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Sobre riso e opressão

Uma pesquisa em busca da convergência entre duas linguagens

Isaque Conceição

Guaíba continua sendo o berço de ótimos projetos culturais.

Sabendo disso, o Drone deu uma esticadinha nas hélices e foi conhecer mais uma dessas
super iniciativas dos nossos agentes locais. Trata-se do projeto Teatro do Oprimido e
Palhaçaria – Conversas e Convergências.

Este projeto, aprovado no Edital de Criação e Formação - Diversidade das Culturas,


promovido pela Fundação Marcopolo, em parceria com o Governo do Estado do Rio
Grande do Sul e financiado com recursos da Lei Aldir Blanc, é um trabalho coletivo que,
para além da proponente Jaqueline Iepsen (Palhaça Assuntina), dos responsáveis pelo
Ponto de Cultura Espaço Livre Biguá e especialistas em Teatro do
Oprimido, Araxane Jardim e Deia Alencar, e de membros do Grupo de Pesquisa Teatral
Realejo EnCena, envolve uma série de trabalhadores e pensadores tanto das práticas da
Palhaçaria quanto do Teatro do Oprimido.

Jaqueline Iepsen, em um dos textos de apresentação nas redes sociais do projeto, define
a Palhaçaria de forma bastante interessante:

É um tema histórico e atual, universal e individual, complexo e simplesmente


encantador!!

Temos na arte da palhaçaria uma variedade de referências ao longo da história. Embora


possa ser considerada uma modalidade teatral, a gente sabe que o arquétipo da (o) palhaça
(o) é mais antigo que o teatro e que o circo.

Arquétipo é um conceito que representa o primeiro modelo de algo, protótipo, modelos


ideais que temos registrado na nossa memória. Um tipo, um paradigma.

Os povos antigos já sabiam que rir é importante e desde que as pessoas começaram a se
agrupar, havia entre eles, um “fazedor de riso”, que não tinha necessariamente o nome de
palhaça (o), mas tinha a função de fazer rir, brincar, surpreender, emocionar, subverter as
regras, quebrar os bloqueios, suspirar, respirar...

São tantos os tipos de palhaças (os): as habilidades, os figurinos, os que falam, os que
nada falam, os da rua, da praça, os que vão aos hospitais, às escolas, tem do circo, no
teatro, no cinema, com ou sem o nariz vermelho.

Para o artista que escolhe a palhaçaria como OFÍCIO, é uma arte que chama para
autoavaliação antes mesmo de chamar para o treinamento de técnicas e habilidades. SER
palhaça (o) trata-se da ordem íntima, pessoal, pois cada artista/pessoa tem a sua, o seu. A
maquiagem (ou a ausência dela), o figurino e seus detalhes, a história a ser contada, a
forma de andar e de reagir, TUDO vem de dentro para fora, baseado na sua forma de
enxergar a vida. Se a pessoa vai mudando, se transformando, a palhaça (o) também vai...
Para quem escolhe ser o ESPECTADOR, ri...ou chora, ou as duas coisas. E rindo ou
chorando, se emociona, se transforma, porque se reconhece naquela criatura que é a (o)
palhaça (o), que ama o mundo, que tem uma lógica própria, que cai, levanta-se, cai de
novo, mas não desiste... erra, acerta e depois erra de novo... como é a vida. Só que uma
vida mais mágica, mais florida, mais viva, mais corajosa.

A palhaçaria presenteia o público quando o faz sair do peso da vida real, sem anestesiar,
mas atingindo e mexendo com o coração, a imaginação e o pensamento. E é claro,
provocando a gargalhada!

Uma palhaça (o) antes de tudo quer construir relações e identificação com o público, e
para isso se mostra como é, de verdade, na sua total humanidade. E só depois disso, ou
junto com isso, treina e demonstra suas habilidades e técnicas, sejam elas quais forem.
Pode ser, por exemplo, a habilidade de colocar uma linha na agulha ou se equilibrar em
cima de dezenove cadeiras, não importa, cada uma tem as suas, tudo isso para presentear
o Respeitável Público.

Uma palhaça (o) pode dizer: Minha matéria prima sou eu! E o prazer de ser sua própria
matéria prima é um ‘mergulho’ sem volta.

Mas afinal o que é Teatro do Oprimido?

Em um dos textos introdutórios do projeto, o coletivo faz questão de explicar de forma


detalhada do que se trata essa vertente teatral:

Conhecido como TO, o Teatro do Oprimido é um método teatral criado pelo dramaturgo
brasileiro Augusto Boal (1931-2009), no início da década de 70. Iniciou no Brasil, e foi
se alastrando para países da América Latina até ser conhecido em quase todo o mundo.
Nasceu como resposta a uma situação política da época no Brasil, em que pelas
circunstâncias não era permitido fazer teatro diretamente para o povo.

Neste método, Boal sistematizou várias técnicas teatrais, todas elas tendo como base e
fundamento a luta social e política. Sendo elas aplicáveis na psicoterapia, na pedagogia,
na cidade ou no campo, no trato com problemas pontuais ou globais.

E quando se fala em questões sociais e políticas, fala-se em desigualdades, injustiças,


miséria, abandono, exclusões e OPRESSÕES. O TO fala das relações entre Opressores e
Oprimidos, fazendo teatro, levando ao palco situações vividas.

Segundo Boal “todo teatro é necessariamente político, o teatro é uma arma muito
eficiente”.

Na metodologia do TO todo ser humano é ATOR - porque age e é ESPECTADOR -


porque observa. Somos TODOS “ESPECT-ATORES”, segundo Boal. Todos podemos
ser atores!

O TO em todas as suas formas busca sempre a transformação da sociedade, no sentido da


libertação dos oprimidos.
O espetáculo criado a partir das técnicas propostas é um ensaio para a ação na vida real,
e não um fim em si mesmo, é um início, é preparação para ações futuras.

Em seu livro “Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas”, Boal cita Marx:

“Não basta interpretar a realidade, é necessário transformá-la”.

O projeto tem como principal objetivo investigar as possíveis convergências entre as duas
linguagens, Palhaçaria e Teatro do Oprimido, e entender como as práticas do Teatro do
Oprimido podem interferir de forma positiva nos processos criativos da Palhaçaria.

O processo vem contando com diversas entrevistas em busca de


múltiplas referências acerca dos dois temas.

Até o presente momento, muitos convidados de notório saber e reconhecimento


público contribuíram com as discussões.

Professora associada no Departamento de Arte Dramática e no Programa de Pós-


Graduação em Artes Cênicas no Instituto de Artes da UFRGS, estudou e trabalhou com
Augusto Boal no Plano Piloto da Fábrica de Teatro Popular e no Centro de Teatro do
Oprimido do Rio de Janeiro, do qual foi uma das fundadoras, Silvia Balestreri sugeriu
uma ótima definição para o elo entre as duas práticas:

O palhaço é prenhe (grávido) de mundos, mesmo quando ele fala dele mesmo, por
exemplo numa ação simples de colocar o leite pra ferver, ele tá falando de TODO
MUNDO, da tentativa da gente ser eficiente e de tentar conciliar tudo... e aqui uma
convergência com o Teatro do Oprimido de Boal é que isso se traduz em MICRO E
MACRO POLÍTICA...

TO e Palhaçaria são práticas que se recusaram a virar mercadoria!

O ator e palhaço Alexandre Penha também passou pelo crivo curioso dos membros do
projeto.

Alexandre, residente em Maringá, além de fundador da Escola de Palhaço, é professor


para palhaços de projetos hospitalares, escolas de teatro e universidades do Brasil e do
exterior. Levando em conta a sua formação em Artes Cênicas e suas experiências como
diretor artístico dos projetos Terapia da Alegria, UNIMED Alegria,
S.O.S Uningá, Hosparlhaço e Projeto Humanizart/Unicesumar, o artista ressalta que:

Particularmente pra mim, Boal é um dos maiores mestres de didática de ensino de arte do
mundo, de todos os tempos...e eu enquanto formador de palhaços, basicamente cinquenta
por cento da minha concepção didática, ou seja, a arte de ensinar, é baseada em
Boal...embora o teatro tenha suas habilidades e técnicas específicas, e os palhaços tenham
as suas...a didática do TO conseguiu fazer uma reflexão sobre a arte de ensinar
Teatro...traduzir aspectos técnicos e habilidades complexas para algo alcançável por
todos...esse é o ponto que minha didática se espelha no TO.

Passaram também pela sala virtual de pesquisas a atriz Tânia Farias, da Tribo de
Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz; o palhaço e escritor do livro O Palhaço e o Psicanalista,
Claudio Thebas; o multiplicador das técnicas de Augusto Boal na Alemanha,
Celso Willusa; além de Patricia Sacchet e Guilherme Comelli, da dupla de palhaços
Ondina & Tufoni.

E a saga de entrevistas dessa instigante investigação ainda vai mais longe. Nessa semana
o coletivo de pesquisadores vai se reunir de forma virtual com o grupo
francês Caravane Threatre. Criado e sediado na cidade de Toulouse, no sul da França, o
grupo, que visitou o Brasil no início dos anos 2000, tem como principal linha de pesquisa
as técnicas do Teatro do Oprimido e deve dividir um pouco de sua experiência sob a ótica
da prática em território europeu.

O resultado desse projeto poderá ser conferido por meio do material gerado a partir do
andamento da pesquisa. Além das informações difundidas pelas redes sociais, o coletivo
pretende divulgar conteúdos no formato de artigos que poderão compor um E-book com
as impressões colhidas ao longo do processo.

A idealizadora do projeto, Jaqueline Iepsen, fala sobre a importância do investimento em


pesquisa também no campo das Artes Cênicas:

Pesquisar, investigar, estudar será sempre um investimento nos ofícios e profissões


ligadas à ARTE. Simplesmente porque assim também é para qualquer outra profissão: a
busca do aperfeiçoamento. Então, por que seria diferente para quem produz Arte?

Aprofundar-se naquilo que já foi criado por alguém, encontrar as justificativas para a
aplicação deste ou daquele método de ensino ou treinamento, nos habilita a propagar esta
prática e mais ainda: encontrar novos e possíveis caminhos para praticá-la.

Ao pesquisar, nós como pesquisadores nos abastecemos de conhecimento, que


multiplicamos aos nossos pares de profissão, e que multiplicam ao seu público.

Nosso grupo de pesquisa é formado pelas áreas das Artes Cênicas, linguagem do teatro
Lambe-Lambe, Teatro de Animação, Palhaçaria, Pedagogia, Ilustração e Comunicação.
Tenho certeza de que nossa capacitação, nossas descobertas irão beneficiar o público de
cada uma destas linguagens...afinal de contas, nosso público merece qualidade!

Tenho acompanhado de perto as discussões e entrevistas e é um trabalho muito


interessante para além dos limites geográficos de nossa cidade.

É um projeto que já ultrapassou as nossas fronteiras municipais, estaduais e federais.

Com esse projeto, os responsáveis, além de contribuir para a construção universal de


conhecimento, levam o nome de nossa cidade para outros rincões.

A Arte e a Cultura são pontes que aproximam pessoas, pensamentos, sentimentos e


práticas.

Os artistas e agentes culturais são os construtores dessas conexões.

Esse é um dos nossos papeis nessa Grande Máquina.


Prestigie e apoie as iniciativas locais.

Guaíba tem muito para nos oferecer e orgulhar.

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