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A GOVERNABILIDADE NA ADMINISTRAÇÃO DE LULA

Para iniciarmos uma análise do Governo Lula em termos de governabilidade, de


como sucedeu seu primeiro mandato, os principais acontecimentos e seus reflexos até a
guinada ao segundo mandato, nada mais justo começar por um breve retrospecto
histórico-político de Lula.
Luiz Inácio Lula da Silva nasceu no pobre interior pernambucano. De origem
humilde veio com a família tentar a vida no estado de São Paulo, lugar onde se
formaram suas bases políticas. Destacou-se como presidente do sindicato dos
metalúrgicos do ABC Paulista, no qual seu carisma e liderança política começavam a se
desdobrar. Em 1980, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT).
Dentro do partido começou sua caminhada política rumo à Câmara, sendo eleito
deputado federal. Em continuação, Lula se absteve de reeleger-se no Congresso,
participou das “Diretas Já” em 1984 e seguiu adiante com seus trabalhos dentro do
Partido, o que lhe rendeu forças para ser eleito como o candidato da legenda nas futuras
eleições à Presidência do Brasil. Lula, revestido de um cunho ideológico esquerdista
radical, soou intimidador, o que lhe rendeu a derrota em sua primeira candidatura em
1989. Tentando se reestruturar, candidatou-se nas eleições seguintes, em 1994 e 1998,
mas nas duas, saiu derrotado pelo candidato tucano, Fernando Henrique Cardoso.
Apesar de três derrotas consecutivas, Lula e o PT mais uma vez se candidatavam
ao cargo máximo do Executivo brasileiro, dessa vez, com o PSDB menos competitivo
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do que foi com FHC , tomando a história assim, um novo rumo. O povo brasileiro
elegia em 2002, Lula, como presidente da República Federativa do Brasil.
Essa curta retomada do passado político de Lula será de grande importância para
algumas das análises acerca do grau de governabilidade instaurado em seu governo.
Fernando Henrique Cardoso, ao final de seu legado presidencial de dois
mandatos não deixou o país numa situação estável para seu posterior. Apesar de muitas
conquistas entre 1994 e 2002 e de certa governabilidade ao longo de seu governo, ao
final de oito anos o país se encontrava num contexto de crise econômica agravada pela
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desvalorização do Real e a inflação como decorrência , sem falar da estagnação do
crescimento anual do PIB (na faixa de 0,6% em 2002) 3.

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Apesar deste final conturbado, as políticas econômicas do governo FHC foram
mantidas, tanto que o Governo Lula não ousou uma inovação nas políticas
macroeconômicas do Estado, o que Lamounier caracteriza como a “‘ortodoxia’ de
Fernando Henrique” 4 , mas sim um emprego mais pragmático dessas políticas.
O caminho tomado por Lula era um traço daquilo conquistado nas eleições de
2002 através da esmagadora vitória sobre o tucano José Serra. O candidato petista foi
eleito com mais de 61% dos votos válidos, o que lhe rendeu expressiva legitimidade,
esta, ao contrário, não adquirida ao mesmo nível pelo seu partido (PT) 5.
Esta diferença entre Lula e o partido foi essencial. O presidente demonstrava-se
com mais força que o PT, o que lhe deu maior autonomia, preferindo assim seguir um
viés que se distanciava do que apresentava o partido em termos ideológicos, escolha
esta que pode ter garantido a superação da crise econômica do início de seu governo e a
conquista de uma estabilidade nos anos seguintes. Com uma escolha nada cautelosa,
optando assim por divergências partidárias internas, Lula passava por seu primeiro teste
presidencial.
Contudo, apesar da continuidade daquilo que FHC lhe deixou de agradável, as
particularidades do Governo Lula são muitas. Se o foco do presidente passado foram
claramente as políticas econômicas, já Luiz Inácio propôs uma inversão de prioridades
notória. De longe, as políticas sociais foram o principal alvo deste governo. Com a
candidatura às eleições de 2002, pautada em seu principal merchandising eleitoral, o
programa de erradicação da fome no Brasil “Fome Zero” 6, tornavam-se claras as
prioridades governamentais.
Essas prioridades não ficaram somente em âmbito publicitário, o “Fome Zero”
foi posto em prática, mas não vingou. A solução viria no mesmo campo, através da
implementação do programa de transferência de renda “Bolsa Família” (continuação do
Fome Zero). Este não só teve sucesso como foi um grande aliado à governabilidade do
Governo Lula. Com este programa e o aumento dos salários mínimos, o presidente
trouxe para si uma enorme leva de votantes do Nordeste e Norte do país, as regiões mais
favorecidas pelo Bolsa Família.
A enorme aprovação de Lula entre as camadas mais baixas da população
brasileira surgiria como uma “arma” em sua mão. A popularidade do governante aos
poucos foi se mesclando com a governabilidade. Daí a enorme importância do programa
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para a instauração e manutenção da “governabilidade nas ruas” 7. Essa “arma”, como
tratado anteriormente, ganha esse status mais a frente com os escândalos de corrupção
do Partido dos Trabalhadores em 2005.
Aquilo pelo qual o Partido mais se orgulhava e combatia enquanto oposição caiu
sobre a cúpula do PT. Os escândalos de corrupção envolvendo o alto escalão do partido
trouxeram a tona uma grave crise que atingiu em cheio o Governo Lula, era a chamada
“queda do império da ética” 8.
O famoso “mensalão”, caracterizado pelo pagamento a deputados de partidos
aliados em troca de apoio no Congresso, além da existência de um caixa dois para
bancar as campanhas de prefeitos da legenda petista, colocaram em cheque o Governo,
demonstrando ser essa a maior crise de governabilidade ao longo dos oito anos de
mandato presidencial.
Lula se via numa sinuca de bico, mas não foi ingênuo em sua reação. Numa
massa de perguntas, se já sabia ou não dos esquemas, se aquilo era uma surpresa ou não,
dos escândalos envolvendo seu próprio filho, o presidente usou de artimanhas poderosas
para não se comprometer juntamente com o Partido, o que se refletiu nas eleições
seguintes.
Como tratado anteriormente, uma de suas principais “armas” advinham de sua
alta aprovação popular, que beirava os 43% e somente 19% de desaprovação 9 , mesmo
tendo a máscara do PT caído. Lula, sendo de origem nordestina, não abriu mão de seu
povo no momento imprevisto. Como se viu, as políticas sociais do Governo tidas por
críticos somente como medidas assistencialistas e paliativas, não obtiveram a mesma
leitura do povo. Apesar do menor nível de informação da população de baixa renda e
baixa escolaridade, o pouco que lhes chegava dos acontecimentos em Brasília, de nada
influenciava o olhar daqueles que já haviam sido conquistados por outrem.
Lula detinha um alto nível de governabilidade democrática por deter a maior
parte do eleitorado de baixa renda, ou seja, a maioria da população brasileira. À
população pobre restou a esperança e o voto econômico 10.

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Cf.: MERCADANTE, Aloizio. Brasil: primeiro tempo, análise comparativa do governo Lula - São
Paulo: Planeta do Brasil, 2006.
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Outra estratégia de Lula se limitou ao apontar de dedo para o partido. Tendo
como recorrência o histórico de corrupção partidária brasileira, coube a ele acusar o
sistema político 11.
Com a culpa sobre os companheiros de partido não restou outra opção a Lula.
Uma renovação do corpo político petista se fez necessária, o que pode-se considerar
como mais uma das manobras utilizadas pelo presidente nesse contexto de crise, já que
a medida tomada acabava por legitimar sua isenção e propiciava um reerguimento do
presidente rumo a mais uma campanha eleitoral.
Assim, uma breve pergunta, já feita por estudiosos da área política, pode servir
para uma análise do que marcou este mandato em termos de governabilidade: como
Lula saiu dos escândalos de corrupção que envolviam seu governo para mais uma
candidatura vitoriosa em 2006?
As artimanhas citadas se encaixam à resposta desta pergunta. O presidente soube
onde criar laços, estes que lhe garantiram mais uma candidatura mesmo após todo o
alvoroço político.
Ao falar de governabilidade, podemos tratá-la como um todo, ou divisões podem
ser efetuadas para análise mais específica. Ao analisar a administração do Governo
Lula, essas diferenciações podem ser ressaltadas, tendo em vista que a capacidade de
governar de Luiz Inácio se deu de maneira heterogênea em seus diferentes campos de
atuação. Como exemplo, a análise de “governabilidade nas ruas” lhe seria favorável, o
que é comprovado nas pesquisas de aprovação popular, já em análise de
governabilidade institucional, referindo aqui à capacidade de atuação dentro do
Congresso, isto seria visto de modo dessemelhante.
Nas eleições de 2006, Lula, mais uma vez chegava ao Executivo com alta
legitimidade eleitoral. Dessa vez o tucano derrotado foi Geraldo Alckmin, com números
semelhantes ao segundo turno de 2002. O candidato do PT venceu as eleições com
aproximadamente 61% dos votos válidos.
Neste segundo mandato, apesar de iniciar seu governo com 51% de aprovação e
somente 17% de desaprovação popular, Lula sofreu com instabilidades governamentais.
Mais uma vez a diferença entre o voto na sigla e o voto no candidato tornava-se óbvia, o
poder de Lula era evidente, enquanto o PT cada vez mais perdia cenário dentro da
Câmara e do Senado 12.

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Quanto às instabilidades, retornemos à crise de governabilidade do Governo
Lula em 2005. Enquanto o PT governou a presidência da Câmara, o mesmo detinha
uma situação estável, mas o pouco caso demonstrado com as eleições para a câmara em
2005 fez com que mais uma vez o governo adentrasse num contexto de depressão.
Com a vitória de Severino Cavalcanti, pertencente a um partido independente
(PP), a instabilidade institucional mais uma vez caía sobre o governo. Sem nenhuma
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surpresa, este mesmo período viria a coincidir com o mensalão , o que dá créditos
para a constatação desta crise petista no Congresso como mais uma das que compõe os
momentos de baixo grau de governabilidade no Governo Lula. O episódio só foi
controlado com a renúncia de Severino e a entrada do aliado Aldo Rebelo (PCdoB - SP)
na presidência da Câmara ainda no mesmo ano.
Ainda dentro da atuação no Congresso, uma comparação entre números e
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motivos para o uso das Medidas Provisórias (MPs) entre os governos FHC e Lula se
faz útil para análise de governabilidade do governo vigente.
As intromissões do Executivo no Legislativo são marcas registradas de ambos
governos, mas o que os difere nesse quesito são as reais intenções de tais medidas
institucionais.
Lula ao longo de seus dois mandatos conseguiu superar FHC em número de MPs
editadas. Cardoso em oito anos atingiu uma média de 3,3 medidas por mês ao longo de
seu governo, já Lula o supera com uma marca aproximada de 4,5 MPs editadas em
média mensal. Em seu primeiro ano de mandato foram 240 medidas, enquanto no
primeiro de FHC, 156 foram editadas. As MPs editadas até Setembro de 2010
correspondem a quase 400, ao longo do Governo Lula 15.
Tais medidas correspondem a pontos que se contradizem no que condiz à
legitimidade de Lula e do PT dentro do Congresso. O exagero em edições de medidas
provisórias pelo governante coincidia durante todo o seu governo com seu baixo grau de
legitimidade institucional. Podendo o foco funcional das MPs ser alterado, Lula, antes
crítico das recorrências abusivas dos governos passados 16 , não pensou duas vezes antes
de usá-las o quanto necessário para manutenção da governabilidade.
Num outro plano, Lula e seu governo obtiveram sucesso. Ao falar de política
externa, alguns críticos céticos aparecem, mas são logo intrigados com as cada vez mais

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freqüentes conquistas do governo Lula no campo internacional. A recuperação do
protagonismo diplomático brasileiro, este trabalhado de maneira tímida com FHC, a
busca pela consolidação do MERCOSUL, os estreitamentos entre Brasil e África
Oriente Médio, o estabelecimento de novas parcerias comerciais e políticas com outros
países, as freqüentes lutas brasileiras pela correção das assimetrias comerciais mundiais
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e a promoção da cooperação Sul-Sul em demasiados âmbitos , colocaram o Governo
Lula num patamar diferenciado no que tange às conquistas internacionais.
A política externa brasileira colocada em prática por Lula desde o início de seu
primeiro mandato lhe rendeu frutos. A política internacional é um tópico que abrange e
interfere nas políticas públicas do Estado 18 , logo, também na aprovação e legitimidade
internas. Por isso, em uma análise breve, pode-se inferir que a política externa do
governo Lula lhe foi favorável em termos de governabilidade. As interferências
brasileiras em missões de paz presididas pela ONU, a entrada do Brasil em causos
internacionais delicados 19 , com a missão de conciliar as partes, e a repercussão positiva
de Lula no exterior contribuíram e contribuem como um reflexo interno para a
estruturação de um Estado governável nas mãos do presidente.
Numa síntese da compilação dos acontecimentos aqui supracitados, pode-se
dizer que Lula e seu governo, por mais que tenham sido colocados em cheque, que
turbulências tenha-os afetado e que crises tenham eclodido, numa rara felicidade,
conseguiram com habilidade manter a governabilidade. Seja através do marketing
político, de artimanhas poderosas e estratégias políticas, esta conquista deve ser
ressaltada.
Lula chega ao final do ano de 2010 com cerca de 85% de aprovação popular
segundo pesquisa do CNI/Ibope, algo que beira a uma “monarquia democrática” se
assim pode-se dizer. Para não restar dúvidas acerca do grau de governabilidade de Lula,
nada mais justo alavancar as eleições de 2010 e a projeção do presidente sobre a mesma.
Dilma Rousseuff, atual candidata do PT, querendo ou não, tem sua candidatura elevada
às alturas com o empurrãozinho amigo de seu companheiro Luiz Inácio Lula da Silva.
Num momento em que o atual presidente - não aspirante a nenhum cargo político no
ano -, aparece com maior freqüência na campanha publicitária de seu partido do que
seus próprios candidatos, e que tem a capacidade de influenciar nos resultados, ao ponto
do PT poder eleger sua candidata, claramente nos ombros de Lula, ainda no 1º turno das
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eleições segundo pesquisas, mostra-nos claramente o quanto a aliança entre
popularidade e governabilidade no Governo Lula alcançou o que almejou.

5. REFLEXÕES

Como dito, a utilização massiva dessas medidas institucionais deu-se de maneira


distinta entre os governantes, o que permite uma análise de governabilidade em
decorrência da interferência abusiva do Executivo na Câmara e no Senado. FHC, como
tratado no capítulo anterior, abusou de tais medidas com o intuito de promover o
estreitamento das coligações no Congresso para assim criar um contexto mais propenso
à governabilidade. A partir desta visão, pode-se entender que a intromissão de Cardoso
no Legislativo através das Medidas Provisórias propiciou uma centralização negativa na
figura do Executivo, mas neste caso propiciou a conquista da governabilidade.
Assim como FHC, as MPs editadas por Lula estão bem distribuídas nos dois
períodos de governo. Tais medidas do atual presidente correspondem a um cálculo
inversamente proporcional entre o apoio a ele destinado e o número de MPs editadas. O
apoio no palácio ao PT nunca foi o ideal, o que foi agravado com as eleições de 2006.
Pela primeira vez o PT perdia cenário no Congresso e deixava de ser a maior legenda da
casa.
A estratégia de Lula ainda é duramente criticada por opositores políticos e
juristas que alegam que a intromissão exacerbada do Executivo contraria o Artigo 62 da
Constituição Federal, que prevê a utilização das medidas provisórias como um meio
desburocratizante em casos de urgência. De fato, Cardoso e Lula fizeram das MPs um
braço do poder Executivo, mas foi este instrumento, que em ambos os casos, permitiu a
conquista da governabilidade.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMAROTTI, Gerson. Memorial do escândalo: os bastidores da crise e da


corupção no governo Lula / Gerson Camarotti & Bernardo de la Peña ; prefácio de
Helena Chagas. -- São Paulo: Geração Editorial, 2005. -- (Coleção história agora).

MERCADANTE, Aloizio. Brasil: primeiro tempo, análise comparativa do governo


Lula - São Paulo: Planeta do Brasil, 2006.

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VIANNA, Luiz Werneck. Esquerda brasileira e tradição republicana: estudos de
conjuntura sobre a era FHC - Lula / Luiz Werneck Vianna. Rio de janeiro: Revan,
2006.

A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21 / Carlos Ranulfo


Melo, Manuel Alcántara Sáez. (organizadores) - Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

40 anos: política, sociedade, cooperação internacional / Wilhelm Hofmeister


(organizadores). - Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2009.

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