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Avaliação ambiental integrada da Bacia do Rio Uruguai - análise séria dos

impactos ou legitimação da atual política energética?

Por Rogério Rammê (*)

O caso da hidrelétrica de Barra Grande ganhou notoriedade em nosso país, não apenas
por envolver a inundação de mais de 6.000 hectares de mata atlântica situados ao
longo de vales encaixados por onde o Rio Pelotas segue seu curso, mas também por
decisões judiciais, administrativas e políticas extremamente questionáveis.

Como tudo nesse país, o caso de Barra Grande estaria condenado a cair no
esquecimento não fosse uma situação recentemente ocorrida em nova batalha judicial,
que demonstrou a total falta de seriedade na condução da política ambiental por parte
do Governo Federal, bem como o nível de politização que contamina as decisões do
nosso Poder Judiciário.

Para uma melhor compreensão do ocorrido, devemos recordar desdobramentos do


passado recente. Quando da descoberta que o Estudo de Impacto Ambiental, realizado
pela empresa Engevix, para a construção da hidrelétrica de Barra Grande era repleto
de imperfeições técnicas, a ponto de não constatar a existência de milhares de
hectares de florestas primárias e secundárias em avançado estágio de regeneração na
região, e após organizações não governamentais ambientalistas ingressarem na Justiça
pleiteando a suspensão das licenças ambientais expedidas pelo IBAMA para o
empreendimento, numa rápida manobra, sem a participação das organizações
ambientalistas, foi firmado um Termo de Compromisso com o objetivo de legitimar a
continuidade de um processo de licenciamento ambiental juridicamente viciado.

Nesse Termo de Compromisso, além de medidas compensatórias paliativas que jamais


compensarão sequer um por cento do patrimônio nacional perdido (últimos
remanescentes de mata atlântica da região sul do país), a União, através dos
Ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia, se comprometeu taxativamente a
realizar um estudo macro, denominado Avaliação Ambiental Integrada da Bacia
Hidrográfica do Rio Uruguai.

Dentre os considerando os sustentados para justificar a celebração do referido Termo


de Compromisso se reconheceu a importância de se identificar e avaliar os efeitos
sinérgicos e cumulativos resultantes dos impactos ocasionados pelo conjunto dos
aproveitamentos em planejamento, construção e operação situados em uma mesma
bacia hidrográfica.[2]

A forma eleita pelo Termo de Compromisso para identificação e avaliação de tais


efeitos sinérgicos e cumulativos na bacia hidrográfica do rio Uruguai foi a Avaliação
Ambiental Integrada, que tem como objetivo, além da identificação de tais efeitos
sinérgicos e cumulativos resultantes do conjunto de hidrelétricas planejadas para a
bacia do rio Uruguai, também identificar os aspectos a serem abordados no âmbito dos
estudos ambientais que subsidiarão o licenciamento ambiental dos futuros
aproveitamentos hidrelétricos da bacia.[3]

Assim, numa interpretação lógica, futuros licenciamentos de hidrelétricas na bacia do


rio Uruguai deveriam aguardar a conclusão da Avaliação Ambiental Integrada, afinal
daí sairão novos subsídios, dentro de uma visão macro, integrada, que não contemple
apenas o impacto isolado de uma única hidrelétrica, mas sim do conjunto de
hidrelétricas planejadas para toda bacia em questão.

Entretanto, surpreendentemente, a FEPAM, órgão ambiental estadual do Rio Grande


do Sul, desconsiderando o compromisso assumido pela União, emite licenças
ambientais prévias para duas outras hidrelétricas planejadas para serem construídas
no rio Ijuí, denominadas Passo São João e São José, inseridas dentro da bacia do rio
Uruguai, antes que se conclua a Avaliação Ambiental Integrada da bacia.

Novamente fatores econômicos falaram mais alto. Está previsto para 16 de dezembro
de 2005, leilão para comercialização de energia nova, cujo requisito para participação é
a de que os empreendimentos habilitados possuam licença prévia.

Inconformadas com mais esse desrespeito a direitos difusos constitucionalmente


assegurados, bem como aos compromissos pactuados no Termo de Compromisso de
Barra Grande, foi interposta nova ação civil pública por parte da sociedade civil
organizada,[4] no intuito de suspender as licenças prévias emitidas pela FEPAM.

A argumentação utilizada não poderia ser outra se não a de que, uma vez emitidas
licenças prévias para as duas novas hidrelétricas, a viabilidade ambiental de referidos
empreendimentos já terá sido atestada pelo órgão ambiental, pois este é o papel de
uma licença prévia conforme determina a legislação ambiental vigente. Uma vez
aprovada a viabilidade ambiental destas duas novas hidrelétricas, por parte do órgão
ambiental, e considerando que seus aproveitamentos energéticos serão leiloados ao
setor privado, com a garantia de viabilidade ambiental por parte do órgão competente,
nada que a Avaliação Ambiental Integrada venha a dizer posteriormente será capaz de
alterar o que se decidiu, ou seja que tais hidrelétricas são viáveis ambientalmente.

Posta a questão ao Poder Judiciário veio a primeira decisão. Valendo-se de princípios


ecológicos fundamentais, e de uma lucidez impressionante, o Juiz Federal da Vara
Ambiental, Agrária e Residual de Porto Alegre, defere liminar acatando o pedido
formulado na ação civil pública referida. Em uma decisão de vanguarda, o ilustre
julgador reconheceu ser imprescindível que essa prévia avaliação global (integrada) de
todos os aproveitamentos hidrelétricos na bacia do rio Uruguai fosse feita, porque do
contrário se estaria contrariando um princípio ecológico básico que estabelece que, em
termos de meio ambiente e ecologia, o todo não é apenas a soma das partes. Ainda,
os impactos ambientais da construção de uma hidrelétrica não se restringem à sub-
bacia hidrográfica daquele curso de água que foi interrompido ou daquelas terras
adjacentes que serão inundadas. Esse é apenas o nível local do impacto, que deve
também ser considerado quanto ao restante da bacia hidrográfica e dos ecossistemas
que dependem direta ou indiretamente daquele equilíbrio. Na natureza nada é isolado
ou independente, tudo depende de tudo. Da mesma forma que uma floresta não é
apenas a soma das árvores que a compõe (partes), também uma hidrelétrica (parte)
não produz efeitos apenas naquele local, mas alcança toda a bacia hidrográfica e
respectiva região (todo). Não se poderiam considerar isoladamente apenas os impactos
de cada hidrelétrica sobre um pedaço da bacia, porque o impacto final não é igual a
mera soma aritmética de cada um dos impactos individualmente considerados.

Refutando todos os argumentos de defesa dos réus, decidiu o nobre julgador haver
inequívoca verossimilhança no direito invocado pela associação autora, no sentido de
que o licenciamento ambiental prévio das duas hidrelétricas somente poderia ser
concedido a partir de uma avaliação ambiental INTEGRADA que envolvesse toda a área
de abrangência do rio Uruguai, e não apenas na forma localizada como foi feito.[5]
Entretanto, valendo-se de um recurso de cunho muito mais político do que jurídico,
chamado suspensão de liminar, muito utilizado no caso da hidrelétrica de Barra
Grande, a mesma União Federal que assumiu o compromisso de realizar a Avaliação
Ambiental Integrada quando da tragédia de Barra Grande, recorre ao Tribunal Regional
Federal da 4ª Região e obtém a suspensão da execução da referida liminar concedida
em primeira instância processual.

Os argumentos utilizados são os mesmos que legitimaram a continuidade de Barra


Grande, como por exemplo, lesão à economia pública e necessidade premente de
expansão do parque energético nacional (a qualquer custo???).

Decidiu o TRF4, que analisando o conflito dos bens jurídicos aqui defendidos, temos de
um lado, a necessidade de elaboração de uma avaliação ambiental integrada em
tempo hábil, em defesa do meio ambiente, cuja aplicação ao caso concreto não se
descarta; de outro, a premente necessidade de expansão do setor energético, com
leilões aprazados para dezembro do ano em curso, cujo embargo, sem dúvida,
subtrairá qualquer credibilidade em tais investimentos.[6]

Assim, com essa análise, o TRF4 considerou que as licenças prévias concedidas nada
comprometem o estudo, já em andamento, para a Avaliação Ambiental Integrada, já
que apenas (apenas???) definem que as usinas são viáveis, mas não autorizam o início
das obras, que dependem de licença de instalação. Suspendeu-se, com essa
argumentação, a liminar deferida em primeira instância.

Tal decisão, data maxima venia, é realmente política, não jurídica, pois nossa
legislação é clara e a viabilidade ambiental é que está em jogo. Será isso que a
Avaliação Ambiental Integrada dirá quando estiver concluída, ou seja, se o conjunto
dos empreendimentos planejados são viáveis ou não. Para que Avaliação Ambiental
Integrada se ainda pode-se decidir isoladamente que usinas planejadas na bacia do rio
Uruguai são viáveis ambientalmente? Essas perguntas não foram nem serão
respondidas...

Provavelmente referidas hidrelétricas participarão do leilão de energia nova marcado


para 16 de dezembro, com a garantia de sua viabilidade ambiental assegurada pelo
órgão ambiental competente, por meio das licenças prévias emitidas. Caso a Avaliação
Ambiental Integrada conclua que referidos empreendimentos não são viáveis
ambientalmente dentro de uma visão global, quem arcará com o prejuízo da empresa
ou consórcio de empresas que venham a adquirir o potencial energético de referidas
hidrelétricas no leilão? Simples, ninguém por que isso não acontecerá. Está provado
que a Avaliação Ambiental Integrada é mero estudo pró-forma, que a própria União
Federal sabe que não trará nenhuma conclusão efetiva que possa determinar alguma
alteração dos velhos planos de expansão do setor energético nacional, em relação a
nossa já tão comprometida bacia hidrográfica do rio Uruguai.

A prova de que nem a União Federal acredita na Avaliação Ambiental Integrada está
nos autos do recente processo aqui referido, quando ela afirma não ser necessário a
conclusão deste estudo macro para licenciar as hidrelétricas Passo São João e São
José.

Até quando decisões jurídico-políticas patrolarão decisões judiciais de vanguarda que


apenas buscam dar efetividade à aplicação de nossa legislação ambiental? Será utopia
de ambientalista sonhar com um novo modelo energético, que contemple alternativas
menos impactantes sob o ponto de vista sócioambiental, ou ainda, simplesmente
sonhar com uma maior seriedade na condução da política do setor? Cada vez mais
parece que sim.

Notas:
[1] Advogado especialista em direito ambiental e assessor jurídico do Núcleo Amigos
da Terra Brasil.
[2] Décimo segundo considerando do Termo de Compromisso de Barra Grande.
[3] Cláusula oitava, inciso III do Termo de Compromisso de Barra Grande.
[4] Núcleo Amigos da Terra Brasil, entidade autora da ação número
2005.71.00.033530-9 em tramitação junto a Vara Ambiental, Agrária e Residual da
Justiça Federal de Porto Alegre.
[5] Processo 2005.71.00.033530-9 da Vara Ambiental, Agrária e Residual da Justiça
Federal de Porto Alegre.
[6] Suspensão de Execução de Liminar n° 2005.04.01.048430-7/RS.

Acesse o Dossiê sobre Barra Grande na página da Apremavi com os documentos


citados acima e outros: clique aqui
(http://www.apremavi.com.br/dossie/pbarragrande.htm#docs) )
(Envolverde/Ecoagência)

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