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Economia Política Internacional e Teoria das Relações Internacionais

08mar08
Semana de Economia Política Internacional
Centro Acadêmico Guimarães Rosa

Palestra: Economia Política Internacional e Teoria das Relações Internacionais


Palestrante: José Luís Fiori
Local: Sala da Congregação da Faculdade de Economia e Administração da USP
Data: 12/09/2005, 17h30min
Disponível em: https://chacombolachas.wordpress.com/2008/03/08/economia-politica-
internacional-e-teoria-das-relacoes-internacionais/

Queria agradecer e cumprimentar o CA por essa iniciativa, por esse esforço, pela
possibilidade que vocês estão propiciando de um intercâmbio absolutamente único; fora das salas
de aula; entre professores e alunos, entre economistas e cientistas políticos, entre – não menos – Rio
de Janeiro e São Paulo, cada vez mais difícil. E, sobretudo, com essa proposta de discutir uma
maneira de olhar ou diagnosticar os acontecimentos internacionais combinando a política e a
economia num mesmo olhar, num mesmo esforço.
A pergunta de vocês é sobre Economia Política Internacional. Eu acho que é necessário a
gente relembrar entre nós que a origem da economia política remonta aos séculos XVI e XVII e se
chamou mercantilismo. Adam Smith na frente, depois sistema mercantil, mercantilismo, enfim.
Depois, no século XVIII, nós temos a origem dessa disciplina, dessa démarche da economia política
clássica com Adam Smith, Willian Petty, Ricardo e, ainda no século XIX, a crítica da economia
política feita pelo Marx, que pode ser chamada de economia política marxista. E todos nós sabemos
que houve uma interlocução muito grande entre essa economia política e a filosofia política clássica
nesse mesmo período e numa mesma pessoa, como foi o caso do Maquiável, Bodin, Hobbes – pelo
lado realista – e Montesquieu, Locke, Mill – pelo lado liberal.
Mas não é essa a idéia que viemos discutir aqui. A questão que vocês me pediram para falar
era um pouco sobre essa disciplina acadêmica que surgiu e se difundiu com grande velocidade,
sobretudo no mundo anglo-saxão, a partir de 1970. Susan Strange, cientista política e analista
internacional inglesa, que foi uma das fundadoras da Economia Política Internacional, disse uma
vez que a Economia Política Internacional não nasceu das idéias, nasceu dos fatos. Ela não atende a
um desenvolvimento, a uma História das idéias. Foi uma espécie de resposta aos fatos, uma resposta
aos desafios internacionais impostos nas décadas de 70 e 80, sobretudo na agenda da política
externa norte-americana. E ela tem razão, porque de fato foi assim que aconteceu. De fato, a
Economia Política Internacional surgiu respondendo aos acontecimentos e não se antecipando.
É possível identificar, no inicio dos anos 70, pelo menos quatro vertentes diferentes que
confluíram na origem dessa disciplina acadêmica chamada Economia Política Internacional.
Eu acho que, pra começar, a própria Susan Strange foi uma das primeiras a escrever, no ano
de 1970, um artigo onde o problema que ela tinha em mente, a questão que a desafiava, era a
mudança, segundo ela, que estava acontecendo no Sistema Internacional e a perda de importância
dos mais antigos atores clássicos do Sistema Internacional, isto é, os Estados, para começar. Susan
Strange, em 1970, estava pensando em uma tendêcia no Sistema Internacional de uma superação do
sistema interestatal, na direção do aparecimento de novas formas de articulação política que já não
tivessem os Estados como seu centro. E, por isso, ela disse, naquele momento, que era necessário
começar a prestar atenção na economia. Era necessário trazer a economia para dentro da análise do
Sistema Internacional.
Mais ou menos o mesmo que, no final dos anos 60, o Joseph Nye e o Robert Keohane
disseram, quando também começaram a falar do que eles chamaram de Interdependência
Complexa. Isto é, a idéia de que o Sistema Internacional está cada vez mais interdependente, os
Estados estao perdendo importância, a economia está crescendo em importância e ela está
derrubando as fronteiras. Esse era o clima dos anos 60, esse era o sentimento dominante dos anos
60 e esse era o desafio que aparecia no final dos anos 60.
No entanto, logo no início dos anos 70, a questão muda, a agenda muda. E a quesão nova
que vai aparecer já não é a questão do crescimento da interdependência, é a questão da crise do
sistema mais interdependente. E é sobre isso que vão escrever o Charles Kindelberger e o Robert
Gilpin em 1971, 72, 73, falando da crise do dólar, da crise americana, e, portanto, a idéia, ao
contrário do que a Susan Strange dizia, de que, olhando desde o campo da política, é necessário
trazer a economia para dentro da política internacional e, olhando desde o campo da economia, é
necessário trazer a teoria política para dentro da economia internacional. Isso porque Kindleberger e
Gilpin estavam preocupados em responder à crise de 1971, 72, 73, crise que começa pelo problema
do dólar, pelo fim do padrão dólar. E a preocupação que eles tinham era que essa crise estivesse
repetindo ou reproduzindo a crise de 1930. Então eles diziam que os Estados Unidos têm que evitar
uma reprodução do mesmo comportamento que levou à crise de 30 e à Segunda Guerra Mundial.
Gilpin e Kindelberger defenderão a tese, nessa terceira vertente, de que o mundo necessitava, a
economia política liberal precisava, de uma liderança. Necessitava que tivesse um país que liderasse
o mundo para poder estabilizar a economia e para que pudesse haver paz. Quer dizer, a explicação
de Kindleberger pra crise de 30 era que a crise de 30 aconteceu exatamente porque os EUA não
assumiram o lugar deixado pela Inglaterra. A Inglaterra perdeu a liderança e criou-se um vazio. E
esse vazio não foi ocupado pelos EUA. Essa é a razão, em ultima instância da crise de 30. E eles
diziam em 70: nós não podemos repetir a mesma coisa, não podemos ter uma repetição de uma
situação sem liderança mundial. Essa hipótese, essa tese, depois foi chamada de Teoria da
Estabilidade Hegemônica, ou seja, a idéia de que a economia liberal internacional supõe a
necessidade, ou exige a presença, de um Estado que se responsabilize pela moeda, pelo comércio,
pelo empréstimo em última instância quando hajam crises e pela defesa intransigente dos objetivos
internacionais de uma economia internacional.
Uma quarta vertente que há nesse início dos anos 70, eu diria que é a vertente representada
por Immanuel Wallerstein, que publicou em 1974 o seu livro sobre o “Modern World System”. A
idéia de que o sistema capitalista tinha que ser entendido como um todo, portanto os Estados
Nacionais também não tinham mais importância e a questão era saber como se deslocavam os
centros de hegemonia dentro desse sistema mundial global. Então, essa discussão do Wallerstein, é
uma discussão que depois andará na discussão gramsciana do debate sobre hegemonia, que chegará
a Giovanni Arrighi, Robert Cox, Stephan Gil e outros analistas internacionais.
Mas na verdade, como disse Susan Strange, entre essas quatro questões, entre essas quatro
perguntas, quem arbitrou, quem atuou como denominador comum, quem definiu a questão central
que foi definida para a Economia Política Internacional foram os fatos. E os fatos foram: pra
começar, na década de 70 começou aquilo que se chamou a crise da hegemonia norte-americana,
isto é, a crise do dólar, a derrota dos EUA no Vietnam, a crise energética com a subida dos preços
do petróleo, a crise econômica com a desaceleração do desenvolvimento econômico mundial em
1974, 75, 76, uma crise político-ideológica na Europa e nos EUA e, finalmente, uma crise
geopolítica com a invasão do Afeganistão pela União Soviética, a vitória da revolução sandinista na
Nicarágua e o papelão que os EUA fizeram no Irã por conta dos reféns que foram tomados presos
na embaixada americana em 1979. Então, esse quadro, esse conjunto de situações e de fatos,
criaram a sensação, a idéia – e de fato isso foi real – de que os EUA estavam vivendo uma crise,
uma perda de liderança. A isso se chamou crise da hegemonia, e praticamente todo o debate da
Economia Política Internacional na década de 70 foi em torno à natureza, ao diagnóstico, da crise
americana. De que se tratava essa crise americana? Era uma crise mundial, era uma crise
econômica, era uma crise só dos EUA, era uma crise político-ideológica, que crise era essa? E,
portanto, seria uma crise final, seria uma crise passageira, etc.
Pois bem, esse é o grande tema da Economia Política Internacional nos anos 70 e que nos
anos 80 será substituído por outro tema depois da retomada da restauração liberal conservadora, o
que acontece nos EUA e na Inglaterra a partir das eleições de Roland Reagan e Margaret Tatcher, e
que depois se estende à Europa com a eleição de Helmut Cole, e assim vai em efeito cadeia nos
paises centrais, e depois chega aos países periféricos. Começa aí a grande restauração do
pensamento liberal, a grande restauração da ideologia e das políticas liberais. Começa aí uma
mudança radical na forma de organização e funcionamento da economia capitalista em escala
internacional e, ao mesmo tempo, os EUA avançam na sua estratégia de enfrentamento com a
URSS, que foi chamada pelo Fred Halliday de Segunda Guerra Fria. Os EUA avançam na América
Central e começam uma grande revolução na sua estratégia militar, pelo lado econômico e pelo lado
militar. Os EUA, portanto, fazem uma recomposição da sua força, do seu poder, e fazem uma
espécie de retomada da sua hegemonia.
E esse é o tema que a Susan Strange vai tomar nos anos 80, criticando a teoria da crise da
hegemonia americana, dizendo: não existe uma crise da hegemonia americana, os senhores estão
muito preocupados, excessivamente preocupados, com a questão do poder relacional dos EUA, mas
não estão percebendo que os EUA têm um gigantesco poder estrutural. Isso é, os EUA controlam as
estruturas fundamentais da informação, das armas, da tecnologia, das finanças e com esse poder os
EUA condicionam os demais países a se comportarem como eles querem; mesmo quando eles não
têm um poder relacional explicito sobre esse país.
Foi nesse momento também que a professora Maria da Conceição Tavares escreveu o seu
artigo em 1984 sobre a retomada da hegemonia americana, que dará origem á nossa pesquisa, deste
grupo de Economia Política Internacional com o qual a gente trabalha – alguns estarão aqui, etc. – e
dos quais, como resultado do nosso trabalho, vários livros, entre os quais o último deles sobre o
poder americano. O primeiro foi o “Poder e Dinheiro” em 97, o segundo foi “Estados e Moedas no
Desenvolvimento das Nações”, o terceiro foi “Polarização Mundial e Crescimento” e o quarto foi
“O Poder Americano”.
Pois bem, em 1995, a Susan Strange escreveu um artigo quase final, pouco antes de morrer,
onde ela fazia um balanço, quase que um obituário, da Economia Política Internacional. Ela dizia
que, o fim da Guerra Fria por um lado, o fim do terceiro mundo por outro lado e a perda de
soberania dos Estados finalmente esvaziaram a temática da Economia Política Internacional. A
Economia Política Internacional perdeu a sua substância, perdeu seu objeto. E, além disso, ela foi
invadida, segundo a Susan Strange, pela economia neoclássica, pela Teoria dos Jogos e, portanto,
foi desvirtuada.
Eu diria que a Susan Strange, nesse artigo de 95, foi extremamente pessimista. O que estava
acontecendo ali na década de 90 era uma extraordinária vitória, uma apoteótica vitória, da Teoria da
Estabilidade Hegemônica, da teoria do Gilpin e da teoria do Kindelberger. Isto é, o mundo precisava
ter um hegemon pra ser estabilizado, a economia capitalista precisava de um hegemon pra funcionar
normalmente e a verdade é que, depois dos anos 80, da Guerra Fria, o mundo tinha um hegemon.
Talvez um hegemon como jamais tivesse tido antes. Então é uma vitória contundente, uma vitória
liberal contundente, uma vitória americana completamente arrasadora e uma vitória da utopia da
globalização. Talvez por isso mesmo, como sempre nesses momentos de vitória de hegemonia, você
tem uma volta da economia neoclássica, você tem uma volta do pensamento baseado nos
equilíbrios, nas curvas, enfim, aquilo que o Marx chamou uma vez de economia vulgar; na minha
opinião, não na do Marx.
Agora bem, talvez por isso a Susan Strange não tenha prestado tanta atenção, ou talvez até
porque já estava no final de sua vida, para o fato de que, a despeito da vitória liberal, a despeito do
surgimento de um hegemon e de um poder unipolar, o mundo, o sistema capitalista não se
desenvolveu de maneira convergente e, pelo contrário, ao contrário do que estava previsto – que o
sistema econômico teria uma estabilização – não houve essa estabilização. Houve uma polarização
crescente da riqueza, das nações e das classes. Na década de 90 houve uma sucessão de crises
financeiras, uma atrás da outra. E houve, depois, no inicio do novo século, do novo milênio, no
nosso período já mais recente, o fato de que a guerra volta a ocupar a centralidade do sistema
mundial. Voltando à Teoria da Estabilidade Hegemônica, do Kindelberger, do Gilpin – aliás, quem
deu esse apelido de Teoria da Estabilidade Hegemônica não foram eles, foram o Joseph Nye e o
Robert Keohane, que eram liberais, não eram realista como Kindelberger e Gilpin, mas ao criticar,
ao dialogar, com a teoria do Kindelberger e do Gilpin, eles deram esse apelido, que é um apelido
bem logrado e que colou: Teoria da Estabilidade Hegemônica, o mundo precisa de um hegemon
para estabilizar, estabilizar do ponto de vista econômico e estabilizar do ponto de vista da paz.
Então, o que aconteceu nos anos 90 foi que você olhava o crescimento mundial e dizia: não esta
havendo um crescimento homogêneo, não está havendo um crescimento convergente, não esta
acontecendo aquilo que estava previsto, pelo contrário, está havendo um crescimento da economia
capitalista cada vez mais assimétrico. Isto é, nesse período de 1980/90, da hegemonia americana,
quem cresceu constantemente, quase vinte anos seguidos, foram os EUA e, quase vinte anos
seguidos, a China; e, em menos tempo, a Índia e depois alguns outros países com taxas de
crescimento um pouco menores. Mas no resto do mundo, a Europa estagnou praticamente, o Japão
estagnou, e, portanto, o que se assistiu foi um aumento da assimetria no desenvolvimento capitalista
internacional, um aumento da polarização da riqueza, uma sucessão de crises financeiras e, além
disso, uma multiplicação das intervenções armadas norte-americanas e das guerras. Dava a
impressão, ou, pelo menos a primeira vista, que a Teoria Estabilidade Hegemônica havia sido
falsificada pela História, isto é, teria sido negada pela História, ainda que alguns especialistas digam
que esse seria o preço a pagar por um período de transição. Mas, até o momento, a impressão que
fica é que a projeção, a previsão, a dissipação, que a teoria havia feito não aconteceu.
Entretanto os novos acontecimentos, do nosso ponto de vista, geraram uma nova agenda de
questões – essa é a coisa que a Susan Strange não viu, no devido momento em que fez essa espécie
de obituário da Economia Política Internacional. Qual é essa agenda? Eu acho que é uma agenda
mais diversificada, é uma agenda mais em cima de problemas, não é uma teoria e, além disso, é
uma agenda que inclui questões e problemas da nossa ótica, isto é, da periferia do sistema. Eu diria
que, agora, a Economia Política Internacional tem uma agenda de questões postas pelo debate entre
as grandes potências e outras questões que são mais relevantes pra nós.
Do ponto de vista das grandes potências, eu acho que, primeiro, é o debate sobre
multipolaridade e unipolaridade. Segundo, que decorre desse debate, a questão de se afinal nós
estamos vivendo hoje no mundo uma situação de hegemonia ou de império. Terceiro, nessa situação
de unipolaridade e/ou império, quem tem o direito do exercício da decisão da decretação da guerra,
e em que condições? Quarta questão, a nova engenharia econômico-financeira mundial, que custos
trará para o mundo e que vantagens trará para o mundo, ou seja, está cada vez mais claro – na
academia menos, mas na imprensa especializada internacional esta claríssimo – que houve um
deslocamento do eixo, ou da estrutura, da engenharia econômico-financeira internacional, que,
depois da Segunda Guerra, se assentou sobre um tripé EUA/Alemanha/Japão. Esse tripé como que
foi substituído progressivamente pelos anos 80 e 90 por um bípede, que é EUA/China e,
eventualmente, os países que vivem em torno do crescimento chinês, especialmente a Índia. Mas a
Índia não chega ser propriamente um motor nessa máquina, na verdade esse motor tem dois pés e
entre essas duas economias circula, na verdade, o fluxo fundamental que está alimentando o resto
da economia mundial. O que isso significará, que perspectiva isso abre para as outras economias,
que problemas isso pode trazer para as outras economias, isso é uma questão que está em aberto.
Por último, eu diria que na agenda das economias centrais está a questão de se haverá ou não haverá
uma repolarização do sistema internacional.
Do nosso ponto de vista – da periferia do sistema –, eu diria que há uma agenda maior de
problemas. Primeiro, quais são as relações que existem, ou não existem, entre a expansão do poder
econômico imperial e a globalização financeira. Segundo grande problema, qual é a relação hoje, e
qual é a relação futura possível, entre a globalização financeira e o desenvolvimento das economias
nacionais capitalistas. Terceiro grande problema, qual é a relação que existe entre os ciclos e crises
dessa nova engenharia, desse novo sistema, e as lutas interestatais, do ponto de vista da contestação,
do questionamento, desse sistema. Eu acho que a pergunta central é se existirá ou não existirá uma
reação, uma resistência a esse processo de polarização, nacional e de classe, crescente no mundo. Se
essa reação existir, onde ela estará a nível nacional, ou no nível das classes, isto é, em outras
palavras, é possível ou não é possível construir uma outra hegemonia global, uma contra-
hegemonia, ou mesmo que seja uma contra-hegemonia regional, que não seja global. E, por último,
eu acho que fica uma questão aguda para nós em particular, qual é a possibilidade que ainda existe
nesse sistema de um país ter um crescimento nacional capitalista acelerado. Ou não, isso está
vetado?
A Susan Strange, apesar de não ter visto isso, pelo menos ela percebeu duas coisas que são
muito importantes. Primeiro, ela disse e concluiu em 1995 que a Economia Política Internacional,
na verdade, não é uma teoria, nem é uma disciplina acadêmica. Disse ela que a Economia Política
Internacional é apenas uma maneira de olhar, um esquema de análise, um método de diagnóstico, e
nisto eu estou absolutamente de acordo com ela. A segunda coisa que ela disse naquela época – só
em 1995, e é muito interessante perceber isso – ela disse que conseguia identificar no cenário
acadêmico, no cenário intelectual, do debate internacional uma posição nova, sugestiva, promissora,
mas ainda muito, digamos, atrasada. É um tipo de reflexão sobre o sistema internacional que parte
de Karl Polanyi e Fernand Braudel. É interessante porque Polanyi escreveu “A Grande
Transformação” em 1944, e Braudel começou a escrever “O Mediterrâneo” e publicá-lo a partir de
1950 e depois em 1960, e depois em 1970. E, de fato, a Susan Strange só vê naquele momento, em
1995 aquelas figuras Polanyi e Braudel. Bom, eu estou completamente de acordo com isso porque,
em grande medida, a nossa própria pesquisa usou muito e passa recorrentemente por Polanyi e
Braudel.
Nesse retomar o caminho da Economia Política Internacional pra enfrentar essa nova
agenda, eu acho que Polanyi e Braudel são fundamentais. Mas eu diria, se pudesse complementar a
professora Susan Strange, dizer que é necessário ir um pouco mais atrás e que os autores que nos
inspiram hoje, ou que deveriam nos inspirar hoje, são os autores que em ultima instância de fato
criaram a Economia Política Internacional. Isto é, os grandes teóricos do imperialismo do início do
século XX. Aí começou a Economia Política Internacional, do nosso ponto de vista, e de fato as
questões que esses senhores discutiram, seja, sobretudo, o Hobson em 1902, o Hilferding, o
Bukharin e, bom, evidentemente o Lênin participa, mas eu não diria que ele foi propriamente um
grande criador dessa teoria. No campo desse debate acho que o Lênin mais bem foi um organizador
desse debate. Mas as idéias seminais eu acho que estão nesses autores. Eu acho que essas idéias têm
que ser recuperadas porque elas têm a ver diretamente com a nova agenda. Isto é, as relações entre
os temas centrais da teoria do imperialismo, as relações entre os estados nacionais e o capital
financeiro, as relações entre o nacionalismo e o imperialismo, as relações entre imperialismo e
colonialismo, as relações entre imperialismo e livre comércio, as relações entre imperialismo,
guerra e paz, e, sobretudo, as relações expansivas.
Fundamental pra ser utilizado nessa démarche, isto é, a idéia de que existem territórios econômicos
que são supranacionais, que não são coloniais necessariamente, mas que, no entanto, são geridos em
última instância, ou atendem em última instância aos interesses de um poder que expande a sua
fronteira nacional. Eu acho que Bukharin acrescentou uma questão essencial. A idéia de que o
capitalismo mundial se move apontando numa dupla direção: a direção da internacionalização, por
um lado, e a direção, por outro lado, do aprofundamento radical dos interesses nacionais. Isto é, a
idéia de que o capitalismo é globalizante, de que o capitalismo aponta na direção da
internacionalização radical. Bukharin chegou a levantar a hipótese de um império mundial
financeiro. Mas, ao mesmo tempo, Bukharin dizia: tem uma coisa muito estanha nesse negócio, tem
um movimento contraditório. Isto é, o capital se internacionaliza, mas, ao mesmo tempo, se
nacionaliza. E esse é um movimento só, e esse é um movimento contraditório. E por isso eles são
competitivos com outros capitais que também se internacionalizam, também se nacionalizam e é
por essa razão que Bukharin, junto com o Lênin, se oporão à tese do Kautsky, ou seja, a
possibilidade – Kautsky não defendeu o ultra-imperialismo, Kautsky levantou a possibilidade – de
que o capitalismo pudesse ser gerido por uma espécie de um comitê, por uma espécie de uma
holding, das grandes corporações financeiras. Lênin e Bukharin disseram que isso não é possível,
exatamente porque é um movimento expansivo competitivo, portanto os Estados e capitais tendem
ao confronto e não há essa possibilidade de convivência. Schumpeter diz mais ou menos o mesmo
quando diz que o imperialismo é a disposição por parte de um Estado à expansão ilimitada e,
portanto, a um confronto com outros Estados que também têm essa tendência à expansão ilimitada.
Se nós partirmos dessa visão do imperialismo e chegarmos ao Polanyi, ele nos agrega pelo
menos três grandes coisas que me parecem fundamentais. Primeiro uma do longo prazo, uma visão
do ciclo longo da civilização liberal. Isto é, o Polanyi está tentando explicar a crise de 1930, assim
como Kindelberger e Gilpin, enfim assim como todos os autores que estavam em 1970 tentando
entender a crise de 1930. Ele levanta uma hipótese absolutamente original, que é a de que a crise de
1930 não tem a ver com questões estritamente econômicas, nem com questões da hegemonia, tem a
ver com um desenvolvimento contraditório da civilização liberal. A civilização liberal estaria
assentada sobre o equilíbrio de poder das grandes potências, estaria assentada sobre o sistema
padrão-ouro, estaria assentada sobre o mercado auto-regulado, estaria assentada sobre o Estado
liberal. Nesse sentido, Polanyi introduz duas variáveis internacionais e duas variáveis nacionais no
modelo dele e, além disso, introduz duas variáveis que são econômicas e duas variáveis que são
políticas. Nesse sentido, Polanyi é rigorosamente um praticante da Economia Política Internacional.
Ele faz uma análise de como se move o sistema liberal e como é que o sistema liberal entra em
contradição consigo mesmo, como ele gera essas contradições e essas contradições – as
contradições do mercado auto-regulado – levam a uma superação, a uma negação, a uma destruição
do sistema que é o que ele acha que aconteceu na crise de 30 e nas duas Guerras Mundiais. A outra
questão que me parece fundamental que faz Polanyi é exatamente a discussão sobre a origem do
mercado nacional, da economia nacional. E tem tudo a ver com essa agenda. O que o Polanyi dirá é
que o mercado nacional – ele foi o primeiro a dizer isso – o mercado nacional, a economia nacional,
não nasce da somatória de pequenas economias regionais. O mercado nacional tampouco não nasce
puramente de uma derivação do comércio de longa distância. O mercado nacional nasce de uma
intervenção consciente, precisa e voluntária do Estado. Isto é, como ele diz, na Europa Central o
comércio interno, o mercado nacional, foi criado pelo Estado. E, logo em seguida, Polanyi agregará
uma idéia fundamental, que é a relação que vai se estabelecendo progressivamente, cada vez mais
relevante, entre o Estado e a alta finança, o que, em outra linguagem, se chamaria de capital
financeiro. E, por fim, Polanyi dá pistas essenciais dentro do campo da Economia Política
Internacional para pensar a relação entre os países centrais e os países periféricos, via controle de
orçamento. O Polanyi tem uma descrição absolutamente magnífica sobre as características do
relacionamento no século XIX entre o capital financeiro das grandes potências e os Estados
periféricos, mostrando como era na renovação do credito, na renovação dos empréstimos, que se
estabelecia a disciplina e o controle dos governos periféricos, via orçamentos estáveis e moedas
saudáveis. Isso em 1880, 1890, não agora, mas, enfim, era exatamente a mesma relação. E isso é de
extraordinária fecundidade para uma reflexão sobre a situação contemporânea.
No caso do Braudel, eu diria que ele traz para a Economia Política Internacional, primeiro,
uma concepção do tempo que é absolutamente importante, renovadora, revolucionária, que é a idéia
da longa duração. Isto é, a possibilidade de um alargamento do tempo, uma possibilidade do estudo
de durações que ele chamava estruturais, que seriam aquelas durações que nos permitiriam
compreender as transformações de um sistema tão amplo, tão extenso, tão complexo quanto o
sistema-mundial moderno. Seja pelo lado do capitalismo, que era o lado dele – ele era um
historiador econômico – seja pelo lado do sistema político. Em segundo lugar, eu acho que o
Braudel introduz um conceito fundamental para a nossa discussão da Economia Política
Internacional, que é a distinção que ele faz entre economia de mercado e economia capitalista. Isto
é, Braudel diz que a economia moderna tem três níveis. Um é o da vida material, ou da economia de
subsistência. Um é o da economia de mercado. E um que é o do capitalismo. Essa distinção entre
capitalismo e economia de mercado me parece absolutamente decisiva para pensar a dinâmica do
sistema mundial. Isto é, Braudel diz que a economia de mercado é a economia das trocas, das trocas
previsíveis, é a economia do lucro normal, do lucro do botequim da esquina, do Manuel e do
Antonio. O capitalismo, diz ele, é um antimercado. E isso é uma novidade radical na discussão
sobre o capitalismo. Ele diz que o capitalismo não é o mercado, o capitalismo passa pelo mercado, o
capitalismo precisa do mercado, mas o capitalismo é a negação permanente do mercado. Ele diz que
o capitalismo é o mundo dos grandes predadores, o capitalismo é o mundo do lucro extraordinário,
o capitalismo é o espaço da monopolização, é a luta permanente para a monopolização de situações
que favoreçam um lucro que não é aquele lucro normal, digamos assim. Eu sei que pros
economistas essas são palavras um pouco escorregadias, mas digamos que o lucro normal é o lucro
do mercado e o que o Braudel fala é que o capitalismo não se faz no lucro do mercado, apesar de
que ele não é uma economia fora do mercado. Ele nasce do mercado, mas ele agride
permanentemente o mercado, ele cresce na medida em que ele nega o mercado. Isso é o oposto do
que pensam os institucionalistas, no sentido de que, para ele, o capitalismo é como se fosse uma
negação permanente das regras, das normas e das instituições, para produzir mais, para conquistar
uma situação de assimetria de informações – para usar uma palavra muito mais recente –
permanente. Então nesse sentido, para ele, a questão essencial é: como é que o capitalismo nasce;
como é que se dá essa relação de poder; como é que se estabelece essa relação entre o capital e o
poder, entre o mercado e o poder, entre o dinheiro e o poder; e como é que essa relação permite o
nascimento do capitalismo. Ele dirá que isso acontece em dois momentos fundamentais. Um lá pela
altura dos séculos XIII e XIV, entre os príncipes que criam a dívida pública e os banqueiros
externos, em geral, italianos. E acontecerá depois, por volta dos séculos XVI e XVII, quando se cria
o Estado nacional, o mercado nacional. Aí há uma mudança radical, uma mudança absolutamente
revolucionária. É o momento em que um Estado estabelece com seus capitais uma definição de
fronteiras e, dentro dessas fronteiras, tem uma dívida pública, um Banco Central, um sistema de
crédito, um sistema de tributação. E tudo isso é interno, é endógeno, é uma relação endógena. Uma
moeda nacional, uma dívida pública nacional, um sistema de empréstimos nacional. Não é mais
uma relação externa. Isso é a origem da economia nacional, um momento absolutamente decisivo
onde começa a modernidade, onde começa a explosão expansiva do sistema mundial moderno. É a
partir da formação da economia nacional, é a partir da formação desse conjunto, dessa máquina –
que é economia nacional, Estado nacional –, esse casamento é que dá a explosão expansiva q levará
a Inglaterra, uma pequena ilha, com alguns milhões de habitantes, à condição de dominadora, ou
controladora, do mundo.
Pois bem, nessa perspectiva de Braudel, depois, se enquadram os trabalhos de, enfim, não
vou dizer qualidade variável, mas são trabalhos muito heterogêneos. De qualquer maneira
certamente está nessa pista Immanuel Wallerstein. Wallerstein tem uma relação com Braudel na
década de 70. Eu acho o Braudel tem uma dívida com Wallerstein, pois quando Braudel escreveu o
terceiro volume da sua “História da Civilização Material do Capitalismo” ele estava fortemente
influenciado pelo Wallerstein. Aí ele desenvolve a idéia de economia-mundo, pólo da economia-
mundo, alternância no pólo da economia-mundo, enfim, são varias idéias que já estavam no
Wallerstein. Mas, na verdade, Wallerstein é um seguidor, é um discípulo, do Braudel. Depois,
Wallerstein escreve em 1974 o “Modern World-System”, que eu considero seu melhor trabalho de
longe. E, depois, Wallerstein deixa um pouco a coisa da História e escreverá uma infinidade de
artigos que nem sempre são totalmente consistentes entre si.
Depois de Wallerstein, quem deu um passo decisivo no aproveitamento dessas intuições de
Braudel foi, sem dúvida nenhuma, Giovanni Arrighi. Giovanni Arrighi eu acho que é a pessoa que,
de fato, dá um passo à frente. Ou seja, Giovanni Arrighi tentou combinar a visão de Braudel, que é
um historiador econômico, com uma visão mais política. Ele tenta ver a dinâmica do sistema
mundial como uma dinâmica de ciclos, ciclos de acumulação, ciclos de hegemonia, enfim, quem leu
conhece, eu não tenho condições de resumir. Mas a idéia do Arrighi é tentar decifrar a natureza da
crise que estava sendo vivida pelos EUA nos anos 70 e 80. Isto é, Arrighi segue na idéia de que os
EUA estão em crise e que estamos passando por um período de euforia financeira, mas a crise segue
existindo. Os dois seguem pensando assim, tanto Wallerstein, quanto Arrighi. Apenas que
Wallerstein considera que é uma crise do sistema moderno, que estaria terminando um sistema que
começou em 1400 1500, portanto, se estaria chegando ao fim de uma era e não se sabe o que virá
depois, uma espécie de um outro universo que estaria nascendo. E o Arrighi acha que seria uma
crise efetivamente americana, mas que não necessariamente significa o desaparecimento dos EUA,
ou a sua superação por alguma outra potência, algum outro país hegemônico. Os EUA podem entrar
em crise, se refazer e seguir. Em algum momento o Arrighi pensou na possibilidade de que os EUA
fossem substituídos por um país asiático. Sempre tinha a idéia do Japão, no fundo, depois veio a
idéia da China, mas isso não fica completamente claro.
Mas estes dois autores, o Arrighi em particular, são fundamentais para pensar a trajetória
pela qual nós mesmos vamos trilhar na nossa pesquisa, de que é exatamente a partir do momento
em que se dá essa convergência entre Estado e economia nacional – da qual fala o Braudel, da qual
fala o Polanyi, e sobre a qual trabalham os autores da teoria imperialista clássica – isto é, a idéia de
que desde a formação dos Estados e das economias nacionais se forma um pequeno núcleo das
grandes potências que não são mais do que 5 ou 10, e entre essas potências se estabelece um tipo de
competição de concorrência, de complementaridade, que é absolutamente decisivo para entender a
dinâmica do sistema mundial. Entre essas grandes potências se estabelece uma aliança especial
entre poder e capital financeiro e, ao mesmo tempo, entre elas existe uma relação de
complementaridade e de competição que é indispensável, do nosso ponto de vista, para a
acumulação do poder e do capital. E, no limite dessa competição, existe sempre a possibilidade e a
virtualidade de um confronto, de um enfrentamento, de uma guerra. Mas guerra pode não acontecer,
talvez até do ponto de vista estritamente econômico é melhor que não aconteça. A Guerra Fria
talvez seja, assim, a guerra por excelência virtuosa para o sistema. Uma guerra que gera uma
competição gigantesca e não ocorre. E essa guerra, de qualquer maneira, é uma espécie de horizonte
que orienta a relação entre os Estados, é o horizonte que orienta o calculo estratégico de todas as
grandes potências, que, no fundo, estão participando de um jogo que aponta, em última instância,
para a monopolização do poder, a monopolização radical do poder e o limite do controle de todas as
informações vantajosas, assimétricas, para a acumulação de poder; equivalente a uma
monopolização radical do capital, que seria o controle de todas as informações assimétricas
vantajosas para a produção e a acumulação constante de lucro extraordinário, ou de riqueza. Nesse
sentido, esse processo gerado pelo encontro entre Estado nacional e economia nacional na Europa –
em particular no Noroeste da Europa – e depois apenas, fora da Europa, no caso do Japão e dos
EUA, esse confronto, essa competição, apontam logicamente para uma idéia, uma possibilidade
limite, de um império mundial. Nisso o Bukharin tinha razão. O movimento não é que isso seja
possível, não é que se chega lá, mas a lógica do processo da acumulação, a lógica da monopolização
para a produção expandida de lucro extraordinário, mesmo que ela não tenha total sucesso, está
sempre apontando para a possibilidade limite da monopolização total. Aí seria o império global do
capital financeiro. Idem pelo lado militar, é como se a competição militar estivesse apontando
sempre, no limite, para uma monopolização completa dos instrumentos de poder. O problema dessa
monopolização é que, exatamente esse sistema necessita da competição para acumular capital.
Como já nos ensinou há tanto tempo o velho Marx, ele necessita da multiplicidade dos capitais
individuais, não basta o capital em geral. E a mesma coisa do ponto de vista de poder, a idéia de
uma guerra virtual é absolutamente indispensável para a acumulação do poder. Então, nesse sentido,
se houvesse uma monopolização completa do capital e se houvesse uma monopolização completa
do poder – do ponto de vista do que nós estamos expondo, na prolongação do pensamento do
Braudel e também do Weber de certa maneira – esse sistema desapareceria, entraria em estado de
entropia. Isto é, o sistema tende sempre para o império mundial e ele não pode admitir o império
mundial, porque se ele chegar à situação de império – seja financeira, seja militar – ele perde a
condição de seguir acumulando poder e riqueza pela competição, pela complementaridade e pela
guerra.
Então, por isso, quem lidera o sistema está permanentemente inventando novos inimigos.
Tem que inventar novos inimigos, é da essência do sistema inventar novos inimigos, o sistema não
vive sem novos inimigos. E o que é pior, para ser mais preciso, o líder do sistema não vive sem
novos inimigos, ele precisa de novos inimigos e é por essa razão que é, do nosso ponto de vista,
absolutamente impensável, também do ponto de vista lógico, que possa haver uma situação de
hegemonia plena, estável. Aqui está, digamos, do nosso ponto de vista, o erro da Teoria da
Estabilidade Hegemônica. A hegemonia, do nosso ponto de vista, é apenas um trânsito, uma
passagem, um momento, um momento raríssimo na História do sistema, quando nas relações entre
as grandes potências tem uma que consegue hegemonizar. Ela não consegue hegemonizar, não
porque ela seja questionada pelos outros, não porque ela seja ultrapassada pelos outros, ela não
consegue hegemonizar porque ela se ultrapassa a si mesmo permanentemente. É o hegemon que
destrói. Eu não vou agora, aqui, não tenho condições de discutir; acho que amanhã tem o negócio
do poder americano. Digamos, só pra levantar uma hipótese, ou seja, sobre a crise de 30 ou sobre a
crise de 70. Do nosso ponto de vista, digamos, a crise de 70 é muito menos o resultado de um
afrontamento dos EUA por parte da Alemanha, do Japão, competição, etc., essa hipótese que e
arquiconhecida. É muito mais o resultado anterior da política expansiva dos EUA. E não é por
maldade, não entram aqui juízos éticos. Rigorosamente eles não têm como parar. Os EUA não
podem parar de fazer guerra. os EUA não podem parar de ter inimigos. E, para terem inimigos, eles
não podem parar de criar, alimentar, engordar, inimigos. Eles fizeram isso com a Alemanha, fizeram
isso com o Japão, farão com a China, de certa maneira indireta alimentaram os russos durante muito
tempo também. Eu estou apenas radicalizando a hipótese para a gente perceber melhor o
argumento, isto é, isso aí precisaria de um detalhamento. Eu não estou querendo dizer que a crise de
70, de 73, dólar, Vietnam, etc., foi resultado de um sábio ou, sei lá quem era, o Kissinger, vamos por
aqui por ali, etc, pra crescer o nosso poder. Não. É como se fosse um movimento lógico do sistema,
a expansão do poder americano, que não pode parar, é que vai gerando as crises e, nesse sentido,
vocês podem considerar que a expansão do poder americano não foi quando ele invadiu o Vietnam,
a expansão do poder americano foi quando ele tomou dois derrotados que ele destruiu e os re-
engordou e tirou suas armas, a Alemanha e o Japão. Mas aí, depois, você diz: não, mas aí a
Alemanha passou a competir com os EUA, etc., então os EUA se viram em dificuldade, perderam
competitividade, etc. Foi a época em que falavam da crise da hegemonia americana, que é militar, é
tecnológica, os EUA estão perdendo no chip, no automóvel, etc. E há uma outra maneira de olhar.
Porque senão, não se entende a crise de 70. Estavam todos felizes, estavam todos crescendo, e, de
repente, deu crise. Crise por que? Porque exatamente o movimento expansivo do poder e da
riqueza, e não apenas dos mercados do Polanyi, tem uma dinâmica contraditória. Você gera, você
empurra, você puxa, e, ao mesmo tempo, você gera seu inimigo. Até porque você necessita dele. E
em algum momento necessitará destruí-lo. E depois o reconstruirá, ou não, sei lá, mas enfim, ou
inventará outro.
Como já uma vez escrevi, eu acho que essa guerra ao terrorismo é somente um intervalo, um
entreatos que os americanos inventaram, um pouco pra passar o tempo. O sistema está à espera de
outra coisa. O sistema não pode viver dessa guerra, quer dizer, do ponto de vista da lógica do
sistema, ela é quase ridícula. É impensável que um Estado do tamanho dos EUA esteja caçando
quatro meninos que jogaram uma bomba num metro em Londres, é impensável. Normalmente se
chamaria a polícia, mandaria resolver esse assunto. Não pode ter o presidente Bush organizando
uma estratégia mundial para ficar caçando menino que anda com uma bomba no bolso, ou nas
costas, e ficar olhando no metrô quem é que tem bolsinha, quem é que não tem bolsinha. Isso é um
absurdo. Eu já tinha escrito sobre isso, está no “O Poder Americano”, mas agora me tocou assistir
em Londres os atentados. Eu estava lá e estavam os oito do G8 reunidos e, para mim, foi um
momento em que não era mais teoria, não era mais dedução, era olhar e dizer: não, isso é uma
loucura. Já tinha saído que eram, no máximo, três meninos de 20 anos, ainda por cima ingleses. E o
Blair falando como se fosse o Winston Churchil, falando como se estivesse em cima do cavalo da
civilização, contra a barbárie. Mas como a barbárie? São quatro meninos de Leeds, alunos de vocês,
estudaram em colégios de vocês. Jogaram quatro bombinhas, mataram gente, não há duvida
nenhuma, não é agradável, nem nada disso, pelo contrario. Mas a desproporção é brutal. Por
exemplo, se você pensasse em termos militares. O arsenal nuclear dos EUA é hoje de, sei lá, dez,
vinte mil ogivas nucleares. Cada uma delas destrói o Brasil. Esse é o arsenal deles e você está
fazendo uma guerra contra uns meninos que botam uma bomba em metrô. Não há nenhuma
possibilidade que isso se sustente, é uma espécie de um entreatos, enquanto o sistema vai um pouco
reencontrando seus trilhos. É claro que estão sendo delineados agora de forma cada vez mais nítida,
com essa questão da Ásia, e China em particular, e os EUA.
Por exemplo, um outro lado do que parece uma loucura total. Por que é necessário os EUA,
com o poder militar que eles têm, investirem o que eles investem, o que eles gastam, em
investigação de tecnologia de poder para mais poder militar? Quer dizer, eles já têm hoje em termos
de capacidade militar, digamos, cem vezes o que vem em segundo. E em termos de gastos de
pesquisa, junta-se todos os que vêm depois e eles ainda têm cinco vezes mais. Aí você diz, qual é a
idéia? Você olhando isso numa perspectiva que, em geral, é aquela na qual nós nos colocamos, uma
perspectiva mais ética, uma perspectiva mais militante frente ao sistema mundial, há que denunciar,
isso é um belicismo, é um gasto inútil de dinheiro, etc. Isso que eu estou afirmando aqui não tema
ver com militância, não tem a ver com uma perspectiva ética. É uma tentativa de tentar
compreender qual é a lógica por detrás disso que, quando a gente está movido por sentimentos
éticos, nós costumamos chamar de loucura, insanidade.
Mas o que eu queria dizer a vocês, que é a questão essencial que às vezes as pessoas não
entendem é que, do ponto de vista da lógica do sistema, não é uma insanidade. Mas, do ponto de
vista da lógica desse sistema, se estivermos certos – e eu aqui estou apressando muito um
argumento, enfim está nos livros, etc., apenas para mostrar a continuidade com Braudel, com
Polanyi e com a teoria do imperialismo –, não há possibilidade jamais de que esse sistema tenha ou
viva um período prolongado de estabilidade econômica. Não existe isso. Essa é a negação do
sistema. Quer dizer, o sistema é, por definição, essencialmente instável e expansivo. Não é instável
no sentido de flutuações de posições de equilíbrio, não é o tempo neoclássico. Ele é expansivo
permanentemente, pelo lado do capital e pelo lado do poder. Porque também estão equivocados,
segundo o nosso ponto de vista modestamente, os que acham que é o capital que faz esse
movimento e que o poder é sempre uma espécie de mesquinho que fica querendo agarrar o capital;
e bota ele no quintal e deixa ele lá tipo um Pit Bull, segura esse capital, deixa ele preso, etc.
Exatamente não. Na tradição da teoria do imperialismo, na tradição da magnífica investigação
histórica do Braudel sobre o que foi o século XII, o que foi o século XIV, quer dizer, quando nasce
essa questão? Porque isso é que nos levou a ir lá atrás, reler o nascimento, o casamento, a
confluência, o encontro, do poder com o dinheiro. Como é que se deu? E foi aí, num dos primeiros
momentos, que começamos a compreender que era um casamento para sempre, é inseparável, é
conflitivo, é competitivo. De vez em quando um bate na cabeça do outro, o outro privatiza, etc.,
mas tudo é como se fosse um grande jogo de cena de um maravilhoso casamento que gerou o poder
da Europa, o milagre da Europa. Só que esse casamento se deu, num primeiro momento, numa
escala menor. Entre os príncipes, os donos das cidades, do poder; o papa e os pequenos banqueiros,
ou grandes banqueiros, em geral, nesse primeiro momento, século XIII, século XIV, italianos. Aí
começa toda essa problemática da relação deles, aí começa a dívida pública, aí começam as
moratórias. Eduardo creio que Terceiro da Inglaterra se endividou num banco de Sienna para
invadir País de Gales. Tomou o País de Gales. Ganhou e não pagou, declarou moratória. Declarou
moratória e quebrou os bancos de Sienna. Nesse momento é que Florença, a finança florentina, a
banca florentina, ascende a uma posição hegemônica na Itália. Essa é a questão; dívida pública,
calote, credibilidade, orçamento estável, moeda saudável; todas essas coisas eles começaram a
aprender. Eles, quando se casaram, o poder e a moeda, eles começaram a se conhecer muito cedo,
como é que saltava o muro cada um, etc., e já vão 700 anos que eles ficam olhando um ao outro.
Então, digamos assim numa perspectiva quase anedótica, essa démarche braudeliana, essa volta ao
tempo, essa volta ao tempo longo, ela além de permitir alargar o tempo sobre o qual você está
trabalhando. Também permite a você perceber coisas que às vezes ninguém sabe. Como é que vai
saber quanto dura
Eu quase diria que vocês podem pegar assim uma coisa bem mais anedótica, bem mais
circunstancial e completamente irrelevante: a relação de médicos com o Tesouro. E vocês verão que
tem médicos que ocupam o lugar do Tesouro e do Ministério da Fazenda há muito e muito tempo.
Não sei, por alguma razão. Tem umas que não importam, é tipo a cegonha e não sei o que, essas
associações você diz: bom, essa eu vou passar. Tem outras que você se debruça pra entender. Essa
dos médicos eu prefiro não me meter no assunto. O Hilferding era médico, o Norbert Elize era
médico, enfim, tem uma porção de médicos, não é uma coisa comum. Mas, enfim, voltemos à
História larga. A questão essencial, portanto, é essa lógica contraditória do sistema e essa
necessidade que ele tem para a acumulação das duas coisas – aqui e ali, poder e capital, poder e
riqueza – as duas se movem de maneira muito parecida. Isto é, em síntese, diria o velho Marx: o
valor não sobrevive se não se valorizar permanentemente. Eu diria: o poder não sobrevive se não se
potencializar permanentemente. E esse encontro permitiu que eles fizessem isso juntos e foram
felizes por muito tempo, até hoje. Então volta reiteradamente sempre essa questão: não, mas agora
acabou. Você veja que a própria Susan Strange, quando começou a escrever sobre a necessidade de
pensar na economia, foi porque ela achava que a economia tinha derrubado as fronteiras e, portanto,
precisávamos trazer a economia para dentro da política internacional. Porque senão, iríamos fazer
má teoria internacional. Porque ficaremos falando de Estado e sistema anárquico, isso já era. A
Susan Strange partiu disso. Você vê que na origem tem questões diferentes. Uma era o
deslumbramento com a interdependência crescente, um tema que voltou nos anos 90 e que deve
estar na escola pra quem está estudando. Por que voltou? Porque era 60 e veio a crise. Durante a
crise e depois, volta o tema nos anos 90 de novo: regimes, interdependência, interpenetração, muita
fronteira que cai, muita coisa desse tipo.
Mas também, o que há que dizer a bem da crise, é que elas em geral alargam a visão teórica
e histórica. E, portanto, nesse sentido, é positivo, olhando ex-post, que a Economia Política
Internacional tenha nascido como disciplina na crise. Digamos, o primeiro passo era de euforia e
depois pá! E aí toda a temática passa a ser a crise. E não é que você tenha mudado de clave, passou
para o outro time, vamos dizer era de direita e passou a ser de esquerda, era conservador e virei
crítico, não. Kindelberger é um liberal, keynesiano talvez, foi do Departamento de Estado, enfim,
não é por aí a questão. O Robert Cox, por exemplo, no campo da Economia Política Internacional
uma vez propôs uma dicotomia entre teorias que são problem-solver e teorias que são críticas. A
gente lê assim e diz. O Kindelberger, ao fazer o diagnóstico da crise de 30 e comparar com a de 70,
ele estava tomando uma postura de problem-solver – ele não estava fazendo uma postura crítica –
para enfrentar um problema que era de enorme magnitude. Era um problema disruptivo. Mesmo
numa perspectiva conservadora de querer resolver o problema para manter a ordem, ele teve que dar
uma recuada e alargar o seu tempo, a sua duração. Não bastava ficar olhando o que passou em
1971, 72, 73, a micro-história, não bastava focar olhando apenas os detalhes da história política,
muito menos ficar olhando a historinha da flutuação na bolsa, ou a historinha da economia de
televisão, subiu tanto, desceu tanto, etc., não, não basta. E é por isso que o Marx disse, com razão,
que nos momentos de estabilidade, nos momentos de hegemonia, a economia vulgar é sempre
vitoriosa. O que ele chamava de economia vulgar é simplesmente a economia que diminui, estreita,
a temporalidade, não é uma questão relevante a questão do tempo. Nesses momentos de alta
hegemonia o tempo é um pouco assim: hoje a bolsa flutuou 2%, trinta vezes mais que a última vez
em que flutuou 1,7%, que foi em 1973, ou não, hoje choveu x a última vez que foi assim foi no ano
tal, etc. É uma espécie de um tempo onde não há mudança, um tempo onde existem apenas
flutuações em torno de um determinado valor. E basta você comparar o dólar hoje com o dólar não
sei quando, quanto é que subiu o rio hoje com quanto ele subiu há 50 anos atrás, quanto é que ele
subiu há 30 anos, etc., e você tem a solução do seu problema. Quando você está com uma questão
mais aguda, quando você está com uma questão mais disruptiva, você não pode trabalhar com esse
tempo.
E é por essa razão que, do meu ponto de vista, a Susan Strange não percebia quando, em 95,
ela disse que havia terminado a Guerra Fria e que era interessante que havia um autor importante
para trabalhar na Economia Política Internacional: Braudel. Não, mas espera um pouquinho, o que
tem a ver o Braudel com essa História se o cara só trabalha desde o longo século XVI? Mas é
exatamente isso, porque você estava vivendo ali um momento que parecia de euforia da
globalização, mas de fato você já estava na bica de uma percepção de que o mundo não estava
andando tal como a Teoria da Estabilidade Hegemônica tinha previsto. E não tinha como você
explicar essa História.
Pois bem, nossa viagem braudeliana, enfim, para esse efeito de que estamos falando aqui,
nos fez redescobrir, repensar, olhando, pequenas divergências com Arrighi, com Wallerstein, com a
teoria da hegemonia, não hegemonia, guerras hegemônicas, etc. Essas coisas a gente começou a
perceber que não eram exatamente assim que se davam, porque agente adotou a mesma perspectiva:
700 anos de historia, vamos ver como é que é. E aí você vai vendo. Então alguém diz que os EUA
vão ser superados como a Holanda foi superada. Aí você vai e estuda e vê que a Holanda não foi
superada. A Holanda se fundiu com a Inglaterra, é uma coisa diferente. Em 1688, na famosa
Revolução Gloriosa que os ingleses falam, na verdade foi uma famosa invasão gloriosa. Os
holandeses invadiram e ganharam. E os ingleses, evidentemente, faz parte da sua arrogância, dizem:
não, mas foi a nossa elite que pediu que eles invadissem. Mentira, a invasão já estava pronta antes e
foram derrotados os ingleses, pronto. E há uma fusão, uma fusão financeira, uma fusão das grandes
companhias, e aí os ingleses criam o seu Banco Central. Mas por que eles criaram seu Banco
Central aí? Então você às vezes cria uma idéia errada, você vai supor que agora os EUA têm que ser
superados por uma guerra hegemônica, por alguém que derrube os EUA, mas a lógica não é
exatamente essa. Então por isso o recuo para o longo prazo, para pensar dimensões que são a
economia e a política no seu mover de longo prazo.
Por isso também, e isso talvez interesse nessa discussão, a preocupação da Susan Strange
quando diz que as nossas fortalezas estão sendo tomadas pelos neoclássicos, e que, portanto, a
Economia Política que nós propúnhamos está indo para o balaio. Ela está querendo dizer que
quando você fala em Economia Política Internacional não é uma questão de justapor economia com
política. Essa é uma coisa que a gente sempre viveu nesses institutos multidisciplinares. Precisamos
ver economia política, então chama um professor de ciência política e chama um professor de
economia. Aí vem o professor de economia e fala de, sei lá o que, Marshall, Walras. Aí chama o
professor de política e digamos que o cara seja, sei lá, um marxista ferrenho. Mas como é que junta
alhos com bugalhos? Ah não, mas política e economia têm que estar juntos, a gente tem que analisar
juntos. Mas como que vai analisar juntos? Não é um problema “A Política”, não existe tal coisa “A
Política”, “A Economia”, não existe tampouco ciência econômica. Jamais vai haver uma vitória no
campo da economia entre o debate, pra quem conhece isso, sei lá, entre keynesianos da terceira
geração de Harvard, com keynesianos não sei quantos, com pré-keynesianos, com a mãe Joana, etc.,
não há. Eu vinha mesmo comentando com os meninos no carro, agora mesmo eu estiva na
Faculdade de Economia e Política em Cambridge, a Faculdade do Keynes, e não tem Keynes. Só
tem economia matemática, de ponta a cabo. E quem não for desse troço vai para a rua. É bem mais
radical do que aqui, aliás, do ponto de vista da intolerância com a diversidade. Aí você diz assim:
mas espera um pouquinho, e o cara que era aqui o bam-bam-bam da casa? Nada. Aliás, nem
economista propriamente. Porque você está em pleno período que essa senhora está escrevendo, que
é uma vitória e é uma vitória de poder, pronto. Tomaram a direção de Cambridge um grupo de
pessoas que são matemáticos, economistas matemáticos, e pronto e acabou. Não é porque a verdade
da economia matemática ganhou sobre o Keynes, não tem isso. Você tem movimentos, são relações,
sempre envolve uma espécie de algum tipo de relação de poder.
Nesse sentido eu concluiria as minhas palavras aqui dizendo a vocês, agora dando uma
aterrisagem e uma pequena apresentação dos meus amigos que estarão aqui amanhã e depois de
amanhã, que compõem um grupo no qual convivemos e pesquisamos há muitos anos juntos, não
sempre o mesmo e nunca de maneira muito excessivamente organizada. Mas é um grupo que, desde
os anos 80, esteve em vários lugares do mundo estudando isso, as mudanças mundiais, as
transformações. Digamos, nós não somos todos economistas, não somos todos keynesianos, não
somos todos nada, entende? Eu diria que nós nascemos de três problemáticas, ou três questões, nas
quais nós de alguma forma freqüentamos. Uma questão era a questão do desenvolvimento no inicio
dos anos 80. Isto é, parte de nós participou do debate dos anos 60 e 70 sobre desenvolvimento, do
qual o professor Wallerstein participou, a professora Maria da Conceição Tavares participava, no
Chile, fora do Chile, em vários lugares, e que depois ficou em desuso durante a hegemonia do
pensamento mais, enfim, sei lá, neoclássico liberal. Isso é uma vertente e tem outra vertente, isto é,
quatro de nós, Franklin Serrano e Carlos Medeiros por exemplo, que seguem trabalhando tentando
avançar o debate sobre desenvolvimento capitalista em países como o nosso, rejeitando
integralmente a idéia de que não seja capitalista e, ao mesmo tempo, introduzindo a questão de
poder nas relações de todo tipo econômicas.
Nós temos uma segunda problemática, de onde a gente vem, que foi exatamente a discussão
sobre a crise da hegemonia, sobre a qual a própria professora Conceição Tavares escreveu em 1984
o livro “A Retomada da Hegemonia Norte-Americana”. Então esse era o debate dos realistas nesse
campo. A Conceição estava debatendo com Kindelberger. A turma mais economista do livro está
debatendo com vários competidores no campo da discussão do desenvolvimento nos anos 80 e 90.
E uma terceira problemática de onde nós viemos é, aí eu mais bem particularmente, a
discussão no inicio dos anos 80 – foi a tese que escrevi naquela época, aliás, aqui na usp – sobre as
relações entre as transformações internacionais em curso naquele momento e a crise do Estado. Isso
em 1983, 84. E foi nesse momento, ao tentar discutir a crise do Estado brasileiro no início dos anos
80 – muito antes, portanto; só digo isso não pra ser percussor, que eu não tenho nenhuma vontade
de ser, mas para me diferenciar um pouco; do pessoal que descobriu a crise do Estado quando
começou a ler autores neoliberais, eu não cheguei por esse caminho ao diagnóstico da crise do
Estado desenvolvimentista – que eu, para pensar a crise do Estado, para pensar o movimento
internacional e seu impacto, me encontrei, numa curva da vida, com o Braudel. Estava saindo o
terceiro volume do livro dele e aí veio uma questão da longa duração. Então essa questão do tempo
longo, das longas durações estruturais, da questão estrutura-conjuntura, internacional e nacional,
etc., foi um pouco a terceira vertente.
Depois, teoricamente, eu diria que o nosso desenvolvimento tem uma filiação ricardiana-
sraffiana centrada nas relações de poder, na questão da demanda efetiva, nas questões distributivas.
E a turma que discutiu a coisa da hegemonia tem uma vertente, nessa coisa financeira, a
globalização financeira, com forte influencia keynesiana e todos nós temos um passado comum em
uma deferência por Marx e pela teoria do imperialismo. E eu muito pelo lado da questão da
economia-mundo, da questão do Braudel e depois do Arrighi, etc. Então nós não somos uma escola,
não somos uma teoria. Como diria a velha Susan Strange, eu acho que somos uma maneira de olhar.
E, nessa maneira de olhar, eu termino dizendo quatro questões que eu acho que são essenciais e que
temos em comum – entre o sraffiano, o keynesianso, o ricardiano, etc. – na nossa maneira de olhar.
Eu diria que a primeira delas é a importância absolutamente decisiva, central, do poder. Em
todas as relações é uma questão essencial. Não há relações econômicas, de consumo, de produção,
do que quiser, que não envolvam relação de poder. E é essencial, na maneira de olhar, olhar como
está operando o poder. Mas, para nós, e isso temos todos em comum, o poder não é um estoque,
como vocês já podem ter visto da parte anterior que eu estava falando. O poder não é um estoque,
não é uma coisa que está dada, uma quantidade dada de capacidade de imposição da minha vontade
a outras, esse tipo de definição clássica de inspiração às vezes um pouco furada, mas enfim, da
definição do Weber. Não, o poder é expansivo, é permanentemente expansivo. Não existe poder em
estado estático, ele pode estar em degeneração, em desintegração, mas ele está sempre em
movimento. Além disso, ele é sempre, por definição, e por isso mesmo, assimétrico, hierárquico,
conflitivo. Não existe soma de poder absolutamente positiva, não tem. E no campo em que nós
trabalhamos, não existe poder em abstrato, o poder está encarnado. E no campo em que nós
trabalhamos, basicamente, ele está encarnado em dois grandes gigantescos predadores, como diria o
Braudel: as grandes corporações capitalistas e as grandes potências. E não é o Estado – essa
categoria terrível de definições de economia política, a própria do Gilpin: o que é Economia Política
Internacional? É a que discute a relação entre Estado e mercado. O que é Estado, o que é mercado?
Não, sempre em todo lugar, tem Estado e tem mercado. Bem, mas e daí? –. Não é essa a idéia.
Antes do Estado, do nosso ponto de vista, está o problema do poder. O capital é uma relação de
poder. E todas as relações têm essa dimensão que é essencial para compreender, porque ela te leva
ao conflito ela te leva à idéia de instabilidade e ela te explica, inclusive pela natureza expansiva do
poder, porque não dá para sonhar com a hipótese de uma espécie de um ? Não tem isso.
A segunda questão que decorre, é a questão da nossa visão comum do tempo, da duração, do
sistema. Quer dizer, a nossa visão do tempo não é uma visão pendular, não é uma visão newtoniana,
é uma duração aberta, é uma duração que é construída por um movimento contraditório, expansivo,
e, ao mesmo tempo, vivemos todos, ou pelo menos quase todos, a grande angústia de acreditarmos
que o tempo é aberto, é um universo em expansão, mas é conflitivo, é contraditório. Porém temos
enorme dificuldade em aceitar ou acreditar que ele marche numa direção teleológica, seja a direção
dos sonhos dos liberais, seja a direção dos sonhos dos marxistas. Mas, ao mesmo tempo, não
toleramos a idéia de que a História se submeta a uma lógica do tipo Amèlie Poulain, pra quem viu o
filme da Amèlie Poulain. Eu sei que é de bom tom sempre nas nossas faculdades rejeitar
terminantemente qualquer coisa que cheire a teoria da conspiração, mas toda vez que eu saio da
faculdade, eu tenho absoluta certeza de que a política não vive sem teoria da conspiração. Seria
ridículo, seria um brinquedo, e gente grande não brinca, sobretudo no mundo do poder e da riqueza,
não existe isso. Essa coisa de Amèlie Poulain, que deu um chutinho pra cá e a bolinha caiu lá e não
sei quantos, ah apareceu não sei quantos e uh apareceu uma revista, etc., não tem, não existe essa
história. Confesso que é uma posição extremamente angustiante para todos nós, quer dizer a idéia
de você trabalhar no longo prazo, de você ter certeza de que existe um movimento tendencial na
História, é possível identificar; não é uma coisa wallersteiniana que é uma espécie de um sistema
que não se move e que quando se mover é pra saltar pra fora e acabou, não é isso; mas, ao mesmo
tempo, não temos o apoio que é às vezes tão gratificante e ajuda tanto pensar que, bom, eu não sei
exatamente como é que se chega lá, mas eu sei onde é que se chega. A gente não sabe onde é que se
chega.
Terceira questão que é essencial, que nós temos em comum, é óbvio que decorre da visão do
poder, é a relação do Estado com o desenvolvimento capitalista. Neste ponto eu diria q nossa
divergência radical com a economia, com o economics, e também, dado que ela é essa questão, com
boa parte da teoria política internacional inspirada nos modelos econométricos e coisas desse tipo,
nossa visão, de novo, que nem no caso do poder, não é de um Estado que é exógeno à economia –
digamos aquele estado marshalliano, aquele estado neoclássico, que é um pouco o que corrige
falhas de mercado, segundo uma sabedoria que a gente nunca sabe como é que é, quer dizer, pra
você definir que há uma falha de mercado ainda tem que ter um sábio que chegue de fora e corrija o
mercado direitinho, sabe onde troca o parafuso e o mercado volta a funcionar. Nossa visão, vamos
dizer assim, é uma visão endógena e não uma visão exógena da economia. Digamos assim, mesmo
na acumulação do poder de da riqueza, é como se o poder acumulasse poder no circuito da riqueza e
a riqueza acumulasse riqueza no circuito do poder. Mas não é como se fosse uma coisa externa é em
um movimento como que interno. O terrível é quando você separa essas coisas numa visão seja
idealista, ou utópica, porque você começa a ver perversões por todo lado, quando na verdade são
troços essenciais do capitalismo. Durante toda a década de 80, por exemplo, falou-se da famosa
teoria do rent seeking, que são as rendas que se multiplicavam, ou se adquiriam, ou se
conquistavam, pelo uso das influências junto ao poder. Isso teve uma influência gigantesca na
sustentação das teses de privatização, acabar com o Estado, acabar com os rent seekings, etc. Eu
acho até uma, vamos dizer que seria uma tese simpática se viesse de um anarquista, mas me parece
uma tese absolutamente oportunista e safada quando vem daqueles que sabem perfeitamente que o
capitalismo é absolutamente impensável sem rent seeking. Só que não se chama dessa maneira. É
assim que ele se move. Você pode não gostar, você pode querer reformar o capitalismo, eliminar o
capitalismo, inventar uma outra coisa, mas se você quer entender como funciona o sistema das
relações entre poder e capital, não há como negar, é assim mesmo. Você pode ter discussão de que
esses aqui têm passagem e os outros não têm passagem, mas isso é o que se chama informação
assimétrica, poder assimétrico. Isso significa a possibilidade de você controlar situações. Esses são
os que o Braudel já chamou, de uma maneira para ajudar um pouco pejorativa, os grandes
predadores, sempre os vitoriosos.
Por último, eu diria que tem outra coisa que temos em comum entre nós, dentro das fontes.
São quatro fontes, pelo menos que eu vejo, é a nossa visão da relação entre o nacional e o
internacional; poder; tempo; Estado e capitalismo, quer dizer poder político organizado na forma de
Estado como desenvolvimento do capitalismo, é isso que eu estou querendo dizer. Em quarto,
portanto, está nossa visão da relação entre o nacional e o internacional. Na nossa visão esta não é
uma relação por etapas – um pouco a la Toni Negri, assim vamos passando a fase, o purgatório dos
Estados nacionais e vamos marchando em direção ao império global, cosmopolita, que é uma
versão enfim, nova, sei lá, da velha tese kantiana – não, ao contrario. Nossa visão nesse sentido é
muito mais próxima de Bukharin e, de certa forma, do próprio Hobson, portanto para citar um
marxista e um não marxista. É uma relação em que nação e “inter-nação” são como dimensões co-
constitutivas de um sistema em expansão, onde, como já disse e não preciso repetir, a competição
entre as nações, a guerra entre as nações, a competição entre os capitais nacionais é absolutamente
fundamental inclusive para esse processo tão festejado da globalização. Entendam, não estou
desqualificando, estou tentando entender, numa visão, como que esse processo da globalização
levaria a um momento em que os Estados nacionais seriam como que, enfim, ultrapassados por uma
nova realidade, uma nova situação global, seja do ponto de vista da acumulação de capital, seja do
ponto de vista da luta de classe, etc. Do nosso ponto de vista, não. Porque exatamente se esse
sistema vier a acontecer, esse sistema supra-estatal, esse sistema internacional, vier a acontecer, esse
sistema acabou. O que alimenta o sistema é exatamente essa relação contraditória entre os Estados
nacionais, sobretudo quando estamos falando de Estados nacionais, aqui pelo menos, não há tempo
para outra coisa, são as grandes potências e algumas outras. Não tem Estado-nacional, sei lá
Senegal, Paraguai, o jogo é das grandes potências e eventualmente da sua periferia mais imediata. É
esse jogo que empurra. Então pode-se dizer assim: não, mas a globalização avançou muitíssimo.
Sim, mas isso não exclui o outro, porque, do nosso ponto de vista, a globalização em qualquer
patamar em que ela esteja, ela sempre será – e isso rigorosamente é o antônimo do Negri – sempre
será a projeção de um poder nacional, de uma capacidade nacional de transferir para terceiros, ou
para todos, o seu sistema de tributação, o seu sistema de crédito e a sua moeda. É nesse ponto e
nesse sentido que a gente chega, por exemplo, à idéia de territórios econômicos do Hilferding. O
território econômico não é um território colonial necessariamente, colônia é outra coisa, é um
território onde você delimita um cercado, você se limita a uma fronteira, você estabelece uma
situação de monopólio dentro daquele território. E o que a historia demonstra é que você consegue
levar a melhor das perspectivas do teu território, a estabelecer a melhor das barreiras ao teu
território, não é somente, e não necessariamente, quando você cerca ele com bases militares, ou
navios, é quando você o submete à sua moeda. Esse é o grande ponto, é essa relação da moeda com
o capital financeiro e com os Estados centrais; da moeda com o capital financeiro e com os Estados
periféricos, aí se estabelece uma forma de manejo das situações de exercício do poder, que Susan
Strange chamaria de estrutural. E, portanto, olhando por esta janela aberta pelo conceito do
Hilferding, você poderia redizer o que estivemos dizendo afirmando que todos os grandes Estados
nacionais, e em particular aqueles que viessem a ter alguma capacidade em termos de capital
financeiro, estarão sempre lutando para expandir o seu território econômico, que é essa fronteira
monetária financeira. E por isso, se vocês olham por essa janela, poderiam olhar por várias outras,
mas se vocês olham por essa janela, vocês poderão perceber, poderão entender, várias coisas.
Primeiro a fragilidade japonesa na crise de 90, quando o Japão tentou criar uma zona
monetária sua na região e os EUA vetaram. E de todos os países que, frente à pressão americana,
abrem seu sistema monetário e financeiro e, portanto, são submetidos à moeda dominante. Aí se
trava uma batalha decisiva pelo poder mundial. Se vocês olharem a História dos povos, das nações e
das guerras, vocês prestem atenção sempre à hora em que algum povo resolveu começar a impor a
sua moeda numa determinada região onde havia outra moeda, e vocês podem ter certeza que está
chegando a hora do enfrentamento, como a Alemanha no início do século XX. Quando você avança,
o poder dominante tem muito mais complacência com que você tenha progresso tecnológico, com
que você tenha políticas industriais nacionalistas – isso o Japão fez, todo mundo faz, todo atrasado
sempre faz piruetas tecnológicas bem sucedidas –, a hora é quando você esgotou. Como é que você
sai do cerco em que você está? Seja hoje a Alemanha, seja o Japão, pra tomar a segunda e a terceira
economias do mundo. Como é que você sai da semi-estagnação que eles estão?
Do meu ponto de vista, do ponto de vista que expus aqui, para mostrar um exemplo
concreto, para não parecer apenas uma coisa muito metafisica o que eu estive falando, acho que só
sairão quando, efetivamente, tenham condições, capacidade, vontade política de reassumir seu
projeto de expansão nacional colmo potência. Acho que a Alemanha já esta discretamente
assumindo. O Japão terá mais dificuldade, pela presença da China, enfim, aí entram questões
geopolíticas complicadas. É essa a idéia, quando é que você permite que se dê essa multiplicação?
Mas essa multiplicação passa pelo capital financeiro, essa multiplicação passa por moeda. A partir
do momento que você começar a traçar cercado, brevemente vocês verão que a disputa na Ásia
começará a ser cada vez mais em torno disso. A China já deu passos na direção de propor integração
monetária, de fazer um sistema integrado, de juntar pelos Bancos Centrais e eles começarem a
operar com uma moeda da região deles. É a luta pela hegemonia da Ásia que vai ser pesada e é a
que está mais posta aí. A outra é na Europa, mais discreta, mais conhecida. Pois bem, essa é a quarta
ponte, ou coisa que nos une, que é a questão da nossa visão entre o nacional e o internacional dentro
do sistema mundial. para bem, ou pra mal, do ponto de vista da teoria, do ponto de vista da
militância globalitária, do nosso ponto de vista, não há nenhuma possibilidade que a gente venha a
ter uma globalidade de face mais humana, ou coisa desse tipo. Não faz parte do sistema, não é do
sistema, entendendo por face mais humana não que tenha varias coisas distributivas, não está no
momento. Mas, de qualquer até maneira, poderia ter, que você pudesse superar esse conflito básico
que faz com que os EUA tenham esse comportamento tão horroroso de chegar na hora em que está
todo mundo pronto pra assinar um documento das Nações Unidas que ninguém acredita que sirva
para nada e eles dizem: não, não me comprometo com esse desenvolvimento. Aí, depois de meses
de New Orleans, tsunamis, aí dizem assim: não. Mas assina aqui um troço de natureza? Não. E o
meio ambiente? Não. E a questão nuclear? Não. E o Tribunal Internacional? Não. Obrigado.

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