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Evangelho segundo S. Lucas 4,1-13. – cf.par.

Mt 4,1-11; Mc 1,12-13

Cheio do Espírito Santo, Jesus retirou-se do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde
esteve durante quarenta dias, e era tentado pelo diabo. Não comeu nada durante esses dias e,
quando eles terminaram, sentiu fome. Disse-lhe o diabo: «Se és Filho de Deus, diz a esta
pedra que se transforme em pão.» Jesus respondeu-lhe: «Está escrito: Nem só de pão vive o
homem.» Levando-o a um lugar alto, o diabo mostrou-lhe, num instante, todos os reinos do
universo e disse-lhe: «Dar-te-ei todo este poderio e a sua glória, porque me foi entregue e
dou-o a quem me aprouver. Se te prostrares diante de mim, tudo será teu.» Jesus respondeu-
lhe: «Está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto.» Em seguida,
conduziu-o a Jerusalém, colocou-o sobre o pináculo do templo e disse-lhe: «Se és Filho de
Deus, atira-te daqui abaixo, pois está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, a fim
de que eles te guardem; e também: Hão-de levar-te nas suas mãos, com receio de que firas o
teu pé nalguma pedra.» Disse-lhe Jesus: «Não tentarás ao Senhor, teu Deus.» Tendo esgotado
toda a espécie de tentação, o diabo retirou-se de junto dele, até um certo tempo.

São João Crisóstomo (c. 345-407), bispo de Antioquia e, mais tarde, de Constantinopla,
doutor da Igreja
Homilias sobre Mateus
Fortalecidos pelas tentações

«Depois do baptismo, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, onde foi posto à prova
pelo demónio»... Tudo o que Jesus fez e padeceu foi para nos instruir. Por isso, quis ser
conduzido a esse lugar a fim de lutar com o demónio, para que ninguém, entre os baptizados,
se sinta perturbado se, depois do seu baptismo, sofre as maiores tentações, como se fosse uma
coisa extraordinária; deve, antes, suportar tudo isso como se fizesse parte da ordem natural
das coisas. Foi para isso que recebestes as armas: não para ficardes ociosos, mas para
combaterdes.

Estes são alguns motivos pelos quais Deus não impede que vos venham tentações. Em
primeiro lugar, para vos ensinar que vos tornastes muito mais fortes. Depois, para que vos
conserveis prudentes, em lugar de vos orgulhardes dos grandes dons recebidos, porque as
tentações têm o dom de vos humilhar. Além disso, sereis tentados para que o espírito do mal,
perguntando-se se verdadeiramente renunciastes a ele, fique convencido, pela experiência das
tentações, que já o abandonastes totalmente. Em quarto lugar, sois tentados para vos
fortalecerdes e vos tornardes mais sólidos do que o aço. Em quinto lugar, para que tenhais a
certeza absoluta de que vos foram confiados tesouros. Porque o demónio não vos assaltaria se
não tivesse visto que recebíeis uma honra maior.

S. Gregório Magno (c 540-604), papa, doutor da Igreja


Catequeses sobre o Evangelho, nº 16

“Porque, como pela desobediência de um só, muitos se tornaram pecadores, assim


também, pela obediência de um só, muitos se tornaram justos” (Rom 5,19)
O diabo atacou o primeiro homem, nosso pai, com uma tripla tentação: tentou-o pela
gulodice, pela vaidade e pela avidez. A sua tentativa de sedução resultou, pois que o homem,
ao dar o seu consentimento, ficou então submisso ao diabo. Tentou-o pela gulodice,
mostrando-lhe na árvore o fruto proibido e convidando-o a comê-lo; tentou-o pela vaidade,
dizendo-lhe: “sereis como deuses”; tentou-o enfim pela avidez, ao dizer-lhe: “conhecereis o
bem e o mal” (Gn 3,5). Porque ser ávido, não é apenas desejar o dinheiro, mas também toda a
situação vantajosa, desejar, para além do razoável, toda a situação elevada…

O diabo foi vencido por Cristo que ele tentou de um modo semelhante àquele pelo qual ele
tinha vencido o primeiro homem. Como da primeira vez, ele tentou-o pela gulodice: “ordena a
estas pedras que se transformem em pães”; pela vaidade: “se és o Filho de Deus, lança-te
daqui abaixo”; pelo desejo violento de uma bela situação, quando ele lhe mostra todos os
reinos do mundo e lhe diz: “dar-te-ei tudo isto, se caíres a meus pés e me adorares”...

É necessário chamar a atenção para uma coisa na tentação do Senhor: tentado pelo diabo, o
Senhor ripostou com os textos da Santa Escritura. Teria podido lançar o seu tentador no
abismo pelo Verbo que era ele próprio. E contudo não recorreu ao seu poderoso poder; apenas
pôs em primeiro lugar os preceitos da Santa Escritura. Mostra-nos assim como suportar a
prova, de modo que, assim que os maus nos fazem sofrer, sejamos impelidos a recorrer à boa
doutrina em lugar da vingança. Comparai a paciência de Deus com a nossa impaciência. Nós,
quando recebemos injúrias ou sofremos uma ofensa, na nossa fúria vingamo-nos tanto quanto
podemos, ou ameaçamos fazê-lo. O Senhor, ele, suporta a adversidade do diabo respondendo-
lhe apenas com palavras de paz.

Evangelho segundo S. Lucas 1,1-4.4,14-21. – cf.par. 4,12-7; 13,53-58; Mc 1,14-15; 6,1-6

Visto que muitos empreenderam compor uma narração dos fatos que entre nós se
consumaram, como no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares
e se tornaram Servidores da Palavra , resolvi eu também, depois de tudo ter investigado
cuidadosamente desde a origem, expô-los a ti por escrito e pela sua ordem, caríssimo Teófilo,
a fim de reconheceres a solidez da doutrina em que foste instruído. Impelido pelo Espírito,
Jesus voltou para a Galileia e a sua fama propagou-se por toda a região. Ensinava nas
sinagogas e todos o elogiavam. Veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Segundo o seu
costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro
do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: «O Espírito
do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me
a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em
liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.» Depois, enrolou o
livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os
olhos fixos nele. Começou, então, a dizer-lhes: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura,
que acabais de ouvir.»

Orígenes (v.185-253), sacerdote e teólogo

Homilias sobre São Lucas, n°32 (trad. cf. SC 87, pp. 386-392)

«Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nEle»


Quando lês que Jesus «ensinava nas sinagogas e todos O elogiavam», guarda-te de considerar
felizes aqueles que então ouviram Cristo, considerando-te como que privado de ensinamento.
Porque, se a Escritura é verídica, o Senhor não falou apenas antigamente, nas assembleias dos
judeus, mas fala também hoje, na nossa, e não apenas aqui e agora, mas nas audiências do
mundo inteiro. [...] Hoje, Jesus é ainda mais «elogiado por todos» do que no tempo em que só
era conhecido numa região. [...]

«Ele ungiu-me», diz Ele, «para anunciar a Boa-Nova aos pobres», significando que os pobres
são os pagãos; com efeito, eram pobres por não terem nada: nem Deus, nem Lei, nem
profetas, nem justiça, nem força alguma. Por que foi que Deus O enviou como mensageiro
aos pobres? Para «proclamar a libertação aos cativos» – que éramos nós: prisioneiros
acorrentados há muito, sujeitos ao poder de Satanás. E para anunciar «aos cegos a
recuperação da vista», porque a sua palavra devolve a visão aos cegos. [...]

Jesus «enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-Se. Todos os que estavam na


sinagoga tinham os olhos fixos nEle». Também agora, se quereis, aqui, na nossa igreja, podeis
fixar os olhos no Salvador. Quando diriges o olhar mais profundo do teu coração para a
contemplação da Sabedoria e da Verdade, do Filho único de Deus, tens os olhos fixos em
Jesus. Bem-aventurada é a assembleia de quem a Escritura diz: «Todos tinham os olhos fixos
nele»! Como quereria que a nossa merecesse este mesmo testemunho e que os olhos de todos,
catecúmenos e fiéis, mulheres, homens e crianças, vissem Jesus com os olhos da alma!
Porque, mal O tenhais contemplado, a vossa face e o vosso olhar serão iluminados pela Sua
luz e podereis dizer: «Levantai sobre nós, Senhor, a luz da Vossa face!» (Sl 4, 7).

Rupert de Deutz (c. 1075-1130), monge beneditino

Sobre a Santíssima Trindade, 42

“O Espírito do Senhor está sobre mim”

“Cumpriu-se hoje esta palavra da Escritura que acabais de ouvir: ‘O Espírito do Senhor
repousa sobre mim, porque o Senhor me ungiu’ (Is 61, 1).” É como se Cristo tivesse dito:
Porque o Senhor Me ungiu, Eu disse sim, disse-o verdadeiramente, e volto a dizê-lo: O
Espírito do Senhor repousa sobre Mim. Onde foi, pois, em que momento foi que o Senhor Me
ungiu? Ungiu-Me quando fui concebido, ou melhor, ungiu-Me a fim de que fosse concebido
no seio de Minha Mãe. Porque não foi da semente de um homem que uma mulher Me
concebeu, antes uma Virgem Me concebeu da unção do Espírito Santo. Foi então que o
Senhor Me assinalou com a unção real; consagrou-Me rei ungindo-Me, ao mesmo tempo que
Me consagrava sacerdote. E pela segunda vez, no Jordão, o Senhor consagrou-Me por esse
mesmo Espírito. […]

E por que está o Espírito do Senhor sobre Mim? […] “Enviou-me a levar a boa nova aos
pobres, a curar os corações despedaçados” (Is 61, 1). Não Me enviou aos orgulhosos nem aos
“que têm saúde”, mas como “médico aos doentes” e aos corações despedaçados. Não Me
enviou “aos justos” mas “aos pecadores” (Mc 2, 17). Fez de Mim um “homem de dores,
experimentado nos sofrimentos” (Is 53, 3), um homem “manso e humilde de coração” (Mt 11,
29). Enviou-Me “a anunciar a amnistia aos cativos e a liberdade aos prisioneiros” (Is 61, 1).
[…] A que prisioneiros, ou antes, de que prisão venho anunciar a libertação? A que cativos
venho anunciar a liberdade? Desde que “por um só homem entrou o pecado no mundo e, pelo
pecado, a morte” (Rom 5, 12), todos os homens são prisioneiros do pecado, todos são cativos
da morte. […] Eu fui enviado “a consolar […] os amargurados de Sião” (Is 61, 2-3), todos
quantos se afligem por terem sido, devido aos seus pecados, privados e separados de sua mãe,
a “Jerusalém lá do alto” (Ga 4, 26). […] Sim, consolá-los-ei dando-lhes “uma coroa em vez
das cinzas” da penitência, o “óleo da alegria”, ou seja, a consolação do Espírito Santo, “em
vez do luto” da orfandade e do exílio, uma veste de festa, ou seja, a glória da Ressurreição
“em vez do desespero” (Is 61, 3).

«A Nova Evangelização»: Todos têm necessidade do Evangelho, segundo Papa Bento


XVI
Em intervenção realizada quando ainda estava à frente da Congregação para a Doutrina da Fé

CIDADE DO VATICANO, sexta-feira, 22 de abril de 2005 (ZENIT.org).- Publicamos a


seguir a intervenção realizada pelo Papa Bento XVI quando ainda era o cardeal Prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, em 10 de dezembro de 2000, durante o Congresso dos
Catequistas e dos Professores de Religião, ocorrido em Roma.

INTERVENÇÃO DO
CARDEAL JOSEPH RATZINGER
DURANTE O CONGRESSO DOS CATEQUISTAS
E DOS PROFESSORES DE RELIGIÃO
10 de Dezembro de 2000

A nova evangelização

A vida humana não se realiza por si só. A nossa vida é uma questão aberta, um projecto
incompleto que ainda deve ser terminado e realizado. A pergunta fundamental de cada
homem é: como se realiza isto tornar-se homem? Como se aprende a arte de viver? Qual é o
caminho da felicidade? Evangelizar significa: mostrar este caminho. Jesus diz no início da sua
vida pública: Vim para evangelizar os pobres (cf. Lc 4, 18); isto
significa: eu tenho a resposta para a vossa pergunta fundamental; eu indico-vos o caminho da
vida, o caminho da felicidade ou melhor: eu sou esse caminho. A maior pobreza é a
incapacidade de alegria, o tédio da vida considerada absurda e contraditória. Esta pobreza
hoje está muito difundida, em formas muito diferentes, quer nas sociedades materialmente
ricas quer também nos países pobres. A incapacidade de alegria supõe e causa a incapacidade
de amar, inveja, avareza todos estes são vícios que devastam a vida dos indivíduos e o mundo.
Eis por que precisamos de uma nova evangelização se a arte de viver permanece
desconhecida, tudo o mais deixa de funcionar. Mas esta arte não é objecto da ciência esta arte
só pode ser comunicada por quem tem a vida aquele que é o Evangelho em pessoa.

I. Estrutura e método na nova evangelização


1. A estrutura
Antes de falar dos conteúdos fundamentais da nova evangelização desejaria dizer uma palavra
acerca da sua estrutura e método adequados. A Igreja evangeliza sempre e jamais interrompeu
o caminho da evangelização. Celebra todos os dias o mistério eucarístivo, administra os
sacramentos, anuncia a palavra da vida a palavra de Deus, empenha-se pela justiça e pela
caridade. E esta evangelização dá frutos: produz luz e alegria, dá o caminho da vida a muitas
pessoas; há quem viva, muitas vezes sem saber, da luz e do calor resplandecente desta
evangelização permanente. Contudo, observamos um processo progressivo e preocupante de
descristianização e de perda dos valores humanos essenciais. Uma boa parte da humanidade
de hoje não encontra na evangelização permanente da Igreja o Evangelho, ou seja, uma
resposta convincente à pergunta: como viver?

Eis por que procuramos, além da evangelização permanente, jamais interrompida e que nunca
se deve deter, uma nova evangelização, capaz de se fazer ouvir por aquele mundo que não
encontra o acesso à evangelização "clássica". Todos têm necessidade do Evangelho; o
Evangelho destina-se a todos e não apenas a um círculo determinado, e portanto somos
obrigados a procurar novos caminhos para levar o Evangelho a todos. Mas também se
esconde nisto uma tentação a tentação da impaciência, a tentação de procurar imediatamente o
grande sucesso, de procurar os grandes números. E este não é o método de Deus. Para o reino
de Deus e a evangelização, instrumento e veículo do reino de Deus, é sempre válida a
parábola do grão de mostarda (cf. Mc 4, 31-32). O reino de Deus recomeça sempre de novo
sob este sinal. Nova evangelização não pode significar: atrair imediatamente com novos
métodos mais requintados as grandes multidões que se afastaram da Igreja. Não não é esta a
promessa da nova evangelização. Nova evangelização significa: não acontentar-se com o
facto de que do grão de mostarda cresceu a grande árvore da Igreja universal, não pensar que
é suficiente que nos seus ramos muito diferentes as aves possam encontrar lugar mas ousar de
novo com a humildade do pequeno grão, deixando para Deus quando e como crescerá (cf. Mc
4, 26-29). As grandes coisas começam sempre do pequeno grão e os movimentos em massa
são sempre efémeros. Na sua visão do processo da evolução, Teilhard de Chardin fala do
"branco das origens" (le blanc des origines): o início das novas espécies é invisível e a
investigação científica não o pode encontrar. As fontes são escondidas muito pequenas. Por
outras palavras: as grandes realidades iniciam-se em humildade. Deixemos de lado se e até
que ponto Teilhard tem razão com as suas teorias evolucionistas; a lei das origens invisíveis
diz uma verdade uma verdade presente precisamente no agir de Deus na história: "Não te
elegi porque és grande, ao contrário és o mais pequeno de entre os povos; elegi-te porque te
amo...", diz Deus ao povo de Israel no Antigo Testamento e exprime desta forma o paradoxo
fundamental da história da salvação: sem dúvida, Deus não conta com os grandes números; o
poder exterior não é o sinal da sua presença. Grande parte das parábolas de Jesus indicam esta
estrutura do agir divino e respondem desta forma às preocupações dos discípulos, os quais
esperavam outro tipo de sucesso e de sinais do Messias sucessos do género dos que Satanás
ofereceu ao Senhor: dou-te todos os reinos do mundo tudo isto... (cf. Mt 4, 9). Sem dúvida,
Paulo, no final da sua vida, teve a impressão de ter levado o Evangelho aos confins da terra,
mas os cristãos eram pequenas comunidades espalhadas no mundo, insignificantes segundo os
critérios seculares. Na realidade foram o germe que penetrou na massa a partir de dentro e
levaram em si o futuro do mundo (cf. Mt 13, 33). Um antigo provérbio diz: "Sucesso não é
um nome de Deus". A nova evangelização deve submeter-se ao mistério do grão de mostarda
e não pretender produzir imediatamente a grande árvore. Nós ou vivemos demasiado na
certeza da grande árvore que já existe ou na impaciência de possuir uma árvore maior, mais
vital ao contrário, devemos aceitar o mistério que a Igreja é ao mesmo tempo grande árvore e
pequeníssimo grão. Na história da salvação é sempre Sexta-Feira Santa e,
contemporaneamente, Domingo de Páscoa...

2. O método
Desta estrutura da nova evangelização deriva também o método justo. Sem dúvida, devemos
usar de modo razoável os métodos modernos para nos fazer ouvir, ou melhor: para tornar
acessível e compreensível a voz do Senhor... Não procuramos escuta para nós não queremos
aumentar o poder e a extensão das nossas instituições, mas desejamos servir o bem das
pessoas e da humanidade dando espaço Àquele que é a Vida. Esta expropriação do próprio eu
oferecendo Cristo para salvação dos homens, é a condição fundamental do verdadeiro
empenho pelo evangelho. "Vim em nome de Meu Pai e não Me recebestes, mas se vier outro,
em seu próprio nome, recebê-lo-eis" (Jo 5, 43). O sinal distintivo do Anticristo é falar em seu
nome. O sinal do Filho é a sua comunhão com o Pai. O Filho introduz-nos na comunhão
trinitária, no círculo do eterno amor, cujas pessoas são "relações puras", o acto puro do doar-
se e receber-se. O desígnio trinitário visível no Filho, que não fala em seu nome mostra a
forma de vida do verdadeiro evangelizador aliás, evangelizar não é simplesmente uma forma
de falar, mas uma forma de viver: viver em escuta e fazer-se voz do Pai. "Não falará de Si
mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido", diz o Senhor acerca do Espírito Santo (cf. Jo 16,
13). Esta forma cristológica e pneumatológica da evangelização é simultaneamente uma
forma eclesiológica: o Senhor e o Espírito constroem a Igreja, comunicam-se na Igreja. O
anúncio de Cristo, o anúncio do reino de Deus pressupõe escuta da sua voz na voz da Igreja.
"Não falará de Si mesmo"
significa: falar na missão da Igreja...

Desta lei da expropriação derivam consequências muito práticas. Todos os métodos razoáveis
e moralmente aceitáveis devem ser estudados - é um dever fazer uso destas possibilidades de
comunicação. Mas as palavras e toda a arte da comunicação não podem conquistar a pessoa
humana naquela profundidade, à qual deve chegar o Evangelho. Há alguns anos li a biografia
de um óptimo sacerdote do nosso século, Pe. Didimo, pároco de Bassano del Grappa (Itália,
n.d.r.). Nas suas notas encontram-se palavras de ouro, fruto de uma vida de oração e de
meditação. A respeito de nós diz Pe. Didimo: "Jesus pregava de dia, de noite rezava". Com
esta breve notícia, ele queria
dizer: Jesus devia obter de Deus os discípulos. Isto é válido sempre. Nós não podemos ganhar
os homens. Devemos obtê-los de Deus para Deus. Todos os métodos são vazios sem o
fundamento da oração. A palavra do anúncio deve estar sempre imersa numa intensa vida de
oração.

Devemos dar um ulterior passo. Jesus pregava de dia, de noite rezava o que não é tudo. A sua
vida inteira foi como mostra de maneira admirável o evangelho de São Lucas um caminho
rumo à cruz, ascensão rumo a Jerusalém. Jesus não redimiu o mundo com palavras bonitas,
mas com o seu sofrimento e a sua morte. Esta sua paixão é a fonte inexaurível de vida para o
mundo; a paixão dá força à sua palavra.

O próprio Senhor estendendo e ampliando a parábola do grão de mostarda formulou esta lei
de fecundidade na parábola do grão que, ao cair na terra, morre (cf. Jo 12, 24). Esta lei
também é válida até ao fim do mundo e é juntamente com o mistério do grão de mostarda
fundamental para a nova evangelização. Toda a história o demonstra. Seria fácil demonstrar
isto na história do cristianismo. Desejo recordar aqui apenas o início da evangelização na vida
de São Paulo. O sucesso da sua missão não foi o resultado de uma grande arte retórica ou de
prudência pastoral; a fecundidade estava relacionada com o sofrimento, com a comunhão na
paixão de Cristo (cf. 1 Cor 2, 1-5; 2 Cor 5, 7; 11, 10 s; 11, 30; Gl 4, 12-14). "Nenhum sinal
será dado a não ser o sinal do profeta Jonas", disse o Senhor. O sinal de Jonas é Cristo
crucificado são as testemunhas, que completam o "que falta aos sofrimentos de Cristo" (Cl 1,
24). Em todos os períodos da história verificou-se sempre de novo as palavras de Tertuliano:
o sangue dos mártires é semente.

Santo Agostinho diz o mesmo de uma maneira muito bonita, ao interpretar Jo 21, onde a
profecia do martírio de Pedro e o mandato de apascentar, ou seja, a instituição da sua
primazia, estão intimamente relacionados. Santo Agostinho comenta o texto de Jo 21, 16 da
seguinte forma: "Apascenta as minhas ovelhas", o que significa, sofre pelas minhas ovelhas
(Sermo Guelf. 32; PLS 2, 640). Uma mãe não pode dar luz a uma criança sem sofrer.
Qualquer parto requer sofrimento, é dor, e tornar-se cristão é um parto. Digamo-lo mais uma
vez com palavras do Senhor: o reino de Deus exige violência (cf. Mt 11, 12; Lc 16, 16), mas a
violência de Deus é o sofrimento, é a cruz. Não podemos dar a vida a outros, sem dar a nossa
vida. O processo de expropriação acima mencionado é a forma concreta (expressa de muitas
formas
diferentes) de doar a própria vida. E pensamos na palavra do Salvador: "...quem perder a sua
vida por Mim e pelo Evangelho, salvá-la-á..." (Mc 8, 36).

II. Os conteúdos essenciais da nova evangelização


1. Conversão
No que se refere aos conteúdos da nova evangelização deve-se ter presente em primeiro lugar
a inseparabilidade do Antigo e do Novo Testamento. O conteúdo fundamental do Antigo
Testamento está resumido na mensagem de João Baptista: Convertei-vos! Não se acede a
Jesus sem o Baptista; não existe possibilidade de chegar a Jesus sem responder ao apelo do
precursor; aliás: Jesus assumiu a mensagem de João na síntese da sua própria pregação:
convertei-vos e acreditai no Evangelho (cf. Mc 1, 15). A palavra grega converter-se
significa: reconsiderar pôr em questão o próprio modo de viver e o comum; deixar entrar
Deus nos critérios da própria vida; não julgar simplesmente de acordo com as opiniões
correntes. Converter-se significa por conseguinte: não viver como vivem todos, não fazer
como fazem todos, não sentir-se justificados em acções duvidosas, ambíguas, perversas
simplesmente porque há quem o faça; começar a ver a própria vida com os olhos de Deus,
portanto procurar o bem, mesmo se não é agradável; não apostar no juízo da maioria, mas no
juízo de Deus por outras palavras: procurar um novo estilo de vida, uma vida nova. Tudo isto
não implica um moralismo; a limitação do cristianismo à moralidade perde de vista a essência
da mensagem de Cristo: o dom de uma nova amizade, o dom da comunhão com Jesus e por
conseguinte com Deus. Quem se converte a Cristo não pretende criar uma autonomia moral
própria, não pretende construir com as próprias forças a sua bondade. "Conversão"
(Metanoia) significa precisamente o contrário: abandonar a auto-suficiência, descobrir e
aceitar a própria indigência indigência dos outros e do Outro, do seu perdão, da sua amizade.
A vida não convertida é autojustificação (não sou pior do que os outros); a conversão é a
humildade de se confiar ao amor do Outro, amor que se torna medida e critério da minha
própria vida.

Devemos ter também presente o aspecto social da conversão. Sem dúvida, a conversão é em
primeiro lugar um acto pessoalíssimo, é personalização. Eu separo-me da fórmula "viver
como todos" (já não me sinto justificado pelo facto de que todos fazem o que eu faço) e
encontro perante Deus o meu próprio eu, a minha responsabilidade pessoal. Mas a verdadeira
personalidade também é sempre uma nova e mais profunda socialização. O eu abre-se de
novo ao tu, em toda a sua profundidade, e desta forma nasce um novo Nós. Se o estilo de vida
difundido no mundo implica o perigo da despersonalização, do viver não a minha vida mas a
vida dos outros, na conversão deve realizar-se um novo Nós do caminho comum com Deus.
Ao anunciar a conversão também devemos oferecer uma comunidade de vida, um espaço
comum do novo estilo de vida. Não se pode evangelizar só com palavras; o evangelho cria
vida, cria comunidade de caminho; uma conversão meramente individual não tem
consistência...

2. O Reino de Deus
Na chamada à conversão está implícito como sua condição fundamental o anúncio do Deus
vivo. O teocentrismo é fundamental na mensagem de Jesus e também deve ser o centro da
nova evangelização. A palavra-chave do anúncio de Jesus é: Reino de Deus. Mas Reino de
Deus não é uma coisa, uma estrutura social ou política, uma utopia. O Reino de Deus é Deus.
Reino de Deus
significa: Deus existe. Deus vive. Deus está presente e age no mundo, na nossa na minha vida.
Deus não é uma remota "causa última", Deus não é o "grande arquitecto" do deísmo, que
construiu a máquina do mundo e agora se encontra fora. Ao contrário: Deus é a realidade mais
presente e decisiva em qualquer acto da minha vida, em todos os momentos da história. Na
sua conferência de despedida da cátedra na universidade de Monastério, o teólogo J. B. Metz
disse coisas que dele não se esperavam. No passado, Metz ensinou-nos o antropocentrismo o
verdadeiro acontecimento do cristianismo teria sido a viragem antropológica, a secularização,
a descoberta do secularismo no mundo. Depois, ensinou-nos a teologia política o carácter
político da fé; depois a "memória perigosa"; finalmente a teologia narrativa. Depois deste
caminho longo e difícil hoje dizemos: o verdadeiro problema do nosso tempo é a "crise de
Deus", a ausência de Deus, camuflada por uma religiosidade vazia. A teologia deve voltar a
ser realmente teo-logia, um falar de Deus e com Deus. Metz tem razão: para o homem, o
"unum necessarium" é Deus. Tudo muda se Deus está ou não está presente. Infelizmente
também nós cristãos vivemos muitas vezes como se Deus não existisse ("si Deus non
daretur"). Vivemos segundo o slogan: Deus não está presente, e se está, não tem incidência.
Por isso a evangelização deve, antes de mais, falar de Deus, anunciar o único Deus
verdadeiro: o Criador o Santificador o Juiz (cf. Catecismo da Igreja Católica).

Também neste ponto se deve ter presente o aspecto prático. Deus não se pode dar a conhecer
unicamente com as palavras. Não se conhece uma pessoa, se não sabemos directamente nada
dela. Anunciar Deus é introduzir na relação com
Deus: ensinar a rezar. A oração é fé em acto. E só na experiência da vida com Deus se
manifesta também a evidência da sua existência. Eis por que são tão importantes as escolas de
oração, de comunidade de oração. Existe complementariedade entre oração pessoal ("no
próprio quarto", sozinhos perante os olhos de Deus), oração comum "paralitúrgica"
("religiosidade popular") e oração litúrgica. Sim, a liturgia é, em primeiro lugar, oração; a sua
especificidade consiste no facto que o seu sujeito primário não somos nós (como na oração
privada e na religiosidade popular), mas o próprio Deus a liturgia é actio divina, Deus age e
nós respondemos à acção divina. Falar de Deus e falar com Deus são duas acções que devem
andar sempre juntas. O anúncio de Deus orienta para a comunhão com Deus na comunhão
fraterna, fundada e vivificada por Cristo. Portanto a liturgia (os sacramentos) não é um tema
paralelo à pregação do Deus vivo, mas a concretização da nossa relação com Deus. Neste
contexto, seja-me permitida uma observação geral sobre a questão litúrgica. O nosso modo de
celebrar a liturgia com frequência é demasiado racional. A liturgia torna-se ensinamento, cujo
critério é: fazer-se compreender a consequência é com frequência a banalização do mistério, o
prevalecer das nossas palavras, a repetição das fraseologias que parecem mais acessíveis e
mais agradáveis ao povo. Mas isto é um erro não só teológico, mas também psicológico e
pastoral. A onda do exoterismo, a difusão de técnicas asiáticas de distensão e auto-
esvaziamento mostram que nas nossas liturgias falta algo.

Precisamente no nosso mundo de hoje precisamos do silêncio, do mistério supra-individual,


da beleza. A liturgia não é invenção do sacerdote celebrante ou de um grupo de especialistas;
a liturgia (o "rito") cresceu num processo orgânico ao longo dos séculos, leva em si o fruto da
experiência de fé de todas as gerações. Mesmo se os participantes talvez não entendam todas
as palavras, compreendem o significado profundo, a presença do mistério, que transcende
todas as palavras. O celebrante não é o centro da acção litúrgica; o celebrante não está em
frente do povo em seu nome não fala se si nem para si, mas "in persona Christi". Não contam
as capacidades pessoais do celebrante, mas unicamente a sua fé, na qual se Cristo se torna
transparente. "Ele deve crescer e eu diminuir" (Jo 3, 30).

3. Jesus Cristo
Com esta reflexão o tema Deus já se alargou e concretizou no tema Jesus
Cristo: só em Cristo e através de Cristo o tema Deus se torna realmente concreto: Cristo é
Emanuel, o Deus connosco a concretização do "Eu sou", a resposta ao Deísmo. Hoje é grande
a tentação de reduzir Jesus Cristo, o único filho de Deus a um Jesus histórico, a um homem
puro. Não se nega necessariamente a divindade de Jesus, mas com certos métodos destila-se
da Bíblia um Jesus à nossa medida, um Jesus possível e compreensível dentro dos parâmetros
da nossa historiografia. Mas este "Jesus histórico" é inatural, a imagem dos seus autores e não
a imagem do Deus vivo (cf. 2 Cor 4, 4 s.; Cl 1, 15). O Cristo da fé não é um mito; o chamado
Jesus histórico é uma figura mitológica, auto-inventada pelos diferentes intérpretes. Os
duzentos anos de história de "Jesus histórico" reflectem fielmente a história das filosofias e
das ideologias deste período.

No âmbito desta conferência, não posso tratar os conteúdos do anúncio do Salvador. Desejaria
brevemente mencionar dois aspectos importantes. O primeiro é o seguimento de Cristo Cristo
oferece-se como caminho para a minha vida. Seguimento de Cristo não significa: imitar o
homem Jesus. Uma tentativa como esta falha necessariamente seria um anacronismo. O
seguimento de Cristo tem uma meta mais alta: assimilar-se a Cristo, isto é, alcançar a união
com Deus. Estas palavras talvez soem mal aos ouvidos do homem moderno. Mas na realidade
todos temos sede do infinito: de uma liberdade infinita, de uma felicidade sem limites. Toda a
história das revoluções dos últimos dois séculos só se explica desta forma. A droga explica-se
assim. O homem não se contenta com soluções abaixo do nível da divinização. Mas todos os
caminhos oferecidos pela "serpente" (Gn 3, 5), que significa pela sabedoria mundana, falham.
O único caminho é a comunhão com Cristo, realizável na vida sacramental. Seguimento de
Cristo não é um assunto de moral, mas um tema "místico" um conjunto de acção divina e de
resposta da nossa parte. Desta forma encontramos presente no tema seguimento o outro centro
da cristologia, que desejaria mencionar: o mistéro pascal a cruz e a ressurreição. Nas
reconstruções do "Jesus histórico" normalmente o tema da cruz não tem significado. Numa
interpretação "burguesa" torna-se um acidente em si evitável, sem valor teológico; numa
interpretação revolucionária torna-se a morte heróica de um rebelde. Mas a verdade é outra. A
cruz pertence ao mistério divino é expressão do seu amor até ao fim (cf. Jo 13, 1). O
seguimento de Cristo é participação da sua cruz, unir-se ao seu amor, à transformação da
nossa vida, que se torna nascimento do homem novo, criado à imagem de Deus (cf. Ef 4, 24).
Quem omite a cruz, omite a essência do cristianismo (cf. 1 Cor 2, 2).

4. A vida eterna
Um último elemento central de qualquer evangelização autêntica é a vida eterna. Hoje
devemos anunciar a fé com renovado vigor na vida quotidiana. A este ponto, desejaria
mencionar apenas um aspecto da pregação de Jesus que hoje, muitas vezes, é negligenciado: o
anúncio do Reino de Deus é o anúncio do Deus presente, do Deus que nos conhece, nos ouve;
do Deus que entra na história, para fazer justiça. Portanto, esta pregação é também anúncio do
juízo, anúncio da nossa responsabilidade. O homem não pode fazer ou deixar de fazer o que
lhe apetece. Ele será julgado. Deve prestar contas. Esta certeza é válida tanto para os
poderosos como para os simples. Onde ela é honrada, são delineados os limites de qualquer
poder deste mundo. Deus faz justiça, e só ele o pode fazer por último. Nós consegui-lo-emos
tanto mais, quanto mais formos capazes de viver sob o olhar de Deus e de comunicar ao
mundo a verdade do juízo. Desta forma, o artigo de fé do juízo, a sua força de formação das
consciências, é um conteúdo central do Evangelho e é deveras uma Boa Nova. E também o é
para todos os que sofrem sob a injustiça do mundo e procuram a justiça. Compreende-se desta
forma o nexo entre o Reino de Deus e os "pobres", os que sofrem e todos aqueles dos quais
falam as bem-aventuranças do sermão da montanha. Eles são protegidos pela certeza do juízo,
pela certeza que existe a justiça. Eis o verdadeiro conteúdo do artigo sobre o juízo, sobre
Deus-juiz: há justiça. As injustiças do mundo não são a última palavra da história. Existe uma
justiça. Só quem não quer que haja justiça, se pode opor a esta verdade. Se tomarmos a sério o
juízo e a seriedade da responsabilidade que disso nos advém, compreendemos bem o outro
aspecto deste anúncio, isto é, a redenção, o facto de que na cruz Jesus assume os nossos
pecados; que o próprio Deus na paixão do Filho se torna advogado de nós, pecadores, e desta
forma torna possível a penitência, a esperança para o pecador arrependido, esperança expressa
maravilhosamente nas palavras de São João: diante de Deus, tranquilizaremos o nosso
coração, independentemente do que eles nos reprova. "Deus é maior que os nossos corações e
conhece todas as coisas" (1 Jo 3, 20). A bondade de Deus é infinita, mas não devemos reduzir
esta bondade a uma pieguice afectada sem verdade. Só acreditando no justo juízo de Deus, só
tendo fome e sede de justiça (cf. Mt 5, 6) é que abrimos o nosso coração, a nossa vida à
misericórdia divina. Vê-se: não é verdade que a fé na vida eterna torna insignificante a vida
terrena. Pelo contrário: só se a medida da nossa vida for a eternidade, também a vida na terra
é grande e o seu valor é imenso. Deus não é o concorrente da nossa vida, mas a garantia da
nossa grandeza. Desta forma voltamos ao ponto de partida: Deus. Se considerarmos bem a
mensagem cristã, não falamos de muitas coisas. Na realidade, a mensagem cristã é muito
simples. Falamos de Deus e do homem e, desta forma, dizemos tudo.
ZP05042217

Santo Ambrósio (c. 340-397), bispo de Milão e doutor da Igreja


Comentário ao Salmo I, 33

“Cumpriu-se hoje esta palavra da Escritura que acabais de ouvir”

Sacia-te primeiro do Antigo Testamento para em seguida beberes do Novo. Se não beberes do
primeiro, não poderás saciar-te do segundo. Bebe do primeiro para atenuares a sede que tens,
do segundo para a estancares por completo. […] Sacia-te da taça do Antigo e do Novo
Testamento porque, em ambos os casos, é Cristo que bebes. Bebe Cristo, porque Ele é a vinha
(Jo 15, 1), Ele é a rocha de onde brotou a água (1Co 10, 3), Ele é a fonte da vida (Sl 36, 10).
Bebe Cristo, porque Ele é “o rio, cujos canais alegram a cidade de Deus” (Sl 45, 5), Ele é a
paz (Ef 2, 14) e “do seu seio correrão rios de água viva” (Jo 7, 38). Bebe Cristo, para te
saciares do sangue da tua redenção e do Verbo de Deus. O Antigo Testamento é a sua palavra,
como o é o Novo Testamento. Bebemos e comemos a Sagrada Escritura; nessa altura, o Verbo
Eterno desce às veias do espírito e penetra na vida da alma. “Nem só de pão vive o homem,
mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8, 3; Mt 4, 4). Sacia-te, pois, deste Verbo,
mas segundo a ordem que convém. Começa por bebê-Lo no Antigo Testamento, passando
depois, sem tardar, ao Novo.

Ele próprio nos diz, como se tivesse pressa: “Povo que andas nas trevas, vê esta grande luz; tu
que habitas uma terra de sombras, uma luz brilha para ti” (Is 9, 2). Bebe, pois, sem demora, e
uma grande luz te inundará; não será a luz quotidiana do dia, do sol ou da lua, mas a luz que
afasta as sombras da morte.

Orígenes (c. 185-253), sacerdote e teólogo


Homilias sobre São Lucas, nº 22, 1-3

“Preparai o caminho do Senhor”


Está escrito sobre João: “Uma voz grita no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitar
as suas veredas”. Mas o que vem a seguir diz respeito exclusivamente ao Senhor, nosso
Salvador. Porque não foi João quem “aplanou os vales”, mas o Senhor, nosso Salvador.
Considere cada um o que era antes de ter fé; e constatará que era um vale profundo, a pique,
mergulhado nos abismos. Mas veio o Senhor Jesus, e enviou o Espírito Santo em seu lugar;
foi então que “os vales foram aplanados”. Foram aplanados com as boas obras e os frutos do
Espírito Santo. A caridade não deixa subsistir em ti vale algum e, se possuíres a paz, a
paciência e a bondade, para além de deixares de ser vale, também começarás a ser montanha
de Deus. […]

“As montanhas e as colinas serão abaixadas”. Nestas montanhas e nestas colinas abaixadas,
podemos ver os poderes inimigos que se erguiam contra os homens. Com efeito, para que os
vales de que falamos sejam aplanados, os poderes inimigos, as montanhas e as colina s, terão
de ser abaixados.

Mas vejamos se a profecia seguinte, que diz respeito ao advento de Cristo, se realizou. Com
efeito, o texto diz em seguida: “E todos os caminhos tortuosos serão endireitados”. Todos nós
éramos tortuosos – pelo menos se estivermos a falar do que éramos e não daquilo que somos
hoje – e a vinda de Cristo que se realizou na nossa alma endireitou tudo quanto era tortuoso.
[…] Rezemos para que o seu advento se realize todos os dias em nós, e para que possamos
dizer: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20).

Evangelho segundo S. Lucas 4,16-30.

Veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de
sábado na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías
e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: «O Espírito do
Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres;
enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da
vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte
do Senhor.» Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos
os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a dizer-
lhes: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir.» Todos
davam testemunho em seu favor e se admiravam com as palavras repletas de graça
que saíam da sua boca. Diziam: «Não é este o filho de José?» Disse-lhes, então:
«Certamente, ides citar-me o provérbio: 'Médico, cura-te a ti mesmo.' Tudo o que
ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaúm, fá-lo também aqui na tua terra.»
Acrescentou, depois: «Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua
pátria. Posso assegurar-vos, também, que havia muitas viúvas em Israel no tempo
de Elias, quando o céu se fechou durante três anos e seis meses e houve uma
grande fome em toda a terra; contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas, mas
sim a uma viúva que vivia em Sarepta de Sídon. Havia muitos leprosos em Israel, no
tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão o sírio Naaman.»
Ao ouvirem estas palavras, todos, na sinagoga, se encheram de furor. E, erguendo-
se, lançaram-no fora da cidade e levaram-no ao cimo do monte sobre o qual a
cidade estava edificada, a fim de o precipitarem dali abaixo. Mas, passando pelo
meio deles, Jesus seguiu-o seu caminho.

Orígenes (c.185-253), presbítero e teólogo


Homilia sobre São Lucas

«Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos Nele»

Quando lês que Jesus ensinava nas sinagogas e que todos celebravam os seus louvores (Lc 4,
15), guarda-te de considerar felizes unicamente os ouvintes de Cristo e de te julgares como
privado do seu ensinamento. Porque, se é verdade o que diz a Escritura, o Senhor também fala
agora na nossa assembleia como outrora nas reuniões dos judeus.
«O Espírito do Senhor enviou-Me para anunciar a Boa Nova aos pobres». Os pobres
significam os pagãos; estes eram efectivamente pobres, não possuíam nada, nem Deus, nem
lei, nem profetas. Por que razão O enviou Deus como mensageiro aos pobres? Para
«proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista» (Lc 4, 18), porque é
pela sua palavra e pelo seu ensinamento que os cegos recuperam a vista…
«Jesus enrolou o livro, entregou-o ao responsável e depois sentou-se. Todos os que estavam
na sinagoga tinham os olhos fixos Nele» (Lc 4, 20). Também agora, se quereis, nesta mesma
assembleia, os vossos olhos podem fixar-se no Salvador. Porque sempre que aplicas a atenção
mais profunda do teu coração a contemplar a Sabedoria, a Verdade e o Filho único de Deus,
os teus olhos vêem Jesus. Feliz a assembleia da qual a Escritura dá este testemunho: todos
tinham os olhos fixos Nele! Como gostaria que a nossa assembleia merecesse semelhante
testemunho e que os olhos de todos, catecúmenos e fiéis, homens, mulheres e crianças, vissem
Jesus não com os olhos do corpo mas com os do espírito! Porque quando O contemplardes, o
vosso rosto e o vosso olhar serão iluminados com a sua luz e podereis dizer: «Resplandeça
sobre nós, Senhor, a luz da vossa face» (Sl 4, 7).

Santo Ambrósio (c. 340-397), bispo de Milão e doutor da Igreja


Os Mistérios, 16-21

Pela fé, receber a cura e entrar na verdadeira vida

Naaman era sírio, tinha lepra e ninguém conseguia purificá-lo da doença. [...] Foi a Israel e
Eliseu ordenou-lhe que se banhasse sete vezes no Jordão. Então Naaman pensou que os rios
da sua pátria tinham águas melhores, nas quais ele se tinha banhado muitas vezes sem ter sido
purificado da lepra. [...] Mas acabou por se banhar e, imediatamente purificado, compreendeu
que a purificação não vem das águas, mas da graça. [...]

Foi por isso que [no dia do teu baptismo] te disseram: não creias apenas naquilo que vês,
porque poderias dizer, também tu, como Naaman. É esse o grande mistério que «nem o olho
viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passou pelo pensamento do homem» (1Cor 2, 9)? Vejo
água, como sempre vi! Terá esta água o poder de me purificar, quando tantas vezes me banhei
nela sem ser purificado? Aprende que a água não purifica sem o Espírito.
E foi por isso que leste que, no baptismo, «três são os que testificam: o Espírito, a água e o
sangue» (1Jo 5, 7-8). É que, se retirares um que seja, o sacramento do baptismo desaparece.
Com efeito, o que é a água sem a cruz de Cristo? É um vulgar elemento, sem qualquer alcance
sacramental. E, da mesma maneira, sem água não há mistério do novo nascimento, porque
«quem não nascer da água e do espírito não pode entrar no Reino de Deus» (Jo 3, 5). O
catecúmeno acredita na cruz do Senhor Jesus, cujo sinal recebeu; mas, se não tiver sido
baptizado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, não pode receber o perdão dos seus
pecados, nem acolher o dom da graça espiritual.

O sírio Naaman mergulhou sete vezes, segundo a Lei; tu, porém, foste baptizado em nome da
Trindade. Tu confessaste a tua fé no Pai, confessaste a tua fé no Filho, confessaste a tua fé no
Espírito Santo. Recorda a sucessão destes factos. Nesta fé, morreste para o mundo,
ressuscitaste para Deus.

Santa Faustina Kowalska (1905-1938), religiosa

Pequeno Diário, § 948-949

“Todos quantos Lhe tocavam na orla do manto eram salvos”

Misericórdia divina, que nos acompanhas durante toda a vida, confio em ti.
Misericórdia divina, que nos envolves em particular na hora da morte, confio em ti.
Misericórdia divina, que nos dás a vida eterna, confio em ti.
Misericórdia divina, presente em todos os momentos da vida, confio em ti.
Misericórdia divina, que nos proteges do fogo do inferno, confio em ti.
Misericórdia divina, que convertes pecadores inveterados, confio em ti.
Misericórdia divina, maravilha para os anjos, inconcebível para os santos, confio em ti.
Misericórdia divina, insondável em todos os mistérios divinos, confio em ti.
Misericórdia divina, que nos perdoas todas as misérias, confio em ti.
Misericórdia divina, fonte da nossa felicidade e da nossa alegria, confio em ti.
Misericórdia divina, que nos chamas do nada à existência, confio em ti.
Misericórdia divina, que sustentas em tuas mãos tudo quanto existe, confio em ti.
Misericórdia divina, coroa de tudo quanto existe e existirá, confio em ti.
Misericórdia divina, na qual estamos mergulhados, confio em ti.
Misericórdia divina, doce apaziguamento dos corações atormentados, confio em ti.
Misericórdia divina, única esperança das almas desesperadas, confio em ti.
Misericórdia divina, repouso dos corações, paz no meio dos temores, confio em ti.
Misericórdia divina, delícia e maravilha das almas santas, confio em ti.
Misericórdia divina, que nos dás esperança contra toda a esperança, confio em ti.

Ó Deus eterno, cuja misericórdia é insondável e cujos tesouros de compaixão são


inesgotáveis, olha-nos com bondade e cumula-nos da tua misericórdia, para que não
desesperemos nos momentos difíceis, nem percamos a coragem, mas nos submetamos, com
grande confiança, à tua santa vontade, que é o amor e a própria misericórdia.
Faustino de Roma (2ª metade do século IV), presbítero
Tratado sobre a Trindade

"Deus consagrou a Jesus de Nazaré pelo Espírito Santo e pelo seu poder" (Act 10,38)

O nosso Salvador tornou-se Cristo ou Messias pela sua encarnação e permanece verdadeiro
rei e verdadeiro sacerdote... Entre os Israelitas, os sacerdotes e os reis recebiam uma unção de
óleo...; chamavam-lhes "crismados" ou "cristos" - ao passo que o Salvador, que é
verdadeiramente o Cristo, foi consagrado pela unção do Espírito Santo...

Sabemos que isto é verdade pelo próprio Salvador. Quando recebeu o livro de Isaías, abriu-o e
nele leu: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me consagrou pela unção"; depois,
declarou que a profecia acabava de se realizar para aqueles que o estavam a ouvir. Por outro
lado, Pedro, o príncipe dos apóstolos, ensinou-nos que aquele óleo santo, aquele crisma pelo
qual o Senhor se manifesta como Cristo, é o Espírito Santo, por outras palavras, o poder de
Deus. Nos Actos dos Apóstolos, quando falava a esse homem cheio de fé e de misericórdia
que era o conturião, ele dsse: "Isso começou na Galileia, depois do baptismo proclamado por
João. A Jesus de Nazaré, Deus consagrou-o pelo Espírito Santo e pelo seu poder. Por onde
quer que passasse, realizava milagres e maravilhas e libertava todos os que tinham caído no
poder do demónio" (10, 37 sgg).

Vedes, pois, que Pedro também o disse: esse Jesus, na sua encarnação, recebeu a unção que o
"consagrou pelo Espírito Santo e pelo seu poder". É por isso que o mesmo Jesus, na sua
encarnação, foi feito Cristo, Ele que a unção do Espírito Santo fizera rei e sacerdote para
sempre.

Faustino de Roma (2ª metade do século IV), presbítero


A Trindade (trad. do Breviário)
"O Espírito do Senhor está sobre mim porque me consagrou pela unção"

O nosso Salvador tornou-se verdadeiramente Cristo ou Messias na sua incarnação e tornou-se


verdadeiro rei e verdadeiro sacerdote. Ele mesmo é uma e outra coisa, porque é preciso que
nada limite o Salvador. Ouçamo-lo dizer que foi feito rei: "Ele me constituiu rei em Sião, na
Sua santa montanha" (Sl 2,6). Ouçamos ainda o testemunho do Pai dizendo que Ele é
sacerdote: "Tu és sacerdote para sempre, à maneira de Melquisedeque" (Sl 109,4)... Ele é,
pois, pela sua incarnação, salvador, sacerdote e rei. Mas recebeu a unção de forma espiritual e
não material. Aqueles que, entre os Israelitas, eram sacerdotes e reis recebiam uma unção
material de óleo que os fazia sacerdotes ou reis. Ninguém possuia em si mesmo estes dois
títulos: cada um ou era sacerdote ou era rei. A perfeição e a plenitude totais pertencem
exclusivamente a Cristo, a Ele que tinha vindo para cumprir a Lei.
Ainda que nenhum deles tivesse os dois títulos, no entanto, uma vez que tinham recebido
materialmente a unção com o óleo real ou com o sacerdotal, chamavam-lhes "messias" ou
"cristos", quer dizer, "ungidos". Ao passo que o Salvador, que é verdadeiramente o Cristo, foi
consagrado pela unção do Espírito Santo, para que se cumprisse o que estava escrito sobre
Ele: "Por isso Deus, o teu Deus, te consagrou pela unção com o óleo da alegria, preferindo-te
aos teus companheiros" (Sl 44,8). Ele está acima dos companheiros que têm também o nome
de "cristos" por terem sido ungidos, porque Ele foi consagrado com o óleo da alegria, que não
designa outra coisa senão o próprio Espírito Santo.
S. João Crisóstomo (cerca de 345-407), bispo de Antioquia e, depois, de Constantinopla,
doutor da Igreja
Sermão sobre Elias e a viúva
Acolher Cristo

A viúva de Sarepta acolhe o profeta Elias com toda a generosidade, esgota em sua honra toda
a sua pobreza, embora seja de Sídon, estrangeira, ignorante da doutrina dos profetas acerca da
esmola e da palavra de Cristo: "Vistes-me com fome e destes-me de comer." (Mt 25,35)
Que perdão haverá para nós se, após tais exortações, após a promessa de tão grandes
recompensas, após a promessa do reino dos Céus, não alcançarmos a mesma medida de
bondade desta viúva? Ela era de Sídon, estrangeira, viúva, carregada de filhos, vê a ameaça da
fome e o perigo de morte, apressa-se a acolher um homem desconhecido e responsável pela
fome que ela vive e, no entanto, não poupa na medida da farinha; mas nós, que beneficiámos
das profecias, que aproveitámos dos ensinamentos divinos, que temos possibilidade de
prescrutar o que vai acontecer, que não vemos a fome apertar-nos, que possuimos muito mais
do que esta mulher, que defesa poderemos apresentar se nos agarrarmos a estes bens e
negligenciarmos a nossa própria salvação?
Manifestemos, pois, para com os pobres uma grande compaixão, a fim de que também nós
sejamos dignos dos bens que hão-se vir, pela graça e pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo
para com os homens.

Beato Guerric d'Igny (cerca de 1080 - 1157), abade cisterciense


4º sermão para a Epifania

"Reconhecer Cristo na sua humildade e descer como ele"

"Em mim se perturba minha alma", ó Deus, quando penso nos meus pecados; "então, lembro-
me de ti, no país do Jordão" (Sl 41,7) - quer dizer, recordando-me da forma como purificaste
Naaman, o leproso, na sua humilde descida até ao rio... "Ele desceu e lavou-se sete vezes no
Jordão, como lhe tinha prescrito o homem de Deus e ficou purificado (2Re 5,14). Desce
também tu, ó minha alma, desce do carro do orgulho até às águas salutares do Jordão que,
desde a fonte da casa de David, corre agora pelo mundo inteiro "para lavar todo o pecado e
toda a mancha" (Za 13,1). Certamente que essa nascente é a humildade da penitência, que
corre ao mesmo tempo graças a um dom de Cristo e graças ao seu exemplo e que, pregada
doravante por toda a terra, lava os pecados do mundo inteiro... O nosso Jordão é um rio puro;
será, pois, impossível aos soberbos acusarem-te, se mergulhares totalmente nele, se te
sepultares, por assim dizer, na humildade de Cristo...

Claro que o nosso baptismo é único, mas uma tal humildade é como um novo baptismo. Com
efeito, ela não reitera a morte de Cristo mas leva à plenitude a mortificação e a sepultura do
pecado: o que foi celebrado sacramentalmente no baptismo encontra a sua plena realização
sob esta nova forma. Sim, uma tal humildade abre os céus e dá o espírito de adopção; o Pai
reconhece o seu filho, recriado na inocência e na pureza de uma criança de novo gerada. É por
isso que a Escritura menciona, e com razão, que a carne de Naaman foi reconstruida à
semelhança de um recém-nascido... Nós que perdemos a graça do nosso primeiro baptismo...,
eis que descobrimos o verdadeiro Jordão, isto é, a descida da humildade... Basta-nos não
recear descer cada dia mais profundamente... com Cristo.

Guilherme de Saint-Thierry (c. 1085-1148), monge beneditino, depois cisterciense


A Contemplação de Deus, 12

“Havia muitas viúvas em Israel”

Infeliz da minha alma, que se encontra nua a transida, Senhor; e que deseja ser aquecida ao
calor do Teu amor. […] Na imensidão do deserto do meu coração, não apanho uns raminhos,
como a viúva de Sarepta, junto apenas estas vergônteas, a fim de preparar qualquer coisa para
comer, com um punhado de farinha e uma gota de azeite, e em seguida, entrando na tenda
onde habito, morrer (1Rs 17, 10ss.). Mas não morrerei tão depressa; não, Senhor, antes
viverei para propalar as Tuas obras (Sl 117, 17).

Aqui me encontro, pois, na minha solidão […] e abro a boca para Ti, Senhor, procurando o
sopro da vida. Por vezes, Senhor […] tu metes-me qualquer coisa na boca do coração; mas
não me permites saber do que se trata. Provo um sabor tão doce, tão suave, tão reconfortante,
que outro não busco; quando o recebo, porém, não me permites discernir de que se trata. […]
Quando o recebo, tenho vontade de o reter e o ruminar, de o saborear, mas ele passa bem
depressa. […]

Aprendo pela experiência o que dizes do Espírito no Evangelho: “Ninguém sabe de onde vem
nem para onde vai” (Jo 3, 8). Com efeito, tudo quanto tive o cuidado de confiar à minha
memória, a fim de poder revê-lo quando quisesse, submetendo-o assim à minha vontade, tudo
isso encontro morto e insípido. Oiço as Tuas palavras: “O Espírito sopra onde quer”, e
descubro em mim que Ele não sopra quando eu quero, mas quando Ele quer. […]

Para Ti, pois, Senhor, para Ti se voltam os meus olhos (Sl 122, 1). […] Quanto tempo
tardarás? Quanto tempo se demorará a minha alma junto a Ti, infeliz, ansiosa, em cuidados?
(Sl 12, 2). Esconde-me, peço-Te, no segredo do Teu rosto, longe das intrigas dos homens;
protege-me na tenda, longe da guerra das línguas (Sl 31, 21).

Evangelho segundo S. Lucas 4,31-37. – cf.par. Mc 1,21-28; Mt 7,28-29

Desceu, depois, a Cafarnaúm, cidade da Galileia, e a todos ensinava ao sábado. E estavam


maravilhados com o seu ensino, porque falava com autoridade. Encontrava-se na sinagoga um
homem que tinha um espírito demoníaco, o qual se pôs a bradar em alta voz: «Ah! Que tens
que ver connosco, Jesus de Nazaré? Vieste para nos arruinar? Sei quem Tu és: o Santo de
Deus!» Jesus ordenou-lhe: «Cala-te e sai desse homem!» O demónio, arremessando o homem
para o meio da assistência, saiu dele sem lhe fazer mal algum. Dominados pelo espanto,
diziam uns aos outros: «Que palavra é esta? Ordena com autoridade e poder aos espíritos
malignos, e eles saem!» A sua fama espalhou-se por todos os lugares daquela região.
Homilia grega do séc. IV para a 8ª da Páscoa, erradamente atribuída a S. João Crisóstomo

“Que queres Tu de nós, Jesus de Nazaré?”

Não vos apresento um conjunto de bizarrias inauditas, mas aquilo mesmo que foi
antecipadamente escrito no Antigo Testamento pelos profetas. Não ouvistes o grito de
Moisés: “Suscitar-lhes-ei um profeta como tu, entre os seus irmãos” (Dt 18, 18)? Não ouvistes
Isaías anunciar: “A virgem está grávida e dará à luz um filho” (7, 14)? Não ouvistes David
proclamar: “Baixará como a chuva sobre a relva” (Sl 71, 6)? Acreditai, pois, nos profetas,
compreendei a realidade que eles anunciam, e encontrareis Jesus, o nazareno (Mt 2, 23). Eis
que vos mostrei o caminho: quem quiser, siga-o. Eis que acendi a chama; saí das trevas.

Jesus, o nazareno: identifico-O pelo nome e pela pátria. Não falo do Jesus que formou a
abóbada dos céus, que acendeu os raios do sol, que concebeu as constelações no céu, que
acende a lâmpada da lua, que fixou o tempo aos dias, que atribuiu o curso às noites, que
estabeleceu a terra firme sobre as águas, que pôs travão ao mar pela Sua palavra. Jesus, o
nazareno: Aquele acerca de Quem Natanael proclamou as suas dúvidas: “De Nazaré pode vir
alguma coisa boa?” (Jo 1, 46). Aquele diante de Quem a tropa de demónios tremia dizendo:
“Que queres Tu, Jesus de Nazaré?” “Jesus de Nazaré”, diz o apóstolo Pedro, “homem
acreditado por Deus junto de vós, com milagres, prodígios e sinais, que Deus realizou no
meio de vós, por Seu intermédio” (Act 2, 22).

S. Cirilo de Alexandria (380-444), bispo, doutor da Igreja


Sobre o profeta Isaías, 5,5; p. 70, 1352

«Mas ele, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho»

Cristo quis levar para Si o mundo inteiro e conduzir para Deus Pai todos os habitantes da
terra... As gentes vindas do paganismo, enriquecidas pela fé em Cristo, beneficiaram do
tesouro divino da proclamacão que traz a salvação. Por ela, tornaram-se participantes do
Reino dos céus e companheiros dos santos, herdeiros das realidades inexprimíveis (Ef 2, 19.
3,6)... Cristo promete a cura e o perdão dos pecados aos que têm o coração partido, e dá a
vista aos cegos. Como poderiam não ser cegos os que não reconhecem Aquele que é o
verdadeiro Deus? Não está o seu coração privado da luz divina e espiritual? A eles o Pai envia
a luz do verdadeiro conhecimento de Deus. Chamados pela fé, conheceram-nO; mais ainda,
eles foram reconhecidos por Ele. Quando eram filhos da noite e das trevas, tornaram-se filhos
da luz (Ef 5,8), pois o dia iluminou-os, o Sol da justiça ergueu-se para eles (Ml 3,20), e a
estrela da manhã apareceu-lhes em todo o seu esplendor.

Nada, portanto, se opõe a que apliquemos tudo o que acabamos de dizer aos filhos de Israel.
Também eles, com efeito, tinham o coração partido, eram pobres e como que prisioneiros, e
cheios de trevas... Mas Cristo veio anunciar os benefícios do Seu advento, precisamente aos
descendentes de Israel, antes de todos os outros, e proclamar, ao mesmo tempo, o ano da
graça do Senhor (Lc 4,19) e o dia da recompensa.
O ano da graça, é aquele em que Crito foi crucificado por nós. É que foi então que nos
tornámos agradáveis a Deus Pai. E damos fruto em Cristo, como Ele mesmo nos ensinou:
«Amen, amen, eu vo-lo digo: se o grão de trigo deitado à terra não morrer, ficará só; mas, se
morrer, dará fruto mais abundante» (Jo 12,24). Ele disse ainda: «Quando eu for elevado da
terra, atrairei a mim todos os homens» (Jo, 12,32). Em verdade, ele retomou a vida ao terceiro
dia, depois de ter calcado com os pés o poder da morte. Depois, disse aos seus discípulos:
«Todo o poder me foi dado sobre o céu e sobre a terra. Ide! De todas as nações fazei
discípulos» (Mt 28, 18-19).

Balduíno de Ford (? – c.1190), abade cisterciense


Sexto Tratado
«A sua palavra estava cheia de autoridade»

«A Palavra de Deus é viva e eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes» (Heb
4, 12). Com estas palavras quer o Apóstolo mostrar toda a grandeza, força e sabedoria da
Palavra de Deus aos que procuram Cristo, Palavra, força e sabedoria de Deus. Esta Palavra
estava no princípio com o Pai, eterna como Ele. Foi revelada, a seu tempo, aos apóstolos,
anunciada por eles e recebida humildemente pelo povo dos crentes.
Esta Palavra é viva: o Pai concedeu-lhe ter a vida em Si mesma tal como Ele tem a vida em Si
mesmo (Jo 5, 26). E não só é viva como também é vida, segundo está escrito: «Eu sou o
caminho, a verdade e a vida» (Jo 14, 6). E porque é vida, é viva e vivificante, pois, «assim
como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho faz viver aqueles que quer»
(Jo 5, 21). É vivificante quando ressuscita Lázaro do túmulo e lhe diz: «Vem cá para fora!»
(Jo 11, 43). Sempre que esta Palavra é proclamada, a voz que a pronuncia ressoa
exteriormente com uma força que, captada no interior, faz reviver os mortos, e (despertando a
fé) suscita verdadeiros filhos de Abraão (Mt 3, 9). Sim, é viva esta Palavra, viva no coração
do Pai, na boca de quem a proclama, no coração de quem crê e de quem ama.

Santo [Padre] Pio de Pietrelcina (1887-1968), capuchinho


Carta 3, 626 e 570

"Sai desse homem!"

As tentações não devem atemorizar-te; através delas, Deus quer experimentar e fortalecer a
tua alma e dá-te, ao mesmo tempo, a força para as venceres. Até agora, a tua vida tem sido a
de uma criança; doravante, o Senhor quer tratar-te como adulto. Ora as provas de um adulto
são bem superiores às da criança e isso explica porque ficas tão perturbado no início. Mas a
vida da tua alma depressa encontrará a sua calma: isso não tardará. Tem ainda um pouco de
paciência e tudo correrá bem.
Abandona, pois, essas vãs apreensões. Lembra-te de que não é a sugestão do Maligno que faz
a falta, mas antes o consentimento que deres a essas sugestões. Só uma vontade livre é capaz
do bem e do mal. Mas, quando a vontade geme sob o peso da prova que o Tentador inflige e
não quer o que ele lhe propõe, isso não só não é uma falta como é uma virtude.
Livra-te de cair na agitação, lutando contra as tentações, porque isso apenas lhes dará força. É
preciso tratá-las com desprezo e não te ocupares com elas. Volta o teu pensamento para Jesus
crucificado, para o seu corpo deposto nos teus braços e diz: "Eis a minha esperança, a fonte da
minha alegria! Agarro-me a ti com todo o meu ser e não te largarei antes que me tenhas posto
em lugar seguro".

Cardeal José Ratzinger (Papa Bento XVI)


Sermões de Quaresma, 1981

"Que palavra é esta?"

O instante a que a Bíblia chama "o princípio" mostra-nos Aquele que tinha o poder de criar o
ser e de dizer: "Faça-se!" e isso ser feito (Gn 1,1-3)... Essa palavra "Faça-se!" não gerou um
magma caótico. Quanto mais conhecemos o universo, mais encontramos nele uma
racionalidade cujos caminhos, ao serem percorridos pelo pensamento, nos deixam
maravilhados. Através deles, descobrimos esse Espírito criador a quem devemos igualmente a
razão. Albert Einstein escreveu que, nas leis da natureza, "se manifesta uma razão tão superior
que toda a racionalidade do pensamento e da vontade humana parece ser, por comparação, um
reflexo absolutamente insignificante".

Constatamos que o infinitamente grande, o universo das estrelas, é regido pelo poder de uma
Razão [Logos]. Mas aprendemos igualmente cada vez mais acerca do infinitamente pequeno,
a célula, os elementos fundamentais do ser vivo. Também aí descobrimos uma racionalidade
que nos espanta, de tal forma que temos de dizer, com S. Boaventura: "Quem não vê isso, é
cego. Quem não o ouve, é surdo. E quem não começa a rezar e a louvar o Espírito criador, é
mudo"...

Através da racionalidade da criação, o próprio Deus nos olha. A física e a biologia, todas as
ciências em geral, nos ofereceram uma nova e inaudita narrativa da criação. Essas imagens
grandes e novas fazem-nos conhecer o rosto do Criador. Recordam-nos que, no princípio, e no
mais profunco de cada ser, está o Espírito criador. O mundo não saíu das tevas e do absurdo.
Brotou da inteligência, da liberdade, da beleza que é amor. Ver tudo isto dá-nos a coragem
que nos permite viver e nos torna capazes de, com confiança, tomar sobre os nossos ombros a
aventura da vida.

Evangelho segundo S. Lucas 4,38-44. – cf.par. Mt 8,14-17; Mc 1,29-39

Deixando a sinagoga, Jesus entrou em casa de Simão. A sogra de Simão estava com muita
febre, e intercederam junto dele em seu favor. Inclinando-se sobre ela, ordenou à febre e esta
deixou-a; ela erguendo-se, começou imediatamente a servi-los. Ao pôr-do-sol, todos quantos
tinham doentes, com diversas enfermidades, levavam-lhos; e Ele, impondo as mãos a cada um
deles, curava-os. Também de muitos saíam demónios, que gritavam e diziam: «Tu és o Filho
de Deus!» Mas Ele repreendia-os e não os deixava falar, porque sabiam que Ele era o
Messias. Ao romper do dia, saiu e retirou-se para um lugar solitário. As multidões
procuravam-no e, ao chegarem junto dele, tentavam retê-lo, para que não se afastasse delas.
Mas Ele disse-lhes: «Tenho de anunciar a Boa-Nova do Reino de Deus também às outras
cidades, pois para isso é que fui enviado.» E pregava nas sinagogas da Judeia.
São Jerónimo (347-420), presbítero, tradutor da Bíblia, doutor da Igreja
Homilias sobre o Evangelho de Marcos, nº 2

Cristo médico

“A sogra de Pedro estava de cama, com febre”. Que Cristo venha a nossa casa, entre e cure
com uma simples palavra a febre dos nossos pecados. Todos nós temos febre. Sempre que nos
irritamos, ficamos com febre; todos os nossos defeitos são outros tantos ataques de febre.
Peçamos aos apóstolos que peçam a Jesus que Se aproxime de nós e nos dê a mão; porque,
quando Ele nos tocar na mão, a febre desaparecerá.

O médico dos médicos é um médico eminente e sério. Moisés é médico, Isaías e todos os
santos são médicos; mas Jesus é o médico dos médicos. Ele sabe muito bem tomar o pulso e
sondar os segredos das doenças. Ele não toca na testa, nem na orelha, nem em nenhuma outra
parte do corpo, mas toma a mão. Quando a nossa mão revela sintomas de más acções, não
podemos levantar-nos, não conseguimos andar, porque estamos realmente doentes. […] Mas
este médico misericordioso aproxima-Se do nosso leito; Aquele que pôs aos ombros a ovelha
doente avança agora para junto do nosso leito.

Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona (norte de África) e doutor da Igreja


Solilóquios

“As multidões procuravam-no”

Desde agora, Senhor, é a Ti somente que amo, a Ti somente me prendo, a Ti somente procuro,
a Ti somente estou disposto a servir, porque só Tu ordenas com justiça. Às Tuas ordens
desejo submeter-me; ordena, peço-Te, ordena o que quiseres, mas cura-me, abre os meus
ouvidos, a fim de que possa ouvir as Tuas palavras. […]

Recebe-me como um fugitivo, Senhor, ó Pai excelente. Sofri tempo demais; tempo demais
estive submetido aos Teus inimigos e fui joguete de mentiras. Recebe-me como Teu servo que
quer afastar-se de todas as coisas vãs. […] Sinto que tenho necessidade de regressar a Ti;
bato, abre-me a porta, ensina-me como se chega a Ti. […] É para junto de Ti que pretendo ir,
dá-me pois os meios de chegar até Ti. Se Te afastares, pereceremos! Mas Tu a ninguém
abandonas, porque és o Soberano Bem; todos quantos Te procuram rectamente Te encontram.
És Tu que nos mostras como havemos de procurar-Te com rectidão. Ó meu Pai, faz com que
Te procure, liberta-me do erro, não permitas que, na minha busca, encontre outra coisa que
não a Ti. Se nada mais desejo que não a Ti, faz com que apenas Te encontre a Ti, ó meu Pai.

S. Bernardo (1091-1153), monge cisterciense e doutor da Igreja


Sermão 84 sobre o Cântico dos Cânticos

"As multidões procuravam-no. Mas ele disse-lhes: 'É preciso que eu vá também às
outras cidades'"
Que cada alma que procura Deus saiba que foi ultrapassada por Ele, porque Ele a procurou
primeiro... "Durante as noites, procurei aquele que o meu coração ama." (Ct 3,1) A alma
procura o Verbo mas foi o Verbo quem primeiro a procurou. Entregue a si mesma, a nossa
alma não seria mais do que um sopro que parte ao acaso e não regressa. Escutai as queixas e
as súplicas daquela que erra e que perdeu a sua rota: "Errei como uma ovelha perdida; vem à
procura do teu servidor" (Sl 118,176). Ó homem, tu queres regressar; mas, se isso dependesse
apenas da tua vontade, porque pedirias socorro?... É evidente que a nossa alma quer regressar
mas não pode; ela é apenas um sopro errante que por si mesmo nunca regressará... Mas donde
lhe vem esta vontade? Do fato de que o Verbo já a visitou e procurou. Esta procura não foi vã,
uma vez que suscitou a vontade sem a qual não há retorno possível.
Mas não basta ser assim procurada uma só vez; a alma está demasiado esgotada e a
dificuldade de retorno é demasiado grande... "A vontade está em mim, diz S. Paulo, mas não
consigo fazer o bem" (Ro 8,18). Que pede então a alma no salmo que eu citava? Apenas que a
procurem; porque ela não procuraria se não tivesse já sido procurada e não recomeçaria a
procurar se a tivessem já suficientemente procurado.

Guilherme de Saint-Thierry (c. 1085-1148), monge beneditino e, mais tarde, cisterciense.


Meditações
«Saiu e retirou-Se para um lugar deserto»

Ó Tu, meu refúgio e minha força, leva-me, como outrora levaste o teu servo Moisés, ao
interior do teu deserto, ao lugar onde arde a sarça sem se consumir (cf. Ex 3), onde a alma
invadida pelo fogo do Espírito Santo, se torna ardente, sem se consumir, mas purificando-se.
Leva-me a esse lugar onde não é possível permanecer e por onde não se avança sem antes se
terem desatado as correias dos entraves carnais, onde Aquele que é não Se deixa ver
certamente tal como é, mas onde, no entanto, O ouvem dizer: «Eu sou Aquele que sou!».
Nesse lugar, é ainda muito necessário cobrir o rosto para não ver o Senhor face a face (2 Rs
19, 13), mas há que esforçar-se em escutar, na humildade e na obediência, para discernir o
que Deus fala dentro do coração.
Enquanto espero, esconde-me, Senhor, no recôndito da tua tenda (Sl 26 [27], 5), no dia da
desgraça; esconde-me ao abrigo da tua face, longe das línguas provocadoras (Sl 30 [31], 21),
porque Tu me impuseste o teu jugo tão suave e o teu fardo tão leve (Mt 11, 30). E, quando Tu
me fazes medir a distância do teu serviço com o do mundo, com voz terna e doce me
perguntas se é mais agradável servir-Te a Ti, o Deus vivo, do que os deuses estranhos. Então,
eu adoro essa mão que pesa sobre mim e exclamo: «Já me dominaram por demasiado tempo
outros mestres, que não Tu! Só a Ti desejo pertencer, porque o teu braço me mantém
erguido!»

Santa Teresa de Ávila (1515-1582), carmelita, doutora da Igreja


O Caminho da Perfeição, cap. 26/28

"Saíu e retirou-se para um local deserto"


Como não recordar um Mestre como este, que nos ensinou a oração, que a ensinou com tanto
amor e com um tão vivo desejo de que ela nos seja proveitosa?... Sabeis que Ele nos ensina a
rezarmos no isolamento. É assim que Nosso Senhor fazia sempre, quando rezava, não que isso
lhe fosse necessário, mas porque queria dar-nos o exemplo. Já dissemos que não seríamos
capazes de falar ao mesmo tempo a Deus e ao mundo. Ora não fazem outra coisa os que
recitam as suas orações e, ao mesmo tempo, escutam o que se diz à volta deles, ou se
demoram nos pensamentos que lhes ocorrem sem se preocuparem em afastá-los.

Não falo daquelas indisposições que aparecem por vezes e, ainda menos, da melancolia ou da
fraqueza de espírito que afligem certas pessoas e as impedem de se recolher, apesar dos seus
esforços. O mesmo acontece com aquelas tempestades interiores que às vezes podem
perturbar os fiéis servos de Deus, mas que Este permite para seu maior bem. Na sua aflição,
procuram em vão a calma. Façam o que fizerem, não conseguem estar atentos às orações que
pronunciam. O seu espírito, longe de se fixar em nada, parte de tal maneira à aventura que
eles parecem ter sido atingidos por uma espécie de frenesim. Pelo sofrimento que isso lhes
provoca, verão bem que a culpa não é deles; não se atormentem, pois, por isso... Uma vez que
a sua alma está doente, que se apliquem a conceder-lhe algum repouso e se ocupem em
qualquer outra obra de virtude. É isso que devem fazer as pessoas que se vigiam a si mesmas
e que compreendem que não se poderia falar a Deus e ao mundo ao mesmo tempo.

O que depende de nós é que tentemos estar no isolamento para rezar. Queira Deus que isso
baste, repito, para compreendermos em presença de quem estamos e que resposta dá o Senhor
aos nossos pedidos! Pensais que Ele se cala, de tal forma que não o ouçamos? Certamente que
não. Ele fala-nos ao coração quando é o coração que lhe reza.

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