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RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo discutir o processo de desinstitucionalização do portador de transtorno
mental e a conseqüente sobrecarga (family burden) sofrida pelos familiares nesse processo. É uma pesquisa de
revisão não-sistemática da literatura com vista a fazer uma reflexão teórica sobre os aspectos que envolvem os
cuidadores de pessoas com transtornos mentais na tarefa de manter essas pessoas na família. Ao final
concluiu-se que a reformulação da atenção à família também se faz necessária dentro dos serviços substitutivos
e na comunidade, pois, ao constatar que o processo de desinstitucionalização é inevitável e ao se ver
desamparada na responsabilidade de cuidar, é compreensível que a família tenda a resistir à nova proposta de
tratamento e a exigir mais dos serviços e das equipes de saúde mental.
Palavras-chave: Família. Desinstitucionalização. Saúde mental.
*
Terapeuta ocupacional. Mestre em Psicologia Social. Supervisora Técnica do Centro de Atenção Psicossocial
da Prefeitura Municipal de Goiânia.
**
Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Titular da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás.
está inserida, representa o sistema nucleador vida normal vai se perdendo no decorrer da
de experiências do ser humano, e toda mudança jornada em busca pela cura.
em qualquer parte do sistema familiar afeta Outros fatores que indicam o grau de
sua totalidade e demanda adaptações para um dificuldade das famílias frente à pessoa portadora
novo estado de equilíbrio dinâmico(3,4). de transtorno mental relacionam-se ao
A constatação de uma deficiência permanente funcionamento familiar e ao clima emocional.
ou uma doença crônica na família é percebida As Emoções Expressas (EE) nas famílias têm
como um momento de crise e luto, no qual sido identificadas como fator que influencia a
ocorre um desequilíbrio entre a demanda de recaída dos pacientes e possuem três
ajustamento e os recursos disponíveis para componentes: observações críticas, hostilidade
lidar com a questão. Para restabelecer o equilíbrio, e superenvolvimento emocional. Percebe-se na
é necessária a superação do momento crítico, o prática que os familiares lidam com os
que dependerá de como cada família reage à sintomas como se eles fossem traços da
situação e de como ela se organiza para personalidade da pessoa e assim elas passam a
construir este novo equilíbrio(5). lidar com os sintomas apresentados e não com
O início, evolução e resultado dos transtornos o sujeito que traz esses sintomas.
mentais são influenciados por diversos fatores Nesse sentido, é essencial o reconhecimento
sociais, dos quais o mais relevante é o da família como alvo de cuidados, que precisa
ambiente emocional e social dentro da família. de apoio para a normalização da rotina
O impacto da doença é influenciado mais pelas familiar, do apoio social e do desenvolvimento
características da família diante do enfrentamento, de habilidades para soluções de problemas
pela qualidade do relacionamento com o relacionados ao comportamento do paciente(6,8,9).
paciente e pelas atitudes em relação à doença do A despeito de as diferentes doenças
que por sintomas específicos. A tolerância a mentais apresentarem diferentes desafios, há
esses sintomas pode estar relacionada à aparentes similaridades na forma de impacto
ansiedade criada em torno da doença, a qual é que elas causam nos membros de cada família
influenciada pelo padrão de funcionamento e e nas formas de enfrentamento. A validação de
interação familiar(6). escalas diagnósticas de funcionamento familiar,
Parece que, o mais difícil para as famílias feita por um grupo de pesquisadores concluiu
diante do acometimento de um membro da família que a compreensão da dinâmica familiar e da
por transtorno mental é a transformação da função que o trantorno assume na família
pessoa que eles antes conheciam. É como se o determina o tratamento de todas as manifestações
ente querido estivesse sido substituído por de uma doença, seja ela psiquiátrica ou não(10).
outro, desconectado dele mesmo, o que O envolvimento da família torna as intervenções
prejudica as relações, traz dificuldades de mais eficientes, multiplica os recursos ao
aprendizagem e de trabalho, colocando por paciente, em especial sua adesão ao tratamento.
terra seus objetivos na vida(7). Outras fontes de Por ser o fator familiar tão importante na
preocupação apresentadas pelas famílias são proteção da saúde ou na manifestação da
os comportamentos de isolamento, auto- doença, é necessário instrumentalizar profissionais
destruição, agressividade, falta de cooperação para que esses possam reconhecer as
e maus hábitos de higiene, que podem gerar necessidades das famílias e dar-lhes atenção
nos familiares ansiedade, raiva, culpa e medo, especial na medida do possível(8-11).
contribuindo para o sentimento de impotência
frente a realidade inesperada(7). A sobrecarga do cuidador
O sentimento de impotência expresso pelos
familiares pode ser conseqüência de longos A sobrecarga familiar pode ser definida,
períodos de peregrinação em busca de um como sendo estresse emocional e econômico
tratamento adequado que ofereça respostas aos quais as famílias se submetem quando um
mais concretas e resultados mais satisfatórios parente recebe alta de um hospital psiquiátrico
frente às expectativas dos familiares. A e retorna ao seu lar, principalmente, quando
esperança de ver seu familiar retornar a sua laços familiares foram rompidos pelo padrão
de cronicidade associado à longa permanência familiar que necessita assumir papel adicional
em instituições psiquiátricas(12). de cuidador, além do papel já assumido na
A presença de problemas, dificuldades ou família(15).
eventos adversos que afetam significativamente Assim, depreende-se que o conceito de
a vida dos familiares ou cuidadores do paciente sobrecarga é multidimensional, pois envolve
correspondem ao elemento do sofrimento aspectos diversos que interfere na rotina e
explicitamente atribuído ao paciente, denominado dinâmica familiar, como sintomas e
de “burden”(13). A sobrecarga objetiva se refere comportamentos do paciente, que desorganizam
aos problemas ou dificuldades verificáveis e o dia a dia da família, exigem tarefas extras de
observáveis causadas pelos comportamentos do cuidado, acarretando estresse crônico com o
paciente. A subjetiva se refere aos sentimentos qual a família deve aprender a lidar(15).
pessoais sobre o ato de cuidar e está relacionada Os sintomas do transtorno mental, como
às conseqüências da sobrecarga objetiva. alucinações, delírios, por exemplo, juntamente
A palavra “burden” na língua inglesa é com comportamentos estranhos, desorganizam
freqüentemente usada para descrever aspectos o cotidiano sendo fonte de muita preocupação
negativos associados aos cuidados de indivíduos do familiar que procura o serviço de saúde
doentes e se equivale aos termos “fardo”, mental. O enorme investimento nas tentativas
“impacto”, “sobrecarga” e “interferência”(13). de resolver os problemas faz com que familiares
Na realidade, “burden” pode ser definido como passem a organizar suas vidas em torno das
um “estressor”, caracterizado pelas situações vivências da doença, pois se sentem paralisados
em que as famílias são forçadas a ajustar ou e fechados em universo reduzido, sem
desenvolver novas estratégias de lidar com a informação qualificada, direcionando grande
pessoa doente e seus sintomas(6). parte de tempo cuidando do familiar(16).
A experiência tem mostrado que o estresse Vale destacar que, embora os atuais serviços
pode estar relacionado também a fatores sociais substitutivos de saúde mental têm colocado os
ou psicológicos, podendo estar presente em familiares como principal eixo de sustentação
resposta ao impacto da sobrecarga e não à do tratamento em unidades extra-hospitalares,
sobrecarga em si, sendo a possível fonte de para manter a pessoa na família, ainda não
estresse a redução da interação social, a fase alcançam o envolvimento efetivo das famílias
da doença e os problemas relacionados ao no tratamento e, portanto, não conseguem
acesso ao sistema de saúde. propiciar o alivio da sobrecarga familiar.
A sobrecarga subjetiva pode ser definida Os sintomas e comportamentos associados
como sendo sobrecarga ou custo emocional, ou à sobrecarga familiar que podem levar a
seja, é o sofrimento da família em resposta ao hospitalização incluem agressão, desilusão,
transtorno mental, e a sobrecarga objetiva confusão, alucinação, imprevisibilidade,
como sendo as demandas reais do paciente. A retraimento social e cuidado pessoal precário(14).
sobrecarga subjetiva é composta por uma gama Estes causam alto nível de sobrecarga familiar
de emoções que as famílias enfrentam causadas em conseqüência da ansiedade, falta de
pelo transtorno mental do familiar(14). tratamento efetivo, alteração na rotina familiar
Nesse sentido, o “cuidador” é descrito e estigma que colocam as famílias “em risco
como um indivíduo adulto relacionado a outro de deteriorização dos recursos físicos e
pelo parentesco, que assume, sem qualquer psicológicos, enfatizando a necessidade de
forma de pagamento, responsabilidade por recursos comunitários e apoio às famílias”(14:81).
pessoa portadora de transtorno mental de longa Esse aspecto evidencia a vulnerabilidade
duração que causa incapacidade, para o qual da família e o quanto todas as áreas do seu
não se encontra tratamento curativo. A pessoa funcionamento são afetadas pela doença mental,
cuidada é aquela considerada incapaz de pois a sobrecarga familiar é fenômeno evidente
desempenhar obrigações associadas às relações que persiste mesmo quando o paciente
normativas adultas, portadora de transtorno responde positivamente a tratamentos inovadores
mental suficientemente severo para requerer e efetivos.
cuidados, constituindo-se sobrecarga para o
Endereço para correspondência: Carlene Borges Soares. Av Portugal, 97 apto. 1301, Setor Sul Goiânia-Goias,
CEP: 74140-020. Email: careneborges@brturbo.com.br
Recebido em: 20/10/2006
Aprovado em: 10/09/2007