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UNIVERSIDADE DO ESTADO DORIO DE JANEIRO


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUA<;ÁO EM FILOSOFIA

ERRÁNCIA E RETIFICA<;ÁO DE ERROS: A QUESTÁO DA VERDADE EM


HEIDEGGER E BACHELARD

por

Guilherme Augusto Rezende Lemos

Dlssertacáo apresentada ao Programa de


Pós-Graduacáo em filosofia da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
para obtencáo do título de Mestre em
Filosofia

Orientadora:
Prof' Dr9 Marly Bulcao Lassance Brito

Rio de Janeiro, marco de 2001.


2

UNIVERSIDADE DO ESTADO DORIO DE JANEIRO


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUACAO EM FILOSOFIA

ERRÁNCIA E RETIFICACAO DE ERROS: A QUESTAO DA VERDADE EM


HEIDEGGER E BACHELARD

por

Guilherme Augusto Rezende Lemos

Banca Examinadora

Pror DI"" Marly Bulcáo Lassance Brito


UERJ - Orientadora

Prof. Dr. Luiz Eduardo de Oliveira Bicca


UERJ

Prof3 DI"" constanca Marcondes Cesar


PUC - Campinas-SP

Rio de Janeiro, marco de 2001.


3

~- ·'·

·-
.f

Pro]" Drª Creuea Capalbo,


Mestra. inesquecioei
4

Agrade cimentos

Aos meus pais: Francisco Antonio Lemos e Maria Aparecida


Resende Lemos (ambos in memorian}, cujo amor me condenou a
liberdade do mundo.

A Marly Bulcáo, professora, orientadora e amiga impecável,


por ter embarcado sem. medo nessa ousada aventura. Devo esta
dissertacño a sua orieniactio,

Ao Luiz Bicca pela paciencia, pelos cursos e principalmente


pelos conselhos inestimáueis,

A Vera Port ocarrero pela análise atenciosa e generosa do


projeto de mestrado,

A Telma Douxelli pelo curso e pelas dicas de importancia


fu11'1.a1ne11tal.

Ao Julio Aldinger Dullos, companheiro e interlocutor de todas


as horas,

Ao Pedro Paulo Ceuharina pela uersiio francesa do resumo,

A l!ERJ que, através do seú Programa de CapacilafáO de


Servidores - PROCASE, me agraciou. com. imprescindíveis dols anos
de bolsa integral.

A Faculdade de Ceologia da UERJ, em especial ao Prof. Rui


Alberto Azevedo dos Santos, que me liberoú das fungóes
administrativas no inicio do mestrado,

Ao Departamento Cultural da UERJ, em especial a Pro]" Cléia


Schiavo Weirauch e a Alba Valéria Ribeiro Pinto, pela paciéncia
inesgotável, quando dos arrematesfinais desta dissertaciio,

Aos contribuintes do Estado do Rio de Janeiro que, atraués da


UER], uém. me dando piio, "régua e compasso'", já há 20 anos.
5

RESUMO

-
"
-

Esta dissertacáo tem por objetivo mostrar

pontos de aproxirnacáo e afastamento entre as

nocóes de verdade em Martin Heidegger e

Gastan Bachelard, já que ambas partem de

urna reoríentacáo da nocáo de erro que se

desliga da esfera do acerto para se aproximar

do principio metafísico de liberdade. Para tanto,

levar-se-á em consideracáo a Ontologia de

Heidegger e a Epistemologia de Bachelard,

afim de discutir se o aspecto das ciencias

criticado por Heidegger seria necessariamente

aquele exaltado por Bachelard. Por concíusáo.

trata-se de urna tentativa de ressaltar a nocáo

de verdade contemporánea como processo,

como história e como liberdade.


6

RESUMÉ

La présente dissertation a pour · but de

montrer les points de rapprochement et les

écarts entre les notions de vérité chez Martin

Heidegger et chez Gaston Bachelard, puisque

toutes les deux partent d'une réorientation de la

notion d'erreur, qui se détache de la sphére de

la reússite pour s'approcher du principe

métaphysique de liberté. On y tient compte de

l'ontologie de Heidegger et de l'épistémologie

de Bachelard, afin de discuter si l'aspect des

sciences, critiqué par Heidegger. serait

forcément celui qu'a exalté Bachelard. Bref, il

s'agit d'une tentative de mettre en relief la

notion de vérité contemporaine comme

processus, comme histoire et comme liberté.


7
.. ,

SUMÁRIO

1. INTRODU<;ÁO 9

2. A RETIFICA<;ÁO DE ERROS E O PROBLEMA DA VERDADE NA


EPISTEMOLOGIA DE GASTON BACHELARD
16
2. 1 . O contexto bachelardiano 17
2.2. A questáo do conhecimento em Bachelard 22
2.2.1. Da diferenca entre conhecimento comum e
conhecimento científico
25
2.2.2. O conhecimento científico é descontinuo 30
2.2.3. Do conhecimento aproximado 34
2.3- Bachelard contra o Pragmatismo 41
2.4-A trajetória do binomio verdade-realidade rumo a inexatidáo 44
2.5- A retiñcacáo de erros como saída para o problema da
verdade 47

3. ERRÁNCIA E VERDADE NA ONTOLOGIA DE MARTIN


HEIDEGGER 56
3.1. O contexto heideggeriano 56
3.2. A fenomenología de Heidegger 59
3.3. A questáo do ser 68
3.4. A questáo da verdade 77
3.5. A esséncia da verdade 89
3.6. A erráncia como anti-esséncia que funda a esséncia da
verdade 97

4. DAS TENTATIVAS DE APROXIMA<;ÁO ANTECEDENTES 102


4.1. Constanca Marcondes Cesar e o encontro na unidade do 102
saber
4.2. Pascal Nouvel e o encontro na 'vontade de poder" de 105
Nietzsche
4.3. Nossas consideracóes 11 o
8

5. ERRÁNCIA E RETIFICA<;ÁO DE ERROS: UMA APROXIMAQÁO


ENTRE HEIDEGGER E BACHELARD 114
5.1. Urna "metafísica" a Bachelard 115
5.2. Urna "epistemologia" a Heidegger 122
5.3. Erráncia e retrñcacáo de erros: urna aproxirnacáo 131

6. CONCLUSÁO 136

7. BIBLIOGRAFIA 141
O TEMPO GEROU meu sonho na mesma roda de alfareiro

que modelou Sirius e a Estrela Polar.

A luz aiu.da. náo nasceu., e a forma aisula náo está pronta:

ura» o sort e do enigma já. se setüe respirar.

Cecília MeireleH

,,_ l
9

1. INTRODUCAO

A busca da verdade deve ser o


objetivo de nossa atividade; é o único
fim digno dela. (. . .) Se cada vez mais
queremos libertar o homem das
oreocupecoes materiais, é para que ele
possa empregar no estudo e na
contemptecéo da verdade sua
liberdade reconquistada.

Henri Poinceré'

Com esta sentenca Henri Poincaré (1854-1912) inicia a introducáo de O

valor da ciencia, trazido a luz em 1905. Trata-se de um texto que reflete muito

bem as quest6es que fervilhavam entre os intelectuais da época: as relacóes

entre verdade e liberdade; isto porque a nocáo de verdade cornecava a sofrer

urna sensível mudanca imposta pelos entáo recentes avances científicos no

que tangía a compreensáo do mundo, principalmente do mundo invisível a olho

nu - a macrofísica: sem contar com a vertiginosa alteracáo da nocáo de espaco

trazida pelas geometrias nao-euclidianas que causavam verdadeiro furor no

início do século XX. A verdade retirava-se da discussáo teológica para animar

as filosofias mais descrentes.

Nessa introducáo a discussáo acerca do valor da ciencia, o dentista

francés traca um paralelo entre verdade científica e verdade moral, com vistas

a discutir a contribuícáo de ambas no que se refere a felicidade ~ a liberdade

humanas e se justifica: "Em urna palavra, aproximoas duas verdades porque sao as

1 In: POINCARÉ, H. O valor da ciencia. Traducáo: Maria Helena Franco Martins. Revisáo
técnica: lldeu de Castro Moreira. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995. p. 5.
10

mesmas razóes que nos fazem amá-las, e sao as mesmas razóes que nos fazem

temé-las'".

Segundo Poincaré, muito embora a ciencia e a moral tenham seus

domínios próprios elas "se tocam, mas náo se penetrarn'". A finalidade desse

texto é fazer perceber, do ponto de vista de Poincaré, a impossibilidade de urna

realidade "independente do espirito que a concebe, ve ou senté." A verdade,

nesse sentido, é a própria harmonia do mundo, a própria ausencia dos milagres

táo requeridos pelos que a teologizam. O valor da ciencia, em suma, sao os

"lentos e penosos progressos" que nos possibilitam conhecer pouco a pouco a

realidade objetiva que, a seu ver, traduz-se em harmonía.

Decidimos iniciar o trabalho com a centenária citacáo de Poincaré

exatamente para ressaltar, de um lado, o vico que a questáo da verdade ainda

exibe e, de outro lado, que tentativas de aproximacáo entre setores

aparentemente distintos nao se circunscrevem no árnbito da excecáo.

Nao se trata aqui de urna cornparacáo onde se busca a .prirnazia do

pensamento de um autor sobre o outro, muito ao contrário; a nosso ver, sao

teses que se complementam, rumo a urna compreensáo maior do próprio

conceito de Verdade ou do que dele deriva.

2 ldem. p. 6.
3 lbidem
4 ldem, p. 9.

• 11

Nao é novidade que tanto Martin Heidegger ( 1889-1976) quanto Gasten

Bachelard ( 1884-1962) inauguram, cada um a seu modo e em campos

específicos na segunda metade dos anos 20, linhas de pensamento que se

constituem como verdadeiras navidades no ámbito da Filosofía do início do

século XX.

De um lado, Heidegger, com Ser e Tempo (1927) avanca, em relacáo a


Fenomenologia fundada por Husserl, para urna Ontología que, desconstruindo a

Metafísica tradicional, compreende a totalidade do ser do ente como um

movimento que em si mesmo é gerúndio e dinamice retomando, assim, a nocáo

de physis dos gregos antigos, onde a Verdade, sem a conotacáo coisal de um

u algo" t revela-se como alethéia, isto é, um desvela mento daquilo que é

misterioso rumo a luz do conhecimento. Desse modo, a Verdade para

Heidegger constitui-se como urna abertura forjada e mantida pela acáo direta

do "querer saber".

O método utilizado por Heidegger é fenomenológico, já que parte do

Fenómeno tal como ele se apresenta a realidade. No caso, o fenómeno a que

se refere é o Dasein5 em sua cotidianidade poste no mundo. Entretanto, sua

Filosofia é ontológica pois atém-se ao ser como fundamento essencialízador do

ente.

5 Ser-aí ou presenca; Heídegger recusa-se a usar o termo "homem" tendo em vista seu forte
caráter antropológico.
12

De outro lado, Gastan Bachelard (1884-1962), em seu Ensaio sobre o

conhecimento aproximado (1927), insurge-se de maneira contundente contra o

Positivismo e o Pragmatismo demonstrando que. ao contrário do aspecto

sólido, objetivo e necessário da evidencia, no ámbito do infinitamente pequeno

(Microfísica), nosso conhecimento é contingente; indeterminado; aproximado e

mutante, sempre e a tal ponto que nele cabe apenas o espanto filosófico: "O

infinitamente pequeno é o centro geométrico do nosso entendirnento."

Bachelard, embora nao se enquadre na tradicáo da Fenomenologia,

enquanto escola husserliana, extrai sua Filosofía do seio da análise interna da

Ciencia tal como ela se apresenta em seu cotidiano mais íntimo, praticando

urna fenomenología do novo espirito científico. A este propósito, Jean Lacroix

faz o seguinte comentário:

Husserl definía a fenomenología como um retorno as coisas. Neste sentido,


Bachelard é o maior fenomenólogo. 7

Para Bachelard a Ciencia constrói seu objeto ratificando erros e

promovendo rupturas que objetivam o progresso, onde a Verdade científica

constituí-se como um moto contínuo de dinamismo e mutacáo. A Verdade neste

sentido também desconfigura-se como um "algo" para revelar-se como

"processo".

6 BACHELARD, G. Essai sur la connaissance approchée. 4 ed. Paris: J. Vrin, 1973. P.284.
Traducáo nossa.
7 LACROIX, Jean. Gestan Bachelard el hombre y la obra. In: Lacroix, J. et alii. lntroduccion a
Bachelard. Buenos Aires: Calden, 1973. p. 18. Traducáo nossa.
13

Aí se encentra o tema central desta pesquisa: até que ponto as nocóes

de Verdade em Heidegger e Bachelard se aproximam? Até que ponto se

distanciam? Vale lembrar que ambas as nocóes se erguem a partir de suas

anti-esséncias: a erráncia, em Heidegger, e a retificacáo de erros, em

Bachelard.

A questáo da verdade e do ser no pensamento de Martin Heidegger

emerge como tema central de sua obra fundamental Ser e Tempo. publicada

em 1927. Nessa obra, partindo da Fenomenologia introduzida por Husserl que

visa compreender o objeto, pela descricáo, tal como ele se apresenta a


consciencia, Heidegger busca elaborar urna fenomenologia hermenéutica a

partir da análise da ontologia da existencia humana e sua retacáo com o

mundo, investigando a questáo filosófica fundamental: o que é o ser?; qual a

sua verdade?; o que pressupóe investigar a questáo: o que é a verdade?

Sua preocupacáo, no momento de Ser e Tem..QQ, é descrever o processo

existencial humano a fim de apreender-lhe o seu ser mais próprio, o que na

visáo de seus comentadores nao aconteceu, tendo em vista o caráter

inacabado do próprio Ser e Tempo.

Entretanto, na opiniáo do próprio Heideggerª, esta questáo foi

plenamente solucionada no decorrer de suas obras posteriores, tendo havido

apenas urna conversáo da temática que se limitava, num primeiro momento, a

8 Cf. HEIDEGGER. Sobre o Humanismo. P. 156. In: Os Pensadores.


14
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existéncia humana e que se ampliou, num segundo momento. para a ambiéncia


- ......
"':

i
do próprio ser, onde o homem é apenas urna de suas entíñcacóes.

A temática a que se prooóe esta dissertacáo remete a própria


'"' importancia do estudo da nocáo de verdade para os nossos días. Destituir a

nocáo de verdade do seu aspecto "colsal" em prol de um aspecto "processual"

vai ao encentro de um sem número de iniciativas hodiernas. Tentar buscar os

fundamentos das quest6es do nosso tempo é colocá-las sob a mira da

investtqacáo, atitude esta que precede a abertura capaz de resgatar o que é do

ámbito do misterioso para a luz do conhecimento, mesmo que este

conhecimento esteja fadado apenas a urna aproximacáo.

Visando atender ao até aquí exposto, a presente dissertacáo de

mestrado organiza-se da seguinte forma:

No primeiro capítulo abordaremos a epistemología bachelardiana

com vistas a cornpreensáo do conceito de retiñcacáo de erros.


No segundo, analisaremos a ontología heideggeriana visando

entender o conceito de erráncia.

Em um terceiro capítulo, comentaremos as tentativas de

aproxirnacáo entre os autores de que tomamos conhecirnento.

No quarto, tracarernos os pontos de contato entre os dois

filósofos, no que se refere ao ambiente da verdade.


15

Por fim, e a título de conclusáo. defenderemos a tese da nocáo de

verdade contemporánea como processo, como história e como liberdade,

seja para a ciencia, seja para a existencia.


Assim náo era p ossivel atlngir toda a verdade,

porque a mei a ¡>P.Hsoa. que etürtn-a

RÓ trasio o perfil de niei a verdade,

E o segundo met o de

i-oltnra igualmenre com nteio perfil.

E os nieios perfis niio coincidiom,

Carlos Drununoud de Andrade


16

2. A RETIFICACAO DE ERROS E O PROBLEMA DA VERDADE NA


EPISTEMOLOGIA DE GASTON BACHELARD

Embora já encontremos no Ensaio sobre o conhecimento aproximado,

tese de doutoramento defendida por Gaston Bachelard em 1927. urna

preocupacáo com o problema da verdade, coerentemente. como poderemos

admitir ao fim do capítulo. nao encontramos, em toda obra de Bachelard, urna

única conceituacáo de verdade. O que nos leva a perguntar: qual o lugar da

verdade na epistemologia de Gaston Bachelard? Qual a sua contribuicáo para a

nocáo contemporánea de verdade científica? O presente capítulo desenvolve-

se no sentido da construcáo de urna resposta possível a partir da compreensáo

do pensamento do próprio filósofo.

Qualquer nocáo de verdade que se afine com o conceito de substancia,

trazida pela tradicáo filosófica até a contemporaneidade, coloca-se. na

concepcáo de Gaston Bachelard, como um problema para a nocáo de verdade

científica contemporánea. Este problema decorre de urna nova nocáo de real

científico tecida pelas matemáticas nao-euclidianas e pela física nao-

newtoniana que surgem no decorrer do XIX e culminam no iniclo do século XX,

com o aprofundamento dos estudos de geometría dos espacos curvos e dos

estudos de macro e microfísica. Como podaremos ver mais adiante, nesses

estudos náo existem dados sensíveis de onde partir, nem idéias a partir das

quais se erguem teorías. Náo há, portante, a possibilidade do susbtrato seja ele

um dado ou urna idéia. Nao há também a pretensáo de se chegar ao porto


17

:"¡ · seguro da verdade em si, da coisa em si. Nao há a possibilidade de

correspondencia seja do intelecto para com o real, seja do real para com o

intelecto. A ciencia contemporánea, aos olhos de Bachelard, deixa de ser um

tratado acerca das leis do Universo ou do pensamento para constituir-se, como


-
.,,

teremos oportunidade de ver, em discurso objetivo, isto é. em estruturas

algébrico-matemáticas que devem objetivar-se em fenómenos técnicos. O que

há, portante. é apenas um processo infinito de retificacáo de erros que nao quer

chegar. mas apenas instruir e construir, até onde permitir a aventura da

imaqinacáo humana .
.......

2.1- O contexto bachelardiano

A despeito de tantas biografias e comentários, consideramos importante

ressaltar a origem simples e rural de Gasten Bachelard, filho de um dono de

tabacaria na pacata Bar-sur-Aube, Franca, que corneca sua carreira

propedéutica ensinando Física. Esse magistério oferece a Bachelard todos os

problemas advindos da crise das ciencias nos primeiros anos do século XX. É a

busca de respostas a esses problemas que o impulsiona a enveredar-se pelos

caminhos da Filosofra. Ressaltamos estas informacóes nao para tratá-las como

causa do pensamento de Bachelard, mas para deixar ver que o mergulho

bachelardiano nas mais recónditas profundezas da razáo humana coincide com

o compromisso do filósofo em nunca separar a existencia da racionalidade.


18

Diz-se que o pensarnento de Bachelard possui duas vertentes: urna

científica que se pretende urna episternologia da Física e da Química

contemporáneas e urna poética que analisa as possibilidades da irnaqlnacáo

criadora. Nosso recorte é o epistemológico, é nesse ambiente que se desenrola

a presente dissertacáo, já que é neste ambiente, como bem o demonstra a

introducáo ao Ensaio sobre o conhecimento aproximado, que se delineia urna

preocupacáo com o tema da verdade.

Num estudo intitulado "Númeno e Microfísica", publicado pela primeira

vez as páginas 55-65 da revista Recherches philosophiques, referente ao bienio

1931-1932, Gaston Bachelard demarca com muita clareza o seu espaco no

ambiente da Epistemologia das Ciencias de sua época. lntroduz a discussáo do

estudo relembrando que no final do século XIX havia urna unidade acerca do

conhecirnento do real a partir da empiria, "onde as filosofias mais hostis se

reconciliavam". O cientista de entáo estudava a realidade tal como esta se

apresentava aos sentidos, seus estudos eram racionalizacóes e arnpliacóes do

real sensível.

A epistemología de Bachelard, em particular, traduz-se numa proposta de

reconstrucáo de todo um arcabouco filosófico atinente as ciencias,

advindo/compartilhando do interior do "fazer" científico e em franca oposicáo a


empiria evolucionista positivista, que ainda gozava de primazia no meio

intelectual das primeiras décadas do século XX. Com o advento da física da

relatividade, o aprofundamento dos estudos de rnicrofísica e o aparecimento


19

das geometrias nao euclidianas, urna nova no980 de real comeca a se delinear,

um real científico em rompimento com a no980 de realidade entendida pelo

senso comum, impossível de ser entendida pela primazia do estudo empírico,

como poderemos ver nos exemplos que seráo desenvolvidos mais adiante.

A epistemologia bachelardiana nao pode ser entendida sem urna

compreensáo concomitante desses novas caminhos da ciencia contemporánea,

trata-se de urna epistemologia que se ergue imiscuída nas entranhas desses

caminhos e, por isto mesmo, com urna utilizacáo muito própria dos termos

cunhados pela tradicáo filosófica.

Ainda em Númeno e miorottsice, Bachelard faz urna interessante

brincadeira com a seguinte fórmula do poeta Paul Valéry para definir o fazer

científico: "é preciso reduzir o que se ve aquilo que se vé~. Diz agora Bachelard:

"é preciso reduzir aquilo que nao se ve áquilo que náo se ve, passando pela

experiencia visivel". Como podemos reparar, a inversáo dos valores é total. Se

na tradicáo positivista propalava-se urna verdadeira "glória da vlsáo", já que

. partía do objeto "visível" almejando-se exatamente a compreensáo ou a

"verdade" daquilo que se "via", no ámbíto da microfísica contemporánea vai-se

da razáo a razáo pela experiencia racional fenomenico-tecnicamente "visível".

Neste sentido, a relacáo racional deve concretizar-se num real "visível" cuja

compreensáo é absolutamente racional e técnica, onde aquela no980 de

verdade nao tem lugar.


20

Nossa ínvestíqacáo acerca da verdade em Bachelard se instaura e se

anima a partir desse contexto. No que se constitui o conceito de verdade nessa

abordagem bachelardiana do real? Na tracícáo positivista a verdade era aquilo

que movimentava todo o fazer científico. No fundo, a ciencia buscava a verdade

das coisas e era justamente a impossibilidade de atingir este "ern si" que

circunscrevia seu leitmotiv e, ao mesmo tempo, sua ümitacáo. Tornado neste

sentido, o conceito tradicional de verdade constituí-se como um verdadeiro

problema para a epistemología bachelardíana: se algum "ern si" for encontrado

toda a possibilidade de construto se esvai. Outrossím, se pensamos, com

Bachelard, urna ciencia que é puro construto (que nao parte nem quer chegar).

o que movimenta esta nova ciencia sáo os erros de sua própria caminhada.

Encontrar, depurar e retificar erras é a própria esséncia da atividade racionalista

do novo espirito científico.

Um primeiro passo rumo a investiqacáo, como dito no inicio, é nos

debrucarrnos sobre a preocupacáo de Bachelard com o problema da verdade

no desenrolar do Ensaio. Esta preocupacáo é levantada já na lntroducáo, como

podemos ler a seguir:

Enfim, numa última parte, nós estudamos, seguindo as concepcóes


que havfamos realcado, o problema da verdade. É urna tarefa para a qua! nós
náo teríamos ousado nos avaliar, após os eminentes trabalhos que o
pragmatismo suscitou, se nós náo tivéssemos a esperance de que a monótona
pesquisa do melhor, que nós tínhamos descrito, no corpo da nossa obra, fosse
própria para redirecíonar levemente o debate. Os conceítos de realidade e
9
verdade deviam receber um sentido novo de urna filosofía do inexato.

9 In BACHELARD, G. Essai sur la connaissance approchée. 4 ed. Paris: Vrín, 1973. pp. 7-8.
Traducáo nossa.
21

'-...
... ~ As "concepcóes" realcadas por Bachelard, que suscitam a abordagem do
-- ..
-
·.- problema da verdade, tratam:

1°) da cuestáo do conhecimento, a saber:

1. 1) do estabelecimento da diferenca entre o conhecimento

comum e o conhecimento científico;

1.2) se este conhecimento científico, que é o que interessa a


epistemologia, é cumulativo ou descontinuo;

1.3) se o conhecímento científico é absoluto ou aproximado,

oposicáo esta que, por si só, coloca em jogo o conceito de

verdade tradicional:

2°) Bachelard revela urna preocupacáo nítida com as proposicóes do

pragmatismo de James, como veremos mais adiante, cujo debate

provocado por elas pretende "redirecionar", deixando claro, de pronto,

sua intencáo de contrapar-se a nocáo pragmática de verdade;

3°) o problema, levantado ainda no parágrafo, que trata nao só da

necessidade de rever o conceito de verdade, mas também o conceito de

realidade, já que as geometrías nao-euclidianas. a física da relatividade e

os estudos de macro e microfísica separam definitivamente o real

sensível do real científico.

Para Bachelard realidade e verdade sáo agora da ordem do inexato, o

que nos leva a crer que os conceitos de realidade e verdade, na epistemología

de Bachelard, colocam-se muito mais como um problema a ser debelado em

prol da saúde de urna no980 de conhecimento aproximado, do que um algo a


22

ser renomeado ou reconceituado, já que as nocóes de realidade e de verdade,

do ponto de vista da metafísica tradiconal, erguem-se como horizontes ou como

fronteiras.

Para Bachelard, em verdade, náo há um conhecimento a ser atingido ou

revelado, mas um conhecendo, isto é, urna acáo gerúndia cuja fronteira é o

próprio ato de conhecer, nao há, neste sentido, paradeiros, limites, acertos; o

que há sao nossas íímitacóes, nossos problemas, nossa ignorancia e nossa

capacidade de errar, mais que isto, de reconhecer estes erros e, por

reconhecé-los. retificá-los, promovendo assím um moto continuo onde nos

superamos e nos construimos a cada erro retificado. Para Bachelard nao há

possibilidade de verdade, mas reconhecimento e conseqüente retificacáo de

erres, que podemos traduzir como sendo isto a própria esséncia do ato de

conhecer, ato este que, em si mesmo, nao parte nem quer chegar, já que é

puro vir a ser.

lsto poste, desenvolveremos nosso trabalho, a partir daqui, no sentido

mesmo da preocupacáo de Bachelard por ocasiáo da lntroducáo ao Ensaio

sobre o conhecimento aproximado, tal como o desdobramos mais acima.

2.2- A questáo do conhecimentoem Bachelard

A tradicáo filosófica entende por conhecimento a técnica para

verificacáo, descricáo, cálculo ou previsáo controlável de um objeto que, por


23

sua vez, constituí-se como algo capaz de se submeter a técnica. Portanto, nao

há como enunciar o problema da verdade, em Bachelard, sem tocar na questáo

do conhecimento que, nos parece, toma um rumo diverso do proposto pela

tradicáo.

O conhecimento, em Bachelard, é um fio de historicidade, isto é, é urna

acáo gerúndia. Para Bachelard, o vetor dessa acáo é "urna vontade técnica"
que aos poucos vai substituindo o apodítico pelo assertórico, ou seja, vai

substituindo a dernonstracáo do necessário pela afirmacáo do real que é

absolutamente contingente por estar inserido num arcabouco cultural e

dinamice.

Vale aquí também relembrar que para compreender o pensamento de

Bachelard é preciso abrir rnáo de toda e qualquer nocáo de absoluto. Outro

dado importante é que o filósofo ergue, a partir de sua ótica, toda urna
10,
metafísica em polémica com a nocáo tradicional deste termo isto é, com a

nocáo teologizada da metafísica onde seus objetos nao sáo passíveis de

conhecimento.

1 O O conceito de Metafísica em geral: (Cf. Abbaganano, 2. ed., 1982, p.633). "A ciencia
primeira, isto é, a ciencia que tem como objeto proprio o objeto comum de todas as outras e
como principio próprio um princípio que condiciona a validada de todos os outros. Por esta
pretensáo de prioridade {que a define) a M. pressupóe urna situacáo cultural determinada, isto
é, a situacáo na qual o saber se organizou e se dividiu em ciencias diferentes, relativamente
independentes urnas das outras e tais que exigem a deterrnínacáo de suas relacóes recíprocas
e sua integrayáo sobre um fundamento comum. Esta era precisamente a sltuacáo que se havia
verificado em Atenas por volta da metade do IV século {a.C.) por obra de Platáo e de seus
discípulos que haviam contribuído poderosamente no desenvolvimento da matemática, da
física. da ética e da política."
24

.::-..
Nosso intuito é tentar demonstrar que a epistemologia de Bachelard, de

caráter ínternalista, se propóe urna descricáo da própria essencia do fazer

científico em sua cotidianidade. Desse modo, essa epistemologia se ocupa


-,
l
exatamente do "objeto comum" a todas as ciencias; do "principio que

condiciona a validade de todas" as outras ciencias: a possibilidade de

subjetividade e de objetividade no ámbito do fazer científico, que desemboca no


)
) próprio ato de conhecer. O que faz a diferenca entre urna nocáo e outra de

metafísica, como aprofundaremos mais adiante, é a cornpreensáo

bachelardiana de sujeito e objeto. Do ponto de vista do recorte grego tratam-se


)
) de instancias distintas e apostas. Em Bachelard tratam-se de feicóes da

atividade reflexiva que subjazem ao modo de relacáo dialógica. O que permite o

deslocamento do eixo de compreensáo do que venha a ser sujeito e objeto é a

modiñcacáo da nocáo de real proferidas pelas matemáticas e pela física

contemporáneas. Foram pontos obscuros apontados pelas matemáticas e pela

física, na paisagem vigente das ciencias dos séculcs XVIII e XIX que

possibilitaram a abertura que construiu paisagens tao díspares que

possibilitaram, por sua vez, que Bachelard afirmasse a existencia de um

verdadeiro rompimento entre urna nocáo de ciencia e outra e, a partir disto.

construisse urna nocáo de conhecimento científico que se revela como um

discurso de añrrnacáo do real e nao como dernonstracáo de um real necessário.

Segundo Bachelard, nao é possível a distincáo do cógito em si mesmo;

só através da construcáo do discurso é possível reconhecer o cógito e, melhor,


25

retificá-lo. lsto quer dizer que a possibilidade de urna intuicáo metafísica só se

dá através de um exercício árduo de tentativa de síntese entre o eu e o náo-eu.

Bachelard, estudando a questáo do pensamento, constrói urna ontología muito

própria, cuja explicacáo, para que nao haja equívocos, deixo na voz do próprio

filósofo:

Em todos os domínios se verá a necessidade da dialética ontológica - Por


exemplo, o que seria a consciencia de urna torca moral sem a tembranca da
tentacáo?
Do mesmo lado da consciencia de si, sobre um tema dialético e
discursivo, desenvolvem-se prevas repetidas. ou melhor, prevas verdadeiras.
Com efeito, a consciencia clara do ser é sempre associada a urna consciencia
de seu aniquilamento. Se eu sinto o ser em mim, em urna experiencia inefável,
é por que eu o sinto renascer: eu o conheco a torca de o reconhecer; eu o
cornpreendo na oscilacáo do ser e do nao-ser, eu o vejo sobre um fundo de
nada."

lsto posta. podemos avancar na cornpreensáo da questáo do

conhecimento em Bachelard. Ele diz: "O concreto se revela como urna

prornocáo do abstrato, pois é o abstrato que fornece os eixos mais sólidos da

concretizayáo".12

2.2.1- Da diferenca entre conhecimento comum e


conhecimentocientífico

Compreender realidade e verdade como senda da ordem do inexato

requer um rompimento definitivo com tudo o que senso comum entende por

realidade e verdade. Por isto é que diferenciar conhecimento comum e

conhecimento científico é assunto recorrente em toda obra de Bachelard,

tamanha a sua necessidade em deixar claro que nao há nenhuma possibilidade

11 In: BACHELARO,G. ldéalism Discursif. In:--. Études. París: Vrin, 1970. p. 95-96. Traducáo
de Marly Bulcáo (textos de aula). ·
12 Ibídem, p. 91.
26

de encontro ou liga<;ao entre um conhecimento e outro. Reconhece no "bom

senso" urna possibilidade de conhecimento, mas este conhecimento náo é o

conhecimento produzido pela atívidade científica em sua fase contemporánea,

nem com ele se relaciona, sáo caminhos díspares da possibilidade de

conhecer.

Em 1949, por ocasiáo da publicacáo de O Racionalismo Aplicado, onde

procede a urna epistemologia da física contemooránea, Bachelard faz uso de

alguns argumentos para diferenciar o conhecímento comum do conhecimento

científico. Um deles trata da mudanca do conceito de matéria produzido pela

mecánica ondulatória que passa a designá-la por seus caracteres elétrico-

eletrónicos. Desse modo, a "velha" balance que determinava pesos atómicos,

na ciencia lavoisiana, dá espaco ao espectroscópio de massa que desconsidera

o peso atómico, ou dado natural, e passa a considerar a acáo dos campos

elétricos e magnéticos ao modo de resultados técnicos.

Esta rnodificacáo ressalta pelo menos dois aspectos: de um lado, a

substituicáo de um instrumento de precisáo direta - a batanea, por um

instrumento técnico de veriñcacáo indireta - o espectroscópio de massa. A

batanea, de inquestionável precísáo. associa-se a nocáo usual ou vulgar da

experiencia de obter dados, por isso direta; em última análise, a batanea nao

deixa de ser um aspecto da sensacáo levado a urna precísáo impossível para a

manualidade humana. De outro lado, o espectroscópio de massa nao retira do

fenómeno real o dado de precisáo. mas produz um resultado técnico,


27

absolutamente distinto das sensacóes, obtido pela acáo de um instrumento que,

em si mesmo, é pura técnica e nao um prolongamento da sensacáo. Diz

Bachelard:

·As trajetórias que permitem separar isótopos no espectroscópio de massa náo


existem na natureza; é preciso produzi-las tecnicamente. Elas sao teoremas
reificados. 13
n

Este argumento levanta pelo menos tres problemas:

1 º) a criacáo de urna nocáo de real científico a pesar da realidade dita

natural, a medida que os resultados isotópicos sao fornecidos por

"teoremas reificados", através de um instrumental fenomenotécnico, já

que produz um fenómeno inexistente na natureza, fruto da racionalidade

técnico-matemática.

2°) a passagem de urna epistemologia positivista para urna epistemologia

discursiva, o dado positivo da batanea é substituido pelo resultado

discursivo do espectroscópio, isto é, nao se trata mais do evidenciar de

um dado natural, mas de um discurso técnico-matemático capaz de

produzir fenómenos tao "visíveis" quanto os ditas "naturais", trata-se de

um rompimento irrevogável entre urna cultura científica que evolui no

tempo, segundo a perspectiva positivista, e o conhecimento científico

contemporáneo, que pressupóe urna perspectiva progressista que nao

se preocupa em dar continuidade ao já conhecido, mas produzir o

13 BACHELARD, G. Conhecimento Comum e Conhecimento Científico. In: ---. O Racionalismo


Aplicado, p. 123.
•• 28

desconhecido apesar do conhecido, aspecto que será aprofundado no

próximo ponto deste capítulo.

3º) trata-se de urna conseqüéncia dos dois prirneiros e revela-se como

um problema psicológico que demanda estudo e atencáo. Com a

substítolcáo do instrumento de precisáo pelo teorema reificado, dever-se-

ia abandonar também a idéia do cientista que se traduz como um

indivíduo genial e iluminado a quem devemos observar e obedecer; a

racionalidade discursiva, própria da ciencia contemporánea, é fruto da

ínteracáo coletiva; é no interior da cidade científica, que é "urna

comunidade intelectual muito restrita, muito techada"!", que os

acontecimentos científicos se processam. Nasce com essa concepcáo o

que Bachelard nomeia de Novo Espírito Científico que se revela como a

"psique" {a alma) da cidade científica e que deve ser intermitentemente

psicanalizada pelo filósofo das ciencias ou epistemólogo. As

transtormacóes acorridas no interior das ciencias contemporáneas

produziram um dentista que "é um homem dotado de dois

comportementosr'" De um lado, participa da cidade científica e avanca


cada vez mais nos caminhos da fenomenotécníca, de outro lado,

ironicamente, ainda esfor93-se "ern dar continuidade ao conhecimento

científico e ao conhecimento vulgar"16, tentando explícar sua ciencia a

ígnorantes, "urna vez que [ensina] a alunes';". A psicanálise do novo

14 lbidem.
15 ldem, P- 124.
16 Ibídem.
17 Ibídem.
29
---
·"'~..

espirito científico deve reorientar o cientista no sentido da superacáo

desse drama psicológico. De um lado, é preciso abrir rnáo da genialidade

individual e vaidosa; de outro, deve-se assumir a ruptura intransponível

que a ciencia contemporánea cindiu entre o conhecimento comum e o

conhecimento científico. Trata-se, como veremos posteriormente, de

remover o "obstáculo" em nome do "proleto", isto é, é preciso eliminar as

figuras do sujeito e do objeto que "obstaculizarn" o projeto.

Os exemplos que Bachelard expóe para justificar sua tese sao inúmeros.

Tantos que num outro capítulo também intitulado "Conhecimento comum e

conhecimento científico", parte integrante de urna outra obra intitulada O

Materialismo Racional (PUF, 1953), chega a se desculpar com o leitor pelo

excesso. Entretanto a real importancia desses exemplos nao é fazer ver o

"milagre" da razáo, mas fazer aparecer urna nova feicáo do que entendemos

por verdade. Outrossim, nos permitiremos transcrever o penúltimo parágrafo

desse capítulo, que também é o penúltimo da obra como um todo.como intuito

de nos corroborar:

Assim, quando o conhecimento vulgar e o conhecimento científico


registram o mesmo fato, este mesmo fato, por certo, nao tem o mesmo valor
epistemológico nos dois conhecimentos. Seja o "cheiro" da eletricidade um
desinfetante e o ozono um poderoso oxidante que desinfeta: nao há entre
estes dois conhecimentos urna alteracáo do valor do conhecirnento? De um
fato verdadeiro, a química teórica faz um conhecimento verídico. Por si só, este
bin6mio do verdadeiro e do verídico encerra a acáo polar do conhecimento.
Este binomio permite reunir os dois grandes valores epistemológicos que
explicam a fecundidade da ciencia contemporánea. A ciencia contemporánea é
feíta da investipacáo dos fatos verdadeiros e da síntese das leis verídicas. As
leis verídicas da ciencia tém urna fecundidade de verdades, prolongam as
verdades de fato com verdades de direito. O racionalismo corn as suas
sínteses do verdadeiro abre urna perspectiva de descobertas. O materialismo
racionalista, após ter acumulado os fatos verdadeiros e organizado as
verdades dispersas, adquiriu urna espantosa capacidade de previsáo. O
ordenamento das substancias apaga progressivamente a contingencia do seu
30

ser ou, por outras palavras, este ordenamento suscita descobertas que
preenchem as lacunas que levavam a crer na contingencia do ser material. 18

Como pudemos notar, o fenómeno técnico é apenas o exemplo concreto

do que quer Bachelard nos fazer ver: a questáo da verdade científica. No lugar

da verdade em si o jogo entre o verdadeiro e o verídico, isto é, do nosso ponto

de vista o que Bachelard enfatiza como senda o papel da epistemologia nao é

tecer as sínteses das teorías acerca do real, mas ressaltar, fazer ver o processo

racional que subjaz as teorías. É a rnedítacáo que importa, nao o meditado.

Ressaltar a diferenca entre conhecimento comum e conhecimento científico nao

é constatar a diferenca, mas convidar a rneditacáo, fazer ver que o mergulho na

meditacáo é um lancar-se num abismo sem fundo de possibilidades, é libertar-

se para o desconhecido; para a producáo de conhecimento que só é possível

se estivermos livres dentro da propria verdade, no interior dela, que é o que

chamamos de rneditacáo gerúndia.

2.2.2- O conhecirnento científico é descontínuo

No item anterior já expusemos a posicáo bachelardiana ao afirmar o

caráter progressivo da ciencia contemporánea. Gostaríamos agora de

aprofundá-la, citando o exemplo da construcáo da lampada elétrica de fío

incandescente, cuja técnica rompe náo só com o que lhe antecede, mas

reformula o próprio conceito vulgar que associava a luz a combustáo. No caso

da lampada elétrica é justamente a cornbustáo que deve ser evitada. Este

18 Op. Cit. traducáo de Joáo Gama. Lisboa: Edicóes 70, 1990, p. 260 (grifos do autor)
31

exemplo ainda é parte integrante do capítulo "Conhecimento comum e

conhecimento científico", trabalhado por Bachelard em O Racionalismo

Aplicado, do qual vimos nos servindo desde o ítem anterior. Tal exemplo reforca

aqueles argumentos, ao mesmo tempo que aprofunda o que ora se propóe.

A Lampada de Edison consiste numa técnica que visa impedir que certo

material queime, é composta de filamentos de algodáo carbonizados cobertos

por urna ampola de vidro, cujo objetivo é conservar o vácuo em torno dos

filamentos; a luz que dela advém é produto da passagem da eletricidade pelo

filamento imerso no vácuo o que impossibilita a sua queima; o filamento sob

corrente elétrica é aquecido pela sua própria resistencia até a incandescencia

sem, com isto, se queimar. A primeira experiencia com éxito aconteceu no dia

21 de outubro de 1879: estava criada o que chamamos de lampada comum.

"Foi preciso compreender que a combustáo é urna cornbinacáo e náo a

revelacáo de urna torca substancial, para impedir a cornbustáo'": esta frase de

Bachelard toca o amago da questáo. Em primeiro lugar, rompe-se com a idéia

vulgar que associava, inconteste, a eletricidade e a luz a substancia fogo;

segundo o abade Bertholon, por exemplo, em sua Eletricidade dos vegetais

p.25, no século XVIII, a eletricidade nao passa de fogo modificado:

O fluído elétrico é o fogo modificado ou, o que é a mesma coisa, um fluido


análogo ao fogo e a luz; por que tem com ele grandes retacees: a de iluminar,
brilhar, inflamar e queimar, ou de fundir certos corpos: fenómenos que provam
que sua natureza é a do fogo, visto que seus efeitos gerais sao os mesmos;
mas que é fogo modificado, visto que difere dele sob alguns aspectos. 20

19 ldem, p.125.
20 ldem, p:126.
32

Esta, além de nao ser urna opiniáo isolada, aborda o conhecimento

científico como mera evolucáo do conhecimento acerca da substancia revelada

a ciencia, no caso o fogo como flogístico, termo científico próprio do século

XVIII para indicar o caráter substancial do elemento.

A nocáo de arco voltaico cunhada por Davy em 1800 e aperfeícoaoa na

lampada por Edison, 79 anos depois, é urna técnica racional inspirada por "Ieis

algébricas" absolutamente dissociada da nocáo de substancia, já que nao leva

nunca o fogo em consideracáo, muito ao contrário: para que haja luz, neste

caso, é necessário náo haver combustáo, isto é, é preciso afastar o fogo.

Edison toma por base a lei de Joule que relaciona energia (W), resistencia (R),

intensidade (1) e tempo (t) através da fórmula: W = R.12.t, onde o efeito da

resistencia pode ser controlado náo pela quantidade ou qualidade do fogo, mas

pela capacidade de resistencia do metal a ser utiüzado (atualmente o

tungsténio), o comprimento e a secáo do fío. A lampada elétrica, com efeito, é

um objeto "abstrato-concreto": abstrato porque é pensamento científico que se

"fenorneniza" pela torca das relacóes algébrico-racionais, sua concretude é

absolutamente visivel. Assim sendo, a racionalizacáo algébrica W = R.12.t, no

caso, é o númeno que subjaz ao fenómeno lampada elétrica. lsto é o que faz a

absoluta diferenca: como o númeno aquí nao é urna substancia ou um dado

natural, diz Bachelard: "está aberto a um futuro de aperteicoarnento que o

objeto do conhecimento vulgar nao possui absolutamente?". Com este exemplo

21 ldem, p. 130.
33

enfatizamos o aspecto da descontinuidade que salta entre um conhecimento e

outro.

Nesse sentido, duas conclusóes podem ser tiradas desse exemplo: a

primeira, que a lampada elétrica nao é urna evolucáo da vela ou da lamparina,


......
mas um progresso a partir do rompimento com a razáo substancialista que as

criou; a segunda, que o racionalismo que permitiu fenomenotecnizar a lampada

elétrica, justo por ser um racionalismo, está aberto as necessárias retiñcacóes

que permitem o progresso, nao do aparato técnico que lhe é conseqüente, mas

da própria racionalidade. A verdade científica, neste caso, nao é a descoberta

da luz em si, mas da producáo de luz a partir da racionalidade que pode ser

infinitamente aperfeicoada,

A fenomenotécnica é, em si mesma, desprovida do caráter

substancialista que em última análise está no fundo de todo o pensamento

evolucionista e positivista; racionalista ou realista; idealista ou empirista. O

racionalismo aplicado da ciencia contemporánea nao parte de nenhum solo que

-- náo saja a propria racionalidade e náo quer chegar a nenhuma verdade; desse

modo, náo há o que continuar ou para onde evoluir, há sim o que se construir

tendo como horizonte os próprios limites da irnaqinacáo humana. O progresso

dessa nova ciencia se dá pela retificacáo dos erros cometidos quando da

formulacáo das racionalizacóes numénicas de que talamos acirna, tendo em

vista a producáo de fenómenos absolutamente abstratos que querem ganhar

concretude, isto é, quando a abstracáo matemática nao se revela como


34

·.: J
fenómeno concreto certamente é porque o problema ou está mal colocado ou

está mal formulado. Assim sendo, a racionalizacáo numénica que impulsiona a

experimentacáo ao invés de se manter axiomatícamente incólume, como no

caso do númeno substancialista, sucumbe á retiñcacáo, a reforrnulacáo ou até

mesmo a sua própria contradicáo. Concluindo, o racionalismo aplicado da

ciencia contemporánea "está condenado a ser livre", pelo menos enquanto o

progresso foro seu horizonte.

2.2.3- Do conhecimento aproximado

O ponto que acabamos de ver, por si só, descaracteriza qualquer

possibilidade de pensar absoluto o conhecimento do novo espírito científico, já

que nao busca esséncias nem revela ou manipula substancias; entretanto é

preciso esclarecer melhor o que vem a ser conhecímento aproximado.

Segundo Bachelard, "o real se oferece a nós como um domínio que se

pode estudar em extensáo e em compreensáo". O estudo do real em

extensáo, muito próprio da proposta do pragmatismo que será alvo de nossa

análise no próximo item deste capítulo, é típico daquele conhecimento comum

de que falávamos anteriormente já que se satisfaz em classificar os fenómenos

do real. Opostamente, o estudo do real por compreensáo é típico de "urna

ciencia especulativa que quer saber por saber".23

22 Essai... , p. 244
23 fbidem.
35

A nocáo de conhecimento aproximado náo pode ser vista de modo

isolado da nocáo de retificacáo de erras. Para Bachelard, a instancia da

compreensáo acerca do real só é possível por aproxímacáo, visto que nao

existem nem sujeíto nem objeto, mas relacóes dialógicas que se resolvem pela

retrñcacáo de erros. Conhecimento aproximado e retlñcacáo de erros, como

veremos mais adiante, constituern-se como a própria estrutura do que, em

Bachelard, denomina-se construcáo do objeto científico, que por sua vez é o

proprio cerne da meditacáo científica, urna medítacáo gerúndia que é a

exoucacáo "do conhecimento no seu dinamismo íntimo, apoiando-se sobre seus

próprios elementos':"

Marly Bulcáo, em eminente estudo publicado pela primeira vez em 1981,

sobo título O racionalismo da ciencia contemporanea, afirma

que a questáo do racionalismo da ciencia contemporánea vai se reduzir, na


epistemología de Bachelard, a construcáo do objeto científico25

o que aqui reafirmamos e tomamos como ponto de partida para elucidar a

nocáo de conhecimento aproximado. Se a racionalidade em sí mesma se reduz

a construcáo do objeto científico, entendendo que essa construcáo é o

processo meditativo capaz de fenomenizar-se, sornando-se a isto o que já

dissemos até entáo, é fundamental que entendamos a nocáo de objeto como

construto para que possamos compreender a nocáo de aproxirnacáo na

epistemología de Gasten Bachelard.

24 ldem. p. 245
25 Op.Cit. 2 ed. Londrina: UEL, 1999, p.5.
36

Bachelard inverte o vetor dos termos que sao próprios da metafísica

tradicional. Para o epistemólogo, a ciencia contemporánea produz sua própria

metafísica ao transmutar a relacáo sujeito-objeto para a nocáo de projeto.

Tomando por base o já dito, esclarecemos que reutilizar o termo objeto na

fórmula "construcáo do objeto científico", trata-se mais urna ·vez de urna

reconstrucáo metafísica a partir da terminologia que já se possui. Náo se pode

entender objeto aquí como o obstáculo ante o qual o entendimento se estaca.

Para tanto Bachelard conceitua aquilo que nomeia como "obstáculo

epistemológico" e que deve ser entendido no contexto próprio da "metafísica"

bachelardiana.

A nocáo de obstáculo epistemológico é trabalhada com muita

profundidade na obra A formacáo do espírito científico, que vem a luz em 1938.

Diz Bachelard:

E nao se trata de considerar obstáculos externos, como a complexidade e a


fugacidade dos fenómenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e do
espirito humano: é no amago do próprio ato de conhecer que aparecem, por
urna espécie de imperativo funcional. lentid6es e conflitos. É aí que
mostraremos causa de estaqnacáo e até de regressáo, detectaremos causas
de inércia as quais daremos o neme de obstáculos epistemológicos. 26

Essa nocáo de obstáculo retoma o que discutíamos, em parágrafos

anteriores, acerca da relacáo entre os termos sujeito, objeto e projeto, naquílo

que tém em comum, isto é, o "jectum': o obstáculo, aspecto que agora

gostaríamos de aprofundar.

. -./

26 BACHELARD, G. A formacflo do espirito científico: contribuicáo para urna psicanálise do


conhecimento. RJ: Contraponto, 1996. p. 17
., '

"4'
37
""'. -...
--~
A obra Númeno e Microfísica que corriecarnos a abordar, por exemplo, já

no seu título traz urna novidade, que é a associacáo dos termos númeno e

microfísica. Númeno é um termo utilizado por Kant (1770) para indicar o objeto

do conhecimento puro ou a coisa "em si" em contraposicáo ao fenómeno. Para

Kant o fenómeno é aquilo que pode ser conhecido pela razáo humana, ao

passo que o númeno, por ser o em si do fenómeno, pode apenas ser pensado,

mas jamais será objeto de conhecimento. Portante, trata-se da associacáo de

urna terminologia muito própria dos estudos de metafísica tradtcionar" com um

segmento ainda embrionário. a época, da física contemporánea. Tal juncáo é

urna em milhares de outras, cada vez mais ousadas, que váo sendo tecidas no

decorrer da obra de Bachelard. Sua epistemologia reconstrói toda urna filosofia,

toda urna metafísica a partir do cotidiano (nao mais do resultado) das ciencias.

nao como um comentário ou urna síntese, mas como urna reflexáo acerca

desse novo real que vai se erigindo através das pesquisas científicas. Para

Bachelard a ciencia cría filosofía a medida que oferece a reñexáo rigorosa urna

"realidade" que nao possui limites ou substratos, já que é puro construto. Desse

modo, fez-se necessário para Bachelard readequar o vocabulário filosófico a

este novo real. O númeno aquí, por exemplo, nao é mais o que subjaz ao

fenómeno, como muito bem estudou a crítica kantiana, mas, ao contrário, é, por

exemplo. a relacáo algébrico-matemática que possibilita a construcáo do

fenómeno científico: este fenómeno técnico, por sua vez, muito embora

"aparece" nao possui a limitrofia da "coisa" que se estabelece, de um lado,

27 lsto é, urna metafísica substancialista que, muito embora avancada em relacáo ao


pensamento aristotélico, ainda busca, ou enfatiza, ou reconhece, as causas primeiras, os
principios que subjazem aos fenómenos.
38

como fronteira, de outro, como ponto de partida do conhecimento. O fenómeno

aqui possui caráter indireto e hipotético, náo senda mais o que a tradicáo

positivista associava ao objeto.

Objeto na concepcáo bachelardiana também perde o seu caráter

tradicional de coisa. Objeto para Bachelard nao coincide coma nocáo de idéia,

como em Berkeley; nem com a representacáo de Schopenhauer, nem com a

coisa material, nem muito menos com o fenómeno kantiano. Para Bachelard o

objeto passa a ser um fenómeno no sentido de um 'aparecer' da abstracáo

racional. O objeto se constrói ao mesmo tempo, e por interacáo, em que se

constrói o sujeito, sujeito e objeto transmutam-se em projeto. Este, por sua vez,

nao habita mais o indivíduo, mas emerge do interior da cidade científica, que se

expressa essencialmente como coletividade, animada por um novo espirito

científico. Diz Bachelard:

Acima do sujeito, para além do objeto imediato, a ciencia moderna baseía-se


no projeto. No pensamento científico, a rneditacáo do objeto por parte do
sujeito assume sempre a forma de projeto.28

A própria termínologia evidencia o caráter dinámico que Bachelard quer

apontar. Tres termos estáo em jogo: objeto, sujeito e projeto; urna análise

etimológica, mesmo que despretenciosa como esta. revela a intencáo. Objeto

significa estacar-se ante o que ali está lancado (do latim objectus); sujeito

significa colocar-se abaixo, no fundo ou por detrás do lancado (do latim

subjectus) e projeto significa protuberar-se, colocar-se adiante, lancar-se a si

28 O novo espírito científico, p.15.


--
""" 39

mesmo (do latim projectus). Desse modo, nao se trata de estacar-se ante algo

para entendé-lo, nem, a partir do entendimento, conceituar este mesmo algo,

mas ir adiante. Um projeto é algo que se coloca como possibilidade e que

carece de investqacáo: náo é possível prever um fim para o lancar-se, tendo

em vista que nao se sabe onde se quer chegar, lanc;a-se simplesmente em

atitude investigatória que a todo momento experimenta e desta experirnentacáo

redundam fenómenos. O projeto náo prevé sujeito nem objeto, o que ali está

lancado é deixado de lado em nome de um protuberar-se, de um lancar-se a


frente. Náo há por que, no ámbito do projeto, "estacar-se ante" ou "subjazer-se

a", lanca-se numa espécie de abismo sem fundo.

O novo espirito científico que se baseia no projeto, para Bachelard, é o

próprio "ser" da cidade científica. Mais urna vez nos deparamos com urna

terminología metafísica que em nada se associa a compreensáo do termo

requerida pela tradicéo. muito embora revele urna espécie de "ontologia" da

ciencia contemporánea. Pensar o "ser" da ciencia contemporánea é mergulhar

numa metafísica absolutamente materializada e absolutamente

dessubstancializada. O "ser" da ciencia deve ser aqui entendido como a

determmacáo muito própria da ciencia contemporánea que se revela como

fenomenotécnica. A filosofía das ciencias contemporáneas se constrói a partir

de urna fenomenologia muito própria que se constitui da descricáo minuciosa e

rigorosa do fenómeno científico que é puramente técnico-racional, nao só o

fenómeno como a própria descricáo. O "aparecer" fenoménico na ciencia

contemporánea se dá pela forca de todo um aparato técnico indireto para a


40

sensibilidade. Nao se atém a este fenómeno nenhum substrato "natural". Diz

:_.\
Bachelard: "A verdadeira fenomenologia científica é portanto essencialmente

urna fenomenotécnica"29.

Se o fenómeno da ciencia contemporánea é um "aparecer" técnico, o que

aqui é passível de conheeimento, muito ao contrário de Kant, é a sua estrutura

numénica, isto é, sao as racionalizacóes algébríco-matemáticas que

possibilitam o fenómeno. Se quisermos dar a isto o nome de substancia ou de

coisa em si, teríamos necessariamente que transgredir todos os pressupostos

da metafísica tradicional. Para Bachelard nao há rnais, no ámbito da ciencia

contemporánea, urna "dialética longínqua" entre o númeno e o fenómeno. Díz

ele:

Enquanto que a coisa em si é númeno por exclusáo dos valores fenomenais,


parece-nos de fato que o real científico é feito de urna contextura numenal
propria para apontar as bases da experimentacáo. A experiencia científica é
assim urna experiencia confirmada. Este novo aspecto filosófico da ciencia
prepara um ingresso do normativo na experiencia: sendo a necessidade da
experiencia captada pela teoría antes de ser descoberta pela razáo, a tarefa
do físico é depurar suficientemente o fenómeno para reencontrar o númeno
organice.30

Declaracóes como esta enfatizam nao só urna reformulacáo do conceito

de verdade, mas também de realidade. Verdade e reafidade em Bachelard

relacionam-se dialógicamente. Desde os tempos do Ensaío sobre o

conhecimento aproximado, Bachelard afirma que "O real se oferece a nós como

um domínio que se pode estudar em extensáo e em cornpreensáo", onde "O

29 O novo espírito científico, p.16.


30 ldem p. 12.
~'\ 41

pragmatismo só alcanca o primeiro estuoo":". As reflexóes sobre o

Pragmatismo elucidam bem esta retacáo entre verdade e realidade.

2.3. Bachelard contra o pragmatismo

William James define a verdade da seguinte maneira:

A verdade, como qualquer dicionário pode mostrar, é urna propriedade


de certas idéias nossas. Significa o seu "acorde', como a falsidade significa o
seu desacorde com a "realidade". Tanto os pragmatistas quanto os
intelectualistas aceitam essa definicáo como ponto pacífico. Só comecarn a
discordar quando é levantada a questáo relativa ao que se pode precisamente
entender pelo termo "acorde" e pelo termo "realidade", quando a realidade é
tomada como algurna coisa com a qual nossas idéias devem concordar. 32

Um pouco mais a frente, na mesma conferencia, James elucida as

nocóes de utilidade das idéias. de objeto e realidade:

O valor prático de idéias verdadeiras é, pois, derivado primariamente da


importancia prática de seus objetos para nós. ( ... ) Pode-se dizer entáo que é
"útil porque é verdadeira" ou que "é verdadeira porque é útil".
( ... )
Por "realidades" ou "objetos" aquí, entendemos coisas de sanso
comum, sensivelmente presentes, ou outras reíacóes de senso comum, tais
como datas, lugares, distáncias, tipos, atividades.

Essas teses do pragmatismo tomaram tanta forca que acabaram

possibilitando a existencia de um conhecimento científico que caminha

pressionado por forcas que lhe sáo externas, de ordem social e económica; é o

caminho oposto ao tomado por Bachelard, para quem nao interessam as

íntervencóes propriamente ditas da técnica científica sobre o real, mas as

possibilidades de intervir, isto é, as possibilidades da razáo apesar do real. Náo

31 Essai. ... p. 244.


32 JAMES, W. Sexta Conferencia: Concepcáo da verdade no pragmatismo. In JAMES, W.
Pragmatismo e outros textos/ William James. Os Pensadores. Sáo Paulo: Abril Cultural, 1979,
p.71. Esta mesma nocáo é retomada por James em O significado da verdade.
42

nos aprofundaremos nessa questáo para nao fugir ao nosso propósito.

Seguiremos mostrando como Bachelard "redireciona" o debate acerca da

verdade contrariando as teses pragmáticas.

No capítulo intitulado "Retificacáo e Realidade"33 Bachelard traz ·a luz,

num primeiro momento, a diterenca entre necessidade e contingencia. O

problema observado por Bachelard é que as ciencias contemporáneas insistem

em afirmar o contingente como real, daí resultam pelo menos duas quest6es de

ordem puramente metafísica: a questáo do nao-ser colocando-se como

realidade e, por conseguinte, a questáo da verdade que se retira da ordem do

encontrar para a ordem do processar, ou melhor, do "realizar". Nossa

investiqacáo parte da compreensáo do texto de Bachelard, porém visa

compreender esse novo domínio da verdade que se revela como processo a

partir de um novo paradígma de realidade.

No interior da questáo necessidade x contingencia dois principios se

defrontam: pragmatismo e contemoíacáo. O pragmatismo34 possui pelo menos

duas diretrizes de significado: urn vetor metodológico que se atém apenas ao

significado dos termos e das proposicóes, proposto por Pierce em 1878 e

desenvolvido por John Dewey, e um vetor metafísico, cunhado por James e

Schiller, que entende o pragmatismo como urna reducáo da verdade a utilidade

e a realidade do espírito. Quanto a utilidade, náo é difícil concluir que a

33 Essai sur la connaissance approchée, pp. 279-283.


34 Cf. ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 2.ed. Sáo Paulo: Mestre Jou, 1982. p.753-754.
43

pesquisa científica, por mais abstrata que em dado momento pareca ser,

sempre encontrará um caminho consoante as necessidades humanas.

Entretanto, do ponto de vista da verdade, como realidade do espírito, algumas

questóes se levantam. Dizíamos acima que urna das questóes metafísicas que

emergia da associacáo entre o contingente e o necessário propunha o náo-ser

como realidade; ora, se o nada mostra-se como a possibilidade de ser, o ser

nao é substrato. apontando-se aí a possibilidade de realidades paralelas que

encontram concomitantemente no microcosmo e no macrocosmo o seu ponto

de intersecáo, se o ser e o nada se colocam como realidades que se conjugam,

"a instrumentalidade do conhecer", proposta pelo pragmatismo, nao é a única

realidade possível.

O pragmatismo resolve essa questáo defendendo a tese de James que

pressupóe a racionalidade como urna espécie de sentimento (The will to

believe, 1897), condicionando a verdade, científica ou nao, as acóes e desejos

humanos, ou seja, a racionalidade humana coloca-se como o substrato ou o

sujeito da verdade, urna verdade que se regula pelos ditames do útil. O objeto,

para onde se direciona o desejo humano, ou o sujeito da verdade, é desse

modo um dado da natureza que naquele momento, pela torca da utilidade, é


trazido a luz.

Em síntese, conhecimento e pensamento instrumental coincidem no

pragmatismo, o que permite concluir, de um lado, que o conhecimento coincide

com o desejo utilitário e, de outro e em consequéncia disto, que o espírito


44

coincide com o sujeito, onde a relacáo sujeito-objeto pressupóe náo só o dado

natural (material}, mas, sobretudo, a razáo totalizadora e finita dessa relacáo,

Este princípio pragmático fracassa quando nossos olhos se voltam para o

microcosmo ou para o macrocosmo, onde o dado inexiste e a utilidade náo tem

razáo de ser, onde, sobretudo, o desejo humano nao tem nenhuma importancia

e, portante, traduz-se como incapaz de legislar sobre qualquer objeto ou

qualquer coisa que o valha. Resta-nos a contemptacáo.

2.4- A trajetória do binomio verdade-realidade rumo a inexatldáo

De um modo geral, urna vida contemplativa é aquela que se dedica em

tempo íntegra! ao conhecímento, a acáo de conhecer. Desse modo, ao contrário

de urna paralísia, de urna recusa ao movimento; a quietude da conternplacáo

sugere o abandono do "falatório" do mundo em prol de um mergulho profundo

no conhecimento em sí mesmo. Tamanha recusa ao senso comum resultaria.

no mínimo, numa transformacáo radical no modo de se relacionar como real. É

nesse sentido radical que Bachelard afirma: "i! faut contempler."35, isto é, é

preciso mergulhar no conhecimento e tentar compreender, de modo

abrangente, o ato mesmo do conhecirnento, rompendo-se os limites da visáo,

os horizontes da finitude, negando o real tal como o concebe o senso comurn

(real = material, visível, mensurável, quantificável). rompendo, de outro lado,

com o conceito estabelecido de rnatéria (matéria = necessário), abandonando-

35 Op.Cit., p. 279.
45
í" '

..'
se a contingencia como quem se lanca num abismo sem fundo. Contemplar

cientificamente requer rigor e exatidáo, requer método, requer seguranc;a.

Vale aqui ressaltar que Bachelard abandona essa nocáo de

conternplacáo no decorrer de sua obra chegando mesmo a lhe fazer oposicáo.

Fizemos uso dessa abordagem aqui apenas para acompanhar o raciocinio do

filósofo quando da elaboracáo do Ensaio sobre o conhecimento aproximado.

Pensemos no átomo: á-torno = náo-civisivel. Leucipo e Demócrito

elaboraram essa nocáo de átomo nos idos do século V a.c .. Diziam eles: "o

átomo é um elemento corpóreo, invisível por sua pequenez e nao divisívef'.

Leucipo acrescenta (frag. 2) que "nada ocorre sem rezéo, mas ludo ocorre por

uma rezéo e por uma necesskietie", Essa nocáo de átomo permaneceu

praticamente incólume até o ano de 1808 quando Dalton expóe sua hipótese da

cornposicáo atómica da matéria como explicacáo da lei das proporcóes

múltiplas36. Nela demonstrava que a combinacáo de substancias diferentes em

quantidades diferentes resultava numa nova substancia que se comporta como

se fosse indivisível. Por exemplo: a associacáo, por reacáo, de 2 átomos de

hidrogénio (H) com 1 átomo de oxiqénío (O), resulta no que conhecemos por

molécula de água (H20) que se comporta como um indivisível e cujo aspecto

material (corpóreo) difere de seus elementos constitutivos quando vistos em

separado. Daí para frente o conceito de átomo passa por um verdadeiro

36 Cf. Dicionário de Filosofia. Nicola Abbagnano. SP: Mestre Jou, 1982. Vale aquí ressaltar
que náo existe elemento puro na natureza, ou seja, urna nocáo de átomo de hidroqénio (H) é,
por si só, já urna construcáo racional e náo urna "verdade" natural.
46

torvelínho de retificacóes até que, na segunda metade do século XIX, a

concepcáo física do átomo rompe com a visáo química que vigía até entáo: o

átomo abandona sua forma corpuscular para surgír como microestrutura

eletromagnética. isto é, um certo número de elétrons girando elípticamente em

torno de um núcleo eletrizado positivamente construíndo trajetórias; esses

elétrons saltam de urna trajetória para outra de modo inobservável, no interior

dessa microestrutura, ao contrário da solidez, reside o próprio principio da

indeterrninacáo proposto por Heisenberg em 1927. Este Físico demonstra que a

trajetória de um elétron nao pode ser observada em sua ínteireza, o que

significa dizer que esta trajetória é indemonstrável. Do ponto de vista da ciencia

experimental "nada que náo seja observável ou mensurável tem significado

fisico"37. Apesar de o átomo nao ter mais significado físico, já que se

abandonou toda e qualquer tentativa de descrevé-lo ou definí-lo. a pesquisa

atómica nao cessa em seu progresso. O átomo, embora indeterminado, de um

lado evidencia-se na realídade como energía, de outro, abre o caminho para a

probabilidade: para o erro retificável. A realidade do provável nao é a realidade

do palpável. No ambiente da probabilidade nao existem dados, mas

possibilídades; nao há sujeito nem objeto, mas realizacóes racionais retificáveis;

náo existe o necessário, mas apenas o contingente.. Nao obstante, quem

negaria o átomo enquanto realidade?

37 ldem
: '
47

2.5. A retificacáo de erros como saida para o problema da verdade

Nosso raciocínio encaminhou-nos de volta a nossa questáo inicial.

Percorremos o caminho do real e desembocamos na arnbiéncia do fenómeno:

aquilo que aparece (phainomenon). A trajetória da nocáo de fenómeno náo é

menos complexa e intermitente que a história do átomo. Dos gregos até os

nossos dias, o "aquiío" relaciona-se com o "aparece" na mesma razáo que a

inteligencia humana relaciona-se com o real. Se substituirmos "aquito" por

"objeto" e "aparece" por "sujeito". leremos no fundo da sentenca "o objeto que

se sujeita" o que nos remeterá ao aclaramento da própria relacáo entre sujeito e

objeto, no decorrer da história do pensamento humano. Nao aprofundaremos

aquí o desenrolar da relacáo sujeito-objeto, mas insistiremos na mudanca do

eixo de cornpreensáo do que venha a ser verdade, repetiremos enfaticamente a

passagem da nocáo de "busca" para a nocáo de "processo", porque é no bojo

desta viragem que a nocáo de fenómeno se coloca na obra de Bachelard. Diz

ele:

'por outras palavras, o que é hipotético agora é o nosso fenómeno: porque a


nossa ceptecéo imediata do real oso atua seoso como um dado confuso,
provisório, convencional e esta capta<;ao fenomenológica exige inventário e
ctesstñcecéo. "38

É no interior da questáo do conhecimento científico que sobressai o

problema da verdade. Para Bachelard

O conhecimento é sempre com efeito urna referencia a um domínio


antecedente, a um corpo de elementos dos quais se admite a racionalidade e
por relacáo ao qual se mede a leve aberracáo dos fatos. 39

38 BACHELARO, G. Nournéne et microphysique. In: Études, Vrin, 1970. p. 14. Obs. grifo
nosso.
39 Op.Cit.. p. 243.
48

O ato de conhecer pressupóe "orqanizacáo sistemática" e 'retiñcacáo

continua", trata-se de um ato dinamice que se esforca para conquistar e

assimilar. Nesse sentido, o ato de conhecer é um ato técnico, pressupóe urna

retina, um fazer cotidiano, um esforco de compreensáo diário, mas nem um

pouco mecanice. lsto náo quer dizer de jeito nenhum que as construcóes

racionais objetivem a substancia das coisas, muito ao contrário. Diz Bachelard:

"para o experimentador a substancia náo se resume. Ele trabalha


contrapondo-se a Spinoza, na prodigalidade e no movimento dos atributos,
náo na unidade do sujeito"40.

Se náo há urna unidade subjetiva e sim um estorco diário, continuo e

dinamice, nao há precisamente urna busca da verdade, mas sim um processo

de retificacáo de erros. Diz ele:

Por isto o problema do erro nos pareceu vir antes do problema da verdade, ou
melhor nós náo encontramos solucáo possível para o problema da verdade a
41
nao ser descartando pouco a pouco os erros mais finos

Neste momento a narrativa bachelardiana insere na discussáo o

problema das perturbacóes em Renouvier, cujas preocupacóes metafísicas sáo

revistas em O novo espírito científico.

Charles Renouvier42 (1815-1903), um dos maís importantes defensores

do neocriticismo francés, concorda com Kant ao afirmar que o conhecimento é

conhecimento do mundo dos fenómenos, mas discorda dele ao náo admitir que

40 ldem, p. 244.
41 ldem, p. 244.
42 Cf. FERRATER MORA, J. Diccionario de Filosofía. v.4. 3 ed. Madrid: Alianza Editorial,
1981. pp. 2842-2845.
49

haja um "em si" por trás dos mesmos fenómenos. O ponto rnais importante de

seu pensamento é o que se refere ao relacionismo que consiste em negar toda

e qualquer pretensáo ao conhecimento de urna realidade absoluta ou

incondicionada. Entretanto, Renouvier percebe que dilemas metafísicos

arrolados no decorrer da história do homem merecem atencáo e estudo: sáo

pares de opostos que nos obrigam a urna tomada de posicáo, quais sejam:

incondicionado x condicionado, infinito x finito, impersonalismo x personalismo,

determinismo x liberdade. Segundo Renouvier, estes pares de opostos

traduzem a diferenca entre o realismo (incondicionado, infinito, impersonalismo,

determinismo) e o relacionismo (condicionado, finito, personalismo, liberdade),

ou seja, por mais que o relacionismo se oponha ao substancialismo, ainda

assim traduz-se como urna tomada de posicáo ontológica. A nocáo de

personalismo em Renouvier é urna tomada de posicáo metafísica que consiste

em optar pelo relativo frente ao absoluto e pelo concreto frente ao abstrato;

para Renouvier o concreto está para o pessoal assim como o abstrato está para

o impesoal. Este ponto de vista leva-o a afirmar que a pessoa concreta náo se

confunde com a idéia de Substancia (hipóstasis='), mas se converte numa

ordem humana, em um ideal que pode ser alcancado mesmo que apenas de

modo aproximado. Na realizacáo deste ideal define-se a personalidade como

"liberdade através da história". Para Renouvier, a fatalidade da história, assim

como a utopia progressista devem ser eliminados por urna concepcáo que ve a

43 No sentido da transforrnacáo de urna palavra ou um conceito em substancia, numa coisa,


num ente.
50

liberdade pessoal como condicáo do progresso efetivo e concreto assim como

da própria moralidade.

Bachelard, apoiado em Renouvier, resolve o problema do

substancialismo e do realismo explicando

"o conhecimento no seu dinamismo íntimo, apoiando-se sobre seus próprios


elementos. Nós náo podemos nada dizer de um desconhecido que é
transcendente a experiencia" .44

Do mesmo modo, Bachelard tem toda urna preocupacáo em nao se

deixar cair no realismo. Comentando as possíveis objecóes, que se poderiam

levantar contra "um estudo ímediato dos erres", aponta a seguinte direcáo:

Estas objecóes náo térn a torca da evidencia que se dáo a elas. Elas
envolvem os postulados metafísicos que se créem necessários para o
desenvolvimento de urna filosofia idealista. Pode-se suprimí-los sem cair,
eremos nós, no realismo.45

Poderíamos resumir a solucáo de Bachelard para o substancialismo e

para o realismo com a seguir.te sentenca: A substancia do conhecimento é o

conhecer, conhecendo.

Seria .entáo a epistemología bachelardiana um ídealismo? Longe da

controvérsia platónica, entendemos aquí idealismo no seu sentído moderno, isto

é, como a tendencia, atitude ou doutrina que, em graus e sentidos diversos,

reduz o ser ao pensamento ou a alguma entidade de ordem subjetiva,

considerando que o espirito, ou a consciencia, ou as idéias, ou a vontade, ou o

44 Op.Cit., p. 245.
45 Ibídem.
-
-
51

conhecimento, etc., sao o dado primário com base no qual se hao de resolver

os problemas filosóficos, sobretudo na conquista de métodos lógicos rigorosos

que, em grande parte, sao fruto da reflexáo sobre o pensamento e a confianca

no valor e no poder da atividade racional.

É notório o constrangimento de Bachelard a época do Ensaio:


É difícil. como se ve, delimitar o idealismo, ele invade forcosamente o
campo inteiro da epistemologia. O empirismo absoluto nos conduziria a piores
dificuldades, ... 46

Nesse momento da reflexáo, Bachelard, habilmente, coloca em suspenso

o termo idealismo e concentra-se na relacáo sujeito-objeto, por nós já

comentada. A questáo do idealismo é retomada muito rapidamente no último

parágrafo do livro, antecedendo a conclusáo: "pareca o que for, o idealismo,

mais que todo outro sistema, deve posicionar um mundo que fique aberto a
evolucáo e por conseqüéncia imperfeito?". Na verdade, é por ocasiáo de Q

novo espírito científico ( 1934) que a temática é retomada e melhor discutida.

Neste contexto o idealismo recebe a "etiqueta" de racionalismo em contraponto

ao realismo; estas etiquetas mais tarde se converteráo em raciocínio e

experiencia respectivamente. Afirmando que "toda aplicacáo é

transcendéncia=", Bachelard resolve o problema ressaltando a "impureza

metafísica" da atividade científica contemporánea por ser "a filosofía da ciencia

urna filosofia que se aplica"49. Resumindo: "nem realismo nem racionalismo

46 ldem, p. 246.
47 ldem, p. 292.
48 O novo espírito científico, p. 11.
49 ldem, p. 1 O.
52

absolutos ... nao se pode partir de urna atitude filosófica geral para julgar o

pensamento científico"5 º. Este resumo na verdade náo dá conta do problema.

'·· O título da obra O Novo espírito científico por si só já nos remete a urna
·-~-·
nocáo de espírito, seja ela qual for. Espírito, do latim spiritu, vem a luz com o

intuito de nomear a parcela imaterial do ser humano, sua alma. Desde já é

preciso entender o sentido do termo matéria para que nao nos equivoquemos

quanto a imaterialidade. Matéria é um principio constitutivo do real tido como

natural, isto é, o principio constitutivo dos corpos. Entretanto, filosoficamente,

encontramos vários sentidos para esse mesmo princípio51. Inversa rnáo, é

justamente a possibilidade de renunciar ao conceito de matéria que justifica o

uso do termo espírito por parte de Bachelard, autorizando-o a associar o termo

ao racional-matemático.

50 Ibídem.
51 1) sujeito: embora já apareca com este sentido em Platáo, é Aristóteles quem diz: "Chamo
matéria o sujeito primeiro de urna coisa, isto é, do qual a coisa se gera náo acídentalmente
(Fis., 1, 9, 192 a 31 ); 2) poténcia: também assim entendida por Aristóteles. mas já encontramos
em Platáo a seguinte referencia: a matéría "nunca perde a própria potencia" (Tim., 50 b): 3)
extensáo: nocáo defendida por Descartes que profere a seguinte sentenca: "A natureza da
matéria ou dos corpos em geral, náo consiste em ser urna coisa dura ou pesada ou colorida ou
que toca os nossos sentidos em qualquer outro modo, mas semente em ser urna substancia
extensa, em comprimento, largura e profundidade" (Princ. Phil., 11,4); 4) ~: influenciados
pelos platónicos de Cambridge do século XVII, Newton, Leibniz e Wolff defenderam este
principio. Newton, de sua parte, associava a matéria com as "forcas" e "principios" que se
manifestam na experiencia (Ótica, 1704, 111, 1, q.31 ), Leibniz, por sua vez, defende que a
matéria seja constituida, além da extensáo, de urna torca passiva de resistencia que é a
impenetrabilidade (cf Abbagnano, p.620), e, por fim, Wolff dizia que matéria é "urn ente
extenso munido de torca de inércia" (Cosmol., § 141-42); 5) lei: segundo Mach a matéria é
urna "conexáo determinada dos elementos sensíveis em conformidade com urna leí" (Analyse
der empfindungen, XIV. 14); 6) massa: a matéria é assím entendida no domínia da Mecáníca,
definida pelo segundo principio da dinámica como relacac entre a torca e a aceleracáo
impressa (cf Abbagnano, p.620); 7) densídade: segundo Einstein (The Evolution of Physics,
cap. 111; trad. ital. p.;253) "Urna vez reconhecida a equivaléncia entre massas e energia, a
divisáo entre matéria e campo parece artificiosa e nao claramente definida. Náo poderemos
entáo renunciar ao conceito de matéría e edificar urna física do campo puro?
~ :;;. ·~
53

Segundo Bachelard, o espírito científico coniemporéneo é a síntese da

razáo dialética entre o racionalismo e o realismo; de urn lado, o "vetor

epistemológico ... Vai seguramente do racional para o real"52; de outro, "a

aplicacáo do pensamento científico [é] essencialmente realizadora'v".

Estranhamente, Bachelard ve-se toreado a tomar urna posicáo metafísica, tal

como preconizava Renouvier, e opta por enquadrar o espírito científico no

realismo, "urn realismo de segunda posicáo", mas um realismo. Vejamos:

... sem relacáo enfim com o realismo filosófico tradicional. Com efeito, trata-se
de um realismo de segunda posicáo, de um realismo em reacáo contra a
realidade habitual, em polémica contra o imediato, de um realismo feíto de
razáo realizada, de razáo experimentada. 54

Vale observar que O novo espírito científico é de 1934. Em 1936, num

artigo intitulado "O Surracionalismo"55, Bachelard retoma a temática. Se em 34

tratava-se de um realismo de segunda ordem, agora (1936) trata-se de um

surracionalismo e de um surrealismo56. Georges Canguilhem em seu prefácio a

O cornpromisso racionalista, obra post mortem trazida a luz em 1972, onde o

próprio Canguilhem organiza urna série de artigas que, segundo ele, ao lado

dos agrupados ern O direito de sonhar e Estudos sornados aos livros

52 ldem, p. 11.
53 lbidem.
54 lbidem.
55 lnquisitions, nº 1, junho de 1936, Editiones Sociales Internacionales. Apud: BACHELARD,
G. Et compromiso racionalista. Orqanizacáo de Georges Canguilhem. 2.ed. Buenos Aires:
Siglo XXI, 1976. pp. 13-18.
56 A título de curiosidade vale aquí citar urna obra escrita a seis máos por Briony Fer, David
Batchelor e Paul Wood intitulada Realismo. Racionalismo e Surrealismo: a arte do entre
guerras, traducáo de Cristina Fino - SP: Cosac & Naify, 1998. Nesta obra percebemos que
vários dos conceitos bachelardianos coincidem corn os das discussóes estéticas da época
como. por exemplo, L'Esprit Nouveau, título de urna Revista que publicou 28 números entre
1920 e 1925 (cf. p.19), onde saíram os primeiro manifestos "puristas", ern que os artistas
denunciavam a lógica como senda um instrumento de controle em detrimento da intuicáo
artística.
~
f,?T
54

publicados pelo próprio Bachelard, dáo canta de toda a obra, refere-se da

seguinte maneira a Bachelard: "urn filósofo matemático que morreu porque nao

acreditava que podia separar em seu compromisso a razáo e a existéncia'".

Em linhas gerais o surracionalismo ou super-racionalismo seria um

movimento questionador capaz de levar a razáo humana a duvidar de sua

própria obra, mantendo-se sempre vigilante num estado de liberdade absoluta,

o que requer um constante "dizer nao" a acornodacáo, ao conformismo, ao

absoluto, ao a priori, ao senso comum, etc. Diz Bachelard: "Ensinando urna

revolucáo da razáo, se multiplicariam as razóes para realizar revolucóes

espirituais=".

A nosso ver e a título de conclusáo, a nocáo de verdade em qualquer

setor da epistemología de Gaston Bachelard está associada a nocáo de

retificacáo de erras, isto é, a nocáo de verdade deixa de ser algo para se tornar

ambiente. O racionalismo discursivo, ou a própria ciencia, só é possível de

realizar-se no campo lívre da verdade. Nao se busca urna verdade, constroem-

se fatos verdadeiros que sao questionados e reformulados por polémicas

verídicas. Tudo isto só é possível quando se atribuí a instancia do erro o caráter

positivo da retíñcacáo. O erro abandona o ambiente teológico da falta para

tornar-se a grande torca motriz do conhecimento. O reconhecímento e a

retificacáo dos erres sao os elementos essenciais da racionalidade. Razáo é

57 Op. cit. p.11.


58 Op.Cit., p. 15.
55

isto: gerar, reconhecer e retificar erres. Desse modo, o reconhecimento do erro,

"a própria anti-esséncia que se contrapóe a esséncia da verdade", torna-se a

matéria fundante da própria verdade enquanto ambiente. De outro lado, a

possibilidade de reconhecer e retificar erros revestida como devir, demonstrar

que o ambiente da verdade é preenchido pela esséncia da liberdade, nao como

poder de escolha, mas como possibilidade de abertura ao lancar-se. Nesse

sentido verdade e liberdade confundem-se num só conceito permitindo

redimensionar a realidade que se coloca como objeto da ciencia. Diz Bachelard:

Uma verdade só tem seu pleno sentido ao termo de uma polémica. Nao há
verdade primeira. Mas, apenas, erros primeiros. Nao se tieve, oois, hesitar em
inscrever no sujeito ativo sua experiéncia essencialmente infeliz. A primeira e a
mais essencial das tuncoes da atividade do sujeifo a de se enganar. Quanto
é

mais complexo for seu erro, mais rica será sua experiéncia. A experiéncia é,
mais precisamente, a recorcecéo dos erros retificados. O ser puro é o ser
desenganado. 59

Desse modo, o problema da verdade, em Bachelard, constituí-se como o

próprio amago de urna "Filosofia do Náo": nao ao realismo; nao ao idealismo;

nao ao pragmatismo, em síntese, nao ao substancialismo que tanto aprisionou

a razáo a urna axiomática, a urna "verdade absoluta" que definitivamente nao

dá conta do real. Verdade para Bachelard é pensar o nao pensado dentro do [á

pensado, no que concerne as ciencias. traduzindo-se entáo como a arte-técnica

de retirar do interior cotidiano da cidade científica os erros a serem retificados;

retirar aqui tem o sentido do produzir (producere), ou seja, retirar-lhe o sentido

mais próprio. Retificar erros é, portanto, retirar o sentido mais próprio do fazer

científico que consiste em realizar a racionalidade humana em toda a sua

plenitude e poder criativo.

59 BACHELARD, G. Idealismo Discursivo. tracucáo de Marly Bulcáo. In: -. Études.


[ ... ) a poesia niio é apenas a t'erdade ... É

nutito niaisl

A poesia é a iureuciio da Verdade.

ltlário Quiutmw

No principi.o era a poesia ... No cérebro do

liomem só liaria imogeue... Depois, 1•ierm11 os

pensamerüos ... E, por fim; a Filosofia, que é,


em última onálise, a. triste arte de ficar do lado

de Jora das colsas,

Mário Quintana
56

3. ERRÁNCIA E VERDADE NA ONTOLOGIA DE MARTIN HEIDEGGER

O presente capítulo pretende analisar a questáo da verdade na filosofía

de Martin Heidegger (1889-1976) corn a finalidade de ressaltar que a nocáo de

verdade em sua obra náo se confunde corn a idéia de "coisa", contrariando as

conceituacóes de verdade trazidas pela tradicáo filosófica desde a Grécia

Antiga até a Modernidade, mas coloca-se corno o lugar da "descoberta", isto é,

o ponto de intersecáo entre o "ser descobridor" e o "ser descoberto" na abertura

do mundo. Esta abertura que se instituí como a esséncia da verdade só é

possível gra9as ao exercício, por parte do ser, de sua própria anti-esséncia - a

erráncia. É "errando", no sentido de um rancar-se errante rumo ao

desconhecido, que se atinge a abertura do mundo ou a verdade ou o sentido do

ser em seu ser mais próprio. Existir é errar.

3.1. O contexto heideggeriano

O ambiente em que reside a filosofia de Martín Heidegger é a

fenomenología. Paul Ricoeur em seu artigo intitulado "Sur la Phénoménologie"6º

nos dizque

"Se nos atemos a etimología, qualquer um que trate da maneira de aparecer


do que quer que seja, qualquer um, por conseguinte, que descreva aparéncías
ou aparicóes, faz fenornenologia."

60 Esprit, dez. 1953, p.82


57

Assim sendo, é preciso distinguir as fenomenologías. Johann Heinrich

Lambert (1728-1777), um discípulo de Christian Wolff (1679-1754), escreve em

1764 urna obra intitulada O Novo Órganon, onde constrói urna teoria do

conhecimento dividida em quatro partes: a dianoiologia; a aletiologia; a

semiótica e a fenomenología. Esta última constituía-se de urna teoria da

distincáo entre o verdadeiro e o falso. Estava cunhado o termo fenomenología

como significante da teoría das ilusóes. O termo é retomado por lmmanuel Kant

(1724-1804), em 1770, para designar a disciplina propedéutica que deve

preceder a metafísica. Mas é em 1807, através de Georg Wilhelm Friedrich

Hegel (1770-1797), quando da publicacáo da Fenomenología do Espírito, que o

termo fenomenología ocupa definitivamente seu lugar na tradicáo filosófica.

André Dartigues61, distinguindo as fenomenologias de Kant e Hegel, nos diz o

seguinte:

Segundo Hegel, o absoluto, senda cognoscível, é por este fato mesmo


qualificável como Si ou como Espirito, de modo que a fanomenologia é de
imediato urna filosofia do Absoluto ou do Espirito.

Muito embora Hegel tenha afirmado o termo fenomenología, náo é a sua

concepcáo que dará sentido ao que hoje entendemos por fenomenología. Mais

que um conceito ou nocáo, a fenomenologia contemporánea constituí-se como

um movimento filosófico, fundado por Edmundo Husserl (1859-1938), que se

ergue como possibilidade de solucáo para a crise que se instaurou no

pensamento humano na virada do século XIX para o XX. Com o declínio dos

grandes sistemas filosóficos, urna espécie de lacuna se impóe ao

61 O que é a fenomenologia? 3_ ed. SP: Moraes, 1992. p.2.


58

conhecimento. Esta !acuna é ferozmente ocupada pelo pensamento científico

de ordem positivista, fadando ªº descrédito e a sombra o pensamento

especulativo, a filosofia. a metafísica. É neste ambiente que o movimento

fenomenológico se ergue, contrariando, pela voz de Husserl, o "naturalismo"

das ciencias. Diz Dartigues:

O que Husserl quer sobretudo rejeitar é o naturalismo dessas ciencias


que, nao tendo destacado a especificidade de seu objeto e tratando-o corno se
tratasse de urn objeto físico, confundern a descoberta das causas exteriores de
um fenómeno com a natureza propria deste fenómeno. 62

Husserl propóe a instauracáo de urna filosofia que se constitua como

ciencia rigorosa. Para entender o que isto significa é preciso antes compreender

o que quer dizer fenómeno para Husserl. Fenómeno aqui nao se trata de um

conjunto de irnpressóes que esconde atrás de si um "ern si mesmo"; para

Husserl as "impressóes" que "aparecern" náo sao ilusóes nem "cortinas de

fumaca": o que é, só o é, porque ali está, pasto que o nada nunca é; desse

modo, o que ali está, o que aparece, está impregnado de pensamento; é ao

mesmo tempo pensamento e fenómeno - logos e eidos. Nesse sentido, a

filosofia como ciencia rigorosa deveria voltar-se para a realidade e nao para a

especulacáo "opinatória" dos filósofos. Para Husserl, fenómeno e pensamento

se interpenetram; a esséncia do fenómeno é o pensamento que o faz aparecer,

e é este precisamente o papel da fenomenología husserliana: desenvolver

métodos rigorosos que propiciem a suspensáo do fenómeno para que o

pensamento que subjaz apareca em si mesmo revelando-lhe a esséncia. Náo

devemos aqui confundir pensamento com conhecimento. senáo incorreríamos

'-· 62 Op. cit.. p.12.


59

no mesmo equívoco do positivismo que acreditava encontrar no conhecimento

que obtinha, acerca dos fenómenos "naturais", a própria esséncia dos

fenómenos; pensamento em Husserl identifica-se com intuicáo. Um exemplo

didático deste tipo de intuicáo seria o cógito cartesiano. Para Descartes o que

"é" em última instancia é o "eu penso" desvelado no "eu existo". Desse modo, o

"eu penso" seria a esséncia do fenómeno existir e este a tenomenatizacáo do

pensar. Pensamento e existencia diferenciam-se. mas inexistem um sem o

outro. O pensamento, embora seja a esséncia do existir, em Descartes, nao é

subjacente a existencia. Esséncia e aparencia, em Husserl, sao os próprios

constitutivos do fenómeno

A fenomenologia de Husserl é. obviamente, muito mais profunda do que

o que acabamos de relatar e merece ser lida e analisada com mais respeito e

cuidado. Nosso intento, neste momento, é apenas ambientar as origens da

filosofia de Heidegger que tem, a nosso ver, raízes profundas no pensamento

de Edmundo Husserl.

3.2. A fenomenologia de Heidegger

O pensamento de Heidegger, segundo alguns comentadores

importantes, divide-se em duas etapas: o primeiro Heidegger, onde se incluem

as obras de cunho sistemático como Ser e Tempo e a conferencia Q_g_ue é a

Metafísica; e o último Heidegger que se caracteriza pela busca de urna

reconstrucáo da Metafísica sobre novas bases.


'.)
7

60


Na vísáo heideggeriana, a Fenomenologia náo consiste num movimento

filosófico, como o querem alguns, mas permite ir as coisas mesmas conforme

elas sao em sua estrutura ontológica, em seu próprio ser. Neste sentido, a

Fenomenologia coloca-se como urna hermenéutica, como urna interpretacáo do

ser nele mesmo a partir do Dasein, do ser-al-posto-no-rnundo. que nao se trata

de um ente como outro qualquer, mas um existente que leva em seu ser o

próprio ser.

Numa prelecáo intitulada Que é Metafísica? (1929) o estratagema de

Heidegger, para nos conduzir para o ambiente da metafísica, toma como ponto

de partida a ciencia: seus modos, suas questóes e, principalmente, sua

aversáo: "o nada". Apresentando, assim, a questáo que ora nos conduz para

dentro da metafísica: "Que é o nada?", ou melhor: "Por que há simplesmente o

ente e nao antes o nada?". Segundo a interpretacáo de Vattimo63, ·a

investiqacáo primeira inscrita na conferencia O que é Metafísica?, texto incluso

no primeiro Heidegger, termina com a questáo "Por que há simplesmente o ente

e nao antes o nada?", que é justamente o tema que dá impulso ao curso

lntroduy8o a Metafísica, texto típico do segundo Heidegger e nossa referencia,

neste momento, por ser um exemplo bastante claro do método fenomenológico

de Heidegger.

63 VATTIMO, Gianni. lntroduc§o a Heidegger. 5 ed. Traducác de Joáo Gama. Lisboa: Edicóes
70, 1987. pp. 69-70.
61

Para Heidegger, a fenomenología nao é um movimento, mas um

método de desvelamento daquilo que "no comportamento cotidiano ocultamos

de nós mesmos/", Assim senda, Heidegger erige sua Metafísíca a partir da

questáo fundamental revista por Leibniz: Por que há simplesmente o ente e

nao antes o nada?, classificando-a como a primeira questáo "em dignidade,

antes de tudo por ser a mais vasta, depois por ser a mais profunda e afina/,

por ser a mais origínária das questoes/", embora a questáo nunca ocorra

cronológicamente em prímeiro lugar. Assím, a questáo originária Por que há

simplesmente o ente e nao antes o nada?, por sua profundidade e vastidáo.

abarca todos os entes, ou a sua totalídade, pois só encentra limites no nao-

ser.

Nesta lntroducáo a Metafísica, Heidegger nos conduz a cornpreensáo

acerca da despotencializacáo do ser, ísto é, a cornpreensáo do que seja o

processo progressivo de esquecirnento do ser no decorrer da história do

Ocidente, entendendo-se por Ocidente toda a civilizacáo que frutificou

intelectualmente a partir da base grega.

Este esquecimento é fruto de um processo contínuo de falsificacáo do

que seja o espírito humano, ora confundindo-o com o intelecto, ora atribuindo-

lhe a condicáo de instrumento de ensino e aprendizagem, ora deturpando-lhe

o próprio sentido de sua manifestacáo: a Arte, o Estado e a Relígíao_

64 GILES, T.R. História do Existencialismo e da Fenomenologia_ Vol. 2. Sao Paulo: EDUSP.


1975. p.201 . .
65 Heidegger, lbidem, p. 34.
62

Neste sentido, no que consistiría entáo o espirito humano? Consiste no

ser do homem que se revela na humanidade ou na totalidade de modos de

ser do homem: ora harmónico, ora desarmónico; ora mau, ora bom; ora

religioso, ora cético etc. Tudo isso nos mostra que o ser do homem se revela

multifacetadamente em cada agrupamento humano, por sua cultura, e ainda

rnais multifacetado em cada indivíduo por seu comportamento.

Essa relacáo se reproduz no ámbito individual onde cada um se

apresenta ou aparece de urna determinada forma a cada momento ou

circunstancia, o que nao quer dizer que cada um de nós seja múltiplo, mas

que revelamos nosso ser de múltiplas formas, já que nao é possível mostrá-lo

na sua totalidade.

Heidegger conduz nossos olhares por sobre as paisagens de nossa

própria existencia histórica, a fim de nos seduzir a resolucáo de querer saber

acerca do fundamento de nosso espirito que, ao contrario do fechamento, é

algo que de si mesmo se abre possibilitando a plenlficacáo de nossa concicáo

de ente, ou seja, o abrir-se as obras do espírito resulta no aprofundamento e

no alargamento do arco de nossa condicáo de ente, plenificando assim nossa

propria existencia.
63

O homem é "o ente que fala"66, ou seja, a linguagem simbólica própria do

homem é o que o essencializa enquanto tal a medida que o distingue dos

demais entes. Nesse sentido é possível afirmar que a linguagem é a morada do

ser do homem, que se expressa, precípuamente, pela palavra.

Se a questáo fundamental: Por que há símplesmente o ente e nao antes

o nada? se coloca a partir da linguagem, entáo é esta mesma linguagem o

ponto de partida de onde saltaremos em busca de seu fundamento, ou seja, se

a linguagem é a morada do ser, é a partir dela que devemos procurar o ser e,

encontrando-o. compreender o seu sentido que nada mais é do que a própria

verdade.

Heidegger, em busca do aprofundamento da questáo: O que há com o

ser?, parte da investiqacáo das origens da paiavra "ser", gramatical e

etimologicamente, tentando ir ao encentro do seu sentido mais originário.

Gramaticalmente, o substantivo verbal "o ser", oriundo do modo infinitivo

"ser", constitui-se originariamente como aquilo que. se sustenta em, para e

sobre si mesmo. Ora, se .. o ser" se revela naquilo que é, que existe, e

existencia originariamente significa o eterno movimento de vir-a-ser a partir do

nao-ser, podemos concluir que "o ser" é aquilo que está no fundo do "é", sendo

ele mesmo (o ser) no seu "senda", já que implica no movimento do "nao-ser"

66 lbidem, p. 109.
64

(existencia) ser quando "é", no sentido de um eterno devir, nos limites da

existencia.

Oeste modo, o "ser" se traduz em presenca através do ato de estar

sempre "sendo" e, no fundo, porque se constitui no movimento temporal de

levar a "ser" o "nao-ser", através do ente, na temporalidade, que é o ser que é,

por isso é que o ser só pode ser compreendido a partir do dasein - o "ser-aí-no-

mundo", isto é, através da sua presenca como ente.

O que se quer dizer, na verdade, com tudo isto é que o modo infinitivo

"ser" é, por si mesmo, indeterminado. só encontrando deterrninacáo quando se

entifica no "é", o que o faz por autodeterrninacáo. ou melhor, a inoicacáo

presente "é" e a substantivacáo "o ser" nada mais sao do que derivacóes

daquela mesma esséncia infinitiva e indeterminada "ser".

Nesse sentido, segundo Heidegger, ser e physis térn a mesma

significa9áo, pois ambos constituem-se do movimento de, pelo vigor, brotarem-

se de si mesmos, de fornecerem-se, a si mesmos, os seus própríos fundos.

lsto posta, torna-se muito mais clara a questáo acerca do esquecimento

do ser. A medida que o homem foi se detendo no ente, no "é", foi, ao mesmo

tempo, esvaziando de significado o infinitivo "ser", transformando-o numa

palavra vazia, sem nenhum conteúdo, ironicarnente, pela própría vulqarizacáo

do seu uso no cotidiano da vida.


65

lsto quer dizer que o homem, quando optou por um mundo quantificado,

optou pelo mundo do ente, se deteve no ente e atribuiu-lhe o status de verdade.

Urna verdade relativa e fugaz tal qual a própria existencia do ente, levando o

pensamento ocidental a táo grande decadencia que foi até possível interpretar

o sentido grego de physis como física ou natureza, tal como hoje o

conhecemos, e, por fim, decretar a própria morte da Metafísica quando se lhe

atribuiu o sentido do incognoscível, já que tratava de tudo que estava para além

da "física", reflexo da visáo que se detém no ente e, portante, náo enxerga o

ser que !he é intrínseco como esséncia.

O pensamento de Martín Heidegger náo só recupera o sentido do ser,

como reformula o conceito de verdade e recoloca a Metafísica e,

consequentemente a Filosofia, em seu devido lugar, que é o da investiga<;ao da

questáo fundamental: Por que há simplesmente o ente e nao antes o nada?,

investiqacác esta que se traduz como o "destino da História Espiritual do

Ocidente'67.

Para Heidegger o ser náo está na base, por trás ou separado do ente,

mas se revela no ente, ou seja, o ente é a forma revelada do ser, que é aquele

ente, e a verdade consiste na compreensáo disto. Referimo-nos a isto

anteriormente quando apontamos a verdade como o "sentido do ser", a direcáo

67 lbidem, p. 113.
-
- 66
··'

que toma o ser quando da sua determinacáo, sendo o ser em si mesmo

infinitivo e indeterminado, pois concentra em si todo o "vir-a-ser".

Vimos também que, originariamente. o ser só é acessado pelo pensar.

como presenca no ente. É partindo do ente que alcancemos o ser e que este é

physis, pois brota de si mesmo, gerando para si o seu próprio fundo, e é

também ousia, pois revela-se na existencia, pelo vigor do brotar, como a

determínacáo que é o ente e, por fim, o ser é a temporalidade historial de sua

existencia enquanto ente. isto é, o ser em si mesmo é plenitude nos limites da

existencia.

Com isso alcancarnos a própria esséncia do ser que é a temporalidade

historial que ele traz consigo mesmo. oculta, mas revelável a medida que nos

colocamos no estado da questáo: o que há com o ser?, cuja resposta só se

encontra no próprio ambiente do ser: sua temporalidade historial, sua história.

Retomemos de forma mais clara o problema da essencializacáo, a partir

de urna cltacáo do proprio Heidegger:

"A palavra 'ser", em cada urna de suas variacóes. se comporta com


respeito ao ser em si mesmo por ela evocado de um modo essencialmente
diverso do que todos os outros substantivos e verbos da linguagem com
relacáo ao ente neles evocado."68

Tomemos um infinitivo qualquer, por exemplo, "tossir", em qualquer

deterrninacáo verbal que se dé a esse infinitivo: passada: "tossla": presente:

68 Ibídem, p. 155.
67

"tusso": ou futura: "tossirei" ou, ainda, a própria substantivacáo: "o tossir".

Estaremos nos reportando, invariavelmente, a acáo preconizada pelo infinitivo

"tossir" que, oriundo do latim tossire, significa expelir da garganta; lancar tora de

si.

De outro lado, tomemos como exemplo o modo infinitivo "ser", por si

mesmo indeterminado quanto a qualquer acáo determinada. Se o

substantivarmos em "o ser", ainda assim nos encontraremos ante a

indetermínacáo e nela continuaremos se o expressarmos na sua forma verbal

mais proeminente e, ironicamente. mais corriqueira: a terceira pessoa do

singular do indicativo presente: "é", que no seu uso cotidiano e vulgar acaba

ocultando, por passar desapercebido, a ínfinidade de formas que pode assumir,

mantendo-se ainda o mesmo e simples "é".

Tomemos alguns exemplos: "o muro é de tijolo" significa que "é feito de";

"Pelé é brasileiro" significa "nasceu em"; "a cesta é de Maria" significa que "lhe

pertence a ela"; e assirn por diante até as construcóes onde seria necessário

um pequeno opúsculo para clarear-lhe a direcáo, Recorro aquí novamente a

Heidegger quando cita o seguinte verso de Goethe: "Sobre os cimos é

serenídade"69, onde nao é possível obter nenhum significado ímediato para o "é"

que ali se encontra. Com isso queremos demonstrar a infinidade de

determinacóes ou sentidos que sao possíveis ao ser, ao contrário de querermos

exaltar a sua indeterminacáo.

69 Ibídem, p. 115-116_
~"""'"
'"-

68
-::
- '

~..

Se o ser é capaz de múltiplos sentidos ou deterrninacóes, é preciso,

entáo, que o entendamos no seio de seu próprío ambiente, em sua própria

história, onde a linguagem, de um lado, ressalta pela indeterminacáo e, de


,_
outro. oculta pela necessidade do uso cotidiano, tornando-o corriqueiro e, por

isso mesmo, invisível aos olhos, como no exemplo do "é".

Por isso dizemos que a linguagem é a morada do ser, por que é nela que

o encontramos, mas compreendé-lo só é possível quando penetramos no seu

próprio ambiente metafísico, em que ele processa sua "história oculta'" e

revela sua própria esséncia que é a sua deterrninacáo na temporalidade da

história.

3.3. A questáo do ser

A palavra, para Heidegger, tem caráter essencial. por isso sua filosofia é

hermenéutica. O forjar o verbo é trazer ao óntico, na condicáo de presenca, a

ambiéncia ontológica que essencializa o homem, dife.rindo-o dos demais entes

e, portante, retirando-o das teias das leis naturais e atribuindo-lhe o poder de

urdir suas próprias leis. Buscar, analisar e interpretar as formas originárias das

palavras é desvelar este ato de forjar o verbo que se constituí no ser do homem

enquanto tal. O homem, quando forjou (fabricou) a forma verbal "eu sou",

traduziu, com ela, seu próprio ser: indefinível, mas perceptível como presenca

70 Ibídem, p. 118.
•• 69

-,
.'
num "algo", por isso a forma embrionária "eu sou" torna quase que imperativa a

·-
. ~·
cornplementacáo "algo" (eu sou algo) para entificar-se a razáo: entretanto lá

a
·· ......
·.::• permanece, embrionária, em sua arnbiéncia ontológica, aberta infinidade de
·~
;l
.>·

possibilidades de "presentar-se" a realidade óntica. E foi pela fabricacáo de urna


intensidade, imensidade e complexidade de "algos", que tentativamente

visavam entificar o que "revoluía" metafísicamente por dentro, que o homem

construiu seu mundo, humanizou a própria natureza, edificou o· seu próprio

reino.

É neste abismo sem fundo que Heidegger mergulha e, de lá, mostra-nos

que a construcáo do homem como ser no mundo demandou tempo e trabalho.

Nao um tempo espacializado, mensurável, mas urna duracáo internalizada, a

priori, no sentido de um tempo que demanda tempo para ser tempo, ou melhor,

no sentido de urna temporalidade, um engendrar-se no tempo e enquanto

tempo. Ouando dizemos duracáo nao nos reportamos a nocáo bergsoniana que

a reduz, grosso modo, a memória, mas a nocáo de intervalo existencial cujos

limites se encontram, de um lado, no nascimento e, de outro, na morte.

Por outro lado, a constitulcáo do ser do homem na temporalidade se dá

pela via do trabalho, um trabalho em mim, que pressupóe tornar este ser "terra

arável", capaz de forjar verbos, signos, culturas, cumprir sua dsstinacáo de ter

de ser algo. O movimento do ser do homem na temporalidade existencial é

gerúndio, isto é, é um "sendo",


70

A tentativa de Heidegger é desvelar o homem como ser metafísico, mas

nao substancial. Para Heidegger o ser nao é um substrato a partir do qual tudo

se ergue. nern um fluido ou "espírito" que habita o ente. mas parte intrínseca e

própria deste ente, o homem, a quem define pela sugestiva expressáo Das-sein

(dasein) = ser-aí = presen~.

Trata-se de urna análise da estrutura deste ente, o homem, que se

diferencia dos demaís pelo caráter óntico/ontológico que lhe é pertinente. A

peculiaridade óntico/ontológica do Dasein evidencia-se na sua conformacáo

própria de ter de ser algo já senda, enquanto os demais entes (mesa, pano,

carinho, mundo, etc.) "sao" na medida em que lhes atribuímos significado. Nao

é possível a urna mesa dizer-se a si mesma: "eu sou urna mesa". Nós, em nós

mesmos, homens, "somos": "eu sou fulano e classifico-me assim ou assado",

pois ternos o poder de vir a ser, ou seja, essencializamos (o ser) o que é por

natureza infinitivo e inapreensível (ser) no exercício mesmo da existencia

(sendo) e este "ser" inapreensível é percebido na concretude da cotidianidade

como presenca que, muito embora concreta, é também inapreensível. Nessa

estrutura, por conseguinte. evidenciam-se duas coisas: a esséncia do ente e a

propriedade do ser.

Nao podemos entender aquí esséncia como algo pré-dado ou

substantivo, solo a partir do qual se ergue alguma corsa. Esséncia aquí tem o

caráter dinámico de um devir, portanto, nem um a priori e nem um a posteriori,


71

mas um tornar-se a partir de urna determinacáo, intrínseca ao homem, de ter de

ser algo já sendo este algo.

Retomando, Dasein significa ser-aí posto no mundo, isto é, nao há urna

esséncia do ente propriamente dita, mas um processo de essenciaüzacáo do .

ser do ente no decorrer da existencia mesma tendo em vista a natureza própria

deste ente que tem como determinacáo ter de ser alguma coisa, já senda esta

coisa.

A esséncia de cada um, no seu sentido próprio, tem (possui) o poder de

vir-a-ser e o que é essencial neste "ser-aí", nesta presenc;a, é a sua destinacáo

de ter de ser já sendo, ou seja, o vir-a-ser nao é algo pré-elaborado, cuja plano

pronto entifica-se na existencia, mas destinacáo de ter de ser presenca no moto

continuo de um devir que é pleno de possibilidades nos limites da existencia.

A existencia, para Heidegger, é o processo essencial do Dasein de vir-a,

ser algo na sua historicidade temporal, o que se constitui na sua determinacáo,

Portante, só o Dasein existe e é na existencia, e só nela, que se pode entender

a esséncia deste ente, o homem.

O "ser deste ente é sempre meu"71, ou seja, o modo de ser de cada um

lhe é próprio, por isso cada um de nós tem a sua maneira de dar-se na

existencia. Quando dizemos "eu sou assim mesmo", evidenciamos o caráter

71 Ibídem, p. 78.
72

próprio que nos é peculiar, pois "assirn" nos tornamos no decorrer de nossa

própría existencia, por isso nos referimos a nós mesmos na forma pronominal.

Vale ressaltar que "o modo de ser" a que Heidegger se refere náo é o

modo circunstancial de um modismo, mas a um "eu" que é próprio do dasein.

Ao mesmo tempo em que o modo de ser de cada um de nós nos individualiza, o

modo de ser do homem o singulariza em relacáo aos demais entes que se

encontram no mundo, isto é, o fato de lhe ser próprio um dar-se na existencia

como possibilidade, como poder de escolha, o remete a urna existencia própria

onde se pode escolher, onde se pode decidir e determinar o que ele mesmo

será, pois a possibilidade lhe é propria.

Assim sendo, delineamos duas maneiras de ser, dois modos de nos

darmos na existencia: o que nos é "próprio" onde, cónscios de que somos

plenos de possibilidades, nos esco!hemos, decidimos e determinamos nosso

modo de ser e, de outro lado, o que nos é "irnpróprío" onde, imersos na


.......
banalidade do cotidiano, somos como um pedaco de pau boiando entre as

ondas das circunstancias e dos modismos que escolhem por nós ( em nosso

lugar) aquilo que somos ou seremos, como ovelha que se conduz ao pasto ou

ao estábulo.

Outrossim, a propriedade e a impropriedade dos modos de ser revelarn a

própria dialética da existencia, onde a propriedade do escolher-se

necessariamente convive corn a concretude cotidiana da impropriedade, isto é,


•• 73

o escolher-se, enquanto ser, e o concretizar-se, enquanto presenca no

cotidiano da vida, evidenciam a estrutura mesma do Dasein, náo podendo urna

prescindir da outra, o que seria táo nefasto quanto urna negar a outra, como no

exemplo do parágrafo anterior .


.,
¡
.J

A análise do ser depende de um ponto de partida ou de urna

possibilidade onde ele se revela como presenca no ente. O ser se determina


)
como presenca a partir de urna possibilidade de ser, de se dar na existencia.
)
lI Toda discussáo acerca do ser que se trava desde a ldade Média, nunca leva

em consioeracáo o caráter óntico deste ser, ou seja, a sua presenca no ente,


)
) na cotidianidade do mundo. Para Heidegger, nao é a partir da diferenca, ou

) melhor, a partir do estabelecimento de diferencas entre urna presenca e outra

que compreenderemos o modo próprio do ser, mas, ao contrário, é pela

inditerenca do ser ante o cotidiano. A concretude do cotidiano serve apenas

como mediador entre e ser e o ente como determinante da presenca, mas sem

com isto reduzir-se a um simples "aspecto",

Desta forma, nao é a partir de circunstancias que analisamos o ser, mas

a partir de categorias, isto é, a partir de questóes corno "quern sou?" e "o que

sou?", a partir de questóes que permitam ver o ente em seu ser. O que se

pretende, em última instáncia, é "possibilitar a discussáo filosófica da questáo 'o

que é o homem?"'72; para tanto faz-se mister percorrer os meandros do plano

óntico com a mesma importancia com que se analisa sua estrutura ontológica.

72 lbidem. p.81.
74

O homem constitui-se como o "ser do ente", onde ser e ente conjugam-se

"dialéticamente"73 numa existencialidade temporal, onde a existencia do "é"

pressupóe a essencializacáo do "senda" e vice-versa. Este conjunto

excepcional é que é o próprío homem, senáo o homem em sua essenclauzacáo.

Todas as vezes que investigamos a questáo fundamental "o que é o

homem?'' nos sentimos sempre tentados a fazé-lo negativamente, como que

imobilizando o "ser homem" num dado instante, medindo-o em reqióes a fim de

planificá-lo, mapeá-lo nos mínimos detalhes. Assim o fazem a Antropología, a

Biologia e a Psicología que precisam responder as expectativas positivistas do

cientificismo vigente.

A Antropologia, a Biologia e a Psicología véem o homem ora como

animal racional, ora como criatura, o que equivale dizer que, no primeiro caso, o

véem como um "ser vívo dotado de razáo", isto é, coisa dada, distinta das

demais pela razáo que lhe eleva o status em relacáo aos demais e, no segundo

caso, como algo que se ergue a partir de um substrato divino. Ambas se detérn

em questóes que nao atingem ou desconhecem o que é fundamental, a saber:

que a "existencia precede a esséncia" e que esta se constrói no decorrer da

vida, ou seja, que o homem nao é algo já dado, mas algo que se dá na

73 Num sentido muito mais hegeliano, grosso modo, de ccnciliacáo de polaridades, do que o
sentido de superacáo proposto por Marx. Gastaríamos de ressaltar que o termo "dialética" náo
é um termo propríamente heideggeriano, mas a idéia de urna tese {o ente pesto no mundo
como qualquer outro} e urna antítese (no sentido do ente que possui sua própria natureza ou
vontade própria) que se concifiam numa síntese (o Dasein), nos parece bastante atratíva como
recurso para urna elucidacáo pedagógica do que venha a ser a idéia de "ser-aí" em Heidegger.
74 lbidem. p.85.
·"'l 75

existencia construindo-se homem no decorrer do próprio processo de ser

homem, sendo homem, cumprindo sua destinacáo de sempre e constantemente

ter de ser algo já sendo.

Mesmo, quando buscamos suporte na história da própria Filosofía,

embora encontremos saídas bastante originais, nenhuma delas atinge ou traduz

plenamente este gerúndío, este "sendo". que é o homem em sua natureza. O

ser homem, para Heidegger, é um eterno tornar-se nos limites da existencia. O

homem que esquece seu ser, aquilo que lhe é próprio, seu caráter de escolha,

imerge na banalidade do cotidiano, coisificando-se; por outro lado, aquele que

tentativamente retira-se da cotidíanidade, julgando assirn encontrar-se, na

verdade perde-se mergulhando num mundo de ilusáo e furnaca Para

Heidegger, o ser do homem, o único ente que possui o ser, que pode tornar-se

por vontade propria (por escolha), constituí-se num jogo de mostrar-se e

ocultar-se, pois ao mesmo tempo que é, por seu caráter dinamice e

inapreensível, imediatamente já nao o é mais, náo podendo, em hipótese

alguma, ser apreendido, só podendo ser percebido como presenca.

Ora, tudo isso se contrapóe aos limites a que chegam as análíses da

Antropología, da Psicología e da Bíologia que ora privilegíam o caráter óntico,

ora o ontológico e, ora, ainda, o teológico. Trata-se aquí de demonstrar, por

Heidegger, que, "apesar de todos os resultados objetivos aícancados",

aquelas ciencias nao alcancarn o estágio propriamente filosófico da questáo

75 lbidem. p.81.
76

fundamental "o que é o homem?", tendo em vista o caráter negativo do qua! se

imbuem, numa espécie de desconstrucáo necessária do homem em busca de

algo externo que o justifique, o que. para Heidegger, absolutamente inexiste,

pois o homem torna-se homem sendo homem, como um exercício errante e

incansável de "ser" algo, de tornar-se sernpre.

A investiqacáo acerca da questáo fundamental "o que é o homem?" pode

nos remeter a um estudo etnológico da presenca, no sentido da busca de seus

fundamentos na instancia da primitividade dos povos. Também aí, para

Heidegger, constituí-se um equívoco. Primeiro por nao se poder confundir

primitividade com cotidianidade; é no cotidiano da vida que o homem faz-se

homem. que explicita o seu ser. independe se isto se dá na esfera do primitivo

ou do contemporáneo. Buscar a resposta a questáo fundamental através de

urna análise etnológica dos povos primitivos é incorrer no mesmo equívoco das

disciplinas tratadas no tópico anterior que. a guisa de cientificidade positivista,

recusam a natureza metafísica do ser do homem. onde metafísica nada tem a

ver com substancia ou exterioridade, mas com transcendencia.

Como dissemos repetidas vezes até agora, o "ser do ente" "presenta-se"

como "presenca" no movimento dinamice de um "sendo eu proprio", isto é, de

um existindo. Nao obstante, a presenca o é no mundo, náo no sentido de um

estar dentro do mundo. como quem relaciona dois entes espacializados onde

um contém o outro dentro de suas próprias fronteiras, mas no sentido de

interacáo. A presenca interage no mundo. por isso existe. A presenca é


77

~<.

"intramundo", isto é, ser-no-mundo é o destino da presenca A presenca

encentra-se no mundo de fato, náo como um fato científico demonstrável, mas

como um fato "presentável"76; a presenca torna-se presente no mundo por sua

deterrninacáo de ter de ser-no-mundo, pois o mundo é o seu lugar próprio. O


~
-,

ser encentra-se no mundo na literal indissociabilidade intrínseca do "no".

O ser-no-mundo em sua factícidade fragmenta-se em diversos modos de

ser (ter o que fazer em alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de

alguma coisa, náo no sentido de prevencáo, mas no sentido de zelo). Esta

traqrnentacáo é que possibilita a algumas linhas de pensamento a nocáo de ser

corno algo apreensível; entretanto, esta apreensáo de um determinado modo de

ser da presenca encobre a totalidade do ser que se investe de um caráter

visível-invisível, pois, para Heidegger, contrariamente a Descartes, a totalidade

nao é da ordem da res extensa. mas da possibilidade de dar-se na existencia

desta ou daquela maneira.

3.4- A questao da verdade

Este caráter visível-invisível do ser do ente remete a própria questáo da

verdade. Se perguntássemos "o que é a verdade?", a tradicáo nos diria que

trata-se da adequacáo entre a coisa, tomada como objeto, e o pensamento do

sujeito que a analisa, o que pressupóe urna nocáo de verdade como já dada.

76 Presente, no sentido do ali estar, e presente, no sentido do ponto de intersecáo entre o


passado e o futuro.
78

Ora, para Heidegger o Dasein nao é algo já dado, mas urna desünacáo de ter

de ser-no-mundo e sendo o mundo o lugar próprio do Dasein, sua habitacáo e

destlnacáo. a verdade nao é da ordem da relacáo sujeito-objeto, mas da ordem

do visível-invisível (conhecido/desconhecido); portanto, para Heidegger,

verdade náo é adequacáo, mas desvelamento.

O ser-no-mundo se dá preliminarmente no aspecto óntico. Dasein e

mundo nao podem ser encobertos pela relacáo sujeito-objeto. Para o

Positivismo o sujeito se coloca como objeto de investiqacáo, o que, para

Heidegger, descaracteriza a própria nocáo de sujeito, a despeito do sociológico

"dístanciamento científico". Neste sentido, nao é o conhecer que fundará o ser,

masé o ser que produz um conhecimento proprio daquele ser que imerso no

filosofar, por filosofar, resulta em conhecimento. Para Heidegger nao há

conhecímento científico sem metafísica, sem este entendimento do caráter

visível-invisível (conhecido/desconhecido) proprio da presenca, sem este

entendimento acerca do caráter ontológico da verdade e do mundo que é

essencial, pois sustenta os objetos; portante, o que deve ser explicitado é o

mundo e nao os objetos. e a Ontología nada mais é do que o aclaramento do

ser-no-mundo.

A questáo da verdade e do ser no pensamento de Martin Heidegger

emerge como tema central de sua obra fundamental Ser e Tempo, publicada

em 1927. Nessa obra, partindo da Fenomenología introduzida por Husserl que

visa compreender o objeto, pela descrtcáo, tal como ele se apresenta a


79

consciencia, Heidegger busca elaborar urna fenomenología hermenéutica a

partir da análise da ontología da existencia humana e sua relacáo com o

mundo, investigando a questáo filosófica fundamental - o que é o ser?; qua! a

sua verdade? - o que pressupóe investigar a questáo: o que é a verdade?

Sua preoccpacáo. no momento de Ser e Tempo, é, de certo maneira,

descrever o processo existencial humano de modo a formular quest5es que

seriam respondidas em outro momento, o que, na visáo de seus comentadores,

nao aconteceu, tendo em vista o caráter inacabado do próprio Ser e Tempo.

Entretanto, na opmtáo do próprio Heidegger77, este momento foi

plenamente solucionado no decorrer de suas obras posteriores, tendo havido

apenas urna conversáo da temática que se limitava, num primeiro momento, a

existencia humana e que se ampliou, num segundo momento, para a ambiéncia

do próprio ser, onde o homem é a maís privilegiada de suas entiñcacóes.

Em Ser e Tempo, especialmente no conteúdo de seu parágrafo 44, a

verdade constituí-se como urna abertura que possibilíta o nexo entre o ambiente

ontológico do ser-no-mundo e sua reaíizacáo óntica como ser-aí. Nesse

contexto, Heidegger analisa a verdade como fenómeno, isto é, deixando e

fazendo a verdade mostrar-se por si mesma, tal como se mostra a partir de si

mesma78• Dessa forma, Heidegger comeca sua análise a partir do conteúdo do

77 Cf. HEIDEGGER. Sobre o Humanismo. P. 156. In: Os Pensadores.


78 cr. HEIDEGGER. Ser e Tempo, §7, p.65
80

Livro 1 da Metafísica onde Aristóteles estuda o modo pelo qual os hoje

chamados Pré-Socráticos buscavam a esséncia da verdade. Diz Aristóteles a

respeito de Parménides: "efe toi abrigado a perseguir aquí/o que se mostrou em


..
'
si mesmo'í". Tal atitude se funda num entendimento do mundo como fenómeno,

isto é, como aquilo que se mostra a partir de si mesmo. Entretanto, o próprio

Aristóteles, em sua análise, acaba por concluir que o lugar da verdade é o juízo,

pois, diz ele, "as reoresentecées. ou vivencias da alma, sao adequadas as


coisas. '130

Aí se instaura para Heidegger a grande ruptura com o conceito originário

de verdade como abertura, isto é, de verdade como o movimento dinamice da

descoberta. Para Heidegger, a visáo de Aristóteles sobre a verdade, que

perdurou até os nossos dias, atém-se ao plano óntico reduzindo-a a veracidade

e deixando esquecido seu fundamento ontológico como desvelamento do

sentido do ser. No entender de Heidegger, este equívoco conduz a um outro

equívoco que é pensar a relacáo sujeito-objeto, onde o homem-sujeito adequa

seu pensamento a coisa-objeto.

Nesse sentido, o pensamento de Heidegger constituí-se como novidade

pois possibilita pensar a Metafísica sobre novas bases, isto é, des-

substancializando-a, retirando-a da históría da física para reassumir seu lugar

. ·-'

79 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica, 1, 986 b, 31.


80 lbidem
81

originário: a investiga<;ao do ser nele mesmo, a partir de si mesmo, tal como se

mostra.

Heidegger nao só reafirma e aprofunda as bases de sua discordancia

com o conceito tradicional de verdade como adequacáo. como orienta sua

argumenta<;aopara o entendimento da esséncia da verdade como liberdade e a

constituicáo de seu exercício como erráncia, nos mostrando que assim como,

equivocadamente, buscamos a verdade na veracidade, do mesmo modo

equívoco buscamos a liberdade no arbítrio. Ora, liberdade, para Heidegger,

mais que urna escolha, ou urna ausencia de constrangimento, ou mesmo urna

disponibilidade para o necessário, é um abandonar-se ao ''desvelamento do

ente enquanto tal. '131


,_

-- Esta temática sempre nos remete a brilhante frase de Jean-Paul Sartre

que traduz todo o nexo entre verdade e liberdade; diz ele: "O homem está

condenado a ser lívre"82, poste que ninguém possui a líberdade e nem a

liberdade é algo que possa ser possuído, mas, tal como a verdade que em si

mesma é, vive-se na liberdade, liberdade é verdade e verdade é liberdade, pois

tratam-se ambas de um abandonar-se ao ser-corno-se-é, a um deixar-se ser-

como-se-é, a um, diz Heidegger, "deixar-ser ek-sistente que desvela o ente. '133

81 Cf. HEIDEGGER. Sobre a esséncia da Verdade. p. 35


82 Cf. SARTRE. L'Etre et le N'Eant - Essai d'Ontologie Phénoméno/ogique. Paris: Gallimard,
1943. P. 561
83 Cf. HEIDEGGER. Sobre a esséncia da Verdade. p. 35.
,
'~-

->
82

No que tange ao exercício da verdade como erráncia, a compreensáo

disto está intimamente ligada a compreensáo da relacáo verdade-conhecimento


onde o lugar da náo-verdade é o que costumamos, comum e equivocadamente,

caracterizar como erro. lsto se dá porque o homem, esquecido em sua

cotidianidade, cria seu próprio "mundo" para o qual ele mesmo é a única

medida. Com isso esquece-se de que a náo-veroade é aquilo que está velado,

quer por dissimulacáo do já desvelado, quer por ainda náo ter sido desvelado.

Trata-se, portante, do que conhecemos por mistério.

Desse modo, a náo-verdade ou o mistério antecede a própria verdade ou

conhecimento. Entretanto, estando o homem mergulhado na banalidade de sua

cotidianidade, esquece-se dessa movirnentacáo essencial e intrínseca que se

traduz como desvelamento-dissimula~o-velamento-desvelamento, para insistir

no resultado de sua medida que se traduz pela dicotomia erro-acertó, com a

qual edifica sua vida corrente a partir do solo da evidencia. É nesse sentido que

Heidegger classifica a ek-sisténcia in-sistente do homem como erráncia. O que

náo quer dizer que o homem caia no erro, mas que in-siste em ek-sistir no erro.

Diz Heidegger: "a erréncie é a enti-esséncie fundamental que se opoe a


esséncie da verdade. ,,84

Partindo da análise de Aristóteles, acerca de como o pensamento dos

ditas Pré-Socráticos teria se desenvolvido, no Livro 1 de sua Metafísica,

84 Ibídem, p. 43. Ver conceituacáo dos termos esséncia (Wesen) e anti-esséncia (Unwesen)
no último ítem deste capítulo.
--··.

83

Heidegger entrevé urna nocáo de verdade como "coise"; como "o que se mostra
--..
em sí mesmo", enfim, como fenómeno85.

Analisando o conceito de fenómeno desde suas raízes gregas86,

Heidegger depara-se com urna terminologia que pode significar, de um lado, "o

que se mostra, o que se reve/a',a7, quando identificado com o termo grego

phainomenon e também, de outro lado, "parecer, aparecer e aparencia",

quando assocíado ao termo grego ta onta que quer dizer os entes88, visto que

os entes podem mostrar-se, inclusive, tal como sáo.

Assim sendo, a definicáo heideggeriana de fenómeno recai sobre seu

aspecto positivo cujas raízes encontram solo no termo grego phainomenon que

derivando do verbo phaínestai significa mostrar-se; o que se mostra; o que vem

a luz tal como é em si mesmo89.

Desse modo, a verdade para Heidegger, no ámbito de Ser e Tempo, é

algo que possui um modo próprio de ser, encontrando-se assirn, diz ele, "num
90,
nexo origínário com o ser" por isso a temática náo é tratada aqui no seu

sentido epistemológico, mas na sua condicáo de nexo entre o óntico e o

ontológico, entendendo-se óntico como a arnbiéncia coisal do ente e ontológico

,_

85 Cf. HEIDEGGER. Ser e Tempo.§ 44, P- 281


86 lbidem, § 7, A
87 lbidem, p. 58.
88 lbidem
89 lbidem, § 7.
90 lbidem, § 44: 107-108.
84

como a arnbíéncla do ser em si mesmo, isto é, como totalidade de

possibilidades de se dar no mundo.

Heidegger busca os fundamentos ontológicos do conceito tradicional de

verdade que se estabelece como adequacáo. Nesse contexto, toda a

argumentayáo ergue-se no sentido da dernonstracáo do equívoco em que se

constitui a busca da esséncia da verdade, na relacáo epistemológica tradicional

entre sujeito e objeto. Para Heidegger toda concordancia é urna rela<;áo,

entretanto, nem toda relacáo consiste numa concordancia ou numa

conveníentia.

Assim senda. para Heidegger a verdade náo se dá na relacáo sujeito-

objeto, mas apenas no ámbito do sujeito, posta que conhecer é julgar, isto é, se

a questáo do conhecirnento implica verdade e conhecer é julgar, é o sujeito

quem julga. Julgar é o processo psíquico de adequar o ideal ao real, sendo que,

nesse caso, a morada da verdade é o "conieúdo ideal do juizo. ,EJ1 Urna relacáo

de concordancia, diz Heidegger, é "um nexo entre o conteúdo ideal do julzo e a

coisa real sobre a qua/ se julga."

Para Heidegger, quando construímos urna proposicáo acerca de um

determinado objeto, nao estamos adequando nosso juízo a ele. mas

"descobrindo", pela proposicáo, um modo de ser daquele objeto.

91 lbidem, p. 284.
85

O sentido originário do verbo propor encontra solo no apophanois grego,

que quer dizer "deixar ver"92; portanto, urna proposicáo verdadeira é aquela que

"descobre o ente em si mesmo"93, o que confere ao sujeito a condicáo de ser

descobridor.

Cabe aqui ressaltar que o caráter ambíguo da proposicáo poder ser

verdadeira ou falsa está díretamente relacionado a concepcáo de /ogos como


"d~ixar e fazer ver''94. Nesse sentido o /ogos pode revelar tanto o aletheneín, o

ser-verdadeíro, quanto o pseudestain, o ser-falso. Com isso Heidegger pode

afirmar que a verdade nao reside na proposícáo. O lugar da verdade é "o

conteúdo ideal do juízo" e nao o juízo em si mesmo.


,_

A arqurnentacáo de Heidegger, no contexto de Ser e Tempo, conduz a

questáo da verdade como um privilégio exclusivo do dasein ou ser-aí. O ser-aí

é a realízacáo óntica do ser enquanto infinitivo ontológico, pois é capaz de

destinar e destinar-se, de descobrir e descobrir-se; em síntese, é capaz de,

simultaneamente, ser totalidade de possibilidades e objetivar-se como ente no

mundo.

O ser-al é capaz de abrir-se para o ser de modo a retirar, pela abertura,

a relacáo de nexo entre o ambiente ontológico e a realizacáo óntica. É capaz

de, pelo julgar, descobrír o ente em seu próprio ser; por tudo isso dízemos, com

92 lbidem, p. 286.
93 lbidem.
94 lbidem, § 7: B.
86

Heidegger, que verdade é a abertura que permite a relacáo de nexo entre o

ambiente ontológico do ser-no-mundo e sua realizacáo óntica como ser-aí.

Se assim o é, é privilégio do ser-aí ek-sistir, como veremos mais tarde,

na e para a verdade, pois constituí-se na própria abertura em si mesma, já que

é a reaiizacáo óntica do ser-no-mundo ou o próprio ser-no-mundo entificado.

Assim sendo o ser-aí é a própria verdade ek-sistindo dentro dela.

Remontando ao sentido originário grego de verdade, recorremos

novamente a Aristóteles que explica o sentido de alethéia como descoberta,

onde o logos é descobridor por ser capaz de compreender; entretanto, quando

nao compreende, mantém velado o ser do ente sobre o qual se volta. Portante,

o desvelamento é urna característica do Jogos. assim como o velamento

também o é. lsto quer dizer que muito embora o lagos tenha a capacidade de

descobrir pela cornpreensáo, náo é, em si mesmo, a morada da verdade,

atributo exclusivo do ser-ar. ou seja, "o ser verdadeiro do /ogosn95 é, em si

mesmo, descobridor; entretanto, a abertura pela qual se processa a descoberta

requer do ser-aí a condicáo de cuidado ou cura, sobre o objeto no qua! se quer

desvelar ou até mesmo sobre si mesmo, quando quer desvelar-se em si e para

si mesmo. Sem o atributo da cura ou cuidado nao há descoberta.

Mas, o que quer dizer cura ou cuidado? Para Heidegger, o fato do ser-aí

ser-no-mundo, em si mesmo, constituí-se como urna decadencia, ou seja, náo

95 lbidem, p. 287.
87

-cv-,
? ¡

há como estar no mundo sem objetivar-se, o que obriga ao ser do ente

submeter-se, desde sempre, ao caráter ambíguo de desvelamento-

dissirnulacáo, muito próprio da vida cotidiana. A cotidianídade obriga o ser-aí a


objetividade e, portanto, a decadencia de seu próprio ser que por ser obrigado a
ser-com-os-outros-entes-no-mundo objetiva-se, demonstrativamente, para os

outros e para si mesmo, perdendo-se, assim, de sua totalidade de

possibilidades, já que tende a objetivar-se sempre desta ou daquela maneira,

tendo em vista o ambiente cotidiano, onde é-com.

Entretanto. o sendo-no-mundo, próprio do ser-aí, segundo Heidegger,

coloca-o predisposto a urna compreensáo do seu próprio ser, tanto que

pergunta pelo existir e aí angustia-se. Para Heidegger, o "fenómeno da

angústia''96 coloca-se como urna possibílidade prívilegíada de ser, pois, no lapso

de abandono do ser-aí em seu próprio ser, que é no que se constituí a angústia,


........
é possível encontrar a abertura e vislumbrar o ser do ente como totalidade

originária que logo se dissímula em temor. Entretanto, a experiencia da angústia

produz no homem os fenómenos da vontade; do desejo; da tendencia e da

propensáo'", que se erguem a partir do que Heidegger denomina cura ou

cuidado. O fenómeno da cura constituí-se como o desentranhar do ser do ente,

isto é, como a abertura que possibilita ao ente compreender-se no seu próprio

ser em sua totalidade originária, podendo assim desejar; ter vontade; tender;

propender a saltar para fora da cotidianidade, tomando em suas máos o poder

96 lbidem, § 39, p. 245.


97 lbidem
88

de destinar-se no-mundo, máximo privilégio do ser-al ante todos os demais

entes-no-mundo, porque é capaz de cura, de verdade.

Desse modo, opóe-se a cura a decadencia que consiste em perder-se na

banalidade do cotidiano; no entanto, a cotidianidade é também um modo de ser

da verdade, pasto que a totalidade náo cabe no objetivo. Já havíamos dita

anteriormente que o ambiente ontológico caracteriza-se como totalidade de

possibilidades e que verdade, por sua vez, constitui-se como abertura que

possibilita o nexo entre o óntico e o ontológico, ou seja, o ontológico objetiva-se

no óntico pela abertura que desvela um modo de ser do ente, dissimulando,

assim, todas as outras possibilidades de modos de ser.

Concluindo, dizemos que o sentido da verdade é a abertura pela qual o

ser-aí descobre o ser dos entes no e do mundo, o que o ser-aí evidencia como

cura, pasto que é capaz de verdade e como decadencia, posto que é capaz de

náo-verdade.

Para Heidegger, muito embora a existencia preceda a esséncia, o

fundamento ontológico precede a realidade óntica, posto que existir é

essencilizar-se, é abrir-se para que o ser do ente se desvele em toda a sua

verdad e.
89
-,

3.5. A esséncla da verdade

Náo se trata de urna tentativa de busca do que seja ou nao verdade

numa dada coisa ou situacáo, mas da busca da própria verdade em si mesma:

o que é isto a verdade?

A investiqacáo acerca da esséncia da verdade confunde-se com a

investiqacáo acerca da esséncia do ente e, portante, com a própria

investiqacáo filosófica que nunca se contenta como "evidente".

Náo é a evidencia, própria do senso comum, que buscamos, mas a

esséncia. o fundamento ontológico daquilo que se evidencia. Quando

perguntamos "o que é isto a Verdade?" evidenciamos no "isto" o aspecto coisal

desta coisa: a verdade. Descobrimos a verdade como ente e perguntamos

sobre o ser deste ente: a verdade. Qual é o sentido deste ente, a verdade, nele

mesmo? Nao podemos responder o que há de verdadeiro nisto ou naquilo sem

antes responder a questáo fundamental: o que é isto, o ser deste ente: a

verdade? Verdade, diz Heidegger.

"esta palavra tao sublime e, ao mesmo tempo, táo gasta e embotada


designa o ~e constituí o verdadeiro enquanto verdadeiro. O que é ser
verdadeiro?"

A definicáo tradicional da esséncia da verdade traduz-se na fórmula

"Veritas est adaequatío reí et íntellectus"99 que significa que a verdade é a

98 Cf. HEIDEGGER. Sobre a esséncia da verdade. p. 21.


99 lbid. p. 22.
90

contorrnacáo da coisa com o intelecto, mas que também pode ser pensada no

sentido inverso, isto é, o da conformacáo do intelecto com a coisa.

Em ambos os casos a esséncia da verdade é pensada como substancia:

de um lado, o pensamento se adequa a coisa que já se funda numa verdade,

passível de ser ou nao conhecida pelo intelecto. De outro lado, é a idéia que se

faz da coisa que subjaz como verdade.

Tudo isso encentra origem na própria concepcáo medieval da veritas que

se ergue a partir do argumento teológico da criacáo onde tanto o intelecto como

a coisa devem-se conformar com a "idéia prévia concebida pelo 'intellectus

divinus"'100

Entretanto, se nos remetermos a nocáo originária do termo verdade,

encontraremos solo na alethéia grega que significa o nao (a) velado (lethéia). Aí

se encontra propriamente o problema da verdade: o termo originário grego

alethéia foi traduzido para o latim como véritas; entretanto o significado latino de

ventes vai encontrar solo na homoiósis grega que significa concordancia.

Segundo Heidegger, esta deturpacáo do conceito originário da verdade

inicia-se com a interpretacáo platónica da Alegoría da Caverna e toma corpo

corn a Lógica aristotélica, fundamentando, assim, todo o pensamento Ocidental.

1 00 !bid. p. 23.
91

Náo aprofundaremos aqui a confrontacáo entre a visáo heideggeriana e

a platónica acerca da Alegoria da Caverna que é assunto próprio de um outro

texto: A teoría platónica da verdade, o que náo obsta nossa referencia ao tema

em linhas mais gerais.

Para Platáo todo ente é simulacro de urna idéia original, assim como todo

juízo que fazemos do ente é também o simulacro de urna idéia fundante,

inatingível e paradigmática.

Para Heidegger o ente náo é simulacro de coisa alguma, mas o é tal

como se apresenta nele mesmo, assim como o juízo que fazemos do ente, além

de também o ser nele mesmo, é o sentido pelo qual nos "abrimos" para aquela

coisa.

101
Com a introducáo. por Platáo, dessa nova visáo de mundo como

simulacro de um mundo ideal, "verdadeiro", separado do mundo vivido, cujo

"viver" nem sequer é real, pois real é aquele mundo ideal: tudo aquilo que até

entáo constituía-se como Physis, isto é, tudo aquilo que até entáo.

dinamicamente, gerava para sí o seu próprio fundo: o ser do ente; reduz-se a


condicáo de substancia; de solo firme donde tudo se ergue; como algo, embora

correlato, isolado e independente dos entes como eles se dáo no mundo. Aliás,

para Platáo, as coisas náo se dáo no mundo, mas, postas no mundo, sao urna

airnulacáo imperfeita da idéia que as substancia e, portante, irreais.

101 Nova em relacáo aos ditas pré-socráticos.


92

Com isso, o homem nao só passa a buscar urna "verdade" inatingível,

mas, sobretudo, a partir de entáo tudo que se refere a este tema é confronto e

confusáo, pesto que, verdadeiramente, quando nos abrimos para o ente que se

nos depara nao o vemos na sua inteireza e plenitude, assim como nao nos

mostramos, em nosso ser, por inteiro, pois a verdade é o sentido do ser-no-

mundo, é o próprio movimento do existir, é plenitude nos limites da existencia,

significando que o pleno náo pode revelar-se inteiramente no objetivo.

O movimento do ser do ente pela abertura do comportamento, a que

voltaremos mais adiante, configura-se como a própria esséncia da verdade, ou

seja, verdade é o sentido do ser.

Assim sendo, a verdade nao pode ser confundida com isto ou aquilo;

com algo que se oculta e se "esquece" por trás ou no fundo das evidencias,

posto que a verdade g. Só se existe na Verdade, pois se existiré ser-no-mundo

e verdade é o sentido do ser, existe-se apenas na verdade que, nela mesma, g.

A verdade, como adequacáo, encentra solo firme na concepcáo

aristotélica da verdade como concordancia (homoiósis). Para Aristóteles o lugar

da verdade é a proposícáo, ou melhor, "a verdade consiste na concordancia

(homoiósis) de urna enunciacáo (/ogos) como o seu objeto (pragma)."1 º 2

102 lbid. p.25.


-. 93

No entanto, poderíamos analisar essa concordancia de um outro ponto

de vista: o heideggeriano. Para tanto, e antes de tudo, devemos

dessubstancializar a verdade, retirando-a do solo da proposicáo, para entáo

prosseguirmos rumo a própria esséncia da concordáncia, pois já vimos que náo

é possível a verdade conformar-se como substancia.

Enunciar é apresentar algo, é deixar que algo surja aos nossos olhos.

Apresentar é um modo de relacáo entre o "sujeito" que apresenta e o "objeto"

apresentado, de forma que o "sujeito" que enuncia apresenta, pela enunciacáo,

um dado comportamento daquele "objeto" que se caracteriza como abertura por

onde se movimenta o ser do ente que, equivocadamente, costuma ser

qualificado como "objeto" da atencáo de um determinado "sujeito".

Quando nos deparamos com um dado ente, nao é o juízo mais adequado

que fazemos dele ou vice-versa que se constitui como verdade, pois nem o

"sujeito" nem o "objeto" possuem a verdade, mas, ao contrário, relacionam-se

porque vivem a e na verdade. A verdade, como dissemos anteriormente, é.

Constituí-se como verdade o próprio processo da existencia que é ser-no-

mundo como ser-com.

Nietzsche, quando classificou a verdade (tradicional) como um erro, deu

o passo decisivo para o despertar do ser do homem que jazía esquecido.

Grosso modo, o que Nietzsche nos diz é que, até que provem o contrário, náo

existe nenhuma vida "real" depois desta "vida de aparéncias", para a qual
94

devemos nos preparar pelo sofrimento. Esta vida que vivemos é que é

absolutamente real e, em princípio, a única que ternos.

Para Heidegger, entretanto, embora Nietzsche introduza o problema, ele

nao descreve o fenómeno tal como ele se dá. E é neste sentido, no sentido da

descrícáo deste fenómeno: a verdade, que se desenvolve o pensamento de

Heidegger.

Como dissemos, os entes se relacionam no mundo porque vivem na

verdade e o homem, este ente que fala, enuncia apresentativamente os entes

intramundanos em sua mundanidade, pasto que fala, o que dá ao enunciado a

aparencia de morada da verdade. Entretanto, como vimos, nem enunciado nem

apresentado possuem a verdade, mas relacionam-se na verdade pela abertura

do comportamento. Ora, assim como o comportamento é um modo de ser do

ente, a verdade é um modo de ser-no-mundo. Dizemos um modo porque a náo-

verdade é outro modo de ser-no-mundo, mas disso trataremos mais adiante.

Heidegger nos diz o seguinte: ·Entendemos aqui por 'esséncia' o fundamento

da possibilidade intrínseca daquilo que imediata e geralmente é admitido como

conhecido."1 º3

A partir disto retornamos a pergunta: qual é a esséncia da verdade? No

que se funda a verdade?

103 lbid. p. 30.


-
-.., 95

Já dissemos que nada, nem ninguém possui a verdade e que esta em si

mesrna é. Quando dizemos que alguma coisa ªqueremos dizer que ela é causa

de si mesma, por conseguinte é livre. Assim sendo, podemos concluir que a

"esséncia da verdade é a liberdade."1º4

Tal afirrnacáo nos remeterá a urna série de questóes relativas a maneira


equivocada, tal como no caso da verdade, coma qua! o homem vem encarando

a liberdade até entáo.

A trajetória do conceito tradicional de liberdade, exato porque encarado

até entáo também pela perspectiva da substancia, esbarrou sempre, de um

lado, com o necessário, de outro, com o contingente. Acreditamos que assim

como, equivocadamente, se buscou sempre a verdade na veracidade, também,

equivocadamente, sempre se buscou a liberdade no arbitrio.

Quando o homem problematiza as relacóes da liberdade com o que é

necessário ou com o que é contingente, o faz porque busca dentro de si esta

coisa: a liberdade, a fim de compreender-lhe o mecanismo: espontaneidade ou

indiferenya, para poder dorniná-la, "verdadeirarnente", possuí-la.

104 lbid. p. 30.


'--·

96
.-"

Ora, líberdade, mais que urna escolha, ou urna ausencia de

constrangímento, ou mesmo urna disponibílidade para o necessário, é um

abandonar-se ao "desvelamento do ente como tar105


.....

Retomemos novamente a nocáo de comportamento como abertura. Diz

Heidegger: "Toda relacáo de abertura, pela qual se instaura a abertura para

algo, é um comportamento."106

Diz-se que a verdade se movimenta pela abertura do comportamento e

este "está aberto sobre o ente."1 º 7 Diz-se, ainda, que é pela abertura do

comportamento que pode deixar-ser o ente como tal. Deixar-ser pela abertura

do comportamento é um estado de humor: urna disposicáo: um ser-com; um

relacionar-se com outrem pela via da abertura. Humor nao pode ser aquí

entendido como estado de espirito. mas sim como ex-posicáo ek-sistente, isto

é, tancar-se pela abertura; expor-se; dispor-se a.

Entretanto, também pela abertura do comportamento, é possível ao

homem relacionar-se (conhecer) com os outros entes intramundanos que nao

ele próprio, pois estes se encontram disponíveis para que o homem,

encarnando o ser-aí, os desvele em sua totalidade, retirando-os de sua

condícáo óntica para essencializá-los ontológicamente pela verdade do ser,

cujo movimento essencializador evidencia-se como enunciacáo (lagos).

105 lbid. p. 33.


106 lbid. p. 28.
107 lbid_ p. 28.
97

Nesta medida, tendo em vista as preocupacóes cotidianas do homem em

tudo mensurar espacio-temporalmente, este mesmo movimento que desvela o

ente em sua totalidade também o dissimula: torna-o velado novamente como

náo-verdade.

A plenitude do ser do ente em sua totalidade náo cabe na medida

espac;:o-tempo, posto que é plenitude existencial do homem, no sentido do

incompatível. Cabe ressaltar que o tempo a que nos referimos é o tempo

espacializado da cronología e nao o tempo como dynamis que se caracteriza

como esséncia do ser.

Assim sendo, verdade e náo-verdade pertencem-se essencialmente:

movimentam-se pela mesma abertura do comportamento, pois o "deixar-ser é,

em si mesmo, simultáneamente, urna dissimula~o."1º8

3.6. A erráncia como anti-esséncia que funda a esséncia da verdade

Cabe aqui citar urna importante conceítuacáo dos termos Wesen e

Unwesen, elaborada por Stein numa nota de rodapé a sua traducáo de Sobre a

Essencia do Fundamento. Diz ele:

Ainda que Wesen designe, de per si, esséncia e Unwesen (náo-


esséncia) desordem, Heidegger carrega os deis termos com um sentido
fenomenológico. De acorde com sua compreensáo do método fenomenológico
passam a ter torca verbal. Wesen significará entáo: acontecer. imperar,

108 lbid. p. 38.


98

revelar-se, a marntestacác fenomenológica; Unwesen (treiben) frustrar e


perturbar o acontecer, o imperar, dissimulacáo do que de si se revela,
ocuttacáo "fenomenológica". Wesen e Unwesen exprimem. assirn, de maneira
decidida, um trace básico do pensamento heideggeriano. Apontam sobretudo
também para a superacáo da tradicáo essencialista. A nova carga semántica
os transforma numa chave (ou clave) que desloca toda a linguagem do filósofo
para dentro de um novo horizonte conotador. Todo o conteúdo ontológico
tradicional se torna fenomenológico. Ontologia se torna fenomenología. Na
nova postura se revela, já desde o ínício, seminalmente, a destruicáo,
transforrnacáo, repeticáo em outro nivel, de toda a metafísica ocidenta1.109

Com a reorientacáo semántica dos termos Wesen e Unwesen, Heidegger

coloca em suspenso nao só a nocáo corrente de verdade, como a própria

questáo do conhecimento. A tensáo verdade/náo-vercade é o próprio problema

do conhecimento enquanto tal. Para Heidegger, o conhecimento constituí-se

como zélo: cuidado; cura. É pelo cuidado que se desenvolve a "capacidade

técnica"!" de se conhecer. Por isso diz-se que a técnica é um modo da


verdade.

Nessa relacác verdade-conhecimento o lugar da náo-verdace costuma

caracterizar-se, comum e equivocadamente, como erro. lsto se dá porque o

homem, esquecído em sua cotidianidade, cria seu próprio "mundo" para o qual

ele mesmo é a única medida. Já dizia o grande sofista Protágoras, nos idos do

século V a.C.: "O homem é a medida de todas as coisas; das coisas que sáo

enquanto sao, das que nao sáo enquanto nao sáo."!"

109 Op. Cit., Sao Paulo: Duas Cidades, 1971. p.33.


11 o lbid. p. 38.
111 PLATÁO. Teeteto, 152a, 152c
,.
,..-
~- 99
.,

Com isso esquece-se de que a náo-verdade é aquilo que está velado,

quer por díssímuracáo do já desvelado; quer por ainda náo ter sido desvelado.

Trata-se, portante, do que conhecemos por mistério.

Desse modo, a náo-verdade, o mistério, antecede a propria verdade: o

conhecimento. Entretanto, estando o homem mergulhado na banalidade de sua

cotidianidade, esquece-se dessa rnovímentacáo essencial e intrínseca que se

traduz como desvelamento-dissimula<;áo-velamento-desvelamento, para insistir

no resultado de sua medida que se traduz pela dicotomia erro x acerto, com a

qual edifica sua vida corrente, a partir do solo da evidencia.

É nesse sentido que Heidegger classifica a ek-sisténcia in-sistente do

homem como erráncia. O homem, enquanto se preocupa em medir, esquece-se

do mistério. Afasta-se do que há por ser desvelado por náo perceber a própria

dissirnulacáo que consiste no esquecimento da totalidade em prol do evidente.

no que se refere ao desvelamento do ente. O que nao quer dizer que o homem

caia no erro, mas que in-siste em ek-sistir no erro: "A erráncia é a anti-esséncia

fundamental que se opóe a essencia da verdade"112

Ora, se o homem insiste na existencia errante, posto que é próprio do

ser-aí ater-se a evidencia e, assim, velar o dissimulado intrínseco ao

desvelamento do ente como tal e, se todo conhecimento do homem se pauta na

erráncia, o que entáo se traduz como mistério é a própria questáo fundamental

112 Cf. HEIDEGGER. Sobre a essencia da verdade. p. 43.


100

da metafísica heideggeriana: Por que há simplesmente o ente e nao antes o

nada?

Toda a problemática levantada por Heidegger acerca do que venha a ser

Filosofía aí retorna com torca total. A trajetória da filosofía (Sócrates e Platáo:

conhece-te a ti mesmo), segundo Heidegger, inicia-se simultaneamente com a

trajetória da erráncia proposta pela sofística (o homem é a medida de todas as

coisas) e de lá até Kant tudo se fundamenta na idéia de substancia proposta

por Platáo e redimensionada por Aristóteles. Existindo nessa perspectiva o

homem abandona-se a evidencia esquecendo-se do ser.

Kant, com sua perspectiva subjetiva, imp6e freios a este equívoco e

chama a atencáo do homem para a responsabilidade que tem sobre sua própria

vida e razáo. Mais ainda, incita a própria Filosofía a tomar as rédeas de suas

próprías leis.

Por isto Heidegger nos alerta para as questóes essenciais no sentido da

necessidade de urna reconstrucáo da metafísica sob novas bases, pois para ele

filosofia e metafísica coincidem. As novas bases a que se refere sáo aquelas

que encontram seu fundamento náo apenas na esséncia da verdade, mas,

sobretudo, na verdade da esséncia. Diz Heidegger que "a esséncia da verdade

é a verdade da essencia"113; se esséncia passa a denotar acontecer, imperar,

113 ldem, p. 48
101

revelar-se, a manífestacáo fenomenológica, verdade neste sentido assume o

cunho de processo, acáo infinitiva. de verbo.

Para Heidegger a investiqacáo filosófica fundamental é a que,

inconformada com a evidencia, pergunta pela verdade da esséncia; pergunta

pelo mistério ontológico que essencializa a realidade óntica e, por fim, é a que

pergunta pela verdade como liberdade. Liberdade de acontecer, de imperar, de

imperar, de manifestar-se.

A erráncia circunscreve-se como a anti-esséncia (Unwesen), isto é, a

perturbacáo, a frustracáo, a dissirnulacáo. Para que isto sirva de fundo para a

esséncia da verdade é preciso que verdade seja reconhecida a partir do

reconhecimento do erro: "A errancia é a anti-esséncia fundamental que se opóe

a esséncia da verdade", diz Heidegger. Já vimos em passagens anteriores que

o ente dissimula o ser que nele se oculta; é a cornpreensáo deste movimento

errante, pela torca da vontade, que possibilita desvelar o ser do ente e rnanter-

se, assim, na verdade.


. ~·.

'.;¡:•

. ....
!f'

Vejo-me estroulio a mini, a miului roz,

Ao meu siléncio, ao meu andar e gesto.

Que espera o fogo pra me esclarecer?

Que espera o fogo pra me refundir?

i'Uurilo Mendes
102

4. DAS TENTATIVAS DE APROXIMA~AO ANTECEDENTES

Chegaram ao nosso conhecimento, até o presente momento, duas

tentativas de aproxirnacáo, entre os pensamentos de Heidegger e Bachelard

que gastaríamos de comentar.

4.1. Constanca Marcondes Cesar e o encontro na unidade do saber

A primeira tentativa de aproximacáo, publicada pelas Edicóes Paulinas

em 1989, é de autoría da Prof" Dr" Constanca Marcondes Cesar (PUC-

Campínas-SP) e integra um pequeno volume intitulado Bachelard: ciencia e

poesia. Neste opúsculo, o objetivo da autora é demonstrar que a producáo

poética de Bachelard complementa a producáo epistemológica, ao modo de um

contraponto, um diálogo entre a razáo e a imaqinacáo que busca a unidade do

saber. Diz a autora:

E um pensador nos diz que, acima do racionalismo estreito em que


vivemos, é possível encontrar um horizonte mais aberto, em que a ciencia e a
poesía náo se oponham, mas tenham eixos complementares. 114

O livro é composto por oito capítulos, além de um prefácio, urna

cronología de obras e o que a autora intitula "Bibliografía sumária em

portugués", que consiste nas obras de Bachelard traduzidas para o portugués

sornadas aos melhores comentários sobre Bachelard. Trata-se visivelmente de

urna obra enderecada aos que pretendem se iniciar nos estudos sobre

114 CESAR, C.M. Bachelard: ciencia e poesía. Sáo Paulo: Paulinas. 1989. p.6.
103

Bachelard, sem com isto perder a profundidade necessáría, nem abrir máo do

pensamento próprio.

Urna outra característíca muito interessante do livro é o sem número de

possibilidades de pesquisa em Bachelard que oferece. A autora constrói um


jogo interessante onde ao mesmo tempo em que informa sobre o filósofo,

propóe ao leitor caminhos de aprofundamento e pesquisa. A presente

díssertacáo, por exemplo, em muito deve as observacóes ali contídas. Maís

precisamente ªº parágrafo que jaz a página 75, onde se lé:


Bachelard e Heidegger convergem em pontos essenciais: ambos
indicam um camínho para a uniñcacáo do saber, que náo é apenas científico.
mas também metafísico e poético. Ambos afirmam a prioridade da poiesis ern
relacáo a ciencia, bem como a aproxirnacáo dinámica como condicáo do
crescimento do saber. Ambos nos falam de urna antropologia poética, que
supere os estreitos limites da razáo discursiva e abra o homem a um
surracíonalismo, a urna surrealidade na qua! o meta-humano se faz presente
através da beleza.

As afirmacóes acima inscrevem-se no último parágrafo do sexto capítulo

de seu íivro encimado pelo seguinte titulo: "Os eixos da poesía e da ciencia".

Nele a autora parte das "sugestóes feítas por Ginestier" na obra Pour connaltre

la pensée de Bachelard (París: Bordas, s/d) para propor tres pressupostos. a

saber:

a) nem todas as ciencias se encontram no mesmo nível de evolucáo


epistemológica;
b) há urna dualidade no sujeito cognoscente: o homem diurno, que utiliza a
razáo com instrumento da ciencia. ( ... )E o homem noturno, que pela fantasia e
imagínaq¿o se instaura no mundo e o apreende através da poesía;
e) a relacáo entre o sujeito e o objeto é oinámica Desse dinamismo decorre
urna íntersecáo entre as ciencias e a filosofia, as ciencias e a poesía 115

115 oe.cu p. 69-70.


104

Dessas premissas a análise dirige-se também a tres conclusóes: a) a

complementaridade entre ciencia e arte possibilitando urna "visáo unitária do

saber"; b) "o caráter dinamice do conhecimento"; e) "a unidade do saber está

fundada na atitude criadora do homem perante o real"116.

Feítas estas conclusóes, a autora ressalta que urna tentativa de "apontar

a unidade do saber" também encentra lugar no pensamento de Martín

Heidegger. Os textos de Heidegger entáo analisados pela autora sao Ciencia e

Medita9áo e lntrodu9áo a Metafísica. Aos olhos da autora, a análise da

"situacáo das ciencias" em Heidegger "apresenta dificuldades semelhantes as

que encontramos no estudo de Bachetard'!". quais sejam: a divisáo do saber

em óntico (Filosofia, Ciencias e Técnica ou a instancia do ente) e ontológico

(Metafilosofia e arte ou a instancia do ser), em Heidegger, corresponde a

divisáo da possibilidade do pensamento humano em ciencia (instancia da razáo

construtora) e poética (instancia da irnaqinacáo criadora), em Bachelard. Essas

instancias, tanto em Heidegger quanto em Bachelard, sao complementares:

urna náo existe sem a outra, o que possibilita concluir que há urna preocupacáo

em ambos com a mvestiqacáo de. um caminho que leve a urna uniñcacáo do

saber.

116 Jdem, p. 72-73.


117 Ibídem.
105

4.2. Pascal Nouvel e o encontro na "Vontade de Poder" de

Nietzsche

Urna segunda tentativa de aproxímacáo coube a Pascal Nouvel em um

artigo denso e difícil, publicado em 1997: "Bachelard et Heidegger lecteurs de

Nietzsche+"'. Um primeiro momento do texto enfatiza o retorno de Bachelard as

instancias da epistemología em 1951, com a pubücacáo de L 'activité rationaliste

de la physique contemporaine, o que, segundo Nouvel, se traduz como urna

verdadeira "ilhota" em meio ao oceano poético em que a obra de Bachelard

encontrava-se ímersa, desde a aparicáo de La psycanalyse du feu (1938). O

que chama, porérn, a atencáo de Nouvel nesse retorno de Bachelard a


epístemologia, é a epígrafe que encima o texto do capítulo introdutório a

L'activité ... , intitulado "As tarefas da filosofia das ciencias". Ei-la: "Ah!

compreender o mundo esta vez ou jamais. "119, verso de Henri Michaux.

Para Nouvel, o significado da associacáo do título do capítulo com a

epígrafe que o introduz é no mínimo incómodo: "Compreender o mundo urna

vez por todas para náo mais talar dele, seria ísto que o capítulo se propóe de

marcar como tarefa da filosofía das ciéncias?"120

118 In: Actualité et postérites de Gastan Bachelard. Direction de Pascal Nouvel. Publíé avec le
concours du Conseil régional de Bourgogne et de l'Associatíon des amis de Gasten Bachelard.
París: PUF, 1997. PP- 89-100.
119 Op. Cit. p. 89.
120 ldem, p. 90.
.""i

106

Este questionamento é associado por Nouvel ao sentido do aforismo 324


· ·- .....
proferido por Nietzsche em A Gaia Ciencia:

A vida [ ... ] mais misteriosa - a partir do día em que a grande liberdade


(/ibératrice) veio sobre rnim, o pensamento que nos tinha permitido ver na vida
urna experimentacáo do conhecimento.

Este aforismo é citado na epígrafe do livro de Heidegger dedicado a

Nietzsche e sáo as questóes advindas dessa associacáo que possibilitam ao

autor pensar que Heidegger e Bachelard tenham sentido um gosto semelhante,

ao beber na fonte nietzschiana. Esta é a investiqacáo que anima o artigo: Como

Heidegger e Bachelard articulam seus pensamentos comas citacóes que fazem

de Nietzsche. Essa intencáo, aparentemente inocente, ao final do artigo

reverte-se numa tentativa de aproximar os posicionamentos de Heidegger e

Bachelard ante a racionalidade. tendo Nietzsche como substrato. Fora isto,

para Nouvel, além da origem campesina dos dois filósofos, qualquer tentativa

de aproxirnacáo deverá ser, no mínimo, muito bem justificada, tamanha a

distancia entre os dois autores.

O artigo de Nouvel se desenvolve pincando aqui e ali as referencias que

Bachelard e Heidegger fazem a Nietzsche, de modo a tentar encontrar urna

conexáo entre os conceitos de razáo, ciencia, técnica, especiaüzacáo e filosofia.

Na verdade por tratar-se de um artigo, a intencáo do autor ficou reduzida

a análise das citacóes que Bachelard faz sobre Nietzsche, na quinta secáo do

capítulo introdutório de L'activité ... (p.92), precisamente em tentar resolver urna


107

aparente contradicáo que se revela como o "recrutamento" de Nietzsche para

fortalecimento da defesa bachelardiana acerca da especiaiizacáo, já que

Nietzsche havia claramente mostrado sua posicáo acerca do assunto em O


'~.··· .

crepúsculo dos ídolos, onde ressalta "o caráter debilitante do cientificismo atual

sobre o espiríto" (p.95). A contradicáo se dissipa, segundo Nouvel, quando nos

centramos numa discreta utifizacáo do termo "vontade de poder" por Bachelard,

na mesma passagem. Para Nouvel, o caráter "dinamofílico" do pensamento

bachelardiano é certamente de origem nietzscheana e, se assim o

entendermos, esclarecem-se todas as referencias a Nietzsche feítas por

Bachelard.

A conñrrnacáo disto vem através da citacáo de urna passagem de L'eau

et le songes (p.96): "Nietzsche instruiu pacientemente sua vontade de poder

através destas longas caminhadas na montanha". Entretanto, a análise náo

para por aí. É fato que Bachelard desdenha dos filósofos que investigam a

ciencia "desde fora" da ciencia; outrossim, constituí, para Nouvel, um verdadeiro

paradoxo falar da ciencia em se estando "dentro" da ciencia, é como se faltasse

a possiblidade do "distanciarnento" e com isto Bachelard incorreria numa

espécie de aporia acerca de sua própria afirrnacáo. Diz Nouvel: "Pois, estando-

se na ciencia, como representará a ciencia um problema?"121 Nouvel conclui a

análise, reconhecendo que só é possível questionar a especializacáo do

pensamento científico, nao a ciencia como um todo, estando-se dentro do

121 ldem, p. 96.


. .., 108

pensamento científico; contrariamente se incorreria num pensamento

inauténtico.

A nocáo de pensarnento "auténtico" é o link utilizado por Nouvel para

transferir o lugar da discussáo da instancia de Bachelard para a de Heidegger,

lembrando que este último considera que o questionamento acerca da ciencia,

para ser considerado auténtico. deve ser colocado fara da sua esfera e "sern

nenhuma referencia ao seu modo particular de raciocínio"122. Como

corroboracáo oferece a seguinte citacáo retirada da 3ª parte do Nietzsche de

Heidegger 123:

A rneditacáo da ciencia sobre ela propria comporta sua própria ótica e sua
própria atitude interrogativa, sua própria forma de dsrnonstracáo e sua própria
elaboracáo de conceitos, tudo isto constítuindo sua solidez e sua regularidade
próprias. Para poder efetuar esta meditacáo metafísica sobre seu próprio
dominio é preciso que o pesquisador científico se transponha para urna
rnaneira de pensar de urna ordem pricipalrnente diferente.124

Nouvei encaminha a discussáo, ponderando a assertiva heideggeriana

de afirmar Nietzsche como um metafísico, como "o pensador do fim da

metafísica ocidental e a vontade de poder é seu pensamento único"125. Afirmar

Nietzsche corno metafísico serve de ganho para discutir a própria questáo da

metafísica que, segundo Nouvel, para Heidegger "náo tem necessidade de

nenhum agente concreto para assegurar seu poder"126. Nesse sentido, a

metafísica antecede a tudo, inclusive a própria cultura.

122 ldern, p. 97.


123 ldern, p. 97. Traducáo para o trances de Pierre Klossowski. Paris: Edicóes Gallimard,
1971. p.406.
124 ldem, p. 97. (grifo do autor)
125 ldem, p. 98.
126 lbidem.
109

Dito isto, Nouvel retoma a reflexáo metafísica de Heidegger sobre a

ciencia, inserindo no texto urna grande citacáo que aborda alguns aspectos, por

vezes muito mal entendidos, do pensamento de Heidegger sobre a ciencia, a

saber: a confusáo entre marketing económico e produtos científicos; o aspecto

radiofónico, ou sensacionalista, da ciencia contemporánea: a compreensáo do

conhecimento e do saber como técnica; tuda ísto. segundo Heidegger, grac;as

ao camínho metafísico tomado pelo Ocidente desde a meta ta physíca

aristotélica. Ora, se o modo do conhecimento e do saber científicos se

confundem com a técnica. a tomada do rumo da especiatizacáo pela ciencia,

através da especializacáo da ferramenta, foí apenas ver-se um mar alimentado

por muitos ríos, isto é, a ciencia e a técnica sao os dois lados de um mesmo

modo de ser metafísico escolhido pelo Ocidente desde Aristóteles.

Se anteriormente a nocáo de pensarnento auténtico fazja a ponte entre

Bachelard e Heidegger, agora é a especializacáo do pensamento científico que

possibilita retornar na contramáo, para rever urna questáo colocada no início do

ensaio: seria possível, como o queria Bachelard, pensar a ciencia desde dentro

da própria ciencia? Para Nouvel, Bachelard nao saberia perceber a raíz

metafísica que subjaz a técnica e a especializacáo, já que faz o elogio da

especialízacáo

Nouvel, nessa altura do texto, insere sua interpretacáo própria tomando

ele mesmo urna citacáo de Nietzsche, inscrita em Humano demasiado humano:


110
'·'\
'
"A ciéncia dá áquele que a ela consagra seu trabalho e suas pesquisas muita

satisfacáo e pouca aquere que nela estuda os resultados"127. Como o faria

certamente Bachelard, Nouvel ressalta a distancia entre o que faz e o que ve a

ciencia se fazendo, alegando inclusive que aquele que ve a ciencia se fazer nao

comunga do "fogo da paixáo" vivido por aquele que a faz. Ressalta, ainda, o

caráter agressivo da ciencia que se apodera do mundo, transformando-o e

dividindo-o, segundo sua irnaqinacáo e acrescenta: "O valor ofensivo da ciencia

se opóe assim ao valor defensivo da razao."128 Ao separar, nesse sentido, a

ciencia da própria razáo descobre o ponto em que Heidegger e Bachelard

encontram-se em Nietzsche, isto é, na possibilidade de pensar a razáo "como

urna loucura coletiva adotada pelo Ocidente"129. Conclui Nouvel:

O que nós chamamos "razáo" será o nome de urna certa loucura


coletiva adotada pelo ocidente? Ou, alimentada de sonho, mas opondo-se ao
sonho, a razáo se constituiria em urna dialética sempre a retomar entre a
imaqinacáo e o pensamento crítico? Que as visees de Heidegger e Bachelard
possam se reconhecer respectivamente nestas duas posicóes do problema.
demonstra que eles acentuam um mesmo ponto: a insuficiencia, a fraqueza, a
pobreza da idéia comum de razáo, sem concordar entretanto sob a origern
desta situacáo. No final das contas. é o próprio ate filosófico que é poste em
questáo e que reconduz a urna questáo mais anterior ainda: a filosofia é
procura do dinamismo físico ou questionamento autentico?

4.3. Nossas consideracóes

Ternos tentado considerar aqui que a dinamofilía de Bachelard é a

dinamofilía da meoítacáo que se expressa no fazer científico, portante nao nos

seria possível concordar com o termo dinamismo físico, preferiríamos um

dinamismo racional, que ainda assim seria diferente do questionamento

127 ldem, p. 99.


128 lbidem.
129 lbidem.
~~f

~
t 111
~

auténtico de Heidegger que busca a instancia do ser do ente, mas há entre os

dais um ponto de intersecáo: a rneditacáo, no sentido do "querer saber" que se

transmuta em "poder saber" e "compreender".

Aquelas duas tentativas de aproxímacáo entre Heidegger e Bachelard

nem de longe pretenderam comparar as duas obras, mas ocupam-se da

tentativa de levantar pontos de aproxirnacáo. Nosso trabalho segue na mesma

direcáo, entretanto acreditamos que ele constituí um avance frente aos que o

antecedem. Acreditamos que os pontos que se ressaltam aqui e ali reúnem-se,

quando levantamos a questáo que antecede a todas as questóes: a questáo da

verdade. Do nosso ponto de vista. as nocóes de verdade erigidas, tanto em

Heidegger como em Bachelard, tém um ponto de intersecáo fundamental: a

revisáo do conceito de erro.

A nocáo de erro, desde a antigüidade clássica, percorreu toda urna

trajetória. A escola de Elea, por exemplo, pregava o erro como urna

impossibilidade, diziam que a única possibilidade era o ser, desse modo urna

proposícáo errada nao poderia classificar-se como urna oroposlcáo: a verdade

nesse sentido atinha-se a proposicáo. Aristóteles. por sua vez, estudou a

questáo do erro em sua teoría do juízo; o erro aqui coincidía com ilogicidade ou

com sofisma. Durante a medievalidade, principalmente na escolástica. se opós

o erro a verdade que era aquí tida como a concordancia entre o juízo e a coisa

julgada; o erro, portanto, assumia a forma da discrepancia entre urna coisa e

outra. Vale lembrar que, a partir da escolástica, o juízo assume um caráter


.•,

-:""
·....

112

divino, teologiza-se por assim dizer. Na ldade Moderna sáo muitas as. variantes

acerca do erro, mas é em Descartes que encentra especial destaque. Para este

filósofo o erro assume o aspecto de urna vontade que incide sobre o juízo;

dizem os especialistas que esta tese já teria sido adiantada por Duns Scotus.

Descartes separa a capacidade de apreender idéias da capacidade de julgar; o

julgamento, para ele, é um potencial voluntário para o conhecimento e para a

eleícáo de juízos. Este potencial pode ser acometido de imperfeicóes

puramente humanas que coíncidiriam com o erro que, por sua vez, obnubilaría a

clareza e a distincáo. Como o erro aqui é um ato de vontade, poder-se-ia aquí

detectá-lo através das afirrnacóes de idéias que náo corresponderiam a


realídade e da substituicáo do bem pelo mal; neste sentido o erro e o pecado

comungariam da mesma causa. De um outro lado, alguns segmentos da

Modernidade associaram o erro a ignorancia, atribuindo-lhe um sentido de

carencia. Do ponto de vista de Brochard130, a existencia do erro náo é urna

privacáo da inteligencia, mas sim da vontade; o erro só seria possível a partir a

da possibilidade de uniáo entre a vontade e a inteligibilidade. Para Brochard o

principio metafísico do erro seria a liberdade, principio este que torna possível,

ao mesmo tempo, a elirninacáo do próprio erro e a obtencáo da verdade.

Tanto em Heidegger como em Bachelard, o erro assume o princípio

metafísico da liberdade, do caminhar em meio ao desconhecido, do caminhar

sem destino certo. É pelo reconhecimento do erro que nos percebemos livres

130 --. De l'Erreur, 3ª ed, 1926, p. 275. Apud In: Diccionario de Filosofía. José Ferrater Mora.
3 ed., Barcelona, Alianza. 1981, p.968.
113

dentro da verdade. Náo é possível, aos olhos desses autores, movimentar-se

na verdade por outro caminho que nao o do reconhecimento do erro: em

Heidegger existiré em si mesmo errar; em Bachelard conhecer é retiftcar erras.

Esses pressupostos incidem diretamente sobre as nocóes de verdade que se

erguem nos dois pensamentos, como poderemos constatar a seguir.


Preciso 'rollar e olliar de novo aqueles dois quartos
·--
t'D::íÍOS.

----

Ana Cristina Cesar


--
.-
114

5. ERRÁNCIA E RETIFICACAO DE ERROS: UMA APROXIMACAO ENTRE


HEIDEGGER E BACHELARD

A funcáo deste capítulo é analisar a possibilidade de aproxirnacáo entre

as anti-esséncias fundamentais que se opóem as esséncias da verdade em

deis filósofos que notadamente navegam em mares filosóficos distintos. De um

lado, Heidegger e seu conceito de erráncia, como possibilidade ontológica da

existencia; de outro, Bachelard e sua proposta de retificacáo de erros como

possibilidade de progresso científico. Que razáo dialógica permite erguer urn

conceito a partir de sua própria anti-esséncía? Será a revisáo da nocáo de erro

a solucáo para a crise metafísica da conternporaneidade, seja na existencia,

seja na ciencia? Estas sáo as questóes para as quais buscamos resposta.

A estrutura deste capítulo constrói-se ao modo de um jogo de inversóes;

isto é, se nosso intuito é tentar aproximar nocóes de verdade que, em tese,

transitam em campos diferentes, de um lado, a ciencia, de outro, a metafísica,

torna-se necessário entender o que o epístemólogo tem de metafísico e, por

sua vez, o que o metafísico tem de epistemólogo. Desse modo, cusamos

construir urna "metafísica" a Bachelard, assim como urna "epistemologia" a


Heidegger e acabamos por perceber que a empreitada nao era de todo

impossíveL
115

5.1. Urna "metafísica" a Bachelard

Bachelard certamente nao é um metafísico, mas é um filósofo e,

portante, enuncia e questiona a metafísica de um modo muito próprio, diríamos


·-
que quase as avessas. Só o genio de um grande pensador conseguiria com

tanta maestría inverter os vetores todos da metafísica tradicional e, com isso,

criar as bases filosóficas da ciencia da relatividade. É disso que trataremos a

partir daqui.

Poderíamos questionar a idéia de urna epistemologia que se traduziria

como a análise interna de urna ciencia que é puro construto como sendo um

lugar comum; urna análise mais ou menos simples de urna ciencia que aí está

posta, tal como é; urna mera constatacáo. A epistemología de Gaston

Bachelard vai muito além disto.

Em "Idealismo Discursivo"!". Bachelard discute o modo como o fazer

científico se mostra na contemporaneidade, isto é. como se dá em "ré" a

reflexáo científica. Nesse texto, o filósofo percorre as entranhas da propria

reflexáo em si mesma. Sua tentativa é compreender e fazer cornpreender corno

se dá o fenómeno da reflexáo humana. Com certeza seu alvo é urna crítica ao

cógito cartesiano. Sua determinacáo é tentar demonstrar que a dúvida é que

possibilita a propria experiencia do cógito, em sí mesma, e, a partir disto, nos

faz ver que o que há no fundo de tudo é a trajetória da retíñcacáo dos erres, a

131 In: BACHELARD,G. ldéalism Discursif. In:--. Études. París: Vrin, 1970. p. 87-97.
116
-
'.. ......

partir do estabelecimento da dúvida. Ressaltar a experiencia do cógito, desse

modo, é fazer ver que náo é o "eu penso" que subjaz a reflexáo, mas o ato de

pensar no seu próprio andamento, no decorrer de sua rnovirnentacáo, na sua

historicidade: é o "pensando". Ora, urna reflexáo desta monta está muito além

de urna descrícáo do fazer científico. A proposta de Bachelard neste pequeno

texto é mergulhar nas entranhas, se for possível criar aquí um neologismo, do

"cienciar", isto é, refletir sobre o ato mesmo da reflexáo donde redunda toda a

cultura humana.

Nosso objetivo, neste momento, é enfatizar o caráter metafísico da

epistemologia de Gasten Bachelard; nao fosse este caráter, nao chamaríamos

seu pensamento de filosofia. Nesse sentido, vale um mergulho nesse

"Idealismo Discursivo", cujo objetivo é defender a seguínte tese: "O esforco

metafísico para apreender o ser em nós mesmos é, pois. urna perspectiva de

renúncia."132 lsto é, o ato da reflexáo, ou seja, do debrucar-se de novo e

novamente sobre nós mesmos, revela os nossos enganos e através deles faz

que nos reconhecarnos ao mesmo tempo em que transformamos o ser em

devir, retificando os enganos. Reconhecer e retificar nossos enganos e as

nossas Iírnitacóes · é renunciar a nós mesmos e, ao fazé-lo, reconhecemos

nosso próprio ser. Assim sendo, náo é possível, deste ponto de vista, conhecer

o ser, mas apenas reconhecé-lo.

132 lbidem, p. 97.


""\
)
117

·o termo idealismo, também carregado de todo um fardo histórico

particular, é aquí movimentado numa direcáo inusitada. Bachelard, em primeiro

lugar, ressalta que a nocáo de idéia, em si mesma, nao diz nada. Urna idéia,

para ele, vem sempre impregnada, de um lado, por urna história psicológica, de

outro, por um processo de objetivacáo. O que possibilita pensar que urna idéia

nao pode ser contemplada em sua pureza e inteíreza, já que é fruto de um

movimento onde está ímerso aquele que contempla, sendo aquilo que

contempla nao necessariamente urna "idéia", posto que está desprovida de um

caráter originário. Elucidando: a nocáo de idéia perde aqui o seu caráter

platónico para dar lugar ao sentido de insight - discernimento, "iluminacáo

súbita", que pode surgir, inclusive, sobo aspecto da dúvida.

Oesse modo, urna relacáo contemplador e contemplado, ou melhor,

meditador e meditado, que a tradicáo ocidental costuma nomear sujeito e

objeto, nao passa literalmente de urna relacáo, onde o lugar de cada um nao é

lá muito claro. Como estáo ambos. sujeito e objeto, imersos numa história

psicológica e num processo de objetivacáo, muito próprios do tempo e do lugar

onde a dita relacáo está inserida, já que tudo esta envolvido por urna membrana

cultural, náo é possível, aos olhos de Bachelard, demarcar com clareza e

distincáo os lugares específicos do sujeito, de um lado, e do objeto, de outro.

Se náo há como demarcar lugares, podemos afirmar que náo há,

outrossim, a possibilidade de, clara e distintamente, conferirmos fronteiras a um

sujeito que pensa, de um lado, e a um objeto pensado, de outro. Entretanto,


118

estudam-se coisas e discursa-se sobre o estudado, ou seja, existem cientistas

e objetos de estudo; pelo menos é isto que o fenómeno de ciencia nos mostra

em primeira instancia. Para Bachelard, esta é urna primeira visáo míope que

deve ser debelada, a primeira ilusáo a ser perdida: a ciencia nao é. para ele, a

relacáo entre cientistas e objetos de estudo, mas sim o fruto mais nobre que o

movimento reflexivo humano pode produzir e sua epistemologia é o método do

desvelamento do movimento reflexivo que se encentra oculto nas entranhas do

fazer científico, mas nao só lá133. O "Idealismo Discursivo", neste sentido, é a

transforrnacáo do ser em devir pela via da reflexáo que se objetiva em discurso-

pensamento.

Um primeiro ponto a ser analisado, para que se possa chegar a essa

conclusáo, é a cornpreensáo de que náo é possível, aos olhos de Bachelard,

opor subjetividade e objetividade. Essas duas instancias vivem urna relacáo

dialógica e inexistem urna sem a outra, sáo as duas faces de um mesmo

processo reflexivo. Um ponto de partida para tal compreensáo é abolir de

imediato toda a possibilidade de um absoluto, seja um ser absoluto que subjaz

a subjetividade, seja urn "algo" absoluto que se revele em objetividade. É de

aproxímacáo em aproxímacáo, seja da subjetividade para com a objetividade,

seja o inverso, que a verdade se revela corno um processo que envolve

intuicáo, pensamento, identidade e díversidade que sáo os quatro pontos

133 Haja vista toda urna caminhada que filósofo traca pelas vias da poética, via esta que náo
trataremos aqui.
119

constitutivos da própria reñexáo. A verdade neste sentido seria o processo

reflexivo que permite ao ser revelar-se em devir.

Essa relacáo dialógica entre a subjetividade e a objetividade constituí-se

de urna vía de rnáo dupla. Diz Bachelard:

Do mesmo lado da consciencia de si, sobre um tema dialético e


discursivo, desenvolvem-se prevas repetidas, ou melhor, prevas verdadeiras.
Com efeito, a consciencia clara do ser é sempre associada a urna consciencia
de seu aniquilamento. Se eu sinto o ser em mim, em urna experiencia inefável,
a
é porque eu o sinto renascer; eu o conheco torca de o reconhecer; eu o
compreendo na oscilacáo do ser e do nao-ser, eu o vejo sobre um fundo de
nada. 134

Segundo Bachelard. a objetividade se dá na instancia do detalhe.

Enquanto a intuicáo nos possibilita a inteireza do pensamento, a objetividade,

por sua vez, se atém a particularidade, como urna espécie de gesto pela

- dúvida. lronicamente Bachelard dizque

·A intuicáo é de boa fé, o espirito parece, pois, de má fé. Melhor dizendo, o


espírito nao tem fé Fica feliz em duvidar. Instala-se na dúvida como se fosse
um método; pensa destruindo, enriquece-se com seus abandonos."135

Ater-se a particularidade é como encontrar urna porta diminuta que dá

passagem a universalidade. O espírito se volta para o detalhe como quem

aponta um ponto obscuro numa írnensa paisagem; a partir desse ponto. através

do embate dialógico entre a subjetividade e a objetividade, modifica a paisagem

primeira ao mesmo tempo que cria toda urna nova paísagem, que possibilitará,

por seu turno, novos pontos obscuros, dando prosseguimento a cadeía do

conhecer, ao pro-jectum. Se pensarmos, ainda, que aquela primeira paisagem

134 lbidem, pp. 95-96.


135 Ibídem, p. 89 .

-
.._
'--'"

120

ou o senso comum, possui um sem número de pontos obscuros, a multiplicacáo

das paisagens óbvias em paisagens complexas é da ordem do infinito. Ao

mesmo tempo, a paisagem primeira vai se tornando gradativamente urna "ilusáo


. ':J

perdida". O conhecimento em si mesmo é um "conhecendo" sem paradeiro.

Muito mais do que urna conquista, o conhecimento é um fío de historícidade que

se reconstrói a partir de seus próprios escombros, de suas proprias "ilusóes

perdidas".

É na introduc;áo a O novo espírito científico que Bachelard vai alear seu

grande vóo filosófico afirmando a seguinte tese:

Toda a aplicacáo é transcendencia. ( ... ) Se soubéssemos, a propósito da


psicología do espírito científico, colocar-nos exatamente na fronteira do
conhecimento científico, veríamos que é numa verdadeira sintese das
contradicóes metafísicas que está empenhada a ciencia contemporánea.
Contudo, o sentido do vetor epistemológico parece-nos muito nítido. Vai
seguramente do racional para o real e, de modo nenhum, inversamente, da
realidade para o geral, corno o professavam todos os filósofos desde
Aristóteles até Bacon. Por outras palavras, a aplicacáo do pensamento
científico parece-nos essencialmente realizadora. Tentaremos pois mostrar ao
longo desta obra aquilo a que chamaremos a realizacáo do racional cu, mais
em geral, a reaüzacáo do matemático.136 .

Alguns pontos dessa tese precisam ser muito bem esclarecidos. O

primeiro refere-se aoque já foi por nós exposto em línhas anteriores, ou seja, a

questáo da impossibilidade de conhecer o ser; o que podemos é apenas

reconhecé-lo: desse modo, transcender pela apücacáo é o modo pelo qual nos

lancamos, nos projetamos na realidade, no bojo desta projecáo expóern-se os

erros que dificultam a realizacáo do racional; erros estes que precisam ser

retificados. Assim sendo, quando Bachelard diz a respeito da atividade •

136 Op. Cit. p. 11.


121

científica: "se ela experimenta, terá de raciocinar; se raciocina, terá de

experimentar.". nao é com o conceito científico que ele está preocupado, mas

com o ser que pulsa através desta trajetória, tal como urna partícula atómica

que sé pode ser reconhecida pelo rastro que sua trajetória evidencia. É

exatamente esta preocupacáo nurnénica. a que já nos reportamos em nosso

capítulo sobre Bachelard, que permite ao filósofo afirmar que

Mais cedo ou mais tarde. será o pensamento científico que se tornará o terna
fundamental da polémica filosófica; esse pensamento levará a substituir as
metafísicas intuitivas e imediatas pelas metafísicas discursivas objetivamente
retificadas. 137

Um segundo ponto a ser esclarecido é o que pode possibilitar confundir a

"realizacáo do racional" como "pnncípio da razáo". Quando o princípio da razáo

diz que "nada é sem razáo", trata-se de um colocar a razáo como o fundamento

de tudo, urna razáo a priori, divina. teológica. Já a realizacáo do racional,

enfatizada por Bachetard, vai tratar da realizacáo do matemático; a linguagem

matemática é em si mesma já um desvelamento do ser do homem que nada

tem de divino, ao lado (ou oriunda) da linguagem num sentido mais geral, a

matemática é de per si um movimento transcendental do próprio homem sobre

si mesmo. Este é ponto ressaltado por Bachelard que lhe permite elevar sua

epistemología a instancia de filosofia. Bachelard náo faz urna síntese das

ciencias, muito mais que isto, desvela o espirito científico. Este movimento é

que nos leva afirmar que, em Bachelard, "cienciar" é filosofar, é reconhecer o

ser deste ente. o homem, pela transcendencia que é a realizacáo do

matemático.

137 ldem, p. 1 O.
122

O terceíro e último ponto a ser esclarecido trata da possibilidade de se

confundir a afirmacáo bachelardiana, que diz que o vetor epistemológico vai do

racional para o real, com a questáo da verdade como concordancia. Nao se

racionaliza sobre o real, mas realiza-se o racional, isto é, torna-se o racional

real, apesar da realidade. Como podemos perceber, a epistemología

bachelardiana é puro "espanto" e novidade. O vetor da racíonalídade é aqui

ínvertido, já que parte de urna elaboracáo possível apenas no ambiente racional

que é experimentado como possibílidade de construcáo de um real e nao como

constatacáo no real. Assim sendo, a ciencia deixa de ser um instrumento de

busca da compreensáo do real para se estabelecer como puro construto.

Se assírn o é, o que busca a ciencia contemporánea? No que se

transformou a verdade científica? Ouais sao as respostas de Heidegger a este

respeito?

5.2. Urna "epistemologia"a Heidegger

Gestaríamos de deixar claro de pronto que é do nosso conhecimento que

Martín Heidegger nunca teve a íntencáo de construir urna epistemologia, por

isto gratamos o termo no título entre aspas. Entretanto, a abordagem do tema

da ciencia e da técnica por Heidegger é urna constante; rnuitas sáo as obras em

que o assunto é levantado; náo obstante, dedicou duas conferencias

específicas a esses temas: urna a ciencia e outra a técnica. Nosso objetivo aqui
123

é traduzir o que Heidegger pensa da ciencia contemporánea, com a finalidade

de lenvantar pontos de aproxirnacáo e de afastamento, entre ele e Bachelard

em cuja obra o tema da verdade circunscreve-se exclusivamente ao ámbito da

filosofía das ciencias.

Acataremos aqui a sugestáo dada por Ernildo Stein, no prefácio a sua

traducáo da Conferencia de Heidegger O que é isto a Filosofía?, inserida na 2ª

edicáo do volume "Heidegger" da colecáo Os Pensadores. Stein identifica um

"processo ambivalente e circular" que relaciona, ao modo de unidade, tres

conferencias distintas pronunciadas por Heidegger na década de 50, a saber: O

que é isto a Filosofia? (agosto de 1955}, O princípio da ldentidade Uunho de

1957) e A Constituic?o Onto-Teológica da Metafísica (fevereiro de 1957). Estas

conferencias tematizam no seu cerne, do ponto de vista de Stein, "o uno que

em si mesmo se diferencia"!" then diaphéron heautó, a grande palavra retirada

do Hypérion de Holoertin). e é nesta trilha que escolhemos caminhar com o

intuito de alicercar nosso ponto de vista que permite ver: primeiro, urna unidade

que em si mesma se diferencia, em Heidegger, nas nocóes de "ser", "filosofía" e

"pensar"; segundo, que no interior desta unidade encontrarn-se tanto a ciencia

como a metafísica, e, terceiro, que a conjuga<;áo daqueles tres ítens possibilita

nao apenas a construcáo histórica do homem enquanto homem, mas é a

própria possibilidade e fundamento da ciencia contemporánea como ciencia

metafísica (urna unidade que em si mesma se diferencia), entendendo-se

138 Op.Cit. p.11


124

sempre a palavra metafísica tal como a entende Heidegger e nao como reza a

tradicáo.

Somos nós, homens, a própria experiencia da finitude na amplitude.

Vivemos sob a égide do finito, no sentido de um tempo espacializado numa

sucessáo de momentos irrepetíveis que se inicia com o nascimento e encerra-

se com a morte, senda mais precisamente na morte que esta experiencia mais

acentuadamente se evidencia. Outrossim, no decorrer dessa existencia. urna

amplitude infinita se mostra, contraditoriamente, pelo finito. Urna razáo dialética

se expressa na relacáo da finitude óntica (do ente) com a infinitude ontológica

{do ser). revelando-se como existencia. Pensar o homem como o ente que

possui o seré pensá-lo como sujeito de sua própria vida, isto é, o que subjaz a
vida do homem, enquanto homem, é o próprio ser, por isso só o homem

"existe". o radical "ex" nos remete a exterioridade: o mundo, pois é

precisamente "no mundo" que o homem existe. Por isso, urn primeiro passo,

nos diz Heidegger, é "tornar visível o ser-no-mundo, no tocante a seu momento

estrutural 'mundo"'.139

A estrutura ontológica das coisas é o que, definitivamente, interessa a

Heidegger e, assim sendo, numa análise acerca do mundo o que importa é a

estrutura ontológica disto· que denominamos mundo, pois é a partir do

conhecimento acerca dessa estrutura que poderemos descrever,

139 HEIDEGGER M. Ser e Tempo. traducáo de Marcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes,


1993. p. 103.
--, 125

fenomenologicamente, o próprio mundo. Tendo em vista o caráter poiíssémico

da palavra mundo, faz-se necessário, a fim de evitar futuros equívocos, quanto

aoque venha a ser urna estrutura óntica e urna estrutura ontológica, evidenciar

os quatro principais significados da palavra mundo, ressaltados por Heidegger:

1) O conceito óntico da palavra mundo refere-se a totalidade dos entes que o

constituem (casas, árvores, homens, montes, estrelas); 2) como termo

ontológico, significa o ser dos entes que o constituem; 3) como sentido óntico

significa o "contexto em que de fato urna presenca vive como presenca" e, por

fim, 4) mundo significa o conceito existencial-ontológico da mundaruoade.!"

Em A origem da obra de arte, Heidegger nos coloca, sintetizando, a

seguinte questáo acerca daquela origem: o que vem primeiro: a obra ou o

artista? Tal pergunta, num primeiro momento, nos remete a dimensáo óntica

inscrita numa conhecida aporía popular: "o que vem primeiro: o ovo ou a

galinha?". Entretanto, ultrapassada a evidencia óntica: obra x artista, "salta aos

olhos" um terceiro elemento que ern verdade é o primeiro e que já se

encontrava inscrito em ambas as partes do conflito: obra de arte e artista, que é

a própria arte. Obra de arte e artista nada .rnais sáo do que entiñcacóes da

própria arte em sua articidade, tal como o mundo em sua mundanidade, pois

arte e mundo sáo mais que entes, sáo mais que coisas, sao presencas.

É nesse sentido que, buscando a estrutura ontológica que permitirá

descrever o mundo como fenómeno, encontramos na mundanidade o conceito

140 ldem. p.105.


126

existencial-ontológico que mundo designa, isto é, o mundo a que Heidegger se

refere náo é o mundo do sujeito/objeto, mas o mundo em geral, caracterizado

pela mundanidade, senda mundanidade o ser-no-mundo e nao o ser-do-mundo,

revelando-se ora de maneira geral (o mundo do nós), ora de maneira própria (o

mundo de cada um) de forma que esta última está sempre inserida na primeira

que é apriorística.

Gestaríamos de lembrar mais urna vez que é a estrutura ontológica que

importa para a análise fenomenológica, por isso Heidegger nos remete a urna

nocáo de "presenca cotidiana" como mundo circundante. Mas o que é este

caráter próximo da Mundanidade? Em primeiro lugar, trata-se do "ser dos entes

que vérn ao encentro no mundo circunoante"!". Este ente a que nos referimos

nao é um objeto a partir do qual obteremos um conhecimento teórico do mundo,

mas aquilo que é "usado ou produzido" ou "aquilo que se !ida na ocupa<;áo"142.

No entanto, ainda nao é simplesmente das coisas que estamos falando, mas da

sua coisicidade ou realidade; nesse sentido toda coisa é um instrumento e todo

instrumento nunca é um ser-ern-si, mas possui um ser-em-si, poste que é

sempre um ser-para. Assim sendo, nenhum instrumento é dado. mas fabricado

pela manualidade do ser-no-mundo, segundo valores cuja necessidade será

maior ou menor conforme a adequacáo de sua utilidade a mundanidade da

presenca neste ou naquele momento, pois a "manualidade é a determinacáo

categorial dos entes tal como sáo em si"143•

141 Ibídem. p.108.


142 Ibídem. p.109.
143 Ibídem. p.114.
- . 127

lsto quer dizer que os objetos em si mesmos nao térn valor, éo homem

quem lhes atribui valor pelas categorias do útil e do inútil, sendo por estas

categorias que se ir.sere no objeto a sua destinacáo a medida que o utiliza. A

finalidade náo está na coisa, nem no "ern si" da coisa, mas na utilidade da

coisa. Nessa direcáo o mundo já sempre esteve, enquanto presenca. através

dos entes que o comp5em e ser-no-mundo nada mais é do que abrir-se para o

horizonte do mundo. Só a presenca pergunta pelo "ern si" e a ele dá destinacáo,

pois a pergunta acerca do "em si" é urna pergunta ontológica a qual só quemé

ontológico pode responder. Por outro lado, um sinal é aquilo que mostra alguma

coisa e tem, portante, um caráter instrumental. Outrossim, o ato de mostraré o

ato de referir-se a alguma coisa. Assim podemos concluir que todo sinal remete

a urna referencia, muito embora a recíproca náo seja verdadeira, isto é, nem

toda referencia remete a um sínal; assim como toda referencia é, em si mesma,

urna relacáo, nem toda relacáo é urna referencia. A siqniflcacáo é urna atitude

voluntária da presenca, nao obstante possa-se viver no mundo sem jamais

pensar no significado dele. O consórcio do mundo com as coisas requer a

rnediacáo da presenca, nao no sentido da deterrninacáo de suas qualidades

(acidentes, esséncias. substancias), mas de sua estrutura ontológica, já que a

estrutura ontológica das coisas é o que elas sao diante da presenca, tendo em

vista o seu caráter útil ou inútil.

Semiológicamente talando, urna referéncia é um conceito, urna

lnformacáo ou urna imagem mental que o signo transmite ao seu usuário; dessa
128

forma, o sinal é aquilo que está a rnáo, no sentido da abertura para o

ontológico, cuja estrutura é dada pelo referencial que se lhe atribuí, tendo em

vista sua utilidade.

No ámbito da mundanidade, é o ente que vem ao encontro de um modo

de ser e náo o contrário. Assim, a conjuntura é a circunstancia oportuna em que

este encontro se dá, é a oportunidade do estar-com e a siqnificáncia é a

estrutura determinada pelo ser-para do qual talamos anteriormente. Dessa

forma, o mundo nao é o substrato donde tudo se ergue, mas um modo próprio

da presenca. onde o ser-no-mundo, pela conjuntura da manualidade (estar-

com), descobre a estrutura ontológica das coisas (ser-para) que se constitui na

sua utilidade, no seu caráter instrumental de utensilio.

Com isto cornecamos a delinear o que Heidegger entende por mundo,

por realidade. É com os olhos da cultura que o homem vé o mundo. Este é o

subsídio básico para que possamos, a partir de agora, entender as questóes

levantadas pelo filósofo acerca da ciencia, também um produto da cultura.

Em Ciencia e Meditac;áo, conferencia proferida em 1953, Heidegger

aborda a questáo da ciencia como senda esta a "teoría do real"144. Para nao

parecer que estamos adequando o pensamento de Heidegger ao nosso ponto

144 HEIDEGGER, M. Science et méditation. In: -. Essais et conférences. Traduit de


L'Allemand par André Préau. Préfacé par Jean Beaufret. París: Gallímard, 1958. p. 51.
.'!'\.
., 129

de vista, gostaríamos de transcrever aqui um interessante parágrafo de Alain

Boutot, importante comentador do filósofo, acerca dessa questáo:

Heidegger propóe definir a ciencia moderna como "urna teoria do


real"145. ·recria" náo designa aqui urna conternplacáo passiva da verdade, mas
_
... .. urna elaboracáo ativa que dá forma ao real. A ciencia moderna "provoca" o
real, "pára-o e interpela-o para que este se apresente em cada circunstancia
-- . como o conjunto da causa e do que é causado, ou seja nas conseqüéncias
previstas a partir da causas dadas"146. Fixa a evotucáo dos fenómenos em
fórmulas matemáticas (leis e teorías) que permitem prever e eventualmente
modificar a aparícáo. O objeto científico, por seu lado, nao é o que se rnostra,
quer dizer o ente tal como ele subsiste no seu ser em si, mas o resultado de
urna construcáo teórica, urna "hipótese" metodológica 147

Por tudo que até aquí já foi exposto, acerca do pensamento de Bachelard

sobre a ciencia, só nos resta aquiescer a sernelhanca, É bem verdade que a

intencáo de Heidegger, nessa conferencia, é demonstrar o ser antecedendo ao

pensamento científico. Para Heidegger, antes de qualquer rnanifestacáo

científica, instala-se a meditacáo ou a instancia do ser. Para Bachelard, como já

expusemos anteriormente, o que importa é a "rneditacáo gerúndia" que é a

própria estrutura do conhecimento científico.

Entretanto, urna diferenca básica e crucial aquí se instala entre os dois

pensadores: para Heidegger, a filosofia nao deve se deixar levar pelas

"rniraqens científicas", enquanto para Bachelard é no caminho das ciencias que

a filosofia se torna possível.

145 lbidem.
146 ldem, p. 62_
147 BOUTOT, A. lntroducáo a filosofía de Heidegger. traducéo de Francisco Goncalves.
lisboa: P.E.A., 1993. p. 92.
· .
...:;,··

130

Bachelard, a nosso ver, quer dizer que a ciencia nao precisa de um

· filósofo que sintetize seus resultados, mas quer demonstrar que a polémica

científica é em si mesma filosofía. O "cienciar" é filosofar com todos os seus

predicados, inclusive os metafísicos e ontológicos.

Heidegger, por sua vez, ve na Ontologia a única possibilidade de o

homem manter-se na instancia auténtica do ser, no estado meditativo que

possibilita ao ser mostrar-se em seu sentido mais próprio. Nao é o

conhecimento que importa, mas o "querer saber", onde a ciencia é apenas urna

rnanifestacáo como tantas outras.

Entretanto, gastaríamos aqui de apontar urna possibilidade de

aproxirnacáo entre estes dois pontos de vista acerca do filosofar. Para tanto,

gestaríamos de reafirmar a citacáo acima de Heidegger com urna outra, do

mesmo pensador, em sua conferencia "Sobre a esséncia do fundamento":

Entre compreensáo pré-ontológica do ser e expressa problernatizacáo da


conceituacáo do ser, há muitos graus. Um grau característico é, por exemplo, o
projeto da constituicáo do ser do ente, através do qua! é, concomitantemente,
delimitado um determínado campo (natureza, história), como área de possível
obietivacáo, através do conhecimento científico. A prévia determinacáo do ser
(que-ser e como-ser) da natureza em geral se fixa nos "conceitos
fundamentais" da respectiva cíéncla Nestes conceítos sao, por exernplo,
delimitados espaco, lugar, tempo, movimento, massa, torca, velocidade,
todavía a esséncia do tempo, do movimento nao é propriamente
problematizada.148

Gestaríamos agora de retomar o exemplo, acerca da lampada de Edison,

explorado no ítem 2.2.2 desta dissertacáo. Dizíamos lá que "o que Bachelard

148 Op. Cit., P- 38.


131

enfatiza como sendo o papel da epistemología... [é] fazer ver o processo

racional que subjaz as teorías [do real]". Assim sendo, muito embora Edison

tenha se utilizado da teoría de Joule que associa conceitos científicos, tais

como o de energía, resistencia, intensidade e. tempo; náo é a producáo da

lampada. nem a relacáo jouleana utilizada por Edison, que Bachelard quer nos

fazer ver, mas a capacidade que o espírito científico tem de revelar-se a partir

da possibilidade de producáo de conceítos científicos. O que Edison conquista

é a forrnulacáo de um conceíto de luz elétrica que rompe como conceito de luz

que traz em si o do "fogo natural". A lampada de Edíson é a transcendencia,

pela aplicabilidade e experirnentacáo, do espírito científico. Nao é o ente

lampada que interessa a Bachelard, nem muito menos a íntervencáo no real

que esta lampada provocará, masé o ser que se desvela todas as vezes que

afastamos o ente, neste caso, o conceito substancíalísta de luz (o fogo

flogístico). Desse modo deixamos aqui a pergunta: será que a nocáo de ciencia

criticada por Heidegger é a mesma nocáo de ciencia exaltada por Bachelard?

Acreditamos que nao.

5.3- Erráncia e retlñcacao de erros: urna aproximacáo

Heidegger nao só reafirma e aprofunda as bases de sua discordancia

com o conceito tradicional de verdade como adequacáo, como orienta sua

arqumentacáo para o entendimento da esséncia da verdade como liberdade.

Mostra-nos que assim como, equivocadamente, buscamos a verdade na

veracidade, do mesmo modo equívoco buscamos a liberdade no arbitrio. Ora,


132

liberdade, para Heidegger, mais que urna escolha, ou urna ausencia de

constrangimento, ou mesmo urna disponibilidade para o necessário, é um

abandonar-se ao "desvelamento do ente enquanto tal. "149

A nocáo de verdade em Bachelard emerge do intuito de definir a razáo

científica e sua relacáo com a realidade; desse modo, a razáo científica,

constituindo-se como rompimento inconciliável com o senso comum, é, por si

só, também um rompimento com a evidencia. O objeto das ciencias náo é o

dado, nem muito menos a natureza, melhor dizendo, nao há objeto, mas

projeto. A nocáo de verdade em Bachelard revela-se como o processo de

construcáo do objeto científico que é histórico sem ser cumulativo,

transcendendo, nesse sentido, urna metafísica já que se estabelece como

liberdade:

No conhecimento, nós devemos ter duas ordens diferentes de preocupacáo:


inicialmente tracar a figura média e provável do mundo; em seguida a
perturbacáo possível ao redor dos centros. Esta última marca é inteiramente
positiva, pois finalmente a liberdade é um fato, é o determinismo que é urna
idéia. ·
Aliás esta retificacáo nos parece ter urna raíz metafísica profunda, ela
permite talvez estabelecer urna relacáo entre o Espírito e a Realidade.150

Este é o .ponto onde as duas teses se encontram e o que esta pesquisa

procurou desenvolver: a nocáo de verdade como processo, como história e

como liberdade, já que ambos, Heidegger e Bachelard, levantam contra o

Neokantismo, o Positivismo e o Pragmatismo, a mesma bandeira: a defesa de

urna nocáo de verdade como um processo histórico livre. O que torna ísto

149 Cf. HEIDEGGER. Sobre a esséncia da Verdade. p. 35


150 BACHELARD, G. Essaí sur la connaissance approchée. 4.ed. París: Vrin, 1973. p.289.
T raducáo nossa
133

possível é urna reorientacáo do conceito de erro, seja pela rettñcacéo, seja pela

observancia. Errar nao é negar a verdade, mas o caminho em busca da

verdade. Errar é caminhar para diante. O erro é a antí-esséncía que

fundamenta a esséncia dessa nova nocáo de verdade que se confronta

diretamente com a no980 tradicional de verdade rnuito associada aos valores

substancialistas.

Martín Heidegger e Gastan Bachelard constituem, cada um a seu modo e

em campos específicos do pensamento filosófico. dois marcos inquestionáveis

da Filosofia Contemporánea. Ambos divulgam seus primeiros estudos

fundamentais na década de 20 (Ser e Tempo - 1927; Ensaio ... - 1927/28),

contra o pensamento vigente: o "apriorismo" defendido tanto no Positivismo

quanto no Neokantismo, que fadava, de um lado, a Filosofía a ser urna mera

síntese do conhecimento científico, onde a metafísica náo conhecia lugar, e, de

outro lado, a Ciencia a ser um conhecimento único, cumulativo e verificável.

segundo premissas pré-estabelecidas. Este pensamento "contra" emerge passo

a passo como o cerne do próprio pensamento contemporáneo, como reacáo a


perspectiva moderna, formando verdadeiras escalas que, praticando a verdade

como processo e como liberdade, ramificaram-se nas mais diversas linhas que,

por vezes, até mesmo se contradizem.

lsto posto, podemos enunciar como conclusáo os seguintes pontos de

aproxirnacáo entre os conceitos de erro estabelecidos por Heidegger e por

Bachelard:
134

Um primeiro ponto de aproxímacéo está na própria origem do processo

de reorientacáo do conceito de erro por parte dos dois filósofos aqui tratados: a

nocáo de erro requerida pelo pragmatismo de William James.

A este respeito, Rüdiger Safranskí, em sua elogiadíssima biografia de

Heidegger. ao analísar a trajetóría da reflexáo heideggeriana acerca da

verdade, no capítulo intitulado "Deus está no detalhe", acentua a importante

discordancia de Heidegger com a nocáo de verdade proferida pelo pragmatismo

de William James:

O pragmatismo sabidamente faz apologia de um desarmamento nos assuntos


da verdade. Verdade é arrancada do reino das idéias e rebaixada a um
princípio social de auto-requlacáo comercial. O critério da verdade reside no
sucesso prático, e isso vale também para os assim chamados valores. { ... ) O
espirito é aquilo que produz. O pragmatismo substitui a teoria da
correspondencia da verdade pela teoría da eficiencia. Nao precisamos mais ter
medo do erro, pols. primeiro, removido o critério objetivo de verdade, o erro
perde sua pecaminosidade ontológica: agora podemos definir "verdade" como
um erro útil; e, segundo, os erros fazem parte da experlmentacáo. ( ... ) O
praqrnatlsrno substituí o rigoroso exame da metafísica por urna praticidade do
aqui e agoía. ( ... ) "Nossos erres", diz William James. "afina! náo sirio coisas tao
terrivelmente importantes. Em um mundo onde apesar de toda cautela náo os
podemos evitar, um pouco de despreocupacáo leviana é mais saudável do que
o exagerado medo nervoso". 151

No item 2.3 desta dissertacáo, que se intitula "Bachetaro contra o

pragmatismo", já demonstramos que o pensador francés do mesmo modo se

posiciona contrário a círcunscrícáo da ciencia na esfera do útil. O que nos

permite concluir que as nocóes de erro tanto em Heidegger quanto em

151 SAFRANSKI, R. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. Traducáo de


Lya Luft. Sáo Paulo: Geracáo Editorial, 2000. p. 62-63.
135

Bachelard desenvolvem-se a partir de um mesmo ponto de discordancia em

relacáo a filosofia de sua época.

'--• Um segundo ponto de aproxirnacáo refere-se a funcáo do erro em

a verdade, ou seja, a verdade é reconhecída a partír do reconhecimento


'--

relacáo

do erro, náo um erro como um desacerto, mas um erro como um afastamento


..._.
do ser, seja este ser entendido como Wesen (manifestac;áo fenomeno-

ontológica) ou como Espirito Científico (rnanifestacáo fenómeno-científica).

Um terceiro ponto de aproximacáo encontra-se nao mais no conceito de

erro, mas no conceito de verdade, que em ambos os casos identifica-se com a

liberdade, por comportar-se, a verdade, como processo histórico. Tanto a

ciencia, como a existencia constituem-se como processos históricos capazes de

julgar e avaliar seu passado e de lancar-se, em projeto, para o futuro, sendo o

presente um ponto tenue de intersecáo entre estas duas instancias temporais.

Ambos discordam, entrementes, da durée bergsoniana.


ASSIM EU QUERER/A o meu último poema

Que fósse terno disendo as coisas mais simples e

[menos irüenciouais

Q11e fosse ardent e como uni solufo seui lágrimas

Que tiresse a belezo das flores quase sem perfume

A pureza da chumo em que se consomem os diaman-

[tes tuais limpi dos

A ¡wixiío dos suicidas que se mat am seui explicacáo,

1Uanuel Baruleira
136

6- CONCLUSAO

O objetivo desta dtssertacáo de mestrado foi tentar demonstrar os pontos

de aproxírnacéo e afastamento entre os conceitos de verdade em Heidegger e

Bachelard que se erguem, ambos, a partir de urna nocáo muito particular de

erro. Para ambos a nocáo tradicional de verdade que se identifica com a raíz

latina veritas, isto é, como conformidade e adequacáo, torna-se um verdadeiro

problema para a nocáo de verdade contemporánea. lnegavelmente para estes

dois filósofos a verdade apresenta-se como processo, muito mais próxima de

sua raíz grega - alethea, que pressupóe o sentido do desvelamento. Para tanto

nos utilizamos da seguinte estrutura.

Num primeiro momento, abordamos a epistemología bachelardiana com

vistas a cornpreensáo do conceito de retificacáo de erros. Seguimos o caminho


proposto pelo próprio autor na introducáo de seu Ensaio sobre o conhecimento

aproximado (1927) no qual "Os conceitos de realidade e de verdade devem

receber um novo sentido de urna filosofia do inexato" e, a partir disso, nos

enveredamos pelos conceitos básicos que edificam a epistemología

bachelardiana, a saber: a descontinuidade do conhecimento científico, seu

caráter progressivo, distinto do senso comum, e aproximado. Abordamos

também sua profunda divergencia com a nocáo de verdade proposta pelo

pragmatismo de William James. Por firn, estudamos os pressupostos filosóficos

da nova nocáo de real proposta pela física da relatividade.


137

Percebemos ao cabo desta etapa do estudo que o conceito de retiñcacáo

de erros perpassa todos os outros conceitos. Concordamos com Bulcáo

(1981)152 quando reduz a epistemología de Bachelard a construcáo do objeto

científico, enfatizando que o fundamento metafísico dessa construcáo

encontrava pouso, de um lado, na retificacáo de erros, de outro, na nocáo de

conhecimento aproximado que, ao nosso ver, constituem-se como sendo as

duas faces de urna mesma moeda: a construcáo do objeto científico.

Avancemos no sentido de concluir que a nocáo de verdade, em qualquer

setor da epistemologia de Gasten Bachelard, está associada a nocáo de

retificacáo de erros, isto é, a nocáo de verdade deixa de ser algo para se tornar

ambiente. O racionalismo ou idealismo discursivo, ou a própria ciencia, só é

possível de realizar-se no campo livre da verdade. Náo se busca urna verdade,

constróern-se fatos verdadeiros que sáo questionados e reformuiados por

polémicas verídicas. Tudo isto só é possível quando se atribui a instancia do

erro o caráter positivo da retificacáo. O erro abandona o ambiente teológico da

falta para tornar-se a grande torca motriz do conhecimento. De outro lado, a

possibilidade de reconhecer. e retificar erros, revestida como devir, demonstra

que o ambiente da verdade é preenchido pela esséncia da liberdade, nao como

poder de escolha, mas como possibilidade de abertura ao lancar-se. Nesse

sentido, verdade e liberdade confundem-se num só conceito permitindo

redimensionar a realidade que se coloca como objeto da ciencia.

152 Op.Cit.
138

Num segundo momento analisamos a ontologia heideggeriana visando

entender o conceito de verdade e sua anti-esséncía fundamental que é a


erráncia. A nocáo de Verdade no pensamento de Heidegger compreende um

movimento que pressupóe tres momentos distintos de sua obra em retacáo ao

tema, a saber: 1) Ser e Tempo, especialmente o conteúdo de seu parágrafo 44,

onde a verdade constituí-se como urna abertura que possibilita o nexo entre o

ambiente ontológico do ser-no-mundo e sua realizacáo óntica como ser-ai. 2)

Sobre a esséncia da verdade., vimos que Heidegger náo só reafirma e

aprofunda as bases de sua discordancia com o conceito tradicional de verdade

como adequacéo. como orienta sua arqumentacáo para o entendimento da

esséncia da verdade como liberdade. 3) lntrodu@o a Metafísica onde

Heidegger retoma a tese introduzida em Sobre a essencia da verdade que

caracteriza a errancia como o processo insistente do homem esquecer o ser,

para definir o esquecimento do ser como o proprio destino histórico do

Ocidente. Com isso concluímos que o movimento da nocáo de verdade, no

ámbito das tres obras, desloca-se entre os seguintes parámetros: 1) verdade

como abertura que permite a relacáo de nexo entre o óntico e o ontológico; 2) a

verdade da esséncia é a esséncia da verdade que se traduz na razáo

tiberdade/erráncia; 3) a verdade é o sentido do ser em seu destino histórico.

·~
Num terceiro momento, comentamos as tentativas de aproximacáo entre

Heidegger e Bachelard que nos antecederam e das quais tomamos

conhecimento. De um lado, Constanca Marcondes Cesar (1989) que propóe

como ponto de aproxtmacáo a "unidade do saber", seja ele científico, metafísico


139

ou poético; de outro lado, Pascal Nouvel (1997) que identifica no conceito de

vontade de poder de Nietzsche a base fundamental do pensamento dos deis

filósofos.

Num quarto momento tracamos os pontos de contato entre os dois

filósofos, no que se refere ao ambiente da verdade. Para Heidegger, antes de

qualquer rnanifestacáo científica, instala-se a rnedítacáo ou a instancia do ser.

Para Bachelard, o que importa é a "meditacáo gerúndia" que é a própria

estrutura do conhecimento científico. Bachelard, a nosso ver, quer dizer que a

ciencia nao precisa de um filósofo que sintetize seus resultados, mas quer

demonstrar que a polémica científica é em si mesma filosofia. O "cienciar" é

filosofar com todos os seus predicados inclusive os metafísicos e ontológicos.

Heidegger, por sua vez, vé na Ontologia a única possibilídade de o homem

manter-se na instancia auténtica do ser, no estado meditativo que possibilita ao

ser mostrar-se em seu sentido mais próprío. Nao é o conhecimento que

importa, mas o "querer saber", donde a ciencia é apenas urna rnanifestacáo

como tantas outras.

Entretanto urna sentenca de Bachelard nos conduz ao ponto de

encentro: "Aliás esta retificacáo nos parece ter urna raíz metafísica profunda,

ela permite talvez estabelecer urna reíacáo entre o Espírito e a Realidade".153

153 BACHELARD, G. Essai sur la connaissance approchée. 4.ed. Paris: Vrin, 1973. p.289
--
~;

140

Este é o ponto onde as duas teses se encontram e o que esta pesquisa

procurou desenvolver: primeiro, demonstrar que a nocáo de erro, tanto em

Heidegger, como em Bachelard, procede de um mesmo ponto: o

posicionamento contra o pragmatismo de James; segundo, explicitar a funcáo

do erro reconhecido, seja pela retiñcacáo, seja pela observancia, como

possibilidade de reconhecimento da verdade; terceiro, ressaltar a nocáo de

verdade como processo, como história e como liberdade, já que ambos,

Heidegger e Bachelard, levantam contra o Neokantismo, o Positivismo e o

Pragmatismo a mesma bandeira: a defesa de urna nocáo de verdade como um

processo histórico livre.

--
-,,

Tudo que sobrará de mini

é papel impresso:

Coni um.pouco de ma11l1á

engastado nas sílabas, é cerio, mas

que é isso

eut comparaciio com. 111.eu corpo real?

Ferreira Gullar
-
' 141

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