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Mt 13,53-58; Lc 4,16-30
E partiu dali. Foi para a sua terra, e os discípulos seguiam-no. Chegado o sábado, começou a
ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes enchiam-se de espanto e diziam: «De onde é que
isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como se operam tão grandes milagres
por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e
de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?» E isto parecia-lhes escandaloso. Jesus
disse-lhes: «Um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e em sua casa.»
E não pôde fazer ali milagre algum. Apenas curou alguns enfermos, impondo-lhes as mãos.
Estava admirado com a falta de fé daquela gente. Jesus percorria as aldeias vizinhas a ensinar.
Meditações sobre a vida de Cristo; Opera omnia, t. 12, pp. 530 ss. (trad. Bouchet, Lectionaire,
p. 66)
«De onde é que isto Lhe vem? [...] Não é Ele o carpinteiro, o Filho de Maria?»
O Senhor Jesus, regressando do Templo e de Jerusalém a Nazaré com seus pais, morou com
eles até à idade de trinta anos «e era-lhes submisso» (Lc 2,51). Não se encontra nas Escrituras
o que é que Ele fez durante todo este tempo, o que parece bastante surpreendente. [...] Mas, se
olharmos com atenção, veremos claramente que, não fazendo nada, fazia maravilhas. Cada
um dos Seus gestos revela, com efeito, o Seu mistério. E, como agia com poder, também Se
calou com poder, permanecendo recolhido na obscuridade com poder. O Mestre soberano,
que nos vai ensinar os caminhos da vida, começa desde a Sua juventude a fazer obras de
poder, mas de uma forma surpreendente, incógnita e inconcebível, parecendo aos olhos dos
homens inútil, ignorante, e vivendo no opróbrio. [...]
Ele apreciava cada vez mais esta maneira de viver, a fim de ser julgado por todos como um
ser pequeno e insignificante; isto fora anunciado pelo profeta, que dissera em seu nome: «Eu
sou um verme e não um homem» (Sl 21,7). Vês portanto o que Ele fazia, não fazendo nada.
Tornava-se desprezível [...]; acreditas que isso era pouca coisa? Seguramente, não era Ele que
tinha necessidade disso, mas nós. Não conheço nada mais difícil nem mais grandioso. Parece-
me que chegaram ao mais alto grau aqueles que, de todo o seu coração e sem fingimento, se
possuem suficientemente para não procurarem nada de outrem senão ser desprezados, não
contar para nada e viver num abaixamento extremo. É uma vitória maior que a tomada de uma
cidade.
“Jesus desceu com eles, voltou para Nazaré, e era-lhes submisso” (Lc 2, 51). Atentemos na
sagrada leitura; diz o Evangelista que “desceu com eles, voltou para Nazaré”. Jesus retoma o
seu comportamento habitual, na obediência a seus pais. Talvez seja misticamente que este
“desce” é referido; seja como for, é verdade que, devolvido às mãos deles até ao baptismo, ou
seja, até cerca dos trinta anos, nunca mais deixou de lhes obedecer. […] Então é apenas isso
que faz Jesus Cristo, que faz o Filho de Deus? Limita-se a obedecer a duas das suas criaturas.
E em que lhes obedece? Nos exercícios mais básicos, na prática de uma arte manual.
Onde estão os que se queixam, os que murmuram, porque o que fazem está aquém das suas
capacidades, ou melhor, do seu orgulho? Venham a casa de José e de Maria, e vejam trabalhar
Jesus Cristo. […] Jesus disse de Si mesmo que “veio para servir” (Mt 20, 28). […] O certo é
que trabalhava na oficina de seu pai. […] Mas, à excepção daquilo que está escrito acerca da
sua educação por São José, nunca mais se ouve falar deste santo homem. É por isso que, no
começo do ministério de Jesus Cristo, quando ele vem pregar à sua pátria, se diz d’Ele: “Não
é este o carpinteiro filho de Maria?” – era aquele que todos sabiam […] trabalhar na oficina,
sustentando assim a mãe viúva, vendendo o produto desse ofício, que lhes permitia subsistir a
ambos. […]
Jesus, filho de carpinteiro, Ele próprio carpinteiro, conhecido por esse exercício, sem que se
fale de outro emprego, de outra acção. […] Consolem-se e alegrem-se aqueles que vivem de
um ofício manual: Jesus Cristo é dos seus; aprendam a louvar a Deus, a cantar salmos e
cânticos sagrados trabalhando; Deus abençoará o seu trabalho; diante d’Ele, serão outros
Cristos.
Pregador do Papa adverte ante tentação de não reconhecer Jesus que passa
Comentário do Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap., sobre a liturgia do próximo domingo
***
Quando já se havia tornado popular e famoso por seus milagres e seu ensinamento, Jesus
voltou um dia ao seu lugar de origem, Nazaré e, como de costume, se pôs a ensinar na
sinagoga. Mas dessa vez não suscitou nenhum entusiasmo, nenhum hosana! Mais do que
escutar o que dizia e julgá-lo segundo isso, as pessoas se puseram a fazer considerações
alheias: «De onde tirou esta sabedoria? Não estudou; nós o conhecemos bem; é o carpinteiro,
o filho de Maria!». «E se escandalizavam dEle», ou seja, encontravam um obstáculo para
acreditar nEle no fato de que o conheciam bem.
Jesus comentou amargamente: «Um profeta só em sua pátria, entre seus parentes e em sua
casa carece de prestígio». Esta frase se converteu em provérbio na forma abreviada: Nemo
propheta in pátria, ninguém é profeta em sua terra. Mas isso é só uma curiosidade. A
passagem evangélica nos lança também uma advertência implícita que podemos resumir
assim: cuidado para não cometer o mesmo erro que cometeram os nazarenos! Em certo
sentido, Jesus volta a sua pátria cada vez que seu Evangelho é anunciado nos países que
foram, em um tempo, o berço do cristianismo.
Nossa Itália, e em geral a Europa, são, para o cristianismo, o que Nazaré era para Jesus: «o
lugar onde foi criado» (o cristianismo nasceu na Ásia, mas cresceu na Europa, um pouco
como Jesus havia nascido em Belém, mas foi criado em Nazaré!). Hoje correm o mesmo risco
que os nazarenos: não reconhecer Jesus: A carta constitucional da nova Europa unida não é o
único lugar do qual Ele é atualmente «expulso»...
O episódio do Evangelho nos ensina algo importante. Jesus nos deixa livres, propõe, não
impõe seus dons. Aquele dia, ante a rejeição de seus conterrâneos, Jesus não se abandonou a
ameaças e invectivas. Não disse, indignado, como se conta que fez Publio Escipión, o
africano, deixando Roma: «Ingrata pátria, não terás meus ossos!». Simplesmente foi para
outro lugar. Uma vez não foi recebido em certo povoado; os discípulos lhe propuseram fazer
baixar fogo do céu, mas Jesus se virou e os repreendeu (Lc 9, 54).
Assim também hoje. «Deus é tímido». Tem muito mais respeito pela nossa liberdade do que
temos nós mesmos uns dos outros. Isso cria uma grande responsabilidade. Santo Agostinho
dizia: «Tenho medo de Jesus que passa» (Timeo Jesum transeuntem). Poderia, com efeito,
passar sem que eu percebesse, passar sem que eu esteja disposto a acolhê-lo.
Sua passagem é sempre uma passagem de graça. Marcos disse sinteticamente que, tendo
chegado a Nazaré no sábado, Jesus «se pôs a ensinar na sinagoga». Mas o Evangelho de
Lucas especifica também o que ensinou e o que disse naquele sábado. Disse que havia vindo
«para anunciar aos pobres a Boa Nova, para proclamar a liberdade aos cativos e a vista aos
cegos; para dar a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor» (Lucas 4,
18-19).
O que Jesus proclama na sinagoga de Nazaré era, portanto, o primeiro jubileu cristão da
história, o primeiro grande «ano de graça», do qual todos os jubileus e «anos santos» são uma
comemoração.
ZP06070720
"Creio em Jesus Cristo, Filho unigénito de Deus, nosso Senhor" (Credo). A fé cristã
reconhece em Jesus de Nazaré o homem exemplar - é essa, parece, a melhor forma de
compreender a ideia de S. Paulo ao dizer que Cristo é "o último Adão" (1 Co 15,45). Mas é
precisamente como homem exemplar, como homem tipo, que Jesus transcende o limite do
humano; e é precisamente por isso que ele é verdadeiramente exemplar. Porque o homem é
verdadeiramente ele mesmo na medida em que está perto de um outro; só se encontra a si
mesmo abandonando-se; só se encontra a si mesmo através de alguém, de um outro... E, em
última análise, o homem está orientado em direcção a... alguém que é verdadeiramente outro,
a Deus... Ele é totalmente ele mesmo quando deixa de confiar só em si, de se virar sobre si
mesmo, de se afirmar a si mesmo, isto é, quando é total abertura a Deus.
Mas, para que o homem se torne plenamente homem, foi preciso que Deus se tornasse
homem. Só então... a passagem do "animal" para o "espiritual" (1 Co 15,44) é definitivamente
atravessada; só então o ser de barro, elevando o seu olhar para além de si mesmo, pode dizer
"Tu" a Deus. É esta abertura ao infinito que faz o homem... E esse é o homem pleno, o
verdadeiro Adão, o mais ilimitado, o que não só entra em contato com o Infinito mas forma
um com ele: Jesus Cristo...
Chamou os Doze, começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os espíritos
malignos. Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado: nem pão,
nem alforge, nem dinheiro no cinto; que fossem calçados com sandálias e não levassem duas
túnicas. E disse-lhes também: «Em qualquer casa em que entrardes, ficai nela até partirdes
dali. E se não fordes recebidos numa localidade, se os seus habitantes não vos ouvirem, ao
sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles.» Eles partiram e pregavam
o arrependimento, expulsavam numerosos demónios, ungiam com óleo muitos doentes e
curavam-nos.
«Ninguém pode pôr outro fundamento diferente do que foi posto, isto é, Jesus Cristo» (1Cor
3, 11), Ele «a Quem o Pai santificou e enviou ao mundo» (Jo 10, 36), «esplendor da Sua
glória e imagem da Sua substância» (Heb 1, 3), verdadeiro Deus e verdadeiro homem, sem
Quem ninguém pode conhecer perfeitamente a Deus, porque «ninguém conhece o Pai senão o
Filho e aquele a quem o Filho O quiser revelar» (Mt 11, 27). Donde se segue que «reunir sob
a chefia de Cristo todas as coisas» (Ef 1, 10) e fazer regressar os homens à obediência a Deus
são uma e a mesma coisa. É por isso que o objectivo para o qual devem convergir todos os
nossos esforços consiste em fazer regressar o género humano à soberania de Cristo. Desse
modo, o homem será, por isso mesmo, reconduzido a Deus: não a um Deus inerte e
despreocupado das realidades humanas, como imaginaram certos filósofos, mas a um Deus
vivo e verdadeiro, em três Pessoas, na unidade da Sua natureza, Criador do mundo, que
estende a todas as coisas a Sua providência infinita, justo doador da lei, que julgará a injustiça
e garantirá à virtude a sua recompensa.
Ora, onde se encontra a via que nos dá acesso a Jesus Cristo? Está diante dos nossos olhos: é a
Igreja. Com razão nos diz São João Crisóstomo: «A Igreja é a tua esperança, a Igreja é a tua
salvação, a Igreja é o teu refúgio.» Foi para isso que Cristo a estabeleceu, depois de a ter
adquirido pelo preço do Seu sangue. Foi para isso que lhe confiou a Sua doutrina e os
preceitos da Sua Lei, prodigando-lhe ao mesmo tempo os tesouros da Sua graça, para a
santificação e a salvação dos homens. Vede pois, veneráveis irmãos, a obra que nos foi
confiada [...]: nada mais pretender do que a todos formar em Jesus Cristo. [...] Trata-se da
mesma missão que Paulo atestava ter recebido: «Filhinhos meus, por quem de novo sinto as
dores de parto, até que Cristo seja formado em vós» (Gal 4, 19). Ora, como havemos de
cumprir semelhante dever, se não estivermos primeiramente «revestidos de Cristo» (Gal 3,
27)? E revestidos a ponto de podermos dizer: «Para mim, o viver é Cristo» (Fil 1, 21).
"Começou a enviá-los"
Ser apóstolo por que meio? Por aqueles que o Senhor põe à sua disposição: os padres têm os
seus superiores que lhes dizem o que devem fazer. Os leigos devem ser apóstolos para com
todos aqueles a quem podem chegar: os seus próximos e os seus amigos, mas não só eles; a
caridade nada tem de estreita, ela abraça todos aqueles que abraça o Coração de Jesus.
Por que meio? Pelos melhores, tendo em conta aqueles a quem se dirigem: para com todos
aqueles com quem estão relacionados, sem excepção, pela bondade, a ternura, o afecto
fraterno, o exemplo de virtude, pela humildade e pela doçura sempre atraentes e tão cristãs.
Com alguns, sem lhes dizer nunca uma palavra de Deus nem de religião, tendo paciência
como Deus tem paciência, sendo bom como Deus é bom, sendo um irmão terno e rezando.
Com outros, falando de Deus na medida que conseguem atingir; A partir do momento em que
chegam à ideia de procurar a verdade pelo estudo da religião, pondo-os em contacto com um
padre muito bem escolhido e capaz de lhes fazer bem. Sobretudo vendo em todo o humano
um irmão.
(Mc 6,7)
‘Jesus chamou os doze’. Este gesto sela o mais profundo vínculo do discípulo com o seu
Mestre e Senhor. Só Deus pode chamar. Chamar é ato próprio do amor de Deus. Um ato de
amor que se constitui em fonte sustentadora de toda a vida. O amor de Deus se revela, pois,
no chamamento. A iniciativa nasce do coração de Deus e se derrama no coração de todo
aquele que é chamado. Na verdade, o gesto amoroso de Deus ao chamar configura o núcleo
mais profundo da consciência do discípulo. O discípulo não é por si. O que ele é nasce e se
sustenta neste gesto amoroso de chamamento. Esta luz é que mantém acesa a consciência do
discípulo em relação àquele que o chama. Só na medida em que esta consciência de chamado
preside o dia a dia do discípulo é que ele consegue força e sabedoria para construir sua
conduta e vivê-la com fidelidade. A consciência de ser chamado é a consciência de ser amado
e de amar. A quem se ama, de verdade, o amor experimentado não permite esquecimento em
momento algum. É uma força de presença que alimenta o vínculo e todo gesto, e cada
momento se reporta àquele que se ama. Compreende-se assim que o gesto amoroso de Deus
chamando é a base da consciência do discípulo. Uma consciência que se desdobra na
compreensão da missão que ele recebe d’Aquele que o chama e o envia. E a vida se torna, em
tudo e em cada circunstância, um ser e um fazer que expressa esta intimidade profunda com
força de gerar a novidade da vida e o poder de transformação das suas condições. A força vem
d’Aquele que chama. Aquele que é chamado ganha d’Ele a força de sua ação.
A Missão
A missão não é uma simples tarefa. Uma ocupação qualquer. A missão é conseqüência desta
intimidade estabelecida e cultivada do coração daquele que chama ao coração daqueles que
são chamados. Na verdade, a missão é a conseqüência de um modo de ser gerando um jeito de
fazer para concretizar o modo de ser amoroso e redentor de Deus que chama. Compreende-se,
então, como é possível que o discípulo receba do coração do seu Mestre o seu mesmo poder
de ação. Esta possibilidade só se verifica na medida em que, profundamente, o discípulo, no
seu dia a dia, cultiva a consciência de ser chamado diante d’Aquele que o chama. Um cultivo
de amor e de pertença que alimenta a competência de atuar em nome d’Aquele que o chama e
o envia. Cada gesto, em todas as circunstâncias, é comprovadamente a continuação da
presença amorosa e redentora do Mestre que chama e envia. Não há outra dinâmica para
explicar a possibilidade de o discípulo ser o Mestre continuado nas circunstâncias da vida. E o
discípulo sabe que só esta intimidade nele constitui e alimenta o poder de agir em nome do
seu Senhor e Mestre, sem pretensões, na alegria de saber a fonte verdadeira que o torna, no
coração do mundo, na condição de discípulo, presença do seu Senhor.
Esta intimidade profunda do discípulo com o seu Mestre e Senhor gera um jeito novo de ser.
Um jeito novo de ser que se renova cada dia sob o impulso da inesgotável fonte de amor que é
o coração do Mestre, encharcando o coração do discípulo. O discípulo não simplesmente faz o
que o Mestre recomenda. Não é um repetidor de coisas. Ele é elevado, pela força do amor-
intimidade, à condição de presença do seu próprio Senhor, no mundo, realizando, mesmo
pelos limites de sua condição, a grandeza do que é próprio do Mestre que o chama e o envia.
Compreende-se que a conseqüência é um novo jeito de ser, alimentando a ação do discípulo e
criando as condições próprias de sua ação para realizar tudo aquilo que é próprio do seu
Mestre e Senhor. E o discípulo se torna, sempre mais, a própria presença do seu Senhor, com
a força de ação que vem do seu coração.
E Jesus recomendou-lhes
A eficácia da missão se liga, pois, ao cultivo permanente da intimidade com Aquele que
chama enquanto núcleo central e ativador da consciência do discípulo. Os desdobramentos
conseqüentes configuram o jeito de ser. Um jeito de ser recomendado pelo Mestre, com força
de fecundação, para a ação missionária que o discípulo é enviado a realizar. Ao enviá-los dois
a dois o Mestre marca no horizonte a dinâmica da partilha e o sentido da missão que é dada a
todos, cultivada no coração e na singularidade de cada um. Uma missão dada a todos para ser
realizada no vínculo que cada um há de estabelecer com cada outro alimentado por este
vínculo o que o Senhor estabelece com cada um pelo gesto amoroso e único do chamamento.
O sustento do vínculo amoroso e fraterno há de alimentar e impulsionar a dinâmica própria do
exercício da missão que supõe daquele que é chamado e enviado a coragem e a disposição de
estar sempre indo ao encontro para realizar, em nome do seu Senhor, a sua ação redentora.
Indo e vindo, o discípulo compreende e realiza a obra do seu Mestre de estar presente e
intervindo no mundo para dele expulsar os demônios. Isto é, estabelecer a dinâmica do amor
de Deus. Um estabelecimento do amor alimentado pelo amor d’Aquele que chama e
testemunha num jeito de ser marcado pela simplicidade, proximidade, desapego, e audácia de
não se deixar corromper, na liberdade que nasce da compreensão do amor. E o discípulo é
Jesus Mestre e Senhor na vida do mundo.
***
«Jesus chamou os doze e começou a enviá-los dois a dois, dando-lhes poder sobre os espíritos
impuros. Recomendou-lhes que não levassem nada para o caminho, a não ser um cajado; nem
pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura. Mandou que andassem de sandálias e que não
levassem duas túnicas.»
Os estudiosos da Bíblia nos explicam que, como de costume, o evangelista Marcos, ao referir
os fatos e as palavras de Cristo, leva em conta a situação e as necessidades da Igreja no
momento ao qual escreve o Evangelho, isto é, depois da ressurreição de Cristo. Mas o fato
central e as instruções que Cristo dá aos apóstolos nesta passagem se referem ao Jesus terreno.
É o início e são as provas gerais da missão apostólica. Até então, tratava-se de uma missão
limitada aos povos vizinhos, isto é, aos compatriotas judeus. Após a Páscoa, esta missão será
estendida ao mundo inteiro, também aos pagãos: «Ide por todo o mundo e pregai a Boa Nova
a toda a criação» [Mc 16, 15. Ndt].
Este fato tem uma importância decisiva para entender a vida e a missão de Cristo. Ele não
veio para realizar uma proeza pessoal; não quis ser um meteorito que atravessa o céu para
depois desaparecer no nada. Não veio, em outras palavras, só para aqueles poucos milhares de
pessoas que tiveram a possibilidade de vê-lo e escutá-lo em pessoa durante sua vida. Pensou
que sua missão tinha que continuar, ser permanente, de forma que cada pessoa, em todo
tempo e lugar da história, tivesse a possibilidade de escutar a Boa Nova do amor de Deus e ser
salvo.
Por isso, escolheu colaboradores e começou a enviá-los a pregar o Reino e curar os doentes.
Fez com seus discípulos o que faz hoje com seus seminaristas um bom reitor de seminário,
que, nos fins de semana, envia seus jovens às paróquias, para que comecem a ter experiência
pastoral, ou os manda a instituições caritativas para que ajudem a todos, que se ocupem dos
pobres, dos extracomunitários, para que se preparem para a que um dia será sua missão.
O convite de Jesus «Ide!» se dirige em primeiro lugar aos apóstolos, e hoje a seus sucessores:
o Papa, os bispos, os sacerdotes. Mas não só a eles. Estes devem ser os guias, os animadores
dos outros, na missão comum. Pensar de outra forma seria como dizer que se pode fazer uma
guerra só com os generais e os capitães, sem soldados; ou que se pode formar uma equipe de
futebol só com um treinador e um árbitro, sem jogadores.
Após esse envio dos apóstolos, Jesus -- lemos no Evangelho de Lucas -- «designou outros
setenta e dois, e os enviou de dois em dois diante de si, a todas as cidades e lugares aonde ele
havia de ir» (Lc 10, 1). Esses setenta e dois discípulos eram provavelmente todos os que Ele
havia reunido até esse momento, ou ao menos todos os que o seguiam com certa continuidade.
Jesus, portanto, envia todos seus discípulos, também os leigos.
O Evangelho emprega só uma palavra para dizer o que deviam pregar os apóstolos ao povo
(«que se convertessem»), enquanto que descreve longamente como deviam pregar. Com
relação a isso, um ensinamento importante está no fato de que Jesus os envia de dois em dois.
Isso de ir de dois em dois era habitual naqueles tempos, mas com Jesus assume um
significativo novo, já não só prático. Jesus os envia de dois em dois -- explicava São Gregório
Magno -- para inculcar a caridade, porque com menos de duas pessoas não pode haver
caridade. O primeiro testemunho a dar de Jesus é o do amor recíproco: «Nisso conhecerão
todos que sois meus discípulo: se vos amardes uns aos outros» (João 13, 35).
É preciso estar atentos para não interpretar mal a frase de Jesus sobre ir sacudindo também o
pó dos pés quando não são recebidos. Este, na intenção de Cristo, devia ser um testemunho
«para» eles, não contra eles. Devia servir para fazê-los entender que os missionários não
haviam ido por interesse, para tirar-lhes dinheiro ou outras coisas; que, mais ainda, não
queriam levar nem sequer seu pó. Haviam ido por sua salvação e, rejeitando-a, eles privavam
a si mesmos do maior bem do mundo.
É algo que também é preciso afirmar hoje. A Igreja não anuncia o Evangelho para aumentar
seu poder ou o número de seus membros. Se atuasse assim, trairia primeiramente o
Evangelho. Ela o faz porque quer compartilhar o dom recebido, porque recebeu de Cristo o
mandato: «de graça o recebestes, de graça deveis dar».
ZP06071401
O nosso Senhor e Salvador, irmãos caríssimos, instrui-nos quer pelas suas palavras, quer pelas
suas acções. As suas acções são, elas mesmas, mandamentos porque, quando faz alguma coisa
sem nada dizer, ele mostra-nos como devemos nós agir. Eis, pois, que envia os seus discípulos
a pregar, dois a dois, porque os mandamentos da caridade são dois: o amor a Deus e ao
próximo. O Senhor envia os seus discípulos a pregar dois a dois para nos sugerir, sem o dizer,
que quem não tem caridade para com o outro não deve de forma alguma empreender o
ministério da pregação.
Fica muito claro que "os envia dois a dois à sua frente a todas as aldeias e localidades em que
ele mesmo deveria ir" (Lc 10,1). Com efeito, o Senhor vem após os seus pregadores, porque a
pregação é um preâmbulo; o Senhor vem habitar a nossa alma quando as palavras de
exortação vieram à frente e prepararam a alma para acolher a verdade. É por isso que Isaías
diz aos pregadores: "Preparai o cominho do Senhor, aplanai as veredas para o nosso Deus"
(40,3). E o salmista diz-lhes também: "Abri caminho para aquele que se eleva ao pôr-do-
sol (Sl 67,5 vulg). O Senhor ergue-se ao pôr-do-sol porque, tendo-se deitado por ocasião da
sua Paixão, manifestou-se com maior glória na sua Ressurreição. Ergueu-se ao pôr-do-sol
porque, ressuscitando, esmagou aos pés a morte que tinha sofrido. Abrimos, portanto, o
caminho àquele que se eleva ao pôr-do-sol quando pregamos a sua glória às vossas almas para
que, vindo a seguir, ele as ilumine pela presença do seu amor.
Para viverdes uma vida de homens apostólicos, precisais de uma grande abnegação de vós
mesmos... O que é preciso é conservar a alma em paz e alegria, no meio das privações
contínuas e fortemente sentidas, não só privações corporais que são bastante fáceis de
suportar, mas pprivações espirituais ou morais. Estas são bem mais penosas, entristecem,
perturbam, desencorajam uma alma fraca e entregue a si mesma; mas dão coragem,
serenidade e vigor renovado a uma alma forte, através de uma sólida abnegação de si mesma e
de uma ligação perfeita a Deus só...
Se soubésseis qual é o valor da paciência entre as virtudes apostólicas, aplicar-vos-íeis com
todas as forças da vossa alma até a obter. Se sabeis agora esperar com paciência, podeis ficar
certos do sucesso, de um sucesso sólido e estável... As ervas que crescem depressa atingem
pouco desenvolvimento e são rapidamente destruidas. As árvores, cujo crescimento é lento,
tornam-se grandes e poderosas e duram séculos. Se alguma vez vos acon tecer, numa missão,
ter um sucesso rápido e fácil, tremei em relação a essa missão; pelo contrário, quando ela
exige tempo e apresenta dificuldades, podeis augurar-lhe coisas boas, se sentirdes em vós a
força e a preseverança de uma santa paciência... Se tiverdes paciência, podeis ficar certos de
adquirir a prudência, a sabedoria de Deus para a vossa conduta e para os vossos
empreendimentos.
O rei Herodes ouviu falar de Jesus, pois o seu nome se tornara célebre; e dizia-se: «Este é
João Baptista, que ressuscitou de entre os mortos e, por isso, manifesta-se nele o poder de
fazer milagres»; outros diziam: «É Elias»; outros afirmavam: «É um profeta como um dos
outros profetas.» Mas Herodes, ouvindo isto, dizia: «É João, a quem eu degolei, que
ressuscitou.» Na verdade, tinha sido Herodes quem mandara prender João e pô-lo a ferros na
prisão, por causa de Herodíade, mulher de Filipe, seu irmão, que ele desposara. Porque João
dizia a Herodes: «Não te é lícito ter contigo a mulher do teu irmão.» Herodíade tinha-lhe
rancor e queria dar-lhe a morte, mas não podia, porque Herodes temia João e, sabendo que era
homem justo e santo, protegia-o; quando o ouvia, ficava muito perplexo, mas escutava-o com
agrado. Mas chegou o dia oportuno, quando Herodes, pelo seu aniversário, ofereceu um
banquete aos grandes da corte, aos oficiais e aos principais da Galileia. Tendo entrado e
dançado, a filha de Herodíade agradou a Herodes e aos convidados. O rei disse à jovem:
«Pede-me o que quiseres e eu to darei.» E acrescentou, jurando: «Dar-te-ei tudo o que me
pedires, nem que seja metade do meu reino.» Ela saiu e perguntou à mãe: «Que hei-de pedir?»
A mãe respondeu: «A cabeça de João Baptista.» Voltando a entrar apressadamente, fez o seu
pedido ao rei, dizendo: «Quero que me dês imediatamente, num prato, a cabeça de João
Baptista.» O rei ficou desolado; mas, por causa do juramento e dos convidados, não quis
recusar. Sem demora, mandou um guarda com a ordem de trazer a cabeça de João. O guarda
foi e decapitou-o na prisão; depois, trouxe a cabeça num prato e entregou-a à jovem, que a
deu à mãe. Tendo conhecimento disto, os discípulos de João foram buscar o seu corpo e
depositaram-no num sepulcro.
Admiremos João Baptista sobretudo por causa do seguinte testemunho: “Entre os nascidos de
mulher, não há profeta maior do que João” (Lc 7, 28); ele teve o mérito de se elevar a tão
grande fama de virtude, que muitos pensavam que era o Cristo 8Lc 3, 15). Mas há outra coisa
ainda mais admirável: o tetrarca Herodes, que detinha o poder real, podia matá-lo quando
quisesse. Ora, ele tinha cometido uma acção injusta e contrária à lei de Moisés, tomando para
si a mulher de seu irmão. João, que não tinha medo dele nem fazia acepção de pessoas, que
não temia o poder real nem receava a morte, mas tinha consciência de todos estes perigos,
repreendeu Herodes com a liberdade dos profetas, censurando-lhe o casamento em que se
envolvera. Preso por semelhante audácia, não o preocupa a morte nem um julgamento de
resultado incerto; apesar das correntes que o sujeitam, os seus pensamentos vão para o Cristo
que tinha anunciado.
Não podendo ir pessoalmente ter com Ele, manda os seus discípulos perguntar-lhe: “És Tu o
que está para vir ou devemos esperar outro?” (Lc 7, 19). Reparai bem como até na prisão João
ensinava. Até aqui tinha discípulos; até na prisão João cumpria o seu dever de mestre,
instruindo os seus discípulos com conversas sobre Deus. Nestas circunstâncias, estava
colocado o problema de Jesus, pelo que João Lhe envia alguns dos seus discípulos.
Não há qualquer dúvida de que São João Baptista sofreu a prisão pelo nosso Redentor, que
precedeu pelo seu testemunho, de que foi por Ele que deu a vida. O seu perseguidor não lhe
pediu para negar Cristo, mas para calar a verdade, Contudo, foi por Cristo que morreu. Com
efeito, Cristo disse acerca d'Ele mesmo: «Eu sou a verdade» (Jo 14,6). Se pela verdade
derramou o seu sangue, então foi por Cristo. Nascendo, João testemunhou que Cristo iria
nascer; pregando, testemunhou que Cristo iria pregar; baptizando, que Ele iria baptizar.
Sofrendo primeiro a sua Paixão, significou que o próprio Cristo a sofreria [...]
Este homem tão grande chegou, então, ao fim da sua vida pelo derramamento do seu sangue,
depois de um longo e penoso cativeiro. Ele, que anunciou a boa nova da liberdade de uma paz
superior, foi lançado na prisão pelos ímpios. Foi fechado na obscuridade de um cárcere, ele
que veio para dar testemunho da luz [...]. Pelo seu próprio sangue é baptizado aquele a quem
foi dado baptizar o Redentor do mundo, ouvir a voz do Pai dirigindo-se a Cristo, e ver descer
sobre Ele a graça do Espírito Santo.
O apóstolo Paulo efectivamente disse-o: «Porque a vós vos é dado por Cristo, não somente
que creais n'Ele, mas ainda que por Ele padeçais» (Fil 1,29). E, se disse que sofrer por Cristo
é um dom dos Seus eleitos, é porque, como diz noutra parte: «Tenho como coisa certa que os
sofrimentos do tempo presente nada são em comparação com a glória que há-de revelar-se em
nós» (Rom 8,18).
A morte de Cristo está na origem de uma multidão incontável de crentes. Pelo poder desse
mesmo Jesus e graças à sua bondade, a morte preciosa dos seus mártires e dos seus santos fez
nascer uma grande multidão de cristãos. Com efeito, nunca a religião cristã pôde ser
aniquilada pela perseguição dos tiranos nem pelo assassinato injustificácel de inocentes: pelo
contrário, sempre tirou disso grande fonte de crescimento.
Temos um exemplo em S. João, que baptizou Cristo e cujo santo martírio hoje festejamos.
Herodes, esse rei infiel, quis, por fidelidade ao seu juramento, apagar completamente da
memória dos homens a lembrança de João. Ora não só João não foi aniquilado como milhares
de homens, inflamados pelo seu exemplo, acolheram a morte com alegria por amor da justiça
e da verdade... Que cristão, digno desse nome, não venera hoje João, aquele que baptizou o
Senhor? Em toda a parte do mundo, os cristãos celebram a sua memória, todas as gerações o
proclamam bem-aventurado e as sua virtudes enchem a Igreja de perfume. João não viveu só
para si e não morreu só para si.
Concílio Vaticano II
Declaração sobre a liberdade religiosa, 11
Testemunhas da verdade
Cristo deu testemunho da verdade, mas não a quis impor pela força aos seus
contraditores. O seu reino não se defende pela violência mas implanta-se pelo
testemunho e pela audição da verdade; e cresce pelo amor com que Cristo, elevado
na cruz, a Si atrai todos os homens.
João Paulo II
Homilia por ocasião da Comemoração ecuménica das Testemunhas da Fé do século XX
Os Apóstolos reuniram-se a Jesus e contaram-lhe tudo o que tinham feito e ensinado. Disse-
lhes, então: «Vinde, retiremo-nos para um lugar deserto e descansai um pouco.» Porque eram
tantos os que iam e vinham, que nem tinham tempo para comer. Foram, pois, no barco, para
um lugar isolado, sem mais ninguém. Ao vê-los afastar, muitos perceberam para onde iam; e
de todas as cidades acorreram, a pé, àquele lugar, e chegaram primeiro que eles. Ao
desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ove-
lhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas.
«Acorreram de todas as cidades e chegaram antes deles. Ao desembarcar, Jesus viu uma
grande multidão»
O Senhor perdoou-me uma quantidade de pecados, e deu-me a conhecer, pelo Espírito Santo,
o quanto ama os homens. O céu inteiro se maravilha da encarnação do Senhor: como Ele, o
Senhor Supremo, veio salvar-nos, a nós pecadores, e nos deu o repouso eterno, pelo seu
sofrimento. A minha alma não quer pensar em nenhuma realidade terrestre, ela é atraída para
onde está o Senhor. Doces para o coração são as palavras do Senhor quando o Espírito Santo
concede à alma a capacidade de as entender.
Quando o Senhor vivia na terra, seguia-o uma grande multidão; durante vários dias esses
homens não conseguiam afastar-se dEle, mas esquecendo os alimentos da terra, ficavam
sedentos de ouvir as Suas doces palavras. A alma ama o Senhor, e aflige-a tudo o que a
impede de pensar em Deus. E se, já
na terra, a alma saboreia tão intensamente a doçura do Espírito Santo, quanto maior ainda não
será a sua satisfação lá no alto!
Ó Senhor, com que amor tão grande amaste a Tua criatura! A minha alma não p ode esquecer
o Teu olhar tranquilo e doce.
O amor divino é a flor e a misericórdia é o fruto. Que a alma que duvida leia estas
considerações sobre a misericórdia e tornar-se-á confiante:
"Encheu-se de compaixão para com eles, porque eram como ovelhas sem pastor"
"Onde levas o teu rebanho a pastar", ó bom pastor que o carregas todo sobre os teus ombros?
Porque toda a raça humana é uma única ovelha que tu tomaste aos ombros. Mostra-me o lugar
da tua pastagem, faz-me conhecer as águas do repouso, leva-me para a erva suculenta, chama-
me pelo nome, para que eu oiça a tua voz, eu que sou tua ovelha, que a tua voz seja para mim
a vida eterna.
Sim, diz-mo, "tu a quem o meu coração ama". É assim que te chamo porque o teu Nome está
acima de todo o nome, inexprimível e inacessível a toda a criatura dotada de razão. Mas este
nome, testemunho dos meus sentimentos para contigo, exprime a tua bondade. Como não te
amaria eu, a ti que me amaste quando eu era negra, a ponto de dares a tua vida pelas ovelhas
de quem és o pastor? Não é possível imaginar maior amor do que teres dado a vida pela
minha salvação.
Ensina-me então "onde levas o teu rebanho a pastar", que eu possa encontrar a pastagem da
salvação, saciar-me com o alimento celeste que todo o homem deve comer se quiser entrar na
vida, correr para ti que és a fonte e beber a longos tragos a água divina que fazes brotar para
os que têm sede. Essa água corre do teu lado desde que a lança aí abriu uma chaga e todo
aquele que a prova torna-se uma fonte de água brotando para a vida eterna.
***
(Mc 6,34)
Esta anotação do evangelista, ‘Jesus teve compaixão’, rasga e marca com outro tom o
horizonte de egoísmo que sempre emoldura toda mesquinhez e a comum indiferença diante
das dores e dos sofrimentos dos outros. Não é difícil ver tantas coisas, particularmente,
aquelas que alimentam a perversidade ou ocasionam comentários que dão asas aos
pensamentos que destroem. É preciso ver. Há muito para se ver. Só quem vê, de verdade, é
capaz de ter compaixão. Deus vê de verdade. Deus vê tudo. Por isso, Ele tem compaixão. Em
Deus, o ver é uma propriedade que o define na sua mais profunda significação. No coração
humano, ver de verdade é um dom. Um dom de grande importância. Sua grande importância
deve gerar no coração do discípulo o desejo de pedir e receber o dom de ver de verdade,
fazendo nascer no seu peito um coração cheio de misericórdia e compaixão. Um sentimento
que é mais do que um simples sentimento. Na verdade, é uma experiência de intimidade e
semelhança com o coração do próprio Deus. E tudo muda quando se tem compaixão. O
coração compassivo é autenticamente humano e se torna, por isso, fonte de grandes alegrias.
É preciso ver
Na medida em que se em que se consegue ver as dores e sofrimentos dos outros é que se
conquista um coração novo. Esta capacidade de ver e sentir o outro gera o coração novo,
porque provoca a generosidade que enche a vida de sentido pela medida da oferta de si para o
bem de qualquer um outro, considerando a sua necessidade. Necessidade atendida como
projeto de reconstrução e edificação da vida. Não se pode, pois, dispensar olhos que se tornam
capazes de ver os mais pobres, aqueles que estão mais distantes e esquecidos pelos interesses
outros de tantos outros. Só um coração íntimo de Deus é capaz de ver em profundidade, com a
propriedade do ver de Deus. Esta propriedade gera no coração humano os sentimentos de
profundidade divina. O divino sentir de Deus se manifesta no fundo do coração humano. O
resultado é uma grande e verdadeira revolução. Uma revolução de amor derramado nos
corações precisados, garantindo-lhes o cuidado do pastor, a certeza de sua recomposição e
conquista da vida.
Ele teve compaixão
A compaixão de Deus nasce das vísceras do seu coração. O Mestre, muitas vezes, se deixou
tocar no fundo do coração. Um toque de compaixão. Uma compaixão nascida desta
capacidade, dom de Deus, de ver em profundidade a dor e a necessidade do outro. É uma
experiência que toca o mais escondido dos afetos, produzindo mudanças, criando as
condições da oferta de si. Um toque nos afetos humanos que inclui a capacidade de indignar-
se na busca e na promoção do bem. Ver em profundidade gera compaixão. A compaixão cura
toda impassibilidade tão comum nos corações interessados em si mesmos, tendentes a eleger
o seu próprio bem como prioridade mais importante. A compaixão é, também, um misto de
ternura com indignação, criando as condições e os mecanismos para desmascarar aqueles que
se põem no lugar de Deus, e não raramente produzem o contrário de sua presença. Em lugar
da vida a morte; em lugar da oferta a manipulação interesseira; em lugar da generosidade o
interesse pelas próprias coisas.
O segredo da missão
ZP06072315
O Diálogo
«Partiu os pães... Dividiu também os dois peixes por todos. E todos ficaram saciados»
[Jesus dizia a Santa Catarina:] É toda a Essência divina o que recebeis neste sacramento, sob
essa brancura do pão. Tal como o sol é indivisível, assim Deus se encontra todo inteiro e o
homem todo inteiro na brancura da hóstia. Ainda que dividíssemos a hóstia em milhares de
migalhas, se isso fosse possível, em cada uma delas eu estou ainda, Deus inteiro, homem
inteiro, tal como te disse...
Suponhamos que haja várias pessoas a virem buscar luz com círios. Uma traz um círio de cem
gramas, outra de duzentos e uma terceira de trezentos gramas; uma outra traz um círio de
meio quilo e outra de mais ainda. Todas se aproximam da luz e cada uma acende o seu círio.
Em cada círio aceso, seja qual for o seu volume, vê-se agora a luz toda inteira, com a sua cor,
o seu calor e o seu brilho... Assim acontece aos que se aproximam deste sacramento. Cada um
traz o seu círio, quer dizer, o santo desejo com que recebe e toma o sacramento. O círio está
apagado e acende-se quando se recebe este sacramento. Digo que está apagado porque por vós
mesmos não sois nada. É verdade que vos dei a matéria com que podeis receber e conservar
em vós esta luz. Essa matéria é o amor, porque vos criei por amor; é por isso que não podeis
viver sem amor».
***
O tema é de grande importância e atualidade. O ritmo de vida adquiriu uma velocidade que
supera nossa capacidade de adaptação. A cena de Charlot concentrado na linha de montagem
em Tempos Modernos é a imagem exata desta situação. Perde-se, desta forma, a capacidade
de separação crítica que permite exercer um domínio sobre o fluir, freqüentemente caótico e
desordenado, das circunstâncias e das experiências diárias.
Jesus, no Evangelho, jamais dá a impressão de estar agitado pela pressa. Às vezes, ele até
perde o tempo: todos o buscam e Ele não se deixa encontrar, absorto como está na oração. Às
vezes, como em nossa passagem evangélica, Ele inclusive convida seus discípulos a perderem
tempo com Ele: «Vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco». Ele
recomenda freqüentemente que não se agitem. Também o nosso físico, quanto bem recebe
através de tais «folgas».
Entre essas «pausas», estão precisamente as férias de verão que estamos vivendo [na Europa
ndr.]. Elas são, para a maioria das pessoas, a única oportunidade de descansar um pouco, para
dialogar de forma distendida com o próprio cônjuge, brincar com os filhos, ler algum bom
livro ou contemplar a natureza em silêncio; em resumo, para relaxar. Fazer das férias um
tempo mais frenético que o resto do ano significaria arruiná-las.
Esta exigência de tempos de solidão e de escuta se apresenta de forma especial aos que
anunciam o Evangelho e aos animadores da comunidade cristã, que devem permanecer
constantemente em contato com a fonte da Palavra que devem transmitir aos seus irmãos. Os
leigos deveriam alegrar-se, não se sentir descuidados, cada vez que o próprio sacerdote se
ausenta para um tempo de recarga intelectual e espiritual.
É preciso dizer que as férias de Jesus com os apóstolos foram de breve duração, porque as
pessoas, vendo-o partir, seguiram-no a pé até o lugar de desembarque. Mas Jesus não se irrita
com as pessoas que não lhe dão trégua, senão que «se comove», vendo-as abandonadas a si
mesmas, «como ovelhas sem pastor», e começa a «ensinar-lhes muitas coisas».
Isso nos mostra que é preciso estar dispostos a interromper até o merecido descanso frente a
uma situação de grave necessidade do próximo. Não se pode, por exemplo, abandonar ou
estacionar em um hospital, um idoso sobre quem se tem a responsabilidade, para desfrutar de
umas férias sem incômodos. Não podemos esquecer das muitas pessoas cuja solidão elas não
escolheram, senão que a sofrem, e não por algumas semanas ou um mês, senão por anos,
talvez durante a vida toda. Também aqui cabe uma pequena sugestão prática: olhar à nossa
volta e ver se existe alguém a quem ajudar a sentir-se menos sozinho na vida, com uma visita,
uma ligação, um convite a vê-lo um dia no lugar das férias: aquilo que o coração e as
circunstâncias sugiram.
ZP06072101
Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como
ove-lhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas. A hora já ia muito
adiantada, quando os discípulos se aproximaram e disseram: «O lugar é deserto e a hora vai
adiantada. Manda-os embora, para irem aos campos e aldeias comprar de comer.» Jesus
respondeu: «Dai-lhes vós mesmos de comer.» Eles disseram-lhe: «Vamos comprar duzentos
denários de pão para lhes dar de comer?» Mas Ele perguntou: «Quantos pães tendes? Ide
ver.» Depois de se informarem, responderam: «Cinco pães e dois peixes.» Ordenou-lhes que
os mandassem sentar por grupos na erva verde. E sentaram-se, por grupos de cem e cinquenta.
Jesus tomou, então, os cinco pães e os dois peixes e, erguendo os olhos ao céu, pronunciou a
bênção, partiu os pães e dava-os aos seus discípulos, para que eles os repartissem. Dividiu
também os dois peixes por todos. Comeram até ficarem saciados. E havia ainda doze cestos
com os bocados de pão e os restos de peixe. Ora os que tinham comido daqueles pães eram
cinco mil homens.
Jesus, o Verbo de Deus, estava na Judeia. Depois da notícia do assassinato do profeta João
Baptista, "retirou-se para um lugar deserto" numa barca - símbolo do seu corpo. Nesse lugar
deserto, Jesus mantinha-se "isolado" porque a sua palavra era diferente e o seu ensinamento ia
de encontro aos costumes e às ideias comuns entre as nações. Então, as multidões das nações,
sabendo que aquele que é a Palavra de Deus tinha vindo habitar no seu deserto..., começaram
a segui-lo, deixando as suas cidades, quer dizer, cada um abandonando os hábitos
supersticiosos da sua pátira e aderindo à lei de Cristo... Jesus tinha saído ao seu encontro
porque eles não eram capazes de se aproximar; misturando-se aos "que estão lá fora" (Mc
4,11), trouxe-os para dentro.
É numerosa essa multidão que estava fora e que ele foi encontrar. Derramando sobre ela a luz
da sua presença, olha-a e, vendo que tipo de pessoas o rodeiam, acha-as ainda mais dignas de
piedade. ! Ele que, enquanto Deus, está para além de todo o sofrimento, sofre por causa do
seu amor pelos homens; a emoção prende-lhe o peito. Não só está emocionado como os cura
de todas as suas doenças, liberta-os do mal.
«Ele partiu os pães... dividiu também os dois peixes por todos. E todos ficaram
saciados.»
[Jesus dizia a Santa Catarina: ] « É toda a essência divina que recebeis neste dulcíssimo
sacramento, sob esta brancura do pão. Assim como o sol é indivisível, assim Deus está inteiro
e o homem inteiro na brancura da hóstia. Dividíssemos nós a hóstia em mil migalhas, se fosse
possível, e eu continuaria a estar em cada uma delas, Deus inteiro e homem inteiro, como te
disse...
Suponhamos que havia várias pessoas que vinham buscar luz com velas. Uma traz uma vela
de uma onça, outra de duas onças, uma terceira de três onças, esta de uma libra, aquela de
mais ainda. Todas se aproximam da luz e cada uma acende a sua vela. Em cada vela acesa,
seja qual for o seu volume, vê-se desde agora a luz inteira, a sua cor, o seu calor, o seu
brilho... O mesmo acontece àqueles que se aproximam deste sacramento. Cada um traz a sua
vela, quer dizer o santo desejo com que recebe e toma este sacramento. A vela está apagada e
acende-se logo que se recebe o sacramento.
Eu digo que está apagada porque, por vós mesmos, nada sois. É verdade que vos dei a matéria
com a qual podeis receber e conservar em vós esta luz. Esta matéria é o amor, pois criei-vos
por amor; por isso não podeis viver sem amor.»
Na Sagrada Escritura, o repouso da noite designa a visão de Deus. Tal como a ceia marca a
conclusão dos trabalhos do dia e o princípio do repouso da noite, também a alma saboreia,
nesta notícia pacífica de que falamos, uma antecipação do fim dos seus males e a garantia dos
bens que espera. Também por isto o seu amor a Deus é em muito aumentado. Para a alma, o
amor de Deus é realmente «a ceia retemperadora» que lhe anuncia o fim dos seus males, e que
«inflama o amor», assegurando-lhe a posse de todos os bens.
Para melhor podermos compreender quão deliciosa é de facto esta ceia para a alma - pois,
como o temos dito, a ceia é afinal o próprio Bem-Amado -, recordemos as palavras do
Esposo, no Apocalipse: «Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a Minha voz e abrir a
porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele Comigo» (Ap 3, 20). Já aqui Ele nos dá a
entender que traz a ceia consigo, isto é, o sabor e as delícias com que Ele próprio Se alimenta
e que comunica à alma ao unir-Se-lhe, para que também esta se alimente do mesmo. É este o
sentido das suas palavras: «Cearei com ele, e ele Comigo», e é este o efeito produzido pela
união da alma com Deus: os mesmos bens de Deus tornam-se comuns a Ele e à alma Esposa,
porque Ele comunica-lhos gratuitamente e com soberana liberalidade. Deus é em Si mesmo
esta «ceia retemperadora, que inflama o amor». Ele retempera a Esposa com a sua
liberalidade, e inflama-a de amor com a sua benevolência.
Jesus obrigou logo os seus discípulos a subirem para o barco e a irem à frente, para o outro
lado, rumo a Betsaida, enquanto Ele próprio despedia a multidão. Depois de os ter despedido,
foi orar para o monte. Era já noite, o barco estava no meio do mar e Ele sozinho em terra.
Vendo-os cansados de remar, porque o vento lhes era contrário, foi ter com eles de
madrugada, andando sobre o mar; e fez menção de passar adiante. Mas, vendo-o andar sobre
o mar, julgaram que fosse um fantasma e começaram a gritar, pois todos o viram e se
assustaram. Mas Ele logo lhes falou: «Tranquilizai-vos, sou Eu: não temais!» A seguir, subiu
para o barco, para junto deles, e o vento amainou. E sentiram um enorme espanto, pois ainda
não tinham entendido o que se dera com os pães: tinham o coração endurecido.
Odes de Salomão (texto cristão do sec. II)
nº7
Todas as embarcações têm uma bússola marítima, cuja agulha magnética aponta sempre a
direcção da estrela polar e, ainda que a barca parta do sul, a sua bússola nunca deixa de
indicar o norte.
Que, do mesmo modo, o fino ponteiro do espírito indique sempre a direcção de Deus, que é o
seu norte [...]. Ides para o mar alto deste mundo; para tal não mudeis de mestre, nem de
mastro, nem de vela, âncora ou vento. Tende sempre a Jesus Cristo por mestre, a sua cruz por
árvore, nela pondo as vossas resoluções, como quem as estende numa vela; que a vossa
âncora seja uma profunda confiança n'Ele, e ide, sim, em boa hora. Queira o vento propício
das inspirações celestes enfunar as velas do vosso barco, mantendo-as sempre pandas, e fazer-
vos chegar, em felicidade, ao porto da santa eternidade [...].
Que no meio do desnorte tudo encontre o sentido certo, não o digo apenas relativamente ao
que está ao redor de nós, mas ao que está mesmo em nós, isto é, quer a nossa alma esteja triste
ou alegre, em tranquilidade ou em amargura, em serenidade ou em tribulação, na claridade ou
nas trevas, em tentação ou em repouso, em alegria ou em desgosto, em tibieza ou em ternura,
quer o sol a queime, quer o orvalho a refresque, ah, é preciso porém que o ponteiro deste
nosso coração, do nosso espírito, da nossa superior vontade, que é a nossa bússola, vele
sempre, e se guie, incessante e perpetuamente, pelo amor de Deus.
Evangelho segundo S. Marcos 6,53-56.
Quando Jesus estava neste mundo, o simples contato das suas vestes curava os doentes.
Porquê duvidar, se temos fé, que ele também realize milagres quando está tão intimamente
unido a nós na comunhão eucarística? Porque não nos dará ele o que lhe pedimos uma vez
que está na sua própria casa? Sua Majestade não tem por hábito pagar mal a boa hospitalidade
que lhe é dispensada. Se estais desolados por não o verdes com os olhos do corpo, considerai
que isso não vos convém...
Mas assim que Nosso Senhor quer que uma alma aproveite da sua presença, ele revela-se-lhe.
Ela não o verá, é verdade, com os olhos do corpo, mas ele manifestar-se-á a ela por meio de
grandes sentimentos interiores ou por outros meios. Portanto, estai com ele de “bom coração”.
Não perdeis uma ocasião tão favorável para tratar dos vossos interesses com o momento que
se segue à comunhão.
Ó Deus verdadeiro e Senhor meu! Para a alma afligida pela solidão em que vive na Tua
ausência, é grande consolo saber que estás em toda a parte. Mas que sentido há nisto, Senhor,
quando a força do amor e a impetuosidade desta pena aumentam, e o coração se atormenta, a
tal ponto, que nem podemos já compreender nem conhecer tal verdade? A alma percebe
apenas que está apartada de Ti, e nenhum remédio admite. Porque o coração que muito ama
não consente outros conselhos nem consolos, senão os vindos d'Aquele que o feriu; d'Ele,
somente, espera a cura para a pena.
Quando Tu queres, Senhor, depressa saras a ferida que fizeste. Ó meu Bem-Amado, com
quanta compaixão, com quanta doçura, bondade e ternura, com quantas mostras de amor Tu
saras estas chagas feitas com as setas do Teu amor! Ó meu Deus, Tu és o repouso para todas
as penas. Não será loucura vã procurar meios humanos para curar os que vivem enfermos do
divino fogo? Quem poderá saber aonde tal ferida chegará, donde vem, e como mitigar tão
penoso tormento? [...] Quanta razão tem a esposa do Cântico dos Cânticos, ao dizer: «O meu
amado é para mim e eu para ele!» (Ct 2,16) Porque o amor que sinto não pode ter origem em
algo tão baixo como é este meu amor. E no entanto, Esposo meu, sendo ele assim tão baixo,
como entender que seja afinal capaz de superar todas as coisas criadas, para chegar a seu
Criador?