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A INTRODUÇÃO DAS ARMAS DE FOGO NO JAPÃO PELOS PORTUGUESES E


AS CONSEQUÊNCIAS NA ORGANIZAÇÃO MILITAR NIPÔNICA1
Leandro Valêncio Soares

Resumo: A guerra e o modo de se fazê-la são resultados dos fatores culturais das sociedades
humanas. Sendo assim, devido à heterogeneidade das culturas e de seus corpos sociais,
inevitavelmente a guerra e seu modus operandi apresentará contrastes bastante distintos, seja
em seu caráter teórico-conceitual, como em sua forma prática e técnica. Esse fenômeno pode
ser comprovado analisando as culturas ocidentais e orientais e seus direcionamentos
particulares sobre os aspectos inerentes ao dinamismo da guerra, ou seja, estratégia, tática,
tecnologia e pensamento militar sendo determinados pelas circunstâncias e características
culturais de cada grupo social.
A partir dessa constatação fenomenológica o presente trabalho tem como objetivo analisar o
contato entre japoneses e portugueses, durante o século XVI, e interpretar as consequências
ocorridas na organização militar nipônica após a difusão da espingarda pelo país, bem como
refletir se a arma de origem europeia foi responsável por revolucionar a arte da guerra
japonesa.

Palavras-chave: Organização Militar Japonesa. Portugueses no Japão. Arma de Fogo.

1 INTRODUÇÃO

Durante o século XVI, Portugal se tornou o principal mediador das atividades


mercantis e agente substancial nas trocas culturais que se sucederam entre a Europa e a Ásia.
Nesse tempo, o mundo oriental constituía-se em um local extremamente rico tanto
materialmente como culturalmente, além de ser possuidor de inúmeras particularidades de
que não se tinha registro no continente europeu.

A Ásia que os portugueses encontraram possuía uma intensa atividade comercial


marítima, com inúmeras comunidades mercantis em pleno florescimento, além de ser
cosmopolita e aberta à novidade. Segundo Curvelo, o continente asiático:

1
Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em História Militar, da
Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em
História Militar, com orientação do Prof. Armando Alexandre dos Santos.
2

[...] caracterizava-se, no início do século XVI, pelo dinamismo e pela


mudança. Era um mundo construído por diversas realidades físicas, sociais e
humanas, estando por isso longe de dever ser entendido como um todo
estável e imóvel, pautando-se antes pela diversidade e contrastes que
abarcava. Era, também, e em confronto com a Europa, um continente
densamente povoado e que assistiu, durante os séculos XVI e XVII, a um
crescimento generalizado, ainda que desigual de região para região. Algumas
das suas cidades - Deli, Agra ou Kyoto - igualavam-se em extensão e
organização social às maiores metrópoles europeias, de que Lisboa era então
exemplo. (CURVELO, 2009. p.19)

A região sudeste do continente asiático, que de forma generalizada era nominada


pelos europeus de Índias Orientais, era ocupada por diversas civilizações com unidades
políticas fragmentadas em principados e sultanatos, semelhante ao mundo medieval europeu.2
Entre eles havia o sultanato de Malaca, território vassalo da China e governado por nobres
muçulmanos, sendo, no século XVI, o principal entreposto comercial marítimo do mundo
asiático.3 A conquista de Malaca em 1511, realizada pelo governador e vice-rei da Índia, D.
Afonso de Albuquerque, abriu aos portugueses a possibilidade de navegar pelos mares
orientais da China.4

Entre os anos 1514 e 1521, os portugueses mantiveram relações comerciais


saudáveis com a China, porém pouco a pouco a relação foi entrando em declínio devido às
diferenças surgidas. Em 1519, Simão de Andrade designou a construção de uma fortificação
em Cantão, região localizada ao sul da China, para fazer frente às ações dos piratas nativos
que atrapalhavam o comércio marítimo português.

Essa era uma prática comum dos portugueses com relação aos territórios de
seus interesses, mas ofendeu o sentimento de soberania chinês. Sem se
importar com suscetibilidades, Simão de Andrade também impediu
mercadores estrangeiros de comercializar antes de ele próprio concluir seus
negócios. Tudo isso causou indignação entre os oficiais chineses, pois, na
ótica deles, o capitão português ousava exercer poderes que só caberia ao
imperador. (PESTANA, 2006, p. 142)

2
PESTANA, 2006. p.113.
3
CURVELO, 2009. p.20.
4
SERRÃO, 1971. p. 581.
3

Com os chineses se sentindo afrontados pela presença portuguesa e seus


procedimentos atrevidos, foi decretado oficialmente pelo governo chinês a abolição das
relações mercantis com os portugueses. Porém a proibição foi apenas um decreto formal que
era desrespeitado constantemente por ambas as partes, contribuindo efetivamente para o
surgimento de um ambiente onde imperava o contrabando e a pirataria generalizada.5 Com
isso, o comercio português passou a ser realizado por indivíduos particulares que atuavam de
forma não oficial pelos mares da China. Foram esses mesmos indivíduos que de forma ilegal
estabeleceram, em 1542, uma base de comércio em Liampó, na província do Fuquiem,
localizada ás margens do Mar da China Oriental. E a partir dessa localização os navegantes
portugueses se lançaram para águas mais distantes, chegando às terras japonesas.6

Antes da chegada portuguesa ao Japão, o país do extremo leste asiático era


conhecido pelo mundo europeu somente através da crônica de Marco Polo, o Livro das
Maravilhas. Em sua crônica, Marco Polo narrou suas aventuras pelo continente asiático, que
ocorreram no século XIII. Dentre suas anotações, consta a de um distante território chamado
por ele de Cipango, que se mantinha quase que excluso da intensa interatividade que já havia
naquela época no mundo asiático. O autor, que não chegou a visitar o local, descreveu as
características geográficas e culturais do país assim:

"Cipango é uma ilha do Levante, que está afastada da terra 1.500 milhas. É
uma ilha muito grande. Os indígenas são brancos, de boas maneiras e
formosos. São idólatras e livres, têm um rei próprio, que não é tributário de
nenhum outro. Têm ouro em abundância, mas o rei não deixa levar, e por
essa razão há lá poucos mercadores e poucas vezes vão ali as naus". (POLO,
2015, p. 200).

Polo denominou esse local de Cipango, cuja transliteração pode ser encontrada,
entre outras formas, como Sipangas, Zipangas e Zipangni, muito provavelmente através da
influência da língua chinesa que denominava a ilha de Ji-Pan-Ku, literalmente “terra do sol
nascente”.7

É somente em 1543, pelo menos de forma oficial, que o mundo europeu entrou
em contato direto com os japoneses, sendo essa tarefa levada a cabo pelos navegadores

5
SÁ, 2006. p.50.
6
ALBUQUERQUE, 1994. p.537.
7
SERRÃO, 1971. p. 581.
4

portugueses. Porém, quando os portugueses desembarcam no Japão, e lá introduzem a arma


de fogo, o país passava por um momento totalmente turbulento, sendo talvez o mais instável
que já houve em terras nipônicas. O conturbado período histórico japonês é denominado de
Sengoku Jidai, traduzido literalmente como “Era dos Estados em Guerra”, sendo devidamente
caracterizado pela instabilidade política e conflitos intensos entre os diversos senhores
feudais.8

A partir dessas constatações, o presente trabalho analisará o contato entre


japoneses e portugueses, durante o século XVI, e interpretará os resultados e as consequências
ocorridas no âmbito militar nipônico após a devida assimilação japonesa da arma de fogo
portuguesa.

2 DELIMITANDO A CHEGADA DOS PORTUGUESES AO JAPÃO ATRAVÉS DAS


FONTES DOCUMENTAIS.

A chegada dos portugueses ao Japão é controversa, pois os diversos documentos


históricos que registram esse fato não coincidem sobre qual foi o primeiro português a
desembarcar em terras nipônicas e a data precisa em que isso ocorreu. Os documentos
históricos portugueses que registram a data da chegada às terras nipônicas são, em sua
totalidade, crônicas de agentes históricos que participaram do fato, compilações de relatos de
viagens e navegações nos mares do continente asiático. Entre esses documentos históricos
está o “Tratado do Descobrimento” de Antonio Galvão (1490-1557), que registra assim o
primeiro contato português com as terras nipônicas:

No anno de 542 [1542] achandofe Diogo de Freytas no Reyno de Syam


[Sião ou Tailândia] na cidade Dodra capitam de hu navio, lhe fogiram três
Portuguefes em hu junco q hia pera a China, chamavãfe Antônio da Mota,
Francisco Zeimoto, & Antonio Pexoto. Hindofe caminho pa tomar porto na
cidade de Liampo, q eftá em trinta & tãtos grãos daltura, lhe deu tal tormenta
aa popa, q os apartou da terra, & em poucos dias ao Levãte viram um hua
ylha em trinta & dous graos, a q chamam os Iapões, que parecem fer aquelas
Sipangas de que tanto falam as efcripturas... 9

8
KASEDA, 2009. P. 17.
9
O título completo da crônica de Antonio Galvão publicada em 1563 é: Tratado que compôs o nobre &
notauel capitão Antonio Galuão, dos diuersos & desuayrados caminhos, por onde nos tempos passados a
pimenta & especearia veyo da India ás nossas partes, & assi de todos os descobrimentos antigos &
modernos, que são feitos até a era de mil & quinhentos & cincoenta. Pode ser encontrado digitalizado no
endereço virtual da Biblioteca Nacional de Portugal: < http://www.bnportugal.pt/>.
5

Antonio Galvão afirma que a chegada ao Japão se deu no ano de 1542 e


relacionou essa nova terra descoberta pelos portugueses com a ilha Cipango que Marco Polo
descreveu em sua famosa crônica.
Outro relato da descoberta do Japão pelos portugueses foi feito pelo historiador
português Diogo do Couto (1542-1616), que assim como Antonio Galvão registrou em sua
crônica “Décadas” que os primeiros portugueses desembarcaram na terra do sol nascente em
1542, sendo responsáveis pelo feito os companheiros Antonio da Mota, Francisco Zeimoto e
Antonio Peixoto.10

Já Fernão Mendes Pinto (1510-1583), em sua crônica denominada


“Peregrinaçam”, relata de forma refinada e excêntrica as suas sucessivas aventuras
exploratórias no continente asiático, sendo algumas delas no Japão. O registro de Pinto possui
discordâncias se comparados aos citados acima, isto porque ele narra sua própria “descoberta”
do Japão junto com Diogo Zeimoto e Cristovão Borralho. Outro problema é a data de sua
chegada que de forma inconstante varia como 1543, 1544 e 1545.11 Mesmo com algumas
incompatibilidades, Fernão Mendes Pinto apresenta um relato sucinto e bem descritivo do
continente asiático na época em que peregrinou pelos mares e terras do extremo leste, sendo
sua obra uma peça riquíssima e indispensável para a pesquisa histórica. Segundo o historiador
Charles R. Boxer, o que provavelmente explica essas inconstâncias cronológicas e factuais na
obra de Pinto é que o autor, que visitou o Japão quatro vezes entre 1544 e 1556, teve a
oportunidade de conhecer os reais “descobridores” do Japão e escrever suas aventuras como
se tivessem sido as dele e com algumas adições.

O documento histórico provavelmente mais exato sobre a data da chegada dos


portugueses ao Japão é uma obra japonesa escrita em 1606, denominada de Teppô-Ki, sendo
traduzida de forma literal como “Crônica da Espingarda”. Nela consta registrado
perfeitamente a data do desembarque português, que seria 23 de setembro de 1543. 12 A obra
se fundamenta nos registros oficiais de família do senhor da ilha de Tanegashima, evidência
que gera uma maior confiabilidade sobre a datação desse fato histórico.13 Dessa forma, a
historiografia especializada utiliza o ano de 1543 como a data oficial da chegada dos
portugueses ao Japão, sendo a ilha de Tanegashima, que na época era governada por Tokitaka
Tanegashima, a paragem dos navegantes lusos.

10
ALBUQUERQUE, 1994. p.537.
11
BOXER, 1951. p. 23.
12
YAMASHIRO, 1989. p.89.
13
BOXER, 1951. p.26.
6

Tanto o Teppô-Ki como os registros históricos dos ilustres portugueses


mencionados acima relatam que os portugueses navegavam em um junco chinês e
desembarcaram em terras nipônicas após se livrarem de uma tempestade que os tirou de sua
rota marítima. No Teppo-Ki, consta registrado de forma minuciosa o primeiro contato e a
devida comunicação que ocorreu, após o desembarque, entre os navegantes que estiveram à
deriva e os habitantes da ilha. A comunicação entre as partes foi realizada por Gohô, um
chinês que navegava junto com os portugueses, e Oribenojô, um nobre japonês de alto status
que sabia muito bem a escrita chinesa. Eles se comunicaram escrevendo na areia com um
bastão de madeira. Segue um trecho da conversa:

[Oribenojô diz:] Não sabemos de que país vêm essas pessoas a bordo. Eles
parecem estranhos, não? Gohô escreveu em resposta: Eles são comerciantes
de entre os bárbaros do sudoeste (seinanban). Eles têm algum conhecimento
da relação entre superior e inferior, mas, não possuem boas maneiras (reibô).
Portanto, quando bebem, não usam copos, e quando comem, usam os dedos
e não os pauzinhos, como fazemos. Eles mostram seus sentimentos sem
qualquer autocontrole e não utilizam a nossa escrita. Tais comerciantes têm
o hábito de vagar de um lugar para outro, trocando coisas que têm por
aquelas que não têm. Eles não são tão estranhos e são muito inofensivos.
(LIDIN, 2002, pp. 36-37, tradução nossa do inglês). 14

Claramente pode-se notar a estranheza que os japoneses sentiram quando


tomaram contato com os portugueses, pois estes possuíam características físicas bem
diferentes dos asiáticos do extremo leste e suas maneiras não se adequavam às etiquetas
japonesas de bons modos. Porém Gohô, o interprete chinês que estava junto com os
portugueses, logo tratou de mostrar que os “bárbaros do sudoeste” eram pessoas comuns e que
não representavam periculosidade, porém possuíam costumes distintos, sendo esse o fator que
os diferenciava. Algo um tanto curioso para um período histórico em que não existia uma
noção clara sobre diversidades culturais.

Em outro trecho da crônica nota-se que, além do aspecto físico e comportamental,


os habitantes de Tanegashima foram atraídos por um objeto misterioso que os portugueses
portavam. Tratava-se de um instrumento que eles ainda não conheciam e nem sabiam qual era
a sua determinada função. Esse instrumento era a espingarda portuguesa e a curiosidade

14
Na obra de Olof G. Lidin, Tanegashima: the arrival of Europe in Japan publicado em 2002 em Copenhagen
pelo Nordic Institute of Asian Studies, há a tradução completa para o inglês do registro histórico Teppô-Ki,
escrito por Nanpo Bunshi em 1606.
7

nipônica recaiu sobre ela, principalmente quando a viram sendo utilizada. No Teppô-ki, de
forma magistral, está relatado assim:

Havia dois líderes entre os comerciantes, um chamado Murashukusha e o


outro Kirishita da Môta. Eles tinham em posse um objeto (mono) que era de
cerca de dois ou três shaku15 e, quanto à sua forma, era reta no exterior com
uma passagem dentro e feita de uma substância pesada. Mesmo que seu
interior fosse oco, sua extremidade anterior estava fechada. Havia uma
abertura ao seu lado, através da qual o fogo era aplicado. Sua forma não
podia ser comparada com qualquer outra coisa. Quando o usavam, um
misterioso medicamento em pó (myôyaku) era colocado nele e uma pequena
bola de chumbo adicionada. No início, um alvo branco pequeno foi ajustado
acima de um banco. Para descarregá-lo, o homem agarrou o objeto com uma
mão, endireitou sua postura e fechou um dos olhos. Quando o fogo era
emitido a partir da abertura, a pequena bola sempre atingia o alvo quadrado.
A explosão parecia um relâmpago e o som soava como um trovão. Todos os
espectadores cobriam as orelhas. (LIDIN, 2002, pp. 36-37, tradução
nossa).

Muitas evidências podem ser consideradas a partir do trecho citado acima. A


primeira diz respeito à confusão feita pelos japoneses ao registrar o nome dos portugueses, o
que se configura como algo natural devido às disparidades linguísticas entre os idiomas dos
envolvidos. Um deles foi denominado de Murashukusha e não se pode tirar nenhuma
conclusão específica daí, a não ser sobre o equívoco linguístico. Já o outro português foi
denominado de Kirishita da Mota, cujo sobrenome, pelo menos, nos remete ao Antonio da
Mota que Antonio Galvão e Diogo do Couto indicam ter sido um dos primeiros portugueses
que pisaram em terras japonesas. Outra evidência que o trecho nos mostra remete-se sobre a
visão aguçada que os japoneses tiveram ao examinar a espingarda portuguesa. De forma
precisa, pragmática e um tanto exótica, os espectadores do funcionamento da arma foram
capazes de fazer uma análise técnica e sistemática sobre todo o equipamento, inclusive de seu
processo operacional. Ou seja, mesmo ainda leigos sobre a funcionalidade da espingarda, os
japoneses de Tanegashima que presenciaram o armamento em plena ação, logo entenderam
que o instrumento “misterioso” utilizado pelos “bárbaros do sul” tratava-se de algo
imensamente poderoso, intenso e significativo e que muitas coisas poderiam ser feitas e
concretizadas através de seu efeito destrutivo, ainda mais em um ambiente extremamente
hostil como o em que se encontrava o mundo japonês. O trecho seguinte da crônica japonesa é
perfeitamente expressivo:

15
Unidade de medida japonesa.
8

Um disparo deste objeto pode fazer uma montanha de prata desintegrar-se e


quebrar uma parede de ferro. Alguém com alguma ideia de agressão em
mente contra um país vizinho perderia sua vida instantaneamente quando
batido. Escusado será dizer que isso também vale para o cervo que devastar
o arroz plantado. As muitas maneiras como este objeto pode ser usado no
mundo não podem possivelmente ser contadas [...] Ao ver o Senhor Tokitaka
[Tokitaka Tanegashima, soberano da ilha] a intitulou de a maravilha das
maravilhas. (LIDIN, 2002, p. 37, tradução nossa).

Vale lembrar que a crônica japonesa em questão, o Teppô-Ki, foi escrita algumas
décadas depois do desembarque português, mais precisamente em 1606. Então talvez o
cronista, que leva o nome de Nanpo Bunshi, tivesse uma similaridade bem maior com a
espingarda que seus antecessores em 1543, podendo assim relatá-la de forma bem mais
apurada.
Frente à descoberta de algo tão poderoso e surpreendente para a mentalidade
nipônica vigente da época, o mandatário da ilha de Tanegashima, o daimyô16 Tokitaka
Tanegashima, após declarar que a espingarda era a “maravilha das maravilhas”, desejou
ardentemente aprender a manuseá-la. Esse fato, que representa o início da utilização da
espingarda pelos japoneses, figura devidamente registrado no Teppô-Ki e na crônica
Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto. Na crônica japonesa pode-se notar claramente uma
forte influencia da filosofia oriental durante o diálogo, realizado por meio de interpretes, entre
o daimyô e os portugueses. Assim, o trecho apresenta mais um caráter filosófico esotérico
oriental, que é inerente à cultura tradicional japonesa, do que uma instrução prática sobre o
uso da espingarda. Segue o trecho em questão:

Um dia, Tokitaka disse aos dois bárbaros por meio de interpretes (jûyaku):
Eu não acho que sou capaz, mas eu gostaria de aprender [a atirar]. Os dois
bárbaros, também usando interpretes, responderam: Se você, senhor, gostaria
de aprender [como atirar], gostaríamos de ensinar-lhe todos os seus
segredos. Tokitaka disse: Posso realmente aprender todos os seus segredos?
Os bárbaros disseram: Os segredos consistem apenas em purificar seu
coração e em fechar um olho. Tokitaka disse: Os sábios antigos ensinaram as
pessoas a purificarem seus corações, e eu aprendi. [...] O que você quer dizer
com purificar o coração, no entanto, é algo diferente? Se você fechar um
olho, você não será capaz de ver o que está longe. Por que deveria, portanto,
fechar um olho? Os bárbaros responderam: Aqui é onde a concentração é
necessária. Manter uma visão longa não é necessário. Fechando um olho não
significa que não se pode ver claramente, mas que está se concentrando e

16
Daimyô, ao pé da letra, grande myô, é o grande proprietário e dominador de sua população, o senhor feudal
por excelência. Verdadeiro rei dentro de seus domínios.
9

deseja atingir o que está longe. Isto é o que você deve considerar, senhor.
Encantado, Tokitaka disse: Isso corresponde ao que Lao Tzu disse:
Capacidade de ver o que é pequeno é clareza. É sobre isso que estão
falando? (LIDIN, 2002, pp. 38-39, tradução nossa).

Fernão Mendes Pinto descreve de forma diferente o primeiro contato japonês com
a arma. Na sua história, que difere da do monge Nanpo Bunshi, Diogo Zeimoto desempenha
um papel fundamental para que os japoneses se apaixonem pela arma.
Pinto registra que o local de seu desembarque no Japão, Tanixumaa, era
governado por um senhor local que ele denomina de nautoquim17. Segue sua narração:

“Nós portugueses, como não tinhammos veniaga em que nos ocupássemos,


gastávamos o tempo em pescar e caçar, e ver templos dos seus pagodes que
eram de muita magestade e riqueza, nos quais os bonzos, que são os seus
sacerdotes, nos faziam muito gasalhado, porque toda gente de Japão é
naturalmente muito bem inclinada e conversável. No meio desta nossa
ociosidade, um dos três que éramos, por nome de Diogo Zeimoto, tomava
algumas vezes por passatempo tirar com uma espingarda que tinha de seu, a
que era muito inclinado, e na qual era assaz destro. E acertando um dia de ir
ter a um paúl onde havia grande soma de aves de toda a sorte, matou nele
com a munição, umas vinte e seis marrecas.
Os japões, vendo aquele novo modo de tiros que nunca até então tinham
visto deram rebate disso ao nautoquim que neste tempo estava vendo correr
uns cavalos que lhe tinham trazido de fora, o qual espantado desta novidade,
mandou logo chamar o Zeimoto ao paúl onde andava caçando, e quando viu
vir com a espingarda ás costas, e dous chins carregados de caça, fez disto
tamanho caso que em todas as cousas se lhe enxergava o gosto do que via,
porque como até então naquela terra nunca se tinha visto tiro de fogo, não se
sabiam determinar com o que aquilo era, nem entendiam o segredo da
pólvora, e assentaram todos que era feitiçaria.
O Zeimoto, vendo-os tão pasmados e o nautoquim tão contente, fez perante
eles três tiros que matou um milhano e duas rolas. E por não gastar palavras
no encarecimento deste negócio, e por escusar de contar tudo o que se
passou nele, porque é cousa para se não crer, não direi mais senão que o
nautoquim levou o Zeimoto nas ancas de um quartau em que ía
acompanhado de muita gente. (...)
E entendendo então o Diogo Zeimoto que em nenhuma cousa podia melhor
satisfazer ao nautoquim alguma parte destas honras que lhe fizera, nem em
que lhe desse mais gosto que em lhe dar a espingarda, lha ofereceu um dia
que vinha da caça com muita soma de pombas e de rolas, a qual ele aceitou

17
Nautoquim (ou nautakim como também consta) refere-se à Tokitaka Tanegashima, 14º governador da ilha
de Tanegashima. in: PIRES, Benjamim Videira. Taprobana e mais além-: presenças de Portugal na Asia. Macau:
Instituto Cultural de Macau, 1995, p.417.
10

por peça de muito preço e lhe afirmou dar por ela mil taéis de prata, e lhe
rogou muito que lhe ensinasse a fazer pólvora, porque sem ela ficava a
espingarda sendo um pedaço de ferro desaproveitado, o que o Zeimoto lhe
prometeu e lho cumpriu. E como dali por diante todo o gosto e passatempo
do nautoquim era no exercício desta espingarda, vendo os seus que nenhuma
cousa o podiam contentar mais que naquela de que mostrava tanto gosto,
ordenaram de mandarem fazer por aquela, outras do mesmo teor, e assim o
fizeram logo. (PAULINO, 1993. p.46).18

Tanto o Teppô-Ki quanto a Peregrinaçam, por mais que sejam registros


particulares produzidos por agentes com mentalidades próprias e totalmente influenciados por
suas culturas, que por natureza são distintas, relatam-nos a mesma situação e conjuntura, o
espanto e o interesse dos japoneses pela arma de fogo. Ao mesmo tempo que as crônicas
diferem entre si no quesito “enredo”, elas se constituem como documentos históricos onde o
ato de historicizar, ou seja, uma interpretação crítica e abrangente que leva em plena
consideração as supostas particularidades documentais se faz mais proficiente do que uma
mera interpretação literal dos fatos transcorridos.

3 A ESPINGARDA PORTUGUESA E SUA DISSEMINAÇÃO PELO JAPÃO

As espingardas portuguesas que foram introduzidas no Japão possuíam o sistema


19
de mecha, mais comumente conhecido como matchlock. Esse sistema consistia em uma
serpentina com o formato de S que sustentava uma mecha de combustão preparada com
salitre. A serpentina movia-se sobre o eixo central e ao puxar a haste inferior, o gatilho, a
haste superior era empurrada, fazendo a ponta da mecha, em chamas, tocar na pólvora
colocada de antemão na caçoleta ao lado do cano. A carga era acesa e ocorria o disparo.20 Não
se pode supor de forma concreta a data de invenção desse sistema, mas as evidencias apontam
para o ano de 1475, na atual Alemanha, onde eram chamadas de hackenbüsche, ou arcabuz na
língua portuguesa.21 Porém, como se pode notar na crônica de Fernão Mendes Pinto, o termo
“espingarda” também era utilizado para designar o armamento, não havendo então distinção,
nessa época, entre espingarda ou arcabuz.

As armas que os portugueses introduziram no Japão possuíam ligeiras diferenças


se comparadas aos matchlocks utilizados pela Europa na mesma época. Isso se deve às

18
A narrativa da Peregrinçam de Fernão Mendes Pinto foi retirada da obra de PAULINO, Francisco Faria. O
Japão visto pelos portugueses: Comemorações descobrimentos portugueses. Lisboa: A Comissão, 1993, p 46.
19
KINDERSLEY, 2012. p.14.
20
CONLAN, 2013 p.155.
21
KINDERSLEY, 2012. p.150
11

melhorias e aperfeiçoamentos elaborados pelos talentosos armeiros asiáticos, principalmente


os armeiros de Goa, na Índia, que, além de incrementarem as armas com detalhados aspectos
ornamentais, semelhantes aos que faziam com outros armamentos (principalmente nas adagas
e espadas, em que cunhavam os metais de forma extremamente hábil e com estética
puramente artística), adaptaram, também, algumas mudanças específicas em seu sistema
funcional, o que produziu certa evolução em seu sistema de disparo.22 Assim, se faz correto
denominar as armas de fogo que foram disseminadas no Japão de indo-portuguesas. 23

Assim como os indianos, os armeiros japoneses foram capazes de manufaturar


armas semelhantes às que eram produzidas na Europa, após assimilarem devidamente as
24
técnicas de fabrico. Entre eles estavam os armeiros de Tanegashima, que se encontravam
bem posicionados para confeccionarem os armamentos devido ao solo da região ser
extremamente rico em ferro. Por mais que o nome correto em japonês para arma de fogo seja
teppô, elas passaram a ser conhecidas em todo o Japão por Tanegashima. Mas a ilha não foi o
único local onde as espingardas foram fabricadas. Os monges de Negoroji adquiriram uma
espingarda em 1543, estabeleceram uma forja de armeiros e chegaram a produzir uma grande
quantidade de armas, sendo que em 1570 tiveram armas suficientes para formar uma
infantaria com 300 atiradores (teppô shu). 25

De acordo com o Teppô-Ki, entre os japoneses que viram os portugueses


demonstrarem o poder destrutivo da espingarda, se encontrava um visitante de Sakai chamado
Tachibayana Matasuburô. Este aprendeu de forma magistral a utilizar a espingarda e inclusive
passou a ser chamado de Teppômata, ou mestre da espingarda. Ele foi o responsável por
introduzir a arma em sua província natal e em sua cidade, Sakai, que já era famosa por possuir
ferreiros extremamente hábeis na arte da metalurgia, e se tornou o centro produtor da arma na
região de Izumi. 26 A primeira espingarda fabricada em Sakai foi finalizada em 1544.

Além de reproduzirem as espingardas, os armeiros japoneses foram capazes de


acrescentar nelas significativas melhorias no âmbito operacional. Essas melhorias se dão
especificamente no desenvolvimento dos canos raiados, desenvolvidos pelos ferreiros
Kunitomo, dando assim mais eficácia e precisão aos disparos.

22
KINDERSLEY, 2012. p.156
23
DAEHNHARDT in: Introdução das armas de fogo na Ásia pelos Portugueses. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=CQro0kkievs> Acesso em: 01/03/2017.
24
CONLAN, 2013. p.156.
25
CONLAN, op.cit.
26
LIDIN, 2002. p.149.
12

[...] os Kunitomo conseguiram criar um processo no qual um parafuso


poderia ser lentamente girado dentro de um cano incandescente de modo a
criar raias [...] O processo de criar raias continuava sendo uma tarefa
extremamente difícil para os ferreiros europeus do início do século XVI.
Embora os ingleses usassem os chamados ‘espeto de rosca’, que era forçado
para dentro do cano, raiando-o, a ideia de rosquear os canos não parece ter-
se tornado comum na Inglaterra até 1635 [...] Em contraste, os ferreiros
Kunitomo parecem ter raiado suas armas já na virada do século XVII.
(CONLAN, p.159, 2013).

Para os japoneses a pólvora representava um problema, pois tinham dificuldade de


encontrar em seu território o nitrato de potássio, ou o salitre, que é um dos principais
elementos na fabricação da pólvora. 27 Sendo assim, não se pode relegar o papel português na
disseminação das armas pelo Japão, pois devido às atividades comerciais que iniciaram com
os nipônicos foram responsáveis diretos no processo. O contato com os japoneses era visto
com bons olhos pelos colonos portugueses do sudeste asiático, que viam a possibilidade de
expandir suas atividades comerciais pelas terras nipônicas, principalmente com a
comercialização da espingarda, da pólvora e do chumbo. 28

Mesmo com a dificuldade em obter o nitrato de potássio, os artesãos japoneses


desenvolveram o fabrico da pólvora misturando os diversos elementos inflamatórios. E a
substância resultada dessa mistura possuía uma combustão suficientemente forte para
conceder a ignição às armas.

Em 29 de junho de 1559, Odachi Harumitsu, agindo em nome do shogun,


enviou uma cópia da receita de pólvora de Otomo Yoshishige ao debilitado
Uesugi Kenshin. Esse documento revela uma mistura extremamente potente,
sendo que a proporção de salitre para enxofre e carvão foi fornecida duas
vezes, a 80:12:8 e 77:13:10, esta última aproximando-se da proporção ótima.
(CONLAN, p. 161, 2013.)

É correto afirmar que a arma de fogo teve sua essência absorvida pelos japoneses
que, fascinados pelo poder destrutivo dela, aprenderam a desenvolver todos os processos
operacionais do fabrico. Tornam-se armeiros especialistas e aprimoram o equipamento. Além
disso, aprendem como utilizá-las devidamente em combate, por mais que isto seja um
processo à parte mais devido à visão tática do comandante das tropas. No Teppo-Ki consta
que o senhor de Tanegashima, Tokitaka Tanegashima, adquiriu duas espingardas por um

27
CONLAN, 2013. p.162.
28
YAMASHIRO, 1989. p.93.
13

altíssimo preço e praticou arduamente a arte do disparo, do amanhecer ao pôr do Sol. A


crônica afirma que ele ficou tão expert na operação do armamento que era capaz de acertar o
alvo cem vezes a cada cem disparos.29 Algo improvável, pelo menos nesses números, pois a
espingarda não possuía uma precisão que fosse capaz de proporcionar tal quantidade de
êxitos.

4 A ESPINGARDA E AS CONSEQUÊNCIAS NA ORGANIZAÇÃO MILITAR DO


JAPÃO FEUDAL

A guerra antes do período do Sengoku Jidai constituía-se na guerra do samurai.


Embora as batalhas ocorressem com grande número de soldados de infantaria, estes não
desempenhavam uma função fundamental na composição militar. Na tradicional guerra
samurai, as batalhas eram conjuntos de enfrentamentos individuais, nos quais guerreiros
provenientes da nobreza desafiavam seus oponentes de status social semelhante e pelejavam
com suas armas de alta qualidade.
Durante o século XII os samurais se tornaram especialistas na arquearia montada
e imperavam no campo de batalha sendo auxiliados por soldados apeados. 30

O cavalo continuou sendo fundamental para a organização militar até 1467,


tanto que as unidades militares eram invariavelmente contadas em termos de
cavaleiros, enquanto os que se deslocavam a pé não mereciam ser
mencionados até meados do século XIV [...] Dentre os que podiam montar,
os mais ilustres eram os guerreiros com linhagem e terras. Eles montavam
cavalos mais fortes, e eram facilmente identificáveis pela suntuosa armadura
em forma de caixa. (CONLAN, 2013. p. 30)

O predomínio dos samurais arqueiros começa a se alterar quando se inicia uma


tensão política e social que opõe senhores feudais e camponeses, tensão essa que se estende
pelos séculos XIV e XV. São essas revoltas camponesas que começam a transformar a
organização militar japonesa. Isso se dá devido a algumas derrotas que os camponeses
infligiram nas forças governamentais utilizando-se da capacidade de mobilização das tropas
de camponeses sob o comando de um chefe militar, superando o modo de combate tradicional
31
dos samurais arqueiros. Surge então a figura do ashigaru, soldado proveniente da camada

29
LIDIN, 2002. p.40.
30
DAVIS, 2013. p. 248.
31
YAMASHIRO, 1982. p.126.
14

camponesa que seria incorporado aos exércitos dos senhores feudais devido à necessidade que
estes tinham de se fortalecerem em uma era de guerras generalizadas. 32

Dentro da caótica situação na metrópole, a agitação no campo – onde são


frequentes as rebeliões agrárias – e disputas políticas e militares entre
governadores militares, irrompe a conflagração de Onin (Onin no ran) em
1467 [...] a pior das guerras civis até então ocorridas e que marca o início do
sangrento período das guerras entre feudos (sengoku jidai) (YAMASHIRO,
1982. p. 132).

O Japão nesse período ficou refém dos inúmeros conflitos que se iniciaram e os
daymiô que conseguiram manter seus feudos, ou expandi-los, receberam o título de sengoku
33
daimyô. Na necessidade de formar um exército que possibilitasse prover à segurança e à
manutenção dos interesses políticos, os sengoku daimyô passaram a incorporar, em grande
escala, os ashigaru em seus contingentes militares. Essa medida fornecia aos sengoku daimyô
a capacidade de aumentar a força de seu exército e diminuir o número de baixas entre seus
samurais. 34
Com a incorporação camponesa no campo de batalha, os exércitos aumentaram de
tamanho causando uma alteração no modo de se fazer a guerra no mundo nipônico. As
batalhas com enfrentamentos individuais dispersos que imperavam nos séculos anteriores ao
sengoku jidai foram suplantadas pelo grupo de batalha em uma unidade militar coesa.
Membros das diferentes camadas sociais japonesas passaram a lutar lado a lado no campo de
batalha, e por mais que os nobres samurais ainda detivessem seus privilégios e uma grande
importância dentro da organização militar, os camponeses formavam o grosso da tropa. Os
ashigaru inicialmente integraram o corpo de arqueiros e a infantaria de lanceiros, sendo esta
última a espinha dorsal do contingente militar e a unidade que conferia coesão à tropa.

Em muitos sentidos, as lanças refletiram a transformação tática mais


importante, pois elas permitiram a ascensão do que se pode chamar de
“táticas concentradas”, nas quais homens em formações compactas usavam
suas armas como um grupo coeso. Tal comportamento não foi evidente nas
batalhas esparsas do século XIV, em que esquadrões de cavalaria
permaneciam como a força de combate predominante. Com demasiada
frequência, historiadores pensaram que as armas de fogo é que ocasionaram
a ascensão dessas táticas concentradas, mas, na verdade, elas já
32
O termo ashigaru traduzido ao pé da letra significa pés leves.
33
Senhor feudal do período das guerras feudais. São aqueles que se empenham em guerras frequentes, a fim
de defender ou ampliar seu domínio.
34
DAVIS, 2013. p.249.
15

predominavam muito antes que as armas de fogo se tornassem amplamente


utilizadas [...] Em 1467, os lanceiros já haviam se tornado a figura
dominante do exército do século XV. Sua importância realça a maior coesão
das unidades de combate e uma melhor organização militar, uma vez que as
unidades podiam treinar juntas e permanecer juntas em campo. (CONLAN,
2013. pp. 86-88).

Cada sengoku daimyô organizou seu exército de forma particular e por mais que
houvesse semelhanças (principalmente na incorporação dos camponeses no campo de
batalha), não se pode generalizar as organizações militares do período sengoku jidai como um
todo equivalente. Essa especificidade de cada organização militar ocorre também com a
incorporação das armas de fogo. Não foram todos os daimyôs que puderam, ou foram capazes
de formar unidades de espingardeiros entre seus componentes militares, ou utilizá-las de
maneira eficaz. 35
O responsável por utilizar com primazia as vantagens que a espingarda concedia
ao cenário militar foi Oda Nobunaga. Este compreendeu a importância da espingarda mais do
que qualquer outro comandante e elaborou uma nova forma de utilizá-las no campo de
batalha. 36 A genialidade militar de Oda Nobunaga foi comprovada na Batalha de Nagashino,
em 1575, quando ele conseguiu exterminar quase que completamente as forças dos Takeda,
pelo uso da saraivada das espingardas. Nobunaga, para se proteger do ataque da cavalaria de
Katsuyori Takeda, dispôs seus espingardeiros atrás de barricadas e paliçadas de bambus. Seus
atiradores compunham uma força de três mil homens e estavam empregados em três fileiras.
37

[...] a única forma de superar essa desvantagem era alinhar os mosqueteiros


em fileiras, disparando em sequência, de modo que a fileira da frente pudesse
recarregar enquanto os de trás atiravam. Esta solução não foi sequer sugerida
na Europa até 1594, e não passou ao uso geral ali até os anos de 1630. Oda
Nobunaga havia experimentado salvas de mosquetaria nos anos 1560, e
alcançou sua primeira grande vitória com esta técnica em 1575, vinte anos
antes da inovação europeia. (CONLAN, 2013 p. 168).

Quando as cargas de cavalaria vieram ao ataque, as sucessivas saraivadas


causaram um extremo dano a ela. Enquanto isso, os atiradores encontravam-se escondidos

35
CONLAN, 2013. p.165
36
DAVIS, 2013. p. 251
37
TURNBULL, Stephen. Nagashino 1575: slaughter at barricades. New York: Osprey Publishing, 2000.
16

atrás das barricadas que serviam de escudo, possibilitando o recarregamento da arma com
38
segurança. Nagashino é o marco da utilização tática da arma de fogo e demonstra que
mesmo uma experiente cavalaria samurai não foi páreo para o fogo concentrado. 39
Segundo Turnbull, as espingardas usadas em Nagashino tinham um alcance
máximo de 500 metros, mas a essa distancia o disparo fazia pouco dano. O alcance máximo
para causar dano era 200 metros, que era a distancia entre as barricadas e o local onde a
cavalaria Takeda iniciaria sua carga. A 50 metros de distância os efeitos seriam muito mais
danosos. Isso demonstra que a ordem para se iniciar os disparos aconteceram logo após a
cavalaria partir ao ataque e assumir uma posição vulnerável perante aos projéteis.

Como havia três mil espingardeiros, isso significa que cerca de oito mil
projeteis (falhas devem ter ocorrido) foram disparadas em três saraivadas. É
possível que a carnificina e a confusão infligidas aos Takeda pelas duas
primeiras salvas tenham dado tempo suficiente para que primeira fileira de
espingardeiros recarregasse e disparasse uma segunda salva [...](TURNBULL,
2000, tradução nossa).

O uso das espingardas em Nagashino mostra que a utilização do armamento


esteve atrelada à genialidade e ímpeto militar do comandante e não apenas na capacidade
tecnológica que o armamento concedia. As armas de fogo contribuíram para as elevadas
baixas entre os oficiais dos Takeda, mas foi a engenhosa habilidade de Oda Nobunaga que
causou uma derrota tão épica e abriu o caminho para a unificação do Japão.40
Nos anos seguintes à batalha, houve uma maior especialização no conhecimento
sobre as armas e um aumento considerável de seu uso nos conflitos campais. A partir de 1575
os comandantes passaram a incrementar seus exércitos com maiores números de
espingardeiros, mas sem destituir as outras armas. Entre eles estava Katsuyori Takeda, que
passou a exigir que seus ashigaru utilizassem armas de fogo de forma habilidosa. E foi além,
declarando que: “[...] agora, as armas de fogo são totalmente essenciais”. 41
É somente após 1600 que as armas de fogo vão ter um aumento considerável na
contagem dos ferimentos causados nos embates. Documentos remanescentes revelam que as
espingardas infligiram 80% dos danos causados por projeteis nas planícies central do Japão.

38
CONLAN, 2013. p. 174.
39
YAMASHIRO, 1982. p.159.
40
CONLAN, 2013. p.177
41
CONLAN, op. cit.
17

As armas de fogo precisaram de quase meio século para suplantar os arcos,


porque eram apenas incrementalmente mais eficazes em alcance e
penetração. Os ferimentos por armas de fogo eram geralmente infligidos a
uma estreita proximidade das forças inimigas, assim como os ferimentos por
flechas. Há muitos exemplos de guerreiros feridos tanto por balas quanto por
flechas, ou sendo baleados e perfurados por uma lança no mesmo embate.
Exemplos em que o mesmo guerreiro era repetidamente baleado e ainda
sobrevivia também atestam a limitação do poder de fogo no século XVI.
(CONLAN, 2013. p.165)

5 A MONOPOLIZAÇÃO DAS ARMAS

Os sucessivos conflitos que ocorreram no Sengoku Jidai têm seu fim em 1603,
42
quando se inicia o Xogunato Tokugawa. Em 1615, o xogum destrói todos os seus rivais e
inicia uma nova era no Japão, onde o porte das armas se tornaria privilégio dos nobres
samurais. O período que ficou marcado pela relativa paz no mundo japonês restaurou o uso
das armas tradicionais japonesas e a katana passou a ser considerada a alma do samurai 43.
Visando se perpetuar no poder, o governo Tokugawa, em 1607, passou a controlar a
fabricação das armas de fogo e iniciou o país em um período de total reclusão, expulsando
todos os estrangeiros que lá se encontravam.

Os produtores de armas também foram proibidos de viajar para outras


províncias, e receberam ordens para não informar a ninguém a receita
correta da pólvora, nem ensinar as técnicas de manufaturas de armas, exceto
aos membros do Tokugawa bakufu.44 (CONLAN, 2013. p.195).

O governo Tokugawa com seu viés centralizador também estabeleceu um órgão


responsável pelo controle da disseminação da pólvora e das balas. E além de obrigarem os
ferreiros a se fixarem em terras onde havia a supervisão governamental, não permitiam que
novas tecnologias descobertas fossem espalhadas. 45

A espada tornou-se, de fato, um símbolo de sua ordem, e muitos pensadores


enfatizaram a importância das artes marciais, ou a ideia, realmente nova para
os samurais, de que sua ordem fundamentava-se na morte. O interesse pelas
armas que empregavam pólvora continuou, mas a hegemonia dos Tokugawa

42
Chefe de governo
43
.
- , 1993.
44
O termo bakufu refere-se à base central do governo do xogun.
45
CONLAN, 2013. p.200.
18

evitou que essa tecnologia se difundisse rapidamente, por temer que tais
armas viessem a ameaçar o regime. (CONLAN, 2013, p.211).

Em 1587, Antes mesmo da implantação do Xogunato, Toyotomi Hideyoshi,


sucessor de Oda Nobunaga e unificador do Japão, visando suprimir possíveis revoltas
camponesas contra os privilégios dos samurais, confiscou todo tipo de armamento dos
camponeses.

Quando o processo de unificação estava próximo da conclusão, Toyotomi


Hideyoshi promulgou duas leis que alteraram a face do Japão que
predominada durante o período Sengoku. Ele percebeu que as organizações
que desafiavam a classe samurai, como o Ikko-Ikki 46, faziam isso devido à
capacidade de se equiparem com armas. [...] tropas de Hideyoshi invadiam os
vilarejos e confiscavam todas as espadas, lanças e armas de fogo. Esse
processo não atingiu somente os camponeses: pequenos daimyo cuja lealdade
era questionada, chefes de vilas, templos e mosteiros foram desarmados.
(TURNBULL, War in Japan 1467-1615, 2002).

O rígido controle dos armamentos evidencia que a paz no país nipônico veio
como uma imposição governamental. As armas passam a ser propriedade exclusiva dos
nobres, medida que evitava rebeliões contra o governo centralizador. As espingardas que
podiam ser facilmente utilizadas em uma possível revolta política, passaram a ser regidas por
um forte controle estatal, sendo essa a garantia de uma paz reinante.

6 CONCLUSÃO

Em síntese, não se pode dizer que as armas de fogo, que foram introduzidas no
Japão pelos portugueses, revolucionaram a arte da guerra deste país, pois quando elas se
disseminaram e foram incorporadas aos campos de batalha, a organização militar japonesa já
estava passando por um processo de adaptação às circunstâncias políticas e sociais da época.
E dessa adaptação surgiu um exército, composto pelas diversas castas sociais, que combatia
de forma unificada sob as ordens de um comandante, diferentemente do que ocorria antes,
quando a guerra era privilégio dos nobres e os de classe inferior eram apenas coadjuvantes.
Foi essa nova organização militar que aceitou e sustentou a utilização das armas de fogo em
conjunto com os armamentos tradicionais dos guerreiros japoneses, como o arco, a lança e a
espada.

46
Camponeses que se revoltaram contra o governo samurai.
19

É correto afirmar que as espingardas concederam vantagens aos comandantes


militares, principalmente se comparada com o arco. Além de possuir uma capacidade
destrutiva maior, possuía também um manuseio operacional mais simples. Enquanto era
necessária certa praticidade para poder obter a máxima eficiência do disparo com o arco, o
sistema de disparo da espingarda era praticamente mecânico com movimentos repetitivos,
sendo necessário para realizá-lo seguir sempre o mesmo procedimento. Mas de nada
adiantariam essas vantagens se o responsável pelo comando das unidades militares não
soubesse como utiliza-las.
Embora o número das espingardas adicionadas ao combate aumentasse
gradualmente durante anos, até ser abolida pelos governos autoritários, a natureza da guerra
não mudou. Os lanceiros e os arqueiros permaneceram no cenário da batalha e
desempenhavam uma importante função dentro da conjuntura militar ao lado da arma de fogo.
É mais sensato dizer que as armas de fogo foram assimiladas à guerra japonesa ao invés de
afirmar que promoveram uma revolução militar no Japão.

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