, além do divertimento,
melhorar a dicção. Exemplo de trava-língua:
Cantigas de roda são textos que podem estar Num ninho de magarfagarfos,
presentes em momentos de trabalho ou de lazer. Podem Cinco magarfagarfinhos há.
ser brincadeiras infantis cantadas por um grupo que, de Quem desmargafagar meu magarfagarfinho
mãos dadas, interagem. Na brincadeira, os participantes
vão alternando sua posição na roda: ora no centro, ora Bom desmagarfagador será.
fora dela. A brincadeira de roda pode também ter um
enredo dramatizado com as crianças assumindo papeis As adivinhas são jogos também conhecidos como
pré-determinados. “perguntas”. A partir da fórmula “o que é, o que é?” e
utilizando figuras de linguagem e duplo sentido, consiste
em um desafio de resolução de enigmas. Exemplos:
As cantigas de roda de estrutura aberta são utilizadas
também como cantos de trabalho quando um grupo
executa algum tipo de tarefa coletiva como raspagem O que é, o que é?
de mandioca em casas de farinha, lavagem de roupa ou De dia estão unidos e à noite estão brigados?
colheita. São chamadas abertas porque sua estrutura é (resposta: os colchetes)
composta de refrão e quadrinhas variadas: o grupo canta
a refrão e os demais, cada um a sua vez, vão “tirando O que é, o que é?
versos”. Cai em pé e corre deitado?
(resposta: chuva)

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 17


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA


INDICAÇÃO DE LEITURA SAIBA MAIS

Uma importante publicação sobre adivinhas nos Segundo o Prof. Manuel Viegas Guerreiro, a
países de língua portuguesa (Angola, Cabo Verde, expressão “literatura oral” é contraditória, pois o
Brasil, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São vocábulo “literatura”, littera, é a mensagem expressa
Tomé e Príncipe e Timor-Leste) é a coletânea da em palavra escrita, representada por letras. Apesar
professora Amélia Mingas: das controvérsias, é aceita hoje para designar as
MINGAS, Amélia Arlete (org.). Cole(c)tâneas de produções poéticas produzidas e transmitidas
literatura oral de/em língua portuguesa: advinhas. oralmente. No entanto, o medievalista Paul Zumthor
Angola: Instituto Internacional de Língua Portuguesa, e seus seguidores preferem o termo “poesia oral”.
2010.

As anedotas são narrativas curtas com fim humorístico No próximo capítulo veremos a Literatura de Cordel,
ou moralizante. São semelhantes aos contos ou causos uma das formas de produção popular mais representativa
que veremos mais adiante, às vezes até se confundindo da nossa cultura e que desper ta o interesse de
com eles. Alguns fragmentos de contos podem até serem pesquisadores do Brasil e do exterior. Embora impressos,
narrados como anedotas. O que difere as anedotas dos os folhetos de cordel fazem parte da literatura oral, como
outros tipos de narrativas é que sua estrutura é mais veremos adiante.
sintética, com uma única sequencia temática.

Além dos exemplos citados, na tradição popular


brasileira temos provérbios, rezas e benzeduras, além
de textos relacionados a folguedos ou drama populares
como reisados ou ternos de reis que fazem parte dos
festejos de natal; Bumba-meu-boi e marujada.

Enfim, como foi dito, há uma grande variedade de


formas da literatura oral que merecem ser estudadas
como modo de conhecer melhor a cultura brasileira.

INDICAÇÃO DE LEITURA

Para aprofundar seus conhecimentos sobre as


formas da literatura oral, você pode consultar:
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore
brasileiro. São Paulo: Global, 2000.

18 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

ANOTAÇÕES

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 19


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

ANOTAÇÕES

20 LICENCIATURA
20 LICENCIATURAEM
EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

LITERATURA DE CORDEL

CAPÍTULO 1
EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

ANOTAÇÕES

22 LICENCIATURA
22 LICENCIATURAEM
EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

Agora que já vimos as noções básicas e os


principais conceitos para compreender a Literatura Oral
e Popular, neste capítulo começaremos a estudar mais
detalhadamente as formas de expressão dessa literatura,
a começar pela Literatura de Cordel.

2.1 UM POUCO DE HISTÓRIA

Uma das formas da literatura popular mais conhecida


e difundida no Brasil é a chamada Literatura de Cordel.
Hoje reconhecida até no exterior como um dos símbolos
da cultura popular nordestina, a literatura de folhetos
começou a ser produzida na Europa, ainda na Idade
Média. Tratava-se de publicações baratas em folhas
avulsas comerciadas em feiras ou nas ruas que traziam
temas cotidianos ou davam notícias, em versos ou em
prosa.

FIG. 5 – Os primeiros folhetos nos chegaram a bordo das


Luís da Câmara Cascudo em seus livros Vaqueiros
caravelas.
e Cantadores e Cinco Livros do Povo discorre sobre
Fonte: http://www.morguefile.com/
as origens da literatura de cordel e aponta que já no archive/#/?q=file0001622797552. Acesso em 25 jan. 2013.
século XVII em Portugal circulavam nas feiras as “folhas
volantes” ou “folhas soltas”. Teófilo Braga informa que
Entre os séculos XVI e XVIII a literatura de cordel se
os cegos mercavam nas feiras os folhetos como uma
difundiu em Portugal com a popularização da impressa.
forma de sobrevivência. Era uma atividade regulamenta
Os folhetos podiam ser em prosa ou em verso e
por lei que visava evitar a mendicância e garantir um
tratavam dos mais variados temas. Muitos dos autores
trabalho regular aos deficientes visuais. Conhecidos
conhecidos hoje nos livros de História da Literatura
como pliegos sueltos na Espanha, os folhetos vendidos
como Gil Vicente, Luís de Camões e Antônio José da
pelos cegos tratavam de tema ficcionais ou davam
Silva tiveram suas obras publicadas em folhetos. Isso
notícias de atualidade. Estes últimos eram chamados
mostra a popularidade desses autores em sua época.
noticieros. O Prof. Raymond Cantel, grande estudioso
do assunto na Sorbonne, define cordel como poesia
narrativa popular impressa. Eram publicadas também histórias anônimas, de
caráter popular. Adaptações de contos populares e
romances, mas também textos de caráter histórico
Na França, a literatura de folhetos era chamada e noticiosos. Graças aos trânsitos de jograis e às
de littérature de colportage. Há registros de produção peregrinações comuns na Idade Média, folhetos origem
semelhante também na Inglaterra, na Itália, na Alemanha. espanhola, francesa ou italiana, ganham versões e
Sendo destinada ao grande público e com fins adaptações ao português. Assim, folhetos como História
comerciais, pode-se desse modo considerar a literatura de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, A Princesa
de folhetos como literatura de massa. As capas eram Magalona, História de João de Calais e A Donzela
baseadas no tema do texto com o intuito de chamar a Teodora, até hoje impressos, circularam intensamente
atenção e atrair o leitor, aumentando as vendas. naquela época.

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUES E LITERATURAS 23


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

A xilogravura é uma arte popular presente nas capas


dos folhetos. Resultado de uma técnica antiga, o artista VOCÊ SABIA?
utiliza a madeira entalhada como matriz, reproduzindo
a imagem no papel como se fosse uma espécie de
carimbo. A técnica serviu como solução para ilustrar as
capas dos folhetos de forma barata. Que a denominação “literatura de cordel” foi
criada pelos estudiosos a partir da década de 1970?
A denominação é justificada pelo fato dos folhetos
serem vendidos nas feiras pendurados em cordões
(cordéis). Os poetas populares chamavam suas
obras de “folhetos”, “romances” ou “arrecifes”.
Porém, o termo “cordel” hoje está generalizado e é
usado tanto por poetas quanto por pesquisadores
para designar a poesia popular impressa.

2.2 O CORDEL NO BRASIL

Inspirada na literatura francesa de colportage, nos


romances e pliegos sueltos ibéricos e na própria literatura
de cordel portuguesa, a nossa Literatura de Folhetos
(ou de Cordel) nasceu e desenvolveu-se no Nordeste
brasileiro, contando as sagas e a sabedoria do povo
FIG. 6 - Xilogravuras do século XVI ilustrando a produção da sertanejo. Atualmente, esta manifestação popular pode
xilogravura. No primeiro: ele esboça a gravura. Segundo: ele usa um ser encontrada em diversos pontos do país (e não mais
buril para cavar o bloco de madeira que receberá a tinta.
só nas feiras do Nordeste), sempre incentivada pelas
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Woodct_early.
demo.jpg?uselang=pt. Acesso em 20 fev. 2013.
comunidades nordestinas.

Como vimos, de origem europeia, essa literatura nos


chegou com os colonizadores, mas adquiriu aqui uma
Nada mais natural que, sendo tão popular na Europa
forma própria e se difundiu no século XIX pelo Nordeste
como forma de lazer ou informação, os folhetos tivesses
brasileiro. Os textos eram em folhas soltas manuscritas
atravessado o Atlântico nas caravelas, estando presente
ou impressas. Com o progresso das tipografias, muitas
nos serões para entreter marujos na longa viagem ao lado
montadas com máquinas descartadas por jornais que
das canções e narrativas que certamente fariam parte do
modernizavam seus parques gráficos, os modos de
repertório dos sujeitos que para cá vieram. Já em terra
produção e recepção dos folhetos se alteraram.
firme, do mesmo modo, fez parte da vida cotidiana dos
colonos desde os primeiros anos de instalação.
A literatura de folhetos caiu no gosto popular e
encontrou no Nordeste brasileiro um solo fértil para
se desenvolver. O primeiro registro que se tem da
produção de cordel no Brasil é do paraibano Leandro
Gomes de Barros, em 1893. Responsável também pela
implantação de uma indústria editorial que proporcionou
a muitos poetas populares publicarem suas obras

24 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

ainda no século XIX e primeiras décadas do século XX. Uma das formas mais comuns de estrofe é a quadra,
Empreendedor, Leandro Gomes de Barros foi poeta, autor ou seja, estrofes de quatro versos, geralmente, de sete
de inúmeros folhetos, editor, além de responsável pela sílabas. Hoje a quadra é pouco utilizada no cordel, sendo
comercialização de folhetos em João Pessoa Guarabira mais comum nas cantigas, nas emboladas e outras
e em diversos Estados do Nordeste. No entanto, as formas de poesia popular. Pode-se rimar apenas dois dos
primeiras tipografias eram no Recife. quatro versos ou rimar todos os versos alternadamente,
como no exemplo de Zé da Luz (s.d.):
No Brasil, os folhetos são escritos geralmente em
versos. As formas mais comuns são a sextilhas (estrofes E nesta constante lida
de seis versos), as septilhas (sete versos) ou décimas Na luta de vida e morte
(dez versos). A métrica mais usada é a redondilha maior, O sertão é a própria vida
ou seja, versos de sete sílabas. O exemplo abaixo é um Do sertanejo do Norte
fragmento da História da Donzela Teodora, de Leandro
Gomes de Barros (1965):
A sextilha, como já se disse, é a forma mais utilizada.
Trata-se de estrofe de seis versos de sete sílabas,
Eis a real descrição rimando o segundo, o quarto e o sexto. É também
Da história da donzela adotado pelos cantadores. Um exemplo de sextilha é
Dos sábios que ela venceu do famoso folheto “O cavalo que defecava dinheiro”, de
E aposta ganha por ela Leandro Gomes de Barros (s.d.):
Tirado tudo direito
Na cidade de Macaé
Da história grande dela.
Antigamente existia
Um duque velho invejoso
Que nada o satisfazia
VOCÊ SABIA? Desejava possuir
Todo objeto que via

Que para se saber a métrica dos versos, conta-se Menos comum é a septilha ou estrofe de sete versos.
até última sílaba tônica? Assim: O poeta Apolônio Alves dos Santos usa a septinha no
Eis a real descrição (eis-a-re-al-des-cri-ção) folheto A Discussão do Carioca com o Pau-de-Arara do
Da história da donzela (da-his-tó-ria-da-don-zé) qual foram retirados os versos abaixo:
Dos sábios que ela venceu (dos-sa-bios-que-‘la-
ven-ceu) Já que sou simples poeta
E aposta ganha por ela (e’a-pos-ta-ga-nha-por-é) poesia é meu escudo
Etc. com ela é que me defendo
Desse modo, sabemos que se trata de versos já que não tive outro estudo
redondilhos de sete sílabas. vou mostrar para o leitor
que o poeta escritor
vive pesquisando tudo
Os versos são agrupados em estrofes. A seguir
veremos outros exemplos de estrofação e métrica
também usados, tanto na poesia popular quanto na
produção literária escrita e canônica.

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 25


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

A estrofe de oito versos é chamada de oitava, oito-


pés-em-quadrão ou oitavas-a-quadrão. A oitava equivale Foi um tempo que o tempo não esquece
a duas quadras, com sete sílabas, por isso a designação Que os trovões eram roncos de se ouvir
de “quadrão”, mas a rima difere da quadra. Os três Todo o céu começou a se abrir
primeiros versos rimam entre si, o quarto com o último,
Numa fenda de fogo que aparece
e o quinto, o sexto e o sétimo. Assim, todos os versos
O poeta inicia sua prece
são rimados:
Ponteando em cordas e lamentos
Escrevendo seus novos mandamentos
Diga Deus Onipotente (A)
Na fronteira de um mundo alucinado
Se é você, realmente (A)
Cavalgando em martelo agalopado
Que autoriza, que consente (A)
E viajando com loucos pensamentos
No meu sertão tanta dor (B)
Se o povo imerso no lodo (C)
apregoa com denodo (C) Mais longos que os versos decassílabos do martelo
agalopado são os versos hendecassílabos do galope à
que seu coração é todo (C)
beira mar que possuem onze sílabas, como estes da
De luz, de paz e de amor. (B)
autoria de Dimas Batista (ano):

As décimas são estrofes de dez versos de sete sílabas. Eu cantando a Galope ninguém me humilha,
São também muito usadas por repentistas e em desafios.
Tudo que existe no mar eu aproveito,
Por serem estrofes mais longas também apresentam
Na ilha, no cabo, península, estreito,
um grau de dificuldade maior o que favorece ao poeta
demostrar suas habilidades e fôlego. Nas cantorias, as Estreito, península, no cabo, na ilha,
décimas desenvolvem motes. Leandro Gomes de Barros Em navio, em proa, em bússola e milha!
utiliza décimas no seu poema épico de cavalaria do ciclo Medindo a distância para viajar,
carolíngio “A batalha de Oliveiros com Ferrabraz”: Não quero, da rota, jamais me afastar,
Porque me afastando o destino saí torto;
Eram doze cavalheiros Confio em Deus avistar o meu porto,
Homens muito valorosos Cantando Galope na beira do mar!
Destemidos, corajosos
Entre todos os Guerreiros
Como bem fosse Oliveiros
VOCÊ SABIA?
um dos pares de fiança
Que sua perseverança
Venceu todos os infiéis
Eram uns leões cruéis Que o galope à beira mar foi criado pelo repentista
Os doze pares de França. cearense José Pretinho? Conta-se que José Pretinho,
envergonhado após perder um desafio em martelo
agalopado, retirou-se à beira-mar e ficou ouvindo o
barulho das ondas. Imaginou o som de um galope
Quando a estrofe é de dez versos de dez sílabas e assim ele criou o galope à beira mar, com versos
chama-se “martelo agalopado”, uma das modalidades de onze sílabas e mesma estrutura de décima e
mais antigas na literatura de cordel. O exemplo a seguir esquema rímico do martelo agalopado.
é da Canção Agalopada, de Zé Ramalho (1981):

26 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

Estas são apenas algumas formas de estrofação e


métrica. No que diz respeito à rima, a literatura de cordel
brasileira usa tradicionalmente as rimas consoantes, não
sendo muito aceita a rima toante.

SAIBA MAIS

Rimas consoantes:
As que se conformam inteiramente no som desde
a vogal ou ditongo do acento tônico até a última letra
ou fonema. Exemplo: fecundo e mundo; amigo e
contigo; doce e fosse; pálido e válido; moita e afoita.
Rimas toantes:
Aquelas em que só há identidade de sons nas
vogais, a começar das vogais ou ditongos que levam
o acento tônico, ou, algumas vezes, só nas vogais
ou ditongos da sílaba tônica. Exemplo: fuso e veludo;
cálida e lágrima;
FIG. 7- Luiz Gonzaga, um dos ícones da cultura nordestina.
Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/Literatura_de_ Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Luiz-Gonzaga-
cordel#M.C3.A9trica_e_Rima.Acesso em 07 mar. Est%C3%A1tua-de-bronze.jpg. Acesso em 11 mar. 2013
2013.
Alguns poetas se destacam na arte dos folhetos no
século XX, dentre eles estão Leandro Gomes de Barros,
João Melquíades da Silva, José Martins de Athayde,
Há muita rigidez formal na literatura de cordel, pois é
Manoel Camilo dos Santos, José Costa Leite e Antônio
considerado um bom poeta aquele que segue um padrão,
Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do
mantendo do início ao fim do folheto coerência nas
Assaré. Vamos agora conhecer um pouco sobre esses
rimas e na métrica. Os versos que escapam ao esquema
poetas.
métrico proposto são chamados de “pé quebrado”. Em
um desafio, por exemplo, o cordelista perde pontos na
competição se não seguir o padrão pré-estabelecido. Leandro Gomes de Barros nasceu em Pombal (PB)
em 1865 e morreu em Recife em 04 de março de 1918. É
considerado pioneiro na arte do cordel no Brasil. Sua obra
reúne cerca de 240 folhetos. Também conhecido como
“o primeiro sem segundo”, teve sua obra apropriada por
escritores como Ariano Suassuna que usa o argumento
do folheto “O cavalo que defecava dinheiro” em sua
mais importante obra, o Auto da Compadecida. Leandro
se destaca como editor, pois em 1906 ele compra uma
pequena gráfica e passa e editar seus próprios textos,
mas também de outros cordelistas. Entre as suas obras
mais importantes, pode-se citar: “O cavalo que estercava
dinheiro”, “História de Juvenal e o Dragão”, “História do

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 27


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

pavão Misterioso”, “Batalha de Oliveiros com Ferrabrás” empreendedor e, em 1942, instalou em Guarabira uma
e “Suspiros de um Sertanejo”. pequena tipografia de nome “Tipografia e Folhetaria
Santos”. O negócio progrediu, o poeta transfere-se para
Campina Grande, na época uma cidade promissora, a
SAIBA MAIS tipografia se modernizou e passou a chamar “A Estrella
da Poesia”, uma das mais impor tantes tipografias
especializada em cordel no Brasil. É dele o famoso folheto
Viagem a São Saruê e O Sabido sem estudo.
Leandro Gomes de Barros se destacou na história
do cordel no Brasil porque foi o primeiro a escrever
e editar versos, vivendo exclusivamente desta arte. José Costa Leite, nascido em 1927 em Sapé, Paraíba,
Publicou mais de mil folhetos e é até hoje um dos além de cordelista, é também um grande xilogravurista.
poetas mais lidos no Brasil. Começou a escrever versos ainda muito jovem. Na
década de 1940 faz as primeiras xilogravuras para ilustrar
seus próprios folhetos. São seus O rapaz que virou bode
e a Peleja de Costa Leite e a poetisa baiana. Escreveu
João Melquíades Ferreira da Silva (1869-1933) é muitos folhetos de picardia ou de safadeza como por
outro paraibano. Nasceu em Bananeiras e faleceu em exemplo A mulher da coisa grande e A pulga na camisola,
João Pessoa e é considerado um dos grandes poetas preferindo assinar estes com pseudônimos. Em 2006
da primeira geração da literatura de cordel. Foi soldado recebeu o título de Patrimônio vivo de Pernambuco.
do exército, participando da campanha de Canudos em
1897. Fixou residência em João Pessoa em 1904, mas
Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido
ficou conhecido como “cantor da Borborema” por causa
como Patativa do Assaré (1909- 2002) foi um poeta,
de sua estreita relação com o mundo rural paraibano.
compositor e cantor do Cariri cearense. Destaca-se
Publicou diversos folhetos, dentre os quais pode-se
por se consagrar como poeta e conseguir publicar sua
destacar História do Valente Sertanejo Zé Garcia, Peleja
obra em livro, além de ter suas composições gravadas
de Joaquim Jaqueira com João Melquíades e o famoso
por artistas como Luís Gonzaga e Fagner. Publicou
Romance do Pavão Misterioso cuja autoria é disputada
seu primeiro livro, Inspiração Nordestina, em 1956, no
com José Camelo de Melo Rezende.
entanto, sua obra mais conhecida é Cante lá que eu canto
cá, publicada em 1978. Foi reconhecido nacionalmente,
João Martins de Athayde (1880-1959) nasceu em sendo nomeado por cinco vezes Doutor Honoris Causa.
Ingá (PB) e morreu no Recife. Foi também poeta e editor Seu poema A Triste Partida foi musicado e tornou-se um
da primeira geração. Como Leandro Gomes de Barros e grande sucesso na voz de Luís Gonzaga.
Manuel Camilo dos Santos, foi proprietário de uma editora
especializada em cordel, e desse modo pode contribuir
para a divulgação da literatura de cordel produzida no
Brasil no século XX. Inovou usando fotografias de artista
de cinema nas capas dos folhetos. Como editor, comprou
da viúva de Leandro Gomes de Barros os direitos da
obra que passou a publicar com seu nome, criando uma
confusão de autoria de dezenas de folhetos.

Manuel Camilo dos Santos (1905- 1987) nasceu em


Guarabira (PB) e morreu no Rio de Janeiro. Destaca-se
como poeta editor, mas também como comerciante. FIG 8 – Literatura de cordel: folhetos pendurados no cordão.
Divulgou o cordel mascateando em diversas cidades Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Literatura_de_cordel.
do interior do Nordeste brasileiro. Manuel Camilo foi um jpg. Acesso em 11 mar. 2013.

28 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

Na Bahia destacamos ainda dois cordelistas: Cuíca Franklin Machado ou Maxado Nordestino (1943) é
de Santo Amaro e Rodolfo Coelho Cavalcante: baiano de Feira de Santana, jornalista e advogado. Além
de editor e proprietário da Editora Codecri (RJ), é também
José Gomes era o nome de batismo do poeta popular xilogravurista e autor de livros sobre o cordel. Sua obra
e cronista do cotidiano conhecido como Cuíca de Santo acentua uma veia cômica e jornalística, abordando
Amaro. Cuíca viveu em Salvador, Bahia, dos anos 40 assuntos sociais e políticos. Alguns de seus folhetos que
aos 60 e sua atuação como agitador e uma espécie de demostram isso são Eu quero ser madamo e casar com
repórter do cotidiano da cidade, inspirou Jorge Amado feminista, Debate de Lampião com uma turista americana
em dois de seus romances. Seus versos eram vistos e A madame sulista que foi no mangue baiano, dentre
como perigo para os poderosos, pois muitas vezes se outros. Sobre cordel, escreveu O que é literatura de
propunham a revelar segredos escandalosos. Do mesmo cordel e O cordel televisivo – futuro, presente e passado
modo criticava as pessoas comuns e as hipocrisias da literatura de cordel, ambos editados pela Codecri.
da sociedade. Vendia seus folhetos na parte baixa do
Elevador Lacerda, próximo ao Mercado Modelo e foi João Antônio de Barros ou Jotabarros, como é mais
assim que ganhou a vida por cerca de vinte anos. conhecido, nasceu em Glória do Goitá, Pernambuco,
em 1973 e morreu em São Paulo em 2009. Foi
Enquanto Cuíca de Santo Amaro ficava na Cidade poeta e repentista, mas consagrou-se na ar te da
Baixa, Rodolfo Coelho Cavalcante (1919- 1987) xilogravura e, como poucos, Jotabarros conseguiu
ocupava a Praça Municipal, na saída do Elevador Lacerda. viver exclusivamente de sua obra. Entre seus folhetos,
destaca-se A metamorfose é só em São Paulo e Bebê
Nascido em Alagoas, Rodolfo Coelho Cavalcante diabo apareceu em São Paulo. Um tema recorrente em
chegou a Salvador em 1945, onde se fixou como seus folhetos é do nordestino como ele exilado na cidade
cordelista e editor de folhetos. Era um líder e fundou grande.
A voz do trovador, O trovador e Brasil poético, órgãos
do movimento trovadoresco. Em 1955, realizou, com
Manuel d'Almeida Filho, o I Congresso Nacional de
Trovadores e Violeiros, ocasião em que foi fundada a INDICAÇÃO DE LEITURA
Associação Nacional de Trovadores e Violeiros. Sua
obra, extensa e de temas variados, teve alguns títulos
publicados pela Editora Luzeiro. Dentre seus folhetos
mais conhecidos estão A chegada de Lampião no céu, Para conhecer mais cordelistas, recomenda-se a
ABC dos namorados, História do Príncipe Formoso, A leitura do dicionário:
moça que bateu na mãe e virou cachorra. ALMEIDA, Átila Augusto F. & SOBRINHO, José
Alves. Dicionário bio-bibliográfico de repentistas
e poetas de bancada. João Pessoa: Editora
Universitária, 1978.
INDICAÇÃO DE LEITURA

A canção Vaca Estrela e boi Fubá gravada por


Fagner no disco Eternas Ondas (1980) é de autoria de
Patativa do Assaré. Confira em: http://www.youtube.
com/watch?v=tvzzNyQhGow.

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 29


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

Nas tipografias especializadas, o editor era também


poeta e leitor/ouvinte da poesia popular. Com essas
tipografias a literatura de folheto passa a ter condições
de editoração específicas. Cria-se um mercado editorial
especializado em publicação de folhetos que é organizado
e mantido também por poetas que assumem essa função.
Um dos poetas-editores mais importantes é o já citado
Manoel Camilo dos Santos.

FIG. 10 – Os folhetos de cordel funcionavam como jornais.


Fonte: http://www.morguefile.com/
Fonte: Editora Luzeiro, edição de capa policromada. Disponível
archive/#/?q=file0002281805.jpg. Acesso em 05 fev. 2013.
em: <http://editoraluzeiro.com.br/12-o-pavao-misterioso.html>.
Acesso em 21/02/2014.
Tendo conhecimento profundo do assunto, o editor
Uma mudança considerável nas condições de fazia a triagem do que iria ser impresso, orientava os
produção do cordel no Brasil ocorre quando surgem as poetas menos experientes, definia a quantidade de
tipografias especializadas, no início do século XX. Até exemplares de acordo com o mercado, fazia ainda a
certa altura dessa história os poetas imprimiram seus revisão do texto e até mesmo podia interferir na versão
folhetos em tipografias que trabalhavam com impressos final do poema. Também as capas passam por uma
de um modo geral. Os editores, portanto, não tinham elaboração visando tornar o livreto mais atrativo aos
conhecimento das especificidades do material a ser leitores/ouvintes.
impresso nem do público a que se destinava.
Com a participação de um editor que tem conhecimento
Segundo o pesquisador Maurílio Antônio Dias( 2010, do assunto, o sistema de distribuição também pode se
pp. 31-32), ampliar. A indústria editorial do cordel, na primeira metade
do século XX torna-se meio de renda e forma-se uma
A história da editoração na literatura chamada de “cordel” complexa cadeia que envolve poetas populares, editores,
no Nordeste brasileiro está relacionada com a história da tipógrafos, distribuidores, comerciantes e leitores. Há,
imprensa e da indústria no país e na região. É necessário portanto, uma espécie de profissionalização da indústria
compreender como o surgimento das tipografias no Nordeste editorial do cordel.
brasileiro deu ensejo a esse tipo de impresso, sabendo-se
que para tanto devem ser consideradas as relações sociais
e culturais que contingenciaram as condições de produção
do folheto.

30 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

O formato mais comum dos folhetos era do tamanho


11 x 15 cm. O papel era de baixa qualidade e, nos Moralmente conservadores, muitos folhetos tomam
primeiros anos, muitas vezes a contragosto do autor, as como tema a vida de personagens conhecidos do
capas eram em xilogravura. Nos anos 30 eram comuns povo do sertão, como Lampião, Padre Cícero ou Frei
capas com a reprodução de fotos de artistas do cinema Damião. Nomes impor tantes da História do Brasil
americano. Com a especialização do mercado editorial como Getúlio Vargas ou acontecimentos catastróficos,
dos folhetos as capas também foram se modificando secas e enchentes, tudo isso é tema dos folhetos que
até chegarmos às capas coloridas, marca registrada da demarcam assim sua função de noticiário e jornalística.
Editora Luzeiro. É justamente por essa aproximação com a vida cotidiana
que despertavam o interesse nos ouvintes.

VOCÊ SABIA? VOCÊ SABIA?

Tidas hoje como um ícone da cultura popular e O folheto de autor desconhecido A lamentável
valorizada no mercado de arte, a xilogravura surgiu morte de Getúlio Vargas, publicado no mesmo dia do
como uma espécie de “quebra-galho” para substituir suicídio do ex-presidente, vendeu 70.000 exemplares
as “capas cegas” (sem ilustração). em 48 horas.

A recepção das histórias em versos podia acontecer


em praça pública, nas feiras, com o poeta cordelista INDICAÇÃO DE LEITURA
recitando seus versos que eram ouvidos e memorizados
para depois serem novamente recitados ou narrados em
prosa por quem os ouvia. Muitas vezes a recitação era
acompanhada de música. Isso ajudou na popularização Para aprofundar informações sobre este tema,
dessa literatura que falava de temas cotidianos e caros recomenda-se a leitura de:
aos ouvintes: histórias de aventura, dramas familiares, ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos.
artimanhas de malandros ou fatos acontecidos e de São Paulo: Mercado de Letras, 2006.
comoção coletiva.

Por outro lado, há um grande número de folhetos de


A literatura de cordel se tornou tão presente na vida assuntos fantásticos, aventuras cavalheirescas, temas
popular que era usada como livro texto para ensinar bíblicos que ressoam na cultura sertaneja. As narrativas
as crianças (e adultos) a lerem, como uma espécie de orais populares serviram também como matriz para
cartilha. inúmeros folhetos, como veremos a seguir.

Os folhetos estavam presentes nos serões para 2.3.1 O Cordel e as narrativas orais
a leitura coletiva nos tempos em que o índice de
analfabetismo no Brasil era enorme. O sujeito que
sabia ler recitava os versos para outros tantos, muitos O poeta popular é conhecedor de um vasto repertório
analfabetos e que conheciam a literatura através da voz que envolve tanto a literatura oral, quanto a escrita e a
do outro. Possuir os livretos era também motivo de cultura de massa. Como todo artista, seu texto é uma
orgulho entre os sertanejos por representar um símbolo síntese comunicativa dos textos dos quais ele lança mão
da cultura letrada. para compor sua obra. Dentre os textos que fazem parte

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 31


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

do repertório desses poetas temos a Bíblia, o Lunário – Ora menino, diga que quer ser na velhice porque nós já
Perpétuo, almanaques, livros de História e Geografia. estamo tudo de bom. Aí ele, dormindo, no outro dia, tornaram
a fazer esta pergunta. Ele disse assim:
Todos esses textos contribuem com informações que
– Eu quero na velhice.
serão matéria prima a ser versificada. Além desses textos
Manheceu o dia, ele saiu pra ir procurar as coisa. Ver as
escritos, os contos orais e os romances tradicionais
roça, fazenda, ver uns animais, essas coisa. Nisso chegou
oferecem temas variados que irão reaparecer nos um dos empregados, disse assim:
folhetos. – Ói patrão, tem uma fazendo do senhor pegando fogo.
Ele correu e foi. Tava tudo acabado. Quando ele vai
Sempre houve, desde as primeiras manifestações chegando em casa, vem um senhor, diz assim:
do cordel, uma estreita relação com a tradição oral. – Oh, seu João, morreram uns bois.
Muitos motivos e temas da oralidade são aproveitados – Quê?! Meus bois morreram? Por quê?
pelos poetas populares, assim como textos orais são – Morreu, não sei, mas morreu.
recriados nos livretos de cordel. Já na Península Ibérica, E foi indo, foi indo, menos de uns quinze dias, tava tudo
os pliegos sueltos divulgaram romances tradicionais acabado. Ela estava grávida. Teve esta uma criança, um dos
meninos. Ela cortando o que podia, já estava meia pobre,
como o Gerineldo e A penitência do rei Rodrigo. Do procurando assim, ele disse:
mesmo modo, folhetos são recontados em verso ou
– Eu vou deixar esse menino crescer que é pra nós se
prosificados por narradores que, por esquecimento ou mudar daqui. Como é que nós vamos ficar num lugar desse
comodidade, se apegam ao enredo e preferem contar a com esse povo todo... empregados meus tão indo me ajudar
história sem a versificação. a viver? Como é que eu viver? Tá vendo? Foi aquele maldito
daquele sonho!
Seja a partir de versões escritas ou da oralidade,
Aí a mulher dando todo apoio a ele, as empregado, todo
as narrativas vão sendo incorporadas, absorvidas e
mundo saiu. O menino já crescido, ela panhava e ia lavar
reelaboradas pelos poetas que transpõem em versos roupa. Quando ela está lavando roupa ali, cai o menino dentro
muitos textos da tradição oral popular. d’água e morre. E sai chorando e diz ao marido:
– Ai! Nosso filho pequeno morreu!
Folhetos de encantamento são contos de encantamento Ele fez o enterro, disse:
recontados em versos. Veremos mais detalhadamente – É, não tá dando mais pra eu ficar aqui não, de jeito
nenhum. Eu vou ver se vendo essa casa e mais essas
este assunto quando tratarmos do conto popular. Por
bobagezinha pra sair.
outro lado, também os folhetos de cordel podem sofrer
Ele não tinha costume de estar naqueles trabalhos braçal
um processo de prosificação e se tornarem contos assim, não é? Ela disse:
populares. É o que acontece com o folheto História – Eu vou lavar logo as roupas todas porque nós vamos
do Capitão do Navio de Silvino Pirauá de Lima (s.d.) e ver pra onde é que nós vamos.
a História de João Peregrino, narrada por Dona Carlo Aí quando ele está lavando, chega um escalerzinho de
Couto Farias: navio, pegou ela, botou dentro do escaler e ela gritando:
– Não! Eu tenho marido! Eu tenho gente! Não me leve!
Não me leve! Meu marido vai ... não posso! Não quero ir!

Aí pegaram, botaram naquele navio, botaram na borda do
A História de João Perigrino navio, prisioneira porque ela não aceitou nenhum daqueles
(o capitão do navio) homens. O Capitão disse:
– Você vai ficar prisioneira, só vai sair daí quando você
Diz que era um homem, casado, vivia muito bem, quiser ser minha.
tinha fazendas, tinha gado, tinha muitas coisas. Mas, ele – Mas antes vocês me jogarem logo aqui nesse alto mar,
estava dormindo um dia, a mulher viu ele estar se batendo: mas eu não quero.
– Ora, eu não quero ir! Quando o marido chega, nada de encontrar com os filho.
– O que foi? Chegou em casa, os filhos disse:
– Olhe, uma voz que está aqui me dizendo se eu quero – Mamãe não veio. Tava lavando, não sei pra onde ela
ser feliz agora na mocidade ou quero ser feliz na velhice. foi, já fui lá e ela não está.
A mulher, na inocência, disse assim: Aí ele disse assim:

32 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

– A coisa não tá boa. Vou-me embora. Nós vamos somente pra servir ao rei nas horas porque ele estava
embora porque aquela voz é uma voz maldita e eu vou acamado. Levou muitos anos. E aquele navio que saiu, que
terminar ficando sozinho. estava com a mulher dele, estava passando de portos em
Aí saíram. Ele pegou os dois e foram, fizeram viage. portos, passava anos em um canto, anos em outro, não
Fizeram viage, mas a viagem muito distante, ele não sabe? Ela ali prisioneira. O capitão sempre está fazendo
encontrava abrigo, um lugar pra ficar assim. Andando, aquela proposta a ela pra ver se ela queria, ela não aceitava.
andando, andando, andando... Quando chegou em um lugar, Quando chegou nessa ocasião, chegou naquele navio,
ele tinha uma alimentaçãozinha pra fazer com os dois filho, naquele porto, mas ele não mostrou o rei aquela criatura. O
ele aparou num lugar que tinha um lago. Ele disse para um navio fez o que tinha que fazer, saía novamente. E ele nada
dos meninos: de mostrar. Os rapazes, os filhos dele, foram criados no
mato, depois deram em outra cidade, chegou dezoito anos,
– Olhe, tem este lago, eu vou atravessar seu irmão, você
foram servir o exército. Nesse meio tempo, o rei morre,
sente aqui, não saia, eu vou atravessar seu outro irmão no
mas quando morreu, passou o reinado pra ele, não sabe?
outro lado.
Ele ficou sendo o rei. Depois de muitos anos, aparece lá um
Aí foi atravessar. Botou nas costa e foi nadando nos soldado que estava servindo o exército. Isso já tinha passado
lugares que podia nadar, no lugar que dava pra ele andar, dezoito anos. Ele estava sentado no navio, os dois menino,
ele andava com o menino nas costa. Chegou lá no outro contando. Um virava pro outro, disse assim:
lado, disse assim:
– Mas menino, eu estou aqui, tou me lembrando da
– Olhe, fique aí sentadinho que eu vou buscar seu outro minha vida. Eu já fui uma pessoa que tive dinheiro. Eu me
irmão que eu deixei lá sentado. lembro, quando eu era menino, meu pai tinha até boi, tinha
Quando ele voltou cá, não encontrou. Saiu por ali, isso, tinha aquilo...
chamou, chamou: – Meu pai também.
– Meu filho! Fulano! Venha cá, fulano! Aí, o que ele contava, o outro também... aí se abraçaram
Andou um pedaço, disse: e ela está ali na borda observando. Aí quando eles se
– Eu vou ver o outro. abraçaram que começaram a contar...
Quando ele chegou no outro lado, não encontrou o outro. – E minha mãe morreu afogada.
Ficou ele sozinho. Andou que foi horror. Andou, andou, Ela aí:
andou... nada de encontrar. Aí ele já chegou neste lugar, onde – Psiu! Psiu! Psiu!
ele encontrou um comércio grande, depois de muito tempo,
– Ih, tem uma pessoa que ouviu a nossa conversa. Nós
ele chegou em um lugar. Disse:
vamos ser preso.
– Eu vou até varrer rua, sabe? Qualquer trabalho. Tra-
Aí ele saltou pra poder contar aquilo ao rei, aí contou
balho em qualquer coisa. Eu sou uma pessoa de bem, vou
ao rei aquilo. Quando ela viu ele saltar, ela disse assim ao
chegar às autoridades pra falar pra não pensar que eu sou
Capitão:
uma pessoa à toa.
– Venha cá, eu hoje vou aceitar o senhor, mas eu preciso
Aí chegou, foi e disse que ele queria um trabalho. Aí
soltar pra comprar uma roupa. O senhor pode até ir comigo.
disseram:
Aí foi, acompanhando aqueles dois rapazes. Um rapaz
– Trabalho assim não tem.
aí procurou o rei. Aí ele disse:
Nisso o rei mandou chamar e disse assim:
– Ah, eu quero falar com esses dois rapazes... Achei tão
– Vá varrer a frente do palácio. bonitinho esses meninos.
Ele ficou varrendo somente ali o palácio. Com o passar Ela já sabia que era filho dela. Aí quando chegou ali,
dos tempos, muito tempo, o rei tomou amizade a ele, né? disse assim:
Disse assim:
– Rei, meu senhor, eu quero contar uma história que
– Mas que beleza! Ele como é tão bom! Interessante eu vi...
esse senhor.
– Ah, é?...
Sentavam pra conversar de noite, ficam amigos. Um dia,
– A senhora, o que é que quer?
o rei apareceu com uma doença. A rainha precisava ter uma
pessoa pra fazer aquele serviço, ele disse: – Eu quero ouvir a história que esses dois rapazes
estavam contando.
– Não, rei meu senhor, quem vai fazer sou eu.
– Não tava contando nada, minha senhora.
Ele ia, dava banho, cuidava, tudo. O rei pegava e dizia:
– Estava. Aquela história que vocês estavam contando
– Não, esse homem é uma pessoa boa, vamo botar
um ao outro, se abraçaram...
ele aqui.
– Ah, rei meu senhor, não foi nada. Não tava falando nada
Ele já não foi mais varrer rua, já ficou ali por dentro
de mais. Foi a minha vida.

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 33


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

– Conte sua vida, o que é que tem sua vida? quando velho ficar. O personagem segue o conselho de
Aí contou tudo. Aí ele saiu, se abraçou e disse: sua mulher que lhe diz:
– Ai! Vocês são a minha família! Queira padecer em moço
Aí terminou a história. antes de velho ficar
você enquanto for moço
Fonte: narrado por Carlota Couto Farias, 59 anos, natural de
tem força pra trabalhar.
Taperoá-BA. Salvador, 16.04.88. Recolhido por Doralice Alcoforado
e Edil Silva Costa.

INDICAÇÃO DE LEITURA

O folheto História do Capitão do navio está


disponível em: http://blogdotataritaritata.blogspot.
com.br/2008/07/literatura-de-cordel_14.html.
Acesso em 08 mar. 2013.

SUGESTÃO DE ATIVIDADE

Leia o folheto História do Capitão do Navio e


compare o cordel com o conto de Dona Carlota
História de João Peregrino. Observe o que muda e o
que permanece em ambos os textos. Figura 11 - Capa do folheto História do Capitão do navio.
Fonte: Editora Luzeiro. Disponível em: <http://editoraluzeiro.
com.br/cordeis/75-o-capitao-do-navio-luzeiro.html>. Acesso em:
22 fev. 2014.
No Brasil, não obstante a variedade temática, a
literatura de cordel veicula a moral e a ideologia popular, Sua desgraça começa com o empobrecimento.
apresentando histórias por vezes trágicas, tristes ou A mulher é raptada pelo capitão do navio, os filhos
cômicas. O folheto de cordel História do Capitão do Navio se perdem, para no final todo o sofrimento ser
narra uma história de amor e sofrimento, como tantas recompensado, quando eles já envelheceram. O
outras que atingem a popularidade. Silvino Pirauá é um sofrimento que permeia as sextilhas de Silvino Pirauá é,
dos mais antigos cordelistas nordestinos. Nascido na como nos contos populares, compensado com um final
Paraíba em 1848, ele é apontado como grande divulgador feliz e o castigo para o vilão. São ao todo 75 sextilhas,
do romance rimado e suas sextilhas obedecem ao forma mais tradicional do cordel brasileiro. Quando ao
esquema rímico ABCBDB. O folheto História do Capitão conteúdo, o texto apresenta motivos da tradição oral
do Navio não está datado e, pela classificação da Editora como a pergunta da voz misteriosas e os conselhos da
Luzeiro, seu tema é o “sofrimento”. Narra a vida de um mulher. São também temas tracionais presentes nos
homem que perde a mulher e os filhos, assim como toda contos a fidelidade amorosa e a bondade recompensada,
a sua fortuna, após dar a resposta a uma voz misteriosa o castigo para o malfeitor, o bem que vence o mal. O
que lhe pergunta se ele quer passar bem em moço ou motivo da pergunta misteriosa está presente na História

34 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

de João Peregrino, narrado por Carlota Farias, e também a expressão desse conteúdo. Mesmo nos textos
no conto Árvore da Campanária, narrador por Esmeralda tradicionais escritos como o cordel, a tradição, marcada
Zuanny, em Salvador/BA: por uma fórmula-padrão, é mais importante que o autor
e, por essa razão, há uma tendência para o apagamento
Quando foi um dia, a princesa estava sentada assim no do mesmo. A fórmula-padrão, nesse caso, as sextilhas,
jardim, viu aquele pássaro dizer: podem ser conservadas ou não.
- Moça, ó moça! Cê quer passar trabalho na velhice ou
na mocidade? Menéndez-Pidal (1972) afirma que o texto tradicional
separa-se do autor e segue seu próprio caminho, sendo
Como no folheto, a pergunta é feita três vezes. Na modificado por seus recriadores. Nem sempre essa
terceira vez, aconselhada pelo rei sue pai, a princesa interferência se dá para empobrecer o texto, mas pode
responde: “Na mocidade!” Em seguida é apanhada pelos também, ao contrário, melhorá-lo, enriquecendo-o com
cabelos por um pássaro que a leva até a floresta. A partir detalhes e colorido. O narrador-poeta é aquele que amplia
daí, começam os trabalhos para a princesa, da mesma o texto, nunca reduz, acrescenta elementos novos de
forma que no cordel os sofrimentos para o homem e modo a não se perder a unidade e mesmo que retire algo
sua família. que não lhe agrade ou que censure, compensa a perda
com talento e habilidade.
Na versão de Dona Carlota conserva-se os motivos
básicos e o tema do folheto que é tomado como matriz Enquanto que na literatura canônica há tanta
(Ferreira, 1979) para a narrativa oral. Há aproximações e preocupação com a forma, principalmente na literatura
distanciamentos do texto oral para o folheto. É possível moderna, na literatura popular a forma está sempre
que a forma de aprendizado do texto interfira na maior sujeita a variações e é o conteúdo que exige maior
fidelidade ou não à matriz: quando o texto é aprendido atenção e cuidado. O que importa é criar um espaço
pela transmissão oral tem mais chances de ser inovador; simbólico e significativo onde tudo é possível e a fórmula-
quando aprendido diretamente do folheto, o texto padrão deve ser a que melhor se adapte ao que o narrador
oralizado é mais fiel ao texto impresso. A consciência queira expressar.
do narrador em relação ao autor do folheto e o respeito
à autoria é fundamental nessa fidelidade. O texto oral éÉ no simbólico que se entrecruzam o real e o
anônimo e a apropriação do que é ouvido é mais direta
maravilhoso que torna possível, por exemplo, o motivo
por parte de quem narra. Uma vez que o texto entre da voz misteriosa que, na versão de Dona Carlota,
em processo de tradicionalização e o autor vai sendomais realista que no cordel, aparece em sonho para o
esquecido e “ignorado”, o narrador vai refazendo o texto,
personagem. A resposta à voz é a resposta ao destino
recriando e produzindo novas versões e variantes. Pode-
do homem que aceita o convite para a aventura da vida
se encontrar versão em prosa que conservam alguns que se lhe apresenta. Ao responder, o indivíduo abre
versos, o que indica a presença do folheto na memória
mão de toda tranquilidade e segurança para enfrentar as
do narrador, enquanto que a forma totalmente em prosa
desventuras (necessárias) da mocidade. Seu processo
revela o esquecimento do folheto ou, pelo menos, suade aprendizado só termina quando, depois de despojado
desconsideração. Nesse caso, se diz que o folheto está
de seus bens materiais e de sua família, ele consegue
sendo tradicionalizado, uma vez que a prosa facilita a
firmar-se, graças à sua integridade moral. O texto
veiculação do texto e deixa o narrador mais à vontade
reflete bem a moral cristã que dita que só através do
para imprimir suas marcas pessoais no texto. sofrimento o homem consegue se reerguer e conquistar
seu equilíbrio. Tudo isso se dá de modo solitário, isolado.
Analisando a tradição como expressão e conteúdo, Cada personagem assume seu espaço simbólico,
nota-se não só a presença de temas e motivos dividido em facções bem definidas: seres ligados ao bem
tradicionais, como também de fórmulas-padrão para ou ao mal. De um lado, o capitão do navio, a meretriz; de
outro, a mulher fiel, o marido honesto, o rei (símbolo do

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 35


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

poder absoluto e da justiça), os filhos soldados (a lei). É tecnologizada. Fatores como a globalização e, em sua
claro o jogo de valores a que todos os personagens são consequência, como nos sinaliza Stuart Hall (1999), a
submetidos e é essa simbologia que deve ser transmitida, emersão das culturas locais têm favorecido essa conexão
independente da fórmula-padrão que seja escolhida. do tradicional com o inovador.

O narrador tem o conhecimento de uma “gramática”


que comanda a formulação da poética tradicional e é
graças a isso que recria versos, sextilhas inteiras. A
prosificação do cordel é a substituição de uma gramática
por outra – a da prosa – que ocorre pela provável falta
de domínio ou insatisfação em relação à primeira. O
conto popular, que estudaremos no próximo capítulo,
tem se mostrado como a forma muito viva na tradição
oral do Brasil, mais um motivo para que ele possa, se
não substituir o cordel, contribuir para sua recriação.
Também o fato da prosa deixar o intérprete mais livre para
se expressar e acrescentar novos elementos favorecer o
narrador criativo a ampliar seu texto.

O contador de histórias é uma autoridade entre seus


pares. Sua voz é o instrumento da tradição, transmite
ideologias e tem também o poder de escolher a melhor
forma para seu texto. Se a forma em verso tornou-
se insuficiente para a expressão de sua fantasia e
criatividade, então ele busca outra que corresponde aos
seus anseios com o consentimento ou aceitação do FIG. 12 – O uso do computador proporciona novos meios de
produção, comercialização e recepção da literatura popular. Fonte:
público que lhe confere com o devido respeito esse poder. http://www.morguefile.com/archive/#/?q=file0001104712847.
Acesso em 05 fev. 2013.
2.4 O CORDEL NA CONTEMPORANEIDADE
Os folhetos de cordel editados, ainda de forma
A literatura de cordel permanece se atualizando como caseira, mas usando a tecnologia da informação, são
toda produção tradicional. Muitas vezes foi anunciada a exemplo de como a convivência do tradicional com
“morte” da literatura de cordel, assim como do jornal e o tecnológico é possível e pode ser benéfico. Sites
das manifestações populares de modo geral. No entanto, disponibilizam folhetos inteiros, há um sem número de
além dos clássicos folhetos que continuam sendo fontes de pesquisa na internet, páginas eletrônicas de
editados, novos poetas vão surgindo e se filiando a essa associações como academias de literatura de cordel etc.
corrente literária que valoriza a expressão tradicional e
popular. Alguns poetas que escrevem em outros formatos
também têm adotado o cordel sistematicamente como
forma de expressão.

O século XXI, marcado pelo avanço tecnológico, mas


também pela desigualdade social, assiste a uma lenta,
porém contínua inserção de grandes massas antes à
margem dos grandes centros em uma cultura urbana e

36 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

Carlos Barreto e Jotacê Freitas. O texto cita personagens


históricos, como Cabral, Napoleão ou Maria Bonita,
dialogando com possíveis internautas. Inspirados na
rede mundial de computadores, os autores arriscam uma
síntese de um comportamento internético:

Essa tecnologia tem utilidade boa


Você lê, escreve e fala
Namora e transa à toa
Negocia na Internet
Engana e mente pra peste
E inferniza as pessoas.

O livreto pode ser adquirido através do site http://


www.espacodoautorbaiano.com.br, mais uma inovação
FIG. 13 – As primeiras tipografias especializadas na impressão dos cordelistas urbanos.
de cordel muitas vezes aproveitavam maquinário descartado por
gráficas que se modernizavam. Fonte: http://www.morguefile.com/
archive/#/?q=file3041261909672. Acesso em 05 fev. 2013. SAIBA MAIS

Como toda expressão cultural, a literatura de cordel


vai sendo reinventada, adaptada, refuncionalizada.
Porém, alguns aspectos parecem permanecer com mais As modificações das capas nos informam sobre
insistência e talvez porque relacionadas a sua função: as modificações dos folhetos ao longo do tempo.
a condição de noticieira, de partir justamente de temas Importante lembrar que há a convivência dos vários
atuais, “frescos” no contexto social onde circula. estilos.

Muitas mudanças certamente ocorreram desde o


século XIX no formato das capas e nos temas abordados
INDICAÇÃO DE LEITURA
(sempre interagindo diretamente com o contexto), mas
permanece sua funcionalidade: o cordel é uma literatura
informativa, de divertimento e também de ensinamentos.
Essas funções continuam existindo e certamente dão
razão de ser aos folhetos e sua produção. Para saber mais sobre este assunto pode-se
consultar o artigo da Profa. Dra. Edilene Dias Matos,
Literatura de cordel: a escuta de uma voz poética,
Como já se mostrou, há apropriações da indústria disponível em http://seer.ucg.br/index.php/habitus/
cultural pela cultura popular e vice versa. Do mesmo article/viewFile/382/318.
modo, há o trânsito oral/escrito e a junção do universal
com o regional.

Um bom exemplo do processo social de


representações, de reprodução e de reelaboração
simbólica é o folheto de cordel A peleja internética entre
dois cabras da peste, dos cordelistas baianos Antônio

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 37


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

Figura 14 - Capas de folhetos: a transformação do livreto ao


longo dos anos
Fontes: Editora Luzeiro e Instituto de Letras da Universidade
Federal da Bahia. Disponíveis em: <http://editoraluzeiro.com.br/
cordeis/146-peleja-de-rodolfo-coelho-cavalcante-com-manoel-
dalmeida-filho-luzeiro.html>. E em: <http://letraspetufba.blogspot.
com.br/2010/12/peleja-internetica-entre-dois-cabras-da.html>.
Acesso em: 22 fev. 2014.

SUGESTÃO DE ATIVIDADE

Tente criar uma sextilha em versos redondilhos


de sete sílabas dizendo o que você pensa
sobre as transformações da cultura popular na
contemporaneidade.

Bem, como vimos a literatura de cordel é uma forma


de expressão popular que, apesar de suas origens
remotas, se mantém na cultura brasileira. Os folhetos,
antes impressos artesanalmente nas tipografias, hoje
podem ser produzidos no computador e disponibilizados
na internet. Das feiras passaram a ser comercializados
em livrarias ou em sites de divulgação e compras. E o
poeta popular se atualiza, se insere nesses novos tempos,
também se apropriando do que o novo contexto pode
oferecer a sua arte.

No próximo capítulo estudaremos o conto popular


que, assim como a literatura de cordel, também se
transforma e atualiza, pois, como diz o provérbio popular:
“Quem conta um conto, aumenta um ponto”.

38 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

ANOTAÇÕES

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 39


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

ANOTAÇÕES

40 LICENCIATURA
40 LICENCIATURAEM
EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

O CONTO POPULAR

CAPÍTULO 2
EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

ANOTAÇÕES

42 LICENCIATURA
42 LICENCIATURAEM
EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

e são segmentos limitados, mas podem formar


combinações ilimitadas. Cada conto é um conjunto
de motivos combinados em sequências narrativas. A
disposição dos motivos pode variar muito, enquanto que
Enquanto o cordel é literatura popular em versos, o a estrutura temática, que funciona como sustentáculo
conto popular se caracteriza por ser uma narrativa em do conto, permanece, permitindo que se reconheça um
prosa. Aparentemente uma forma simples, os contos são mesmo conto em qualquer local ou época, ainda que
textos de grande complexidade e que revelam a identidade com roupagens diferentes. Essa estrutura temática é
cultural de uma comunidade. Neste capítulo estudaremos reconhecida pela presença de alguns motivos básicos
o conto popular, seus tipos e formas de produção. que a compõe.

3.1 AS NARRATIVAS ORAIS: CONTOS, CAUSOS, A interferência dos meios de comunicação de massa,
LENDAS e com eles a cultura oficial e não tradicional, também
contribui para a transformação da cultura popular. Não
Dentre as manifestações dessa cultura popular, o podendo ser esquecida a interferência da literatura
conto é uma das formas mais difundidas. Seu valor escrita, seja ela infantil, geralmente adaptações da
enquanto documento vivo, social, histórico e etnográfico matéria tradicional, ou outro texto literário de grande
(CASCUDO, 2004, p. 12), desde muito atrai a atenção popularidade que vai formando com a literatura oral
de pesquisadores de várias partes do mundo. Se por um popular uma teia coesa.
lado os temas conservados em um conto registram o
momento histórico e o local de procedência do texto, por O ato de narrar faz parte de nossa vida cotidiana. Longe
outro, as adaptações visíveis em versões de um mesmo da imagem do narrador tradicional das comunidades
conto atestam as transformações por ele sofridas em sua narrativas idealizado sob a copa de uma árvore ou à
viagem através de gerações. beira de uma fogueira, os narradores, assim com as
narrativas vão se atualizando e ganhando novos espaços
O narrador tem um papel decisivo no processo de na sociedade urbana.
variação. O autor se perdeu no tempo e no processo
de transmissão, mas há um recriador, reelaborador da
matéria tradicional, de acordo com o momento em que INDICAÇÃO DE LEITURA
é narrado, da interação com o público ouvinte e com o
contexto sócio cultural.
O texto essencial sobre o ato de narrar na socie-
Como todo texto oral, o conto é coletivo e anônimo, dade é O narrador de Walter Benjamin:
pois o autor não é um único indivíduo, embora em seus BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações
primórdios deva ter existido um autor que se perdeu de sobre a obra de Nicolai Leskov. In: Os Pensadores.
vista quando o texto passou a integrar a tradição, a ser São Paulo: Abril Cultural, 1975, v. 48.
propriedade do coletivo. Sendo assim, a autoria é de
todos os indivíduos que o transmitem, do autor-legião
de que fala Ramón Menéndez-Pidal (1972). Temos por
um lado, um texto enquanto sistema abstrato, virtual, A narrativa exerce um importante papel social, pois
narrar é estabelecer um vínculo com nosso semelhante e
conjunto de todas as versões do conto. Por outro lado,
para ouvir é preciso criar laços com o outro. O canto pode
cada texto é uma realização única, pois cada possibilidade
de concretização é uma versão-ocorrência. ser um ato solitário, não necessariamente direcionado a
um interlocutor. Podemos cantar enquanto fazemos um
Os motivos são as menores unidades temáticas do trabalho manual, a limpeza da casa ou a arrumação de
texto. Cada parte que compõe os contos populares um cômodo, sem nos preocuparmos com a audiência.
Cantamos como uma forma de entretenimento e também

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUES E LITERATURAS 43


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

para nos concentrarmos na tarefa executada. Com o ato O que caracteriza uma comunidade narrativa é o
de narrar não acontece a mesma coisa. Pressupõe um fato dos textos fazerem parte de um repertório comum,
ouvinte, de preferência atento para completar o processo seja entre os velhos, os adultos ou os jovens. Todos
comunicativo. Com a narrativa escrita este interlocutor compartilham do saber, embora o direito à palavra e
não é, na maior parte das vezes, uma presença física, a credibilidade da mensagem seja atribuída ao ancião.
mas virtual (o leitor). Na literatura oral o narrador está Nas comunidades tradicionais “antiguidade é posto”.
diante de seu(s) interlocutor(es), interagindo com eles(s). O respeito aos velhos é a tradução do respeito aos
É exatamente esta interação que faz do ato de narrar antepassados e ao saber ancestral.
um conto oral uma experiência única e que não pode
acontecer desconectada das relações humanas. Como foi dito, para que a transmissão dos textos
aconteça, é necessário haver condições favoráveis. No
Nas comunidades tradicionais, centradas em mundo contemporâneo, com a acelerada urbanização
valores bastante rígidos e conservadores, as narrativas e o crescimento das cidades, essas condições de
transmitem o modo de pensar e repetem as normas de transmissão não tem sido favoráveis. Ao contrário
comportamento do grupo. Essas comunidades são de das comunidades tradicionais, de ritmo lento, a
ritmo mais lento, cujo tempo “menos acelerado” favorece sociedade urbana tende à aceleração, estilo de vida
o encontro e oferece mais oportunidades de narrar. Os que se consolidou com a industrialização. A Revolução
textos são ouvidos da boca dos mais velhos e repetidos, Industrial transformou tempo em produção, pois é
procurando respeitar a fidelidade ao passado, deixando centrada na lógica de que “tempo é dinheiro”. Assim,
uma mensagem que deve ser seguida e retransmitida em uma sociedade em que até o entretenimento passa
pelos mais novos. Uma mensagem que ensina o que a ser vendido, há uma tendência a se valorizar a cultura
é certo, o que é errado, como se comportar, como do espetáculo e o desprezo pela cultura produzida nas
agir em relação às adversidades do mundo. Por isso, comunidades vinculadas às tradições.
a princípio, é um ensinamento dos mais velhos para
os mais novos. Desse modo, o ancião é o principal Muitos contos populares tem origem remota e trazem
responsável para continuidade do saber comunitário e indícios das formas de viver da sociedade anterior ao
sua voz o instrumento de transmissão das tradições. processo de urbanização e industrialização. Trata-se
de uma narrativa ficcional localizada em um tempo
impreciso, marcada pela fórmula do “era uma vez”. O
narrador ou a narradora do conto, quando localiza seu
texto, diz algo como “num reino distante...” São modos
de iniciar a narrativa, abrindo uma espécie de porta à
fantasia e inserindo o ouvinte em um tempo/espaço
particular. As narrativas se passam “no tempo em os
bichos falavam”, “no tempo em que Jesus andava no
mundo com São Pedro”, “em um reino distante”.

Figura15 - Mulher idosa


A maior par te dos narradores dos contos populares são
mulheres idosas. A velhice é símbolo de sabedoria nas comunidades
tradicionais.
Fonte: Disponível em: <http://www.morguefile.com/
archive/#/?q=file000255770986>. Acesso em: 20 fev. 2013.

44 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

competências linguísticas do narrador, seu léxico, seu


dialeto. Além disso, à sua visão de mundo e do grupo
humano a que pertence e às condições psicológicas
da performance. O gosto do público e do narrador
influem na escolha e arrumação dos elementos que vão
compor o texto. As substituições, a intensificação ou
o alongamento de sequencias são o resultado dessas
condições.

O narrador tem o poder da palavra e exercendo-o


comanda a criação de seu texto, escolhe os elementos
que o compõem e emite o seu ponto de vista tecendo
comentários para uma plateia que confia em sua
autoridade de intérprete da tradição. O contador de
histórias é o instrumento da tradição, de sua ideologia,
Figura 16 - Reuniões à beira da fogueira: um convite à contação e tem também o poder de escolher a melhor forma de
de histórias. narrar e forjar seu texto.
Fonte: Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/
File%3AOntariofogueira.jpg>. Acesso em 22 fev. 2013. INDICAÇÃO DE LEITURA

Embora narrados nesse tempo/espaço de fantasia, o


narrador também procura dar credibilidade ao seu texto.
Para conhecer melhor nossos contos populares,
Um exemplo disso é quando, ao final do conto a heroína
um livro essencial é:
casa-se com o príncipe e para celebrar a felicidade
do casal há uma grande festa; o narrador diz que foi CASCUDO, Luis da Câmara. Contos tradicionais
convidado e ̶assegura que trouxe um pratinho de doce do Brasil. São Paulo: Global, 2004.
que oferece aos ouvintes. Desse modo há um movimento Este livro é uma antologia de referência para to-
de vai e volta no espaço maravilhoso. Na tradição oral dos os estudiosos do folclore no Brasil da segunda
do Brasil, é comum também o encerramento dos textos metade do século XX.
com a fórmula: “entrou pela perna do pinto/ saiu pela
perna do pato/ seu rei mandou dizer/ que me contassem
mais quatro”.

E assim, por “ordem real”, a roda de narrativas Diferentemente dos contos, os “causos” costumam
continua, um narrador passando a palavra para outro ser narrados como um acontecimento verdadeiro,
ou simplesmente estimulando a memória coletiva que, algo acontecido ou com o próprio narrador (que nesse
lembrando de outros textos, instiga o mesmo narrador caso diz que viu ou viveu a situação) ou com alguém
a continuar. Se o público estimula, se mostrando próximo a ele que lhe contou uma situação vivenciada.
interessado, as narrativas continuam. Se não, o narrador Nas comunidades litorâneas são comuns causos de
se cala ou abrevia os textos e o encontro. pescador, assim como na zona rural os causos de
Caipora ou Lobisomem.
O narrador tem em mente um texto virtual, aprendido
anteriormente e que ele “cria” ao exercer seu papel de Nos causos há o elemento fantástico, pois se não
produtor-transmissor. Nesse processo de transmissão, se tratasse de uma história extraordinária não valeria a
a estrutura verbal do texto está sujeita primeiramente às pena ser narrado. Como se os seres de um mundo oculto

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 45


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ficasse em evidência por um instante para mostrar aos


sujeitos que há muito mistérios que escapam a nossa
compreensão. Por outro lado, o valor simbólico dessas REGISTRE SUA IDÉIA
narrativas procura explicar algo que está muito próximo
de nós e nos deixa uma lição de como proceder em
relação à natureza. Seres como a Caipora, o Curupira ou Você teria algum “causo” pra contar? O que você
o Saci são guardiões das matas e protegem os animais pensa sobre os fatos acontecidos e sem explicação?
e as plantas da ação predatória do homem. Nos causos
de Caipora, o caçador ou a mulher que vai catar lenha no
mato, ao entrar tem que pedir licença, deixar um pedaço
de fumo em um toco de árvore, que é um “agrado” para
ela. O gesto é sinal de respeito e de consciência de que
aquele espaço não lhe pertence. É também estabelecer As narrativas com lobisomens são bastante difundidas
uma troca: se o homem entra na mata para tirar algo no Brasil e na Europa, sendo inclusive tema de livros e
deve recompensar deixando um “pagamento”. A mata filmes. O lobisomem é um ser híbrido, como o nome
representa o espaço do primitivo, do animalesco, o indica, meio homem e meio animal. Na tradição oral do
não-social. O homem tem uma relação primordial com Brasil encontramos muitos causos de Lobisomem. Leia
os seres que lá habitam. É da mata que vem o alimento, abaixo dois trechos de uma narrativa de Brasília, coletada
ela é necessária para a sobrevivência da humanidade por pelo folclorista Altimar de Alencar Pimentel (1983, pp.
isso deve ser preservada, tratada respeitosamente. Do 102-104):
mesmo modo com a terra e o mar.
Estória de lobisomen

Tinha um amigo de meu avô que virava lobisomem. Ele


ia num esponjeiro de jumento, virava umas três vezes às
avessas e virava jumento de tamanho médio.
Aí, ele sacudiu assim.
Então, ele apareceu todo cheio de argola, todo trincado,
ficava com aquela trincadeira. Meu avô ficou impressionado.
Como é que isso podia acontecer? Ele foi, pensou assim
um dia: “Vou prestar atenção como é que o compadre vai
virar lobisomem!”.
Surgia esse lobisomem lá no local que eles morava, no
Nordeste, no Piauí. Todo mundo ficava impressionado sem
saber quem era esse homem que virava lobisomem. Ele era
junto com duas filhas. Largou a mulher, juntou-se com duas
filhas. Inclusive, as filhas tinha até filho dele.
Aí, meu avô descobriu como era que ele virava
lobisomem e como era que ele desvirava. Meu avô foi pra
o local. Seguiu ele. Ele saiu na frente e meu avô seguiu ele.
Quando chegou lá no local em que ele virava, meu avô subiu
numa árvore antes dele virar. Deixou a roupa lá virada às
avessas, de cabeça pra baixo. Aí, foi lá onde o jumento se
deita e tomba. Ele tombou três vezes às avessas. Levantou-
se, sacudiu todim. Parecia com um jumento, mas fica muito
diferente. Quando ele voltou, espojou-se novamente no
Figura 17 - Caipora espojador do jumento, virou homem outra vez. Foi, vestiu a
roupa e foi lá pra casa dele.
Fonte: Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/ Quando ele vai correno, aqueles troço balançando, assim
commons/7/7a/Caipora.jpg>. Acesso em: 20 fev. 2014. como um bocado de argola amarradas nas pernas e no rabo.

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Ele vai correr. Correr as quatro províncias do mundo. Começa que, embora racionais, guardando um lado instintivo e
às sete horas da noite, vai até meia-noite. animalesco que pode se manifestar em algum momento.
As sete províncias do mundo que o pessoal do interior Note-se que na narrativa está associado ao fato do sujeito
fala é negócio de hora [sabe?]. Porque ele corre das sete até
“virar lobisomem” com o interdito do incesto. Como
meia-noite. O povo chama assim sete províncias do mundo.
uma espécie de maldição. A má conduta do sujeito que
Ele vai, corre, quando chega aquele horário – tem que ser
o horário certo, porque se passar do horário ele não desvira larga a família para se amancebar com o agravante de
mais, fica virado lobisomem direto.[...] que ele se junta com as próprias filhas é rigorosamente
condenada. Ele é amaldiçoado e para o resto da vida a
Uma vez, ele atacou um amigo de meu avô. O amigo do se espojar como jumento.
meu avô foi, deu uma facada no bicho. Quando o lobisomem
deu o bote assim em cima do amigo de meu avô, ele foi,
correu o facão nele de baixo pra cima, cortou assim debaixo
do braço. Porque facada em lobisomen só pega debaixo do
braço ou na cova da viria. No corpo, não incorpa ele – ele faz
um troço lá que no corpo dele não entra bala, não corta. Só
debaixo do braço ou então na cova assim da viria é que pega.
Aí, todo mundo descobriu que era ele. Por causa que esse
amigo do meu avô tinha falado que tinha dado um corte num
lobisomem. Quando foi no outro dia, surgiu um caso que tava
um cara cortado debaixo do braço, um talho muito grande.
Minha mãe fala que a pessoa vira lobisomem quando
é casada e larga a família e vai se amancebar. Ainda mais
com uma filha, inclusive que ele era amancebado com duas
filhas e todas duas tinha filho. E só não ficou com as três,
porque a outra fugiu de casa.
E as filhas sabiam que ele era assim, que era elas quem
tratavam dele. Chegava o pessoal pra visitar, elas diziam:
- Meu pai tá doente. Não sei o que é que ele tem.
Isso faz muito tempo. Essa história é muito velha. Foi meu
avô quem conheceu. Meu avô fez tudo pra conhecer, pra ver
como era que ele fazia, que todo mundo ficava impressionado
como era que uma pessoa normal de repente virava um bicho
assim, todo cheio de argola, correno, correno todo mundo,
não conhecendo ninguém.
Agora, lobisomem não tem voz não. Ele dá um esturro.
Ele dá um esturro. Ele só dá esturro, se sacode todim. O
pessoal lá no Nordeste já sabe que existe isso. Aí, quando Figura 18 – Lobisomens
escuta o barulho, todo mundo já tá de porta fechada.
Inclusive, ele não entra em casa. Agora o que passar... Pra Distúrbios psiquiátricos podem ter dado origem ao mito dos
ele não entrar em casa, o pessoal faz uma cruz de cinza da lobisomens..
fogueira de São João na porta. Também se faz uma de cinza
Fonte: A imagem é uma representação de 1512 em ilustração
na testa pra se livrar de lobisomem...
de Lucas Cranach der Ältere Werwolf. Disponível em: <http://
commons.wikimedia.org/wiki/File:Werwolf.png>. Acesso em: 22
Lucinda Angélica de Brito fev. 2013.
Mobral – Escola Classe 108 Sul
Brasília, 29.9.1983.

Podemos interpretar a metamorfose do homem em


animal (porém sem perder totalmente sua parte humana)
como uma maneira de dizer que somos também animais

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SUGESTÃO DE ATIVIDADE VOCÊ SABIA?

A par tir da leitura do causo de lobisomem, Que o filme O homem que desafiou o diabo levado
responda as questões: às telas por Moacyr Góes, Lucy Barreto e Luiz Carlos
a) Observe as marcas de religiosidade no texto. Barreto é baseado no romance As pelejas de Ojuara:
Por que a cruz feita com as cinzas da fogueira de o homem que desafiou o diabo, de Nei Leandro de
São João teria poderes para afastar o lobisomem? Castro?
b) A narrativa é contada como verdadeiramente
acontecida. Quais as marcas do texto que enfatizam
isso?
SAIBA MAIS
c) O lobisomem parece ter o “corpo fechado”,
mas há partes do corpo em que ele fica vulnerável
(embaixo do braço e na virilha). O que isso quer
dizer? O filme O homem que desafiou o diabo tem como
tema central a eterna luta entre o bem e mal, retratada
Outro ser fantástico que encontramos nos causos com humor e erotismo. Tanto no livro As pelejas de
brasileiros é a mula sem cabeça. Diz-se de uma mulher Ojuara quanto no filme O homem que desafiou o
que é namorada de padre e que fica com a sina de se diabo, vemos uma boa colagem de textos da cultural
transformar em uma assombração. Banida do convívio popular nordestina, apresentando contos, causos,
social, do mesmo modo que o lobisomem, sua ação dramas, romances, cordel, cantorias, folguedos,
é punida. Ambas as narrativas encenam os valores assim como costumes sertanejos.
e preconceitos em relação às aqueles que fogem da
conduta normativa do meio social do universo judaico-
cristão.
As lendas urbanas são narrativas que abordam temas
em geral relacionados à sociedade atual. Mas temos
Diversos causos são também histórias de outros tipos de lendas tradicionais que procuram explicar
assombração. Relatos de tesouros escondidos, botijas as origens de um determinado fato. Na cultura brasileira
de ouro enterradas em solo amaldiçoado, mulheres temos muitas lendas indígenas como a lenda do guaraná,
misteriosas que tem um forte poder de sedução que da mandioca, do rio Amazonas.
levam à morte etc. Esses relatos tem se mantido com
bastante força no universo urbano e são o que chamamos
de lendas urbanas.
VOCÊ SABIA?

INDICAÇÃO DE LEITURA

Que uma das lendas urbanas mais difundidas


no Brasil é a história da loura do banheiro? Trata-
O tema dos casos de assombração é retratado no
se da história de uma bela mulher que aparece em
romance As pelejas de Ojuara: o homem que desafiou
banheiros públicos masculinos e seduz um sujeito.
o diabo, de Nei Leandro de Castro (2006). O livro é
Convida-o para ir ao motel, mas chegando lá, ela
uma leitura agradável, divertida e que nos ensina
desaparece revelando ser uma assombração.
muito sobre o folclore e as tradições orais do Brasil.

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Diferentes dos contos que, como vimos, a ação se compreendê-los. Hoje os estudos se direcionam mais
passa em um tempo e lugar remoto, a lenda nos remete para os processos de transmissão e recepção do que
a um tempo mítico e imemorial, anterior a este estado para a gênesis. No caso dos contos, muitas teorias foram
de coisas para justamente explicar como as coisas se formuladas e nenhuma delas foi suficiente para explicar
tornaram o que são. Uma das mais difundidas no Brasil como surgiram. Se por um lado, as narrativas remontam
é a Lenda da mandioca (GIACOMO, 1977): a um tempo imemorial, por outro a transmissão oral e
a ausência de registros escritos dificultam uma datação
A índia Mani mais precisa para as primeiras narrativas. É bem provável
Nasceu uma indiazinha linda e a mãe e o pai tupis que os relatos tenham começado a existir quando o
espantaram-se: homem começou a falar e a se relacionar socialmente,
- Como é branquinha esta criança! pois, como vimos, o conto é um modo de estabelecer
Chamaram-na de Mani. Comia pouco e pouco bebia. contato com o outro.
Mani parecia esconder um mistério. Uma bela manhã, Mani
não se levantou da rede. O Pajé deu ervas e bebidas à menina.
Mani sorria, muito doente, mas sem dores. E sorrindo Veremos algumas teorias que tentam explicar as
Mani morreu. Os pais enterraram-na dentro da própria oca origens dos contos. A pesquisadora francesa Michele
e regaram a sua cova com água, como era costume dos Simonsen (1987) estuda essas teorias assinalando que
índios tupis, mas também com muitas lágrimas de saudade.
elas mais se complementam que antagonizam e reitera
Um dia, perceberam que do túmulo de Mani rompia uma
que, ao final das contas, nenhuma delas é o bastante
plantinha verde e viçosa. A plantinha desconhecida crescia
depressa. Poucas luas se passaram e ela estava alta, com para uma ideia conclusiva. Vejamos rapidamente cada
um caule forte que até fazia a terra rachar ao redor. uma delas.
- Vamos cavar? - comentou a mãe de Mani.
Cavaram um pouco e, à flor da terra, viram umas raízes Marx Muller (1987) formula a uma teoria conhecida
grossas e morenas, quase da cor dos curumins, nome que
como indo europeia ou mítica. Segundo ele, mitos
dão aos indiozinhos. Mas, sob a casquinha marrom, lá estava
a polpa branquinha, quase da cor de Mani. cosmológicos deram origem aos contos, porém se
-Vamos chamá-la de Mani-oca - resolveram os índios. difundiram com a dispersão dos povos indo-europeus,
Transformaram a planta em alimento. se espalharam e perderem seu sentido primitivo. Ficaram
os relatos que guardam indícios dessa época.

VOCÊ SABIA? A teoria etnográfica de Andrew Lang procura explicar a


origem do conto como uma forma anterior ao mito, como
fragmentos de práticas rituais primitivas. Com grande
afinidade com a teoria etnográfica, a teoria ritualista
Segundo Luís da Câmara Cascudo, a lenda de
entende os personagens dos contos como lembrança
Mani foi registrada por Couto de Magalhães em
de personagens cerimoniais.
1876. O nome mandioca (Mani + oca) significa
casa (oca) de Mani.
Outra teoria é a indianista, segundo a qual os contos
teriam origem comum na Índia e de lá se espalhou para
outras regiões, inicialmente através da tradição oral,
depois da transmissão literária.
3.2. TEORIAS DE GÊNESIS DO CONTO

Desenvolvida por Vladimir Propp, a teoria estadial


O século XIX, como vimos, foi marcado pelo busca as estruturas sociais e os modos de produção
desenvolvimento dos estudos folclóricos. Era uma arcaicos que permaneceram de forma distorcida nas
preocupação dos estudiosos do período conhecer narrativas.
as origens dos fatos folclóricos como uma forma de

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Em seu livro sobre as raízes históricas do conto, Propp dos textos. Desse modo Contos populares do Brasil é
(1997) procura demonstrar que nas narrativas podemos dividido em três secções: Secção Primeira: Contos de
vislumbrar os estágios ou estados da sociedade que origem europeia; Secção Segunda: Contos de origem
deram origem às narrativas. indígena; Secção Terceira: Contos de origem africana e
mestiça. Sendo um homem do século XIX, adepto das
teorias raciais e da crença no branqueamento, Romero
INDICAÇÃO DE LEITURA (1985, pp. 23-24) valoriza a tradição europeia e aponta
as contribuições dos índios e dos negros como menores:

Das três raças que constituíram a atual população


Para conhecer as teorias de origem dos contos, as
brasileira, a que um rastro mais profundo deixou foi
peculiaridades os contos orais e do chamado conto
por certo a branca, segue a negra e depois a indígena.
literário (escrito), recomenda-se a seguinte leitura:
À medida, porém, que a ação direta das duas últimas
GOTLIB, Nádia. Teoria do conto. São Paulo: Ática, tende a diminuir, com o internamento do selvagem e a
1990. extinção do tráfico dos negros, a influência europeia tende
a crescer com a imigração e pela natural tendência de
prevalecer o mais forte e o mais hábil.
Trata-se de um livro sucinto e muito rico, com uma
bibliografia comentada que traz novas importantes Na citação acima percebemos o tom preconceituoso
indicações de leitura. do autor ao definir a “raça” branca como superior (“o
Outro consistente estudo sobre o tema é: mais forte e o mais hábil”) e que teria deixado marcas
PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto mais profundas na cultura brasileira, sendo a presença
maravilhoso. São Paulo: Martins Fontes,1997. forte dos contos populares de “origem europeia” uma
prova disso. O discurso que prevaleceu na época foi este
e não obstante o anacronismo da teoria, Silvio Romero,
3.3 TIPOLOGIA DOS CONTOS tanto na crítica literária quanto nos estudos folclóricos,
deu uma importante contribuição para o entendimento
Os contos populares brasileiros em grande parte são do povo brasileiro e da formação cultural de nosso país.
encontrados também na tradição europeia. Tanto em
Portugal como no Brasil existem algumas coletâneas
de contos que atestam isso. É importante atentar para o
fato de que a classificação de cada coletânea parte de
critérios específicos e dependem do conjunto de textos
como veremos.

No Brasil, a primeira coletânea de contos populares


foi publicada por Silvio Romero em 1897. No entanto,
a primeira edição desse livro data de 1885, em Lisboa.
A edição portuguesa contem notas e prefácio de Teófilo
Braga, que foram retiradas da edição brasileira. Pelo valor
histórico, esta coletânea é um dos livros de referência
dos estudiosos do folclore brasileiro sendo reeditado ao
longo dos anos.
Figura 19 - Silvio Romero: um pioneiro nos estudos do folclore
no Brasil.
Silvio Romero propõe uma classificação bem ao Fonte: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/
sabor de sua época, considerando a “origem ética” Ficheiro:Silvio_Romero.jpg>. Acesso em: 25 fev. 2013.

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Considerando que os contos populares migram por volumes, é uma classificação de temas que, embora
meio da tradição oral, mas também da escrita, não muito útil e indispensável para a delimitação das
tem muito sentido hoje dizer que tal conto é de origem variantes, foi fundamentado em um corpus europeu e
europeia, indígena ou africana. O que se percebe na americano. A numeração é arbitrária e o próprio Aarne
coletânea de Silvio Romero é que a maior parte dos já deixou lacunas que poderiam ser preenchidas com os
contos que ele classifica como de origem indígena ou motivos e tipos existentes no folclore e não presentes no
africana são contos de animais: o jabuti, o macaco, a material por ele examinado. Dessa forma, surgem não só
onça, o sapo, ou seja, animais que figuram na fauna local. motivos e tipos não catalogados, como também novas
variantes, frutos da natural mutação dos contos.
Já sabemos que um texto oral é composto por
motivos, unidades temáticas limitadas que se combinam
ilimitadamente. Então, como afirmar que um determinado
motivo presente no Brasil pertence à tradição brasileira,
ibérica, europeia ou africana? Os motivos pertencem a
princípio a um grande texto virtual e sem nacionalidade.
O que determina a existência de um motivo ou outro
em uma tradição é a sua relação com o contexto e as
relações deste com a psicologia do povo que detém a
tradição. Se um motivo faz sentido, comunica algo e está
atualizado para o grupo, ele existe; do contrário, não faz
parte dessa tradição. Pode ocorrer sim a adaptação do
motivo à tradição local, fenômeno comum em culturas
como as latino-americanas, a exemplo da aclimatação
dos motivos da tradição ibérica nas colônias. Pensando
dessa forma, apesar dos motivos serem universais,
não deixa de ser instigante buscar a originalidade de
uma tradição, pois o traço original está justamente na
diferenciação de um motivo, na repetição diferencial em
um contexto, em uma época e por um povo diferente.

No século XX, seguindo o caminho de Silvio


Romero, Luís da Câmara Cascudo (1946) propõe uma
classificação em que predomina o critério temático. Em Figura 20 - Antti Amatus Aarne (1867 – 1925)
Contos tradicionais do Brasil, coletânea organizada por
ele, são definidos onze tipos: contos de encantamento, Folclorista finlandês, criou o Sistema de classificação de Aarne-
Thompsom, juntamente com Stith Thompson.Fonte: disponível em:
contos de exemplo, contos de animais, facécias, <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Antti_Aarne.png>. Acesso
contos religiosos, contos etiológicos, demônio logrado, em: 25 fev. 2013.
contos de adivinhação, natureza denunciante, contos
acumulativos, ciclo da morte, tradição. Adiante vamos
conhecer um pouco melhor os principais tipos definidos
por ele.

Para auxiliar na classificação dos contos os


pesquisadores Antti Amatus Aarne e Stith Thompson
elaboraram o índice de tipos e motivos Aarne-Thompson
(1910/1928). O Índice, publicado em cinco consistentes

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3.3.1 Contos de encantamento


SAIBA MAIS
São os contos de fadas. Estes são encontrados em
grande número na tradição oral do Brasil. Estudados
detalhadamente por Vladimir Propp no livro Morfologia do
Antti Amatus Aarne (5 de dezembro de 1867 - 2 conto (1928), a estrutura dos contos de encantamento
de fevereiro de 1925) foi um folclorista finlandês. É obedece a regras bastante rígidas. São narrativas que
um dos criadores do Sistema de classificação de encenam a aventura de um herói ou heroína que sai de
Aarne-Thompsom, juntamente com Stith Thompson. casa e passa por muitas provações. Consegue vencer
com o auxílio de um ajudante mágico, que pode ser
Stith Thompson (7 de março de 1885 - 13
um ser ou um objeto encantado. A compensação do
de janeiro de 1976) foi um estudioso de folclore
herói/heroína pela coragem ou conduta exemplar é um
estadunidense. Ele é um dos criadores do Sistema
casamento real: o final feliz, obrigatório nos contos de
de classificação de Aarne-Thompsom, juntamente
encantamento, é alcançado com o casamento com
com Antti Aarne.
um príncipe ou princesa, o que assegura o amor “para
Stith Thompson nasceu em Bloomfield, Kentucky, sempre” e a ascensão social.
e aos doze anos de idade muda-se com sua família
para Indianápolis,capital do estado de Indiana onde SAIBA MAIS
frequenta o Butler College, obtem ainda seu diploma
de bacharel pela Universidade de Wisconsin. Pelos
próximos dois anos lecionou no ensino médio
na cidade de Portland, Oregon, onde aprendeu As análises estruturais do conto popular mostram
norueguês. Obteve seu mestrado em Literatura as diferenças e semelhanças entre os textos,
Inglesa na Universidade da Califórnia em Berkeley em dando novo impulso para o desvendamento desta
1912. Ele estudou ainda na Universidade de Harvard forma narrativa. A importante obra Morfologia do
entre os anos de 1912 e 1914; ensinou Inglês na conto (Rio de Janeiro: Forense, 1984) de Vladimir
Universidade do Texas, Austin entre 1914 e 1918 e Propp, datada de 1928, é sem dúvida um marco.
obteve seu Ph.D. em Harvard no ano de 1919. Analisando 100 versões dos contos maravilhosos
Thompson ingressou na Faculdade de Inglês russos da coletânea de Afanasiev, Propp observou
da Universidade de Indiana, em Bloomington. que as ações dos personagens se repetem e
Interessado em baladas tradicionais e contos, constituem o que ele denominou de funções. Foram
organizou Cursos de Verão sobre o tema entre listadas 31 funções correspondentes às ações dos
os anos 1940 a 1960. O que levou, em 1962, a personagens, funções constantes nas narrativas.
Thompson e Richard Dorson,estudante de destaque Embora nem todas sejam obrigatórias, tais funções
do folclore, a fundarem a University's Folklore obedecem a uma ordem de sucessão invariável,
Institute - ainda ativo. garantindo uma estrutura narrativa que se conserva.
Por outro lado, o narrador tem a liberdade de escolher
Apesar de Thompson escrever e traduzir
os motivos e a ordenação/organização dos mesmos.
numerosos livros e ar tigos sobre o folclore,
Os estudos de Propp não se limitam à morfologia. Em
tornou-se mais conhecido por seu trabalho sobre
um pequeno texto intitulado As transformações dos
a classificação dos motivos em contos populares.
contos fantásticos, publicado no Brasil na coletânea
Disponíveis em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ dos Formalistas Russos (Porto Alegre: Globo, 1978),
Antti_Aarnee> e <http://pt.wikipedia.org/ wiki/ Propp detém-se em analisar não mais o que se
Stith_Thompson>. Acessos em: 25 fev. 2013. conserva e se transforma na estrutura do conto, mas
como essas transformações se processam, seja
através de reduções seja através de prolongamentos,
amenizações ou intensificações etc.

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No Brasil, o conto de encantamento mais difundido é A caveira


Maria Borralheira ou Cinderela. Igualmente populares são E outra era caveira, né? Era um homem
A Bela e a Fera, Moura Torta, Pele de Asno, A Princesa linguarudo. Era um homem que tudo que ele via, ele falava,
do sono sem fim (A Bela Adormecida) etc. Amplamente né? Ele tinha a língua muito grande e aí a mulher dizia:
difundidos na tradição oral de várias partes do mundo, - Olhe, Fulano, você fala muito, você vai se dar
mal.
esses textos tem adaptações para a literatura infantil,
- Que nada!
o cinema e a televisão. Embora o seu principal meio
Tudo que ele via, ele contava. Quando foi um
de difusão seja a transmissão oral, as formas escritas
dia, ele passou num lugar e viu uma caveira ni um pau. Ele
e as traduções para os meios de comunicação fazem disse:
com que ele seja um dos contos mais conhecidos em - Caveira, quem te matou?
todo o mundo, entre crianças, jovens ou adultos. As A caveira calada.
apropriações da matéria tradicional funcionam como - Caveira quem te matou?
suportes para o fortalecimento do conteúdo de fundo A caveira disse:
mítico presente nos textos folclóricos e, se a cultura
- Foi a língua, meu senhor. E quem é de te matar
oficial o faz e o público aceita, digere e conserva, é também.
porque esse conteúdo mítico é indispensável. Para a Ele aí deu risada, disse:
Profa. Jerusa Pires Ferreira, nos textos populares há - Eh, eu nunca vi caveira falar!
a permanência de um arcabouço mítico que resiste às Chegou, foi na casa do rei, disse:
transformações. (FERREIRA, 1979, p. 108) - Rei meu senhor, eu passei num lugar e vi uma
caveira falar.
VOCÊ SABIA? - Mas você já viu caveira falar?
- Falou, meu senhor! Eu perguntei ele quem
matou ele, ele disse que foi a língua e quem havia de me
matar também.
O pesquisador Bráulio do Nascimento, Presidente O Rei disse:
de Honra da Comissão Nacional do Folclore, elaborou - Vumbora pra lá, se a caveira não falar, você vai
o Catálogo do conto popular brasileiro no baseado morrer, hein?!
no índice de tipos e motivos de Aarne-Thompson. - Ora, meu senhor, se ela me disse nestante
que quem matou ela foi a língua e quem havia de me matar
também era a língua?!
(Quer dizer: mesmo a caveira dizendo isso, ele
não tomou.) A mulher disse:
3.3.2 Contos de exemplo - Marido, você não vai dizer nada ao Rei, você
vai morrer! A caveira não disse que quem matou ela foi a
língua e quem vai te matar também?!
São contos de exemplo os textos que trazem algum
- Olhe, eu nunca vi caveira falar, eu vou falar com
tipo de ensinamento, revelando uma norma de boa o Rei que ele vai me dar muito dinheiro!
conduta. Muitas vezes ilustram provérbios e ao final o
Aí evém o Rei, com todo mundo. Chegou lá:
bem é compensado e o mal punido. A moral da história
- Caveira, quem te matou?
é explicitada para reafirmar uma determinada doutrina.
Caveira calada.
Muitos contos de animais ou de encantamento tem
- Caveira, quem te matou?
um tom moralista, assim como os contos de exemplo
A caveira calada.
também podem trazer um elemento mágico, sobrenatural.
- Caveira, quem te matou?
Veja a seguir um exemplo (ALCOFORADO; FERNANDES;
Perguntou várias vezes, a caveira não respondeu.
ALBÁN, 2001, pp. 452-453):
Aí: pá! O Rei manda matar o homem. Matou o homem.
Quando matou, a caveira saltou do pau e disse:
- Eu não disse?! Quem te matou foi língua! Quem
me matou foi a língua e quem havia de te matar também foi

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a língua. Eu não disse?!


O Rei se arrependeu, o homem já tava morto,
né, já era tarde.
INDICAÇÃO DE LEITURA
Minha avó, quando ela chamava a gente pra dar conselho,
né, ela conversava assim com a gente: “Olhe, minha filha, lá
a gente viu, lá a gente deixa. Se você chegar ni uma casa,
o que alguém estiver conversando, você não chegue pra Conheça outras histórias como esta na Coleção
contar a ninguém, nem a mim, nem a ninguém, porque se Histórias do fundo do baú:
uma pessoa, uma amiga sua lhe contar um segredo, um COSTA, Edil Silva (Org.). Contos de Dona Luiza.
segredo é um tesouro. Se você quiser um tesouro, você
não vai dar a ninguém. Então, um segredo que uma amiga
Salvador: EDUNEB, 2010. Coleção Histórias do
sua conte, ainda mesmo você brigando com ela, você não Fundo do Baú, v. 1.
conte.” Minha avó dava muito conselho assim. Aí contava
essa história, “porque menino linguarudo... a pessoa que é
linguaruda tem a língua grande que tudo que vê, fala, fica
uma pessoa fuxiqueira, fica odiado. Então vocês não façam
A narrativa Chapeuzinho Vermelho é um conto de
isso não”. Aí ela ensinava me contando as história. Aí ela
exemplo, ensina que a criança deve obedecer à mãe.
me contava essas história, ela me dava assim muito, muito
Quem desobedece é punido. Porém, as transformações
parecer das coisas. Ela fazia quase como a Bíblia que fala
em parábola, né? sociais e os avanços tecnológicos que apressam e
favorecem as trocas, intensificando a hibridização
Narrado por Luiza Cruz do Nascimento. Salvador, outubro
de 1995. cultural, resultam também na relativização dos valores
morais. A confusão e embaralhamento do bem e do mal,
Observe como a narradora compara a prática de favorece o surgimento de novas versões das narrativas
contação de histórias ao ato de ensinar e à doutrina como, por exemplo, o filme Deu a louca na Chapeuzinho.
religiosa. Os contos são como parábolas. Essa Nesta versão cinematográfica que é uma paródia do
comparação nos diz claramente da concepção que conto, Chapeuzinho Vermelho se associa ao Lobo Mal
a narradora tem de seu texto e de sua função. Não para salvar a vovozinha (que na verdade não precisava
basta contar, mas passar uma mensagem educativa, ser salva). No filme Deu a Louca na Chapeuzinho e sua
doutrinária, que sirva como exemplo de conduta é uma continuação, a avó de Chapeuzinho Vermelho pratica
ação que está colada a essa prática, deixando sempre esportes radicais e é empresária do comércio de doces.
claro o que seria o certo e o errado. Embora o exemplo de boa conduta permaneça, ele
fica apagado porque o filme transforma a história de
Chapeuzinho Vermelho em um conto do gênero policial:
os personagens tem que desvendar o mistério do roubo
das receitas da vovozinha.

Figura 21 - Caveira: representa a morte da qual ninguém escapa


Fonte: Disponível em: <http://www.morguefile.com/archive/#
/?q=file1771320945901>. Acesso em 07 mar. 2013.

54 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

3.3.3. Contos religiosos

Os contos religiosos são também contos de exemplo,


porém trazem como personagens algum santo. Oswaldo
Elias Xidieh estudou essas narrativas e publicou uma
coletânea de estórias de Nosso Senhor Jesus Cristo e
mais São Pedro andando pelo mundo. São os contos
de temática religiosa os mais difundidos no Brasil. En-
contramos também muitos textos com São Benedito,
Santo Antônio ou Nossa Senhora, mas São Pedro é sem
dúvida o santo que tem merecido mais atenção. Exemplo
(CASCUDO, 2004, pp. 250-251):

Os rins da ovelha

Quando Nosso Senhor andava no mundo ia, de uma


feita, com São Pedro e São João, comer uma ovelha que
recebera de presente. São Pedro encarregou-se de assar,
mas, ao tratar, provou os rins e achou-os tão gostosos que
os comeu. Na hora do almoço, Nosso Senhor pediu os rins
e São Pedro procurou, procurou, e acabou dizendo:
- Esta ovelha não tem rins!
- Não pode ser, Pedro. Todos os animais têm rins!
- Eu sei, mas essa ovelha não os tinha.
Por mais que Nosso Senhor perguntasse, São Pedro
Figura 22 - Chapeuzinho Vermelho por Gustave Doré (1883) teimou em dizer que a ovelha não tinha rins. Nosso Senhor
Fonte: Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/ não quis discutir e seguiram viagem.
File:Dore_ridinghood.jpg>. Acesso em: 22 fev 2013. Lá adiante encontraram um rio e não havia ponte. Nosso
Senhor meteu o pé em cima d’água e saiu como se pisasse
em terra firme. São João fez o mesmo. São Pedro deu os
primeiros passos mas foi-se afundando. Começou a gritar.
INDICAÇÃO DE LEITURA - Acode-me, Senhor!
Nosso Senhor dizia:
- Quem comeu os rins da ovelha?
- Sei lá quem os comeu! A ovelha não os tinha! - E ia
Vale a pena conferir, de um modo bem divertido, afundando, afundando.
os procedimentos parodísticos dos contos no filme: Nosso Senhor puxou-o pelos cabelos e continuaram a
viagem.
Deu a louca na Chapeuzinho. Direção: Todd Depois iam atravessando um tabuleiro comprido quando
Edwards, Tony Leech, Cory Edwards. EUA, Kanbar apareceu fogo por todos os lados. Estavam queimando para
Entertainment, 2009, DVD, 80 min. fundar os roçados e a queima pegara no pasto. As labaredas
foram subindo e cercando os três homens. Nosso Senhor
foi com o mesmo passo, pelo meio do fogo. São João
acompanhou-o. São Pedro foi-se queimando todo e gritou:
- Senhor acode-me!
- Quem comeu os rins da ovelha?
- Sei lá? A ovelha não os tinha!

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 55


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

Nosso Senhor vendo que São Pedro ficava estorricado,


afastou o fogo e seguiram o caminho.
Pela tarde deram numa casa rica onde o filho único estava SAIBA MAIS
morrendo, cercado de médicos. Nosso Senhor aproximou-se
do doente, abençoou-o e ele levantou, bonzinho de saúde.
O fazendeiro, morrendo de alegria, deu um saco cheio
de moedas de ouro a Nosso Senhor. Esopo foi um escritor da Grécia Antiga a quem
Depois da ceia, Nosso Senhor botou as moedas em cima são atribuídas várias fábulas populares. A ele se
da mesa e dividiu o dinheiro em quatro lotes. atribui a paternidade da fábula como gênero literário.
- Para que dividistes o dinheiro em quatro partes? Somos Malgrado sua existência permaneça em dada medida
três! - perguntava São Pedro. incerta e pouco se saiba quanto à origem de várias
- Não se agonie - respondeu Nosso Senhor - uma parte de suas obras, seus contos se disseminaram em
é minha, outra de João, a terceira é tua e a quarta de quem muitas línguas pela tradição oral. Em muitos de
comeu os rins da ovelha!
seus escritos, os animais falam e têm características
- Fui eu, Senhor, fui eu! gritou São Pedro.
humanas.
E ficou com as duas partes.
O homem resiste mais à água e ao fogo do que ao dinhei-
ro. O que o dinheiro não arrumar, não tem mais arrumação. O fabulista grego teria nascido no final do século
João Monteiro VII a.C. ou no início do século VI a.C. Segundo
Natal, Rio Grande do Norte. Heródoto, Esopo foi escravo de Jádmon, um
cidadão de Samos. As fábulas de Esopo e outras
possivelmente a ele atribuídas foram reunidas pela
primeira vez por Demétrio de Faleros, no início do
Assim como os contos de exemplo, os contos religio- século III a.C.
sos também costumam trazer provérbios. Nota-se que
nos contos São Pedro é um santo malandro que tenta
enganar Jesus e levar vantagens. Na tradição popular o Aristóteles afirmou na Retórica que Esopo teria
“santo” é dessacralizado, o que fica em evidência é seu uma vez discursado na Assembleia de Samos
lado humano, seu defeitos, seus pecados. A humaniza- em defesa de um demagogo. Platão cita o nome
ção de Pedro, diante da divindade de Nosso Senhor, é um de Esopo no diálogo Fédon (60c-61a), o que faz
artificio para que nos contos encenem os ensinamentos muitos a concluírem que suas fábulas eram muito
cristãos. Pedro é, na maior parte das vezes, punido, ridi- conhecidas nesse momento histórico posterior.
cularizado, sempre como instrumento para os desígnios Fonte: disponível em: <http://pt.wikipedia.org/
de Deus. Notamos que a tradição dos contos religiosos wiki/Esopo>. Acesso em: 06 mar. 2013.
revelam os valores do catolicismo popular que aproxima
ao máximo o plano divido do humano e terreno.
3.3.4 Outros tipos Nos contos de animais os bichos representam pes-
soas que desempenham papéis sociais e assim ence-
Os Contos de animais são conhecidos também como nam situações exemplares. O que marca os contos de
fábulas. Na tradição oral costumam começar com a animais é uma contenda entre um animal mais frágil e
fórmula “No tempo em que os bicho falavam...” o que outro forte. Porém o animal menor e fraco é também o
indica a personificação dos animais. Muitas fábulas mais esperto, enquanto que o forte se mostra estúpido.
ficaram conhecidas entre nós través do registro escrito A moral desses textos é que a esperteza pode vencer
das fábulas de Esopo. a força física. Na tradição oral do Brasil temos muitos
contos protagonizados pelo coelho, o sapo, o macaco, o
bode etc. que enfrentam uma fera – na maior parte das
vezes representada pela onça – e conseguem vencer
usando de artimanhas. Mesmo quando o animalzinho se

56 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

mostra cruel e desonesto, o público demostra simpatia


por ele. Pensando nas representações sociais desses
contos, pode-se dizer que tanto o narrador quanto seus
ouvintes se identificam com o animal mais fraco. Suas
atitudes soam como vingança que é legitimada pela
vontade coletiva de enfrentar com sucesso os poderosos.

Figura 24 - Esopo em pintura de Diego Velázquez (1599–1660).

Fonte: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/


Figura 23 - A Cigarra e a Formiga por Milo Winter Ficheiro:Diego_Velasquez,_Aesop.jpg>.
Fonte: Ilustração de Milo Winter (1886-1956) para a fábula de Acesso em: 09 mar. 2013.
Esopo “A Cigarra e a Formiga”, em 1919. Disponível em: <http://
commons.wikimedia.org/wiki/File:The_Ant_and_the_Grassho-
Os contos acumulativos são como brincadeira para
pper_-_Project_Gutenberg_etext_19994.jpg>. Acesso em: 05
mar. 2013. estimular e testar a memória. Um dos mais conhecidos é
O macaco e o rabo que leremos a seguir (COSTA, 2010):

O Macaco e o rabo
VOCÊ SABIA?
O Macaco saiu pelo mundo. Andou, andou, andou,
quando chegou no meio da estrada, ele achou de parar
para descansar. Deixou o rabo bem no meio do caminho. Lá
Que as fábulas de Esopo serviram como base adiante, vinha um homem com um carro de boi:
para recriações de outros escritores ao longo dos – Macaco.
séculos, como Fedro e La Fontaine? – Que é?
– Tira teu rabo daí.
– Não tiro.
– Macaco, tira teu rabo daí que eu vou passar
com meu carro de boi.

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 57


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

– Pode passar. homem dançando com um cabo de vassoura.


– Macaco, tira o rabo, Macaco! – Tá dançando com um cabo de vassoura?!
– Por mim não, pode passar que meu rabo é de – É, não tenho uma boneca, uma moça nem
ferro! ninguém...
O carro de boi passou e cortou o rabo do macaco. O – Tome essa moça.
macaco pulou e gritou: A moça estava fraca de fome. O homem começou
– Ai, ai, ai! Eu quero meu rabo, eu quero meu a dançar, dançou, dançou, dançou... Lá uma hora, o homem
rabo!... tropeçou e caiu em cima dela. A moça quebrou uma perna,
– Eu não avisei, Macaco, pra você sair da estra- quebrou um braço... quebrou outra perna... se desengonçou
da? toda. O Macaco pula e grita:
– Só sei que quero meu rabo! Quero por que – Eu quero minha moça! Sei que quero minha moça,
quero. perfeita como lhe dei! Quero porque quero.
– Não tenho o que lhe dar, lhe dou esse facão. – Não tenho o que lhe dar, lhe dou essa viola.
O Macaco recebe o facão e sai andando pelo mato e O Macaco alegre, botou a viola debaixo do braço, subiu
encontra um homem tirando cipó com o dente. numa árvore bem alta e ficou cantando:
– Tá cortando cipó com o dente?!
– Não tenho canivete, faca nem facão. – De meu rabo ganhei meu facão,
– Tome esse facão. De meu facão ganhei meu cesto,
Quando o homem cortou o cipó com o facão, quebrou De meu cesto ganhei meu pão,
o facão. O Macaco pulou e gritou: De meu pão ganhei minha moça,
– Eu quero meu facão! Sei que quero meu facão. Quero De minha moça ganhei minha viola.
porque quero... Tingue lingue tingue
– Eu não tenho o que lhe dar, lhe dou um cesto. Macaquinho vai s’embora!
O Macaco botou o cesto na cabeça e saiu pulando. Tingue lingue tingue
Quando chegou adiante, encontrou uma mulher fazendo pão
Macaquinho vai s’embora!
e botando na roda da saia. O Macaco disse assim:
– Tá carregando pão na roda da saia?!
Narrado e cantado por Sônia Nascimento Pinto.
– É, não tenho cesto, não tenho bacia, não tenho
Alagoinhas-BA.
nada.
– Tome o cesto pra botar o pão.
Quando ela botou os pães no cesto, o cesto largou o SUGESTÃO DE ATIVIDADE
fundo. O Macaco pulou e gritou:
– Eu quero meu cesto, eu quero meu cesto! Sei que quero
meu cesto. Quero porque quero.
– Não tenho o que lhe dar, lhe dou uns pães. Pesquise sobre os contos acumulativos. Você
O Macaco saiu com os pães. No caminho, o Macaco conhece a História da Formiguinha e a Neve? Tende
encontrou uma mulher com muitos filhos chorando de fome.
A mulher estava dando a eles café puro. O Macaco disse:
encontrar ou lembrar uma versão desse conto e
compare com o conto O macaco e o rabo. Observe
– Moça, tá dando café puro a seus filhos?!
a estrutura dos contos e procure ver no que eles se
– É, não tenho pão, não tenho dinheiro, não tenho
nada pra dar. assemelham.
– Toma esses pães.
Macaco deu os pães e os meninos comeram. Quando os
meninos terminaram de comer... o Macaco pulou e gritou:
– Eu quero meu pão, eu quero meu pão! Sei que quero
As facécias são contos humorísticos. Existe ainda
meu pão. Quero porque quero. conto do ciclo do diabo que Câmara Cascudo (2004)
– Não tenho o que lhe dar, lhe dou uma filha denomina “demônio logrado” porque sempre o capeta
moça. é enganado e vencido nesses textos.
Macaco saiu com a moça, adiante encontrou um

58 LICENCIATURA EM LETRAS: LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

Os contos de adivinhação são os que partem de uma Levou o homem num relâmpago até sua casa. Tratou
pergunta do tipo “O que é, o que é?”. Consistem em um muito bem e mostrou a casa toda. O médico viu um salão
cheio-cheio de velas acessas, de todos os tamanhos, uma
desafio que o herói ou heroína tem que desvendar para já se apagando, outras viva, outras esmorecendo. Perguntou
alcançar a vitória. o que era:
- É a vida do homem. Cada homem tem uma vela acessa.
Contos de natureza denunciante são os textos em Quando a vela acaba, o homem morre.
que algum elemento da natureza se manifesta para O médico foi perguntando pela vida dos amigos e co-
nhecidos e vendo o estado das vidas. Até que lhe palpitou
ajudar o protagonista, revelando os culpados por ações perguntar pela sua. A Morte mostrou um cotoquinho no fim.
condenáveis.
- Virgem Maria! Essa é que é a minha? Então eu estou,
morre-não-morre!
Temos ainda os contos do ciclo da morte que, ao con- A Morte disse:
trário do diabo, a Comadre Morte, personificada, sempre - Está com horas de vida e por isso eu trouxe você para
vence o ser humano que tenta engabelá-la. Um exemplo aqui como amigo mas você me fez jurar que voltaria e eu
vou levá-lo para você morrer em casa.
desses contos é O compadre da Morte, publicado por
O médico quando deu acordo de si estava na sua cama
Câmara Cascudo (2004, pp. 312-313.):
rodeado pela família. Chamou a comadre e pediu:
- Comadre, me faça o último favor. Deixe eu rezar um
O COMPADRE DA MORTE Padre-Nosso. Não me leves antes. Jura?
- Juro -, prometeu a Morte.
Diz que era uma vez um homem que tinha tantos filhos O homem começou a rezar o Padre-Nosso que estás no
que não achava mais quem fosse seu compadre. Nascendo céu... E calou-se. Vai a Morte e diz:
mais um filhinho, saiu para procurar quem o apadrinhasse e - Vamos, compadre, reze o resto da oração!
depois de muito andar encontrou a Morte a quem convidou. A - Nem pense nisso, comadre! Você jurou que me dava
Morte aceitou e foi a madrinha da criança. Quando acabou o tempo de rezar o Padre-Nosso mas eu não expliquei quanto
batizado voltaram para casa e a madrinha disse ao compadre: tempo vai durar minha reza. Vai durar anos e anos...
- Compadre! Quero fazer um presente ao meu afilhado A Morte foi-se embora, zangada pela sabedoria do com-
e penso que é melhor enriquecer o pai. Você vai ser médico padre. Anos e anos depois, o médico, velhinho e engelhado,
de hoje em diante e nunca errará no que disser. Quando for ia passeando nas suas grandes propriedades quando reparou
visitar um doente me verá sempre. Se eu estiver na cabeceira que os animais tinham furado a cerca e estragado o jardim,
do enfermo, receite até água pura que ele ficará bom. Se eu cheio de flores. O homem, bem contrariado disse:
estiver nos pés, não faça nada porque é um caso perdido.
- Só queria morrer para não ver uma miséria destas!...
O homem assim fez. Botou aviso que era médico e ficou
Não fechou a boca e a Morte bateu em cima, carregando-
rico do dia para a noite porque não errava. Olhava o doente
-o. A gente pode enganar a Morte duas vezes, mas na terceira
e ia logo dizendo:
é enganado por ela.
- Este escapa!
Ou então:
- Tratem do caixão dele!
João Monteiro
Quem ele tratava, ficava bom. O homem nadava em
Natal, Rio Grande do Norte.
dinheiro. Vai um dia adoeceu o filho do rei e este mandou
buscar o médico, oferecendo uma riqueza pela vida do
príncipe. O homem foi e viu a Morte sentada nos pés da
cama. Como não queria perder a fama, resolveu enganar a
comadre, e mandou que os criados virassem a cama, os
pés passaram para a cabeceira e a cabeceira para os pés.
A Morte, muito contrariada, foi-se embora, resmungando.
O médico estava em casa um dia quando apareceu sua
comadre e o convidou para visitá-la.
- Eu vou, disse o médico - se você jurar que voltarei!
- Prometo! - disse a Morte.

LICENCIATURA EM LETRAS: LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 59


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

INDICAÇÃO DE LEITURA

Para saber mais sobre a proposta de classificação


dos contos populares, leia:
CASCUDO, Luís da Câmara. Prefácio. In: Contos
tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2004.

Estes são alguns tipos de contos classificados por


Câmara Cascudo. É importante dizer que na proposta
de classificação dele predomina o critério temático que
até hoje tem sido o mais utilizado. No entanto, é possí-
vel adotar outros critérios e propor outra classificação
a depender do conjunto de contos encontrado em uma
determinada tradição local.

Os contos populares atestam a riqueza da tradição oral


no Brasil e mostram a vitalidade das narrativas enquanto
expressão de um grupo social. No próximo capítulo es-
tudaremos outra forma de narrativa oral, dessa vez em
versos: o romance tradicional.

60 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

ANOTAÇÕES

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 61


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

ANOTAÇÕES

62 LICENCIATURAEM
LICENCIATURA EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD
EaD

O ROMANCE TRADICIONAL

CAPÍTULO 3
LICENCIATURA EM LETRAS: LÍNGUA PORTUGUES E LITERATURAS 63
EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

ANOTAÇÕES

64 LICENCIATURA
64 LICENCIATURAEM
EMHISTÓRIA
LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

variável (versões e variantes) em ambas as suas


componentes textuais (na expressão e no conteúdo),
e que, situada na literatura oral tradicional, se insere
no extracontexto da vida social quotidiana e de uma
Neste capítulo daremos continuidade ao estudo das comunidade popular (nos momentos de trabalho ou de
formas da literatura oral com a abordagem do romance lazer).
tradicional. Veremos um pouco sobre a origem do
romanceiro ibérico e como ele se mantem no Brasil nos
dias atuais. Como podemos observar as definições acima
transcritas não se contradizem, mas antes se completam
e ajudam a entender melhor o que é e como são
4.1 DEFINIÇÃO E ORIGENS DO ROMANCEIRO transmitidos os romances tradicionais. Posteriormente
veremos que no Brasil o romance sofre recriações e
Quando falamos romanceiro estamos nos referindo no nosso caso as definições devem ser adequadas às
ao conjunto de romances que, na literatura oral é um novas configurações que os textos podem assumir, com
termo usado para designar narrativas em verso com a tendência de expressão em versos mais curtos.
propriedades bem especificas. O romance tradicional
enquanto forma nada tem a ver com o romance que A pesquisadora Maria Del Rosário Suárez Albán
conhecemos na literatura escrita. Na literatura escrita (1994, p. 157) formula uma definição bastante clara e
romance é um texto em prosa que se difere em extensão direta:
do conto e da novela, formas mais sucintas.
Ao conjunto de narrativas em verso que circulavam
por entre os castelos medievais, cantadas por jograis ao
A definição clássica de romance tradicional é som de vihuelas e que chegaram aos tempos modernos
formulada pelo filólogo Ramón Menéndez-Pidal, que transmitidas oralmente, e às vezes por escrito, em
publica seu Romancero Hispânico (Hispano-português- cartapácios e em folhas volantes, denominou-se de
americano-safardí) em 1953. Segundo ele, romances ROMANCEIRO. E cada narrativa desse conjunto, ficou
são “poemas épico-líricos breves que se cantam ao conhecida como ROMANCE.
som de um instrumento, quer em danças corais, quer
em reuniões efetuadas para simples recreio ou para
o trabalho em comum” (PIDAL,1968, apud PINTO- Maria Del Rosário Albán (1994) esclarece ainda que
CORREIA, 1986, p.8). a denominação “romance” dar-se ao fato dos textos
serem produzidos em língua romance, ou seja, a língua
vulgar, e não em latim que era a língua culta usada para
Um dos continuadores do trabalho de Menéndez- escrever os textos oficiais, religiosos, as leis e a ciência
Pidal, Diego Catalán, definiu de maneira bastante breve na Europa medieval.
o romance: “breve poema épico destinado ao canto e
transmitido e reelaborado pela tradição oral”. (CATALÁN,
apud PINTO-CORREIA, 1986, p.8) Por ser de origem ibérica, é chamado de romance
tradicional ibérico. Porém, no Brasil, essa tradição teve
vasta continuidade e, como já se assinalou, os romances
O estudioso do romanceiro, o português João David ibéricos foram aqui reelaborados, assim como novos
Pinto-Correia (1986, pp. 8-9) procura detalhar mais o textos, já de tradição brasileira, foram criados.
romance, elaborando a seguinte proposta de definição:
Na península ibérica, há outras designações para o
O romance tradicional é uma composição de gênero. Alguns preferem “rimances”, outros “romanzas”.
manifestação linguístico-discursiva, de natureza poética Os transmissores usam também “cantigas de segada”
(algumas vezes acompanhada de música), com uma ou simplesmente “histórias”. Adota-se geralmente a
organização semântica narrativo-dramática, altamente expressão “romance” acrescida do adjetivo “tradicional”

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUES E LITERATURAS 65


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

para diferenciar da forma em prosa da literatura escrita já


referida acima. No Brasil, o mais comum é designá-los SAIBA MAIS
de “histórias cantadas” ou “dramas”.

O romance tradicional ibérico integra o gênero europeu


da “balada” encontradas nas tradições orais da Inglaterra, Cantares de gesta são poemas heroicos que
Escócia, Dinamarca e Rússia. Suas origens datam da narravam os feitos dos cavaleiros medievais.
Baixa Idade Média e, segundo Ramón Menéndez–Pidal De grande extensão desses textos levou a sua
(1972), os romances são derivados dos cantares de fragmentação. Alguns chegavam a ter centenas
gesta. Transmitidos de boca a ouvido por longos anos, só de versos e, considerando a sua transmissão
posteriormente recebendo registros escritos. Perduram oral, havia certa dificuldade de memorização. Em
até hoje na tradição de Portugal, Espanha, Açores, Ilha consequência disso, os poemas se fragmentaram
de Madeira e nas colônias portuguesas da América. ou se prosificaram. Da prosificação dos cantares
de gesta surgiram as novelas de cavalaria e da sua
fragmentação os romances tradicionais.

Segundo João David Pinto-Correia (1984), os


romances representam o prolongamento da épica
medieval peninsular.

Como todo texto oral não há precisão de datas na


origem do romanceiro. No e-dicionário de Carlos Ceia
(2010), encontramos a seguinte informação:

A primeira prova documental da existência do género para


o mundo hispânico, o romance de 1421 “Gentil dona gentil
dona” em Castelhano, não constitui o primeiro texto, uma
vez que, a fixação de um poema conservado memorialmente
e destinado a ser transmitido oralmente não coincide com a
sua inscrição no papel ou no pergaminho. [...] As limitações
de tal método de datação são contudo evidentes, pois
apenas os romances históricos, cujo assunto se reporta a
um determinado sucesso ocorrido numa época concreta,
sustentam a teoria da simultaneidade entre composição
e acontecimento. Pese embora as diversas opiniões
formuladas pela crítica acerca das origens cronológicas do
romanceiro, o medievalismo permanece hoje como um dos
Figura 25 - Castelo Medieval seus traços distintivos indiscutíveis.
Os romances floresceram na Baixa Idade Média e tiveram grande
aceitação nas cortes no século XV.
Os primeiros romances que se tem conhecimento
Fonte: disponível em: < http://www.morguefile.com/archive/#/
?q=file0001932460807>. Acesso em: 01 mar. 2013. em Portugal datam do século XV e isso é comprovado
pela respeitada estudiosa D. Carolina Michaelis de
Vasconcelos em seu livro Estudos sobre o Romanceiro
Peninsular; Romances Velhos em Portugal (1907 a 1909).
D. Carolina Michaelis assinala ainda a popularidade dos
romances nesta época pelas referências a romances

66 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

pelos poetas do Cancioneiro Geral compilado por Garcia


de Resende e publicado em 1516. O Cancioneiro Geral VOCÊ SABIA?
traz uma produção bastante diversificada, incluindo
poetas como Gil Vicente e Luís Vaz de Camões, dentre
outros considerados menores como, por exemplo, Duarte
de Brito, João Rodrigues de Sá ou Pedro de Almeida. Gil Vicente (1465?-1536?) é conhecido como o
Esses poetas tanto fazem alusão aos temas ou versos “pai do teatro português”. Escreveu e encenou mais
de romances, como também fizeram paródias dos de trinta peças divertindo a corte portuguesa, mas
mesmos. A paródia é um indício de que os romances também criticando duramente seus costumes. Situa-
eram conhecidos e largamente difundidos, inclusive se na História da Literatura como um Humanista,
sendo cantados na corte, pois só é passível de paródia daí a presença forte de valores medievais em seus
um texto cuja versão “original” seja do conhecimento textos.
geral. Gil Vicente, o mais impor tante dramaturgo
português da primeira metade do século XVI, faz alusão O primeiro registro de romance ibérico é, portanto,
aos romances em suas peças, o que reforça a informação de 1421 e trata-se do romance castelhano Gentil dona.
da popularidade dos textos. No entanto, mais antigo romance conhecido é Válasme
Nuestra Señora. Ressalta-se que 1421 não teria sido o
ano da composição do texto “Gentil dona”, mas apenas
de seu registro uma vez que sua transmissão é oral,
podendo perdurar na memória por muito tempo até
ganhar uma versão escrita. Levando em consideração a
temática, a crítica tradicionalista aponta para a existência
do romanceiro na península ibérica desde o século
XIII. Como já se afirmou, há inúmeras dificuldades em
precisar datas quando o tema é literatura oral, no entanto
os romances de temas históricos ou noticieros permitem
uma datação aproximada, pois os acontecimentos reais
que são aludidos no texto informam sobre o período de
sua criação. Já os textos de temática mais universalista
como o amor e temas bíblicos ficam mais difusos no
tempo.

Quanto à forma, os romances se caracterizam


por versos longos de quatorze sílabas, os chamados
alexandrinos. Por serem versos muito longos e uma cisão
no meio, ou seja, uma pausa para respiração. Cada parte
do verso é chamada de hemistíquio. Desse modo, um
Figura 26 - Gil Vicente verso de quatorze sílabas se divide em dois hemistíquios
de sete sílabas cada. Quanto a rima, predominavam as
Gil Vicente foi um dos autores que se apropriou do romanceiro rimas toantes (somente as vogais) e a monorrima, o
tradicional em suas obras. que dá certa monotonia ao cantar. Veja o exemplo do
Fonte: disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/ romance tradicional ibérico Conde Alberto: “Princesa
File:Mon%C3%B3logo_do_Vaqueiro_por_Roque_Gameiro.jpg>. estava chorando lá dentro da camarinha/ chega ali o
Acesso em: 04 mar. 2013.
rei, seu: _de que chora, filha minha?”. (ALCOFORADO;
ALBAN, 1996, p. 63)

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 67


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

Essas características formais são melhor conservadas


nos romances castelhanos. As versões portuguesas
SAIBA MAIS
apresentam maior variação e os brasileiros mais ainda.
Como já vimos a variação é característica da literatura
oral. Com o passar dos anos e as modificações no gosto
popular, essas formas vão sofrendo alterações. No caso O mais importante estudo feito no Brasil sobre a
dos romances há a tendência de encurtar os versos e variação do romance tradicional é do pesquisador
uma maior variedade de rima. Assim os versos de catorze Bráulio do Nascimento que considera os processos
ou quinze sílabas podem encurtar-se em heptassílabos e de variação do romance como traço fundamental
a assonância única varia para a rima consoante. do gênero tradicional. Segundo ele, “(...) a verdade
é que o romance permanece na medida em que se
A melodia do romance costuma apresentar certa modifica”. (NASCIMENTO, 1964, p.66)
monotonia e muitas vezes a mesma melodia é usada em
vários romances. Os temas podem variar, mas não tanto. NASCIMENTO, Bráulio do. Processos de Variação
Predominam a temática amorosa e a histórica. do Romance. Rio de Janeiro, 1964.

Até agora se falou do chamado romanceiro velho Em Portugal, no século XIX, com o advento do
que são os romances que teriam se originado na Idade Romantismo, ressurge o interesse pela cultura popular
Média. Porém, seis séculos nos separam dessa produção e com ele a valorização do romanceiro enquanto
medieval e a tradição vem se reelaborando. Menendez- “autêntica” expressão da alma portuguesa. Os estudos
Pidal (1972) aponta várias fases do romanceiro: do século XIX foram iniciados pelo poeta Almeida Garrett
a) Romances primitivos que, segundo ele, seriam que recriou da tradição oral os romances Adozinha e
originados dos cantares de gestas medievais. Bernal Frances. Garrett recolheu e publicou ainda o
Romanceiro português, em três volumes, entre 1843
b) Romances velhos que são recriações dos cantares
e 1851. Garrett, como os românticos, procuravam
de gestas, mas com temática mais variada.
nos romances o que consideram a mais pura poesia
c) Romanceiro Médio que dá continuidade ao portuguesa e por essa razão dedicou-se à recolha e
romanceiro velho no período renascentista. organização da coletânea. Graças ao trabalho de Almeida
d) Romanceiro Novo ou Moderno que é a produção Garrett temos hoje registrado um conjunto de textos e sua
romancística mais recente. resistência até o século XIX. Assim como Silvio Romero
fez no Brasil, Garrett também teve seus continuadores
O romanceiro Novo é datado do século XVII, ou ao longo do século XIX, a saber: José Maria da Costa e
seja, em pleno período Barroco. A Idade Média já vai Silva, António Pereira e Cunha, João Teixeira Soares de
longe enquanto momento histórico, apesar de que o Sousa, Teófilo Braga e José Leite de Vasconcelos.
Barroco traz de volta muitos dos valores medievais que
o Renascimento tenta apagar. Segundo o professor Pere No século XX, destacam-se Manuel da Costa
Férre (1984), especialista em romanceiro moderno, a Fontes, Joanne B. Purcell, Pere Ferré, Aliete Galhoz,
popularidade dos romances velhos decai em Portugal. Manuel Viegas Guerreiro e João David Pinto-Correia.
O advento do romanceiro Novo é a adequação do gênero No Brasil também temos uma tradição de estudos
ao novo gosto, mas os textos são criados tomando como sobre o romanceiro iniciado por Silvio Romero e que se
modelo e a estrutura formal do romanceiro velho. consolidou na segundo metade do século XX.

Quanto à temática, temos desde acontecimentos


históricos como temas bíblicos, amorosos. Temas mais
locais e outros universais, não exclusivos do universo

68 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

cultural ibérico. Dentre os de temática mais localizada


temos o romance Nau Catarineta tido como português,
INDICAÇÃO DE LEITURA
mas que também aparecem na tradição oral da Espanha
e da França. O tema deste romance é marcadamente
de gosto português, pois narra um episódio da história
das grandes navegações (PINTO-CORREIA, 1986, pp. Mais informações sobre este tema podem ser
59-60): encontradas no verbete Romanceiro do e-dicionário
de termos literários de Carlos Ceia. Disponível em:
Nau Catarineta <http://www.edtl.com.pt/index.php?option=
Lá vem a nau Catarineta que dá muito que contar: commtree&task=viewlink&link_id=339&Iti2>.
passava um ano e um dia sobre las ondas do mar. Acesso em: 28 fev. 2013.
Já nã tinham que comer, já não tinham que manjar:
deitam sola de molho p’a o outro dia o jantar.
A sola era tão rija que não a puderam travar. Como se disse, por aqui os romances são mais
Logo deitaram as sortes para ver que haveram de matar, conhecidos como “histórias cantadas” que se diferenciam
logo foi cair a sorte no capitão-maioral. das histórias narradas em prosa como os contos que
- Assobe, assobe, marinheiro, àquele mastro real: vimos no segundo capítulo. No entanto, os temas podem
vê se vês terras d’Espanha, e areias de Portugal. se assemelhar com os dos contos, também trazendo
- Não vejo terras d’Espanha nem aeias de Portugal;
príncipes, princesas, reis e condes, histórias de amor e
só vejo três meninas dobaixo dum laranjal:
desamor. O que marca a diferença em relação aos contos,
além da estrutura em versos, é que nos romances nem
ua assentada a coser e outra na roca a fiar,
sempre há um final feliz, pois os temas costumam ser
e a mias formosa de todas está nomeio a chorar.
mais realistas com laivos de crueldade. Nos contos há
- Todas três são minhas filhas, quem me dera as abraçar,
mais espaço para a fantasia e o final feliz faz parte da
e a mais formosa de todas contigo há de casar.
estrutura do texto como uma compensação para as
- Eu não quero as tuas filhas, que te custou a criar.
dificuldades dos personagens. Já nos romances, o final
- Dou-te o meu cavalo branco, que lá não há outro igual.
feliz é quase uma exceção, ainda que o antagonista seja
- Eu não quero esse cavalo, que te custou a ensinar.
castigado. O teor dramático deixa uma lição de moral,
- Dou-te a nau Catarineta para com ela navegare.
mas acentua a fragilidade humana.
-Não quero a nau Catarineta que te custou a ganhare;
só quero a tua alma para comigo lovare.
- Arrenega-te de Deus, ó diabo, que me andas atentare; 4.2 TIPOS DE ROMANCES
a minha alma é para Deus, e o corpo eu deito p’ra’o mare.
No outro dia a seguir estava a nau em terra a varare. Do mesmo modo que para os contos populares,
pesquisadores dos romances também apresentam
Recitado por Domingos Abreu, de 76 anos de idade, propostas de classificação. De acordo com o que explica
natural de Ponta do Sol, Madeira, no dia 12 de setembro de João David Pinto-Correia (1896, p. 25):
1971, em Hayward. [recolhido nos E.U.A. – Califórnia].

A necessidade de estabelecer uma ordem, uma


arrumação, num corpus tão vasto como o dos romances
tradicionais, levou alguns estudiosos a proporem
classificações baseadas em critérios muito distintos uns
dos outros. Na dificuldade de se chegar a um critério de
base semântico-estrutural, as classificações têm assentado
principalmente em pressupostos de natureza temática e
histórica.
Considerando o romance como uma forma “fixa”
pode-se compreender porque a classificação temática é a

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 69


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

mais aceita. No entanto, cada conjunto de textos pode se


adequar a uma proposta em especial. Veremos a seguir Romances Carolíngios – Os romances do ciclo
algumas das propostas mais aceitas para o romanceiro carolíngio são textos cavaleirescos que abordam temas
tradicional ibérico. ligados à corte de Carlo Magno e os Doze Pares de
França. É um ciclo muito vasto tendo continuidade na
Romances de contexto histórico peninsular - são literatura de cordel, na literatura escrita tanto na Europa
aqueles de caráter histórico que versam sobre algum como em outras partes do mundo. Como os carolíngios,
assunto ou tema registrado na histórica da península temos também Romances do Ciclo Arturiano que, como
ibérica. Exemplos desse tipo de romance são Penitência o nome indica, está ligado ao Rei Artur e os Cavaleiros
de Rei Rodrigo e O cantar de mio Cid, ambos personagens da Távola Redonda. Os romances e novelas de cavalaria
cujos feitos oscilam entre o fato e a lenda, porém têm inspirado fortemente o cinema e atualmente muitos
ambientados no século XIV. Por conta dessa aproximação filmes abordam essa temática.
com uma realidade tão distante no tempo e no espaço, os
romances históricos são encontrados com mais restrição Romances Noticieiros ou noticiosos – São aqueles
e praticamente desapareceram no Brasil. que cantavam episódios da época considerados
dignos de nota. Eram também chamados romances
Romances Novelescos - Diferente dos romances de cegos porque eram vendidos por cegos nas feiras e
históricos, os novelescos são encontrados em maior funcionavam como um jornal noticiário.
número, pois a temática deles é de caráter mais
universalista. Tratam de amor, de dramas pessoais, Estes são apenas alguns tipos e uma proposta
familiares, com pendor lírico, sentimental e dramático, de classificação, mas cada tradição e cada conjunto
como por exemplo, o romance O pobre cego. O texto de romances pode se ajustar a outra proposta de
narra a história de um nobre que se finge de cego para ordenamento. As coletâneas costumam propor uma
roubar uma moça de nome Aninha: classificação para facilitar o conhecimento dos textos e
- Minha Mãe acorde, de tanto dormir orientar a leitura.
venha ver o cego, Vida Minha, cantar e pedir.
- Se ele canta e pede, de-lhe pão e vinho Como se sabe, o romanceiro surgiu em Castela e se
mande o pobre cego, Vida Minha, seguir seu caminho. difundiu por todo o mundo ibérico, incluindo Portugal,
- Não quero teu pão, nem também teu vinho Espanha e suas colônias, além dos judeus sefarditas
quero só que Aninha, Vida Minha, me ensine o caminho. que foram expulsos da península ibérica no século XVI,
- Anda mais Aninha, mais um bocadinho, se deslocaram para o Oriente Médio e norte da África,
eu sou pobre cego, Vida Minha, não vejo o caminho. conservando a língua e a cultura hispânica. Desse modo
é que surge o romanceiro sefardita ou sefardí.

Romances Religiosos – Os romances de temática Segundo Maria Del Rosário Albán (1994, p.158),
religiosas são textos que revelam aspecto da crença
e da religiosidade cristã, geralmente em torno de um Passado de geração em geração, o romanceiro existe
personagem bíblico: Jesus Cristo, Virgem Maria, Santa hoje na tradição oral de praticamente todos os povos de
Iria etc. Uma curiosidade sobre o romanceiro religioso é expressão castelhana, catalã, por tuguesa e sefardita,
que muitos dos textos foram criados a partir de versões área hoje geograficamente ampliada por conta de ondas
migratórias de portugueses e espanhóis para os Estados
de romances profanos convertidos “a lo divino”, ou Unidos e países do norte europeu.
seja, o mesmo procedimento que é usado ainda hoje
para transformar a canção popular em um canto gospel,
trocando apenas algumas palavras e aproveitando a Assim, o romanceiro chegou ao Brasil e aqui
mesma melodia. permanece vivo, notadamente os romances novelescos

70 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

que são reelaborados em nossa tradição oral. A Formosa tapuia, que fazes perdida
classificação dada aos romances brasileiros geralmente nas matas sombrias do agreste sertão?
seguem a questão da herança ibérica e da recriação em As matas são frias e feias e tristes
não queiras tão moça morrer de sezão.
terras brasileiras. As propostas podem variar bastante,
desde Silvio Romero – que segue basicamente os
Não quero carinho, nas matas nasci
mesmos critérios da classificação dos contos: origem
se delas não gostas, não fiques aqui.
europeia, brasileira ou mestiça – a propostas mais
elaboradas, considerando também a estrutura dos Bem sabes que as matas são para as feras
romances e sua refuncionalização (adaptação ao drama, te digo deveras, não fiques aqui
por exemplo). eu tenho um engenho, criado e riqueza
eu tenho dinheiro e é só para ti.
Assim, temos propostas de classificação que
apontam para três vertentes: Não quero carinho, nem tenho ambição
se nada preciso aqui no sertão
a) Romances tradicionais
b) Narrativas tradicionais Tapuia, eu lhe peço, não percas fortuna
c) Outros textos tradicionais porque eu tenho punho de versos de linho
vamos pro porto tomar um conforto
estreladas de doces, um copo de vinho.
No Romanceiro ibérico na Bahia, as organizadoras
definem esses tipos da seguinte forma: Romances Não quero carinho, sou pobre tapuia
tradicionais são os romances cantados em verso “que não bebo no copo, só bebo na cuia
mantêm relação temática e estrutural” (ALCOFORADO;
ALBAN, 1996, p.17) com o romanceiro ibérico do século Se fosses comigo, pra minha cidade
XV e XVI, ou seja, o romanceiro velho. serias, tapuia, decerto feliz
sapatos de couro, vestidos de seda
adereços de ouro não são cousas ruins.
O segundo tipo, Narrativas tradicionais, são textos
que apresentam a mesma estrutura dos romances
Não quero carinho, teu ouro é falso
tradicionais, mas que não foram encontrados em
meus pés não se estragam por viver descalço.
coletâneas do século XV e XVI, o que pode significar
sua modernidade e ao mesmo tempo a vitalidade dessa Abasta, tapuia, não digas mais nada
literatura oral que se receia continuamente. não tenho maldade, não fiques zangada
passando o trabalho, serviço de roça
Por fim, os Outros textos tradicionais, são definidos podendo tão moça morar na cidade.
como “textos de natureza variada, também tradicionais,
que não se encaixam nos demais grupos”. (ALCOFORADO; Não quero carinho onde se nasce
Deus manda que a vida contente se passe.
ALBAN, 1996, p.17)
(Versão colhida em Porto da Folha, SE).

Encontramos ainda os chamados Romances de


Tradição Brasileira, como é o caso da Formosa Tapuia que
apresenta o tema relacionado ao contado do colonizador
com o nativo (LIMA, 1977, pp. 411-412): Esta versão do romance Formosa Tapuia, recolhida
em Sergipe pelo folclorista Jackson da Silva Lima
(1977), revela a resistência da mulher nativa aos apelos
do homem branco que a tenta seduzir, oferecendo os
A Formosa Tapuia bens materiais de que dispõe e o conforto da cidade.
Percebe-se claramente o etnocentrismo de ambas as

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 71


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

partes, quando cada um fala de seu lugar como melhor tapuia. Tanto do ponto de vista de gênero (homem/
e mais adequado. Vemos a visão de mundo do branco mulher), quanto da situação econômica (rico/pobre)
da cidade que diz que “as matas são frias e feias e ou de etnia (branco/índio), invertendo os papéis de
tristes” e da mulher tapuia que rebate dizendo que ali é subalternidade, ela expulsa o colonizador alegando
seu lugar e que é que ele deveria ir embora (“Não quero que “teu ouro é falso”. Desse modo, opta por morar
carinho, nas matas nasci/ se delas não gostas, não fiques nas matas e lá vive contente (“onde se nasce/Deus
aqui”). Interessante notar que a história oficial não dá manda que a vida contente se passe”). Este romance
ênfase às formas de resistência dos índios em relação de caráter tão brasileiro, tanto no tema como na forma,
ao contato com o português. A hostilidade que por certo está registrado em diversos Estados do Brasil.
existiu é substituída na história oficial pelo discurso da
cordialidade, tanto em relação aos indígenas quanto aos
negros. O fato de um romance tradicional apresentar uma VOCÊ SABIA?
versão diferente da história nos instiga e olhar com mais
atenção para esses textos que, à margem do discurso
hegemônico, nos dão uma visão mais complexa da
construção da identidade brasileira. Albert Eckhout (1610-1666) foi um pintor e
botânico holandês que viajou ao Nordeste Brasil,
em meados do século XVI, para retratar a fauna e a
paisagem local. Suas pinturas ficaram famosas por
ser o registro, a partir do olhar europeu, não só da
natureza como da forma de vida e costumes do povo
que aqui se encontrava.

4.3 O ROMANCEIRO NO BRASIL

Par te da literatura oral brasileira é herança dos


por tugueses, como é o caso do romanceiro. Mas
é claro que os povos nativos também tinham suas
formas de narrar, cantar, dançar. Como foi dito no
primeiro capítulo, a tradição oral do Brasil é confluência
de várias tradições. Dos povos indígenas brasileiros e
dos outros povos migrantes que aqui chegaram e se
fixaram, dentre eles negros, turcos, japoneses, coreanos
e outros imigrantes europeus em grandes levas após a
abolição da escravatura. Todos esses povos, com sua
Figura 27 - A Mulher Tapuia por Albert Eckhout (1641) diversidade cultural, contribuíram para a formação da
Fonte: Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/ cultura brasileira ou, melhor dizendo, culturas brasileiras.
File:Albert_Eckhout_Tapuia_woman_1641.jpg>. Acesso em 07
mar. 2013.
Assim, textos como este desmentem a acomodação O romanceiro ibérico, por tanto, chegando ao
dos discursos de cordialidade e submissão. A supremacia Brasil com o processo de colonização, aqui recebeu a
do homem branco é abalada pela firmeza da mulher influência do novo contexto cultural e se adaptou. Novas

72 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

narrativas foram criadas, seguindo o mesmo formato ou morrer.


se assemelhando, porém abordando o novo contexto, - Se estás a acabar de morrer, – quero-te ver expirar;
com novos temas, novas formas de metrificação e rima. eu ainda tenho dinheiro – para tua morte pagar.
O romance Formosa Tapuia visto anteriormente é um - Quando minha mãe pensava – que tinha o seu filho vivo!
exemplo dessa inovação do romanceiro de expressão - Também a minha pensava – que tu casavas comigo.
brasileira. ( Versão de Parada de Infanções, c. de Bragança. 1933).

Também um traço que podemos apontar nessa


aclimatação do romanceiro ibérico ao gosto popular do
Brasil é a dramatização, ou seja, a transformação do Juliana e Dom Jorge
romance em drama, em auto popular a ser encenado em
praças públicas, em circos ou até mesmo em ambientes Cantado por Esmeralda Araújo Zuanny,
fechados. O fato do romance ser com frequência 71 anos, e Francisca Araújo Zuanny,
dialogado facilita a encenação e os temas novelescos 69 anos, naturais de Salvador, Bahia.
se adaptam bem ao objetivo do entretenimento. Assim Salvador, 04/05/86.
como a formosa tapuia conversa com o branco sedutor,
no romance a seguir Juliana dialoga com D. Jorge ou - O que que tem, Juliana, que está triste a chorar? (bis)
com sua mãe, como veremos. - É por causa de Dom Jorge, que com outra vai casar.
(bis)
Um dos romance ibéricos mais difundidos no Brasil é - Eu bem te disse, minha filha, que ele contigo não
casava. (bis)
o Veneno de Moriana aqui conhecido como Juliana e Dom
Jorge. O pesquisador Bráulio do Nascimento (1966) tem - É verdade, minha mãe, mas não sabia que ele
enganava. (bis)
uma pesquisa detalhada sobre este romance que narra
- Evém, evém Seu Dom Jorge no seu cavalo montado.
uma história de amor e de vingança: Juliana é uma moça (bis)
que namora Dom Jorge e é abandonada por ele. Quando - Bom dia, ó Juliana, como você tem passado? (bis)
fica sabendo que ele está noivo de outra, ela fica magoada
- É verdade, Seu Dom Jorge, que o senhor vai casar?
e planeja a vingança. Convida Jorge para tomar um copo (bis)
de vinho e coloca veneno na bebida. A narrativa termina - É verdade, ó Juliana, vim para te convidar. (bis)
com a morte de Dom Jorge e a sentença de Juliana que - Espera aí, Seu Dom Jorge, enquanto eu vá no sobrado.
diz que se ela não se casou com ela também com outra Buscar um copo de vinho que para ti tenho guardado.
não casará. Dentre as muitas versões desse romance, (bis)
seguem duas. A primeira de Bragança, Portugal (PINTO- - Que vinho é este, tão forte que, Juliana, me deste?
CORREIA, 1984, pp. 270-271) e a segunda de Salvador, A cabeça já me roda e a vista me escurece. (bis)
Bahia (ALCOFORADO; FERNANDES; ALBÁN, 1996, pp. - Morreu, morreu seu Dom Jorge, morreu, morreu,
160-161): se acabou.
D. Jorge Comigo não se casou nem com outra ele gozou. (bis)
Lá baixo vem o D. Jorge – montado no seu cavalo.
- Deus te guarde, Juliana – no teu país sentada.
- Ontem a noite me disseram – que tu te ias casar.
- É verdade, Juliana, – eu te venho convidar.
- Apeia-te D. Jorge, – não ponha o pé no sobrado,
Eu tenho um copo de vinho – para to dar guardado.
- Juliana, Juliana, – que deitasse no teu vinho?
Ainda agora o bebi, – já não vejo o caminho.
Venha papel, venha tinta, – venha quem saiba escrever,
venha também minha mãe, – que eu estou a acabar de

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 73


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

Figura 28 - Garrafa de vinho Figura 29 - Circo: um dos espaços para apresentação de


romances dramatizados
O tema do vinho envenenado está presente em todas as versões
do romance Juliana e D. Jorge, tanto em Portugal como no Brasil. Fonte: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/
Fonte: disponível em: <http://www.morguefile.com/archive/ Ficheiro:Arturo_Michelena_00.JPG>. Acesso em 20 fev. 2014
display/5486>. Acesso em 07 mar. 2013.
Outro aspecto da tradição brasileira que merece
atenção é a transformação das narrativas cantadas
em textos em prosa, assim como acontece também
É esta estrutura em diálogo que facilita a dramatização
a literatura de cordel. A prosificação pode indicar
do romance. Cada personagem se coloca sem a
esquecimento, mas também o encontrar de outro caminho
intervenção de um narrador que pode também aparecer
para a permanência. Se os versos, rimas e melodia são
em algumas versões para explicar melhor a cena
esquecidos, a trama e o enredo são conservados e às
dramática.
vezes ganham novos motivos característicos do conto
popular como o final feliz.
Observamos em ambas as versões do romance
“Juliana e D. Jorge” o tema da mulher vingadora. Podemos
mesmo dizer que nos romances há um predomínio de um
discurso feminino. A mulher é mostrada como um ser de
personalidade forte que pode ser fragilizado pelo amor, a
traição ou a falta de atenção do ser amado.

74 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

o estado da tradição em terras brasileiras. Os registros


mostram que os textos, trilhando um longo caminho
INDICAÇÃO DE LEITURA
desde a Idade Média até os dias atuais, se mantém
graças às transformações e adequações. Os intérpretes
são responsáveis por essas transformações e também
Para aprofundar sobre o tema da adaptação dos pela continuidade do romanceiro. Diferente dos textos
romances ibérico no Brasil, recomenda-se a leitura literários cujo registro é fixado por escrito, a literatura
do artigo O romance ibérico no Brasil: tradição oral depende da voz desses sujeitos e das condições de
e recriação, da professora pesquisadora baiana transmissão dos textos para sua permanência.
Doralice Alcoforado.
Disponível em: Como vimos, a literatura de cordel, os contos
<http://www.uel.br/revistas/boitata/Boitata%20 populares e os romances são formas de expressão dessa
Especial%20Dorinha/1.%20O%20romanceiro%20 literatura oral. A importância do estudo dessa literatura
iberico%20tradio%20e%20recriao.pdf>. Acesso está relacionada com o conhecimento que ela pode nos
em 07 mar. 2013. trazer das comunidades narrativas e da cultura popular,
ampliando assim nosso conhecimento das produções
literárias para além da literatura canônica e dos autores
clássicos.
Os temas da literatura oral e popular estão muito
ligados à vida e às comunidades, seus valores e crenças.
Desse modo, o conhecimento dos textos é também o Pensando nisso é que propomos finalizar nossa
saber e o interagir com a comunidade. Os exemplos disciplina com uma reflexão sobre o lugar da literatura
dos textos, tanto romances como contos e folhetos de oral nos estudos literários e as relações das produções
cordel, nos mostram como a literatura oral popular pode literárias populares com as obras canônicas.
informar sobre os modos de vida das pessoas que os
narram ou cantam, aquilo que acreditam e desejam. Os
textos também nos mostram os modos de resolução
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
dos problemas, às vezes com violência, noutras com
negociação.
Chegamos ao fim de nossa trajetória. Percorremos os
principais conceitos relacionados ao estudo da cultura
Por essa razão, há uma tradição de estudos do
popular e (re)conhecemos um pouco das principais
romanceiro no Brasil. Desde Silvio Romero no século
formas da literatura oral, seus modos de produção e
XIX que publicou os Cantos populares do Brasil, Luís
transmissão. Tendo em mente que um dos objetivos
da Câmara Cascudo e ao longo do século XX seus
deste curso é a formação de professores, propõe-se
inúmero seguidores. Para citar alguns, podemos
aqui uma reflexão sobre o lugar da literatura oral nos
listar: em Sergipe, Jackson da Silva Lima; na Paraíba,
estudos literários e no ensino de literatura. De que
Idelette Muzart Fonseca dos Santos e Neuma Fechine;
modo professores e estudantes podem aproveitar
em Alagoas, José Aloisio Vilela; na Bahia, Doralice
melhor o saber popular, acionando sua própria memória
Alcoforado e Maria del Rosário Albán; no Pará, Vicente
e ampliando seu conhecimento da literatura? Como a
Salles; em Pernambuco, Francisco Augusto Pereira da
literatura oral na escola pode contribuir para a formação
Costa; no Maranhão, Antônio Lopes; no Espirito Santo,
de leitores?
Guilherme Santos Neves; em São Paulo, Rossini Tavares
de Lima, dentre outros.
Costumamos separar o acadêmico do social. Do
mesmo modo que separamos a cultura popular do
Todos esses estudos sobre o romanceiro visam
“conhecimento”. O canônico e o não canônico nas aulas
principalmente registrar os textos orais, documentando
de literatura. A música clássica do cancioneiro, entre

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 75


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

inúmeros exemplos. Porém, existem trânsitos que devem


ser observados entre os estratos culturais. A cultura INDICAÇÃO DE LEITURA
(literatura) oral popular revela uma comunidade narrativa,
atentando para o fato de que esta comunidade, embora
tenha seus modos de vida próprios, não está isolada e
nem conserva suas tradições sem interagir com outras Para ajudar nesta reflexão sobre a autonomia do
comunidades, inclusive as comunidades virtuais tão em sujeito e construção do conhecimento, recomenda-
expansão hoje em dia. se a leitura de:
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes
O contato com a literatura oral é anterior e paralelo necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e
ao aprendizado da escrita. A transmissão das narrativas Terra, 1996.
orais é muitas vezes incrementada pela assimilação de
motivos oriundos da literatura escrita e da cultura de
massa. Do mesmo modo, os escritores aproveitam de
todas as formas de expressão cultural para a composição Há várias formas de textos e de leituras. A escola
de sua obra. não pode contribuir para a formação do leitor se não
oportunizar ao sujeito a experimentação de várias formas
de leitura e não se apropriar também das que ele já tem,
A escola tem um compromisso em fornecer ao sujeito
anterior ao seu ingresso no ambiente escolar. Enquanto
uma educação formal, ensinar a língua padrão, alargar,
professores de língua e literatura, muitas vezes, por
portanto, seus horizontes de conhecimentos. Ao fazer
despreparo ou preconceito, considerarem que a literatura
isso, a escola amplia também os horizontes de leitura
oral só deve entrar na sala de aula por via das adaptações
do mundo.
de escritores como Monteiro Lobado ou João Guimarães
Rosa, para citar apenas dois autores consagrados na
História da Literatura Brasileira.
SAIBA MAIS

Mas por que marcar a diferença entre a poesia oral


e a escrita estabelecendo hierarquias? É importante
A transmissão de textos orais e populares, assinalar que o processo de composição de um texto
dentro e fora da escola, pode revelar a construção oral tem suas peculiaridades, mas a princípio não difere
de identidades. Junto com Paulo Freire e seus de um escrito, pois o narrador tem a sua disposição uma
seguidores aprendemos que a cultura que o indivíduo série de motivos da tradição que são apropriados por ele.
traz para a escola deve ser respeitada e aproveitada.
Não é papel da escola apagar a identidade do sujeito e
O narrador tem a liberdade de organizar os motivos
dar-lhe outra, mas ajudá-lo a adquirir mais autonomia
em sequências para transmitir uma mensagem. A
na construção de seu conhecimento.
estrutura da narrativa não é abalada por essas escolhas,
mas o papel do narrador e a participação os ouvintes
é fundamental. A tradição se faz presente nessas
referências ao passado, ao já-dito, ao “quem me contou
foi...” Mas o contemporâneo está tão vivo e interferindo
no processo de criação e vitalidade do texto que não
pode ser ignorado. A arte de narrar é contemporânea e
viva. As formas mudam, mas o homem ainda preza no
seu dia a dia o contar de uma boa história. É aí que ele
se reconhece.

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

As molduras, formas de abrir e fechar os contos, importante mostrar como há o dialoga desses autores
contornos da narrativa nos inserem e retiram do com a cultura popular. Observar os trânsitos e a
universo do texto. No entanto, há a demarcação dessas complexidade de relações entre os diversos estratos
fronteiras que ficam permeadas pela relação que o culturais, sem demarcar hierarquias. É possível assim
narrador estabelece do ficcional com o real: “poderia ter ampliar o leque de formas textuais e aproveitar o
acontecido” ou até “eu acho que essa história aconteceu conhecimento do sujeito, anterior ao seu ingresso da
mesmo”. São forma de relacionar com o cotidiano e escola.
trazer aos personagens aspectos de pessoas conhecidas,
possuidoras de vida própria e muito próximas de nós. O No Brasil, desde Silvio Romero, procura-se chamar
narrador faz também o exercício de vestir-se como os a atenção para as narrativas orais que circulam
personagens quando nos indaga a respeito, buscando pelas diversas regiões, adaptando-se e recriando-se
entre nós exemplos da vida real. E você, já agiu assim? continuamente. O narrador recupera todo esse passado
O que faria em uma situação como essa? São questões em seu texto e o transcritor condensa, muitas vezes
que levam os ouvintes a participarem da composição eliminando a diversidade das variações linguísticas e
do texto. estilísticas desse sujeito.

Os motivos da tradição que compõem o lastro da Paul Zumthor (2000) nos ajuda na reflexão sobre os
narrativa são assim complementados, enriquecidos, índices performanciais de leitura do texto oral. Como uma
substituídos por outros que o narrador vai apanhando espécie de escala, o texto transcrito e depois adaptado se
no próprio fazer narrativo. A urdidura do texto é algo aproxima e se afasta do texto falado, de modo a, neste
semelhante com a prática mais contemporânea em movimento pendular, tornar possível à leitura recuperar a
que a autoria se esgarça na apropriação de elementos performance. Não se trata de uma leitura dramática nem
diversificados, posto à disposição do autor, quase da dramatização da leitura, mas da oralização da escrita
que oferecidos às vezes, noutras rapto ou rapina. Não ao escriturar a oralidade.
descoladas da vida do narrador nem tampouco de seus
ouvintes e coautores do texto.
Desse modo, acredita-se contribuir para a formação
de leitores que hão de recuperar em sua memória
Assim, esse movimento da tradição pode ser visto com individual, a memória ancestral e coletiva. Todos esses
algo de vanguarda e as fronteiras do tradicional popular textos apresentados nos capítulos anteriores podem ser
permeiam-se, estabelece-se num continum com outros instrumentos importantes para tratar em sala de aula
textos e formatos. As narrativas transmitem os valores dos temas que estão na pauta do dia e para os quais os
compartilhados pelo narrador e seus ouvintes, que são professores devem estar preparados para abordar, entre
também narradores, responsáveis pela transmissão e os muros da escola e para além eles.
continuidade do saber tradicional.

Desse modo, seus ouvintes (e leitores) podem tornar-


se leitores (e ouvintes), críticos e atuantes; sujeitos
que tem sua palavra respeitada e incluída no repertório
escolar, ao lado dos textos canônicos e dialogando com
eles.

Como foi dito, o ensino da literatura, desde as


classes iniciais, privilegia os clássicos e o canônico
e isso prossegue até o ensino superior. Considerando
a importância de estudar os clássicos, é igualmente

LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS 77


EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

GLOSSÁRIO Faz parte do folclore infantil.

BENZEDURAS. O mesmo que rezas, as benzeduras PARÓDIA. É uma recriação de um texto, explorando um
são palavras ditas em voz alta (porém em tom baixo para viés cômico, irônico ou debochado. Etimologicamente,
manter o segredo) com o intuito de proteção, tirar “mau paródia significa para-ode, ou seja, uma inversão de
olhado” ou enfermidade. Em geral, a benzedeira sacode uma composição poética. Resulta de um processo de
um ramo verde sobre a cabeça do sujeito durante a reza. intertextualidade, da relação de um texto matriz com outro
que dialoga com ele, acrescentando novos sentidos.
COMUNIDADE NARRATIVA. Uma comunidade que
partilha valores, costumes e os discursos que ensinam PERFORMANCE. O texto oral é produzido e transmitido
e reforçam esses costumes. Caracteriza a comunidade no mesmo instante. É esta simultaneidade do momento
narrativa o saber comum par tilhado por todas as de criação com a fruição do texto que chamamos de
gerações, desde os mais velhos – que têm sua palavra performance. Em última instância, a poesia oral só existe
respeitada como de autoridade – até os mais jovens a em performance e as condições do contexto de produção
quem é destinada a função principalmente de ouvir, mas – interação com a plateia, predisposição do intérprete etc.
que são narradores e transmissores em potencial do – influenciam diretamente na forma do texto.
saber aprendido com os mais velhos.
REDONDILHA. Forma de verso tradicional, considerado
ETNOCENTRISMO. Olhar centrado em sua própria redondilha maior se de sete sílabas e redondilha menor,
cultura que leva muitas vezes ao preconceito e a julgar se de cinco.
uma cultura como superior a outra. É um conceito
antropológico que se traduz em uma postura que dificulta XILOGRAVURA. Matriz de impressão rudimentar feita
a aceitação do outro enquanto semelhante, porém com madeira esculpida que funciona como uma espécie
diferente. de carimbo a reproduzir a imagem desejada.

ETNOTEXTO. Texto que carrega o discurso cultural de


uma comunidade.

HEPTASSILABO. O mesmo que redondilha maior;


verso de sete sílabas.

LENDA. Narrativa que procura explicar a origem de


alguma coisa em geral por meio do fantástico. Segundo
Câmara Cascudo, difere do mito por ter caráter mais
localizado, particular, enquanto o mito é mais universal.

MARUJADA. Folguedo que representa uma batalha


naval, com os brincantes vestidos de marinheiros que
cantam e dançam á beira mar.

MOTE. São versos que servem de inspiração ou tema


para a construção de um texto.
PARLENDAS. Semelhantes aos trava-línguas as
parlendas são composições em verso para o divertimento.

78 LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EaD

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