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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 441

A família no cuidado em saúde mental:


desafios para a produção de vidas
The family in mental health care: challenges for the production of lives

Thayane Pereira da Silva Ferreira1, Juliana Sampaio2, Isaac Linhares de Oliveira3, Luciano Bezerra
Gomes2

DOI: 10.1590/0103-1104201912112

RESUMO O estudo problematiza o lugar das famílias na produção do cuidado em saúde mental.
De caráter qualitativo, foi desenvolvido a partir da produção de narrativas e vivências em um
Centro de Atenção Psicossocial (Caps), tipo III, de João Pessoa-PB, entre fevereiro e novembro
de 2015. Os pesquisadores acompanharam a produção de cuidado para um usuário denominado
‘o Capoeirista’. A partir de então, produziram-se novas visibilidades para a família na produção
do cuidado: 1. Família como espaço de disputa de plano de cuidado; 2. Família que também
precisa ser cuidada; e 3. Família como parte da vida social do usuário. Nesse sentido, o Caps
precisa redefinir o perfil do seu usuário, extrapolando do âmbito individual para o familiar.

PALAVRAS-CHAVE Saúde mental. Serviços de saúde mental. Assistência à saúde mental.

ABSTRACT The study rise questions about the place of families in the production of mental health
care. Of qualitative character, it was developed from the production of narratives and experiences
in a Psychosocial Care Center (Caps), type III, of João Pessoa-PB, between February and November
of 2015. The researchers followed the production of care for a user called ‘the Capoeirista’. Since
then, new visibilities have been produced for the family in the production of care: 1. Family as a
space for a care plan dispute; 2. Family that also needs to be cared for; and 3. Family as part of the
user’s social life. In this sense, Caps needs to re-define the profile of its user, extrapolating from
the individual to the familiar.
1 Universidade Federal
da Paraíba (UFPB), KEYWORDS Mental health. Mental health services. Mental health assistance.
Departamento de Terapia
Ocupacional – João Pessoa
(PB), Brasil.
thayane.silva01@hotmail.
com

2 Universidade Federal

da Paraíba (UFPB),
Departamento de
Promoção da Saúde – João
Pessoa (PB), Brasil.

3 Universidade Federal
da Paraíba (UFPB) – João
Pessoa (PB), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 43, N. 121, P. 441-449, ABR-JUN, 2019
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Introdução transtorno mental viver junto à sua família,


circular pelo território e estabelecer relações
Este estudo convida o leitor a uma produção com as redes sociais e de apoio que a comuni-
de sentidos sobre o lugar da família na pro- dade oferece5. Dentro dessa nova perspectiva,
dução do cuidado em saúde mental. Toma a família pode ser requisitada como parceira
como orientação desses sentidos a compre- dos novos serviços e reafirmada como um dos
ensão de família como um sistema aberto e possíveis espaços do provimento de cuidado6,
interconectado com outras estruturas sociais podendo ser necessária e aliada no cuidado de
e outros sistemas que compõem a socieda- seu familiar em sofrimento psíquico1.
de1. A família é constituída por um grupo de A família passa a ser convocada a integrar
pessoas que estabelecem relações de cuidado, as redes de apoio do usuário, e, como tal, deve
de conflitos, vínculos e convivência cotidiana, ser considerada na produção do cuidado, de
que possibilitam aos indivíduos se sentirem modo que não seja apenas acionada para o
pertencente a um grupo. atendimento do sujeito, mas também possa
Ao olhar de perto para o conjunto dos arran- fazer parte das ações. A abordagem familiar
jos familiares, serão visualizadas multidões2, tem sido uma aposta das equipes de saúde
constituídas por diferentes indivíduos que da família, reafirmando a necessidade de sua
se conectam pelos afetos, crenças, hábitos e inclusão na produção do cuidado7. Nos Caps,
regras de convivência. Ver-se-á, também, que a lógica da desinstitucionalização, enquanto
a multidimensionalidade de uma família traz desconstrução de um modelo hegemônico de
consigo a sua unicidade, representada pelos cuidado centrado nos hospitais psiquiátricos
modos singulares que os indivíduos estabele- reconhece também a família como espaço que
cem na sua dinâmica familiar. cuida e precisa ser cuidado. Entretanto, a abor-
Partindo dessa produção de sentidos sobre dagem familiar ainda é um desafio nas práticas
as famílias, percebe-se que, além dos aspectos cotidianas desses serviços substitutivos.
já citados, outros devem ser considerados, Entendendo que o cuidado deva ser pro-
como sua rotina, seus acordos relacionais e duzido em redes e que possibilite a sustenta-
os papéis que cada sujeito assume em sua bilidade cotidiana do indivíduo no território
organização. Tais fios vão se conectando em e a produção de vida8, o presente texto tem
rizoma3, de modo a constituírem uma rede, como objetivo problematizar o lugar que as
onde cada sujeito é parte da família, e a família famílias assumem na dinâmica dos Caps e suas
faz parte dele. implicações para a produção do cuidado para
Nessa relação entre o sujeito e sua família, além dos muros institucionais.
a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM),
fruto da reforma psiquiátrica brasileira, redi-
recionou os modos de produção de cuidado Percurso cartográfico
em saúde mental, no sentido de conceber e
entender o papel da família no cuidado dos Os encontros e suas afecções guiaram o per-
sujeitos com transtorno mental1,4. Se, antes, curso metodológico do estudo, na medida em
o tratamento se dava por meio do isolamento que foram sendo utilizadas diversas estraté-
do indivíduo do seio familiar e comunitário, gias de produção de narrativas e vivências,
agora, ele deve ser realizado em serviços de em consonância com as demandas oriundas
base territorial, como os Centros de Atenção do campo. Inicialmente, duas pesquisado-
Psicossocial (Caps), e na Atenção Básica à ras apoiadoras negociaram sua aproximação
Saúde (ABS), por meio da equipe de saúde com um Caps III do município, participando,
da família, entre outros1. durante os meses de fevereiro a novembro
Essa mudança garante ao sujeito com de 2015, das reuniões semanais de equipe,

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nas quais também ocorria quinzenalmente e Esclarecido (TCLE) de todas as pessoas en-
supervisão clínico-institucional com uma volvidas no estudo. O projeto foi aprovado
supervisora externa ao serviço. pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da
Nessas reuniões, as pesquisadoras apoiado- Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sob
ras puderam acompanhar discussões geren- o CAAE 42554815.0.0000.5188, atendendo aos
ciais e administrativas do serviço e participar, princípios éticos da Resolução nº 466/12 do
inclusive colaborando com o debate, de discus- Conselho Nacional de Saúde.
sões sobre a organização do processo de traba-
lho da equipe, condições clínico-existenciais
de usuários e seus projetos terapêuticos, além Rastreando diferentes
de discussões teóricas sobre temas correlatos lugares da família na
às questões vivenciadas pelo serviço.
Foi, assim, assumida a perspectiva de pes-
produção do cuidado em
quisadores in-mundo2, a partir da qual se saúde mental
reconhecem e tomam-se como produtos de
análise as diversas implicações e sobreimpli- No percurso da vivência junto à equipe do
cações dos pesquisadores, e valoriza-se sua Caps, algumas cenas da produção do cuidado
imersão no mundo sobre o qual deseja produzir do serviço foram rastreadas e processadas,
sentidos. Tal posicionamento epistemológico trazendo para o debate o lugar da família
permitiu que alguns profissionais do serviço, na produção do cuidado em saúde mental.
atendendo ao convite da pesquisa, passassem Entendendo que o cuidado é um aconteci-
a acompanhá-la mais de perto, tornando-se, mento e não um ato10, descrevemos abaixo
também, seus pesquisadores. Nesse sentido, um ‘acontecimento’ que emergiu no cotidiano
estes assumiram que o produto da pesquisa do serviço, sendo vivenciado pelo conjunto de
nada mais pode ser além de um conjunto de sen- pesquisadores que participaram da pesquisa
tidos produzidos nos encontros e suas afecções. compartilhada.
Ao participarem das reuniões de equipe do
serviço, os pesquisadores puderam rastrear9 O acontecimento
a produção do cuidado dentro e fora do Caps.
Entre os vários acontecimentos rastreados ali, Capoeirista é um jovem de vinte e poucos anos
os pesquisadores foram convocados a analisar e filho único. Frequenta o Caps há alguns anos,
os seus encontros com um usuário que fre- sendo diagnosticado pelo médico psiquiatra do
quentemente aparecia nos relatos e discursos serviço como um sujeito com esquizofrenia e
dos trabalhadores. Era apontado como alguém retardo mental moderado. Ele quase sempre
‘difícil de lidar’, e sua família vista como ‘quem é pauta de discussão das reuniões de equipe,
não contribuía para o tratamento’. visto que é muito agitado, “chega no serviço a
Os sentidos produzidos nesse relato se hora que quer, faz o que bem quer, e na hora que
deram a partir da cartografia9 de encontros e quer”, como afirma um dos técnicos do Caps.
conversas travados entre pesquisadores, pro- Para além do transtorno psíquico e de sua
fissionais, usuários e familiares, que foram ‘indisciplina’ no serviço, a equipe traz ele-
processados (discutidos) nos encontros do mentos importantes sobre a vida familiar de
coletivo de pesquisadores. A composição desse Capoeirista, que parecem desembocar nas
coletivo por diferentes atores reafirmou e con- dificuldades da equipe em lidar com ele. Na
solidou a aposta compartilhada da pesquisa. época da gravidez de Capoeirista, sua mãe,
Atendendo às exigências éticas de pesquisas casada há algum tempo, suspeita que está com
envolvendo seres humanos, foi solicitada a um tumor e inicia um tratamento medica-
assinatura do Termo de Consentimento Livre mentoso, descobrindo somente após alguns

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meses que estava grávida. A equipe relata que, a família, para entender os seus conflitos e suas
atualmente, seus pais têm uma relação confli- possíveis interferências nas posturas assumi-
tuosa e uma enorme dificuldade de aceitação das por Capoeirista no serviço, como também
de Capoeirista. em buscar responsabilizá-la pelo cuidado ao
Segundo os relatos dos técnicos mais pró- usuário; (2) viabilizar a participação do usuário
ximos a ele, um educador físico e o professor em um grupo de capoeira, próximo à sua casa,
de capoeira, o Caps tem assumido um lugar tendo em vista a necessidade de se pensar o
de refúgio para Capoeirista, que, ao viven- cuidado no território e no seu cotidiano; (3)
ciar as situações de conflito em casa, busca o tentar inseri-lo numa escola, visto que a equipe
serviço. Não importa a hora e a distância, visto entendia que o usuário ainda era muito jovem
que ele mora em um outro bairro, um pouco e poderia estar ocupando esse tempo/espaço
distante. A equipe reconhece, assim, que o com aprendizagem; (4) viabilizar a ida de sua
serviço funciona como um ‘local de escape’ mãe para um centro de práticas integrativas e
para Capoeirista, na medida em que existem complementares, tendo em vista que, na visão
muitos conflitos no seu ambiente familiar. da equipe, ela necessitava de cuidado, pelo fato
Nas diversas discussões sobre esse usuário, de conviver com muitos conflitos familiares. A
são produzidos relatos de que as mesmas equipe pensou que a ida da mãe de Capoeirista
posturas e atitudes que este tem em casa (de a esse centro poderia se dar nos dias e horários
mandar na mãe, agredi-la verbalmente e fisi- em que ele se encontrava no Caps.
camente) estão sendo, de certo modo, repro- Após pactuação entre a equipe de saúde, as
duzidas no Caps na relação com a equipe. O ações foram iniciadas. A implicação da equipe
educador físico aponta que Capoeirista chegou no cuidado se reafirmava à medida que as ações
a relatar que sua mãe sofre agressões por parte iam sendo viabilizadas. No entanto, trazer a
do seu pai, e que por isso ele fica muito agitado. família para participar do projeto terapêutico
Os relatos são tecidos à medida que novos parecia ser um desafio, que muitas vezes escapa-
elementos são incorporados na história da vida va da responsabilização da equipe pelo cuidado.
familiar de Capoeirista, constituindo uma rede (1) A família pouco mostrava-se incomoda-
com relações conflituosas e de rupturas. Por da com as posturas de Capoeirista, e a equipe
vezes, alguns profissionais responsabilizam a não conseguiu aproximar-se dela para tentar
família, que não cuida dele, restando ao Caps responsabilizá-la pelo cuidado dele, visto que
assumir o seu cuidado. Nesse movimento, foi se tratava de uma demanda da equipe; (2) a
acionado o Ministério Público, para tomar o viabilização da participação do usuário no
que, para os profissionais do Caps, seriam as grupo de capoeira contou com a resistência
‘devidas providências’ sobre o ‘descuidado’ da de alguns membros do grupo, que, ao serem
família com Capoeirista. informados que Capoeirista era usuário do
O prosseguimento e os possíveis encami- Caps, mostraram-se inseguros e com medo
nhamentos do ‘caso de Capoeirista’ foram de que este causasse algum problema. No
discutidos em reunião pela equipe do Caps, na entanto, sua participação foi negociada pelo
qual cada profissional apontou uma proposta professor de capoeira do Caps, que se respon-
de plano de cuidado para ele e sua família. Essa sabilizou por ele, mediando as suas relações
construção não contou com a participação dos com o grupo; (3) após algumas tentativas da
sujeitos para quem se dirigia o referido plano, equipe, foi possível matricular Capoeirista no
visto que ia sendo tecida nos encontros entre programa de Educação de Jovens e Adultos.
os trabalhadores e nas reuniões de supervisão No entanto, a equipe mostrava-se preocupada
clínica institucional. com a efetivação dessa aposta de cuidado,
A proposta do Caps consistiu em: (1) a tendo em vista que a sua ida dependia da
equipe de saúde tentar uma aproximação com interlocução e do apoio da família, e eles

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visualizavam a família como ‘negligenciadora’ família pode não integrar o seu planejamento,
desse cuidado; (4) E, por fim, não foi efeti- ou porque a equipe de saúde não reconhece
vada a aposta de a mãe participar do centro o seu saber e suas contribuições no cuidado10
de práticas alternativas e complementares, ou porque essa família não se visualiza como
já que essa proposta pouco reverberou nas participante desse processo.
apostas que a própria mãe fazia para viver. Nos Caps, a família pode assumir diferentes
Tal acontecimento mobilizou os pesquisa- papéis no cuidado de seu parente que vivencia
dores, na medida em que possibilitou pôr em sofrimento psíquico, visto que essa, algumas
análise as afecções e os ruídos neles produ- vezes, é responsabilizada pelo usuário e pela
zidos. A partir desse lugar de pesquisadores sua melhora, todavia, ao mesmo tempo, não
afetados, foi possível produzir novas visibi- é vista como aquela que pode opinar e auxi-
lidades sobre o lugar da família na produção liar na elaboração do projeto terapêutico do
do cuidado: 1. Família como espaço de disputa sujeito, buscando estratégias de inserção deste
de plano de cuidado, entre si e com a equipe; na comunidade, e assim por diante.
2. Família que também precisa ser cuidada e Dialogando com a atenção domiciliar,
que vivencia processos de adoecimento; e 3. podemos encontrar semelhanças na pro-
Família como parte da vida social do usuário, dução do cuidado em saúde mental a partir
que compõe sua rede de convivência social. dos serviços substitutivos, entre eles, o Caps.
Carvalho10 aponta que o deslocamento das
A família como espaço de disputa de ações de cuidado do hospital para o domicílio
plano de cuidado, entre si e com a desloca, também, os próprios trabalhadores da
equipe de saúde saúde, que precisam repensar suas práticas,
desterritorializar-se/reterritorializar-se3 dos
A análise desse acontecimento traz para o seus saberes técnicos adquiridos, para encon-
debate as apostas que os usuários fazem para trarem-se com o outro, que agora encontra-se
se produzirem cotidianamente, e que muitas na sua residência, ocupando espaços singulares
vezes podem divergir dos pontos de vista dos e de produção da sua subjetividade11.
trabalhadores de saúde sobre os mesmos2. Este debate convida a pensar também a
Além disso, é possível perceber na família produção do cuidado em saúde mental, a partir
disputas de projetos de vida e cuidado, que de Capoeirista, uma vez que a equipe enxer-
se estabelecem nas relações entre Capoeirista gava sua família como aquela que precisava
e seus pais. se responsabilizar pelo usuário. No entanto,
Essa disputa se dá tendo em vista o modo não conseguia convocá-la para a construção
como as relações são estabelecidas no am- do plano de cuidado, apesar de entenderem a
biente familiar, de modo que existem re- participação da família como necessária para
lações conflituosas entre a mãe e o pai de a melhora do sujeito.
Capoeirista. E este, ao vivenciar os conflitos, As questões apontadas não desconsideram
demanda a atenção dos pais, agredindo-se e a implicação da equipe no cuidado prestado ao
quebrando objetos, como forma de mediar Capoeirista. No entanto, revela como a gestão
tais situações. do cuidado, em algumas situações, é realizada
Em alguns casos, a família que vivencia sobre o usuário e não com ele.
disputas de modos de como levar a vida entre Nesse sentido, a autonomia do usuário e de
seus próprios membros é vista como ‘quem sua família deve permear as ações em saúde,
atrapalha o cuidado’, ou ‘quem não coopera no sentido de que os profissionais considerem
para a melhora do sujeito’. Em alguns mo- e reconheçam as apostas que os sujeitos fazem
mentos, como, por exemplo, na elaboração no seu cotidiano, para garantir a produção de
de um plano de cuidado para o seu membro, a mais vida na sua existência2,3,10.

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A família que vivencia processos de nos modos de lidar com os processos saúde-
adoecimento e precisa de cuidado -doença de seus membros13.
Pelo fato de a família constituir as redes
No processamento desse acontecimento, dis- primárias do indivíduo14, elas devem ser vistas
cute-se sobre como, muitas vezes, na visão dos como fundamentais no processo de trabalho do
profissionais de saúde, os usuários assumem Caps. Na elaboração dos projetos terapêuticos,
o lugar cristalizado de sintoma da família, de é fundamental que os profissionais de saúde
modo que o ambiente familiar pode se tornar considerem as famílias nas suas singularidades,
um espaço de agudização do seu sofrimento já que estas apresentam demandas das mais
psíquico. Nesse contexto, torna-se um desafio variadas ordens. Entre as quais, Colvero et al.15
para a equipe de saúde lidar com as questões de cita: a dificuldade de lidar com as situações de
sofrimento do usuário, quando seu ambiente crise, com os conflitos familiares emergentes,
familiar se encontra também adoecido. com a culpa, com o pessimismo por não con-
Na produção de novos sentidos para essa ex- seguir vislumbrar saídas para os problemas,
periência de Capoeirista e sua família, alguns com o isolamento social a que ficam sujeitos,
pesquisadores problematizaram com a equipe as dificuldades materiais da vida cotidiana, as
a necessidade de se pensar o cuidado familiar, e complexidades do relacionamento com esse
não apenas individual. Entre debates e tensões, familiar, a expectativa frustrada de cura ou o
algumas falas sustentam a falta de implica- desconhecimento da doença propriamente
ção da família no cuidado de Capoeirista, mas dita.
outras afirmam que a família também precisa É fundamental, portanto, o reconhecimen-
ser cuidada pelo Caps. to da família como um conjunto de pessoas
O reconhecimento de que o ambiente fami- em inter-relação, e que, por isso, é sempre
liar é adoecedor perpassa as discussões sobre afetada por qualquer doença, sofrimento e/
Capoeirista e sua família. No entanto, apenas ou mudança em algum de seus membros.
esse reconhecimento não garante que esta Portanto, é necessário que os profissionais de
seja cuidada, tendo em vista que os trabalha- saúde estejam atentos a toda a complexidade
dores não conseguem, por diversos motivos que envolve a família, produzindo cuidado
que podem escapar da implicação da equipe, ‘com base na experiência da família ao longo
construir um projeto terapêutico familiar, do tempo, ou seja, sua história pregressa, atual
com articulações no território, por meio da e perspectivas futuras’ (68)16. Estar atento à
estratégia de saúde da família, em busca do história que envolve o passado da família, o
compartilhamento do cuidado12. seu presente e aquilo que esta projeta para o
Esse acontecimento convoca à problemati- futuro, sem dúvidas, é uma importante aposta
zação de que muitas vezes o ambiente familiar das equipes de saúde na produção do cuidado
encontra-se adoecido, e que o indivíduo que que reconheça e legitime o ambiente familiar
chega ao serviço de saúde traz esse adoecimen- como espaço de cuidado.
to consigo5, de modo que, quando o processo
de trabalho do Caps encontra-se voltado para A família como parte da vida social
a atenção à família do usuário, no sentido de do usuário que compõe sua rede de
compreender quem são as pessoas que consti- convivência social
tuem o ambiente familiar e como se organizam,
torna-se possível integrá-la ao cuidado. Capoeirista convoca, ainda, a reconhecer a
A integralidade do cuidado ao indivíduo família como parte da vida social do sujeito,
envolve, também, sua família, uma vez que esta podendo compor a sua rede social e de apoio.
traz em si as suas experiências e os modos de Nessa direção, a partir do conhecimento sobre
viver a vida, que são singulares e interferem a história de vida familiar de Capoeirista, foi

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possível dar visibilidade para a complexidade do convívio familiar, para o territorial, próximo
do cuidado em saúde mental e sua imbricação à família – provoca deslocamentos nos modos
com a dinâmica familiar do sujeito com trans- como a equipe de saúde lida com as estratégias
torno psíquico. de cuidado.
Desse modo, o cuidado em saúde mental, Ao mesmo tempo que o mundo muda sua
a partir dos serviços substitutivos, entre eles, forma de ver e de se relacionar com a loucura,
o Caps, produz novas tensões nos modos de também o papel da família na sociedade passa
cuidado em saúde mental, visto que as ações por inúmeras transformações. Muda a forma
em saúde passam a ter como pauta para a sua de se pensar a implicação da família no apa-
elaboração e efetivação o território, ou seja, recimento da doença mental, uma vez que a
os lugares onde a vida pulsa, o cotidiano, as literatura atual sobre o tema coloca a família
relações sociais e as redes dos sujeitos. tanto como a grande causadora do adoeci-
A desinstitucionalização, enquanto des- mento psíquico quanto como potente meio
construção dos modos de lidar com a loucura4, de cuidado e melhora6.
traz tensões nas relações de cuidado entre Problematiza-se, assim, o papel da família
os sujeitos e seus familiares, no sentido de como rede de apoio no cuidado em saúde
que a família passa a ser reconhecida como mental, visto que não basta apenas desospi-
uma parte da vida social do sujeito, podendo talizar os sujeitos com transtorno mental e
compor a sua rede de convivência e de relações. (re)inseri-los no ambiente familiar. É preciso
As propostas da reforma psiquiátrica con- garantir a sustentabilidade de sua vida cotidia-
vocam a família a (re)assumir esse lugar, que na14, ou seja, fortalecer seus laços familiares e
lhe foi retirado durante a hospitalização de comunitários, de modo que ele possa acessar
seu membro4. Esse lugar, ora assumido, ora diferentes redes no território quando neces-
interditado e/ou invisibilizado, traz para a sitar de apoio.
cena a necessidade de os trabalhadores de O acontecimento descrito neste texto traz
saúde reconhecerem o ambiente familiar para análise a necessidade de se considerar
como rede social e de apoio dos sujeitos. Tal a família como rede de apoio, tendo em vista
reconhecimento, por sua vez, garante que os as apostas de cuidado da equipe para além do
profissionais potencializem as relações fami- grupo de capoeira e da escola. Necessitava-se,
liares, com o intuito de fortalecer as relações também, reconhecer a família como espaço de
sociais dos usuários. convivência e rede de apoio para Capoeirista.
Feuerwerker e Merhy17 trazem a discussão Esse reconhecimento, por sua vez, possibilita
sobre os serviços substitutivos em saúde, entre aos trabalhadores ampliarem as suas ações, no
eles, o Caps, destacando que eles podem ser sentido de garantirem a sustentabilidade coti-
diana desse usuário nas suas redes sociais. Tais
dispositivos efetivos de tensão entre as novas ações promovem um suporte para o usuário
práticas e o modelo hegemônico e entre ve- na busca de estratégias para lidar com seus
lhos hábitos e lugares que produzem melho- conflitos e dificuldades15.
rias reais na construção de formas sociais de Nessa perspectiva, as ações pautadas na
tratar e cuidar do sofrimento17. reforma psiquiátrica buscam contribuir para
a criação, o fortalecimento e a manutenção de
Ou seja, esses autores afirmam que em tais redes sociais, fatores que podem ser, de fato,
serviços pode existir o confronto de práticas e determinantes para modificar a trajetória dos
concepções que configuram o trabalho em saúde. usuários14. Entre essas redes, a família deve ser
Dialogando com a aposta da família como vista como um lugar de possível convivência
parte da vida social dos usuários, a mudança do portador de transtorno mental, mas não
dos modelos de cuidado – do hospitalar, longe deve ser o único nem o obrigatório16.

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Conclusões Radicalizando a aposta de Basaglia18, é


preciso colocar a doença e o sujeito entre pa-
O acontecimento convoca a uma visualização rênteses, para se visualizarem a família e suas
da família como aquela que cuida, que disputa relações, e, a partir daí, planejarem-se ações
planos de cuidado e que também precisa ser em saúde voltadas para a multidimensiona-
cuidada. Além do que, em alguns momentos, lidade dos ciclos e das trocas familiares, que
como na elaboração do plano de cuidado, ela constituem um sistema em redes.
pode ser invisível para a equipe de saúde,
sendo apenas solicitada para se responsabilizar
pelo sujeito em sofrimento psíquico. Talvez Colaboradores
o mais importante não seja delimitar qual é
o lugar que a família deve assumir na produ- Ferreira TPS (0000-0002-2581-4970)* con-
ção do cuidado, mas dar visibilidade para as tribui na sua elaboração com as seguintes
diferentes posições que ela pode assumir no atividades: contribuiu substancialmente
decorrer dos processos cuidadores. para a concepção e o planejamento análise
O reconhecimento desses diferentes lugares e a interpretação dos dados; contribuiu sig-
que a família pode ocupar convida os trabalha- nificativamente na elaboração do rascunho
dores da saúde a repensarem as suas práticas, e revisão crítica do conteúdo; e participou
e, nesse processo criativo e inventivo que é a da aprovação da versão final do manuscrito.
produção do cuidado17, a constituírem estraté- Sampaio J (0000-0003-0439-5057)* contri-
gias e ações para as quais a produção de mais buiu na análise e a interpretação dos dados,
redes vivas seja o norte das ações em saúde. na revisão crítica do conteúdo e participou
A cartografia da família como aposta no da aprovação da versão final do manuscri-
cuidado em saúde mental tem se mostrado um to. Oliveira IL (0000-0002-2762-7255)*
dispositivo fértil para se pensarem os diferentes contribuiu na revisão crítica do conteúdo e
lugares da família na produção do cuidado. Nesse participou da aprovação da versão final do
sentido, percebe-se a necessidade do Caps de manuscrito. Gomes LB (0000-0002-1957-
redefinir o usuário de quem cuida, assim como 0842)* contribuiu na revisão crítica do con-
a atenção básica fez, ou seja, o cuidado precisa teúdo e participou da aprovação da versão
deixar de ser individual para ser familiar. final do manuscrito. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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cuidado%20e%20acontecimento%20e%20nao%20
Recebido em 26/03/2019
ato.pdf. Aprovado em 09/04/2019
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: Ministério da Saúde através do Observatório
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 43, N. 121, P. 441-449, ABR-JUN, 2019

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