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Resenhas Book Reviews

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832019000300014

FEIN, Elizabeth; RIOS, Clarice (ed.).


Autism in translation: an intercultural
conversation on autism spectrum
conditions. Cham: Palgrave Macmillan,
2018. (Culture, Mind, and Society). 304 p.

Valéria Aydos*
* Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto A legre, RS, Brasil
Em pós-doutoramento
valeria.aydos@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-3298-5727

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O livro Autism in translation é resultado de um diálogo entre pesquisadoras e


pesquisadores de várias áreas do conhecimento que se encontraram em um
evento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2015, para a troca de
ideias e experiências sobre (e com) o autismo nos Estados Unidos, no Brasil e
na Itália.
Tendo em comum uma postura epistemológica e uma prática de pes-
quisa que busca a dessencialização e a contextualização social e política do
autismo, o livro, além de ter como um dos seus pontos mais relevantes artigos
escritos colaborativamente por pesquisadores e pesquisadoras de diferentes
países, traz um instigante diálogo entre mães e pais de autistas, pessoas situ-
adas no espectro e fora dele, com formação em antropologia, saúde coletiva,
estudos da deficiência, etnomusicologia, linguística, psicologia, psiquiatria e
psicanálise.
Como salientam Elizabeth Fein e Clarice Rios na Introdução, uma das qua-
lidades do livro é colocar em diálogo a antropologia psicológica de linha norte-
-americana com a longa tradição de estudos em saúde coletiva na América do
Sul. No entanto, o leitor depara-se com uma multiplicidade muito maior de
perspectivas teóricas, epistemológicas e políticas que ampliam e tensionam
esse diálogo. Já no título da coletânea, o uso do termo “conditions” ao invés do
termo biomédico “disorder”,1 para categorizar o espectro do autismo, indica um
posicionamento de estudiosos e ativistas que, ao mesmo tempo que são sensí-
veis ao sofrimento e às dificuldades práticas e simbólicas do “viver no espectro”,
defendem uma despatologização dessa condição/neurodiversidade. O livro
está dividido em três partes, seguidas de uma síntese crítica da discussão em
cada uma: I) Histórias políticas do autismo; II) Voz, narrativa e representação;
e III) O conceito de autismo.
Após a Introdução, a primeira parte dedica dois textos à análise do autismo
a partir de uma retomada histórica do contexto dos movimentos pela reforma
psiquiátrica e suas influências nos EUA, Brasil e Itália. No capítulo 2, Rossano
Cabral Lima, Clara Feldman, Cassandra Evans e Pamela Block mostram como

1 O termo médico em português é “transtorno do espectro do autismo”, e em inglês é “autism


spectrum disorder”.

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as tensões no campo do ativismo pelo reconhecimento político e subjetivo das


pessoas com autismo tomam forma no contexto do Brasil e dos EUA, países
com histórias políticas e econômicas, sistemas e concepções de saúde, e ideais
da relação entre o indivíduo e o Estado tão diferentes. Apesar desse primeiro
texto também discutir as tensões internas entre os atores que disputam o sta-
tus ontológico da categoria autismo, principalmente da presença marcante da
psicanálise na reforma psiquiátrica brasileira, é no capítulo 3 que esse debate
se adensa, agora nas comparações entre Brasil e Itália. Neste artigo, M. Ariel
Cascio, Bárbara Costa Andrada e Benilton Bezerra Jr. dedicam-se a traçar um
histórico das “matrizes epistêmicas” na área da saúde mental nesses países,
mostrando como elas foram fundamentais para que hoje os paradigmas pre-
ponderantes na luta por direitos de pessoas com autismo sejam, na Itália, o
autismo como “uma maneira de ser” e, no Brasil, como “uma deficiência”. Fran-
cisco Ortega, então, apresenta uma reflexão instigante sobre a complexidade
das tensões e negociações presentes nestas disputas aparentemente antagô-
nicas em torno da categoria autismo, e instiga o leitor a perguntar-se why not
both?. Tal provocação do autor está diretamente ligada à sua reflexão, inspirada
pela noção de global assemblages, de Collier e Ong (2005), sobre “como questões
e controvérsias globais adquirem forma local” (p. 90, tradução minha) quando
na prática da busca por direitos.
A segunda parte do livro é particularmente instigante, no sentido de que
traz as narrativas dos próprios interlocutores autistas para reflexão sobre
como o autismo se engaja com os sentidos, as linguagens e as formas de
cognição. No capítulo 5, identificando-se como um etnomusicologista do
autismo, Michael B. Bakan reflete sobre as “inter-relações entre mente, cére-
bro e cultura”, e pergunta-se sobre as possíveis especificidades dos resultados
de estímulos musicais em artistas neurodiversos e neurotípicos, socializados
em uma mesma cultura.
No capítulo 6, Elizabeth Fein desloca seu olhar para o ambiente no qual as
pessoas convivem, entendendo o autismo como “um modo de engajamento”
dos atores com os “sistemas ordenadores” do mundo a sua volta (p. 130-131).
A partir da etnografia com três pessoas diagnosticadas com autismo, Fein
argumenta que os testes diagnósticos denominados de ADOS partem de
uma avaliação da habilidade das pessoas de performarem o que Giddens
(1991) chama de “pure relationship” (p. 145). As exigências de um “self puro

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individual” e de agir dentro de normas sociais precisas, mas demonstrando


estar agindo “espontaneamente” e “livres de pressões socioculturais” são, para
Fein, “imperativos culturais” incompatíveis com a forma autista de engaja-
mento social, além de serem uma forma arbitrária e descontextualizada de
avaliar a condição.
As narrativas em primeira pessoa também se fazem presentes no texto de
Jurandir Freire Costa e Roy Richard Grinker. À luz da filosofia da linguagem e
da fenomenologia, os autores analisam como pessoas no espectro constroem
suas personalidades e vocabulários interpretativos de forma coerente, descons-
truindo, por exemplo, as hipóteses psicobiomédicas de “ausência da teoria da
mente” e do “déficit de coerência central”. Argumentam que “a cognição não é
um processo desincorporado a ser julgado nos termos de um consenso neuro-
típico” (p. 160, tradução minha), e mostram como os “discursos de autistas são
formas de resistência a discursos hegemônicos de autoridade” (p. 171, tradução
minha). Essa segunda parte é finalizada com uma reflexão semiótica sensí-
vel de Laura Sterponi sobre as palavras, as vozes e os silêncios na forma como
autistas engajam-se no mundo através da linguagem (p. 178).
O texto de Clarice Rios (capítulo 9) abre a terceira parte do livro com uma
densa descrição etnográfica sobre a construção de expertise e a busca por
orientação e acolhimento de mães e pais de autistas de uma associação cha-
mada Círculo da Esperança, no Rio de Janeiro. Ao borrar as fronteiras entre
o conhecimento das mães2 e aquele técnico-científico dos experts, Rios hori-
zontaliza saberes e demonstra que a expertise está relacionada não apenas ao
acúmulo de informações adquiridas por essas mães, mas à sua capacidade de
transformar sua experiência prática de ser mãe, de uma criança particular, em
um contexto sociocultural específico de baixa renda, em conhecimento “explí-
cito”, comunicado.
No capítulo 10, o texto de Enrico Valtellina traz uma crítica filosófica e
social às categorias diagnósticas em si, analisando o autismo como uma clas-
sificação e um evento, sem deixar de identificar-se com traços da síndrome
de Asperger. As disputas de poder nesse campo são retomadas no capítulo 11

2 Utilizei o feminino para marcar a preponderância de mães nestes estudos, mas também há pais
entre os interlocutores de Rios.

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em um debate sobre a “economia do autismo”, por Roy Richard Grinker, pai


de uma autista famoso pela escrita do livro Unstrange minds, entre outros
(Grinker, 2007, 2010). O autor lembra que não podemos esquecer o fato de que
o autismo é um fenômeno socialmente construído interligado a uma rede de
relações econômicas que movimentam um extenso “complexo industrial do
autismo” (p. 239, tradução minha). O antropólogo construtivista cultural ame-
ricano M. Ariel Cascio comenta os textos acima mencionados apresentando
uma reflexão sobre a polissemia da categoria autismo a partir de seus dife-
rentes usos epistêmicos e estratégicos, e insere-se no debate trazendo uma
análise de como o autismo se tornou uma interessante “lente utilizada pelos
pesquisadores para entendem grandes questões”, ao mesmo tempo que pes-
quisadores usam essas grandes questões para entenderem como o autismo se
tornou essa lente tão potente.
A coletânea apresenta ainda dois textos finais: Thomas S. Weisner analisa
a polissemia da categoria autismo e aponta as contribuições da antropologia
psicológica nessa área de estudos; e Daw Prince-Hughes surpreende o leitor
com um texto sensível no qual, ao “brincar” com sua condição de autista na
academia, nos remete a uma relativização que “humaniza” os “neurotípicos”
do evento que chamou de joinful island of joy. “You are atypical people”, diz ele,
referindo-se à pouca afetividade entre “acadêmicos sérios”.
Dentre todas as qualidades já mencionadas sobre essa coletânea, eu des-
tacaria a sua capacidade de fornecer ferramentas para que várias áreas do
conhecimento se identifiquem com os debates aqui levantados e percebam
que a interdisciplinaridade é possível se houver um respeito de fato pela pro-
dução do conhecimento do “outro”. Encontramos aqui as disputas discursivas
e epistemológicas entre experts e diferentes campos do conhecimento; etno-
grafias densas e ricas para mergulharmos em situações de estranhamento e
pensarmos a complexidade das práticas cotidianas de conviver com e estar no
espectro; e o desafio técnico-político de ter que lidar com categorias diagnósti-
cas extremamente flexíveis e polissêmicas na promoção de políticas públicas
e direitos de cidadania.

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Referências

COLLIER, S.; ONG, A. Global assemblages, anthropological problems. In: COLLIER,


S.; ONG, A. (ed.). Global assemblages: technology, politics, and ethics as anthropologi-
cal problems. Malden: Wiley-Blackwell, 2005. p. 3-21.

GIDDENS, A. Modernity and self-identity: self and society in the late modern age.
Cambridge: Polity Press, 1991.

GRINKER, R. R. Unstrange minds: remapping the world of autism. New York: Basic
Books, 2007.

GRINKER, R. R. Autismo: um mundo obscuro e conturbado. São Paulo: Larousse do


Brasil, 2010.

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