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O LUGAR DO ALUNO NEGRO 93

Racismo e Educação Escolar: reflexões sobre o lugar do aluno


negro

Racism and Schooling: Reflections on the place attributed to Afro-


Brazilian students

Sandra Cordeiro de Melo1


Mônica Pereira dos Santos1
Celia Regina Nonato da Silva Loureiro2
Atila Calvente1

Resumo
Este artigo é parte de uma pesquisa desenvolvida em uma escola municipal do Rio de Janeiro,
pertencente à Segunda Coordenadoria Regional de Educação, entre os anos de 2012 e 2015. Objetiva
analisar e discutir, omnileticamente, de que formas o racismo e os mecanismos de invisibilidade
imputados ao aluno negro colocam-no em um lugar de exclusão nas escolas públicas brasileiras. O
argumento central deste estudo é o de que tais dispositivos, cotidianamente exercidos na escola tanto
de forma sutil como explícita, engendram nos alunos negros uma percepção negativa, desvalorizada
de si, fazendo com que a própria criança, ao internalizar esses valores por meio do modo como é
tratada, acabe introjetando a ideia do lugar de exclusão como sendo seu espaço natural. Baseia-se na
abordagem de Pesquisa-Ação e na perspectiva Omnilética de análise. Analisa e discute dois eventos
retirados do cotidiano da sala de aula, com base em estudos e pesquisas sobre o assunto. Conclui que,
nas escolas, apesar de serem maioria, os alunos negros trazem consigo uma “herança” de racismo e
invisibilidade, e que tal herança se manifesta na prática como ações efetivas de exclusão.
Palavras-chave: Aluno negro. Pesquisa-ação. Racismo.

Abstract
The present article is part of a research conducted in a municipal state school of the Second Regional Board
of Education in the city of Rio de Janeiro, Brazil, between 2012 and 2014. The aim was to analyze omnilectically

1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação. Av. Pasteur, 250, Fundos, 2º andar, 22290-240, Campus Praia Vermelha, Rio de Janeiro,
RJ, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: S.C. MELO. E-mail: <sandracmello@gmail.com>.
2
Colégio Pedro II, Serviço de Orientação Educacional. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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and discuss the ways in which racism and mechanisms of invisibility attributed to Afro-Brazilian students
place them in a position of exclusion in schools. Our central argument is that these mechanisms, which are
practiced daily in schools both subtly and explicitly, generate a negative self perception of themselves as Afro-
Brazilian students. Such perception results in the student’s internalization of those values while being
mistreated and/or neglected in school. The result is the development of a belief that his/her natural place in
school is that of exclusion. The article is based on action research and on the omnilectical perspective and we
analyze two events extracted from classroom routines. The results show that in the school investigated, despite
being a majority, Afro-Brazilian students “inherit” racism and invisibility within their process of identity
construction and this inheritance is manifested in the practice of effective exclusionary actions.
Keywords: Afro-Brazilian students. Action research. Racism.

Introdução consideraram-nas ainda insuficientes diante da


situação alarmante da desigualdade social, das
No ano de 2013, o Grupo de Trabalho das práticas de exclusão, do genocídio da juventude
Organizações das Nações Unidas (ONU) sobre negra.
Afrodescendentes no mundo veio ao Brasil, a Parece que o Brasil está ainda a viver as
convite do governo, para entrar em contato ideias do colonizador, à sombra do velho
com a realidade nacional no que diz respeito às sistema eurocêntrico, ao produzir e naturalizar
condições de vida dos afrodescendentes. Com injustiças sociais e cognitivas (Santos, 2008).
mais de dez anos de experiência, esse grupo, Sob essas condições, consideram-se positivas
estabelecido em 2002, após a Conferência as intervenções internacionais, como da ONU,
Mundial contra o Racismo pela então Comissão quando trazem dados que explicitam os
de Direitos Humanos, realizada em Durban, em diferentes sentidos da regulação social na
2001, visa trabalhar em prol do respeito às produção de miseráveis. O mapa traçado pela
diferenças étnico-raciais, como também na Organização sobre as condições de vida do afro-
defesa de políticas públicas para a garantia dos brasileiro urbano foi resultado dos encontros
realizados em Brasília, Bahia, São Paulo e Rio de
direitos políticos, civis e sociais das pessoas de
Janeiro, em diferentes segmentos da sociedade
matrizes africanas espalhadas pelo mundo pelo
local. Os participantes da pesquisa apresen-
processo das diásporas.
taram um relatório conclusivo ao governo
Ao estudar a situação atual, o grupo brasileiro e, em dezembro de 2013, divulgaram
também teve por incumbência fazer a avaliação publicamente os resultados num comunicado
do progresso efetivo da implantação das à imprensa (Organização das Nações Unidas,
recomendações sugeridas pelo relator especial 2016).
contra o racismo, no ano 2005. Após a pesquisa No relatório, o grupo afirma que ainda
de campo, os pesquisadores se debruçaram havia muito a fazer no combate ao racismo, pois
sobre os dados e analisaram a situação do país. tal questão, no Brasil, é “estrutural, institucional
Decerto que reconheceram os esforços do e interpessoal”. Os participantes reconheceram
governo e os avanços no que tange às políticas o viés cínico e hipócrita do mito da democracia
públicas para os afro-brasileiros. No entanto, racial3 brasileira, que camufla e enfraquece o
3
Foi Gilberto Freyre quem cunhou o termo “democracia racial” para se referir a um período da história nacional compreendido entre 1900 e 1940. Afirmou
que não havia preconceito no país e, sim, igualdade racial. O autor atribui a boa convivência entre as raças ao colonizador português, por gostar do
“contato voluptuoso com a mulher exótica” e, também, ao cruzamento racial ou miscigenação (Freyre, 2003, p.191).

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enfrentamento da questão. Para espanto dos população brasileira descende de povos


pesquisadores, um grupo significativo de africanos (Triumpho, 2014). E, mesmo assim, há
pessoas afirmou desconhecer o preconceito uma produção de violências que machucam e
étnico-racial no Brasil. Diante dessa constata- geram desigualdades sociais e econômicas,
ção, cumpre apresentar a liberação da agres- apontando para um padrão consistente de
sividade em relação ao negro nas conversas vulnerabilidades sociais, tanto nas escolas,
informais – o valor na linguagem, nos diálogos como no mercado de trabalho, na moradia
de muitas vozes (“I live in a world of others’ words” urbana e na aquisição da terra, quanto nos
- Problems of Dostoevsky’s Poetics, 143; direitos e na justiça. As próprias canções
Bakhtin, 1999), na dimensão para-o-outro do populares brasileiras revelam as condições do
homem de cor (Fanon, 2008). povo. No refrão da canção “A Carne”, por
Numa análise apressada das falas habi- exemplo, fica explícita a violência imposta ao
tualmente aceitáveis pela sociedade, o pro- negro pela lógica colonialista de orientação
blema da cultura racista aparece sem pudor. E capitalista. Objetificado e explorado, o negro é
o tom pejorativo muitas vezes parte do mais “a carne mais barata do mercado”4.
próximo, como “brincadeira” e informalidade: Os dados apresentados pelo Instituto
“Amanhã é dia de branco!”, “Serviço de preto”, “A Brasileiro de Geografia e Estatística (2010) in-
coisa tá preta”, “Preto de alma branca”, “A cor do formam sobre o mapa da desigualdade de
pecado”, “Denegrir”, “Cabelo ruim”, “Preto, se não renda, riqueza e poder da população afro-
suja na entrada, suja na saída”. Desvalorização? -brasileira. O desemprego atinge com força a
Não há dúvidas! população negra, cujo índice é 50% maior que
Para Fanon (2008), na Europa, ou seja, em o da população branca. Se a empregabilidade
todos os países supostamente civilizados e passa pela qualificação profissional, e se há uma
civilizadores, o negro simboliza o pecado, o discrepância na escolarização entre negros e
arquétipo dos valores inferiores, o lado ruim da brancos, os resultados produzidos e já espe-
personalidade. O autor também afirma que, rados só podem ser esses. A redução de
enquanto não se compreender tal fenômeno chances no mundo do trabalho dessa parcela
como produto forjado culturalmente, e assim, da população está registrada nos dados do
incorporado no inconsciente coletivo, será em censo que, em 2010, apontava uma defasagem
vão falar do ‘problema do negro’. de 1,6 ano escolar. A maior taxa de analfa-
À medida que o pesquisador se apro- betismo ocorre entre os brasileiros negros na
funda no tema e reconhece nessas falas res- faixa etária acima dos 15 anos, que vivem na
quícios de crenças culturais do colonialismo, região Norte e Nordeste (entre 24,7% e 27,1%).
também se aproxima das questões criadas pelo Outrossim, os dados revelam a violação
aniquilamento da cultura original do povo do direito à vida das crianças negras que sequer
colonizado. chegam a ocupar os bancos escolares dos anos
É importante ressaltar que o Brasil é o iniciais, pois morrem antes. É vergonhoso o
segundo país em população negra no mundo, índice de 60% de mortalidade entre essas
só perdendo para Nigéria. Mais da metade da crianças em relação à população branca no país.

4
A canção “A Carne”, de autoria dos compositores Marcelo Yuca, Ulisses Cappelletti e Seu Jorge, denuncia a produção de desvalorização, mas também
a resistência do povo negro no enfrentamento das questões racistas da sociedade brasileira.

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Reconhecendo a realidade dos 53,6% de cotidiano escolar. Aspectos como rendimento


pretos e pardos da população brasileira escolar, autoestima e reconhecimento da cul-
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, tura são, pelo que vêm denotando as pesquisas,
2010) e a profunda desigualdade socioeconô- atravessados por crenças pejorativas e precon-
mica entre eles e os brancos, é razoável pensar ceituosas, por arranjos e decisões opressivos e
esse fenômeno na perspectiva da política, das discriminatórios e por práticas de exclusão.
práticas e da cultura, para compreender a des- Tendo em vista tais colocações, este ar-
qualificação identitária do povo de matriz tigo objetiva analisar e discutir, omniletica-
africana no solo brasileiro. mente, de que formas o racismo e os meca-
Para onde tende essa reflexão? Para pen- nismos de invisibilidade imputados ao aluno
sar o lugar do negro na escola brasileira contem- negro colocam-no em um lugar de exclusão nas
porânea. Decerto há muita tensão entre escolas públicas brasileiras. O argumento
brancos e negros. A luta pelo reconhecimento central deste estudo é o de que tais dispositivos,
dos saberes dos afrodescendentes é antiga, cotidianamente exercidos na escola tanto de
mas só em 2003, como ação afirmativa, foi forma sutil como explícita, engendram nos
instituída pela Lei Federal nº 10.639/03 e norma- alunos negros uma percepção negativa e des-
tizada pelo Parecer do Conselho Nacional de valorizada de si, fazendo com que a criança, ao
Educação/Conselho Pleno, que se referem às internalizar tais valores por meio do modo como
Diretrizes Curriculares para Educação das Rela- é tratada, acabe introjetando a ideia do lugar
ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História de exclusão como sendo seu espaço natural.
Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2003),
posteriormente alterada pela Lei n° 11.645/08,
com vistas a estimular uma educação antir-
Procedimentos Metodológicos
racista (Brasil, 2008).
A pesquisa foi desenvolvida em uma
As políticas e as culturas atravessam as escola municipal do Rio de Janeiro, pertencente
práticas escolares. Como espaço social que é, à Segunda Coordenadoria Regional de Edu-
a escola tende a reproduzir preconceitos e cação, entre os anos de 2012 e 2015. Teve por
discriminações, em especial dos negros, ao objetivo geral proporcionar um exame
desconsiderar sua história para além da condi- detalhado das possibilidades de incrementar a
ção de escravos. Através dos tempos, foi des- aprendizagem e a participação de todos os
considerado o modo de ser, viver, pensar e alunos no âmbito escolar, por meio do auxílio
conviver dos afrodescendentes, e o legado aos professores no planejamento, na escolha
dessa invisibilidade é uma “herança” conta- de prioridades necessárias às mudanças, na
minada pelo racismo. proposição de inovações e na revisão do
Considerando a perspectiva omnilética desempenho de todas as atividades. Baseou-
(Santos, 2013, 2014), tal herança se configura -se nos pressupostos da pesquisa-ação e na
como excludente, pois ainda que no discurso perspectiva omnilética de análise.
as leis demandem práticas igualitárias e inclu-
sivas quanto às diferenças étnico-raciais, e ainda Abordagem da pesquisa-ação
que as instituições digam obedecê-las, o que
se percebe na prática é que o racismo se O presente artigo constitui um extrato
manifesta de modo explícito e violento no de uma pesquisa mais ampla, que se mostrou

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relevante na medida em que ressaltou as re- No seu início, a pesquisa contava com oito
lações étnico-raciais na sala de aula como participantes, em um universo de trinta
naturalizadora do lugar subalterno do aluno profissionais na escola. Esse número variou ao
negro. longo dos dois anos dos trabalhos, ora dimi-
Assim como a pesquisa de origem, o nuindo, ora aumentando, mas o número médio
artigo se fundamenta na pesquisa-ação, pois fixou-se em oito. A pesquisa possuía três gran-
des “modos de inserção” na escola: por meio de
esta se apresenta como um método de inves-
reuniões quinzenais com o corpo docente e
tigação que possibilita o diálogo entre o pes-
gestores; por meio de observações em sala de
quisador e os educadores participantes, em um
aula e por meio de ações de extensão, sempre
envolvimento de ajuda mútua para a solução
que solicitadas.
de um problema detectado. Thiollent afirma que
a pesquisa-ação é: Nas reuniões quinzenais, era utilizado o
Index para a Inclusão (Booth; Ainscow, 2011)
[...] um tipo de pesquisa social com base como instrumento disparador das reflexões-
empírica que é concebida e realizada em -ações. Enquanto duas pessoas da equipe se
estreita associação com uma ação ou com reuniam com os profissionais, outras assumiam
a resolução de um problema coletivo e no as turmas desses professores que participavam
qual os pesquisadores e os participantes
das reuniões (vale informar que todos eram
representativos da situação ou do pro-
professores). Por vezes, eram realizadas ativi-
blema estão envolvidos de modo coope-
rativo ou participativo (Thiollent, 2011, dades que os professores deixavam planejadas
p.20). e, em outras ocasiões, com a concordância de-
les, eram trabalhados temas ligados à inclusão.
Desse modo, a pesquisa-ação estimula a
Em outras ainda, observa-se, a pedido dos pro-
participação de toda a comunidade escolar,
fessores que participavam no grupo de reflexão-
abrindo possibilidades de descobertas, em uma
ação sobre o Index, sua interação com os alunos,
troca pesquisador/pesquisado, para descor-
e foi com base nessas ocasiões que se escreveu
tinar uma variedade de respostas, com a
o presente artigo.
dedução da melhor delas para solucionar o
problema em questão. Nessa perspectiva, a À medida que as interações com as crian-
pesquisa-ação visa superar a separação entre o ças aconteciam, as observações eram regis-
conhecimento e a prática escolar, bem como tradas em vídeo e diário de campo. Quando a
fazer uma ligação entre, de um lado, os saberes aula terminava, entrevistava-se a professora,
desenvolvidos dentro do ambiente acadêmico que respondia a duas questões: os pontos
da universidade e, de outro, as atividades fortes e fracos da aula, tendo em vista as dis-
experienciadas dentro da escola, tornando cussões que aconteciam em paralelo, no grupo
possível interligar teoria e prática. que trabalhava com o Index, ao qual elas
também pertenciam. Isso feito, era editado o
Procedimentos de coleta e análise de dados vídeo com base em suas respostas, mostrando
as situações em sala de aula às quais elas se
A pesquisa aconteceu por meio de referiam, em especial quando narravam as
encontros quinzenais, de duas horas de du- fraquezas e os pontos fortes, que eram utili-
ração, com a equipe de gestores e professores zados para discussão durante as reuniões, junto
da escola que optaram por participar do projeto. com os indicadores escolhidos, no Index.

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Considerações éticas Ao pensar o lugar do aluno negro nas


escolas (foco do presente trabalho) e seu
Convém assinalar que, à época do início enfrentamento, faz-se mister compreender os
da pesquisa (2012), ainda não havia a compul- múltiplos aspectos culturais, políticos e prá-
soriedade de apresentar o parecer do Comitê ticos em jogo em dado recorte histórico e,
de Ética em Pesquisa, o qual, aliás, só foi insti- identificando os aspectos complexos e dialé-
tuído na Universidade Federal do Rio de Janeiro ticos das relações entre eles, compor uma tota-
em 2014. Mesmo assim, em termos éticos, to- lidade (sempre provisória) por meio da qual se
mou-se o cuidado de compartilhar com o grupo possam vislumbrar as brechas, as sendas, os
de participantes as decisões e análises levadas entrecaminhos perceptíveis em potência, e que
a cabo ao longo do projeto. Também se garantiu possibilitarão denunciar e combater velhas e
o sigilo aos participantes e se colheu a assina- excludentes práticas.
tura de Termo de Consentimento Livre e Es- De forma mais concreta, na perspectiva
clarecido, que apontou os procedimentos de omnilética percebe-se a multiplicidade de
coleta e guarda dos dados, dentre outros as- ‘lugares’ (simbólicos e concretos) atribuídos aos
pectos. Complementarmente, obteve-se o alunos negros na realidade escolar brasileira.
Termo de Uso de Imagem, garantindo-se que o São ‘lugares’ culturais, políticos e práticos, que
seu uso não identificaria os sujeitos. Os pais se manifestam ao mesmo tempo (complexida-
também autorizaram as filmagens dos filhos, de) e contraditoriamente (dialeticidade), ora de
os quais, igualmente, seriam “disfarçadas” de conveniência, ora de exclusão.
modo a não identificá-los, caso fossem usadas Cabe ressaltar que, na perspectiva omni-
em público. lética, as três dimensões possuem o mesmo
peso em importância. Não há por onde começar
A perspectiva omnilética: problemati- primeiro a análise; é preciso sempre que as três
zando o racismo na escola estejam envolvidas. O sobrepeso de uma em
detrimento das outras, quando há, é sempre
provisório e temporário, tamanho o dinamismo
Em se tratando de uma perspectiva que
dos elementos mediadores na vida humana.
busca compreender as relações excludentes e
Nesse sentido e de acordo com Morin (2012):
inclusivas que estão no cerne das sociedades
modernas, a visão omnilética auxilia o pes- A realidade social é multidimensional; ela
quisador a observar como as dimensões de comporta os fatores geográficos, eco-
culturas, políticas e práticas se inter-relacionam. nômicos, técnicos, políticos, ideológi-
Ela aposta na ideia de que esse inter-re- cos… Num dado momento, alguns destes
lacionamento é, ao mesmo tempo, tanto com- fatores podem ser dominantes, mas existe
rotatividade no domínio. A dialética não
plexo quanto dialético. Isso significa dizer que
caminha sobre os pés nem sobre a cabeça;
os fenômenos humanos acontecem em três
ela gira, pois é antes de tudo jogo de inter-
dimensões – cultural, política e prática –, e que
retro-ações, isto é, elo em perpétuo
tal acontecimento se faz intrincadamente, movimento (p.15).
porque as dimensões estão ligadas por meio
de relações complexas e dialéticas (Santos, De acordo com Santos et al. (2015), na
2013). perspectiva omnilética, todas as dimensões

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influenciam-se e interpenetram-se, ajustando- Essa perspectiva dinâmica de alternância


-se a todo o momento de forma dialética e supõe que o lugar de exclusão do aluno negro
complexa. Tal movimento pode ser identificado nas escolas, caracterizado pela obviedade da
como a “suprassunção” de um momento an- sua presença numericamente maior, porém sob
terior em uma complexidade cada vez maior políticas de minorias, deve ser analisado levan-
(Mészaros, 2013, p.33). do-se em consideração diversos fatores que
Nesse sentido, o lugar do aluno negro atravessam sua história social. Nessa perspec-
nas escolas é analisado a partir de elementos tiva, as representações sociais sobre a identi-
como sua herança social e histórica, os as- dade negra ganham status de prioridade, à luz
pectos psicológicos associados (como autor- do que diz Souza (2003) ao falar do racismo:
reconhecimento e autoestima), relacionados
ainda com as práticas cotidianas sutis ou ex- [...] traça a permanência da desigualdade
através da divisão e da ocupação dos
plícitas de exclusão. Para os autores, a dialética
espaços habitados por negros/pobres e
como base categorial da análise omnilética se
brancos/ricos, uma espécie de “dimensão
encontra na perspectiva de Lukács, com a ideia geográfica” da desigualdade: “Da casa-
de que: grande e senzala, depois sobrados e
mucambos, e, talvez, hoje em dia, bairros
[...] a sociedade é um complexo extraordi- burgueses e favelas [...]”. A desigualdade
nariamente complicado de complexos, no social estende-se além do comportamento
qual existem dois polos opostos. De um dos sujeitos, das relações estabelecidas, do
lado há a totalidade da sociedade, que em tratamento que é destinado aos pobres,
última instância determina as interações
invisíveis sociais (p.140).
dos complexos individuais e, de outro há
o homem individual complexo, que cons-
É nesse sentido, e de acordo com San-
titui uma unidade mínima irredutível den-
tro do processo (Mészaros, 2013, p.46).
tiago e Santos (2015) ao tratarem de estratégias
de planejamento escolar, que o lugar do aluno
Os autores ressaltam que, de acordo com negro na escola passa a ser analisado consi-
Mészaros (2013), a relação entre o homem indi- derando suas mediações, como por exemplo,
vidual e a sociedade se estabelece dialetica- o tempo, o espaço, as motivações, as culturas,
mente, na medida em que se configura como as políticas, as intenções, as ações… . Sem as
um exercício de reflexão/ação entre o particular considerações dessas mediações, que mudam
e o geral, e entre o geral e o particular – os a cada novo evento, e a cada novo olhar sobre
interesses, demandas e desejos de um influen- ele, a análise se torna parcial, unidimensional.
ciando, alterando e ajustando os interesses, Segundo Lukács, o elemento animador do
demandas e desejos de outro. Como alternativa pensamento dialético é uma esperança, não
a essa aparente contradição, Mészaros propõe uma certeza reconfortante (Mészaros, 2013,
“o trabalho da consciência sobre a consciência”. p.71). A perspectiva omnilética procura, enfim,
O autor assegura que “os contrastes dialéticos estimular a ampliação dos limites das comu-
produzem um efeito de chiaroscuro: o efeito nidades acadêmicas, num movimento expan-
de uma complexidade de contornos vagos, sivo de interpenetralidade dialógica entre os
sem solução” (Mészaros, 2013, p.50), porque em saberes interculturais, éticos e estéticos, volta-
permanente mudança. dos à emancipação dos sujeitos sociais.

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Muitas formas de abordagem contra o quer nas minas, era um trabalho árduo que
preconceito no Brasil, e em especial o racial, ia da aurora ao escurecer. Segundo Charles
podem aproveitar “um fazer educação dife- R. Boxer, a vida média desses escravos era
estimada entre sete e dez anos de trabalho;
rente”, usando-se, por exemplo, da educação
os demais trabalhavam na casa de seus
ambiental crítica, das poesias, das metáforas,
senhores como criados de quarto, amas
das músicas, do teatro pedagógico, da estética de crianças, mucamas, cozinheiras, costu-
do engajamento e da (re)construção do pro- reiras, etc. (Fundação Biblioteca Nacional,
cesso de trabalho escravo – simbólico de um 2016, online).
hoje “invisível”, mas também concreto na sua
condição dialética, de totalidade social e de Os barões do café, como forma de disci-
contrário, no contexto histórico atual. O teatro plinar a produção e a vida, cometiam atos
pedagógico, com concepções de jardins e bárbaros. Mandavam cortar, em praça pública,
hortas orgânicas em escolas e comunidades as orelhas dos homens e os seios das mulheres;
vulneráveis e periféricas, pode despertar nos principalmente daqueles que tinham atitudes
rebeldes e não se conformavam com o estupro
pais, responsáveis, alunos e sujeitos da edu-
de meninas pelo sinhozinho e nem com as
cação como um todo, a reflexão sobre culturas,
correntes e os porões frios das fazendas. Essa
políticas e práticas pedagógicas não formais de
foi uma história que deixou também raízes para
educação, e vale repetir, para acabar com um
a formação do povo brasileiro, a comida, a
“silêncio” nas escolas e comunidades, e com os
arquitetura e as expressões culturais (Furtado,
diversos casos de preconceito contra os negros
1959; Prado Junior, 1982; Sodré, 1979).
naqueles ambientes (Calvente, 2015).
Durante o processo da pesquisa, coleta
e análise de dados, percebeu-se como prática
Resultados comum a omissão quanto à problematização
dos assuntos raciais, o que contribuía para a
naturalização da posição de inferioridade e
O racismo: uma longa história cultural,
subalternidade da população negra no Brasil. A
política e prática
seguir, apresentam-se dois extratos de aulas que
O processo de escravidão, os ciclos ilustram tal argumento.
econômicos na história do Brasil e a condição
do negro podem ser sintetizados em séculos O lugar do negro é o do serviço (escravo):
de opressão; em poucas palavras, vale iden- notas de sala de aula
tificar que os negros serviram à fase mer-
Com base na pesquisa-ação e na
cantilista-absolutista. Durante todo o período
perspectiva omnilética de análise, são apre-
colonial, o trabalho escravo foi a fonte da
sentados aqui dois eventos ocorridos em sala
riqueza material nos ciclos da cana de açúcar,
de aula. Tais dados mostram que, por diversas
da mineração, do algodão e do café.
ocasiões, os professores apresentaram temas
Podem-se distinguir dois tipos de trabalho referentes à herança histórico-social do negro
escravo com características próprias: o no Brasil, porém deixavam de problematizar os
produtivo, nas lavouras ou nas minas, e o aspectos racistas e de invisibilidade do aluno
doméstico. O primeiro, quer no campo, negro. De acordo com Mazière (2007), todo

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discurso dominado é tecido de discursos do- Anexos - Minutagem 05/10/12 - Linhas


minantes integrados a ele, de modo que as 2241 a 2259).
fronteiras discursivas não são assinaláveis, bem O problema é que, se em muitos países a
como o saber anterior se inscreve na construção questão do racismo tem sido, se não resolvida,
de um conhecimento e é determinado por meio pelo menos minimizada, no Brasil, apesar das
de formas linguísticas (Mazière, 2007, p.62). políticas de ações afirmativas, ele permanece
O caso destacado, retirado do bloco de assunto grave. A esse respeito, vale citar Freund,
registros de gravações em vídeo e minutado que já em 1983 afirmava, ao analisar as relações
(descrição da cena com as referências crono- inter-raciais de subjugação no Brasil:
lógicas do vídeo, de duração de cinco minutos)
A violência consiste em uma relação de
exemplifica essa situação: potência e não simplesmente de força que
se desenrola entre vários sujeitos (no
06:40 - Com tranquilidade a professora mínimo dois), seja para forçar direta ou
segue explicando a tarefa, identificando indiretamente o outro a agir contra a sua
para a turma questões voltadas para o própria vontade e executar uma vontade
processo do período Colonial no Brasil e que lhe é estranha, submetido a ameaças
especificamente na cidade do Rio de de intimidação, através de meios agres-
Janeiro. sivos ou repressivos capazes de atacar a
07:53 - Em sua explicação a professora fala integridade física ou moral, os seus bens
sobre a dificuldade maior que o branco materiais ou suas ideias, seus valores,
europeu teve para com os índios em anulando suas resistências, seja ela suposta
relação a submetê-los ao trabalho, por- ou deliberada (p.98).
tanto, a entrada da população negra para
Dito de outro modo, o racismo praticado
cumprir o trabalho escravo. A maioria dos
no Brasil é de uma potência tal que interfere,
alunos permanecem participativos.
até mesmo, na forma como o cidadão negro se
08:31 - As alunas ficam atentas à explicação
percebe, se concebe, se define. A desigualdade
de que, para a política da época, o negro
racial, um de seus principais produtos, “organiza
servia para o trabalho.
o acesso diferenciado às liberdades básicas,
10:59 - Para a indagação da professora sobre
como as de circulação, de culto, de manifes-
o nome que é dado para as misturas de
tação; influi no acesso e tratamento junto ao
raças, um aluno responde: “mistureba!”.
Outro aluno dá o nome de “mistura” e a
sistema judiciário, e mesmo no direito à vida”
professora tem uma certa dificuldade, (Theodoro Júnior, 2014, p.208). Nesse sentido,
momentânea para falar a palavra mis- não foi por acaso que a aluna, de uma sala de
cigenação! aula majoritariamente preta e parda, ressalta
11:14 - Um aluno fala a palavra de forma sua origem portuguesa, portanto, caucasiana.
clara e correta: “miscigenação!”. Se o discurso de dominação é tecido de
11:48 - A professora busca a palavra discursos dominantes integrados (Mazière,
miscigenação no dicionário, um exemplo 2007), ao afirmar, com base no livro didático,
para todos na consulta das palavras que, de acordo com a política da época, o negro
corretas. servia para o serviço, a professora o limitou à
11:51 - Uma aluna fala para sua professora sua condição de escravo. Tal limitação, coloca-
que a sua avó é portuguesa (Bloco de da sem a devida problematização, que poderia

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funcionar como um escape à simplicidade do 27:00:30 - Diretora entra em sala e pede


livro, implicou aos alunos, de forma imediata, atenção aos alunos, afirmando que quer
falar com eles. Fala que os alunos devem
duas possibilidades: a de identificar-se com a
prestar atenção no que estamos falando e
afirmação e a de negá-la. Identificar-se com a tentando fazer, pois caso a indisciplina
servidão e a subalternização, ou opor-se a tal permaneça, a “Tia C.”, não vai gostar de saber
perspectiva, buscando subterfúgios que garan- que eles não estão ouvindo/entendendo
tissem seu salvo-conduto. Foi esta última a as regras. Ela ainda afirma que está indo
alternativa escolhida pela aluna que buscou, para a reunião com a “Tia C.” e quer saber
se terá boas notícias para levar, pois estão
na herança branca e portuguesa de sua avó, o
ali as “tias” (“Tia B.” e “Tia M.”), tentando pedir
clareamento de sua condição. Infelizmente a atenção, e termina dizendo que por
abordagem da aluna também não foi proble- enquanto está dando errado, mas que
matizada em aula. Aprisionada pela historio- ficará logo brava com eles. E que chamará
grafia oficial, a professora, com seu silêncio co- a “Tia C.” para olhar “escondidinho” os
mo resposta ao comentário da aluna, reforçou alunos. Um aluno relata uma agressão e a
diretora afirma que em seguida a
os estereótipos marginais construídos pelo co- professora fará uma roda e que será o
lonizador, contribuindo sobremaneira no pro- momento de falar das agressões, e que
cesso de crença de inferioridade e negando a tanto a “Tia B.” quanto a “Tia M.” falaram
legitimidade das resistências e das lutas pela com ela, das brigas. E quando outros
liberdade. começam a falar de coisas que acontecem,
ela diz que não quer ouvir fofoca. Tenta
combinar que eles vão trabalhar de “olhos
De olhos abertos e bocas fechadas: o abertos e bocas fechadas”, pois eles sabem
processo de disciplinarização dos corpos trabalhar dessa forma (Bloco de Anexos -
pretos e pardos Minutagem 19/10/12 - Linhas 3845 a 3858).

Na escola, o racismo também se verifica As análises realizadas nesta pesquisa


por uma série de mecanismos, ora sutis, ora não, a buscam apontar caminhos para suscitar de-
que são submetidas crianças e jovens negros, a bates sobre a questão do negro, com o intuito
ponto de incorporarem as práticas discrimi- de minimizar, por meio de políticas públicas de
natórias e de humilhação como normais, natu- afirmação, os quadros de violência e diferença
ralizando uma perversa construção social. de acesso à renda e às oportunidades de
trabalho, ainda distinguidos pela cor da pele.
Nesse sentido, destaca-se outro evento
Além disso, entende que as práticas escolares
retirado das interações de sala de aula, na qual
se apresenta uma orientação aos alunos: vocês mais reflexivas podem evitar ações como as
devem trabalhar de olhos abertos e bocas exemplificadas acima e combater a exclusão do
fechadas! Considerando uma turma de alunos aluno negro do ponto de vista cultural, político
cuja grande maioria se configurava como preta e prático.
e parda, tal orientação trazia explicitamente
uma conotação de passividade e subalter-
nidade nos processos educacionais. A análise Discussão
considerou essa abordagem como uma impor-
tante barreira à participação e à aprendizagem, A invisibilidade
na medida em que impedia sumariamente
qualquer forma de exposição de pensamentos O termo invisibilidade tem sido usado
e ideias. como metáfora ilustrativa da posição ou lugar

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atribuído socialmente àqueles desprovidos de -se considerar que, em termos omniléticos,


poder e status social. Em termos psicossocio- esses elementos encontrem-se também pre-
lógicos, vincula-se também à discussão de sentes na população afro-brasileira. Um exem-
produção de identidades e da subjetividade. plo acha-se no texto de Santos (2014), que
Para Costa (2004), trata-se do “desaparecimento propôs a seus alunos refletirem “acerca dos
intersubjetivo de um homem no meio de outros lugares de onde vieram e os grupos étnicos aos
homens, é expressão pontiaguda de dois quais pertenciam ou se sentiam pertencentes”
fenômenos psicossociais que assumem caráter (p.10) e constatou que:
crônico nas sociedades capitalistas: humi-
[…] muitos alunos negros não se
lhação social e reificação” (p.63). De acordo com
reconheciam como afrodescendentes, já
Leite (1996), “não é que o negro não seja visto,
que a identidade de africanos e seus
mas sim que ele é visto como não existente” descendentes era associada exclusiva-
(p.41). mente à história de escravização. Como
Essa definição corrobora a perspectiva expressão de desconhecimento de sua
própria história, diferença cultural,
psicossocial, aqui mencionada, segundo a qual
atividades econômicas e produções
a invisibilidade pode ser vista como uma sín- artísticas, havia muito preconceito em
drome (Franklin; Boyd-Franklin, 2000) ou um relação a elementos da cultura africana ou
conjunto de características relativas a processos de matriz afro, sobretudo com relação à
de avaliação interna (de si mesmo) e compor- religiosidade e aos termos/palavras de
tamentos adaptativos oriundos de experiências origem africana.
com racismo. Segundo os autores, Ou seja, o sentimento de indignidade
parece ser tal que a identidade histórica precisa
[...] experiências acumuladas de desva-
lorização racial reforçam a percepção de ser negada. A criança negra não se reconhece
que os perpetradores destes atos são como tal. Nos exemplos apresentados nesta
realmente cegos quanto à “pessoalidade” pesquisa, na medida em que a professora não
dos indivíduos que encontram. O per- problematiza o lugar do negro como sendo o
petrado sente-se desconsiderado e des- trabalho escravo ou o situa como aquele que
respeitado enquanto (e por ser) des- deve ficar de boca fechada, ela reproduz uma
cendente de africanos. A repetição de
prática opressiva, ainda que não se dê conta da
encontros deste tipo pode alterar suas
pressuposições acerca das situações em
natureza nem da consequência de seu ato. Mais
que sintam-se aceitos em interações inter- ainda: se considerado o fato de que a diretora
raciais, levantando a suspeita de que estes mencionada no segundo excerto é negra, fica
contatos sociais são, propositadamente, ainda mais patente o processo de internalização
atos de “tolerância”, ao invés de serem de do preconceito.
aceitação genuína (p.34, tradução livre)5.
Omnileticamente, são percebidos os
Em que pese tratar-se de texto relativo a entrelaces dialéticos e complexos entre valores
estudos com negros norte-americanos, pode- em conflito (culturas), escolhas e direciona-

5
[...] generally, though, accumulated experiences of racial slights reinforce the perception that perpetrators of these acts are truly blind to the “personhood” of the
individual they have encountered. The recipient feels disregarded, and disrespected as – and because of being – a person of African descent. Repeated encounters
of this sort can begin to alter assumptions about instances in which one does find acceptance in cross-racial interactions, raising the suspicion that these social
contacts are disingenuous, acts of “tolerance” rather than genuine acceptance.

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mentos assumidos (políticas), e ações pedagó- [...] as visões de mundo são virtualidades
gicas levadas a cabo (práticas): os alunos se dinâmicas no interior dos grupos: [...] uma
resignam docilmente ao serem chamados a ficar estrutura significativa para a qual tendem
o pensamento, a efetividade e o compor-
calados, assim como não percebem que o tra-
tamento dos indivíduos, estrutura que a
balho escravo foi e é uma prática racista que
maioria dentre eles só realiza excepcio-
alimenta as desigualdades e a invisibilidade. A nalmente em certas condições privi-
professora branca, por sua vez, não proble- legiadas, mas que indivíduos particulares
matiza a questão, e a diretora negra assume o podem atingir em domínios limitados
lugar do perpetrador. quando eles coincidem com as tendências
do grupo e levam à sua coerência mais
extrema.
No Brasil a questão racial é “estrutural,
institucional e interpessoal” Assim, se a “tradição” brasileira nesse as-
pecto tem sido a de menos-valia da população
Como assinalado no início deste artigo, negra, é dessa maneira que esta tenderá a se
os estudos realizados pela ONU no Brasil sobre considerar: como valendo menos. Isso faz com
a temática da racialidade apontam tratar-se de que o papel da escola seja de uma enorme
questão grave e estrutural, que se manifesta importância no combate ao racismo e à
preconceituosamente tanto no nível pessoal invisibilização dos negros brasileiros. Isso
quanto institucional. No que tange ao aspecto porque, se de um lado ela é uma das principais
institucional, aponta-se, na apresentação dos instituições que reproduzem as relações
dados, o quanto a escola pode ser uma dessas desiguais de produção e status, ela oferece,
instituições que carregam em seu bojo o peso também, entre-espaços de resistências que as
da desigualdade racial, produzindo-a e repro- tensões entre as diferentes culturas, políticas e
duzindo-a. No aspecto interpessoal, aborda-se práticas em jogo em seu cotidiano podem
a questão da invisibilidade na seção acima, surtir. Mais do que subverter a ordem, tais ações
apontando o quanto os mecanismos con- podem, na visão omnilética, proporcionar
tínuos de práticas implícitas e explícitas de oportunidades de transgressão e, quiçá, a
opressão racial provocam um processo iden- instituição de novas e outras ordens.
tificatório do oprimido com os valores do
opressor.
Ao concordar com a afirmação de que se Considerações Finais
trata de fenômeno estrutural, não se quer, com
isso, dizer que seja natural. Pelo contrário, quer- Em tempos em que os dados estatísticos
-se dizer que ele está intimamente vinculado a apontam elevado número de homicídios
práticas de dominação ideológica e de exercí- contra a população negra brasileira, em
cio de hegemonia cultural, racial, econômica e particular entre os jovens de 15 a 24 anos, torna-
política, e que isso vem sendo compreendido se imperativo discutir o papel da escola nos
como visões de mundo historicamente natu- processos de promoção de lugares de exclusão
ralizadas no Brasil. Mas isso pode - deve! - ser por racismo (e outros ‘ismos’), assim como
mudado. Este trabalho se afina com as palavras descobrir novos caminhos para a sua existência
de Goldmann (1979, p.94), para quem: e reinventar seu papel no que tange à pos-

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sibilidade de construção de espaços de trans- cultivar a terra era trabalho escravo sob o sol
gressão cidadã. quente, enquanto o ato de mandar e vestir boas
Este artigo buscou mostrar, a partir de roupas cabia ao branco. As roupas de qualidade
uma perspectiva omnilética, algumas (certa- eram prerrogativa dos alunos de olhos azuis e
mente, não as únicas) formas pelas quais o filhos do sinhozinho, enquanto o trabalho
aluno negro é marginalizado e assume o lugar forçado na roça era sempre para aqueles de cor
do excluído como algo natural, a partir do de pele negra e parda. A percepção da des-
exercício cotidiano de culturas, políticas e valorização de si alcança questões de difícil
práticas de estereotipação, humilhação, discri- abordagem para muitas professoras, e os
minação, racismo ou mecanismos de invisibili- diálogos dentro e fora da sala de aula são
dade. Nesse processo analítico, procurou-se escamoteados da essência da desigualdade
mostrar que, ao mesmo tempo que a escola estrutural observada nas relações em sociedade
possui um papel ingrato de reprodução dessas (Calvente, 2015). As práticas não formais de
desigualdades, ela pode, omnileticamente, educação ampliam cenários, (re)configuram
engendrar em si mesma espaços de resistência processos educacionais e ampliam o espaço
e luta a partir dos quais as ordens estabelecidas da educação, colocando a arte como veia para
possam ser transgredidas. o fluxo do pensamento abstrato, crítico e
criativo.
Com base em reflexões e vivências
compartilhadas sobre manifestações de pre- As experiências comparadas e viven-
conceito racial em outras escolas e comu- ciadas pelos autores deste ensaio revelam
nidades, em outros municípios e unidades da algumas portas fechadas na sociedade – na
federação, vale fazer algumas considerações casa do povo, nas delegacias, nas salas das
adicionais que têm como finalidade abrir diretoras e nas burocracias do estado –, para
espaço sobre uma avaliação da experiência um combate à desigualdade estrutural. A mu-
proposta neste ensaio. Por exemplo, na prepa- lher negra ainda recebe salários mais baixos do
ração de peças de teatro, os papéis sociais das que o homem branco nas organizações webe-
figuras do escravo, trabalhador braçal, senhor rianas. Seu lugar, nas peças de teatro na escola,
e/ou empresário, de forma sutil, refletem o ainda está fadado ao de empregada doméstica,
racismo. Ao definirem como representariam o babá de estimação ou objeto sexual.
trabalho de preparação da terra e o uso de suas Ainda são necessários outros estudos e
ferramentas básicas, alunos negros demons- pesquisas para compreender melhor a
travam o foco da submissão e “o seu lugar” de dificuldade metodológica em cultivar, nas salas
tripalium (do latim, ‘trabalho forçado’), pro- de aula e no jardim da escola, formas de enfren-
pondo para si o uso de roupas velhas e rasgadas tamento do preconceito racial, de forma
e, para os alunos brancos, o papel social do integrada entre políticas públicas, arranjos e
senhor de escravos, com roupas nobres e instituições. O caminho omnilético propõe ser
atitudes de comando. uma dessas chaves, integrando práticas,
As escolhas, assim como as brincadeiras, políticas e culturas num debate que possa abrir
sempre guardam em sua ingenuidade uma a ferida e limpá-la.
herança de racismo e a negação de uma iden- A arte não imita a vida, ela é vida. A
tidade fragilizada no tempo histórico. O ato de realidade do aluno de cor negra está condi-

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cionada a padrões de uma sociedade que pesquisa-ação para um novo espaço de reflexão
esquece que foi (re)construída com o trabalho, na escola, envolvendo famílias, alunos, profes-
o suor e o sangue do homem e da mulher sores, representantes de organismos públicos,
negros, sob o chicote amargo de um homem judiciário e polícia, para ouvir seus depoimentos.
branco. Na escola ainda se reproduzem solu- As narrativas sobre violências que machucam
ções prontas e/ou prescritivas e engaioladas, e ainda esgarçam as vidas substanciais de
em modelos teóricos inadequados, em que o jovens negros podem ser mais bem avaliadas e
racismo sutil (invisível, mas real) limita a pro- interpretadas quando se estimula o comparti-
fessora e condiciona vidas humanas nas es- lhamento de depoimentos e se abrem diálogos
quinas do Rio de Janeiro. mais transparentes em muitas vozes (Bakhtin,
A revisão das potenciais dificuldades e 1999). Um saber ouvir o outro e compartilhar
oportunidades associadas à implementação de experiências familiares ou situações vividas
ações nas escolas para repensar formas de dentro de escolas e delegacias sobre a dor do
reflexão sobre o preconceito racial com alunos, preconceito racial, pode talvez fazer avançarem
professores e responsáveis está longe de es- práticas de educação não formal que, em última
gotar as questões colocadas neste debate. Para análise, irão contribuir para uma educação
fornecer uma avaliação mais completa, uma formal diferente, talvez mais consistente e trans-
série de questões surge como demanda para formadora de um maior respeito pelas igual-
pesquisas, como se enumera a seguir: dades dentro das diferenças.
1. Como poderia ser ajustada e ponde-
rada a questão racial, sem criar um ambiente
impróprio para o aprendizado e, ao mesmo Colaboradores
tempo, de forma a aliviar tensões?
Todos os autores contribuíram na con-
2. Em que medida a questão da exclusão/
cepção e desenho do estudo, análise de dados
inclusão social pode ser relacionada ao pro-
e redação final.
cesso histórico de submissão e marginalização
humana, que pode ou deve ser enfrentado por
meio de um debate mais amplo na comunidade Referências
local?
Bakhtin, M. Problems of Dostoevsky’s poetics. Minessota:
3. Que incentivos éticos são necessários University of Minessota Press, 1999. (Theory and History
e/ou que restrições complementares precisam of Literature, Vol.8).
ser definidas para que as práticas, culturas e Booth, T.; Ainscow, M. Index for inclusion: Developing learning
políticas no chão da escola sejam inseridas em and participation in schools. London: CSIE, 2011.

projetos político-pedagógicos? Brasil. Lei 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei n°


9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n°
4. Que perspectivas existem para comba- 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e
ter a desigualdade estrutural que caracteriza bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
princípios norteadores de estratégias e políticas Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília: Casa Civil, 2008.
públicas voltadas para cotas e compensações Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
de forma mais consistente e justa? _ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 1 jun.
2013.
Muito longe de ser prescritivo, este en- Brasil. Lei nº 10.639, de 09 de Janeiro de 2003. Altera a Lei
saio inicia a configuração de uma proposta de nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as

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O LUGAR DO ALUNO NEGRO 107

diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo nacoesunidas.org/grupo-de-especialistas-da-onu-sobre-


oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História afrodescendentes-chega-ao-brasil-em-sua-primeira-
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