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Resenha

A PSICANÁLISE LACANIANA escrito por seu projeto político e não somente


MARXISTA: UMA (PRO)POSIÇÃO por seu método teórico e crítico. Na psicaná-
Resenha de PAVON-CUÉLLAR, David. lise de Lacan, Marx não é só e unicamente
Elementos políticos de marxismo Lacaniano. 1a. lembrado e mencionado, mas integrado, re-
ed. México D.F.: Paradiso Editores, 2014, novado, impulsionado e revitalizado.
301 p. Marx e Freud buscam a verdade, a paixão
pela verdade e por sua revelação. Em vez da
Nadir Lara Junior
representação freudiana de um sistema que
Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social pela tende ao equilíbrio, Lacan elege a repre-
PUC-SP. Professor do Programa de Pós-Graduação sentação marxista de um sistema simbólico,
em Ciências Sociais, Unisinos. Coordenador artificial e cultural, buscando a equivalência
do Grupo de Pesquisa em Ideologias Políticas e
Movimentos Sociais (CNPq). entre os bens e os valores constitutivos da ci-
E-mail: nadirl@unisinos.br vilização. Entre os elementos conceituais que
se articulam no funcionamento do marxismo
Alexandre J. Appio lacaniano, o autor analisa alguns princípios
organizadores, como o materialismo simbóli-
Sociólogo; mestre em Ciências Sociais pela Unisinos,
área de políticas e práticas sociais; professor da co; questão da revolução; significante mestre;
área de humanas e pós-graduação em Educação, identificação opressiva e a realidade imaginá-
pesquisador do Grupo de Pesquisa em Ideologias
ria, mesclados com outros como o mais-de-
Políticas e Movimentos Sociais (CNPq).
E-mail:prof@appio.org -gozar e os quatro discursos.
Já no primeiro capítulo, o autor salienta
que devemos ter bastante claro que o mate-
rialismo de Lacan é um materialismo sim-
David Pavón-Cuéllar escreveu esse livro bólico e não realista, bem como o de Marx,
como forma de sistematizar aquilo que os que poderia ainda ser descrito como idea-
pesquisadores que trabalham com psicanáli- lista, como a ideia do comunismo. Quanto à
se e marxismo gostariam de ter feito. David produção de bens simbólicos, a alienação de
encarna o “espírito de nossa época”. Uma qualquer tipo de trabalho é real na medida
obra que referencia nossas reflexões e estu- em que faz parte de todo um sistema produ-
dos acerca da relação e influência de Marx tivo que lança toda espécie de bens simbóli-
no pensamento lacaniano. O autor salienta cos, toda a classe de significantes produzidos
que a teoria lacaniana jamais pode se bastar por um trabalho que requer a mão de obra de
a si mesma, mas requer sempre alguém mais, todos, de modo que o trabalho, realizado por
como, por exemplo, Marx, necessário nesse todos, não é verdadeiramente nosso, mas do

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RESENHA

Outro. É um trabalho inconsciente, um “dis- motivo da revolução, transmuta-se em peso


curso inconsciente”, um discurso do Outro. e inércia opressiva. A força revolucionária
O discurso do Outro, aqui é colocado como serve somente para mostrar o lado simbólico
discurso ideológico ou um funcionamento do do poder (p. 44).
sistema simbólico da cultura. Por mais valio- Por sua vez, como o real é impossível,
sos que sejam os significantes econômicos, também é impossível que haja uma experiên-
são somente significantes, e seu valor econô- cia direta e imediata do real. Essa experiência
mico é puramente simbólico. do real, essa verdade pela qual se estrutura o
Seguindo a análise do autor, no segundo ato revolucionário, ao final, não é nada mais
capítulo, aborda-se que a exclusão do real que um ideal que se projeta no horizonte da
condiciona a existência de todo o simbólico, consciência de classe. É um ideal inalcançá-
sendo que o universo lógico deve conside- vel de uma consciência total de transparência
rar o real, não de maneira positiva, mas de absoluta do conhecimento, de uma classe que
maneira negativa, deixando-se conter por conhece a si mesmo e conhece todo aquele
ele como excluído. É excluído porque se vê que a determina.
rodeado por todo o incluído, “o universo ló- O autor se envereda na complexidade
gico do possível se vê assim paradoxalmente do real e simbólico e coloca ainda sobre o
compreendido no impossível”. E continua: assunto que “os revolucionários devem, com
“O universo do sistema simbólico forma isso, resignar-se a sua alienação em um saber
parte do real. É por isso que se deve consi- supostamente verdadeiro como substituto
derar o real. Mas só pode considerar como simbólico da experiência do real na verdade”
impossível o que depende de todo o possível, (p. 45). É o momento de renunciar ao ideal
de modo que o impossível e o real se tornam inalcançável da consciência de classe e aceitar
termos equivalentes” (p. 38). a realidade inquestionável dos aparatos ideo-
Não parece existir outra verdade que não lógicos do Estado e do partido.
seja o poder simbólico do Outro e nosso res- No universo lógico do sistema simbólico,
pectivo sentimento de frustração, ansiedade, a impossibilidade revolucionária é relativa a
impotência diante de uma verdade evidente, uma insuficiência regressiva. Aos olhos de
conhecida, sofrida. E se o saber se ocupa da um marxista lacaniano, as grandes revoluções
verdade não quer dizer que esse saber seja propostas por Marx pertencem ao futuro, não
verdadeiro. Simplesmente o saber emana da podem ocorrer no presente, pois nunca é seu
verdade, ele a elabora e trata sobre ela e se momento. O final é o princípio. A desordem
deixa inspirar por ela. O saber e a verdade se só serve para voltar a se ordenar (p 53). O
colocam em situações distintas. Por exemplo, circulo se encerra, o movimento se esgota. O
em um ato revolucionário, como realização esgotamento é inerente à própria revolução.
da verdade sobre o saber, é visível uma ten- Mas se esgota a ação da revolução, do mo-
tativa de verificação de um saber que se pre- vimento, não o ciclo total ou o processo em
tende verdadeiro. O movimento libertador, seu conjunto.

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Pode-se afirmar que o sistema inclui uma engloba o todo e não deixa nada fora de seu
espécie de motor que cria revoluções periódi- interior. De modo que não pode haver nada
cas, não somente no conjunto da sociedade, fora. A única exterioridade é a do inconscien-
mas em seus inumeráveis âmbitos individuais, te. É o sistema simbólico que deve mudar a
familiares, etc. O motor das revoluções é uma si mesmo, revolucionar-se, para adaptar-se e
peça indispensável ao sistema. A reprodução resistir ao embate com o real.
do sistema necessita das revoluções, “é por No terceiro capítulo com o tema signifi-
isso que as revoluções têm, paradoxalmente, cante mestre, o autor inicia salientando que a
um valor de uso para o sistema que revolu- cada crise crônica do sistema, e seguindo-se
cionam” (p. 56). Exemplifica-se que funciona a tradição revolucionária, chega o momento
como uma válvula de escape, com liberação fatal em que a reação começa. É o momento
da tensão e do peso da história, e como me- de restauração, do poder absoluto do signifi-
canismo de reintegração. Outra passagem cante mestre, e da reconstituição da estrutura
importante do autor: “em certo sentido, o significante do sistema simbólico da cultura.
sistema muda, mas muda sem mudar, e quan- E por trás dessa restauração e reconstituição,
to mais muda, menos muda. Mais se move, caímos novamente no poder absoluto que o
menos se move” (p. 57). significante exerce através da estrutura.
Ainda dentro do sistema do real e do Os sujeitos se identificam com os sig-
simbólico, temos sempre que ganhar, mas dis- nificantes, com o propósito de recuperar ao
pensando o real. Temos que perder o real para menos uma parte do todo o ser e o poder
ganhar dinheiro, prestígio e outras situações que o significante obtém dos que se identifi-
com valor simbólico. Portanto, o real deve ser cam com ele. Os sujeitos ligados à realidade,
dispensado para o simbólico perpetuar. As se veem atados a identidade simbólica do
próprias revoluções são simbólicas e cíclicas. homem que triunfa como mestre. O sujeito,
Fala-se que a história nada mais seria que por sua vez “não pode ceder a tentação do
a história da repetição. Como salienta Lacan: abandono de si”(p. 91). O sujeito só pode ser
“nada na história se ordena mais que a repe- mestre e dominar, ao dominar-se a si mesmo
tição”. Salienta-se que a linguagem é fun- e ser seu próprio mestre. Referente ao signifi-
damental para perpetuar a história, que “é o cante-mestre, este só o é a partir do momento
inconsciente e o inconsciente é a linguagem” em que o sujeito se identifica simbolicamente
(p. 65). A linguagem, portanto, como sistema com ele, assim lhe dá poder sobre os demais
simbólico da cultura, ao manter-se, permite significantes. E a partir do momento em que
que a história continue. O decorrer do escrito ocorre identificação simbolicamente, o sujei-
de Pavón-Cuéllar trava diálogo com outros to lhe dá poder, sendo o outro que usufrui do
autores, como Freud, Gramsci, Althusser, mesmo poder a ele investido.
Sartre, Zizek, Jameson, Hegel e Adorno. Na continuação, menciona-se que o
O universo lógico do sistema simbóli- discurso não atravessa de maneira idêntica
co penetra em tudo e domina tudo porque aos diferentes indivíduos, porque estes não

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RESENHA

ocupam exatamente os mesmos lugares na é que nunca deixamos de lutar e trabalhar


“continuidade intersubjetiva” do discurso por aquele no qual o sistema simbólico nos
que os atravessa. E sendo assim, devem ser faz crer, e assim nos mantemos bem ligados
tratados de maneira diferente pelo discurso ao sistema. Se deixarmos de crer em algo, é
que opera de maneiras diferentes para cada como consequência de uma revolução do
um e produz também reações diferentes. E a sistema. Nesse ciclo do sistema simbólico, às
maneira diferente de reação determinará os
vezes, somos obrigados a acreditar em certo
efeitos sociais desse discurso, da linguagem e
símbolo conservador ou em um símbolo pro-
da estrutura significante do sistema simbóli-
gressista. Uma vez que certo símbolo deixa
co da cultura.
de sê-lo, o sistema deve oferecer-nos outro
O autor explica que a verdade não se
símbolo, que nos mantenha bem amarrados
caracteriza por ser exata, clara, convincente,
a ele e coordenados com seu funcionamento.
sensata, realista, crível e compreensível. Essa é
uma ideia fundamental do marxismo lacania- Entre um significante e o seguinte, pode
no. É um importante ponto de acordo entre abrir-se um interstício, uma falha no saber,
Marx e Lacan. Ambos insistem cada um a um silêncio no discurso, uma estreita fresta
seu modo, que a verdade perpassa por toda pela qual irrompe o real, uma breve pausa na
a classe de fábulas. “A verdade vagabundeia” qual se chega a escutar a palavra da verdade.
no que parece menos verdadeiro ou forma Mas logo é calada pelo barulho ensurdecedor
leve de erro, a verdade se propaga, ela tem do símbolo seguinte. Estamos condenados a
uma estrutura de ficção. Finaliza afirman- crer sempre em um significante cuja mate-
do: a manifestação da verdade requer então, rialidade literal faz com que sejamos irreme-
uma mentira efetiva (p. 107). Muitas vezes, diavelmente materialistas. O autor ainda faz
acreditamos em situações e regimes, mas na um paralelo nesse assunto, com Marx, Hegel
esperança de uma verdade, o que na verdade e Zizek (p. 115). Salientando que o materia-
é um desejo.
lismo econômico de Marx é um materialismo
Todas as lutas, anseios, revoluções, só
em sentido restrito, porém simbólico.
acontecem se ocorre a crença nelas, nas ações
O processo revolucionário jamais deve
com esse intuito.
considerar-se pronto, acabado. Deve continuar
Exemplifica com o esquema:
através de revoluções sucessivas, que, em seu
Palavra acreditar na palavra
suceder ininterrupto, constituam uma única
Luta pela palavra Efeito da palavra
revolução permanente nunca interrompida,
O autor complementa: “a palavra que que nunca deixe de revolucionar a si mesma
não causa revoluções é precisamente porque e de lutar contra os mestres que ela mesma
deixamos de crer nela” (p. 111). A palavra vá erigindo. Mas também a única maneira de
perde todo seu poder quando perde toda a lutar contra a existência do mestre e lutar con-
possibilidade de acreditar na palavra. Certo tra ele mesmo, já que ele mesmo é a existência

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do mestre. É lutar com sua própria identifica- constitui um poder especial de repressão:
ção com o mestre, visto que essa identificação uma máquina para opressão de uma classe
e o que lhe dá a existência como mestre. por outra. E insistiria que o Estado proletá-
Ao quarto capítulo, o autor explana que rio deve se impor como uma máquina para
“a razão de nossa condição oprimida nos di- a substituição da burguesia pelo proletariado,
ferentes significantes ocorre na proporção de explicando que a burguesia, nesse caso, seria
nossa identificação com eles” (p. 154). Essa sempre uma oposição.
identificação comporta irremediavelmente O eterno problema é que a desindentifi-
uma opressão do sujeito pelo significante, do cação com um Estado passa a ser identificado
rosto pela máscara, do vivo pelo morto, do com outro Estado. Se existe a política go-
real pelo simbólico, entre outros. É necessário vernamental repressiva anunciada, é porque
que o sujeito se identifique assim com aquele também aconteceu a anunciação política li-
que permite ser algo e alcançar certo reco- bertadora subjacente, a qual não deixará de se
nhecimento no sistema simbólico. Esse reco- opor ao mesmo que o possibilita. Os eleitores
nhecimento do Outro, somente é conseguido não deixam de se opor aos elegidos, os movi-
através de uma identificação com o Outro, mentos sociais não deixam de se opor a seus
que é também a alienação no Outro e domi- ambiciosos lideres, a ação política das pessoas
nação pelo Outro. O Outro, portanto, com o das ruas não deixa de se opor ao poder polí-
qual se identifica o sujeito, pode apoderar-se tico vigente.
da existência do sujeito e absorver toda a sua Lacan tem razão ao admitir nossa irre-
ação. parável impotência. Para que fosse possível
A “unidade de classe” que Marx pregava repará-la, seria necessário emancipar-se do
não é uma unidade simbólica do significante, correspondente poder absoluto do signifi-
mas, como em Lacan, é a unidade vazia da cante, e como isso não é possível, então não
ausência real e original de um ser do sujei- é possível igualmente reparar a impotência
to, ausência revelada pela descoberta e vazio (p. 172). Chegamos assim ao postulado im-
simbólico de um proletário não identificado plícito lacaniano de que não existe possibili-
com nenhum significante mestre, ausência dade alguma de superação da impotência.
que multiplica e transcende a multiplicidade Tanto Marx quanto Lacan concordam
e complexidade inerentes ao simbólico e suas que toda a impotência é correlativa de certa
pluralidades de formas de luta. potência, todo poder que se ganha é indisso-
O autor se refere a Laclau (p. 160), que ciável de outro poder que se perde, a potên-
este sustenta que “o poder e a condição da cia de alguém ou algo se conquista sempre
emancipação”, e que a única maneira de ao custo da de algo mais ou de alguém mais.
emancipar uma constelação de forças sociais Tudo se paga no real, e estabelece-se um
e a criação de um novo poder em torno de vínculo essencial entre certo ganho e certa
um centro hegemônico. Por sua vez, refere-se perda. Do ponto de vista marxista, somos
a Lenin, que este aceitaria que “ todo estado” impotentes porque perdemos nosso poder ao

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transferi-lo a um significante mestre, capital sistema no qual se aliena. Quando os indi-


ou Estado, que não teria nenhum poder inde- víduos se convertem em peças do sistema,
pendente de nós sobre nós. quando funcionam com o sistema e deixam
A liberdade seria uma ilusão da ideologia de dificultar seu funcionamento, então o sis-
moderna burguesa, liberal e individualista. tema se emancipou e funciona livremente,
Essa ilusão de liberdade somente demonstra- sem restrições. Nesse caso, os indivíduos ex-
ria o caráter inconsciente da opressão e sua perimentam a emancipação do sistema como
efetividade repressiva. Assim, como descreve se fosse sua própria emancipação.
Herbert Marcuse, “a repressão chegou e ser Igualmente os trabalhadores, por mais
tão efetiva que, para o reprimido, assume a que sejam reprimidos, estão conscientemente
ilusória forma de liberdade” (p. 187). Se aqui identificados com o sistema que os oprime e,
existe liberdade e não pura ilusão, é unica- em virtude dessa identificação, já não se per-
mente – como nos diz Adorno –, na medida cebem como reprimidos, pois formam parte
em que certa autonomia é requerida pelo sis- do mecanismo repressivo inconsciente. O
tema para poder funcionar. É uma função do problema é que esse mecanismo utiliza toda a
sistema a que se realiza através da ilusão de força dos próprios indivíduos, para sua liber-
liberdade. tação do mesmo mecanismo. Nossa liberdade
O sistema necessitaria de liberdade ilusó- é passiva, manipulada, ilusória, somente sim-
ria para assegurar nosso bom comportamento bólica. Como o autor salienta “nossa morte
compulsivo de trabalhadores e consumidores, real pode ser provocada por nossa morte sim-
que é a escravidão moderna. O autor expla- bólica” (p. 192).
na a pergunta: por que o ocultamento dessa Na sequência, o autor faz um delineamen-
liberdade asseguraria nosso bom comporta- to nas nuances das leis e sua obediência social
mento? Porque se nossa verdadeira liberda- e salienta que os sujeitos podem conhecer
de aparecer, de pudermos vê-la então não uma lei, mas podem também desconhecê-la.
iríamos querer nem trabalhar nem consumir Ao desconhecê-la, podem igualmente deso-
compulsivamente, e descobriríamos, atônitos, bedecê-la. E sua desobediência já não será
não somente nossa infame escravidão como sequer desobediência, pois a desobediência
trabalhadores e consumidores, nossa absoluta é tão somente em relação a uma obediência
subordinação a exterioridade aberrante do que pode ser exigida, e uma lei desconheci-
sistema simbólico do capitalismo, como tam- da como lei já não é exigente nem efetiva,
bém toda a soberania que poderíamos exercer e por isso não pode também exigir alguma
de maneira coletiva e direta, bem como nosso obediência.
poder sobre o sistema. Somente unindo seus desejos e projeto
O gozo da liberdade, que se distancia político, e somente unindo as forças em uma
do exercício da liberdade, seria o símbolo de ação coletiva, os indivíduos podem chegar a
uma passividade que não pode ser mais que ter força e exercer toda sua liberdade, ao re-
a subordinação de um indivíduo liberado no sistir ao poder absoluto de todo aquele que os

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oprime e reprime para impedir sua liberdade. Complementando ainda, a servidão


O autor ainda questiona porque permitimos voluntária se origina em uma servidão ma-
que se origine aquilo que depois se torna cos- quinal que provém de uma servidão forçada.
tume e assim adquirir poder absoluto sobre Em uma sucessão lógica, primeiro devemos
nós? Por que começamos a ser o que depois submeter-nos, logo seremos submetidos e, ao
temos que ser? Por que nos identificamos final, queremos submeter-nos. Torna-se vi-
com o significante que deverá se impor como sível esse processo na colonização dos povos
nosso mestre e nos oprimir com todo seu latino-americanos e outros, submetendo-se
poder? (p. 210). O poder absoluto do signifi- voluntariamente aos inquestionáveis ideais
cante não se basta jamais a si mesmo, pois sua culturais ocidentais. Portanto, o sujeito, bem
autoridade exterior não se baseia jamais em si como as organizações coletivas, deixa-se en-
mesma, mas em uma autoridade interior ou ganar pelo poder simbólico, transformando
aceitação da autoridade. em um círculo vicioso, na imponente fachada
Quinto capítulo ocorre um questiona- que suscita uma impotência imaginária de
mento e crítica à metodologia de Zizek, na sujeito e a resultante força real da presença
incoerência entre o objeto e o sujeito, no literal do significante.
sentido de que Zizek coloca sempre o objeto Criam-se confusões ideológicas como,
como causa de desejo, não o que existe por por exemplo, entre socialismo e capitalismo,
trás dessa conexão com o objeto. Incursiona ditadura, anarquia e fascismo, sendo que essa
na esfera do sujeito e de seu desejo, não pene- confusão favorece unicamente ao capitalismo.
tra na exterioridade da lei até chegar ao nível O aparente não se confunde necessariamente
mais íntimo do que Lacan chama “extimi- com o real, a força real do significante não
dad”, mas simplesmente se detém diante da é unicamente uma aparência, e que sua apa-
exterioridade e constata o papel decisivo de rente “aparência essencial” não é o que parece,
um objeto causa de desejo que se mantém, não é realmente uma aparência, mas em rea-
aqui, externo ao sujeito e seu desejo. lidade é algo real, algo historicamente real.
No conceito lacaniano, não existe nada O discurso expressado se opõe ao sujei-
tão verdadeiro como a impotência imaginaria to, em que o discurso é o do Outro, como
do sujeito, e é no humilde, neurótico e des- o trabalho é do Outro, a força de trabalho
motivador sentimento dessa impotência, na e seu conteúdo, a força real do sujeito apa-
qual se funda a onipotência tirânica e opres- rece como força real do sistema simbólico,
sora dos reis, dos deuses, e dos demais signi- do outro, como vampiro do capital (p. 241).
ficantes mestres (p. 217). E, por sua vez, se o Extraindo e explorando o trabalho vivo, pela
mestre detém esse poder simbólico, é porque linguagem, pelo capital, como uma máqui-
nos acostumamos a dá-lo, mas, antes de nos na simbólica e “fantasmagórica” do signifi-
acostumarmos a dar esse poder, tivemos que cante do capital, como pode atuar como se
dá-lo porque havia algo de real nele, em sua tivesse vida própria? O sujeito é despojado
manifestação visível, que nos fez fazê-lo. pela mesma força real da que se despoja.

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E, sabendo da verdade, não sabe o que fazer O autor salienta que conforme Adorno,
com o que sente, com o que percebe, não sabe “a indústria cultural pretende hipocritamente
como se rebelar ou se indignar, e acaba retro- acomodar-se entre os consumidores e admi-
cedendo e alienando-se. nistrar o que desejam”. O sistema simbólico
Posteriormente, o autor fala da vergonha da cultura, desse modo, faz-nos crer, como
que é digna porque indigna. A indignação consumidores, que somos os mestres do sis-
é indissociável da vergonha. A vergonha do tema e que ele é nosso escravo, obedece-nos
sujeito, como bem sinalizou Marx, é uma incondicionalmente e não é exigente e não
espécie de cólera, uma cólera contida, uma tem pretensões, e para separarmo-nos dele e
revolução. É uma indignação que supõe confirmar nossa liberdade, basta um ato. É ai
uma liberadora dignificação do sujeito como onde nos enganamos. O sistema simbólico da
sujeito. A injúria também expressa a culpa cultura, atrás da ilusão de que pretende nos
simbólica e produz uma vergonha que pode servir, somos nós que o servimos e fazemos
nos impulsionar contra o verdadeiro culpado, seu trabalho. Nos os trabalhadores, os serven-
contra o outro injuriado que nos envergonha tes, os escravos, e o sistema é nosso mestre.
e que pode nos envergonhar porque estamos Ao ser nosso mestre, o sistema tem logica-
alienados a ele, porque nos identificou como mente pretensões e exigências sobre nós, e o
um de seus significantes (p. 247). obedecemos no lugar de sermos obedecidos.
Por mais covardes que sejam os sujeitos, Se acreditarmos que nos obedece, cumprimos
e por mais impotentes que se considerem, alegremente o papel de consumidores, sendo
devem ter presente que o poder absoluto do que o sistema se manifesta em reciprocidade.
significante mestre não deixa de pertencer a Assim, seremos livres, em uma suposta igual-
eles e se também lhes pertence o significante dade, com a liberdade de comprar.
mestre, este é unicamente porque os sujeitos A fratura, o deslocamento entre o real
se identificaram com ele. O que expressa a e a realidade, faz com que a ideologia e a
voz interior do supereu é evidentemente o realidade sejam o mesmo, um princípio de
que foi articulado pelo Outro, pelo sistema desconhecimento. O desconhecimento do
simbólico da cultura, pela estrutura signifi- real é o que se consegue através da consciên-
cante da linguagem que impõe ao sujeito o cia do imaginário que somente impõe como
significante mestre com o qual ele deverá se realidade particionada na hegemonia de uma
identificar para se sentir livre e poderoso. ideologia composta por ideias que domi-
Comprometemo-nos com o significante, nam uma época e como ideias de uma classe
por mais degradante e subordinado que seja. dominante. Hoje, por exemplo, aquilo que
Porque o significante nos permite ser, na es- chamamos realidade só existe como tal no
trutura significante da sociedade, o sistema mercado ideológico hegemônico global.
necessita então, de nós, de nossa força de tra- Já no último capítulo, o sexto, na aproxi-
balho como policiais ou capatazes do sistema mação das considerações finais, o autor salien-
(p. 255). ta que a aparência não é autônoma a respeito

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do que é realmente, o eu não é autônomo classes médias, de consumidores inconscien-


com respeito a ele, a realidade imaginária não tes, para colocar esses “médios capitalistas”
é autônoma com respeito ao simbólico e ao (p. 278) em seus produtos, em suas expectati-
real do simbólico, a consciência dos sujeitos vas, e devem receber salário, ser proletários...
não é autônoma com respeito ao inconscien- Quando o sistema cresce e se multipli-
te e a e existência do sujeito do inconsciente ca graças às classes sociais não capitalistas,
(p. 273). Marx sabia muito bem que a exis- continuando a cumulação as suas custas,
tência social determina a consciência e que as esse processo forma parte do funcionamento
formas determinadas da consciência real não imperialista de um sistema simbólico da cul-
são autônomas, mas respondem a um funda- tura que somente se desprende e desenvolve
mento real, a uma estrutura econômica. graças ao real, simbolizando as suas custas,
Ocorre um questionamento do autor no retirando-o para implantar-se em seu lugar.
qual salienta como podemos nos entusiasmar É assim como o sistema simbólico arrasa a
com as previsíveis e reconfortantes formas natureza para simbolizá-la ou cultivá-la, es-
imaginárias da realidade que podemos con- vazia-se o real para convertê-lo no simbólico.
sumir no mundo interior do capital, incluin- Cortam-se milhões de árvores para transfor-
do as mais radicais formas, com produtos má-las em papel. Desertifica-se o território
viciantes e sem história que servem somente para transformá-lo em um mapa. Assim
para nos manter atados ao sistema simbólico também o corpo humano e todo o mais que
ao submetermos e com isso ainda acreditar- serve de sustento ao sistema simbólico e a sua
mos que assim estamos escutando nossa voz aparência imaginária da realidade.
interior! O monopólio da aparência faz com que
O consumismo é em si mesmo uma forma esta apareça diante de nós como uma apa-
de neurose que nos faz comprá-lo todo para rência essencial. E também faz com que a
que o todo se coloque entre nós e a morte para realidade imaginária se imponha a nós como
que todo encha o vazio, para que o todo evite a única realidade e que o real se esconda por
a impossibilidade do real, o desejo a criação detrás dessa realidade, que se transforma na
do que, todavia, tem forma. Nesse sistema da realidade mesma de nossas vidas, a única,
necessidade simbólica, em seu vazio da im- mais evidente do que o real e aparentemente
possibilidade real e em seu deserto do real, mais real que o real. Lacan reconhece que é o
em que surge todo ser, todo algo, que é ne- marxismo que nos ensinou a abrir as portas
cessário sim, mas puramente simbólico ainda do inconsciente para ir além da simulação
que aparente ser uma realidade que somente do real. Pergunta-se porque o trabalho do
é imaginária, por sua aparência de realidade inconsciente não poderia ser produzido. A
oculta a impossibilidade do real. Esse proce- resposta seria tão evidente que talvez não
dimento de consumo deve devorar e digerir o seja convincente: o trabalho do inconsciente,
real para transmutá-lo no real do simbólico. como eterno trabalho do sistema simbólico
O capitalismo necessita de consumidores, de da cultura, não pode ser produzido porque

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RESENHA

deve ser produtivo, porque tão somente po-


deria produzir-se e não tem tempo nem ne-
cessidade de produzir-se.
Como conclusão, o autor faz uma recapi-
tulação de suas ideias, “para evitar novas ten-
tações que nos fariam burlar mais uma vez as
regras que nos havíamos fixado”. Propõe pos-
sibilidades de ações contra a opressão; refaz
suas ideias e posicionamentos na perspecti-
va política do marxismo lacaniano e contra
outras posições que julga incompatíveis com
essa perspectiva.

Recebido em 12/11/2014; Aprovado em 23/12/2014.

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