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SUBJETIVIDADES CLANDESTINAS: A ESCRITA DE SI COMO LUGAR DA

EXPERIÊNCIA

Danila Faria Berto


Doutoranda em Ciências Sociais – Unesp/ Marília
GT4: Memória(s) e identidade(s): música, cinema e literatura

RESUMO

Neste artigo pretende-se uma discussão a respeito do que Foucault compreende por processos
de subjetivação para a constituição do sujeito contemporâneo, procurando conceber a escrita
sob um novo viés, qual seja, a possibilidade de ser entendida também como uma técnica de si
que permita aos indivíduos comporem suas subjetividades. Na experimentação na forma de se
conceber os textos literários, levando em consideração a relação dialógica existente entre
sociedade e literatura é que se propõe, sob a perspectiva teórico-metodológica de Michel
Foucault, uma leitura dos escritos de Clarice Lispector de forma a esquadrinhar em suas
palavras a possibilidade da escrita ser mais do que uma técnica de governamento, mas uma
prática de composição de subjetividades, onde o elemento social de sua literatura é o próprio
ato de escrever. É no espaço da autora de criação literária, de reinvenção da escrita que a
hipótese desse artigo se encontra, buscando enxergar a escrita como processo de subjetivação
e de prática de si que autorize que esse indivíduo encontre seu espaço de liberdade/resistência
para além desses poderes disciplinares e biopolíticos de nossa sociedade atual.

PALAVRAS-CHAVE: escrita, subjetividades, literatura, sociedade.


Introdução

Michel Foucault dedicou grande parte de sua vida em estudar as formas como os
indivíduos se transformaram em sujeitos (FOUCAULT, 1984). Através de uma analítica das
relações humanas ele identificou um poder que escapava dos braços da política e do estado e
percebeu que esse poder é muito mais microfísico. Fez da genealogia seu método de estudo e
buscou na História, quase sempre também fugidia da História contada por grandes
personagens, as técnicas e procedimentos utilizados por esse poder. Caracterizou a sociedade
moderna como disciplinar pelos efeitos causados por um poder que disciplina e normaliza os
corpos dos indivíduos. Porém, Foucault positiva esse poder ao perceber, para além dos corpos
objetivados, ou como um novo lado desses, que há um saber que se produz a respeito desses
mesmos indivíduos e assim, poder e saber produz-se juntos.
A partir de seus estudos sobre a história da loucura (1961) e dos sistemas prisionais
(1977), enxergou esse poder que se compunha em redes, forte o bastante para esquadrinharem
a vida dos indivíduos, poderoso o suficiente para conduzir e normalizar comportamentos,
mesmo sendo um poder que, não necessariamente precisava ser visto, mas sentido, a partir de
suas técnicas de exame e vigilância.
Mas Foucault foi além ao perceber que os olhares vigilantes do poder disciplinar
também se expandiam e complementavam-se. Nosso autor identificou um novo tipo de poder
que, mais do que agir sobre os corpos, enxergava os indivíduos a partir de um novo olhar: eles
compunham uma população. E, dessa forma, novas tecnologias e procedimentos passavam a
incidir sobre a vida dos indivíduos, regulamentando-os. Assim, Foucault se preocupou em
apresentar quais as características que compunha o que ele denomina de biopoder 1.

1
Mesmo reconhecendo que o pensamento de Michel Foucault, radicalmente preocupado com as rupturas
históricas e epistêmicas dos discursos, nunca poderia se apresentar de modo linear, ainda assim utilizaremos aqui
de uma divisão que costuma ser realizada em sua obra, para facilitar a compreensão desse texto para os
iniciantes, qual sejam, as fases, ou mais comumente, os três domínios a que sua obra se divide: "ser-saber", "ser-
poder" e "ser-consigo". A primeira, em que ele chamava seus estudos históricos de arqueologia, é situada em
geral nos anos 60: as principais obras desse período incluem História da loucura na Idade Clássica (1961), O
nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber (1969), onde o autor
procura realizar uma arqueologia dos sistemas de procedimentos que objetivam produzir e fazer circular os
enunciados, formulando regras de produção dessas práticas discursivas. A fase genealógica — onde Foucault
realiza seus estudos sobre o poder — situou-se nos anos 70 e abrange suas obras mais conhecidas: Vigiar e punir
(1975) e História da sexualidade, volume 1 (1976). Aqui a proposta é avançar na análise sobre o poder
disciplinar, que se exerce e produz capilarmente, pensando sua relação com os saberes produzidos a partir
desses. Assim, disciplinar pessoas é por sua vez transformá-las em determinados tipos de sujeitos, no sentido de
levá-los a agir em concordância com normas e cânones disciplinares. Com isso ele abre um novo debate, com
Segurança, território e população (1978), onde nos provoca com outra modalidade de poder, o biopoder, que tem
na população seu maior interesse. Somos, assim, colocados na condição de seres viventes, onde a biopolítica é
um dispositivo de governo.
Hoje, nada mais atual do que uma sociedade esquadrinhada e biopolítica, um lugar
onde tanto os corpos quanto a vida das pessoas são perpassadas por diversas tecnologias
cotidianas e rotineiras com o intuito de normalizar e, ainda mais, produzir saberes.
Porém, Foucault também se dedicou a encontrar os caminhos e possibilidades de uma
resistência a esses poderes, espaços de liberdade de modo que os indivíduos também se
constituíssem em sujeitos. Foi nos gregos que buscou práticas e procedimentos que
produzissem subjetividades, a partir de uma genealogia dos modos de subjetivação. 2
O autor analisa os modos de subjetivação como processo de construção de si mesmo
ou um exercício de si sobre si. É numa estética da existência que as práticas são refletidas e
voluntárias, onde os indivíduos se fixam regras de conduta e transformam-se, fazendo de sua
vida uma obra portadora de valores estéticos (FOUCAULT, 1984; FOUCAULT, 1985).
(...) um conjunto de práticas que, certamente, tiveram uma importância considerável
em nossas sociedades: é o que se poderia chamar ‘artes de existência’. Deve-se
entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não
somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de
certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo. (FOUCAULT, 1984,
p. 15)

Em nossa sociedade é preciso uma separação de nós mesmos dessas forças que
subordinam a existência humana à sua vida biológica. Isso só é possível quando nos
permitimos “uma estética existencial que resiste a uma ciência da vida que pretende limitar o
espaço para o pensamento e o agir”. (PONTIM, 2007, p. 68)
Essa estética é compreendida como a produção de nossa subjetividade que vai além
das práticas coercitivas e biopolíticas e dá visibilidade àquelas práticas de formação do
sujeito, um modo de relação que o sujeito mantém consigo mesmo e como esse se constitui
em sujeito de suas próprias ações. (FOUCAULT, 1984; FOUCAULT, 1985; FOUCAULT,
1997; FOUCAULT, 1987).
Assim, é a possibilidade de percebermos que o sujeito, apesar de constituído e
modificado pelos eixos do poder e do saber, tem condições de questionar seus limites, que são
incertos, percebendo o que há de arbitrário naquilo que nos tem sido ensinado como

2
O terceiro domínio que interessa a Foucault diz respeito ao ser-consigo, ou uma fase ética que se deu nos anos
80, onde produziu os dois últimos volumes de História da sexualidade: O uso dos prazeres e O cuidado de si
(1984). Tal domínio trata da relação de cada um consigo próprio e de como se constitui e emerge nossas
subjetividades. Ou seja, trata da ética entendendo-a como a "relação de si para consigo", onde é necessário uma
análise dos modos de subjetivação que nos transformam em sujeitos. Àqueles que tiverem interesse em realizar
uma primeira leitura foucaultiana a partir desses domínios, sugere-se a leitura do livro de Alfredo Veiga-Neto
(Foucault e a educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2003), que realiza esses apontamentos e faz uma relação
desses domínios relacionando-os aos estudos educacionais.
necessário, universal e obrigatório. E é a partir da percepção e enfraquecimento dessas tênues
fronteiras, e do que se é possível transpor e transformar, que a liberdade tem condições de
existir.
Esse sujeito é constituído pelas experiências que cada um desenvolve consigo mesmo,
como técnicas de constituição de si, um trabalho sobre si mesmo como lugar de uma
experiência, um invento, um ensaio, tentados pelos próprios sujeitos que, tomando a si
mesmos como prova, inventarão seus próprios caminhos.
Essa constituição do sujeito perpassa todas as suas vivências: os sonhos, a
alimentação, a reflexão, o cuidados com o corpo (sono, exercícios físicos, comida, bebida,
excreção, relações sexuais, etc.), a interpretação dos sonhos, a meditação e inclusive, a escrita.
Parte-se do princípio de que a escrita é compreendida como um procedimento também
capturado pelas malhas do poder, numa escrita que prescreve, determina e disciplina, a escrita
como prática de objetivação dos indivíduos ao se transfigurar em relatórios e receitas,
compreendido como um tipo de saber moderno. Segundo Machado (2005) a literatura não se
mantém fora das engrenagens institucionais, de seus discursos e poderes.
Sendo assim, levantam-se alguns questionamentos necessários: pode-se afirmar que a
escrita, além de disciplinada e normalizada, pode vir a ser um investimento, mais do que
somente biopolítico? Pode-se pensá-la como fruto de relações vividas pelo indivíduo que
possibilitam a formação de uma vivência significativa e uma compreensão da realidade que o
cerca? E mais: como pensar a escrita como uma prática de si que se incide sobre o corpo e
sobre ele confessa, fala, narra?
Ao considerar esses pressupostos, adotamos a escrita de Clarice Lispector com a proposta
de enxergar sua escrita como uma prática de liberdade. A autora nos possibilita a leitura de uma
escrita livre, decomposta, que recria suas próprias condições de existência. Os conceitos de
subjetivação e prática de si, particularmente, são de importância muito grande para este trabalho e
são os eixos principais de análise, uma vez que se tornam o principal pretexto para criar-se um
espaço de aproximação e de vizinhança entre a escritora e o filósofo francês.

A literatura no contexto da sociologia

O relacionamento entre sociologia e literatura nem sempre se deu de forma tranqüila.


Nesse diálogo perdurou-se por muito tempo a ideia, por vezes reducionista, de que a literatura
seria mero reflexo do que se passa no âmbito social que a circunda, como ilustração de uma
realidade. Essa perspectiva analítica pensava a literatura e seus autores a partir de seu
contexto histórico-social (OSBORNE, 1986). Sílvio Romero (1888) já indicava que o estudo
da literatura passaria por seus fatores externos e a personalidade do autor, vinculando a
história literária a uma teoria da sociedade e da cultura.
Não haveria problemas nisso, uma vez que é impossível desvincular as vivências do
autor e o campo social que demarca seus escritos e atravessa suas obras, se não fosse a
questão apontada por Candido (1981) em perceber que esse método reduzia a literatura a
simples documento de um tempo vivido. Essa característica, no domínio da teoria literária,
acabou por tornar-se padrão estético formal, ou seja, as obras eram avaliadas a partir do grau
de fidelidade com a realidade que as mesmas apresentavam.
Se no campo da teoria da literatura isso acontecia, a partir da segunda metade do
século XIX, as contribuições para a formalização de uma sociologia da literatura são
consideráveis. A sociologia interessa-se pela literatura quando enxerga nessa uma
possibilidade de compreensão do próprio movimento da sociedade (CANDIDO, 1967). Para
fazer da literatura objeto de estudo da sociologia foi preciso que esta existisse como veículo
de intercâmbio social a partir de um espaço de interação entre valores sócio-históricos e os
sujeitos aí envolvidos, espaço esse que não se assemelha a nenhum outro. Isso não significa
afirmar que autores não possuam liberdade de ação criadora, mas que esse talento transita
entre o campo de criação literária e o campo social, centrais para se compreender as
manifestações dos sujeitos.
A escrita literária passa, então, a ser vista como uma apreensão de diversos aspectos
sociais da realidade, seja através da relação autor-público, seja através da veiculação da obra
no meio social, seja por meio da identificação com os personagens ou mesmo da forma
narrativa com que isso é feito. Essa leitura desses estudos sociológicos no campo da literatura
foi a mais utilizada em análises da relação entre a obra e seu meio social, desde a segunda
metade do século XIX (CANDIDO, 1967). A grande crítica a esse método, denominado de
sociologismo crítico, foi reduzir as possibilidades de análises de obras onde as referências ao
fantástico eram constantes ou, dito de outro modo, não seria suficiente a uma crítica literária
relacionar a obra com sua realidade exterior, sem correr o risco de simplificação causal.
Frente a essas questões foi possível pensar em uma nova forma de a sociologia
compreender a literatura a partir de uma análise que levava em consideração as visões de
mundo transformadas em textos literários, investigando aí tanto as condições de produção
quanto a situação sócio-histórica de seu autor (FACINA, 2004). Dessa forma, as visões de
mundo estão vinculadas em uma criação literária, que não podem ser compreendidas somente
como fruto de um sujeito isolado (o autor) e nem mesmo como mero reflexo de seu contexto
social. É nessa relação recíproca entre o autor e as experiências do grupo social que se
constitui o conteúdo da obra literária.
O interesse da sociologia pela literatura se dá pela relação entre a visão de mundo do
grupo social a qual o autor literário pertence e a estrutura histórica do texto em questão,
veiculando-os a unidades coletivas (GOLDMANN, 1989). Sob essa perspectiva os estudos
sociológicos sobre a produção literária devem estabelecer homologias entre a obra de arte e as
dimensões da realidade social em que está inserida, os atores envolvidos na atividade
intelectual e as visões de mundo presentes no período histórico em que a narrativa literária foi
escrita.
Há um novo olhar sociológico que tem por objetivo uma análise mais complexa do
objeto literário, que se baseia não só na observação das práticas sociais do período, mas
também no intuito do autor e dos diferentes agentes culturais envolvidos na produção do texto
literário, de modo a perceber as interações e influências entre escrita, autor e público, ou seja,
entre obra de arte e meio social há relações dialéticas e recíprocas (CANDIDO, 1967;
NORITOMI, 1995).
Nessa relação dialógica o conteúdo estético e o social são elementos que se
complementam e nessa mediação o autor realiza, no campo literário, sua concepção de
mundo, como no caso de autores que se utilizaram do fluxo de consciência e dos
experimentalismos lingüísticos, vide aqui nosso interesse por Clarice Lispector, como forma
de novas vivências entre arte literária e a temporalidade da sociedade moderna.
Para Foucault quando a literatura foge às regras da linguagem comum e à literatura
cotidiana, ela passa a ser considerada transgressora (FOUCAULT, 1999; MACHADO, 2000),
subvertendo a escrita em si e essa função transgressiva da literatura tem se perdido na nossa
sociedade.

É como se fazer literatura fosse enlouquecer a escrita, subverter, desmoronar,


romper, transgredir, contestar os limites impostos pela própria linguagem. A
literatura não constitui uma tradição, não leva em conta uma tradição literária
anterior ao ato da escrita, ela tem seu início no próprio escrever, entendido aqui
como uma recusa ao já-dito. Não há nada anterior ao seu ato, por isso a chave para a
decifração de seus enunciados está neles próprios. (ALMEIDA, 2008).

A linguagem transgressiva da literatura recusa a possibilidade de tradição literária e se


recusa em ser a mesma. Assim, é no próprio ato de escrita que se encontra sua liberdade, uma
escrita ativa. A palavra deixa de designar as coisas do mundo, para ter outra função, como
fundação de outro mundo.
O lugar de Clarice Lispector na literatura

Realizamos aqui um recorte histórico necessário, ao nos interessarmos por um período


da produção literária brasileira, qual seja, o modernismo, mais especificamente em sua
terceira fase (1945-1960), movimento esse que possibilitou uma profunda transformação na
forma de se conceber e promover literatura no Brasil. Seus idealizadores caracterizavam-se
por defenderem a liberdade de criação e experimentação, bem como combatiam as formas
convencionais da escrita acadêmica, seus lirismos e suas distinções de gênero, recorrendo à
poesia, ao primitivismo brasileiro e ao regionalismo, de modo a resultar numa produção
literária mais viva e criadora.
Clarice Lispector faz parte dessa terceira fase modernista e surge, com seu livro de
estréia, Perto do coração selvagem (1943), com uma escrita que dá expressividade aos fatos
corriqueiros e cotidianos. A força das palavras torna os detalhes peça central de seus escritos,
com uma sondagem intimista e introspectiva (CANDIDO, 1999).
Muitos já discorreram a respeito da autora frente ao fato de como a literatura ganhou
novas dimensões a partir de seus escritos. O que se pretende é demonstrar que, para além de
seu papel de escritora, mãe e esposa de diplomata, papel esse de subordinação da mulher na
sociedade da época, a autora encontra um jeito próprio de fazer literatura a partir de uma voz
muito particular, voz essa intuitiva e pessoal, onde seu elemento social é o próprio ato da
escrita.
Ainda em textos onde deixa mais explícito seu posicionamento social tão cobrado pela
crítica, seja em seus escritos jornalísticos (1967-1973) compilados em livros como A
descoberta do mundo (1984), seja em seu último livro publicado em vida A hora da estrela
(1977) onde tem como personagem central uma nordestina/sertaneja, órfã e retirante, a autora
não abdica de sua postura estético-literária e é a partir da escrita poética e cotidiana que
insere-se no contexto social de seu tempo e usa a linguagem literária como prática social,
apresentando seu posicionamento frente a uma sociedade controlada e padronizada.
Se a pesquisa em sociologia da literatura perpassa o movimento de interação entre o
conteúdo estético e o social, é na própria escrita, mais do que em seus personagens, conflitos e
enredos, que encontramos em Clarice Lispector seu espaço de criação e reinvenção literária
como parte de um processo de subjetivação que perpassa a escrita. A partir da constituição de
si e de seus personagens, inventa novos modos de existência e contrapõe-se à produção de
uma subjetividade pautada na submissão aos códigos normativos, escapando das formas
biopolíticas de produção do indivíduo.
A escrita clariciana como lugar da experiência

Como interpretar a escrita e suas modificações, uma vez que ela não é objeto estático e
é passível de modificar-se a todo o tempo? Uma escrita que é histórica, ou seja, mutável e
diversa de acordo com o tempo e espaço, e compreendida por sua construção histórica e
social. Como conceber o processo de escrita como componente articulador de análise na
relação entre sociedade e literatura, ao pensá-la tanto como elemento estético quanto social?
Foi possível perceber algumas técnicas de si encontradas em nossa sociedade
contemporânea que possibilitam que os indivíduos se constituam enquanto sujeitos, tendo
particular interesse ao processo de escrita, de modo a nos inventarmos enquanto sujeitos, da
mesma forma que Clarice Lispector em seus textos, cria sua própria linguagem e reinventa
seu processo de escrita, pois, “a autonomia do sujeito na modernidade é a capacidade de
inventar-se a todo o momento.” (PONTIM, 2007, p. 67).
A partir do referencial teórico foucaultiano utilizado nesse artigo, concebe-se
inicialmente a escrita em sua possibilidade de ser vista como uma técnica disciplinar e
biopolítica que vigia, domestica e normaliza, de modo que é por meio de sucessivos
investimentos de poder que o corpo populacional é trabalhado desde suas mais banais ações,
controlado intensamente para ser esquadrinhado e governamentalizado.
Mas é possível pensar numa escrita que escape às disciplinas biopolíticas? Ainda que a
escrita possa ser vista como algo que se deixa submeter, que se deixa atravessar por relações
de força, é preciso também compreender que esta é uma escrita que resiste e que comunica,
como um elemento ativo. Assim, além de ser uma escrita dócil, é também hábil, rentável
porque constrói e realiza. E de que maneira a incidência do poder sobre a escrita vai produzir
modos de subjetivação? É a partir de uma técnica sobre o sujeito, de uma prática de si que o
envolve de forma a se constituir face a si próprio, ou seja, numa relação de si para consigo.
(FOUCAULT, 1984; FOUCAULT, 1985; FOUCAULT, 1987)
O foco é a possibilidade de reinvenção da escrita por Clarice Lispector que rompe com
as tradições da escrita, tanto referentes ao estilo quanto mesmo a estrutura coerente dos textos,
seja dando treze títulos a eles, como faz em “A hora da estrela” (1977), seja iniciando seu
livro com uma vírgula, num suspense do que já foi dito, como em “Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres” (1969), ou mesmo principiando um conto com um pronome relativo que,
necessariamente, precisa de um antecessor, como faz em “A via crucis do corpo” (1974). Ela
não se preocupa em adotar o padrão da gramática normativa, ou seja, não há uma narrativa
presa às categorias literárias tradicionais, pois tem com seus textos outra relação, de existência
que se faz na e pela escrita como construção de novas experiências.

Considerações finais

Tivemos como ponto de partida desse artigo a preocupação em conceber a sociedade atual
sob um olhar foucaultiano, definindo-a como disciplinar e biopolítica. Também pensamos as
práticas de subjetivação possíveis ao indivíduo, onde a escrita ganha destaque ao ser
compreendida como uma técnica de si por excelência, ao fazer esse corpo-indivíduo falar.
Nesse contexto, é em Clarice Lispector e sua literatura que se encontra a escrita como uma
técnica de si que possibilita novas formas de expressão e constituição dos sujeitos, ao mesmo
tempo em que se possibilita também uma forma de encontrar o lugar da autora na literatura
nacional. É na escrita clariciana que se encontra a possibilidade de compreender a relação entre
literatura e o meio social, a partir de suas práticas literárias.
Tivemos a inquietação de realizar uma leitura sociológica da literatura ao dar
instrumentos para pensarmos a escrita como parte do processo de constituição dos sujeitos e
prática de uma relação renovada de si para consigo e também com o outro. É por meio da
interação entre as ciências sociais e o saber literário, entre os laços e pontos de convergências
entre essas áreas de conhecimento que buscamos compreender a escrita como produção de
conhecimento sobre o próprio sujeito que se constitui e a sociedade que o cerca.
O objetivo foi uma discussão da possibilidade da escrita ser compreendida como uma
técnica de produção de subjetividades, de modo a permitir conceber a constituição do homem
contemporâneo para além das relações de poder e saber, bem como o processo de escrita ser
apreendido também como elemento de interação e influência entre obra de arte e meio social na
sociedade contemporânea.
É na hipótese de que os textos de Clarice Lispector possam ser lidos como escrita de si
que esperamos encontrar seu lugar na literatura nacional e compreender essa relação dialogal
entre literatura e sociedade. Buscamos também compreender seus escritos como luta das artes
de si, numa busca contínua por elaborar sua vida como uma obra de arte, busca essa
encontrada na produção escrita, perdendo-se de si, recriando conceitos, pensando o próprio
pensamento, relativizando a si mesmo. Ao transvestir-se pela e na escrita, inventa resistências,
reinventa liberdades ao produzir sempre novas subjetividades, capaz de escapar das
tecnologias do dispositivo biopolítico de controle.
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