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Interdisciplinary Scientific Journal.

ISSN: 2358-8411
Nº 5, volume 3, article nº 6, October/December 2016
D.O.I: http://dx.doi.org/10.17115/2358-8411/v3n5a6
ANAIS VI SEMINÁRIO E II CONGRESSO DIREITO E
MEDICINA – MISTANÁSIA: MORTE MISERÁVEL

VALORATION: an existential study of human becoming

VALORAÇÃO: um estudo existencial sobre o devir humano

Laura Neves Soares de Freitas Oliveira1


Pós-graduanda em Psicologia Existencial e Gestalt-terapia

Ieda Tinoco Boechat2


Pós-graduada em Psicologia Humanista-Existencial. Doutoranda e Mestra do Programa de
Pós-Graduação em Cognição e Linguagem

Abstract: The article thematises man's choice on himself through the valoration
process. The purpose of this article is to understand the influence of society and
culture in the process of choosing and constitution of the personality of a man. Thus,
the work questions: how can a person make a choice about herself and define who
she is/wants to be, considering the influence of the sociocultural context on the
constitution of her personality? To answer this question, the process of valuation, the
authentic and inauthentic way of being, the intentionality of consciousness and the
participation of society/culture in the choice of being about oneself are studied. Thus,
through a bibliographical research, based on the work of authors such as Sartre
(2013) and Tillich (2001), it was concluded that social relations and cultural
influences expressively participate in the constitution of personality, however, culture
and society do not need to determine the man.

Keywords: choices; self-image; the process of becoming; authenticity.

Resumo: O artigo tematiza a escolha do homem sobre si mesmo através do


processo de valoração. O objetivo deste artigo é compreender a influência da
sociedade e da cultura nesse processo de escolha e constituição da personalidade
do homem. Sendo assim, o trabalho questiona: de que modo uma pessoa pode
fazer a escolha sobre si mesma e definir quem ela é/quer ser, considerando a
influência do contexto sociocultural sobre a constituição de sua personalidade? Para
responder a esta questão, estudam-se o processo de valoração, o modo de ser
autêntico e inautêntico, a intencionalidade da consciência e a participação da

1
ISECENSA, Psicologia, Campos dos Goytacazes, Brasil, e-mail: neveslaur@gmail.com
2
Uenf, Centro de Ciências do Homem, Programa de Pós-graduação em Cognição e Linguagem,
Campos dos Goytacazes, Brasil, e-mail: iedatboechat@hotmail.com

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sociedade/cultura na escolha do ser sobre si mesmo. Assim, por meio de pesquisa


bibliográfica, baseada na obra de autores como Sartre (2013) e Tillich (2001),
concluiu-se que as relações sociais e as influências culturais participam
expressivamente da constituição da personalidade, no entanto, cultura e sociedade
não precisam determinar o homem.

Palavras-chave: escolhas; autoimagem; o processo de vir-a-ser; autenticidade.

INTRODUÇÃO

O presente artigo toma por tema o devir humano, a escolha do ser sobre si
mesmo, que é feita a partir do processo de valoração. Seu objetivo é compreender a
influência dos aspectos socioculturais no modo de o ser humano se colocar no
mundo, na perspectiva existencial, que considera que o homem se constitui através
de suas escolhas que formam seu eu, sua personalidade, que tem uma estrutura
ontológica, portanto, não rígida nem cabalmente definida.
Eis, então, a questão a que este trabalho pretende responder: de que modo
uma pessoa pode fazer a escolha sobre si mesma e definir quem ela é/quer ser
apesar da influência das relações sociais e vivências culturais sobre a constituição
de sua personalidade? Para respondê-la, serão discutidas, ainda, temáticas que
fazem menção ao processo de valoração, à autenticidade e inautenticidade, à
intencionalidade da consciência e à participação da sociedade/cultura na escolha do
ser sobre si mesmo.
Desde o nascimento, o ser humano está exposto às vivências diversas e às
novas experiências, vivendo em uma sociedade em que é a todo momento
bombardeado de informações e de novidades. A pessoa pode estar, então, sempre
se questionando sobre o que é realmente importante não só para si e para a
sociedade, mas nem sempre isso acontece. A relevância deste estudo está em
trazer à reflexão a possibilidade que a pessoa humana tem de, numa postura ativa,
dotada de uma consciência reflexiva, assumir seu modo de ser-no-mundo de forma
autêntica e responsável, ou agir passivamente, ao escolher não atuar sobre e a
partir do que a influencia e permanecer irreflexivamente na inautenticidade.
A metodologia utilizada para estudo é a pesquisa bibliográfica, apoiada na obra
de autores como Paul Tillich (2001) e Jean-Paul Sartre (2013).

1. O processo de valoração e a constituição do self

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O existencialismo tem como lema a afirmação: “[...] a existência precede a


essência [...]” (SARTRE, 2013, p. 23). Tal afirmação enfatiza a liberdade do homem
para viver e, através de suas experiências do dia a dia se constituir, formando seu
eu. Afinal, em sua existência o homem pode mudar a todo momento, criar-se e
recriar-se, num contínuo vir-a-ser, pois em seu existir o homem faz seu “destino”.
Segundo Erthal (2010), Heidegger utiliza o termo alemão Daisen (o ser-aí) para
caracterizar a existência do ser. O ser-aí diz respeito a estar-lançado-no-mundo.
O aí caracteriza a abertura para o mundo, para as vivências, para as escolhas, para
a percepção e posicionamento do homem diante daquilo que lhe é apresentado.
Ao ser lançado no mundo, o homem assume a responsabilidade por si mesmo,
pela sua vida e faz escolhas acerca daquilo que lhe é apresentado e do que julga
necessário para sua existência. Escolhe-se a partir da valoração que dá às
situações que experiencia e pelo modo como avalia atitudes, comportamentos e
vivências.
Se “[...] não existe determinismo, o homem é livre, o homem é
liberdade. [...]” (SARTRE, 2013, p. 33); compreende-se, então, que o ser
se faz a todo momento livre de valores preestabelecidos. Segundo
Forghieri (2009), por mais que ele busque conhecer a realidade, terá de
lidar com a imprevisibilidade e a ausência de certezas e garantias
quanto a concretizar algo exatamente como planejado.

É tudo isto que confere à decisão da escolha o seu caráter de


liberdade e de responsabilidade, pois se o ser humano soubesse
tudo com certeza, antes de se decidir, não estaria sendo livre, mas
determinado pela objetividade de seus conhecimentos, que lhe
indicariam uma única escolha: a verdadeira, ou a mais acertada
(FORGHIERI, 2009, p. 48).

Paul Tillich (1976) diz que é preciso coragem para ser, afinal, ser é
assumir-se existente, é assumir-se estar lançado às possibilidades que
se apresentam em que se faz necessário escolher a todo momento, e a
cada escolha feita assumir, ainda, a responsabilidade diante das
consequências daquela decisão baseada numa valoração, ou seja, na

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avaliação que levou à determinada opção. O ser livre escolhe, cria,


valora e responsabiliza-se.
Holanda define valoração como o “ato de atribuir valor a um objeto./
Sentimento do valor de alguma coisa”. Ou seja, lançado no mundo, às
experiências e questionando-se sobre o que é realmente importante
para si e para o meio em que vive, o homem dá sentido e significado ao
que vivencia e atribui valores às informações e novidades, enfim, a tudo
o que experiencia. De acordo com o valor dado às vivências, toma-as
como constituintes na construção de sua personalidade, escolhe-se a si,
assumindo ou não uma postura ativa. Diz Erthal (2010) que a escolha
que o homem faz sobre si é a sua autoimagem.

O valor das coisas, sua finalidade etc. Ressaltam, na verdade, a


autoimagem – a escolha. O que é meu e o que me cerca me informa
sobre essa escolha que é meu ser. Pela consciência reflexiva
apreendo subjetivamente a mim. Daí estarmos sempre conscientes
da escolha que somos. É a escolha original que determina o valor
das causas e dos motivos que podem guiar nossas ações
parcialmente. É o que permite o significado ao mundo (ERTHAL,
2010, p. 67).

Se “[...] o homem é aquilo que faz de si próprio” (SARTRE apud ERTHAL,


2010, p. 47), é ele o único responsável por suas escolhas, e as faz de acordo com o
valor que atribui àquilo que lhe é apresentado. Sartre (2013) denomina “projeto
original” a escolha que o indivíduo faz sobre si próprio: “O homem não é nada mais
que seu projeto, ele não existe senão na medida em que se realiza e, portanto, não
é outra coisa senão o conjunto de seus atos, nada mais além de sua vida”
(SARTRE, 2013, p. 42).
Segundo Erthal (2010), o projeto original diz respeito à escolha primeira que o
indivíduo faz sobre si mesmo: o indivíduo cria uma imagem de si e é fiel a ela na
realização de suas escolhas ante aquilo que lhe é apresentado durante toda sua
existência. A partir de sua autoimagem, seu autoconceito, a partir do modo como se
vê e se concebe, ele faz suas escolhas coerentes com a imagem que faz de si. É
assim que o indivíduo se constitui, e é a partir da valoração que se delineia a
escolha primeira, o projeto original.

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Para fazer suas escolhas, o homem valora aquilo que experiencia.


O indivíduo avalia as opções que estão ao seu alcance e escolhe dentre
tantas possibilidades aquela que julgar, naquele momento, a mais
adequada ou, muitas vezes, a menos inadequada.
Sabendo que é de acordo com a imagem que o indivíduo tem de si
mesmo que ele faz suas escolhas, faz-se necessário distinguir “self real”
de “self ideal”. “A imagem, portanto, tem dois aspectos: a maneira como
o indivíduo encara suas capacidades, status e papéis atuais (Self-
percebido ou real) e o que ele gostaria de ser, isto é, suas aspirações
(ERTHAL, 2010, p. 72).”
Entende-se por self real o que se é. Segundo Erthal (2010), é no self real que o
indivíduo se reconhece, identifica seus atributos, suas capacidades e suas
qualidades, usufrui de suas habilidades da melhor forma possível, aceitando sua
condição de existente, logo, entendendo e respeitando seus limites. Aceitando seu
eu real, o homem consegue visualizar as opções que estão ao seu alcance
diminuindo o sentimento de inferioridade, a ansiedade e frustrações ou sensação de
fracasso diante das opções que não conseguir alcançar.
O self ideal diz respeito ao que o homem “deseja e deve ser”, consoante Erthal
(2010). Como a própria nomenclatura já diz, é um eu idealizado, um eu perfeito, que
se vê superior ou inferior aos demais. Essa percepção de si impede que o indivíduo
obtenha uma imagem mais próxima e completa de si mesmo, fazendo com que ele
esteja sempre se enganando a respeito de si mesmo, dos outros e do mundo.
A imagem idealizada, assim, nesse processo de valoração, pode se formar, por
exemplo, diante de um sentimento de inferioridade, se o indivíduo almeja se adequar
aos padrões culturais, valorando como importante para si o que ele acredita que o
fará se sentir mais feliz, mais aceito, mais pertencente ao meio em que vive, se
igualando às pessoas com quem convive e se encaixando nos padrões de felicidade
e satisfação que são sugeridos/impostos pela cultura, pela sociedade e, até mesmo,
por sua família e amigos.

O eu-ideal recebe grande influência cultural. O indivíduo aprende


com os pais a definir o mundo em função de sua cultura. Eles
auxiliam a desenvolver o eu através de indicações que devem ou não

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ser feitas. Os aspectos desejáveis são distinguidos dos indesejáveis


pelos castigos e prêmios administrados. A percepção de tais
experiências conduz ao desenvolvimento da concepção daquilo que
deve ser. Os valores e os tabus culturais vão fazendo parte da
própria realidade do indivíduo (ERTHAL, 2010, p. 73).

O homem, como um ser em constante relação, afeta e é afetado por suas


vivências e por suas escolhas. Ele escolhe por todos aqueles que sofrem a
influência de suas escolhas, numa constante relação de influenciador e influenciado.
Consoante Sartre (2013), ao fazer escolhas, o homem é responsável não só por si
mesmo; quando ele escolhe para si, está escolhendo para todos os homens, para
uma geração.

Quando dizemos que o homem faz a escolha por si mesmo,


entendemos que cada um de nós faz essa escolha, mas, com isso,
queremos dizer também que ao escolher por si, cada homem
escolhe por todos os homens (SARTRE, 2013, p. 27).

O homem é “resultado” de suas experiências, de suas vivências e escolhas e é


através do modo como se desenvolve e interpreta a vida, e de como valora essas
vivências que ele se faz essência, que ele constitui seu self enquanto existe.

O self mencionado aqui é o Self-fenomenal, que significa o campo


fenomenológico – conjunto de experiências que influencia o
comportamento – que o indivíduo experimenta como parte de si
mesmo. É ao mesmo tempo Self-como-objeto (pois consiste de
experiências próprias) e Self-como-processo (pois é o agente que
instiga o comportamento) (ERTHAL, 2010, p. 69).

Assim, sendo-no-mundo, influenciando e sendo influenciado pelo meio e pelos


outros homens, é através de suas escolhas que uma pessoa se faz, e tais escolhas
são definidas através do processo de valoração. Faz-se necessário, desse modo,
considerar tal processo, a fim de compreender sua implicação na vida do homem,
uma vez que é justamente atribuindo valor às experiências vividas e às
circunstâncias experienciadas, e utilizando sua capacidade de avaliação e sua
liberdade para julgar aquilo que lhe é apresentando a cada novo momento, que o ser
humano escolhe quem quer ser.
Tendo em vista o processo de valoração, é facultado ao homem simplesmente
optar por determinadas possibilidades ou examinar as opções disponíveis e ter

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certa ousadia para apropriar-se delas e vivenciá-las da melhor forma possível, da


forma que lhe for mais satisfatória ou menos insatisfatória, pois como adverte Sartre
(2013), o simples fato de não escolher já é uma escolha que se faz.
Assim, tem-se que a essência do ser em sua existência é sua liberdade
fundamental: a liberdade que o indivíduo tem de se constituir essência enquanto
existe, pela capacidade de se (re)criar, a partir da escolha que faz sobre si mesmo,
seja ela qual for, dela se apropriando responsavelmente ou não.

2. Autenticidade e inautenticidade: uma escolha a partir da valoração

Sendo possível escolher como viver e quem se deseja ser por meio da
valoração, importa discutir as formas possíveis pelas quais o ser humano pode vir a
se constituir e se fazer essência ao longo de sua existência. Isto refere-se ao modo
como as escolhas são feitas durante toda a vida: vive-se autenticamente ou
inautenticamente. Admite-se ou esconde-se de sua verdadeira essência: sua
possibilidade de vir-a-ser.
Numa vida autêntica, o homem compreende e age de acordo com as
características e potencialidades que são intrínsecas a ele, e com as possibilidades
que pode criar, para si e para o outro. Se é existindo que o homem se faz essência,
entende-se que é através de sua liberdade diante de valores pré-estabelecidos e de
oportunidades apresentadas a ele que se torna viável escolher de forma mais
satisfatória possível aquilo que lhe convém, incluindo a constituição de sua
personalidade. É vivendo na autenticidade que o homem assume sua liberdade de
escolher-se, julgando e valorando aquilo que chega até ele em seu cotidiano nas
relações que estabelece consigo mesmo, com os outros e com o mundo.

Consequentemente, ao ter reconhecido, no plano da autenticidade


total, que o homem é um ser no qual a essência é precedida pela
existência, que ele é um ser livre que não pode, em circunstâncias
diversas, desejar outra coisa que a liberdade, reconheci, ao mesmo
tempo, que não posso senão desejar a liberdade dos outros
(SARTRE, 2013, p. 56).

Vive autenticamente o homem que se permite escolher livremente de modo


que possa se reconhecer em suas escolhas. Caso contrário, ele age
inautenticamente ou, como prefere Sartre (2013), ele age de “má-fé”.

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Pode-se julgar um homem afirmando que ele age de má-fé. Ao


definirmos a situação humana como sendo de uma escolha livre,
sem escusas e sem auxílios, todo homem que se refugia por trás
da desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um
determinismo, é um homem de má-fé (SARTRE, 2013, p. 54).

Na inautenticidade, o homem foge de si enquanto possibilidade para si mesmo.


A inautenticidade diz respeito à atitude do homem que ainda não tomou consciência
ampliada de si mesmo, representa aquele que ainda não se percebeu projeto. Sartre
(2013) enfatiza que a inautenticidade não faz referência a um julgamento moral ou
um juízo de valor, mas lógico, já que é, no mínimo, ilógico, que o homem em sua
liberdade fundamental encontre-se aprisionado e refugiado em justificações.
É vivendo inautenticamente que o homem submete-se a “imposições”, não
fazendo livremente suas escolhas como permite sua existência, não se engajando e
tomando suas próprias decisões de acordo com sua escolha primeira, seu projeto
original. Sendo assim, age de “má-fé” a pessoa que vive inautenticamente.

Muitos indivíduos vivem como se aceitassem passivamente sua


existência, atribuindo significados superficiais à sua própria vida.
Age-se mecanicamente como para fugir de um enfrentamento com
dados reais, o que lhe exigiria uma atitude decisória. Esse
comportamento é a própria má-fé. Uma atitude de negação voltada
para si mesmo (ERTHAL, 2010, p. 121).

O homem que atua de “má-fé” o faz pela necessidade de “esconder” de si


mesmo algo que lhe seja próprio: sua liberdade. Admiti-la pode não lhe favorecer ou
não lhe ser agradável. O indivíduo acaba por “mentir” para si mesmo. Desse modo,
pode-se dizer que, viver na “má-fé”, é viver enganando-se, é viver agindo
passivamente. É viver escolhendo não se mostrar que o indivíduo abre mão de sua
liberdade, de suas possibilidades de escolha e tomada de decisão, inventando um
determinismo no qual se apoia e se justifica enquanto escolhe não escolher.
A autenticidade é a possibilidade que o homem tem de ser o que ele é, ou seja,
ser-no-mundo, assumir-se projeto e não fugir disso. Na autenticidade, o homem,
pela tomada de consciência de si, compreende e aceita sua maneira original de ser,
ou seja, é livre para acolher-se em sua humanidade, com suas habilidades e suas
fragilidades.

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3. A intencionalidade da consciência e a escolha autêntica


Toda tomada de decisão é intencional, pois se tem sempre consciência sobre
aquilo que se escolhe. A consciência é intencional, e este entendimento pode
favorecer o processo de valoração e o posicionamento diante das escolhas.

As expressões conhecidas, “Toda consciência é consciência de


algo” e “O objeto é sempre objeto para consciência”, expressam o
princípio da intencionalidade de Husserl, postulado básico da
fenomenologia. Os fenômenos objetivos só se tornam inteligíveis
enquanto são apreendidos por uma consciência ao mesmo tempo
em que a consciência só existe enquanto os apreende (ERTHAL,
2010, p. 38).

As escolhas que uma pessoa faz através do processo de valoração são


conscientes, ainda que sejam feitas de forma irreflexiva, pois ela não escolhe nunca
inconscientemente.
A tomada de decisão, a escolha feita, é irreflexiva quando o indivíduo não se
apropria dela, não a elege de forma satisfatória ou autêntica, diferente daquela
escolha feita após reflexão, que leva o indivíduo a interagir e conhecer o que é
experienciado, vivenciado, fazendo a escolha acerca daquilo que conheceu e
decidiu se apropriar de modo completamente consciente, reconhecendo-se nela.
Vive isso o sujeito autêntico, aquele que decide ser o que é, que assume seu self e o
constrói de forma própria pela ampliação de autoconsciência.

A intencionalidade é, essencialmente, o ato de atribuir um sentido; é


ela que unifica a consciência e o objeto, o sujeito e o mundo. Com a
intencionalidade há o reconhecimento de que o mundo não é pura
exterioridade e o sujeito não é pura interioridade, mas a saída de si
para um mundo que tem uma significação para ele (FORGHIERI,
2009, p. 15).

A visão fenomenológica permite compreender o ser, o mundo e o objeto em


constante relação, atravessando-se e influenciando-se mutuamente em unidade.

A consciência é sempre intencional, está constantemente voltada


para um objeto, enquanto este é sempre objeto para uma
consciência; há entre ambos uma correlação essencial, que só se dá
na intuição originária da vivência (FORGHIERI, 2009, p. 15).

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A consciência sempre atinge o objeto, estando ambos unificados pela


intencionalidade, pela atribuição de sentido e significado. Ainda que o homem
escolha e aproprie-se de determinadas vivências irreflexivamente, é possível que,
após reflexão, o não conhecido torne-se conhecido para ele, livrando-o de uma
escolha inautêntica.
A fim de clarificar a atitude da consciência, Sartre a divide em dois níveis: a
consciência de 1º grau e a consciência de 2º grau.

A primeira é a consciência que ultrapassa a si mesmo para atingir o


objeto e se esgota nessa mesma posição. Uma consciência
meramente perceptiva, pois ignora a si mesma para visar um objeto
ou um ato [...] Sartre a chamou de cógito pré-reflexivo ou consciência
irreflexiva. É irreflexiva, pois não depende do conteúdo psíquico do
eu. O que é psíquico só pode ser apreendido pela reflexão (ERTHAL,
2010, p. 46).

A consciência de primeiro grau define-se irreflexiva por ser apenas a


consciência perceptiva; por ela, o homem observa e vê a situação, mas não a leva à
reflexão, não fazendo uso dos seus processos psicológicos mais distintos, quais
sejam, de sua capacidade de avaliação, de seu poder de julgamento e decisão.
Apropriando-se irreflexivamente de suas vivências o homem não obtém o
conhecimento necessário sobre o objeto, ou seja, sobre os acontecimentos e
experiências, tomando-o inautenticamente e construindo um self ideal ao invés de
um self real. Contrariamente, adotando um estilo crítico de viver, apropria-se de si
com responsabilidade para consigo mesmo e para com o outro. Não vive se
justificando em determinismos, mas consegue discernir entre o que a demanda
sociocultural sugere e o que realmente concerne a ele.

O segundo nível de consciência, nas palavras de Sartre (1936), “é a


consciência que é consciente de ser consciente do seu objeto”.
Existe um eu que é consciente daquilo que tem consciência.
Chamou-a, por isso, de consciência reflexiva, específica do ser
humano (ERTHAL, 2010, p. 46, grifo da autora).

Na consciência de segundo grau, a chamada consciência reflexiva, o indivíduo


faz uso de sua capacidade de reflexão, não apenas percebendo aquilo que lhe é
apresentado, mas tendo a capacidade de julgar e estabelecer relação com
determinado fato ou situação.

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Apropriando-se de sua vivência ao obter conhecimento ampliado sobre a


situação ao refletir sobre aquilo que lhe foi apresentado, o indivíduo mostra-se capaz
de tomar uma decisão e de fazer uma escolha autêntica, visto que não apenas se
apropriou do que lhe foi apresentado; mais do que isso, apreendeu, refletiu e
conheceu aquilo que vem fazer parte de si, aquilo que vem constituir seu self.
Para o existencialismo, o homem é responsável por toda sua existência, suas
vivências, suas escolhas e as consequências que delas advém. Mais ainda: o
indivíduo fazendo uma escolha, tomando uma decisão que lhe pareça mais
satisfatória ou menos insatisfatória, sendo responsável por si mesmo e pela criação
de seu self, torna-se responsável não apenas por sua individualidade, mas também
pelos que com ele coexistem, uma vez que o homem vive em constante relação com
outro e com o mundo.
As escolhas são feitas e vivenciadas pelo homem que escolhe, mas também
por todos os outros que dividem o espaço e o tempo com este mesmo homem. Ele
torna-se, então, responsável não apenas por si e pela constituição de seu self, mas
também pelo “protótipo” de homem que cria e que, de algum modo, acaba sendo
modelo ou referência para alguém. Diz Sartre (2013, p. 28): “[...] sou responsável por
mim e por todos e crio uma determinada imagem do homem que escolhi ser; ao
escolher a mim, estou escolhendo o homem”.
É sendo-no-mundo em relação com o outro que o indivíduo se autodetermina e
se faz essência. Desse modo, as convenções e regras sociais, as tradições e
crenças compartilhadas culturalmente, os conceitos e ideais valorizados por um
grupo de pessoas em determinada época compõem com o homem um todo, e nessa
totalidade ele, dotado de uma consciência reflexiva, pode experienciar o seu
processo de vir-a-ser autenticamente.

4. A participação da sociedade e da cultura na escolha do ser


O homem não vive sozinho, ele está a todo momento se relacionando com o
meio em que vive, com seus semelhantes e com o mundo. Nessas relações, o
homem cria suas possibilidades, recria seus valores e se constrói a todo momento;
por isso, é pertinente conhecer e entender o meio em que o homem é criado e que
lhe apresenta possibilidades de ser. “Para sabermos quem somos precisamos, de
certo modo, saber onde estamos, pois, a identidade, de cada um de nós está

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implicada nos acontecimentos que vivenciamos no mundo” (FORGHIERI, 2009, p.


27).
Segundo Erthal (2010), Heidegger usa a expressão ser-no-mundo para definir
a condição a que o homem está submetido durante toda a sua existência: a união
entre ser e mundo, um fenômeno de unidade. O ser é lançado no mundo e a ele
está ligado em cada momento vivido, a toda relação estabelecida e a cada escolha
feita, pela consciência intencional. Existir-no-mundo implica ser-com, ser-em-
relação, afinal, estar-no-mundo é viver um mundo em comum, o que acaba por
estabelecer relações do homem com outros homens. Participa-se do mundo com o
outro, o que possibilita ao homem criar-se e conhecer-se, visto que o outro tem
participação ativa no processo de valoração que se dá diante daquilo que lhe é
apresentado. Consoante Paul Tillich (1976),

[...] o eu é eu só porque tem um mundo, um universo estruturado, ao


qual ele pertence e do qual, ao mesmo tempo, está separado. Eu e
mundo são correlatos, e assim individualização e participação.
Porque isto é justamente o que participação significa: ser uma parte
de alguma coisa, da qual se está, ao mesmo tempo, separado
(TILLICH, 1976, p. 69).

E é assim que o homem está inserido no mundo; ele é parte do mundo e do


outro, divide suas responsabilidades e vivências, experiencia novas possibilidades,
cria-se e forma-se em suas relações, influencia e é influenciado a todo momento.
Porém, tem ainda suas singularidades e individualidades. Faz-se necessário, então,
entender o homem não apenas como um todo, mas também como um ser que, com
originalidade, se diferencia e faz-se essência, constituindo-se enquanto um ser
único.
Ora, se o homem depende do mundo para “fazer-se” e o mundo depende do
homem para “movimentar-se”, percebe-se, então, a extrema importância da relação
que existe entre ambos. O indivíduo deve a todo momento perceber e compreender
sua função, seu papel, sua inserção no mundo, a fim de, através de suas vivências,
ter possibilidades de escolhas que o possibilitem construção e crescimento.

[...] o mundo não é apenas um conjunto de objetos ou pessoas,


existindo por si mesmos, pois cada um deles se torna um
determinado objeto ou pessoa em virtude de ter um significado para
quem o percebe (FORGHIERI, 2009, p. 28).

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Segundo Boss (apud FORGHIERI, 2009, p. 28), “[...] as coisas não podem ser
sem o homem e o homem não pode ser sem as coisas que encontra [...]”. Em suas
vivências, após conhecer e apreender determinadas situações, o homem dá
significado a cada uma delas, e não apenas às situações, mas também aos outros
homens com quem convive e se relaciona. Através do significado que dá às
experiências vividas, o homem pode se aprofundar em seu conhecimento e julgar
tais vivências, a fim de valorá-las e tomá-las como próprias a si.
Vivendo em sociedade, estabelecendo relações, existindo em um meio no qual
se recebe novas informações a todo momento, o homem que está a todo instante se
construindo e formando seu self, vê-se sofrendo sempre influências culturais e
sociais do meio de que participa. Esse ser relacional é capaz de usar todos seus
“métodos” e conhecimentos sobre si mesmo, assim como optar por um estilo de vida
crítico para julgar as situações, por meio de sua consciência intencional, escolhendo
deixar-se determinar ou não pelas vivências experienciadas no contexto
sociocultural, decidindo se vai torná-las parte de seu self, de sua vida.
O homem apropria-se de valores que lhe são impostos, que lhe são
“entregues” prontos, sem julgá-los de acordo com suas crenças, com suas
necessidades e suas vontades, se ele assim o quiser. A força do contexto pode ser
expressiva e requer do homem coragem para perceber as imposições, solicitações e
sugestões de um padrão de vida que todos seguem, para refletir sobre isso e para
se posicionar autenticamente. “A coragem de ser é o ato ético no qual o homem
afirma seu próprio ser a despeito daqueles elementos de sua existência que entram
em conflito com sua autoafirmação essencial” (TILLICH, 1976, p. 3).
Para a construção de sua identidade, de sua personalidade, de seu self, o
homem precisa ter coragem. Coragem de ser e, se necessário for, de se impor, ao
invés de deixar que os outros o guiem acriticamente. Coragem para fazer valer sua
vontade, suas necessidades, seus desejos, seus julgamentos diante daquilo que
vivencia. É preciso coragem para assumir-se. Para assumir seu ser, para viver uma
vida autêntica, para refletir e apreender experiências que, de fato, correspondam
àquilo que ele pretende ser.
A coragem de ser é a coragem de se autoafirmar e de ser capaz de abandonar
o que não lhe convém, que não é importante em sua existência, enfim, tudo o que
implica viver na inautenticidade, escondendo-se, escondendo seu verdadeiro eu. É

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se lançando no mundo que o homem percebe-se também racional e capaz de filtrar


e julgar as experiências vividas e as imposições feitas pela sociedade e pela cultura.
Enfim, apesar do encontro entre o homem, o seu semelhante e o mundo terem
extrema importância em sua formação e construção, ele é capaz de diferenciar suas
vontades e seus desejos das vontades e desejos dos outros que compartilham o
meio com ele, a fim de, por si mesmo, valorar as experiências vividas como melhor
lhe parecer e da forma que lhe for mais satisfatória.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vivência do homem em sociedade é influenciada por valores culturais e


regras sociais, mostrando-lhe o que deve ser vivenciado ou não e o que deve se
tornar parte de sua vida, de seu self ou não. No contexto sociocultural, algumas
vezes, as experiências de vida são oferecidas como modelos de vida a serem
seguidos, são definidas como sendo a única possibilidade de ser e de fazer feliz.
Valores são disseminados culturalmente, fazendo com o que o homem tenha
vontade de experienciar o estilo de vida valorizado socialmente. Propaga-se a ideia
de uma vida ideal, de um self ideal, levando-o a valorizar apenas aquilo que passa a
acreditar que lhe fará feliz, tomando por base a felicidade de outros que tiveram a
experiência semelhante.
O homem está e sempre estará na posição de influenciador e de influenciado,
no entanto, ele não precisa ser um espectador passivo, já que ele se faz essência
durante toda sua existência, ou seja, ele é um ser único que se define diante de
suas possibilidades, a partir das escolhas que faz em suas relações consigo mesmo,
com o outro e com o mundo em sua existência num processo de autocriação.
Ora, se cada ser é único, cada pessoa experiencia as situações de uma forma
diferente dos outros, de acordo com o julgamento e a avaliação que realiza das suas
próprias vivências, intencionalmente, valorando-as e se autodeterminando em suas
escolhas.
As escolhas feitas durante toda a vida do indivíduo são feitas de acordo com a
escolha primeira que a pessoa faz sobre si mesma – seu projeto original. É a partir
deste que o indivíduo delineia suas vivências e faz as demais escolhas em sua vida,
optando por viver autenticamente ou inautenticamente: assume responsavelmente
seu ser, suas vontades, suas escolhas ou esconde-se e vive enganando-se, fugindo
de sua liberdade de ser-si-mesmo.

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Sendo o homem o único responsável por suas escolhas, o homem assume as


consequências de suas escolhas não só para si, mas para o meio em que vive.
Influenciado pelo que o cerca, também influencia. O homem faz a cultura e a cultura
faz o homem. Nessa interação dialética e nesse contínuo devir o indivíduo torna-se
essência, torna-se possuidor de “novas” características, cria-se a todo momento pela
“coragem de ser”.
As outras pessoas e o mundo têm extrema importância na vida do ser humano,
pois fazem parte de todas as experiências vividas por ele, proporcionam-lhe suas
vivências, suas possibilidades, apresentam-lhe suas oportunidades e influenciam-no
de forma positiva ou não. Mas é apenas isso. As relações que o homem estabelece
não podem afetá-lo a ponto de levá-lo a se justificar em suas escolhas irreflexivas e
em uma vida inautêntica. O homem pode sofrer as tensões do cotidiano, receber
valores e conceitos pré-estabelecidos e, ainda assim, escolher e decidir por si
mesmo a pessoa que ele quer ser, através de sua consciência intencional e
liberdade fundamental que lhe são próprias.

REFERÊNCIAS

ERTHAL, T. C. S. (2010) Trilogia da existência: teoria e prática da Psicoterapia


Vivencial. 1ª ed. Curitiba: Honoris Causa.

FORGHIERI, Y. C. (2009) Psicologia Fenomenológica: Fundamentos, Método e


Pesquisas. 1ª ed. São Paulo: Cengage Learning.

HOLANDA, A. B. de Disponível em:


<http://www.dicionariodoaurelio.com/Valoracao.html> Acesso em: 10 ago. 2013.

SARTRE. J.-P. (2013) O existencialismo é um humanismo. 3ª ed. Petrópolis, RJ:


Vozes.

TILLICH, P. (2001) A coragem de ser. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

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