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Brincar na quietude

Escrito por Avisa Lá em 05/11/2009. Publicado em Revista Avisa lá #40, Sustança

Brinquedos e brincadeiras que envolvem elementos da natureza revelam a imaginação e a criatividade das crianças

Foto: Anne Vidal e João Correia Filho, Exposição Sesc Pinheiros, São Paulo –SP, 2006

Olhar as nuvens no céu e imaginar bichos… Qual é o menino ou menina que tem tempo para fazer isso
atualmente? As crianças, principalmente as que vivem em áreas urbanas, têm a agenda lotada de
compromissos. “Os adultos inventam uma rotina maluca de serviços terceirizados com aula até para
aprender a brincar com os avós”, desabafa a professora Selma Maria Kuasne1, que estuda a Cultura da
Infância. “Criança é feita para inventar o mundo, como diz o poeta Manoel de Barros2, e não para aprisionar
energia ficando inquieta numa cadeira.” O brincar é a atividade principal das crianças. É durante as
atividades lúdicas que elas descobrem como o mundo funciona. Muitos pesquisadores têm se dedicado ao
assunto e descoberto coisas valiosas. No caso de Selma, ela aborda as maneiras de brincar de quem mora
distante de centros urbanos. Em 2003, por conta de sua pesquisa, ela viajou pelo interior do Brasil,
especialmente pelo sertão de Minas Gerais, onde o escritor Guimarães Rosa (1908-1967) nasceu e cresceu e
tão belamente descreveu em sua obra.

Em suas andanças, a pesquisadora, buscando “do quem das coisas” 3, como o sertanejo costuma falar,
descobriu que Guimarães Rosa tinha o sonho de escrever um livro que contasse sobre seus brinquedos de
infância. Em entrevista ao jornalista Ascendino Leite, ele disse: “Um dia hei de fazer um pequeno tratado de
brinquedos para meninos quietos”4. Foi assim que Selma começou a dirigir sua pesquisa tendo por norte a
definição de menino quieto, segundo o escritor mineiro, como seus personagens brincavam em silêncio e
quais objetos utilizavam.

Sua inspiração veio, principalmente, a partir de encontros que teve com as pessoas no interior de Minas
Gerais, nas cidades de Morro da Garça, Andrequicé e Cordisburgo. A hospitalidade e a vontade de trocar
experiência motivavam-na a voltar muitas vezes e reencontrar todos sempre prontos a ensiná-la um novo
brinquedo. Outro ingrediente importante foi poder ouvir a obra de Guimarães Rosa declamada pelos
Contadores de Histórias Miguilins5 e pelo grupo Caminhos do Sertão6. “Esse é o melhor jeito para conhecer
o Brasil e sua musicalidade”, revela.

Brincar com elementos ligados à natureza é ainda o principal fazer de muitos garotos e garotas nas cidades
do interior mineiro, lugares onde Selma aprendeu muito sobre a infância dos pequenos sertanejos. “É
possível perceber que os brinquedos são feitos de sentimentos e de coisas que são quase nada para muita
gente e se transformam em quase tudo dentro da nossa cabeça”, explica a pesquisadora. Ela não deixa de
citar dois momentos lúdicos. Brincar de aprisionar formigas com pedras que formam uma espécie de ilha e
fazer pontes com gravetos para vê-las passar é um deles. O outro é brincar de geografia, reunindo a água do
poço utilizada pelas lavadeiras para criar rios com nomes conhecidos e inventados. “Eles são pura poesia
presente na vida de qualquer pessoa e devem ser resgatados pela memória e passados para as outras
gerações”, defende. Após inúmeras pesquisas, a professora descobriu que existe o brincar de sensações,
brincar de ouvir barulho e de fazer barulho, de segredos, de colecionar, de criar, de geografia, de olhar, de
pensar e, finalmente, brincar com números. Todos esses brinquedos e jeitos de brincar foram sistematizados
em seus estudos e apresentados na exposição Meninos quietos – um olhar sobre os brinquedos do sertão,
realizada em 2006, no Sesc Pinheiros, em São Paulo (SP).

Fotos: Selma Maria Kuasne

Pesquisa vira exposição


Quando Selma teve a ideia de montar uma exposição com suas descobertas, chamou a amiga Anne Vidal,
artista plástica, cenógrafa e professora de Arte da escola Liceu Pasteur, em São Paulo (SP), que também
participava de encontros sobre as obras de Guimarães Rosa, desde 2002. “Recebi a missão de não apenas
colocar os brinquedos sertanejos pesquisados em prateleiras”, lembra Anne. “Era necessário revelar ao
público o estado essencial de uma criança quando ela é deixada em seu mundo e começa a elaborar as
próprias brincadeiras, como dizia Guimarães Rosa.”

Além disso, Anne ainda teve o desafio de pensar algo interativo, que convidasse os visitantes – crianças e
adultos – para se sentirem meninos quietos. “O objetivo era criar emoções e ativar as lembranças”, conta.
Como inspiração, baseou-se nas cores do sertão mineiro e em toda a sua geografia. “Tinha de ser um lugar
bom de ficar, sentar, olhar, mexer e, por isso, utilizei uma linguagem simples, com som e luz bem próximos
do natural, lembrando as casas sertanejas que frequentei.”

Como representar o brincar de pensar? Simbolizar os pensamentos que povoam a cabeça de uma criança não
foi simples. Para isso, Anne criou um espaço em que era possível colocar sementes em um fio. “Essa
atividade repetitiva e relaxante deixa o pensamento livre e, ao mesmo tempo, atravessado por um monte de
ideias que inspiram a criação de novas atividades”, explica. Também havia cantos reservados para as
pessoas fazerem pequenas elaborações com pedrinhas, pedaços de madeira e de canos. Para brincar de
colecionar e de descobrir coisas, outras duas propostas descobertas nas obras do escritor, Anne
disponibilizou imagens de animais que podiam ser colecionadas pelos visitantes, e colocou paisagens e
outros objetos dentro de caixas que continham portas e imitavam pequenas janelas, de modo que, ao abri-las,
seus conteúdos fossem revelados. As latas de conservas de diferentes tamanhos serviram para imitar o
telefone feito com potes plásticos ligados por um fio. Quem o levasse à orelha podia ouvir histórias, cantigas
e barulhos da natureza. Os nativos do sertão mineiro também foram representados na exposição. Para isso,
Anne trouxe um garoto e alguns adultos de Morro da Garça. “Eles simbolizaram o menino quieto que dorme
dentro de cada um de nós”, explica.
No entanto, a preocupação da exposição era mostrar que qualquer um pode ser tomado pela quietude, ou
seja, ela não é exclusividade do sertanejo. Os brinquedos e as brincadeiras expostos eram essenciais e
simples e podiam existir em qualquer parte do mundo, seja na cidade ou no campo. Uma criança, em seus
momentos de quietude, mesmo que só tenha o tapete da sala pra brincar, por exemplo, pode criar um rio com
um enor me jacaré. O que acontece, geralmente, é que os pequenos ou têm muitas atividades, ou ficam
presos à televisão, horas a fio e, por isso, falta tempo para se aquietarem e explorarem a própria imaginação.
1
Arte-educadora, escritora, pesquisadora da Cultura da Infância e professora de Artes do Instituto Rodrigo
Mendes, em São Paulo (SP).
2
Manoel de Barros nasceu no Beco da Marinha, beira do Rio Cuiabá, em 1916. Autor premiado de várias
obras. Hoje é advogado, fazendeiro e poeta e mora em Corumbá, Mato Grosso.
3
Trecho do conto O recado do morro, de Guimarães Rosa. O texto faz parte dos sete contos que compõem o
volume Corpo de baile.
4
Entrevista publicada originalmente n’ O Jornal (RJ), de 26/05/1946.
5
Grupo formado por jovens contadores das histórias de Guimarães Rosa. Eles moram na cidade do autor, em
Cordisburgo. Miguilin é o nome de um dos personagens do livro Corpo de baile.
6
Formado por ex-Miguilins que pela idade não participam mais do grupo Contadores de Histórias Miguilins
e, segundo Selma Maria, “se juntaram porque o desejo de contar histórias é maior que tudo”.

Fotos: Selma Maria Kuasne

Como expor materiais, brinquedos e livros de forma instigante

Para que fosse possível viajar com a exposição a cenógrafa Anne criou essas prateleiras móveis com
rodinhas, que remetem à ideia de carrinhos. Meninos quietos – um olhar sobre os brinquedos do sertão já foi
exposta em um shopping center de Belo Horizonte (MG) e deve percorrer outras unidades do Sesc
espalhadas pelo Brasil. Veja aqui as ideias brilhantes da cenógrafa.
Fotos: Anne Vidal – Exposição na Casa de Cultura do Sertão, Morro da Garça – MG, 2009

Despedida

Eu conheci um menino
que gostava de inventar.
Quieto bastante ele era
no pensar e no olhar.
Jeito diferente pra tudo
arranjava pra brincar.
Brincava de geografia,
brincava de observar.
Nem amigo precisava
na hora de imaginar.
Brincava de construir,
brincava de criar.
Várias pontes ele fazia
para formiga passar.
Prendidas lá na pedra,
proibidas de escapar…
Descubra dentro de você
um brinquedo quieto agora.
Porque dentro de cada um
Um menino quieto mora
(Um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos, de Selma Maria)
Fonte: Revista Estudos Avançados, nº 58, Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo

Milhão

Boizinho de milhão,
viola de milho,
burrinho de milho,
boneca de milho.
Quebra-cabeça de milhão,
cabelo de milho,
carrinho de milho,
cavalo de milho,
Com imaginação,
Um pouco de milho,
Um monte de milho,
E diversão de milhão.
(Um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos, de Selma Maria)
Foto: Selma Maria Kuasne

Em qualquer canto do país as crianças criam

Outro menino quieto, Patrick, 11 anos, que mora na região de São Bento de Sapucaí (SP), construiu a sua
cidade com gravetos, cascas de pinheiro, terra e barbante para a fiação dos postes de iluminação.

Fotos: Breno Carvalho Pereira

Tratado para olhar e mostrar

Selma Maria escreveu poesias para contar sobre os brincares do sertão com ilustrações da cenógrafa Anne
Vidal, Um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos. Tem brinquedo-terra, brinquedo-
pensamento, brinquedo-bicho e muitos outros que “não nascem em qualquer esquina, de qualquer lugar”.
Como a autora mesmo diz: “nascem da barriga da poesia, da infância do
mundo”

(Um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos, Editora Peirópolis, 2008)

Ficha técnica

Selma Maria Kuasne


E-mail: meninosquietos@yahoo.com

Anne Vidal
E-mail: an.vidal@yahoo.com.br

Para saber mais

Livros

 Um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos, de Selma Maria com ilustrações de Anne
Vidal. Editora Peirópolis. Tel.: (11) 3816-0699.
 Corpo de baile, de João Guimarães Rosa. Edição comemorativa 1956-2006. Editora Nova Fronteira.
Tel: (21) 3882-8200.
Fotos: Selma Maria Kuasne

Este conteúdo faz parte da Revista Avisa lá edição #40 de novembro de 2009. Caso queira acessar o conteúdo completo, compre a edição em PDF ou impressa
através de nossa loja virtual – http://loja.avisala.org.br

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