cidade São Paulo editora Companhia das Letras ano 2002
O historiador Carlo Ginzburg configura-se com destaque no
cenário internacional, e no Brasil há alguns anos seus escritos têm sido recebidos com muita atenção pelo público, pela particularidade com a qual se dedica aos ensaios historiográficos produzidos e pos- tos a circular para os seus leitores interessados. Entre as suas princi- pais obras1, a que se tornou mais conhecida entre os brasileiros é O queijo e os vermes. Relações de força: história, retórica, prova é o seu mais recente lançamento no Brasil, inclusive contando com a sua presença em palestras nas universidades do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em Relações de força, Carlo Ginzburg traz à baila um debate bastante contundente e polêmico, sem perder a elegância e a seriedade que marcaram a sua trajetória de escritor. Entra no debate atual da historiografia com o propósito de problematizar a visão pós-moder- na da abordagem da história como prática retórica, desobrigada do seu caráter de objetividade. O esforço do autor, e aqui a sua inten- cionalidade se fez com muita clareza e acuidade, foi o de, a partir da busca genealógica do pós-modernismo, desmontar a visão pós-mo- dernista presente nos vários âmbitos da cultura e da vida pública que incluem a história e a reflexão historiográfica. Sua perspicácia esta- rá no movimento de busca das pistas do argumento pós-moderno.
1 Traduzidas para o português são as seguintes: O queijo e os vermes (1987);
Os andarilhos do bem (1988); Mitos, emblemas e sinais (1989); História noturna (1991); Olhos de madeira (2001) (traduzidas pela Companhia das Letras) e Indagações sobre Piero (1989) (traduzida pela Paz e Terra). 224 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004
Nesse sentido, Ginzburg chegará aos tempos da juventude de
Nietzsche, quando numa releitura do pensador alemão sobre a retórica irá contrastar a sua compreensão de retórica como sistema de tropos, isto é, “de figuras de linguagem, no qual uma noção rigorosa de verdade não tem lugar” (p. 25), o que reduz a verdade ao argumento do falso ou do verdadeiro. Contra esse argumento, Ginzburg aponta- rá uma vinculação entre retórica e prova, uma retórica baseada na prova, não apenas uma detecção de falsidade que de verdade, mas de mostrar que o que está fora do texto está também dentro dele, “abrigado entre as suas dobras” (p. 42). Nesse caso, a retórica base- ada na prova tem a função de descobrir no texto o histórico e fazê-lo falar. Aí consiste a relação de força. Ao citar a exortação de Walter Benjamin2, que afirmava a necessidade de “escovar a história ao contrário”, o autor confirma que “é preciso aprender a ler os teste- munhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. Só dessa maneira será possível levar em conta tanto as relações de força como aquilo que é redutível a elas” (p. 43). O trabalho do historiador consiste em problematizar (ou analisar, como trata Ginzburg) as fontes. É nesse exercício que o esforço de compreensão das relações de força se fará presente, pois o “conhecimento possível” (p. 45) será apreendido no trabalho de construção de uma retórica baseada na prova. Uma retórica que se “move no âmbito do provável, não no da verdade científica (como a concebida pelo positivismo) e numa perspectiva delimitada, longe do etnocentrismo inocente”. Para Ginzburg, a análise construtiva das fontes requer um tratamento que as concebam não como “janelas escancaradas, como acreditam os positivistas”, nem como “muros que obstruem a visão, como pensam os céticos” (p. 44), mas como “espelhos deformantes” que exigem interdições e possibilidades com vistas à construção histórica. A sua tese que vincula retórica e prova, marco do seu distancia- mento da visão pós-moderna da historiografia, será baseada em três exemplos que irão possibilitar alcançar o objetivo da defesa de “que, no passado, a prova era considerada parte integrante da retórica” e que hoje deixada de lado por alguns, “implica uma concepção do modo de proceder dos historiadores” (p. 13). Uma questão que pas-
2 Walter Benjamin, Concetto di storia, Torino, 1997.
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sa por uma preocupação metodológica, mas com implicações que
dizem respeito à convivência e ao choque de culturas, dadas as ten- sões existentes entre narração e documentação. Os três exemplos tomados, “a leitura de um trecho famoso da Educação sentimental, de Flaubert”, o “relato setecentista sobre uma revolta nas ilhas Marianas” e a “análise do quadro Demoiselles d’Avignon de Picasso”, encaminham-se na demarcação da crítica ao relativismo céptico, que distancia narração e documentação e que concebe “uma idéia de retórica não apenas estranha, mas também contraposta à prova” (p.15). A partir desses exemplos, Ginzburg propõe a redescoberta da retórica de Aristóteles, que ao se basear na combinação entre retórica e prova, evidencia esta última, atribuin- do-lhe um papel essencial na produção historiográfica. No primeiro e segundo capítulos do seu livro, dedica-se à discussão sobre a herança aristotélica da retórica, perseguida na retomada que Lorenzo Valla faz, em 1357, da passagem na qual Aristóteles observa: “Dorieu venceu os jogos olímpicos”. Nessa passagem, dentro da realidade grega, não estava a preocupação com aquilo que se encontrava em jogo na competição, a coroa de louros, pois todo mundo já sabia, era óbvio. A observação pressupõe um saber compartilhado e não declarado que na sua forma oculta revela um saber tácito evocado, o que levará Lorenzo Valla a compreender que a retórica de Aristóteles se move no âmbito do provável. Um historiador distanciado dessa realidade precisará fazer a leitura do que não foi dito, que para ele não é óbvio, não está no texto, está fora dele, num espaço em branco que precisa ser decifrado. É como um dito que está na voz do outro e não é compreendido por aquele que está ouvindo, uma voz estranha, “que provém de um lugar situado fora do texto”. Na leitura de um trecho famoso da Educação sentimental, de Flaubert, Ginzburg constrói o seu capítulo “Decifrando um espaço em branco”. Nesse capítulo, irá tratar da retórica visual, tipográfica, pois será no espaço em branco deixado pelo autor na divisão dos capítulos da Educação sentimental que Ginzburg criticará o traba- lho historiográfico que valoriza os modelos narrativos que intervêm “apenas no final, para organizar o material coletado”(p. 44). Para ele, ao contrário, deve-se considerar, ou melhor, deslocar a atenção do produto final do documento acabado para as questões presentes no 226 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004
documento, as frases preparatórias, o interdito que não está dito, os
espaços em branco. Lembrando Lucien Febvre, Ginzburg chama a atenção para o trabalho com as fontes: “as fontes históricas não fa- lam sozinhas, mas só se interrogadas de maneira apropriada” (p. 114). Nesse caso, a mediação entre questões e fontes atribui às narrativas uma posição provisória, possibilitando modificações no transcurso do processo de pesquisa. No capítulo que trata do relato setecentista sobre uma revolta nas Ilhas Marianas, o autor irá problematizar “que uma maior consciência da dimensão literária de um texto pode reforçar as ambições referenciais que, no passado, eram compartilhadas tanto pelos historiadores quanto pelos antropólogos”. Ao recorrer a uma passagem tirada do livro escrito por Charles Le Gobien3, em 1700, que descreve a primeira fase de uma revolta desenvolvida pelos indígenas das Ilhas Marianas, Ginzburg ressalta que por baixo da superfície da retórica narrativa é possível perceber “uma voz diversa, uma voz dissonante, não domesticada [...] que provém de um lugar situado fora do texto” (p. 98). E isso para enfatizar que os textos contêm fendas e das suas “fissuras, sai algo inesperado” (p. 99). Essa afirmativa pode ser percebida na narrativa de Le Gobien sobre o discurso do indígena Hurao, líder de uma conjura, que incita o seu povo a rebelar-se contra os espanhóis e a expulsá-los da ilha. O discurso do indígena estará identificado com o discurso do próprio narrador, pois segundo Mably, citado por Ginzburg, “o historiador esconde-se por trás de uma máscara tomada de empréstimo” (p. 95). Ao narrar o ímpeto contra a população colonizadora, tomará de em- préstimo o discurso narrado para, por meio dele, expressar “a pro- funda ambigüidade que ele compartilhava com a ordem religiosa de que fazia parte”. Essa leitura somente poderá ser feita caso o histori- ador, no contato com a documentação que estará trabalhando, con- siga analisar as estratégias do autor que se encontra por detrás das muralhas de proteção na qual se esconde. Na “análise do quadro Demoiselles d’Avignon de Picasso”, Ginzburg coloca em relevo o diálogo necessário entre as culturas
3 Histoire des Iles Marianes, nouvellement converties à les religion
chrestienne; et de la mort glorieuse des premiers missionnaires qui y ont prêché la foy. resenhas 227
que, segundo ele, hoje está relegado a um plano secundário. A apro-
priação que Picasso faz das “culturas figurativas não européias” le- vou-o a inaugurar um novo tempo na história da arte, quando conse- gue decifrar “os códigos das imagens africanas”, o que vai permiti-lo criar Demoiselles d’Avignon. A criação é, sem sombra de dúvida, a quebra da relação de força entre as culturas, portanto ação de uma multiplicidade cultural capaz de gerar a produção de um novo mo- delo ( paradeigma), de inaugurar um novo tempo. Relações de força: história, retórica, prova é um livro bastante instigante, como o é o próprio Ginzburg, autor e precursor do para- digma indiciário. Na mesma medida, é também um livro complexo, cheio de armadilhas, até mesmo pela sua organização editorial, que não se produziu com a intenção de ser propriamente um livro. Seus capítulos foram produzidos em tempos diferentes, com especifi- cidades diferentes. Mas isso não o faz ser menos interessante, ao contrário, desafia o leitor a uma relação, também de força, com a produção de uma nova maneira de fazer história, sem perder, por um lado, o rigor científico e, por outro, as virtudes de uma escrita clara e cativante.
Irlen Antônio Gonçalves
Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais