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EXPERIÊNCIA
RESUMO
Neste artigo pretende-se uma discussão a respeito do que Foucault compreende por processos
de subjetivação para a constituição do sujeito contemporâneo, procurando conceber a escrita
sob um novo viés, qual seja, a possibilidade de ser entendida também como uma técnica de si
que permita aos indivíduos comporem suas subjetividades. Na experimentação na forma de se
conceber os textos literários, levando em consideração a relação dialógica existente entre
sociedade e literatura é que se propõe, sob a perspectiva teórico-metodológica de Michel
Foucault, uma leitura dos escritos de Clarice Lispector de forma a esquadrinhar em suas
palavras a possibilidade da escrita ser mais do que uma técnica de governamento, mas uma
prática de composição de subjetividades, onde o elemento social de sua literatura é o próprio
ato de escrever. É no espaço da autora de criação literária, de reinvenção da escrita que a
hipótese desse artigo se encontra, buscando enxergar a escrita como processo de subjetivação
e de prática de si que autorize que esse indivíduo encontre seu espaço de liberdade/resistência
para além desses poderes disciplinares e biopolíticos de nossa sociedade atual.
Michel Foucault dedicou grande parte de sua vida em estudar as formas como os
indivíduos se transformaram em sujeitos (FOUCAULT, 1984). Através de uma analítica das
relações humanas ele identificou um poder que escapava dos braços da política e do estado e
percebeu que esse poder é muito mais microfísico. Fez da genealogia seu método de estudo e
buscou na História, quase sempre também fugidia da História contada por grandes
personagens, as técnicas e procedimentos utilizados por esse poder. Caracterizou a sociedade
moderna como disciplinar pelos efeitos causados por um poder que disciplina e normaliza os
corpos dos indivíduos. Porém, Foucault positiva esse poder ao perceber, para além dos corpos
objetivados, ou como um novo lado desses, que há um saber que se produz a respeito desses
mesmos indivíduos e assim, poder e saber produz-se juntos.
A partir de seus estudos sobre a história da loucura (1961) e dos sistemas prisionais
(1977), enxergou esse poder que se compunha em redes, forte o bastante para esquadrinharem
a vida dos indivíduos, poderoso o suficiente para conduzir e normalizar comportamentos,
mesmo sendo um poder que, não necessariamente precisava ser visto, mas sentido, a partir de
suas técnicas de exame e vigilância.
Mas Foucault foi além ao perceber que os olhares vigilantes do poder disciplinar
também se expandiam e complementavam-se. Nosso autor identificou um novo tipo de poder
que, mais do que agir sobre os corpos, enxergava os indivíduos a partir de um novo olhar: eles
compunham uma população. E, dessa forma, novas tecnologias e procedimentos passavam a
incidir sobre a vida dos indivíduos, regulamentando-os. Assim, Foucault se preocupou em
apresentar quais as características que compunha o que ele denomina de biopoder 1.
1
Mesmo reconhecendo que o pensamento de Michel Foucault, radicalmente preocupado com as rupturas
históricas e epistêmicas dos discursos, nunca poderia se apresentar de modo linear, ainda assim utilizaremos aqui
de uma divisão que costuma ser realizada em sua obra, para facilitar a compreensão desse texto para os
iniciantes, qual sejam, as fases, ou mais comumente, os três domínios a que sua obra se divide: "ser-saber", "ser-
poder" e "ser-consigo". A primeira, em que ele chamava seus estudos históricos de arqueologia, é situada em
geral nos anos 60: as principais obras desse período incluem História da loucura na Idade Clássica (1961), O
nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber (1969), onde o autor
procura realizar uma arqueologia dos sistemas de procedimentos que objetivam produzir e fazer circular os
enunciados, formulando regras de produção dessas práticas discursivas. A fase genealógica — onde Foucault
realiza seus estudos sobre o poder — situou-se nos anos 70 e abrange suas obras mais conhecidas: Vigiar e punir
(1975) e História da sexualidade, volume 1 (1976). Aqui a proposta é avançar na análise sobre o poder
disciplinar, que se exerce e produz capilarmente, pensando sua relação com os saberes produzidos a partir
desses. Assim, disciplinar pessoas é por sua vez transformá-las em determinados tipos de sujeitos, no sentido de
levá-los a agir em concordância com normas e cânones disciplinares. Com isso ele abre um novo debate, com
Segurança, território e população (1978), onde nos provoca com outra modalidade de poder, o biopoder, que tem
na população seu maior interesse. Somos, assim, colocados na condição de seres viventes, onde a biopolítica é
um dispositivo de governo.
Hoje, nada mais atual do que uma sociedade esquadrinhada e biopolítica, um lugar
onde tanto os corpos quanto a vida das pessoas são perpassadas por diversas tecnologias
cotidianas e rotineiras com o intuito de normalizar e, ainda mais, produzir saberes.
Porém, Foucault também se dedicou a encontrar os caminhos e possibilidades de uma
resistência a esses poderes, espaços de liberdade de modo que os indivíduos também se
constituíssem em sujeitos. Foi nos gregos que buscou práticas e procedimentos que
produzissem subjetividades, a partir de uma genealogia dos modos de subjetivação. 2
O autor analisa os modos de subjetivação como processo de construção de si mesmo
ou um exercício de si sobre si. É numa estética da existência que as práticas são refletidas e
voluntárias, onde os indivíduos se fixam regras de conduta e transformam-se, fazendo de sua
vida uma obra portadora de valores estéticos (FOUCAULT, 1984; FOUCAULT, 1985).
(...) um conjunto de práticas que, certamente, tiveram uma importância considerável
em nossas sociedades: é o que se poderia chamar ‘artes de existência’. Deve-se
entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não
somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de
certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo. (FOUCAULT, 1984,
p. 15)
Em nossa sociedade é preciso uma separação de nós mesmos dessas forças que
subordinam a existência humana à sua vida biológica. Isso só é possível quando nos
permitimos “uma estética existencial que resiste a uma ciência da vida que pretende limitar o
espaço para o pensamento e o agir”. (PONTIM, 2007, p. 68)
Essa estética é compreendida como a produção de nossa subjetividade que vai além
das práticas coercitivas e biopolíticas e dá visibilidade àquelas práticas de formação do
sujeito, um modo de relação que o sujeito mantém consigo mesmo e como esse se constitui
em sujeito de suas próprias ações. (FOUCAULT, 1984; FOUCAULT, 1985; FOUCAULT,
1997; FOUCAULT, 1987).
Assim, é a possibilidade de percebermos que o sujeito, apesar de constituído e
modificado pelos eixos do poder e do saber, tem condições de questionar seus limites, que são
incertos, percebendo o que há de arbitrário naquilo que nos tem sido ensinado como
2
O terceiro domínio que interessa a Foucault diz respeito ao ser-consigo, ou uma fase ética que se deu nos anos
80, onde produziu os dois últimos volumes de História da sexualidade: O uso dos prazeres e O cuidado de si
(1984). Tal domínio trata da relação de cada um consigo próprio e de como se constitui e emerge nossas
subjetividades. Ou seja, trata da ética entendendo-a como a "relação de si para consigo", onde é necessário uma
análise dos modos de subjetivação que nos transformam em sujeitos. Àqueles que tiverem interesse em realizar
uma primeira leitura foucaultiana a partir desses domínios, sugere-se a leitura do livro de Alfredo Veiga-Neto
(Foucault e a educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2003), que realiza esses apontamentos e faz uma relação
desses domínios relacionando-os aos estudos educacionais.
necessário, universal e obrigatório. E é a partir da percepção e enfraquecimento dessas tênues
fronteiras, e do que se é possível transpor e transformar, que a liberdade tem condições de
existir.
Esse sujeito é constituído pelas experiências que cada um desenvolve consigo mesmo,
como técnicas de constituição de si, um trabalho sobre si mesmo como lugar de uma
experiência, um invento, um ensaio, tentados pelos próprios sujeitos que, tomando a si
mesmos como prova, inventarão seus próprios caminhos.
Essa constituição do sujeito perpassa todas as suas vivências: os sonhos, a
alimentação, a reflexão, o cuidados com o corpo (sono, exercícios físicos, comida, bebida,
excreção, relações sexuais, etc.), a interpretação dos sonhos, a meditação e inclusive, a escrita.
Parte-se do princípio de que a escrita é compreendida como um procedimento também
capturado pelas malhas do poder, numa escrita que prescreve, determina e disciplina, a escrita
como prática de objetivação dos indivíduos ao se transfigurar em relatórios e receitas,
compreendido como um tipo de saber moderno. Segundo Machado (2005) a literatura não se
mantém fora das engrenagens institucionais, de seus discursos e poderes.
Sendo assim, levantam-se alguns questionamentos necessários: pode-se afirmar que a
escrita, além de disciplinada e normalizada, pode vir a ser um investimento, mais do que
somente biopolítico? Pode-se pensá-la como fruto de relações vividas pelo indivíduo que
possibilitam a formação de uma vivência significativa e uma compreensão da realidade que o
cerca? E mais: como pensar a escrita como uma prática de si que se incide sobre o corpo e
sobre ele confessa, fala, narra?
Ao considerar esses pressupostos, adotamos a escrita de Clarice Lispector com a proposta
de enxergar sua escrita como uma prática de liberdade. A autora nos possibilita a leitura de uma
escrita livre, decomposta, que recria suas próprias condições de existência. Os conceitos de
subjetivação e prática de si, particularmente, são de importância muito grande para este trabalho e
são os eixos principais de análise, uma vez que se tornam o principal pretexto para criar-se um
espaço de aproximação e de vizinhança entre a escritora e o filósofo francês.
Como interpretar a escrita e suas modificações, uma vez que ela não é objeto estático e
é passível de modificar-se a todo o tempo? Uma escrita que é histórica, ou seja, mutável e
diversa de acordo com o tempo e espaço, e compreendida por sua construção histórica e
social. Como conceber o processo de escrita como componente articulador de análise na
relação entre sociedade e literatura, ao pensá-la tanto como elemento estético quanto social?
Foi possível perceber algumas técnicas de si encontradas em nossa sociedade
contemporânea que possibilitam que os indivíduos se constituam enquanto sujeitos, tendo
particular interesse ao processo de escrita, de modo a nos inventarmos enquanto sujeitos, da
mesma forma que Clarice Lispector em seus textos, cria sua própria linguagem e reinventa
seu processo de escrita, pois, “a autonomia do sujeito na modernidade é a capacidade de
inventar-se a todo o momento.” (PONTIM, 2007, p. 67).
A partir do referencial teórico foucaultiano utilizado nesse artigo, concebe-se
inicialmente a escrita em sua possibilidade de ser vista como uma técnica disciplinar e
biopolítica que vigia, domestica e normaliza, de modo que é por meio de sucessivos
investimentos de poder que o corpo populacional é trabalhado desde suas mais banais ações,
controlado intensamente para ser esquadrinhado e governamentalizado.
Mas é possível pensar numa escrita que escape às disciplinas biopolíticas? Ainda que a
escrita possa ser vista como algo que se deixa submeter, que se deixa atravessar por relações
de força, é preciso também compreender que esta é uma escrita que resiste e que comunica,
como um elemento ativo. Assim, além de ser uma escrita dócil, é também hábil, rentável
porque constrói e realiza. E de que maneira a incidência do poder sobre a escrita vai produzir
modos de subjetivação? É a partir de uma técnica sobre o sujeito, de uma prática de si que o
envolve de forma a se constituir face a si próprio, ou seja, numa relação de si para consigo.
(FOUCAULT, 1984; FOUCAULT, 1985; FOUCAULT, 1987)
O foco é a possibilidade de reinvenção da escrita por Clarice Lispector que rompe com
as tradições da escrita, tanto referentes ao estilo quanto mesmo a estrutura coerente dos textos,
seja dando treze títulos a eles, como faz em “A hora da estrela” (1977), seja iniciando seu
livro com uma vírgula, num suspense do que já foi dito, como em “Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres” (1969), ou mesmo principiando um conto com um pronome relativo que,
necessariamente, precisa de um antecessor, como faz em “A via crucis do corpo” (1974). Ela
não se preocupa em adotar o padrão da gramática normativa, ou seja, não há uma narrativa
presa às categorias literárias tradicionais, pois tem com seus textos outra relação, de existência
que se faz na e pela escrita como construção de novas experiências.
Considerações finais
Tivemos como ponto de partida desse artigo a preocupação em conceber a sociedade atual
sob um olhar foucaultiano, definindo-a como disciplinar e biopolítica. Também pensamos as
práticas de subjetivação possíveis ao indivíduo, onde a escrita ganha destaque ao ser
compreendida como uma técnica de si por excelência, ao fazer esse corpo-indivíduo falar.
Nesse contexto, é em Clarice Lispector e sua literatura que se encontra a escrita como uma
técnica de si que possibilita novas formas de expressão e constituição dos sujeitos, ao mesmo
tempo em que se possibilita também uma forma de encontrar o lugar da autora na literatura
nacional. É na escrita clariciana que se encontra a possibilidade de compreender a relação entre
literatura e o meio social, a partir de suas práticas literárias.
Tivemos a inquietação de realizar uma leitura sociológica da literatura ao dar
instrumentos para pensarmos a escrita como parte do processo de constituição dos sujeitos e
prática de uma relação renovada de si para consigo e também com o outro. É por meio da
interação entre as ciências sociais e o saber literário, entre os laços e pontos de convergências
entre essas áreas de conhecimento que buscamos compreender a escrita como produção de
conhecimento sobre o próprio sujeito que se constitui e a sociedade que o cerca.
O objetivo foi uma discussão da possibilidade da escrita ser compreendida como uma
técnica de produção de subjetividades, de modo a permitir conceber a constituição do homem
contemporâneo para além das relações de poder e saber, bem como o processo de escrita ser
apreendido também como elemento de interação e influência entre obra de arte e meio social na
sociedade contemporânea.
É na hipótese de que os textos de Clarice Lispector possam ser lidos como escrita de si
que esperamos encontrar seu lugar na literatura nacional e compreender essa relação dialogal
entre literatura e sociedade. Buscamos também compreender seus escritos como luta das artes
de si, numa busca contínua por elaborar sua vida como uma obra de arte, busca essa
encontrada na produção escrita, perdendo-se de si, recriando conceitos, pensando o próprio
pensamento, relativizando a si mesmo. Ao transvestir-se pela e na escrita, inventa resistências,
reinventa liberdades ao produzir sempre novas subjetividades, capaz de escapar das
tecnologias do dispositivo biopolítico de controle.
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