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Copyright © 2020 — Yule Travalon

UM BEBÊ PARA O BILIONÁRIO


1ª Edição

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução e armazenamento de


qualquer parte deste livro, através de quaisquer meios, sem consentimento e
autorização por escrito do autor.

Capa: Lucas Bernardes @Bernaliel


Revisão: Daniela Vazzoler @Danivazzoler
Diagramação: April Kroes @AprilKroes
-
Instagram: @yuletravalon
Site: www.yuletravalon.com.br
E-mail: yuletravalon@gmail.com
Nota do autor
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Epílogo 1
Epílogo 2
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Romances Yule Travalon
Chega de tentar dissimular e disfarçar e esconder
O que não dá mais pra ocultar e eu não posso mais calar
Já que o brilho desse olhar foi traidor
E entregou o que você tentou conter

O que você não quis desabafar e me cortou

Chega de temer, chorar, sofrer, sorrir, se dar


E se perder e se achar e tudo aquilo que é viver
Eu quero mais é me abrir e que essa vida entre assim
Como se fosse o sol desvirginando a madrugada
Quero sentir a dor dessa manhã

Nascendo, rompendo, rasgando


Tomando meu corpo, então eu

Chorando, sofrendo, gostando, adorando, gritando


Feito louca, alucinada e criança
Sentindo o meu amor se derramando
Não dá mais pra segurar, explode coração

— Gonzaguinha em “Explode Coração”.

(Versão cantada por Maria Bethânia).


Olá, querido(a) leitor(a)!

Fico imensamente feliz que você e esse livro tenham se encontrado.


Desejo que a jornada que farão juntas seja coroada de descobertas,
sentimentos à flor da pele e boas risadas para espantar os tempos difíceis.

Toda história é feita de recortes. Sempre que observo quadros em


galerias ou leio meus livros favoritos, faço o exercício imaginativo de
encontrar as bordas da obra, o pano de fundo por detrás do cenário, os
diálogos que os personagens engoliram e a escolha do tema.

Meus recortes aqui foram bem incisivos, principalmente ao se tratar de

um personagem paraplégico (repetirei o que disse em Show de dia dos


Namorados): Guilhermo é um personagem que sofreu acidente de carro e
teve lesão da medula espinhal. O criei baseado em algumas pesquisas,
documentários e é claro, alguma licença poética.

Ao me debruçar em especial sobre o caso do Fernando Fernandes,


encontrei ali o tipo de personagem que eu queria: um cara ativo, que pratica
esportes e mantém uma vida movimentada. Isso não quer dizer que
Guilhermo, meu personagem, não possui fraquezas e inseguranças. Elas estão

espalhadas pelo livro, assim como seus momentos de extrema coragem que
desafiam seus limites.

Em nenhum momento quero traçar um parâmetro e dizer que todas as


pessoas que sofreram esse tipo de lesão são como meu personagem. Cada

pessoa é única. E cada vida é um recorte que vai desde as escolhas que fez às
coisas que omitiu. Por isso te convido a conhecer a trajetória de Guilhermo
com o coração aberto.

Também gostaria de ressaltar que as minhas crianças, por mais que


tenham um nível avançado de desenvolvimento, falam errado. As falas que
fogem da norma culta estão em itálico. Assim como as palavras e frases em
italiano que usei, receberam uma tradução em forma de nota de rodapé
(algumas como Bella donna e mamma que se repetem durante a leitura, não

levam mais a nota, mas na primeira e segunda aparição, levam).

Por último e não menos importante: divirta-se!

No mais, se há qualquer outra coisa a ser dita, foi dita pelo poeta. Então
usarei sua canção para resumir cada capítulo, cada parágrafo, cada linha do
meu trabalho neste livro:
Quando eu soltar a minha voz por favor entenda

Que palavra por palavra eis aqui uma pessoa se entregando

Coração na boca, peito aberto, vou sangrando

São as lutas dessa nossa vida que eu estou cantando

Quando eu abrir minha garganta essa força tanta

Tudo que você ouvir, esteja certa que estarei vivendo

Veja o brilho nos meus olhos e o tremor nas minhas mãos

E o meu corpo tão suado, transbordando toda raça e emoção

E se eu chorar e o sal molhar o meu sorriso

Não se espante, cante

Que o teu canto é minha força pra cantar

Quando eu soltar a minha voz por favor entenda

É apenas o meu jeito de viver

O que é amar.

(“Sangrando” de Gonzaguinha).
QUATRO ANOS ATRÁS

— Eu nunca fiz isso antes.

Estou tão nervosa que deixo as palavras escaparem. Guardo as mãos


dentro dos bolsos da calça jeans e afundo o corpo no sofá conforme vejo o
homem alto, moreno e de olhos reluzentes se aproximar.

Não cheguei aqui por acaso. Houve um longo tempo entre a proposta

indecente que ele me fez e o meu “sim”.

Pesei e julguei tudo o que estava envolvido e percebi que era a coisa
certa a se fazer, minha família precisava do dinheiro.

Até pensei que ele havia se esquecido de nosso acordo, já que não me
respondeu em nenhum momento do dia. E quando ligou, foi para perguntar
onde eu estava e enviou um carro luxuoso que me trouxe da Zona Norte até
esse condomínio cheio de mansões na Zona Sul de São Paulo.

Pelo caminho eu me distraí com a névoa que cobria desde a copa das
árvores até os pequenos e escuros lagos que se projetavam no horizonte.

E agora, dentro de seu território, sentada em seu sofá e preparada para


qualquer investida, evito encará-lo.

Não consigo.

Não sou de ficar envergonhada, mas agora sinto minha face toda
queimar, ao vê-lo. E meu corpo parece que fica todo gelado quando nossos
olhares se encontram.

Quando disse que era um professor da minha faculdade, pensei logo em


um velho esquisito e aproveitador, mas nem de perto o senhor Lamarphe é
assim. Ele deve ser 10 ou 15 anos mais velho do que eu, sim. Mas está
definitivamente longe da imagem que criei de um homem rico que ofereceria
dinheiro pela minha virgindade.

— Nunca fez isso o quê? — O timbre forte da voz dele me faz tremer
no lugar em que estou.

Sua voz é melodiosa e carrega um sotaque italiano que fica em minha


mente, parece bem mais impactante agora do que quando falamos por

telefone.

— Nunca fez sexo ou vendeu sua virgindade por cem mil reais?

O sorriso de retórica em seus lábios vermelhos faz as maçãs do meu


rosto aquecerem ainda mais. Pelo visto ele é bem humorado e até agora está
sendo gentil, o que me deixa menos tensa.

Ainda assim, é inevitável não ficar em estado de alerta com um homem


de 1,90 diante de mim. Seus braços devem ser do tamanho das minhas coxas
e seu olhar mostra o quanto ele é experiente e sabe lidar com toda essa

situação.

— As duas coisas — balanço os ombros e o encaro.

O senhor Lamarphe dá um gole generoso no líquido cor de ouro


envelhecido que traz em seu copo redondo e se senta numa poltrona diante de
mim.

A sala da casa desse homem faz parecer que não existe privacidade: as
paredes laterais, tirando as estruturas, são inteiramente feitas de vidro e
consigo ver pela noite escura e densa lá fora: três carros na garagem ao lado,

uma piscina mais ao fundo e uma miríade de luzes fraquinhas no horizonte,


deve ser da cidade. Mas o que me deixa realmente absorta é encarar uma
árvore gigantesca no meio da sala, acho que foi a coisa mais curiosa que já vi
em um cômodo.

— Viene[1] — ouço ele dizer e rapidamente me levanto.

No início fico em dúvida sobre o que isso significa, mas sua mão
direita se move indicando que eu devo me aproximar e é exatamente o que
faço.

Vejo-o desabotoar os três primeiros botões de sua camisa social preta,


revelando o contorno musculoso de seu peitoral.

Assim que me aproximo, seu cheiro refrescante, como se eu estivesse


perto do mar, rescinde contra meu rosto, e ele segura firme em minha mão.

Depois, com um puxão rápido que não me deixa escapar, me coloca em seu
colo, os joelhos pressionando o estofado da poltrona, meu coração
desregulado e nossos rostos a poucos centímetros um do outro.

Meu coração que estava quase saindo pela boca, agora está preparado
para fugir de vez.

Já tinha perdido o controle interno do meu corpo quando o vi, tudo em


mim parecia fora do lugar. E agora parece que ele quer causar a mesma
sensação pela minha pele.

Fecho e aperto os olhos com força ao sentir suas duas mãos tocarem em
minhas costas e descerem até minhas nádegas, contornando meu corpo e me
abraçando com uma firmeza que faz com que cada parte de mim comece a
aquecer, a ponto da combustão.

— Está com medo? — quando sussurra, me arrepia ainda mais.

Esse homem tem uma voz forte e potente, mas agora, ao pé do meu
ouvido, me desmonta inteira.

Sinto seu nariz deslizar sutilmente pelo meu pescoço, me fazendo


estremecer. E seu lábio inferior deixa um rastro molhado e irresistível que me
faz soltar lentamente, quando menos percebo, estou com as mãos em seu
ombro.

— Estou… com um pouco… — Ainda evito encará-lo, a feição dele me

causa uma sensação estranha que ainda não tinha experimentado por toda a
vida.

Sinto-me envergonhada ao encará-lo, mas não consigo resistir à


tentação.

— Eu vou cuidar de você… — Seus dedos fortes acariciam meu rosto e


afastam um fio de cabelo que estava solto.
Ao dizer isso, vejo seus olhos cinzentos brilharem e o sorriso de
cafajeste crescer ainda mais nos lábios.

Meu coração está prestes a sair pela boca… e parece que para, quando
sinto sua mão invadir a minha calça e massagear sutilmente por cima da
minha calcinha. O senhor Lamarphe me encara no fundo dos olhos, os
músculos de seu rosto enrijecem conforme o estica até que estejamos a

menos de um centímetro dos lábios um do outro.

— Como sou o seu primeiro, vou fazer de tudo para tornar esse
momento especial — ele diz novamente, com uma lábia invejável.

Posso ser virgem, mas não sou otária. De cafajestes eu entendo…

— Não tem como ser mais especial do que ganhar 100 mil reais —
sussurro de volta, em tom de provocação.

Com a cabeça ele acena de modo negativo, mas com o olhar me faz
perceber que eu disse a coisa certa.

A mão livre dele traz o celular diante do rosto. A tela ilumina suas
pupilas negras que contrastam com o resto do olho cintilante. Não importa o
que está fazendo, não para de me tocar. Consegue, não sei como, afastar a
minha calcinha e massagear uma parte que me faz querer travar as pernas e
me jogar para cima dele, perco o fôlego tão rápido que até me desequilibro.

— Então essa é a sua chance para sentir que é extremamente especial


— ele termina de dizer e sinto o meu celular vibrar no bolso.

A princípio não quero olhar, não quero estragar o momento, mas ele

insiste.

Não preciso desbloquear a tela para ver a notificação do meu banco


digital: acabei de receber uma transferência de 100 mil reais de Guilhermo
Lamarphe.

Ah, agora sei seu nome…

— Pensei que só fosse pagar ao fim, quando estivesse satisfeito.

— Bella donna[2]… — Seus olhos me encaram com seriedade. — Essa


é a minha garantia de que você irá me satisfazer.
“As dores guardadas no coração doem mais que as outras”.

— Machado de Assis.

QUATRO ANOS DEPOIS – ATUALMENTE


Dois anos atrás eu perdi tudo.

Um acidente de carro levou a mulher que eu amava, a nossa filha e me


deixou paraplégico.

Mesmo depois de toda terapia e reabilitação eu continuo preso àquele

maldito momento, há dois anos. Não há um dia que passe sem que eu acorde
desesperado com a sensação do estilhaçar do vidro voando para todos os
lados, a luz do farol do caminhão vindo em nossa direção, ou do toque de sua
mão em meu braço quando o impacto nos acertou em cheio.

— Doutor Lamarphe, compareça à sala da Vice-presidência — a voz


feminina no alto-falante chama pela terceira vez.

Seria fácil atravessar os corredores largos do Rota da Vida, um dos


maiores hospitais da América Latina, situado na cidade de São Paulo, se não
fossem pelos técnicos distraídos obstruindo meu caminho com seus carrinhos

de medicamento e refeições.

Preciso manobrar a cadeira de rodas para não atropelá-los, embora a


minha vontade seja de fato passar por cima.

Não estou de bom humor.

Acabo de sair de uma cirurgia de emergência em que precisamos


reabrir uma paciente que teve hemorragia interna, após algum descuidado
deixar um aparato cirúrgico dentro dela.

Foi a primeira vez, em dois anos, que tomei a frente de um

procedimento, já que todos os cirurgiões estavam ocupados ou a caminho.

Às vezes parece que estar limitado devido ao meu acidente apagou todo
o meu histórico de bom médico.

Dia após dia, há dois anos, eu preciso provar que estou apto novamente
a exercer minha profissão e raramente me colocam para fazer os
procedimentos. Posso orientar a equipe, fazer observações, dar instruções,
mas nunca me deixam atuar sem que uma equipe gigantesca esteja preparada
ao meu redor, como se eu fosse cometer um deslize a qualquer momento.

E pensar que um dia fui o nome mais forte para ser o CEO desse
lugar…

Mas dessa vez eu não pude esperar pela assistência médica, só contei
com a ajuda da equipe de enfermeiros. A pressão da paciente caiu, ela chegou

a apresentar convulsões, tomei a frente e mandei que preparassem tudo o


mais rápido possível, senão a perderíamos.

Toda vez que estou à trabalho no centro cirúrgico, uso uma cadeira de
rodas diferenciada: mais alta e que me dá melhor mobilidade, já que as camas
e macas do hospital podem ser bem altas e não estarem devidamente
adaptadas para um funcionário com necessidades especiais, como eu.
— Bom dia — digo assim que a porta do elevador abre.

Os dois homens me olham com desdém e não dão muita importância

para a minha presença, não sei se é porque estou sem jaleco ou somente
porque pareço um paciente de cadeira de rodas – mesmo com pijama
cirúrgico.

Aperto o botão para o penúltimo andar e fito a abertura metálica se

fechar e imediatamente abrir no andar acima.

— Lamarphe, seu puto! — Ayslan, também conhecido como “O


Viking”, também conhecido como o desgraçado do meu melhor amigo, vem
em minha direção e me dá um soco forte no peito.

— Bom dia, doutor — os outros dois dizem sincronizados e dão espaço


para o cabeludo se posicionar ao meu lado. Ele os ignora, no máximo dá um
aceno de cabeça.

Existe uma hierarquia silenciosa em todo lugar – não seria diferente em

um hospital de elite. Os “de baixo”, tratam os “de cima” com respeito e


submissão. O Viking sempre teve esse efeito sobre os outros, desde quando
éramos residentes aqui. Eu também, afinal de contas, um homem de 1,90 em
um jaleco não passa despercebido.

Bem... até passa... se estiver de cadeira de rodas...

— Qual foi a emergência que te colocou na linha de frente? — Ayslan


aperta meu ombro. — Parabéns, cara! Quebrando regras e salvando vidas.
Esse é o meu herói.

— Algum desses incompetentes deixou um alicate dentro de uma


paciente e a fechou — Informo e o vejo deslizar a mão direita pela barba, tão
chocado quanto eu. — Se não a tivesse reaberto e agido logo...

— Estou surpreso de que ela não tenha vindo a óbito. Já descobriu

quem fez tamanha cagada?

— Não. O pessoal da administração está investigando, de repente atas e


registros sumiram...

— Que conveniente... Isso aí vai dar uma justa causa para o


descabeçado e uma dor de cabeça para o hospital.

Os dois que estavam na frente saem primeiro, o elevador segue até seu
destino final. Assim que abre, Ayslan me leva para fora e me empurra com
toda a velocidade que consegue, atravessamos o corredor em questão de

segundos e eu me agarro com todas as forças a cadeira.

— Você tem quantos anos, cara? — reclamo quando paramos no hall


da Vice-presidência.

— Só para te deixar esperto e dar uma emoçãozinha nessa sua vida


pacata — ele ri como um moleque e me empurra até o balcão elevado da
secretária, preciso esticar o meu pescoço para enxergá-la sentada detrás dele,
de tão alto. — Doutor Lamarphe se apresentando! — Ayslan diz.

A mulher se levanta, apoia as mãos na madeira escura e espia como se

eu fosse um anão.

Não sei porque ainda me impressiono por parecer um intruso aqui.

Este hospital, como a maioria dos lugares, não foi preparado para

receber um funcionário com necessidades especiais.

E provavelmente eles achavam que me venceriam pelo cansaço e me


fariam desistir, pedir para voltar a ser docente em tempo integral, quem sabe
uma aposentadoria ou ficar o dia inteiro em uma sala confortável gerenciando
papelada...

Não.

Meu trabalho é a única coisa que me mantém vivo, o fio que segura
minha sanidade. Não dediquei mais de uma década de estudo, prática e

tormentas para sucumbir a qualquer dificuldade. Eles vão me vencer pelo


cansaço? Não se eu puder vencê-los pela insistência.

— Pode entrar, doutor Lamarphe. O vice presidente está à sua espera


— a secretária informa.

Antes que eu agradeça ou deseje um bom dia, o Viking volta a


controlar para onde vou e me empurra até a entrada, abre a passagem e me
joga ante a longa mesa do meu tio e padrinho, Alfredo Lamarphe.
— Guido! — Vejo-o abrir os braços e vir até mim. Me cumprimenta
com demora e me faz questionar se fui convocado aqui para tomar um café

ou receber uma repreensão sobre meu ato deliberado há pouco.

— Enfim, acharam motivo para me demitir? — Encurto logo o assunto


e vou direto ao ponto.

— Do que está falando?

— Sobre a cirurgia de emergência que precisei fazer por um erro da sua


chefe de cirurgia — relato.

— Bobagem — o velho minimiza. — Aliás, parabéns, ouvi dizer que


foi uma bela operação. Você sempre foi um rebelde com causa, não esperava
menos de você.

— Grazie![3] — Semicerro os olhos, ainda sem entender o que estou


fazendo aqui então, já que não serei advertido.

— Prego[4]. Meu velho Viking, aceita um whisky?

— Agora não, ainda tenho trabalho pelo resto do dia — ele agradece
com a mão. — Tem gente esperando para ter a virgindade de volta lá
embaixo e eu só vim porque você me bipou.

Ah, ele está aqui porque foi chamado também? Pensei que só queria
me infernizar.
— E a doutora Han? — Meu tio olha para nós dois e por fim percebe
que falta alguém.

— Teve uma emergência também — Ayslan informa.

— Muito bem, então direi a vocês dois... — o homem diz orgulhoso,


caminha até a janela de cortinas escancaradas de um azul marinho elegante e
sofisticado, como tudo o que representa sua vida.

Consigo ouvir o rufar de tambores ao fundo e a expressão dele, quando


se vira para nós, é um misto de alívio e decepção.

— Eu vou morrer.

O silêncio que se segue é um tanto agridoce, para não dizer esquisito.

Aguardo que ele prossiga e diga o restante, mas tudo o que faz é
comprimir o lábio em um sorriso contido. Não sei se espera que digamos
algo... Na dúvida, tento ser analítico:

— Todos nós vamos morrer um dia. Todo ser humano tem duas coisas
em comum: nasceu e vai morrer, faz parte do ciclo da vida.

— Já há algum tempo, em um exame de rotina, o meu médico


descobriu que eu estava com um tumor maligno.

Engulo em seco e para tentar abrandar a raiva, aperto o apoio de mão


da cadeira com muita força.
A família é muito grande, mas a única pessoa com quem sempre tive
real proximidade foi o meu padrinho. Foi ele quem insistiu que eu deixasse a

Itália e viesse para o Brasil, ser seu braço direito. Ele me ajudou e me apoiou
em todos os momentos, ainda mais após o meu acidente.

Não consigo acreditar no que estou ouvindo…

Sinto um misto de raiva e um embargo na garganta.

A vontade é de sair daqui agora mesmo, certamente faria isso se


pudesse… se Ayslan não estivesse segurando minha cadeira.

— Não havia muitas opções... E eu estava atarefado cuidando de


algumas coisas... — Sua voz sai tão macia e despreocupada que me deixa
nervoso.

— Estava ocupado demais para cuidar da saúde? Che cazzo![5] Como


que não detectaram isso antes? De quanto em quanto tempo são esses seus

exames de rotina? — me altero.

—... O importante é que tenho algum tempo de vida... — Ele ignora


completamente o que eu digo.

— Quanto tempo? — Ayslan até se senta, cruza as pernas e apoia o


cotovelo na de cima.

— Algumas semanas... dias... Possivelmente...


— E você joga essa bomba assim? No nosso colo? Vai morrer em
alguns dias? Você tem noção do que está dizendo?

É estranha a sensação que um médico que estudou a vida inteira para


salvar vidas sente, ao ouvir ou saber que não pode salvar uma. Ainda mais
uma tão próxima e conectada à sua própria vida... Já passei por isso uma vez
no passado... E estou revivendo esse sentimento em uma montanha russa de

emoções agora.

— Mas nunca é tarde demais para algumas coisas... — ele suspira. —


Então eu vou me casar e vou revelar o meu testamento. E vocês dois, assim
como a doutora Han, estão nele. Então... Compareçam...

— Casar? — A voz sai até embargada ao dizer a palavra. — Será que


o senhor tem noção do que acabou de nos dizer? Será que percebe o quão
relapso e descuidado foi consigo mesmo e agora só diz que quer... Casar?!

— É a vontade dele, Guilhermo — Meu amigo tenta me abrandar. — O

que podemos fazer por você, senhor Lamarphe? — Ele até o trata com
formalidade agora.

— Quero que estejam em meu casamento. E escutem as minhas últimas


vontades... Informem a Han, por favor. Lembrem-se, eu não tenho muito
tempo...

De repente tudo volta outra vez.


A negação, a raiva e a sensação de perder o controle, sem ao menos sair
do lugar.

— Se me dão licença, eu tenho trabalho a fazer até encerrar o meu


plantão. — Manobro para dar meia volta.

— Você deveria considerar se casar um dia, Guilhermo — a voz do


meu padrinho me deixa imobilizado mais uma vez. — Nunca é tarde para o

amor.

Não sei quantas conversas tivemos nos últimos anos. Mas a minha
posição nunca mudou e eu permaneço incisivo.

Antes de me casar eu sempre fui mulherengo. Sempre gostei de me


aventurar, sair com quantas mulheres fosse possível e viver no limite.

Agora tenho outros desafios, e o mais importante:

— Eu não acredito no amor. — Viro-me sutilmente para encará-lo. —

Eu não tenho tempo para trivialidades. Não preciso de um sentimento


estúpido para perseguir ou dar razão à minha vida...

— Lá vai ele... — Ayslan se diverte.

— Eu já amei, uma vez. E isso me foi arrancado, junto com o meu bem
mais precioso, assim como minha capacidade de andar e ser reconhecido

como o melhor cirurgião desse hospital. Non parlarmi dell'amore[6], tio


Lamarphe. Já não sou adolescente há muito tempo.
Aguardo alguns segundos para dar direito à réplica. Como ela não vem,
dou o assunto por encerrado e dou meia volta para seguir o meu caminho.

Tenho ocupações reais para me preocupar.


“Aquilo que está escrito no coração, não necessita de agendas porque
a gente não esquece. O que a memória ama, fica eterno”.

— Rubem Alves.

— Ninguém vai te tratar melhor do que um homem tentando te comer.


Patrícia Sanches, minha melhor amiga, irrompe da meia luz da sala
toda bagunçada, com calças jeans e vestidos por cima do sofá, mesa e vaso de

petúnias, para me dizer isso.

Não consigo segurar o suspiro de lamento.

Noite passada, quero dizer, há poucas horas, estive em mais um desses


encontros furados com um desses caras de aplicativo de namoro. A

lembrança embrulha meu estômago, evito pensar sobre isso e me concentro


nas malas vazias e as roupas espalhadas.

Santo Deus, que bagunça...

... a minha vida.

A casa acho que tem jeito.

— Esse pelo menos queria te comer, não é? — Ela estica o pescoço


para me encarar, enrola as camisas e trajes de banho de qualquer jeito e

arremessa na bagagem.

— A maioria deles sempre quer. — Estalo a língua e dedilho a capa


transparente que guarda um vestido branco. — E caem fora logo em seguida
quando descobrem que eu tenho um filho pequeno.

A expressão azeda que a minha amiga faz, me diverte. Jogo a cabeça


para trás e rio em silêncio, ou não sei se choro para expulsar toda essa
frustração.
Para ser sincera, eu gostaria muito de que essa primeira excitação da
descoberta de um novo amor nunca se perdesse.

Adoro aquele frio na espinha do primeiro contato com alguém


estranho... o rosto enrijecido e as mãos suadas ao ver, enfim, o rosto da
pessoa ao vivo e em cores, depois de ter imaginado e descartado o photoshop
e facetune que colocam...

E, é claro, se tudo isso for coroado com um vinho que esquenta o


coração e me faz rir fácil, enquanto descobrimos os interesses um do outro...
isso se torna o match perfeito.

O meu interesse é conhecer alguém que valha à pena e viver tudo o que
temos direito.

Já o interesse da maioria deles é... foder e fugir.

Eu não reclamo. Gosto também.

Flertar me diverte muito, todas as vezes que saio com um homem,


parece que aprendo mais sobre mim mesma do que sobre eles. E eu
simplesmente sou fascinada pelos malabarismos que fazem para tentar chegar
em minha calcinha e a arrancar.

Eles são bem criativos nessa parte.

Nas cinco primeiras saídas foi legal. Eu podia ter sido desovada em um
matagal? Sim. Poderia estar sem o fígado e um dos rins? É uma
possibilidade. Traficada para a Turquia? Acho que já cheguei bem perto
disso.

Nas outras dez, parecia que eu conhecia o roteiro muito bem: qual o
seu nome? Qual o seu telefone? Onde você mora?

Nunca sei se estou me inscrevendo para aquele programa do governo


“Minha foda, minha vida” ou só dando meus dados para que alguém faça

um cartão da Riachuelo...

— Yasmin, para de suspirar e se concentra! Coloca logo esse vestido de


noiva na mala, nosso voo é em três horas! — Patrícia reclama, passa por mim
na cozinha e pega uma maçã.

O início do outono em São Paulo trouxe aqueles dias bipolares onde


frio e calor disputam território no relógio. Agora estou de moletom preto por
cima do macacão vermelho que usei para sair em mais um desses encontros
falidos... daqui algumas horas provavelmente vou querer ficar só de sutiã,

derretendo de calor.

Mas sabe o que nunca vou usar de verdade, faça chuva ou faça sol?
Seja frio ou calor? Um vestido de noiva.

Suspiro ao pegar a peça de alta costura, tão alva e perfumada que


reflete pureza. Confiro o busto ornado com pérolas e cristais, a cintura tão
fina e delicada, e a parte inferior que se alonga em um volume que reflete
luxo e poder. Ajeito o véu diante do meu rosto e vejo toda a cozinha turva, o
calor da minha respiração volta contra minhas bochechas.

Cada vez que saio com um babaca vejo que estou longe de colocar o
véu e subir no altar.

Papai era costureiro da elite paulista há trinta anos. Trabalhou para


grandes estilistas, produziu lindos vestidos de noiva, ternos para CEO’s e

grandes empresários, todo tipo de indumentária luxuosa era sua


especialidade. Há quatro anos, ele abriu o seu próprio ateliê e viveu toda a
fama que merecia, após viver na sombra de estilistas que roubavam seu
trabalho e que nunca lhe davam os devidos créditos.

Ano passado ele faleceu.

Acho que foi nesse momento em que de fato virei adulta, aos 23 anos,
pois precisei tomar as rédeas da situação e me tornei arrimo da família.
Mamãe caiu em uma depressão profunda e raramente sai da cama, Diogo, o

meu irmão mais novo, agora chega tarde em casa, sempre bêbado e gritando
comigo e eu me sinto culpada por ver os negócios da família indo por água
abaixo.

As coisas estavam indo bem... papai parecia saudável e estava feliz por
trabalhar junto comigo no ateliê e me ensinar seu ofício, que sua mãe lhe
ensinou... agora não sobrou mais nada, além de dívidas e algumas peças
raras que ele nunca expôs ao público.

Como resultado disso, tive de engolir todo o meu orgulho e esquecer os

meus sonhos, para ser o suporte da família, que está em pedaços. Não posso
permitir que tudo se desmanche assim, não sem lutar.

— Ainda não colocou esse vestido na mala, menina? — Patrícia põe a


mão na cintura e bate o pé. O suspiro parece alto demais, devido ao silêncio

da casa.

— Estou tentando dizer adeus... — digo baixinho e sorrio para a peça


de roupa. — Papai costurou essa peça originalmente para a filha de uma
grande empresária daqui de São Paulo, mas no fim ficou tão bonito, que ele
disse: vou guardar para você...

— E é justamente esse vestido que você vai vender para a Heloísa? —


Ela se aproxima e observa.

— Foi o que ela escolheu. — Balanço os ombros. — E, afinal de

contas, eu nunca vou me casar...

— Yasmin... — Patrícia semicerra os olhos e me lança um olhar de


desafio e denúncia de minha dramaticidade. — Pega outro, vai... A Helô não
vai nem reparar...

— Não, tudo bem. — Guardo o véu dentro da capa protetora e a dobro


com bastante cuidado. Deito-a dentro da mala como se fosse um bebê frágil e
fecho, sem colocar mais nada ali dentro, para que não amasse, nem ocorram
avarias. — Todos nós precisamos fazer sacrifícios... esse é o meu. — Imito

algo mais próximo de um sorriso.

Papai vivia muito inspirado nos últimos tempos, por isso produziu
alguns ternos e vestidos e me disse que não os venderia. Não até encontrar o
preço certo. Dizia ele que eram as relíquias da família e que ainda

conseguiríamos ficar ricos com elas.

Bem... desde que papai morreu as coisas não têm sido fáceis. E não é
todo dia que você recebe a ligação de uma grande amiga que revela que vai
se casar e precisa de um vestido urgentemente. E que paga o valor que for
necessário por ele...

— Me desculpe, papai, mas estamos em uma crise... — Dou umas


batidinhas na bagagem. — E o senhor gostava da Heloísa, além de que, sabia
que sua filha não tinha sorte no amor, então... pelo menos vamos dar um dia

incrível para um de seus trabalhos — suspiro.

Heloísa, Patrícia e eu nos conhecemos na faculdade de direito, no


Mackenzie.

Planejamos uma linda e gloriosa carreira juntas, até a vida puxar cada
uma de nós para um canto. Helô se formou e foi trabalhar de cara em um
grande escritório de advocacia aqui na capital paulista. Patrícia se formou,
mas já havia se estabelecido antes de se formar vendendo produtos eróti...
evangélicos, chamemos assim – e ela está focada em passar no concurso para

delegata.

E eu...

Bem, o meu filho não atrapalhou os meus estudos. Phellippo tem só


três anos e sim, tive que diminuir o ritmo durante e depois a gravidez..., mas

eu abandonei o direito porque queria ajudar papai a construir seu ateliê.

Eu, mais do que ninguém, acompanhei toda sua luta e seu esforço para
conquistar cada cliente, cada pequeno espaço, e quando a demanda aumentou
demais, eu fui seu braço direito.

Se antes eu me dedicava muito, agora eu me entrego 100%, pois tem


apenas eu.

Tive que fechar o ateliê e transformar a sala de casa no trabalho, tive de


dispensar alfaiates, pois os rendimentos despencaram e agora faço uma

jornada dupla: ajudo Patrícia em sua loja online de piroc... produtos de


satisfação pessoal... e costuro.

Além de, é claro, ser mãe em tempo integral, porque o pai do PH nunca
quis conhecê-lo, só paga a pensão porque é a única coisa nesse país que dá
cadeia de fato.

Ai que ódio... nessas horas eu lembro da frase de Patrícia: “Ninguém


vai te tratar melhor do que um homem tentando te comer”.

Depois disso é só ladeira abaixo...

— O que foi dessa cara amarrada, Yasmin? Ainda está pensando no


boy lixo que saiu contigo? — ela debocha.

— Sim. — Encurto a conversa, para não tentar explicar o misto de

sentimentos que corre em mim.

— Ih, minha filha, desencana — ela fala com naturalidade e bate com
um pênis de borracha em cima da mesa. Em seguida liga o vibrador dele e o
negócio começa a girar. — Homem consegue fazer isso? Homem vibra desse
jeito, Yasmin?

— Mas eu não quero só prazer, né... — sorrio. — Eu quero um homem.


Sabe? Me sentir cuidada, amada, desejada... ouvir ele perguntar como foi o
meu dia... sentir um misto de calafrio com calmaria ao ouvir a voz dele...

— Ih, minha filha, isso aí quem faz pela gente é a nossa mãe. Homem
não. Homem só dá desgosto — ela resume a ópera.

— É... mas a Heloísa conseguiu o dela, né? — Arranco o pênis de


borracha da mesa e lanço nas mãos dela, toda essa vibração chega a me dar
um nervoso.

— Que nada, Yasmin, Heloísa está dando é o golpe do baú mesmo!

Patrícia abre o zíper de uma mala grande, que rapidamente vejo um


estoque gigantesco de produtos eróticos, e joga o objeto lá dentro.

— Achou um velho italiano, podre de rico, bilionário, batendo as botas.

E vai se casar para dar golpe no velho. Certa ela, vou chegar nesse casamento
fingindo que sou cupim.

— Cupim?

— Sim, atrás de pau velho... — Ela segura a gargalhada porque é


madrugada e todos estão dormindo.

— Sério? — Começo a repensar o fato de entregar o vestido de noiva


que seria meu para a minha amiga. — Ela não me disse nada disso. Pensei
que ela estava apaixonada...

— A paixão dela tem cor: azul. E tem número: 100. E vem numa mala,
cheia de notas não marcadas... Yasmin, não faz essa cara. Quem gosta de
homem é a mãe deles, que tem a obrigação de aturar. Heloísa gosta é de
dinheiro e está realizando o sonho dela e o meu. Agora se arrume logo que

daqui a pouco precisaremos estar no aeroporto!

Surreal... para não dizer outra coisa.

Antes de ir para o aeroporto, vou conferir meu filho em seu quarto e


vejo que está dormindo serenamente. Só vou ficar fora uma semana, mas é o
maior período que já passei longe dele, vai ser muito difícil ficar sem o meu
pequeno menino e vou sentir muitas saudades.
— Se comporte, PH — beijo sua testa. — Mamãe vai voltar logo e vai
te comprar aquele carrinho que você tanto quer. — Faço um longo cafuné em

sua cabeça e o assisto dormir.

Fico mais alguns minutos para assisti-lo dormir, até ouvir a barulheira
de Patrícia lá embaixo.

No meu quarto eu troco de roupa, coloco uma blusa branca por debaixo

do moletom e uma calça preta da adidas, de tecido muito leve, além de calçar
um tênis confortável, amarro os cabelos em um coque frouxo e confiro na
bolsa se todos os meus documentos e a passagem estão nela.

Desço as escadas com uma mala de mão pequena, com coisas muito
simples e básicas: três mudas de roupa, dois biquinis e um vestido bonito
para ser a madrinha do casamento da minha amiga.

Sempre madrinha... nunca noiva...

— Meu Deus, para quê quatro malas grandes, Patrícia? — Coloco a

mão na cintura, indignada.

Vou levar só duas de mão e uma bolsa, já ela...

— Vou levar o essencial.

— Essencial? — Deslizo o rosto para observar bem tudo isso. Não sei
nem se vai caber no uber que vamos chamar. — Uma mala de pirocas é
essencial?
— É lógico — ela logo protesta. — É casamento, minha filha. Em
Fernando de Noronha. O povo vai estar tudo doido e eu vou vender prazer

ilimitado. E se eu organizar direitinho, ainda vendo ingresso pra suruba...

— Meu Deus do céu... — Aponto para a outra mala gigantesca. — E


essa?

— Minhas roupas.

— Vai levar o guarda-roupa inteiro?

— Agora virou o quê? Fiscal? Minha filha, eu preciso de opções! Tem


maiô, tem biquini, tem fita isolante e bronzeador para fritar no sol... tem
maquiagem, tem laquê, tem perfume, tem dez tipos de sapato...

— Tá, vamos encurtar essa conversa — reviro os olhos. — E essa


outra, Patrícia? — Vou até a mala que está deitada no sofá, aberta.

De cara vejo duas garrafas de cachaça, um pote do que parece ser

farofa amarela, pimenta dedo de moça, uns búzios, um prato de barro grande
e um monte de legumes: beterraba, alface, couve, brócolis, batata doce...

— E pelo amor de Deus, o que é isso, Patrícia?

— É macumba[7] — ela diz logo de uma vez. — Porque eu vou


conseguir meu velho rico para dar golpe do baú também. E como na ilha
estarão os amigos do marido da Heloísa, é bom que o feitiço já faz efeito
rápido, vou agilizar o sedex da Pomba gira.
— Vai partir para amarração? — digo, indignada.

— Que amarração o quê, garota, eu lá quero amarrar um encosto

desses em mim? É deslizou, abaixa e créu. — Ela faz toda saliente o


movimento. — É só uma sentada, juras de amor, casamento marcado com
partilha de bens e depois o golpe.

— Meu Deus, você perdeu o juízo — avalio tudo na mala, evito

encostar.

— Perdi nada não. Olha, não conta para a Helô que te contei, mas fui
eu que fiz o trabalho para ela conseguir fisgar o coroa. Se deu certo para ela,
vai dar certo para mim. Quer um para você também?

— Não, não, amiga... estou desesperada, mas ainda tenho um pingo de


juízo.

— Nessas horas cada um se apega com o que pode — ela retruca.

Bom, na dúvida, vou me apegar ao bom senso.

— E cadê o frango? — Ergo a sobrancelha.

— Que frango, Yasmin? — A outra pergunta indignada, a voz exaltada.

— Ah, não sei... vai fazer oferenda, tem farofa, tem cachaça, tem até
beterraba e alface, coisa que nunca vi. Não devia ter um frango?

— Yasmin, você me respeite. Eu sou macumbeira, mas eu sou vegana!


“Existem sentimentos que duram, mesmo depois do fim”.

— Renato Russo.

A viagem de São Paulo a Recife durou 3 horas, o que foi ótimo, já que
consegui desacelerar a mente e dormir um pouco.
Assim que desembarcamos no aeroporto Gilberto Freyre, fomos
abraçados pelo calor de Recife e eu me senti feliz por não estar usando

moletom. Já Patrícia, começou a se despir, afobada, no meio do corredor,


impedindo os outros passageiros de seguirem.

Não tivemos que esperar muito para seguir o nosso destino final,
ficamos no máximo 45 minutos entre bocejos e beliscadas numa marmita que

minha amiga trouxe – e me garantiu que não era qualquer tipo de trabalho
espiritual.

De Recife até Fernando de Noronha, não consegui dormir. Não sei o


que me deu, normalmente a primeira coisa que faço ao sentar em um avião, é
fechar os olhos e fingir que estou dormindo, até me convencer de que
realmente estou e aí apago. Mas o longo rastro do mar a perder de vista e suas
inúmeras cores me deixaram atenta na janela oval.

Eu até acho que vi um golfinho quando o avião deu uma vista

privilegiada nos Dois Irmãos, duas rochas gigantes uma ao lado da outra de
uma beleza ímpar. Alguns minutos depois pousamos no aeroporto e fomos
em busca das nossas malas.

— Esse clima de litoral é tudo — Patrícia diz animada, empurrando o


carrinho com suas malas cheias de produtos eróticos e espirituais.

Nesse momento dei graças a Deus por ela ter colocado tudo em mala
grande e não na de mão.

— Imagina o sufoco passar uma mala de mão dessas no raio-x? —

Encaro-a.

— Que que tem?

— Os funcionários iam ficar te encarando... ia ser a maior vergonha...

— Yasmin, desencana! Eu ia dizer que era tudo para a caridade e tudo


ficaria bem! — Ela vai saliente, empurrando o carrinho.

— Você parece animada, amiga — comento, segurando o riso.

— Ai, sim! Eu já quero colocar o corpo para jogo, usar um biquíni


bem do descarado e sair desfilando por aí. — Minha amiga balança os
ombros conforme anda ao meu lado. — Ou será que deveria me vestir de
enfermeira?

— Enfermeira? — Franzo o cenho.

— Para caçar os velhinhos ricos, né? Amiga, diz a verdade, tenho cara
de cuidadora de idoso?

— Quê?! — Solto um grito misturado com riso.

Esqueço por um momento todas as palhaçadas de Patrícia.

Meus pulmões até estranham esse cheiro delicioso e ímpar que provém
do mar, refrescante e leve.
Jurei a mim mesma que quando tivesse dinheiro para tirar férias, iria
para Miami, quem sabe as Bahamas ou até mesmo a Itália…, mas agora,

depois de ter uma vista panorâmica desse patrimônio brasileiro, duvido que
encontraria algo tão belo quanto Fernando de Noronha.

E super entendo o fato de Heloísa ter escolhido aqui para registrar seu
momento de amor, este é um lugar para ficar eternizado na memória.

— Temos poucos dias para aproveitar, então se solta, hein… —


Patrícia diz toda animada. — Quero sair daqui com um ricaço na coleira e
você não me desaponte! — Me dá um cutucão.

— Você está mesmo fixada no negócio de conseguir um homem rico,


não é? — Rio.

— Minha filha, esse é o ciclo da vida: nascer, crescer, casar com um


homem milionário, dar um golpe e ser feliz com toda a experiência que a vida
pode proporcionar…

Ela para subitamente de falar quando avista Heloísa, nossa querida


amiga que vai se casar. Patrícia sai empurrando o carrinho de qualquer jeito,
toda destrambelhada, e eu não fico atrás, sigo-a em passos largos.

— Ai, eu nem acredito que vocês vieram! — nossa amiga diz animada.

— Incrível, né? Precisamos sair de São Paulo para nos encontrar —


digo.
Heloísa não consegue responder porque está sendo sufocada pelo
abraço da outra amiga, que a tira do chão e começa a girá-la em seu próprio

eixo.

— Meu Deus, pra quê tanta felicidade? Quem vai casar sou eu!

— Minha filha, quando uma mulher vence na vida, todas as mulheres


vencem na vida. — Patrícia agarra a mão que nossa amiga ostenta uma

aliança com uma pedra brilhante exageradamente grande. — E essa venceu


mesmo!

— Venci — ela diz toda pomposa e orgulhosa.

E eu entro no meio delas e grudo no pescoço da minha amiga.

— Estou feliz por você, Helô.

Na vida, só três pessoas me deram real suporte nos momentos difíceis,


principalmente após ter um filho: papai, Helô e Paty. E eu já não via minha

amiga há tanto tempo que tinha medo de ao reencontrá-la a amizade não ser
mais a mesma… engano meu.

Existem amizades que duram uma eternidade, não importa o quanto


demore para encontrar o outro pessoalmente ou até mesmo trocar uma
mensagem. E o abraço que sinto dela me faz sentir que ficamos sem nos ver,
no máximo, há um dia.

— Olha como essa mulher está gostosa! — Heloísa me dá um tapa na


bunda.

E eu olho envergonhada ao redor, mas ninguém está prestando atenção

em nós, o povo está mais preocupado em seguir seu destino mesmo.

— Fazer o quê, né… ser mãe me valorizou pra caramba — dou uma
voltinha.

— Meu Deus, como eu senti falta dessa Yasmin… — Patrícia acena


negativamente com a cabeça. — Nem parece a mulher tristonha de ontem,
que saiu com um traste e…

— Desencana! — Heloísa agarra nós duas pelo braço. — Meu


casamento só vai dar gente da alta sociedade. Os sobrinhos do meu noivo vão
estar todos aqui, família italiana, cada pedaço de mal caminho… esqueçam os
boys lixo, vocês estão intimadas a se divertirem e passarem a melhor semana
da vida de vocês aqui!

Patrícia não precisa ouvir duas vezes, balança a cabeça, agarra o

suporte que carrega suas malas e já sai adiante.

— Então vamos que não tenho tempo a perder!

— Ai, amiga, é tão bom te ver! Estou tão feliz por você! Parabéns!

— Muito bom te ver também, meu amor — Helô me abraça com força.
— Vamos logo, pois quero experimentar esse vestido e ajustá-lo, para que
depois disso possamos aproveitar cada minuto nessa ilha paradisíaca!
— Sim!

Nem acreditei quando saí do carro e me vi diante do paraíso.

A pousada 5 estrelas que iríamos ficar, estava situada no meio da selva.

Por onde quer que olhássemos havia o verde esplendoroso da mata,


coqueiros, bananeiras e todo tipo de vegetação de cor vívida e exuberante. A
construção toda feita em madeira reforçada dava um ar rústico ao olhar de
fora, mas assim que entrei, percebi o quão refinado era.

A primeira visão que tive logo à esquerda, em uma parede de vidro que
separava a recepção do restaurante, foi um banquete digno de camarim de

celebridade. Eu nem estava com fome, mas depois de ver tantas frutas
coloridas, além de pães, caldos, bolos e pescados, me convenci de que minha
primeira parada após um banho seria ali.

Dei uma checada rápida no lustre delicado e opulento no meio da sala,


nas paredes de um azul marinho profundo e a decoração minimalista e ao
mesmo tempo exibindo glamour.
— A diária é 2000 reais? — Patrícia puxa Heloísa pelo braço e nos leva
para o canto. — Amiga, se você quer me foder, pelo menos me paga uma

cerveja primeiro. Não sou tão exigente não…

— D-dois? — Até gaguejo e pisco os olhos com demora. Não consigo


nem dizer o resto de tão chocada que fiquei.

É… pensando bem, até que não é tão bonito não. Que lugar cafona…

— Vocês são minhas convidadas e madrinhas. Desfrutem de tudo à


vontade enquanto estiverem aqui, tudo será pago no cartão do meu marido —
ela minimiza a situação.

— É, minha filha, porque dois mil reais de diária… é muita piroca que
tenho que vender, hein? Cada pessoa nessa ilha vai ter que comprar uma…
— Patrícia limpa a testa.

— Eu já disse para relaxarem, esse é o meu momento e nós vamos


aproveitar — Heloísa sorri. — Essa pousada só possui 15 bangalôs, vou levá-

las até o de vocês… os outros são da família e convidados próximos do


noivo.

— Hum, ansiosa para conhecer os outros homens…

— Você irá adorá-los, garanto — Heloísa passa o braço no meu. —


Tome o tempo que for preciso para se revitalizar e depois me encontre
naquele estúdio — ela aponta para uma construção que fica um pouco
adiante, após a piscina de ladrilhos cinquenta tons de azul, coqueiros altos e
tochas espalhadas por todo o lugar, ainda apagadas.

— Ok, novamente, obrigada pelo convite.

— Não seria meu momento especial se minhas amigas malucas não


estivessem aqui! — Ela dá um tchauzinho e eu entro no bangalô.

Patrícia está simplesmente parada no meio do lugar que possui duas


poltronas diante de um televisor que parece tela de cinema, encarando uma
das camas Queen que está à direita. O quarto parece completo, com banheiro,
uma pequena biblioteca e dois armários que caberiam meu guarda-roupa
inteiro e sobraria espaço.

— Tá travada, bicha? — Dou um beliscão nela.

— Amiga, acho que morri e vim para o paraíso.

— Aproveita, homem! Uma semana longe do hospital não vai te matar


— Ayslan tenta me animar, sem sucesso.

A minha rotina e obrigações são o elo que tem mantido minha cabeça
no lugar. Não gosto sequer de lembrar da época pós-acidente em que fiquei

meses sob observação, de molho e quase um ano inteiro sem poder voltar a

trabalhar.

Gosto da ilha, Fernando de Noronha me lembra a Sicília e boas


lembranças de minha infância parecem ser ativadas quando vejo o azul
profundo do mar límpido e inquieto. Acho que acontece o mesmo com o

velho Lamarphe, por isso ele decidiu se casar aqui.

— Ei, para onde você vai?

Ayslan parece estar mais à vontade do que nunca. De óculos escuros e


camisa floral aberta, os cabelos longos soltos e seu olhar de surfista mostram
que ele e esse lugar foram feitos um para o outro.

— Preciso ir ao banheiro. Já volto — Tento transparecer tranquilidade


em minha fala para enganá-lo e parece que resolve, meu amigo volta a deitar
e aproveitar o sol do fim da tarde.

Manobro a cadeira de rodas para longe do alcance da piscina até chegar


em um casarão coberto por trepadeiras do lado de fora, onde dois minutos
antes vi a maldita noiva entrar carregando seu vestido.

Como ela e eu ainda não fomos apresentados, farei as honras.

Ela precisa saber que nem tudo é festa e alguém nessa família é contra
toda essa loucura. Sei que não posso impedir, mas ao menos posso assustá-la
e mostrar que não pode me enganar, sei reconhecer uma aproveitadora
quando vejo.

Entro o mais silenciosamente possível pelo ambiente vazio, caixas e


mais caixas de produtos de ornamentação, além de cabides cheios de peças de
roupa de gala estão espalhados pelo local.

Na sala mais ao fundo paro subitamente na porta quando encaro a

mulher morena, de costas para mim, alinhando o vestido de noiva, ainda


dentro da capa transparente, contra seu corpo.

Está tão distraída vendo sua própria imagem no espelho e parece tão
feliz, que seria uma pena tirá-la do sério agora.

Na verdade, eu não ligo e vou acabar com essa festa antes que comece.

Verdade seja dita, o maldito do velho Lamarphe tem bom gosto para
mulheres, isso eu nunca duvidei e acho que de certa forma herdei isso dele. A
mulher tem curvas que nem mesmo as ondas do mar ou nuvens cortadas por

caças poderiam produzir. O cabelo negro é longo e cobre quase suas costas
toda, sua pele é morena e parece uma bonequinha com não mais do que 1,65
de altura.

Não consigo ver seu rosto e seus olhos, está posicionada de uma forma
diante do espelho em que não tenho acesso a isso, mas a julgar pelo resto do
pacote, deve ser só uma dessas modelos de passarela que acha que vai ter
vida fácil ao se casar com um homem que está prestes a bater as botas e ficar
com toda sua fortuna.

Não vai.

Não comigo aqui.

— Escuta aqui, sua aproveitadora — já chego assim, causando impacto.

Empurro as rodas para frente e consigo segurá-la pelo braço com


firmeza, um bom choque de realidade precisa ser acompanhado por um
safanão.

Ainda tenho tempo para vê-la jogar o vestido de noiva para o ar e cair
em cima de mim, o impacto faz com que minha cadeira rode para trás e eu
não consigo pará-la até sentir a parede bater contra minhas costas.

A bela morena de olhos castanhos, sentada, ou melhor, jogada em cima


de mim, me encara assustada, certamente não mais do que eu.

Isso não saiu como eu esperava.

— O quanto de dinheiro você quer para sumir da minha frente e me


poupar desse teatrinho imbecil? — resmungo, mas as palavras vão se
perdendo conforme ela pisca os olhos para mim.

O rosto dela me é familiar. Esses lábios e o contorno do rosto meio


arredondado… a sobrancelha levemente erguida e as pupilas dilatadas… A
respiração quente e desesperada diante do meu rosto, a pulsação de seu
corpo que sinto mais agitada ao ficar em cima do meu.

Sou acertado em cheio por uma lembrança muito específica que me

desconcerta. E não importa todas as informações que vêm à minha mente,


não consigo parar de encará-la.

Eu conheço essa mulher.


“Eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com
tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata”.

— Carlos Drummond de Andrade.

— Heloísa vai ficar linda nesse vestido. — Estendo a peça fina diante
do meu corpo, tomando cuidado redobrado para que não toque o chão,
mesmo dentro da capa protetora.

Papai ficaria orgulhoso de vê-la usando uma de suas obras de arte. Ele
sabia o quanto minhas amigas eram importantes para mim, por serem meu
amparo e suporte fora de casa…

Sou tomada por uma lembrança antiga. Quando criança, sempre entrava

às escondidas no quartinho de costuras de papai para experimentar os


vestidos. E quando me vi, aos 13 anos, mesmo pequena e magrinha em um
vestido de noiva, eu me vi e me senti linda.

Contenho o sorriso que desponta em meu rosto, quando observo minha


feição no espelho. Fazia tempo que eu não ficava tão feliz facilmente… a
semana foi só de boas notícias: uma das minhas melhores amigas vencendo
na vida, um bom dinheiro entrando na conta e férias inesperadas, mas que
eram muito necessárias.

Só de respirar o ar de um lugar diferente do que estou acostumada, já


sinto o sangue fervendo em minhas veias, um ânimo que eu já não conhecia
há tanto tempo e motivação. Preciso aproveitar essa oportunidade para duas
coisas: descansar e tentar fazer novos clientes… Afinal de contas, se a família
do futuro esposo de Helô é tão rica assim, acho que tenho boas chances de
lucrar um pouco mais.
Falando no noivo… quando ela vai apresentá-lo?

Meu pensamento ia fluindo para longe enquanto eu me divertia com a

imagem do vestido em mim, no espelho, até que um puxão arranca meus pés
do lugar e me lança no colo de um homem.

Quando percebo que o movimento não parou, agarro-me ao pescoço


dele, mal consigo raciocinar enquanto encaro seus olhos vítreos, e só me dou

conta de que estou em cima de um homem em uma cadeira de rodas quando


ela bate na parede.

— Ai meu Deus! — Não sei se me agarro com mais força ao pescoço


dele ou se salto para fora. Mas as duas mãos dele seguram com firmeza em
meu braço.

— Escuta aqui, sua aproveitadora — vejo seus lábios se mexerem, mas


não escuto som algum.

Meu cérebro de repente deu uma tela azul, ou melhor, talvez cinza, e só

consigo encarar o olhar raivoso dele. Aparentemente deve ter me xingado ou


coisa assim, os músculos em sua face estão se contorcendo como se quisesse
mesmo acabar comigo.

— O quanto de dinheiro você quer para sumir da minha frente e me


poupar desse teatrinho imbecil? — agora o ouço em alto e bom som.

E ainda assim não entendo nada.


No primeiro momento em que nossos olhares se cruzaram, tive a
impressão de conhecer o sujeito. E agora, sentada em seu colo, agarrada ao

seu pescoço e prendendo a respiração, tenho certeza de que sei quem ele é.
Esses olhos eu reconheceria em qualquer lugar.

Meu cérebro parece que para e vem uma sensação estranha de frio na
barriga.

Em seguida, volto a raciocinar lentamente e vou abrindo bem os olhos


enquanto examino o rosto dele. Respiro de uma só vez diante do rosto dele e
tento reagir.

— Licença. — Tento me apoiar em algum canto para poder me levantar


e o maldito não ajuda, acabo me desequilibrando ainda mais e aperto um
volume em sua virilha na vã tentativa de ter algo para pegar impulso e sair.

É ele. Eu sei que é ele.

Conheço bem as marcações desse queixo e esse nariz um tanto grande.

Dou alguns passos para trás, ainda sem cortar o campo visual. Ele
também faz questão de me encarar, agora não parece tão irritado, só intrigado
mesmo.

Abaixo para agarrar o vestido, levanto-me e continuamos a nos olhar


em silêncio.

— Não vai dizer nada? — ele rosna.


— Você me chamou do quê? — Coloco a mão na cintura.

— Aproveitadora. Não é isso o que você é?

— Desculpe-me?! — rio de nervoso. — Está me confundindo com


alguém?

Os lábios dele se expandem em um sorriso sarcástico, o que faz meu

baixo ventre aquecer. De repente parece que sou nocauteada com o cheiro
dele em minhas narinas, minha nuca fica quente e começo a me arrepiar
lentamente. Esse cheiro me traz uma lembrança muito boa.

— Você não é a noiva? O que pensou, que iria armar todo esse plano
perfeito e alguém não descobriria?

É. Acho que ele não se lembra de mim.

Ou talvez seja apenas uma miragem, meu cérebro deve estar pregando
peças… vi o rosto desse homem em tantos outros, sonhei com ele tantas

vezes, desejei que me tocasse só mais uma vez, mas ao que parece,
Guilhermo Lamarphe só tinha interesse em arrancar a virgindade de uma
mulher como eu e desaparecer…

Queria eu que ele arrancasse a minha uma segunda vez.

Sempre me amedrontaram e me disseram horrores sobre a primeira vez


ser um inferno na terra… a minha não. Ele soube tornar tudo tão confortável,
me passou tanta segurança e seu corpo parecia desde o início saber o manual
do meu, que os 100 mil reais foram um detalhe – um gigantesco detalhe, pois
tirou a minha família da falência –, naquela noite.

— Não. Eu não sou a noiva.

Essas simples palavras o desarmam.

O homem abaixa sutilmente os ombros largos e ainda assim permanece

em uma pose imponente. Se este é Guilhermo, devo confessar que


envelheceu muito bem. Agora sua barba é dividida em tons cinzas e negros,
as marcas ao redor de seus olhos mostram que viveu muitas coisas e o seu
corpo… ainda parece o mesmo.

E só se passaram quatro anos.

— Era só isso? — O avalio, dos pés à cabeça.

E só esse pequeno gesto o deixa enfurecido.

— Então onde está a aproveitadora? Quero ter uma conversa com ela.

— Aproveitadora? — Cruzo os braços. — Do que diabos você está


falando?

Novamente ele ri. Depois olha para o lado e respira fundo, dois vincos
se formam nas maçãs do seu rosto, como covinhas.

— O meu tio vai se casar com uma maldita aproveitadora que só quer
tirar o dinheiro dele — explica. — Ele tem pouco tempo de vida, perdeu o
juízo e acredita que se casar com uma qualquer vai provar algum ponto para

mim ou para minha família.

Eu juro que tento me concentrar no que ele diz, mas os lábios dele se
mexem de uma forma tão tentadora que uma parte do meu cérebro desliga e
outra parte traz um flashback do passado.

É ele. Só pode ser ele.

Lembro de vê-lo na meia luz do quarto, subindo essa boca


vagarosamente pelas minhas coxas, depois me tomando e me gerando uma
sensação de que não sou capaz de esquecer. Tive que me agarrar à cama com
tanta força que cada vez que seu lábio tocava o meu, ou sua barba roçava
entre as pernas, eu tinha vontade de pular e sair do lugar.

—… Você ouviu o que eu disse?

— Não — sou logo sincera. — Poderia repetir?

Ele bufa, todo bravinho. Novamente vejo seu rosto se contorcer, ele
mal se mexe.

— O meu tio vai se casar com uma maldita aproveita…

— Espera aí — o interrompo com o indicador, o que faz com que ele


aparente ficar ainda mais irritado. — Então você não é o noivo?

— Porca miseria![8] — Ele aperta entre os olhos com o indicador e


polegar, abaixa o rosto e resmunga meio mundo de palavras que não entendo.

É ele, sim. Agora eu tenho certeza absoluta.

Lembro dele falando uma dúzia de palavras que soavam assim quando
estava em cima de mim e me encarava com tesão.

— Quer saber? — Guilhermo balança a cabeça. — Deixa para lá, eu

me enganei…

— Percebo — meneio a cabeça.

E mesmo após a conversa ter sido encerrada, ele não vai embora.
Continua a me observar em silêncio e eu não saio de onde estou. Cara feia
para mim é fome, e se ele está com fome, posso resolver o problema dele.

— Cheguei — Heloísa está de cabelo amarrado e roupão, olha de lado


para o homem e depois me encara. — Ah… estou interrompendo algo?

— Não — o outro resmunga entredentes.

— Legal que já tenham se conhecido. Eu quis ir vê-lo ontem,


Guilhermo, mas o seu tio disse que estava indisposto, então não fomos
apresentados… — ela diz toda educada. — Eu sou Heloísa…

O olhar que ele lança à mão dela, faz parecer que está suja de cocô ou
algo pior. E antes de sair, novamente me observa de um jeito soturno.
Aquelas sobrancelhas grossas e nariz grande que formam um olhar duro e
penetrante não podem ser facilmente esquecidas.
— Ok então… — Heloísa bate as mãos uma na outra e me encara. — O
que deu nele? — Ri.

Balanço os ombros e fico imóvel até que ele esteja fora do estúdio.

— Meu Deus, é lindo. Lindo, lindo, lindo de morrer! — Ela agarra o


vestido e faz o mesmo que eu, minutos antes: corre até o espelho e o coloca
diante ao corpo para ter noção de como vai ficar.

— Pode abrir e experimentar. — Parece que estou dando doce na mão


de uma criança, ela fica ainda mais empolgada. — Preciso tirar suas medidas
para ajustá-lo.

Tento me concentrar no que devo fazer agora, até esqueço onde está
minha bolsa de costura. Só consigo pensar em Guilhermo de cadeira de
rodas.

O que será que aconteceu?

Permito que Heloísa se distraia enquanto desembrulha seu vestido e tira


o roupão. Ela se diverte conforme tenta entrar e subir a peça e eu só observo.
Quando termina, ela se vira para mim:

— Como estou?

— Está realmente linda.

— Espero que seu pai, lá no céu, esteja feliz por esse vestido ter caído
feito uma luva em mim. Acho que você terá pouco trabalho, ele parece ter
sido feito para mim…

— Sim…

— O que foi? — Ela percebe que estou meio sem graça.

— Aquele homem que estava aqui há pouco…

— O Guilhermo?

— É… — Engulo em seco. Após a confirmação oficial de que


realmente era ele, fiquei ainda mais surpresa. — Ele disse umas coisas.

— O que ele disse? — Ela sorri.

Mordo o lábio inferior porque não quero atrapalhar a data especial da


minha amiga. Sei que se fosse comigo, ela lutaria para que tudo estivesse
perfeito e não diria nada para estragar o meu momento.

— Nada… — balanço os ombros. — Você está simplesmente


deslumbrante!

— Fala, Yasmin, o que houve?

— Não, é que…

— O que ele disse?

— Você quer mesmo ouvir? — Mostro em minha feição que o que


tenho a dizer não é nada fácil.

Ela faz que sim.


— Ele achava que eu era a noiva e me chamou de aproveitadora, disse
que eu estava dando um golpe no tio dele… e depois que eu falei que era a

minha amiga que iria se casar com o tio, ele disse que você era… — evito
completar.

— Aproveitadora… — Ela acena positivamente com a cabeça.

— É. — Olho para baixo.

Heloísa atravessa o estúdio e vai até a porta de entrada e a fecha.


Depois, quando entra na sala reservada em que estamos, fecha também e me
chama para o canto.

— O que foi?

— O que tenho para te contar é segredo — ela diz. — E ninguém mais


pode saber.

— Tá bem. — Sigo-a e fico atenta no que ela quer me dizer.

— Depois que eu terminei o curso de direito, eu fui trabalhar para um


grande escritório.

— Sim, eu sei disso…

— Pois é. O Alfredo Lamparhe é um dos clientes mais importantes


desse escritório.

Ainda não sei onde ela quer chegar, mas na dúvida, concordo.
— Bem… um dia o Alfredo estava retificando o testamento junto ao
pessoal, me viu e me chamou…

— Hum…

— Ele me fez uma proposta…

— Não me diga que ele quis comprar sua virgindade — cubro a boca.

— Não, sua louca! — Ela ri. — Ele propôs que eu me casasse com ele.
De mentirinha. Para dar uma sacudida no sobrinho e…

— Espera, espera aí… então você não está apaixonada?!

— Estou apaixonada pela vida.

Pisco os olhos com demora e tento compreender alguma coisa, mas a


minha cabeça parece estar dando voltas depois de ter ido em um chapéu
mexicano, num parque de diversões.

— Não, não estou apaixonada pelo Alfredo. Ele é cliente do meu

escritório e eu sou uma das advogadas que trabalha em seu testamento.

— Aham.

— O homem é podre de rico, Yasmin. Ele vai deixar uma fortuna


bilionária para o Guilhermo…

— Espera aí. — Estendo a mão. — Mas se ele vai deixar tanto dinheiro
para o Guilhermo… por que se casar? Não entendi…
— É uma provocação.

— E eu ainda não sei se entendi…

— Guilhermo só vai receber toda a fortuna do tio após se casar e ter um


filho — ela revela.

Cubro a minha boca com uma mão, a outra segura no braço dela.

Meu Deus, gente rica é mesmo insana…

— O Guilhermo sofreu um acidente há dois anos e desde então virou


outra pessoa. Ficou amargurado, depressivo, se isola demais… O Alfredo tem
medo de que após morrer, ele se entregue à bebida ou algum outro tipo de
vício, porque a única pessoa da família com quem ele realmente tem contato
hoje em dia e que recebe apoio, é o tio, entende?

— Sim… que triste…

— Pois é… o maior desejo do Alfredo era que o sobrinho pudesse se

apaixonar novamente e lutar pela felicidade, mas o cara é doente pelo


trabalho. O tio disse que às vezes ele nem vai embora, dorme em um
quartinho no hospital até começar o próximo plantão e se deixar, ele nunca
volta para casa…

— Meu Deus…

— Bem… ele acredita que esse casamento fake pode ser a provocação
perfeita… também é um tiro desesperado, porque a qualquer momento o
Alfredo pode morrer, ele está em estado terminal.

— Mas… e se o Guilhermo se negar a se casar e ter um filho? —

pergunto.

Heloísa sorri e balança os ombros.

— Aí a sortuda serei eu — ela ri. — Porque se ele falhar, eu serei a

herdeira de tudo.

— Entendi, então isso tudo é para fazer ele ter raiva de você e querer
lutar pela herança e por consequência ter um filho?

— Isso aí, garota!

Enquanto Heloísa segue para a frente do espelho para ter uma visão
deslumbrante de si mesma no vestido, eu fico aqui no canto de braços
cruzados, ainda com a sensação de que o cheiro daquele homem está
impregnado em mim e com um pensamento que não sai da minha cabeça:

Tudo bem que eles são italianos…

… Mas que novela mexicana da porra...


“De que são feitos os dias? De pequenos desejos, vagarosas saudades,
silenciosas lembranças”.

— Cecília Meireles.

Diante da piscina olímpica, solto inúmeros palavrões em italiano. A


minha paciência foi reduzida a zero e não sei porque perdi a cabeça ao
reencontrar Yasmin.

Será que ela me reconheceu? E se sim, o que deve ter pensado de mim
ao me ver em uma cadeira de rodas?

A última vez que nos encontramos, eu mostrei a ela como um homem


de verdade dominava a situação e fiz valer cada centavo que paguei por sua

virgindade.

Depois que ela desapareceu por quatro anos, sem me dar notícias, perdi
a esperança de vê-la novamente.

Aqui seria o último lugar que esperava reencontrá-la.

E quando a vi, meu corpo todo se arrepiou. Fiquei paralisado, a


princípio, porque vê-la foi inesperado. E de alguma forma, algo dentro de
mim parou a ponto de que cada segundo em que estivemos juntos, dentro
daquele estúdio, demorou horas.

Não sei o que pensar sobre.

Eu nunca tenho segundos encontros, cada momento comigo sempre


vale à pena porque é único, só ocorre uma vez e por isso precisa ser especial.

Com ela foi mais do que especial. Ela se entregou completamente a


mim, quando esteve em minhas mãos, em cima de mim na poltrona, deitada
na mesa de sinuca da sala de jogos e cavalgando em cima da minha cama, ela
se mostrou desinibida e confiante.

A forma como ela me olhava me gerou os mesmos arrepios de quando

eu pulava de asa delta ao viajar para o Rio de Janeiro quinzenalmente ou


quando terminava de escalar uma montanha, coisa que fazia anualmente. Foi
tão especial que ela se tornou mesmo inesquecível.

Tão doce, olhos gentis e rosto redondo… assim como sabe ser teimosa,

temperamental e respondona...

Quando a vi pela primeira vez, eu soube que precisava tê-la, custasse o


que custasse.

O que posso fazer? Gosto de mulheres que facilmente me obedecem.

Mas são as teimosas, inteligentes e que não se deixam dominar


facilmente que me marcam a ponto de eu lembrar de cada detalhe da noite
que vivemos juntos.

Che cazzo![9] Eu devia estar irritado, no mínimo esmurrando uma


parede ou encontrando algo que me desafie fisicamente, mas agora estou
excitado pra caralho.

— Donna infernale[10] — praguejo.

Ajusto a cadeira para que ela fique travada e arranco minhas calças,

quanto mais demora, mais raivoso fico, evito chutar[11] os sapatos mocassim
para não ter de catá-los feito um imbecil mais tarde. Depois desabotoo a
camisa branca de linho e a deixo no encosto da cadeira.

Nem o vento fresco do entardecer no meu corpo consegue conter essa


repentina sensação que antecede a erupção.

— Merda!

Há quanto tempo não me sinto assim? Eu me tornei o quê, a porra de


um adolescente agora? Ou minha testosterona só está confundindo o meu
ódio com um tesão que não consigo controlar?

Não importa.

Me jogo de uma vez na piscina e sinto a água gelada abraçar meu


corpo, meu topete imediatamente se desfaz cobrindo minha testa e forço
meus olhos debaixo d’água para enxergar os ladrilhos muito bem encaixados
e que formam uma pintura abstrata no fundo da piscina.

Subo para tomar uma lufada de ar e com a mão na sunga preta, confiro
que o choque térmico não foi o bastante para enganar meu corpo.

— Santa merda! — Rio de mim mesmo e dou algumas braçadas até


alcançar a borda do outro lado e encosto meu peitoral contra os ladrilhos.

Lembro da época em que fiquei desesperado por achar que perdi todos
os movimentos do quadril para baixo e isso incluía meu pênis. Mesmo que eu
seja tão frágil como um bebê da cintura para baixo, percebi em poucas
semanas, após acordar, que minhas ereções não foram afetadas.

Foram longos meses de fisioterapia e acompanhamento médico até

conseguir me equilibrar “sentado”, coisa que só consigo com um apoio atrás


de mim. Também levei um tempo até recuperar todos os movimentos e
elasticidade do braço. As ereções continuavam lá, para minha surpresa.
Tentei me readaptar a essa nova vida, mas nada estava completo sem minha

rotina sexual.

Eu sempre fui um cara ativo e depois que arranjei uma parceira sexual
fixa, fazíamos todos os dias pelo menos duas vezes, em qualquer lugar, em
qualquer momento, do jeito mais adolescente possível.

Após o acidente, passei por um jejum de mais de um ano até voltar a ter
relações de novo, e ainda assim com muito medo do meu campeão não
funcionar direito… e mesmo depois que percebi que ele ainda estava vivo,
um bom soldado de guerra que foi ferido, mas não abatido, acho que só

transei umas quatro ou cinco vezes.

Não foi por falta de tesão. E a insegurança foi embora cedo, sou um
médico cirurgião, fui treinado para agir sob pressão, tomar atitudes diante das
situações mais imprevisíveis e o sexo voltou a me causar uma euforia boa. O
que faltava era alguém especial. Alguém que não me visse como um pobre
coitado acorrentado a uma cadeira e sim como o homem que sou.
Sexo deixou de ser minha obsessão e o trabalho tomou conta de tudo,
meu real propósito de existir.

E agora, o que eu quero fazer? Foder.

Mas não com qualquer pessoa ou de qualquer jeito… parece a merda de


um desejo de grávida, eu preciso daquela mulher. Como da primeira vez que
a vi, a primeira vez que a desejei e fiz tudo para conseguir tê-la.

Por que diabos ela está mexendo comigo agora?

Empurro a parede com as mãos e deito o corpo completamente até


sentir a água me cobrir, três segundos depois meu corpo boia. Em outra
ocasião eu nadaria de contas, mas agora eu só quero… flutuar.

Nadar me dá uma sensação de liberdade, me faz esquecer do quanto me


sinto limitado naquela maldita cadeira de rodas. E tudo fica melhor quando
encaro o céu escuro, sinto como se estivesse voando, livre das minhas
limitações.

Como não está escuro e o céu ainda está se desmanchando em diversas


cores quentes, anunciando o ocaso, fecho os olhos e abro os braços, deixo o
corpo ir livremente pela água, por onde quer que ele queira ir.

Eu não me lembro da última vez em que não fiz… nada. E não pensei
em trabalho… Devo admitir que estou com saudade do bip na minha cintura,
mas ao mesmo tempo é bom estar aqui dividido entre sentimentos de raiva e
tesão.

Lembro dos dias em que pedi a Deus, desesperadamente, para que eu

pudesse voltar a transar… mas quando voltei, já não parecia a mesma coisa,
não tinha o mesmo fogo, nem tesão que antes…

Não até agora.

— Meu Deus! — Ouço uma voz feminina aflita, mas deixo para lá.

Preciso relaxar.

No momento seguinte, sinto a água desnivelar e me dar uma leve


sacudidela. Ergo o rosto para conferir uma mulher nadando em minha direção
e antes que eu possa responder ou reagir, ela me agarra pelo braço.

— Socorro! Tem um homem se afogando! — ela diz desesperada,


aparentemente engolindo água e se debatendo.

— Quem está se afogando? — pergunto.

Yasmin, com os cabelos molhados colados nas laterais do rosto e


pescoço, me encara com seus olhos esbugalhados.

Ao me encarar, parece que prende a respiração. Seus lábios de cereja


ficam abertos e suas pupilas se dilatam quando nossas íris se encontram. Ela
tenta se afastar, mas eu a agarro pelo braço, deixando-a ainda mais em alerta.

— Como assim? Você não estava se afogando?


— Não sabe a diferença de um homem boiando e se afogando, mulher?
— devolvo.

— É que a cadeira de rodas estava vazia e…

— E?

Ela engole em seco e balança a cabeça negativamente.

Que merda! Quando ela me toca, meu corpo parece ser vítima de uma
corrente elétrica que me deixa ainda mais aceso. E mesmo que
instintivamente eu queira me afastar, não consigo.

— Sei lá, eu pensei que algo poderia ter acontecido… você podia ter
tido um desmaio e caído… não sei… eu não pensei… eu só vim correndo e
pulei, pensei que precisava de ajuda…

É, talvez eu precise sim de uma ajuda.

Mas não sei se ela gostaria de ser voluntária para o que eu quero…

— Não vai dizer nada? — Ela arfa, desesperada. Ainda não soltou o
meu braço e a água está nos puxando levemente para a borda.

— O que você quer que eu diga? — Retiro os cabelos da testa e jogo


para trás, apoio com o braço direito na borda da piscina.

— Não sei… pelo menos um “obrigado”, já que eu vim desesperada e


nem tirei a roupa, pensei que estava em perigo…
— Você quer que eu tire sua roupa? — Sorrio de canto e aproveito para
apoiar o outro braço na borda também, pressionando-a contra a parede.

— Como você consegue fazer isso? — Ela arregala os olhos. Não tanto
quanto, quando toca em meu corpo para me afastar e pega exatamente onde
não deveria. E pelo choque, parece que não quer soltar.

Inclino meu rosto na direção dela e ver seus olhos se fechando e

apertando com força me diverte.

— Grazie[12] — sussurro ao pé da sua orelha. — Era isso o que queria


ouvir?

Yasmin fica muda. Abre primeiro o olho direito, ainda não sei se
surpresa ou desapontada por não ter sido beijada.

— Então… você não está em perigo? — Ela asseia os cabelos para trás
também.

— Não, Yasmin. — Acho divertido o fato dela ainda não ter soltado o
volume da minha sunga. Puxo meu corpo com as mãos e a pressiono com
força contra a piscina. — Acho que é você que está em perigo…

Novamente ela fica muda e eu me divirto ao ver sua expressão de que


quer fugir, mas vai ficar só mais um pouco para ver onde isso vai dar.

— Você... — Ela franze o cenho. — Se lembra de mim? — Não passa


despercebido o sorriso que seus lábios abrem, mas rapidamente é substituído
por sua feição confusa. — Eu não entendo...

Ela acha que é uma pessoa fácil de esquecer?

E o mais engraçado é que reencontrando ela, sinto que reencontrei


uma parte minha. Ainda não sei como, mas ao encará-la no estúdio e agora,
sinto uma tensão que lembra quando a vi pela primeira vez.

— Como se lembra de mim? Pensei que havia dito que queria me


esquecer... e apagar aquela noite da sua memória?!

Agora é a minha vez de unir as sobrancelhas e enrugar a testa.

— Non l'ho mai detto[13] — digo de imediato.

— Quê?

Pisco os olhos até perceber que falei alto mais para mim mesmo do que
para ela.

— Eu nunca disse isso.

Yasmin balança os ombros e continua afastada, encarando-me com


uma espécie de medo e tensão. Não combina com ela o tom de menina
amedrontada, mas a deixa charmosa.

— Desculpa. — Ela enfim solta meu pau. — É… eu… não sei o que
dizer… bem…

— Não precisa se desculpar... tampouco ter vergonha. — Roço


suavemente a ponta do meu nariz contra o dela. — Já te vi nua uma vez…

não precisa medir as palavras…

— Eu só… estou surpresa… quando te vi agora há pouco no estúdio,


me perguntei se era realmente você… depois fiquei pensando o que houve
para estar em uma cadeira de rodas… e agora estou repensando o que eu
achava…

— O quê?

— Sempre achei que quando pessoas perdiam os movimentos da


cintura para baixo, elas perdiam todos os movimentos.

— Yasmin, você se surpreenderia com as coisas que ainda consigo


fazer — pisco para ela.

Quando a chamo pelo nome, parece que vira outra pessoa, ainda parece
não acreditar. Eu também. Até consigo esquecer que ela é amiga de alguém
que quer dar um golpe em minha família e sou transportado para a primeira

vez que a vi… a primeira vez que a desejei… a primeira vez que a tive.

E a primeira vez que encarei seu número de celular e pensei em abrir


mão dos meus padrões e pedir um segundo round.

Mas ela nunca sequer me mandou uma mensagem após aquela noite.

Sempre acreditei que toda aquela noite se resumiu ao dinheiro e mais


nada.
— Bom saber — ela ri e balança a cabeça como se fosse jogar o cabelo
para o lado.

Quando ela ri, eu imediatamente rio também. E quando percebo o que


estou fazendo, paro subitamente e franzo o cenho para encará-la com
sobriedade, ou ao menos, tento.

— Você me deu um susto e tanto… — ela diz, seu lábio treme.

— Está com frio?

— Só um pouco… o clima está agradável, mas como estou molhada…

— Certo — primeiro a envolvo com os meus braços.

Sua cintura parece que se encaixa perfeitamente em meu aperto. Passo


as mãos suavemente pelos seus braços, meu corpo rapidamente reconhece o
toque e eu sinto uma sensação de adrenalina que prefiro conter, para não
fazer qualquer obscenidade na piscina de um local que a qualquer momento

toda a minha família pode aparecer.

— Vá se secar — digo, por fim, segurando-a com firmeza na cintura e


a empurrando para cima, até que esteja sentada fora da piscina.

— Precisa de ajuda?

— Não, eu sou grandinho e sei me cuidar — viro e empurro a parede,


afundo por alguns segundos até o corpo boiar.
A merda da excitação não passa de jeito nenhum, ainda mais após
sentir o corpo macio dela. Ainda assim não tenho problema em boiar de

costas e ficar ostentando meu campeão querendo sair da sunga, ela já o viu
uma vez mesmo, então não há problema…

— Vá se secar — resmungo. — Troque de roupa, se aqueça e beba algo


quente!

Mesmo de olhos fechados, tenho a impressão de que ela ainda não saiu
do lugar. E quando finalmente abro, após sentir a cabeça tocar o outro
extremo do lugar, confiro que realmente não saiu.

Yasmin se sentou, tirou a roupa e está só de biquíni, me encarando.

Dio[14], por que fizeste teu filho gostar das malditas desobedientes e de
cabeça dura?

— Vai se gripar assim…

— Você é médico, sabe muito bem que ninguém gripa por esse motivo.
Gripe é um vírus — ela me corrige.

Ela se lembra?

Agora tenho a impressão de que não se passaram quatro anos, mas


quatro dias... o simples fato dela lembrar minha formação me causa um certo
alento que me faz copiar sua expressão, quando eu disse seu nome em voz
alta.
Mordo o lábio inferior e rio por dentro. Agora me lembrei porque essa
mulher me atiça. Diferente de todas as outras com quem estive, ela parece

não saber seu lugar. É extremamente jovem, teimosa e respondona.

E é exatamente o que eu gosto nela.

— Vai ficar me olhando?

— Tem algum problema para você? — ela devolve.

Viro o rosto em sua direção e a vejo abraçada aos joelhos. Parece com
medo, parece excitada, parece até que lembrou como é ser minha.

— Vou te dar um motivo para ficar olhando então.

Conforme me movimento bruscamente, afundo dentro da piscina. De


onde estou consigo ver sua silhueta distorcida se levantar e ficar afoita, me
observando lá de fora.

Quando boio de volta, minha cabeça aparece primeiro. E depois o

restante do corpo, até que eu sinta meu rosto receber a brisa do lugar.

— Você não deixou de ser safado — ela cruza os braços, ainda de pé.

E eu repouso a sunga em cima do meu peitoral e abro os braços.

— Só fiquei paraplégico, mulher, não deixei de ser eu mesmo.

Na verdade, deixei sim, em partes.

E não me lembrava exatamente como era ser eu mesmo, até este


momento. Sei que é estúpido e estou me sentindo completamente imbecil…,

mas o encontro com essa mulher causou algo em mim. Foi como ter perdido

a memória e repentinamente receber um gatilho para desencadear as


memórias certas.

— Não mudou nada mesmo — ela bufa, dá meia volta e some da minha
vista.

Eu mergulho e nado com os braços até alcançar o outro extremo e a


assisto ir para o lugar onde está hospedada. Em seguida seguro com firmeza
para sair da água e fico sentado, me contorcendo um pouco para vestir a
sunga. Assim que termino, sinto uma toalha ser jogada em meu ombro.

— Seque-se também para não gripar, doutor — ela ri e se senta ao meu


lado.

— Obrigado — primeiro enxugo os cabelos, depois as costas, ombro e


braços.

Mesmo que Yasmin tente me ajudar, eu esquivo e dou o meu jeito para
retornar para a cadeira de rodas, demora mais do que estou acostumado, mas
quando consigo, fico aliviado e rapidamente coloco minha camisa.

Por que ela não para de me olhar?

E por que eu não consigo parar de encará-la?

— Onde estão todos? — Procuro ao redor. — Esse lugar está bem


vazio.

— Fiquei sabendo que boa parte da família está em excursão em uma

praia… o outro restante está no restaurante, pois os noivos estão recebendo


todos…

— Ah — imediatamente perco o meu humor.

Havia esquecido, por uma fração de tempo, o real motivo de estar aqui.
E por incrível que pareça, sinto saudade desse momento em que meu único
pensamento era me sentir vivo e ser observado por essa mulher.

— Eu vou para lá, estou com um pouco de fome. Quer ir?

— Pode ser — balanço os ombros.

— Precisa de ajuda? — Assim que ela faz menção a me empurrar na


cadeira, eu seguro nas rodas, esqueço os sapatos e saio na frente.

— Não.
“A vida acontece num equilíbrio entre a alegria e a dor”.

— Carl Jung.

Conforme o tempo passa, parece que algumas memórias vão ficando


turvas e se perdendo.
Eu me lembro com riqueza de detalhes do momento em que perdi a
virgindade, mas havia esquecido outras coisas daquele dia. E uma delas foi

Guilhermo se jogando nu em sua piscina e nadando de costas, se exibindo


para mim.

Eu não conseguia parar de olhar... assim como não consegui, agora há


pouco.

Parecia até a mesma cena, só que dessa vez ao ar livre. E foi gostoso
recuperar essa lembrança, porque eu me diverti muito com ele.

Paro de pensar nisso quando entro no restaurante e vejo todas as mesas


e cadeiras movidas para a direita e esquerda, deixando o centro livre. Me
surpreendi ao ver tanta gente reunida, quase todos os lugares já estavam
ocupados, menos a mesa em que Patrícia estava, praticamente abandonada.

Os noivos pararam de discursar por um breve momento e eu me encolhi


para chegar até minha melhor amiga e me sentar, já Guilhermo parecia não

ligar para a situação, demorou quanto tempo quis no centro do lugar até
encontrar um lugar, típico de um milionário playboy que gosta de ter a
atenção para si.

De fato, ele não mudou nada… e não sei se desgosto da ideia.

— Eu aqui toda preocupada que você ia perder a vista de todo esse filé
mignon. — Ela acena com a cabeça para um bando de homens que parecem
fotocópias uns dos outros.

Todos com porte atlético, praticamente o mesmo rosto lânguido e

demarcado, a maioria sem barba. A família de Guilhermo de fato é muito


bonita, mas ainda acho que ele é o mais charmoso dentre todos. A barba que
orna seu rosto e seu olhar irritadiço dão um ar de homem caliente e vivido.

Esse reencontro foi muito inesperado e não sei o que sinto sobre ele. Na

verdade, sobre tudo, inclusive a situação em que Heloísa está metida.

— O que foi? Por que está tão compenetrada? — Agora que os noivos
terminaram de discursar e os garçons se movimentam servindo os pratos, ela
fala mais alto.

— Nada…

— Onde você estava?

— Ah… canto nenhum… estava tirando as medidas da Helô para

ajustar o vestido, depois liguei para o PH e no fim fui dar um mergulho na


piscina...

Patrícia semicerra o olho direito e ergue a sobrancelha esquerda.

— Tá achando que eu nasci ontem, garota? Eu sei ler cartas e elas


disseram algo sobre você.

— O quê? — Engulo em seco e coloco a mão no peito.


— Que você é uma vagabunda mentirosa e dissimulada — ela ri. —
Diz logo o que estava fazendo… disse que ia ajudar a Helô com o vestido,

mas daí ela apareceu aqui sem você…

— Pois é… eu fui ligar para o meu filho e depois fui para a piscina, já
disse…

Patrícia que não é boba nem nada, deve ter juntado ‘um mais um’ e

levanta o olhar para Guilhermo. Ele não é o único que está com vestes
casuais e de sunga, mas certamente é o que mais chama atenção, ainda mais
pelo porte e o jeito altivo que se mantém.

— É... eu acho que você acaba de ressignificar o jargão “uma mamada


e um copo d’água não se nega a ninguém”…

— Quê isso! — Puxo-a pelo braço para debaixo da mesa, ficamos as


duas curvadas. — Depois eu te explico! Mas não fiz nada impróprio não…

— Yasmin...

— Ele e eu nos conhecemos, ok? É isso.

— Pois é, ele tem uma cara familiar, parece que já o vi em algum


lugar…

— Helô está vindo, disfarça. — Tento mudar de assunto. — E aí, amiga


o que eu perdi?

— O casamento que seria daqui uns dias, vai ocorrer depois de amanhã.
85% dos convidados já estão aqui, a preocupação do Alfredo era a demora da
família em vir, mas como estavam a maioria no Brasil, chegaram rápido.

— Ah…

— E você já contou a ela sobre o fato da herança que te espera? —


Patrícia se diverte.

— Sim. Yasmin está ciente de tudo.

É óbvio que Guilhermo não está ouvindo nada do que estamos tratando.
Mas o olhar que ele me lança de onde está, é tempestivo, carregado de
julgamento.

— E ele será o último a saber de tudo?

— Sim, só quando o tio falecer.

Ainda bem que cheguei no fim de toda a falação. Não suportaria e


acabaria sendo rude, interrompendo o discurso e dizendo boas verdades.

O que me impediu de fazê-lo ao fim, foi minha mãe que veio até mim,
agarrou-me pelas bochechas e me deu dois beijos demorados nela.
— Dio mio! Guardati![15] — Encara-me da cabeça aos pés. — Está
magro e mal cuidado. Tem dormido?

— Mamma, sto bene, hum?![16] — aceno firme com a cabeça. — Non

preoccuparti[17].

Ela me lança um olhar que ignora tudo o que eu disse, dá meia volta e

sei que vai fazer um prato gigantesco de comida. Dizem que mãe é mãe em
todo lugar e em qualquer idade, mas as italianas são decididas no que
querem.

E a minha quer sentir que seu filho que perdeu tudo está bem.

Eu simplesmente odeio reuniões familiares.

Antes eu era o mais promissor, o futuro CEO, de um dos mais


importantes hospitais da América, cirurgião gato e bem sucedido… bem, pelo
menos ainda sou o mais bonito de toda família.

— Guilhermo. — Antônio, meu irmão mais velho, me dá um aperto


demorado. — Previsão de quando vai para a Itália?

— Não tão cedo, a não ser que aquele velho tente nos arrastar para lá
também.

— Bom, quando quiser, é só me avisar, mando facilitarem as coisas


para você — meu irmão, dono de uma grande agência de turismo na Europa,
como sempre tentando ser útil e tirar um pouco do meu dinheiro.

— Aviso sim. — Aceno para ele e retorno a encarar meus amigos e

colegas de hospital na mesa.

Ayslan está comendo, parece um leão diante do prato. Lisa Han, a


cirurgiã pediátrica mais requisitada do Rota da Vida nem pisca diante do
celular. E sua pequena filha, Kim Han, está com um prato vazio diante de si.

Ayslan e eu a apelidamos carinhosamente de ‘boquinha de mochila’, essa


garota come tudo o que vê pela frente e numa velocidade que meu deus do
céu…

— Você é pior do que eu, Han, não descansa nem aqui. — Massageio
minhas têmporas.

— A agenda está apertada, no RdV. Não tenho nem como agradecer ao


Alfredo por adiantar esse casamento.

Ergo a sobrancelha e ela percebe que não captei a informação.

— Ele vai se casar depois de amanhã. Disse algo sobre aproveitar a


vida logo e que tinha pouco tempo de vida…

Bufo de furor e viro o rosto para o meu padrinho, numa mesa de


destaque, sendo paparicado pelos muitos sobrinhos, parentes e outros
médicos.

— Boquinha de mochila! — chamo sua atenção. — Coma devagar!


Ela, que levantou na cadeira e pegou pelo menos quatro empadas e as
dispôs no prato, me lança um olhar de desafio. Pega mais três, só de

provocação. Como pode uma criança de quatro anos ser tão sinistra?

E para completar, enfia a empada grande toda na boca, toda de uma vez
e mastiga, com ódio, me encarando.

— Depois vai ficar com indigestão e vai dar trabalho para sua mãe! —

reclamo e empurro a cadeira de rodas para o meio da multidão.

Preciso esperar alguns minutos para ser notado pela celebridade da vez.

— Ah, vejam só se não é o meu padrinho de casamento! — ele diz.

— Padrinho de casamento uma ova! — Com um simples olhar, mostro


para os demais que se afastem e nos deixem a sós. — Não vai parar com toda
essa idiotice?

— Guido? Que idiotice? Estou apaixonado!

— Apaixonado? — Rio. — Tio, você sempre foi um playboy


incorrigível. Nunca namorou, nunca se casou, nunca quis ter filhos… você é
um espírito livre, um bon vivant!

O que eu mais odeio nele, é que é tão cabeça dura que não importa o
que eu diga, não vai mudar seus pensamentos.

E é exatamente isso que mais admiro nele.


— Um dia você vai entender minha decisão… até lá, espero que a
respeite e continue ao meu lado.

É muito difícil, mas não posso negar estar com ele, apoiando-o.

Ele foi o único que não duvidou de mim e me tratou normalmente


depois do acidente, me desafiando, mostrando que eu era capaz de me
superar e recomeçar.

Será que ele também não quer só um recomeço?

Mas por que logo com uma mulher que parece uma aproveitadora?

— Ter você comigo vai me dar forças. É o que preciso, Guido.

— Bene[18] — encerro o assunto. — Estarei lá por você, então.

Ele não contém a felicidade e me abraça. E eu não penso muito,


retribuo de imediato e dou-lhe umas palmadas nas costas. Não entendo e
talvez nunca o perdoarei por descuidar da saúde a ponto de só me avisar de

tudo quando já era tarde demais… entretanto, tudo o que posso fazer agora é
estar ao lado dele e viver cada momento como se fosse o mais importante.

— Você é minha família e não vou te abandonar, não importa as coisas


estúpidas que faça! — Digo.

É ridículo, porque estou dando sermão em um homem com o dobro da


minha idade, mas inconsequente feito uma criança.
— Agora vou deixar que receba toda a atenção que merece. — Me
afasto com um aceno e retorno para onde estava.

Enquanto me dirijo e desvio de tantas pessoas animadas e faladoras,


escuto a noiva e sua amiga conversando:

— Eu o amo. Principalmente como está agora. Me apaixono cada dia


mais… o jeito que ele respira por aparelhos, é diferente…

A minha família tem o exagero no sangue como herança.

Italianos não só falam alto, gesticulam demais e chamam atenção. São


efervescentes. São como uma bola de fogo que tende a crescer e consumir
tudo por onde passam. E a minha vontade agora é de explodir esse lugar e
essa mulher. Se eu pudesse andar, certamente a arrastaria daqui até a praia
mais próxima e a jogaria aos tubarões.

Por hora me contenho a dar meia volta e sair do lugar, para respirar a
noite.

Patrícia e Heloísa perceberam que Guilhermo estava próximo e


mudaram o tom da conversa para provocá-lo. Creio que atingiram o objetivo,
ele saiu furioso pela porta, não sem antes fazer uma cara de que tiraria a mesa

e cada uma de nós do lugar com uma única mão.

— Vá embora — ele rosna, nem olha para trás, só fica encarando o céu
que escureceu bem rápido.

— Eu só… — Engulo em seco. — Vi que você não comeu nada, e não

parece animado o suficiente para ficar no meio de tanta gente, tanto


barulho…

— E daí?

— Pensei em vir comer aqui fora, também me incomodo um pouco


com tanto barulho. — Balanço os ombros. — E peguei carne a mais, caso
você queira…

Ergo o prato quando ele meneia a cabeça em minha direção.

— Estou sem fome.

— Imagino… — suspiro. —… Você estava certo…

— O quê? — Ele manobra a cadeira e se vira em minha direção.

— A minha amiga não ama o seu tio.

Em seu olhar está estampado um “eu sabia”. E ele só aparenta ficar


ainda mais furioso.
— Entretanto, ele também não a ama… — esclareço. — Independente
se o que sentem é real ou não, eles conseguiram algo legal: reunir toda a sua

família, de um jeito bem rápido e prático. Acho que foi uma forma inteligente
de rever a todos…

Estou incerta sobre o que digo, não devo me meter nos assuntos dos
outros, ainda mais em um tão delicado. Mas ao terminar de dizer, Guilhermo

fica compenetrado por um momento.

É claro que não lhe direi que tudo isso é um golpe, para colocá-lo
diante de toda a família e depois forçá-lo, como herdeiro de quase tudo, a
cumprir os critérios do testamento para receber a herança.

Agora, pensando friamente em tudo, devo admitir que Alfredo e


Heloísa de fato foram espertos. Colocaram Guilhermo numa saia justa.

Quero dizer, vão colocar.

— Ou você acha que eles conseguiriam reunir todo mundo se

marcassem um churrasquinho? — Me divirto. — Todos têm cara de tão


importantes… alguns nem falam português…

Ele acena com a cabeça, ainda olha para o mesmo lugar, pensativo.

— Sim, foi uma boa estratégia.

— Eu ouvi que ele tem pouco tempo de vida, está muito doente...
Talvez ele tenha feito isso para dar um último adeus. Normalmente são os
que ficam que se despendem, ele mudou as regras. Antes de ir, quer se
despedir, em grande estilo…

— É... é bem a cara dele fazer isso — Guilhermo diz, no fim até ri, mas
continua com um olhar desapontado. — Você é muito esperta… — Ele me
encara com um brilho no olhar.

—… Para uma mulher tão jovem? — completo.

Fui mal acostumada pelos caras babacas com quem saí por todos esses
anos. Todos sempre tinham elogios, mas depois quebravam o clima me
depreciando de alguma forma.

— Na verdade essa era a frase inteira: “você é muito esperta…” — ele


faz uma breve pausa. — Fim.

Gesticulo demoradamente com a cabeça e me aproximo um pouco


mais, parece menos arredio agora e não está com uma veia sobressaltada na
testa, prestes a explodir. Deve ter se acalmado um pouco.

Vou até ele e me sento no chão, ao seu lado e volto a comer.

— As coisas não andam fáceis na minha vida — digo assim que engulo
a comida saborosa e cara, graças a Deus que não sou eu quem está pagando.
— Não queria vir… estava com medo de me dar um período de descanso sem
de fato merecer… e eu cheguei hoje… e de alguma forma já me sinto
recarregada.
O silêncio dele me assusta, a priori. Dou até uma checada para ver se
ainda está ali ao meu lado ou se sorrateiramente fugiu, sem fazer barulho.

— O que foi? — ele rosna.

— Eu falo algo sobre mim… você fala algo sobre você… não é assim
que funciona? — Rio.

Guilhermo se estica todo e continua com sua cara azeda fitando a


vários metros de nós um pessoal reunido ao redor de uma fogueira.

— Vai, fala alguma coisa…

— Vir a esse lugar me traz uma mescla de sentimentos — ele enfim


diz. — O maior deles, nesse momento, é que pela primeira vez não fiquei
praguejando sobre o maldito acidente…

Pergunto ou não pergunto?

Meu Deus! Eu estou tão ansiosa e quero ouvir da boca dele o que

aconteceu..., mas não sei se é apropriado...

— O que foi? — Guilhermo rosna.

— Nada... eu só... não sei... eu... — Fico subindo e descendo os olhos,


dele até a cadeira e mordisco o lábio. — Só queria saber se está tudo bem. E
o que aconteceu com você... se isso foi recente... não sei.

Me sinto mal e preocupada. Até havia organizado a pergunta em minha


mente, mas ao abrir a boca tudo ficou bagunçado.

— É indelicado se eu te perguntar o que aconteceu? Da última vez que

nos vimos, você não estava em uma cadeira de rodas... — balanço os ombros.

— Ah, isso — ele repousa o queixo no punho fechado. — Há dois anos


eu sofri um acidente de carro.

— Meu Deus! Eu sinto muito, Guilhermo!

— Tudo bem. Ficar paraplégico não foi o pior... perdi a minha mulher e
filha...

Cubro a boca e arregalo os olhos. Meu Deus! Era pior do que pensei!

E agora consigo entender porque ele parece tão fechado e na


defensiva. E ao mesmo tempo começo a entender porque Heloísa e o tio
armaram todo esse plano...

— Eu preferiria ter morrido no lugar delas.

— Não fale assim... — Limpo a mão na calça e ergo para segurar no


braço dele.

Guilhermo vira o rosto para me encarar e vejo que ele está meio triste
por contar isso, mas também parece mais leve e liberto. Como se tivesse
tirado uma parede de concreto que estava entre nós dois.

— Você sabe que sua mão ainda está gordurosa, não é? — Ele abaixa o
olhar e eu recolho minha mão.

Depois ele começa a rir, o que me deixa menos tensa e me faz rir

também.

— Fiquei tenso quando te vi mais cedo — ele suspira.

— Sério? — Volto a comer, porque estou com fome e isso está

delicioso.

— É... não gosto de encontrar com pessoas que conhecia antes do


acidente... eles normalmente olham para mim com pena.

Arregalo os olhos, tentando lembrar se o encarei com pena em algum


momento.

— Mas você me olhou de outro jeito... — Vira o rosto para frente,


voltando a fitar a fogueira. — Parece que olhou além da minha limitação e...
por um momento até eu me esqueci dela... e me olhei de outra forma.

— Como você se olhou?

Ele ri e sacode a cabeça em um sinal negativo.

— Não sei. Só sei que depois, quando entrei naquela piscina, foi como
se eu me lembrasse de quem realmente era, antes de estar preso a essa
cadeira…

— Te algemaram nela? — Lanço um olhar por cima da mão dele,


repousada no apoio da cadeira. — Tirou a sunga, ficou pelado, e

rapidamente se lembrou de quem é, não é? — Me divirto.

— É… não dá para fazer isso na fisioterapia ou natação — ele me lança


um olhar impetuoso.

— E por que não tem feito isso na sua casa? Lá tem um piscinão, se
brincar, maior que esse. — Volto a comer.

— Eu nem lembro da última vez que voltei para casa. — Vejo-o


balançar os ombros.

— Por quê? Tem um fantasma morando com você? Ficou mal


assombrada?

— Eu só… — Guilhermo corta nosso contato visual e encara o


longínquo. — Só não vejo motivos para voltar...
“Quando as coisas quebram, não é a quebra real que os impede de
voltar a ficar juntos novamente. É porque um pequeno pedaço se perde – as
duas extremidades restantes não poderiam caber em conjunto, mesmo se
quisessem. A forma inteira mudou”.

— John Green.
Vejo os cabelos negros dela esparramados pela cama, enquanto dorme.

Não consigo resistir à tentação e vou lentamente em sua direção, abaixo meu
rosto e sinto a textura de seus fios na ponta do meu nariz.

Será que o cheiro é o mesmo que senti, anos atrás?

Não consigo sentir o cheiro, mas a minha memória recria a sensação do


toque em seu cabelo. Assim como da sua pele macia, quando ela vira o rosto
e aperta os olhos.

— Bom dia — diz, tentando conter o bocejo.

— Bom... — quando estou prestes a dizer, quase dou um pulo da


cama.

Abro os olhos e vejo o Viking bem perto de mim, a primeira coisa que
faço é empurrar sua cara feia para longe.

— O sono estava bom? Você estava até babando...

Passo o dorso da mão na boca e não sinto nada.

Arranco o travesseiro debaixo da minha cabeça e bato na cara dele.

— Sai daqui! Quem te deu permissão de entrar em meu quarto?

— Até parece, passa todos os dias em um dos dormitórios do hospital e


quer privacidade! — desdenha.
— Ao menos aqui! — reclamo.

— Deixa para dormir quando voltarmos à São Paulo. Han e eu temos

um presente para você, vista-se e saia da cama! — ele diz.

Pego as roupas que tinha separado na noite anterior e deixei em cima


do móvel ao lado da cama e me visto, depois vou até a cadeira, me ajeito nela
e me dirijo ao banheiro para lavar o rosto e fazer minha rotina matinal de

higiene.

Quando saio do quarto, até me assusto. Vejo Lisa, Ayslan e meu tio
Alfredo me aguardando. A pequena boquinha de mochila está dormindo no
sofá, mastigando lentamente, um sanduíche mordido em suas mãos.

— O que é isso? Uma intervenção? — Encaro os três.

— Posso ter um momento a sós com ele? — Meu tio pede.

— Claro — meus amigos dizem e saem, só fica a dorminhoca

comilona.

— E então, como foi seu primeiro dia dormindo em um lugar que não é
um dormitório de hospital? — o velho provoca.

— Teria sido ótimo, se não tivesse sido acordado pelo Viking... —


coço a nuca e vou até ele, que agora se sentou no sofá.

— Guido... — ele respira fundo. — Não quero que tenha raiva de


mim...
— Não estou com raiva, tio — aceno com a cabeça. — Decepcionado,
talvez, mas não com raiva. Primeiro por seu descuido com a própria saúde e

segundo... por que se casar? Logo você que passou a vida toda livre...

— Eu sei...

Coço os olhos para me livrar de vez do sono.

— Eu sempre me espelhei em você.

— Sim, eu sei.

— Fiz medicina na Itália por sua causa, vim para o Brasil porque você
precisava de apoio... sempre admirei a vida livre e emocionante que você
tinha...

— É — ele ri, concordando. — Foi uma ótima vida...

— Pois é! Me espanta o fato de querer se casar agora. Principalmente


sabendo que isso sempre é seguido de imbróglios judiciais a respeito de

herança... — lamento.

Ele me ignora completamente nesse quesito.

— Quando descobri que tinha pouco tempo de vida, tudo o que pensei
foi: eu não tenho um herdeiro...

Suspiro e já discordo daí.

— Não tenho com quem deixar a minha história, o meu legado, as


minhas conquistas...

— Você tem. Sabe que tem — fecho o cenho.

— Eu sei. — Ele acena, com um sorriso paterno. — Eu sei, sim.

— Ótimo. Então cancele o casamento.

— Não, Guido.

— Não?

— Da mesma forma que você me admirou a vida toda até aqui, quero
que admire o meu último ato. Nunca é tarde demais. Nem para mim, nem
para você...

— Cazzo... Essa conversa de novo...

— Não vou enchê-lo com os lamentos de um velho. Só desejo que


quando perceber que é tarde demais, não tenha arrependimentos, como eu
tive...

Não sei porque, mas fico todo arrepiado quando ele diz isso.

E o pior é que ele não desenvolve, simplesmente se levanta e chama


meus amigos lá fora para que retornem. Me deixa aqui plantado no lugar,
ouvindo o ronco de uma menina que está comendo enquanto dorme.

— Nós três temos uma surpresa para você. — Meu tio retorna animado.

— Dio... — suspiro.
— Ayslan, pode trazer...

Meu tio e Lisa Han entram na frente, ansiosos. Eu fico tenso, até ver

Ayslan entrar com uma cadeira preta que parece de praia, só que com pneus
grossos, no assento dela um colete salva vidas.

— Que porra é essa? — Analiso com estranheza o que vejo.

— Uma cadeira anfíbia. Assim, você vai poder ir para a praia conosco!
— Meu amigo diz animado. — Vem, senta aqui, experimente!

— Eu não vou sentar nessa merda. Não vou conseguir controlar as


rodas! — Vejo que elas são muito baixas e tento ponderar como vai ser
manobrar na areia.

— Não vai precisar controlar. A Han e eu vamos te levar e cuidar de


você.

— Estou com cara de bebê, Ayslan?

Meu amigo se aproxima de mim, nem eu acredito quando ele


simplesmente me arranca de minha cadeira e me coloca sentado na outra,
passa um cinto para me prender e bate as palmas das mãos uma na outra,
satisfeito.

Fico tão absorto que as palavras fogem da minha boca. Só quero xingar
e reclamar.

— Escuta — Ayslan se abaixa ao meu lado. — Nós somos pessoas da


água, cara. Nasci na Irlanda, de vez em quando eu preciso do mar, preciso ir à
praia, me sinto conectado comigo, com minha terra, com o meu eu. Você é da

Sicília.

— Que tem as praias mais lindas do mundo — pontuo.

— E qual a última vez que você foi à praia, irmão?

Afasto a raiva por um instante para buscar em minha memória a última


vez que lembro de ter ido à praia... e a resposta é que não me lembro. Deve
fazer mais de três anos, foi da última vez que pulei de asa delta.

— Foi o que pensei, nós vamos à praia! — Ayslan diz.

Han bate palmas, animada. E meu tio me lança um olhar orgulhoso, não
sei por quê.

— Aproveite seu dia! — Ele pisca e sai.

— É hoje que eu vou conseguir meu velho podre de rico! Passa esse
bronzeador em mim — Patrícia pede.

Contenho os risos e a deixo besuntada com o produto.


Minha amiga inventou de usar fita isolante no lugar do biquini.
Segundo ela, é para deixar uma marquinha de sol ao estilo do que fazem no

Rio de Janeiro.

Se ela queria atenção, conseguiu. Todo mundo que pisou na Baía do


Sancho gastou pelo menos dez segundos encarando essa mulher. E como ela
não gosta de uma boa olhada, ficou se exibindo ainda mais, empinando a

bunda, conforme era observada.

— Uma dessas mulheres ainda vai te agredir, escuta o que estou te


dizendo — a aconselho, após ver a forma como uma senhora censura o
marido e o puxa para longe de nós.

— Pois pode vir quente que eu estou fervendo! — Ela gargalha. —


Agora vamos para perto do mar, tem mais gente por lá e eu quero ser vista...

— Ai meu Deus, só não me arruma confusão, Patrícia!

— Meu amor, esse é o meu sobrenome! — Ela sai desfilando toda

pomposa.

Parece até que saiu de algum calendário ou vídeo de modelo, sai


desfilando toda majestosa até dar uma pisada em falso e se desmanchar toda
na areia. Rapidamente ela se levanta, parecendo que foi empanada na farinha
de rosca e volta a se envergar, empinando o bumbum.

— Pelo amor de Deus, Patrícia, a lordose vem, viu? — provoco.


Ela não se importa, só quer causar. Fica acenando para os velhos e me
enchendo o saco enquanto eu dou uns tapas nas coxas e bunda dela para sair a

areia.

— Aquele ali tem cara de que usa andador?

— Meu Deus... — suspiro.

— Eu preciso me casar com um velho que já esteja para bater as botas.


Já me vejo linda em um vestido preto, chorando em cima do caixão dele,
limpando minhas lágrimas com notas de cem...

Seguro o riso e continuo a passar o bronzeador nela.

— Para tudo e chama a NASA — ela chama minha atenção.

— Au! — Sinto suas unhas em meu ombro e rapidamente me levanto.

Patrícia está babando. Seu rosto está virado na direção em que três
pessoas estão vindo. Primeiro eu vejo Guilhermo, numa cadeira especial,

colete salva vidas cobrindo seu tronco. Mas Patrícia está apontando para o
cabeludo descamisado, empurrando o amigo.

— Concentra, Patrícia! — ela mesma diz. — Tenta focar no seu


velho milionário que usa fralda!

Meu Deus do céu...

— Não consigo. Aquilo sim é um homem, hein! Nesse objeto voador


não identificado eu gostaria de fazer um contato de primeiro grau... — Ela até

estremece.

— Está falando de quem, sua louca?

— Do alto, meio loiro, surfista, cara de mau...

Avalio e não é de se jogar fora, mas não faz meu tipo.

— Se eu sento naquele homem, quem me tirar de cima dele pode ser


nomeado o próximo Rei Arthur! — ela mesma diz, em seguida solta: —
Patrícia, concentra nos senhores banguelas com o pé na cova... pensa nos
milhões no seu banco...

— O outro é o sobrinho do Alfredo, né?

— Sim — respondo, tomando cuidado no tom que vou usar para não
chamar a atenção dela.

— Ele fica bem sem roupa, né menina?

— Ô.

Imediatamente parece que acende um alerta na cabeça dela e eu sacudo


a cabeça.

— Quero dizer, é, ele fica bem mesmo... — Evito o contato visual com
ela. — Eles estão vindo em nossa direção, disfarça...

— Disfarça... — ela diz e se vira em minha direção e empina a bunda


para os que estão vindo.

— Quê isso, mulher?

— Tô disfarçada.

— Disfarçada de quê, cacete?

— De garagem de nave da NASA, né menina? — Ela empina mais.

Conto menos de dez segundos mentalmente até que estejam diante de


nós, Guilhermo, seu amigo barbudo com cara de surfista e uma mulher de
olhos puxados com uma criança fofíssima sentada em seu ombro.

— Bom dia! — o cabeludo diz radiante.

— Bom dia! — Patrícia se vira, jogando o cabelo, fingindo que nem


tinha reparado que eles estavam vindo. — Ô lá em casa... quero dizer, bom
dia. Que dia lindo, né? Huuuum, bom dia.

Enquanto ficam se encarando de um jeito estranho, Guilhermo olha

para mim.

Agora percebi que eu prendo a respiração toda vez que nos encaramos.
Parece que todo o resto é engolido por uma escuridão e só restamos nós dois.

Depois da noite anterior, não sei como as coisas poderiam se


desenvolver.

Só sei que noite passada, fui dormir pensando nele. Imaginando como
foi superar o acidente – coisa que aparentemente ele não superou... E surpresa

por ele se lembrar de mim, mesmo tendo certeza de que li um bilhete escrito

por ele de que preferiria esquecer tudo o que aconteceu entre nós, no dia
seguinte ao ato consumado.

— Dormiu bem?

— Dormi sim, com você — digo.

A expressão que ele faz é muito engraçada, principalmente porque seus


amigos viram de supetão o encarando.

— Não! Eu quis dizer: sim, e você? — Engulo em seco.

Guilhermo ri em silêncio e acena negativamente com a cabeça.

— Dormi sim, tive um sonho bom.

— Que ótimo — Limpo qualquer vestígio de suor descendo da testa e


evito olhá-lo, mas é tudo o que faço. — Com o que sonhou?

E não passa despercebido. Sinto que ele me censura com o olhar, como
se não devêssemos ficar nos encarando na frente dos outros, mas é a única
coisa que ele faz, com seus olhos prateados.

— Com uma coisa boa — é tudo o que ele diz e faz um gesto rápido
como se indicasse ao amigo que deveriam seguir o caminho.

— Bom dia....
— Bom dia — Patrícia e ele, entretanto, não param.

— O famoso “good morning” — ela diz, toda atrevida.

O outro ri e eu fico me perguntando qual a graça.

— Viking, você não disse que queria mergulhar? — Guilhermo rosna.

— Sim, é claro! Vamos!

Aceno ao vê-los sair e fico ao lado da minha amiga, que continua


sorrindo e se balançando no lugar, como se estivesse hipnotizada.

— Ei! — Estalo os dedos em sua direção.

— Os velhos que esperem, eu preciso daquele homem — ela segue até


chegar no limite em que a água lambe a areia e depois retorna para o mar. —
Esquece.

— Ué, amiga, vai lá. Corre atrás do teu sonho!

— Não posso.

— Não pode?!

— Eu não sou sereia, eu sou piranha — ela diz.

— E o que isso quer dizer?

— Que não sei nadar.

Ótimo, ela veio para a praia só para desfilar e pegar um bronze, e ainda
vai me deixar ir dar um mergulho sozinha.
— Mas piranhas também sabem nadar — avalio.

— Não esse tipo de piranha — ela pontua, alisando o próprio corpo.


“Onde existe uma vontade, existe uma maneira”.

— Albert Einstein.

O quão estranho pode ser reencontrar o seu primeiro homem e sentir


aquele mesmo frio na barriga?

Acho que de tanto me acostumar a ir a esses encontros marcados por

aplicativo, o frio na barriga foi perdendo o sentido... até agora. Cada vez que
vejo Guilhermo é como reascender uma lembrança do nosso primeiro
momento ou como foi viver depois dele... coisa que nem mesmo o pai do PH
me fez sentir, logo em seguida.

Enfim, paro de me distrair com os meus pensamentos e dou uma olhada


panorâmica na vasta imensidão de água diante de mim.

Confiro que a minha amiga voltou a ficar de olho nos homens de idade
avançada e cara de mega empresários, e vou em direção à água cristalina que
parece me convidar para um mergulho.

Quando meus pés encontram a divisa entre a areia e a água, me arrepio


toda.

Sinto a mesma energia de renovação que senti ontem quando cheguei à

ilha.

Rapidamente corro para entrar no mar e me jogo com força em um


mergulho que parece tirar do meu corpo todo o cansaço e má sorte que me
perseguiu por tantos anos. Não sei por que, mas quando minha cabeça sai da
água e eu consigo respirar, começo a rir e balançar minhas mãos.

Que paraíso lindo! Ainda não acredito que estou aqui!


Depois preciso pedir a Patrícia que tire umas fotos para mostrar à
mamãe e PH como o lugar é lindo!

A uma certa distância, vejo os três amigos em uma parte em que a água
bate nos joelhos do mais alto e quase cobre toda a cadeira anfíbia em que
Guilhermo está. Daqui consigo ouvi-lo resmungar, o que acho muito
engraçado.

— Isso é o melhor que você pode fazer?

— Guilhermo, não me provoque!

— Você disse que íamos dar um mergulho, a água nem chega na minha
cintura — o outro replica.

A feição que o cabeludo faz é engraçada. É algo como “você quem


pediu”.

Ele sai do mar com a cadeira e eu não entendo o que está acontecendo,

até vê-lo pegar embalo, correndo depressa e empurrando com toda força.

— Se segura!!! — ouço-o gritar, ele sai em disparada.

Guilhermo estende as mãos para todos os lados, tentando se segurar.

E fecha os olhos quando a água do mar o atinge com força, mas o outro
não para de empurrar e eles seguem até que a cadeira toda fique submersa e
só reste a visão do pescoço para cima de Guilhermo.
— E aí, se sente melhor?

— Ô — o outro diz com desdém.

O cabeludo bate com a mão na água em direção ao rosto do amigo, que


retribui e começa a fazer o mesmo.

— Ah, é? É assim que vai ser? Nós voltamos ao jardim de infância? —

Guilhermo rosna de um jeito feroz, mas acaba rindo enquanto bate a água
contra o rosto do amigo.

— Isso! É esse cara! Eu sinto saudade desse cara! Um moleque cheio


de vida!

Após uma espécie de abraço que vira briga e umas tentativas de afogar
um ao outro, eles ficam rindo e o olhar de Guilhermo parece que dissolve
todo o resto de peso e angústia que carregava. O canto de seus lábios fica em
um contorno de sorriso, sem parar.

— E isso são dois adultos infantis — a mulher de feição asiática, que


carrega sua filha de chapéu gigante na cabeça e uns palitinhos de chocolate
em mãos, diz.

Mesmo com o barulho e o balanço das ondas do mar, além dos outros
sons provenientes dos outros banhistas – a maioria deles cópias menos
atraentes e mal feitas de Guilhermo –, fico atenta a ouvi-los.

— Deveríamos tirar mais férias, o que acham? Poderíamos voltar aqui


outras vezes, poderia ser nossa nova tradição — o cabeludo propõe.

— Gosto da ideia — a outra responde.

— Não, esse lugar vai ficar marcado por ser o lugar em que a
aproveitadora venceu — Guilhermo diz de mau humor.

— Cara, você não desiste disso, não é? — O cabeludo bufa e vai

puxando a cadeira de rodas de volta para a praia.

— Era brincadeira! Eu estou brincando, podemos vir, sim!

— Não... cansei, se nem um banho de mar tirou esse clima ruim de


você, desisto — o outro diz, desapontado.

— Ayslan, eu estou brincando...

Enquanto o maior sai todo emburrado, gesticulando um monte


enquanto puxa a cadeira de rodas e a coreana segue seu caminho com a filha
sentada nos ombros, levo um susto quando Guilhermo cobre a minha boca.

Como ele veio parar aqui? Pensei que ele estava junto com o amigo!

Acho que me distraí e não vi a hora que ele mergulhou e veio parar
aqui.

Confiro ao longínquo Ayslan puxando a cadeira vazia.

— Oh, não, me ajudem! Tem um homem sem sunga se afogando — ele


desdenha bem próximo ao meu ouvido e dá uma volta ao meu redor, começa
a debater com os braços, espalhando e espichando água em meu rosto, depois

termina rindo.

— Que susto que você me deu!

— Susto? — Ele ri. — Estava fazendo alguma coisa errada ou


imprópria?

— Não. — Semicerro os olhos.

— Certeza? — Guilhermo arqueia a sobrancelha.

Não estou com a cabeça submersa, mas parece que perco o fôlego ao
tê-lo tão perto de mim. Seu rosto molhado e os cabelos sem forma, a ponta do
nariz longo e seus olhos prateados me deixam hipnotizada.

— Você precisava pegar um sol mesmo — avalio, mudando de assunto.


— Está tão pálido...

— Sério?

Guilhermo abaixa o rosto e dá uma conferida no trapézio largo e no


peitoral estufado, faz com a cabeça um sinal de que não vê diferença e volta a
me encarar.

Eu fico nervosa quando ele me olha. Já faz tantos anos que não nos
vemos e a sensação que tenho, toda vez que nossos olhares se cruzam, é a
mesma de quando entrei em sua mansão pela primeira vez... quando estive
em cima dele na poltrona... e o quanto nos divertimos naquela madrugada.
— Gostei das boias também. — Indico com o queixo os braços fortes
dele.

— Cala a boca. — Ele bufa e estapeia a água mais uma vez, eu repito o
movimento e direciono no rosto dele.

Ficamos nessa situação bem infantil, rindo feito dois idiotas, até ouvir o
grito do Ayslan, amigo dele, que acena a alguns metros de nós.

— Tudo bem aí?

— Tudo sim. — Guilhermo joga os cabelos para trás.

— Consegue voltar para a praia sozinho?

— Sim, consigo!

O cabeludo se afasta com demora, após nos examinar.

— Sobre ontem... não quero que fique com uma impressão ruim de
mim. É que... Foi muito estranho te rever.

— Um estranho bom ou ruim? — pergunto.

Parece que a água está balançando e nos empurrando e puxando o


tempo todo.

Mas cada vez que presto atenção, vejo que estamos cada vez mais
próximos um do outro, quase ficando colados.

— Não sei... não esperava te rever, ainda mais em circunstâncias assim.


— Tá bom. — Chacoalho os ombros.

Quando o silêncio de nossas palavras nos atinge, só resta o som do mar.

Seu balanço vai penetrando os meus barulhos internos e enquanto vejo


o rosto úmido dele, sou nocauteada pela lembrança do beijo que me deu,
agarrado ao meu pescoço, arrancando e me devolvendo o fôlego.

Não sei como, mas meu corpo todo se eriça, só pela lembrança.

E sinto algo em mim queimar, a ponto de sair do lugar, me agarrar em


seu pescoço e ir de encontro a sua boca, completamente cega e perdida em
meus próprios instintos.

Mesmo debaixo d’água, quando as mãos dele tocam em minha cintura


e depois me contorna em seu abraço, meu corpo se lembra perfeitamente
daquela primeira sensação que foi ser sua mulher.

Como o mar, cada átomo, cada célula, cada órgão e pedaço meu

começa a vibrar, puxar e empurrar.

Meus dedos tocam desesperadamente o rosto dele, e o tato é


perfeitamente igual ao que eu me lembrava.

O beijo é quente, me atrai como se fosse um planeta girando ao redor


do sol, ininterruptamente. E quanto mais o meu corpo sente o dele, mais
lembranças vem à tona.

Eu nunca me esqueci como encaixo tão bem em seu abraço, tampouco


olvidei que tudo que ele faz é devagar, desde o beijo até roçar contra o meu
corpo, aproveitando cada segundo lentamente e em um ritmo que parece

dança.

Guilhermo me faz sentir sua novamente. Me segura com firmeza, suas


mãos sobem cuidadosamente por minhas costas e me aperta contra seu corpo,
fazendo-me perder o ar.

Só lembro que estou verdadeiramente longe da terra firme quando abro


os olhos e percebo que nos distanciamos da praia mais do que deveríamos.

E me afasto subitamente, não para pedir desculpas, mas porque senti


algo tocar em minha perna.

— Meu Deus! — Minha mão segura em seu braço. — Isso foi... um


tubarão?

Ao invés de partir desesperadamente rumo à praia, coisa que eu faria,


Guilhermo mantém a serenidade e olha para debaixo de nós.

Após avaliar, ele mergulha imediatamente. Quando sua mão me puxa


para dentro do mar, eu não vou de primeira, tensa do que pode ser.

No terceiro puxão, mergulho e tardo até abrir os olhos. Mas quando


abro, involuntariamente abro um sorriso.

Vejo a alguns metros, nos rondando, um golfinho bebê e outro bem


maior.
Meu coração que já estava acelerado, agora bate desesperado e eu me
agarro às costas de Guilhermo e espio os bichos por cima de seu ombro.

Fico surpresa em ele não transparecer qualquer medo. Estende os


braços e nada até ficarmos bem próximos do animal, que para a minha
surpresa, acena.

Não sei se estou arrepiada debaixo d’água, só sei que meu corpo todo

se comprime quando as mãos do homem me tateiam e me tiram de suas


costas, colocando-me ao seu lado.

Ele dá o exemplo e vai se aproximando lentamente até flutuar ao lado


do animal, estende a mão e acaricia sua nadadeira. O próprio bicho em
seguida, guina em sua direção como se fosse fazer algum carinho com sua
cabeça, mas Guilhermo o impede de se aproximar mais, pois percebe que
estou apreensiva.

Apreensiva não. Cagada de medo mesmo.

Estou presa no lugar, a única coisa que faço prontamente é subir para
tomar ar. E depois retorno para conferir o que ocorreu.

Dessa vez, quando sou chamada, nado até Guilhermo com certa timidez
e o acompanho até chegarmos bem próximo dos animais. Ao meu lado, o
homem indica que eu espere o próximo movimento vir deles, e para minha
surpresa, filhote e adulto se aproximam cautelosamente.
Eu consigo, mesmo depois de relutar comigo mesma, a não fugir.

Não sei se teria coragem de tocar nos animais, não sem Guilhermo

aqui, parece que ele sabe o que está fazendo e está no controle da situação.

Guilhermo passa novamente na minha frente e agarra minhas pernas e


me faz abraçá-lo por trás. Meu corpo volta a se comprimir quando ele toma o
controle dos meus movimentos, segura em minha mão direita, abre bem os

meus dedos e os estende diante seu corpo.

O próprio animal se aproxima com cautela e eu me agarro com força e


fecho os olhos, só os abro para conferir quando sinto a nadadeira do golfinho
em meus dedos, depois sua pele passa pela palma da minha mão, parece bem
escorregadia. O filhote aparentemente se esconde atrás do corpo do pai ou
mãe, que nos observa com uma espécie de sorriso amigável.

Meu coração não para de bater rápido. Não acredito no que acabei de
fazer.

Nada na vida me preparou para um momento como esse. Pelos filmes


que assisti, não tinha noção de que o animal era tão grande e longo, e mesmo
“sorrindo”, seus dentes afiados pareciam intimidadores.

Quando menos percebo, os animais seguem seu caminho para bem


longe. E eu assisto, sem querer subir à superfície.

— Meu Deus, o que acabamos de fazer? — pergunto, quase me


debatendo, quando subo para pegar ar.

— Nunca tinha nadado com golfinhos antes? — ele pergunta, como se

fizesse isso todas as quartas-feiras.

— Não?!

— Então teve muita sorte. Estranho eles estarem tão perto da praia,

devem ter se perdido. E é melhor não contar a ninguém, essa é uma área em
preservação, não se pode nadar deliberadamente com eles, sem o
acompanhamento de um especialista — ele diz em tom informativo, mas
também se vangloriando.

Rio de nervoso ao absorver o que acabei de fazer.

E não sei exatamente como me sinto por tê-lo visto passar na minha
frente, cuidar de mim e me deixar ficar em suas costas quando o golfinho se
aproximou.

— O que foi isso? O que acabamos de fazer?

— Você ainda está em choque — ele me avalia com ares de médico. —


Para eles foi só um dia normal... viram uma bella donna e decidiram dar um
oi.

Quando ele me chama assim, meu coração se derrete. Minhas


bochechas queimam e viro o rosto em direção à praia. Cada vez que um
gatilho me transporta para aquele primeiro momento, eu me sinto jovem,
inconsequente e cada vez mais viva.

Aos 19 anos, ninguém tem medo de nada.

O mundo é uma grande aventura e tudo o que queremos é viver. Era


assim que eu me sentia..., mas após perder o meu pai e ter que cuidar de
minha família, fui encolhendo, diminuindo, até me sentir uma anã dentro de
mim mesma.

— Ficou sem palavras? O boto comeu sua língua?

Viro-me em sua direção para responder, mas sou surpreendida quando


Guilhermo me agarra pela nuca e faz nossos corpos colidirem.

Seus olhos me encaram tão de perto que eu não sei ao exato se estou
encolhendo ou se estou crescendo cada vez mais, ao me ver espelhada dentro
de suas pupilas.

E sem dizer nem mais uma palavra, ele me beija com tanta paixão e

intensidade que sou transportada exatamente para aquele primeiro momento


em que o vi e senti dentro de mim que ele era o homem certo.

Seus lábios cobrem a minha boca e num estalo se afastam, para cobrir
meu pescoço de beijos e subir rente à minha nuca, respirando tão perto de
minha pele, fazendo-me sentir todas as palavras que guardei para dizer-lhe
quando um dia o reencontrasse.

Agora não me sinto mais boba pelo impulso estúpido que tive agora há
pouco.

Agora foi ele quem sentiu e não se segurou. E esse maldito beijo

desperta em mim, coisas que pensei que estavam guardadas há quatro longos
anos.

Raivas. Dúvidas. Paixão. Tesão. E a vontade de conhecer esse homem,


para além do que vivemos em poucas horas e me marcou para sempre.

Será que quando o beijei, minutos antes, ele sentiu o mesmo que eu?
Como seu corpo reagiu quando sentiu o meu novamente?

Porque eu ainda estou confusa, entregue e excitada de uma forma que


não lembrava mais como era. E não se trata só de uma excitação corporal.
Uma excitação sobre a vida, sobre viver intensamente este momento e poder
aproveitar esse paraíso.

— Stai bene? — ele pergunta, diante dos meus lábios, após sugar meu
lábio inferior bem devagar.

— Sim... — minhas mãos seguram em seu ombro. — Mas acho que


vou ter um troço a qualquer momento, vamos voltar para a terra firme.

— Vamos — ele pisca os olhos.


“Um homem é mais homem pelas coisas que silencia que pelas que
diz”.

— Albert Camus.

— Eu os declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva.


Debaixo de uma tenda de madeira com fina seda branca soprada pelo
vento e flores enfeitando os pilares, o senhor Lamarphe e minha amiga

Heloísa fizeram a sua cerimônia de casamento – os papeis já haviam sido


assinados há algum tempo.

Sob os aplausos e animação da maior parte dos convidados, o desdém


de uma mulher que reconheci como mãe de Guilhermo e gaivotas voando ao

longínquo, o momento foi realmente marcante.

Mesmo sabendo que era pura mentira, as palavras ditas foram lindas. E
Guilhermo, como padrinho de casamento do tio, não fez nenhuma besteira, se
manteve austero e pareceu feliz o tempo todo.

— Vim aqui porque queria me despedir de você — quando todos


estavam ocupados com sua champanhe e entoando cânticos italianos, me
assustei com a aproximação dele.

Não havíamos trocado nenhuma outra palavra desde que voltamos para

a praia e nos separamos. Mal o vi pelo resto do dia.

Ele não disse nada sobre o beijo que lhe dei e eu fiquei ainda mais
confusa quando fui beijada por ele. E as minhas dúvidas agora só cresciam, já
que não tivemos oportunidade de conversar, devido as ocupações do
casamento que fora adiantado.

— Você já vai? Não vai aproveitar e ficar mais uns dias? É uma
semana de festa! — Afastei os fios de cabelo que teimavam em voar em
minha face.

Na verdade, pouco estava preocupada se ele ia aproveitar mais um


tempo na praia.

Eu só... queria tê-lo por perto por mais uns dias.

Decifrar que tipo de sensação é essa que depois de anos retornou com
força total.

E o fato dele ter me beijado não vai me deixar em paz por dias!

— Já aproveitei o bastante — Guilhermo pontua, sua voz sai tranquila e


parece muito mais em paz do que a última vez que tratamos sobre este
casamento. Mas sua expressão continua dura, lá no fundo dos olhos.

— Sério? — o provoco.

Não sei o que deu em mim. A presença dele ainda me causa uma certa

euforia e eu me sinto nervosa ao tratar com ele.

Em minhas memórias ele será sempre o cara alto e viril que tirou a
minha virgindade. Nunca o conheci de fato, mas o pouco tempo que
passamos juntos no passado, pude vislumbrar sua personalidade: um cara
animado, divertido, sem muito pudor.

Agora ele só me passa a impressão de que está preso. No passado, na


cadeira de rodas, em sua própria mente. Não parece nem de longe o cara que
de certa forma “conheci”.

— Preciso te agradecer.

— À mim? — Pisco os olhos com demora.

— É. — Vejo-o sorrir de canto, só isso muda completamente sua


feição.

— O que eu disse? Não me lembro de ter dito nada tão espirituoso…

— Não foi o que disse… foi o que fez… em mim.

— E o que eu fiz a você? Ou eu bebi demais a ponto de não me


lembrar?

Rimos juntos e engulo em seco, observando os olhos cinzentos dele


brilharem.

— Só... obrigado, Yasmin — ele balança os ombros e se afasta.

Meu Deus, como ele pode ser tão charmoso?

E como pode ir embora assim?

Acompanho Guilhermo se afastar da multidão junto com seus dois


amigos e não passa despercebido Patrícia vindo em minha direção, pé por pé,
até ficar ao meu lado e bater o braço no meu.

— Pelo visto deu certo — ela murmura.

— Deu certo o quê? — Jogo os cabelos para o lado.


— O despacho que eu fiz assim que cheguei, por nós duas. — Ela me
encara com tanta seriedade que começo a achar que ela não estava brincando

sobre o assunto. — Você já achou seu homem rico, só falta se casar com ele
agora…

— Ih, Patrícia, não viaja…

— Funcionou para a Heloísa e vai funcionar para você, acredite em

mim.

— Não… eu não acredito nessas coisas…

— Bom, acredite você ou não, vendi todos os vibradores — minha


amiga não contém a excitação.

Fico com a boca entreaberta, encarando-a.

— É sério isso?

— Esse bando de italiano é tudo safado, minha filha. E eu sou uma

ótima vendedora, venderia areia no deserto fácil, fácil…

Isso realmente não tenho como contestar.

Enquanto minha amiga continua animada narrando suas loucuras, eu


assisto aquele homem desaparecer no horizonte, até que só a lembrança e seu
cheiro estivessem realmente em mim.

Sinto que de alguma forma vamos nos reencontrar…


ALGUNS DIAS DEPOIS

De volta à São Paulo

Eu aproveitei Noronha o máximo que pude: fui nadar com minhas


amigas e acabei me deparando com golfinhos, passei muito tempo na praia
para pegar uma cor e receber muita vitamina D, além de fazer algumas
trilhas.

Das metas da vida: tive o meu momento Noronhe-se.

Tentei tornar cada momento útil e único, eu não achava que merecia
férias, mas já que estava nelas, precisei me jogar de cabeça.

Em tudo o que fiz, entretanto, eu ficava pensando em Guilhermo.

O jeito sarcástico dele fez falta. Seu olhar de tédio, sua loucura
repentina de ficar flutuando na piscina e ficar totalmente pelado, além do
último momento em que nos vimos, antes dele partir, em que ele me disse
obrigado.

Fiquei tão paralisada que não sabia o que pensar ou dizer…


— Enfim, lar doce lar… — Patrícia abre o portão e eu entro,
carregando a minha mala.

Ando no escuro até conseguir acender a luz do lado de fora e meu


coração para imediatamente quando vejo que a porta está arrombada.

Uma breve checada confiro as janelas quebradas, a sala toda destruída,


tudo fora do lugar.

— O que aconteceu aqui? — Largo tudo e saio correndo para o andar


de cima.

— Amiga?! Para onde você vai? — Patrícia vem logo atrás.

Subo as escadas e vou direto para o quarto do meu filho e quando não o
vejo em canto nenhum, parece que me socaram o estômago. Perco o fôlego e
seguro na parede, antes que caia dura no chão.

— O que aconteceu com essa casa? — Patrícia me segura pelo braço e

me levanta.

— Eu não sei… o que…?!

Interrompo meu próprio pensamento para gritar bem alto, agarro


Patrícia pelo pescoço e esbugalho os olhos ao ver meu irmão, Diogo, com um
revólver.

— O que é isso? Cadê o meu filho? Por que você está com isso?
— Fica tranquila, eu vou consertar tudo.

— Consertar tudo o quê, Diogo? — pergunto aflita.

Ele está com os olhos vermelhos, ajeita o boné na cabeça e guarda a


arma na cintura após averiguar que estamos sozinhas.

— O que aconteceu?

— Fale baixo, nossa mãe está dormindo com o PH.

— Ah, então eles estão aqui?

— No quarto dela.

O empurro para o lado e vou até o quarto da minha mãe.

Numa rápida averiguada, percebo que este é o único lugar da casa que
ficou inteiro.

Volto a respirar com menos dificuldade ao ver meu filho dormindo ao


lado da minha mãe e imediatamente fecho a porta e agarro Diogo pelo braço,

levando-o lá para baixo, Patrícia nos segue.

— Meu Deus, o que houve com essa casa?! — ela murmura, logo atrás
de nós.

Lá embaixo, na cozinha toda revirada, eu encho um copo com água,


coloco açúcar e bebo de uma só vez. Patrícia continua incrédula, encara o
cenário sem ânimo e meu irmão continua quieto, de braços cruzados, na
porta.

— Vai, diz logo o que aconteceu — preparo outro copo e entrego à

minha amiga.

— Eu vou consertar, calma…

— Vai consertar o quê? O que aconteceu? — Insisto.

Diogo reluta em dizer, mas como Patrícia me ajuda a insistir no


assunto, ele desabafa:

— Eu peguei muito dinheiro emprestado, ok? Você sabe, eu não estava


trabalhando, mas estava conseguindo fazer muita grana com apostas.

— Ai meu Deus, Diogo…

— Eu perdi tudo. Passou o prazo de pagar… e vieram cobrar…

— Diogo… — Um nó em minha garganta se forma novamente. — Por


quê? Você não estava vendo que a situação já estava difícil, por que foi se

meter com isso?

— Eu precisava dar o meu jeito. — Simplesmente vira o rosto. — Sou


o homem da casa, preciso fazer as coisas funcionarem.

— Funcionarem? Pegando dinheiro de um agiota? — pergunto. —


Eles te machucaram? Eles viram o meu filho? Fizeram algo à nossa mãe?

— Não, por sorte ela tinha levado o PH para sair nesse dia... — Diogo
me encara da mesma forma que sempre me olhou desde a morte de papai:

como se eu fosse a culpada.

E não tem como não me sentir responsável por tudo isso.

Onde que eu estava com a cabeça quando decidi viajar e deixar eles
sozinhos?

— Diogo… — choramingo. — Por que não me disse isso antes? Das


apostas?

— Eu estava ajudando nas contas… colocando dinheiro em casa… não


via por que prestar contas da minha vida…

— Meu Deus. — Sento-me ao lado de Patrícia e ficamos em silêncio,


encarando uma a outra.

— Eles levaram tudo o que acharam de valor, como garantia de que irei
pagá-los em até três meses, senão voltam aqui e… — ele engole em seco.

Essa última parte me aterroriza, mas a informação anterior não me


deixa menos chocada.

— Como é que é? — pergunto.

— Ai meu Deus, onde estão meus produtos? — Patrícia em um


solavanco se põe de pé e sai correndo para o escritório, que antes era um
quarto. — Yasmin… — Ela me convoca com a cabeça e eu não penso duas
vezes.
Saio em seu encalço até chegar no escritório que servia de estoque para
guardar os produtos eróticos que ela vendia e os últimos vestidos e ternos que

papai fez.

O lugar está vazio, até o computador velho foi levado. A mesa está
virada no chão, caixas vazias onde colocávamos os produtos para enviar
estão bagunçadas e rasgadas.

Novamente perco a respiração e a voz. Tento dizer alguma coisa, mas é


tanta informação que eu vou até a mesa e me agacho lentamente, até me
sentar nela, agarrada a uma de suas pernas metálicas.

— Eu vou na delegacia agora fazer um boletim de ocorrência! —


Patrícia esbraveja.

— Ficou maluca? — Diogo a impede. — B.O.? Você ao menos faz


ideia de com quem estamos lidando, porra?

— Ah, meu filho. — Patrícia tira os dedinhos dele do braço dela. —

Você e sua turma não sabem com quem que estão lidando! Eu vou atrás dos
meus vibradores e eles estarão aqui de volta, ou não me chamo Patrícia
Sanches Caldeirão!

— Yasmin, coloca juízo na cabeça da tua amiga — Diogo ralha. —


Quer morrer, porra?

— Patrícia, ele tem razão. Olha o que fizeram com a nossa casa… —
Não escondo que perdi as esperanças já. — Quanto você está devendo,
Diogo?

— Quatrocentos.

— Quatrocentos? Essa merda toda por causa de quatrocentos reais?

— Mil. Quatrocentos mil.

Eu que não disse nada, fiquei engasgada. Tusso e olho de um para o


outro.

— E como você ficou devendo quatrocentos mil reais, Diogo? —


Patrícia fica furiosa.

— Tudo estava indo bem… eu só acertava as apostas… então eu


dobrei… dobrei… e como não perdi nenhuma, eu prometi um dinheiro que
não tinha… e como demorei para entregar, os juros levaram a dívida a
quatrocentos.

— Juros? — Patrícia coloca a mão na cintura.

— Eles queriam a casa…

— Não. A casa que o nosso pai tanto lutou para comprar, não! — Me
levanto.

— Pois é. A casa pagaria a dívida…, mas eu me recusei, então eles


querem o dinheiro vivo. Tenho três meses.
Só agora percebo que nós três estamos tremendo. E eu não sei o que
fazer.

Odeio o fato de que tudo ocorreu no momento em que eu estava


ausente e ainda por cima me divertindo no paraíso, enquanto o inferno
acontecia aqui.

Não tem jeito.

Eu sou a responsável.

Prometi a papai que cuidaria de tudo, protegeria a nossa família a todo


custo e não deixaria que mal algum acontecesse. Falhei.

— Que cara é essa, Yasmin?

— Cara de… quem não tem mais forças pra lutar, né amiga?

— Ah, para de palhaçada. — Patrícia me puxa com força. — Limpa


esse rosto e se prepara que a gente vai vender piroca é de porta em porta,

minha filha. Vamos conseguir esse dinheiro!

Mal ela termina de falar, eu a abraço com todas as minhas forças. Não
sei o que seria de mim sem a minha amiga.

— Escuta, nada de mal vai acontecer a você, ao seu filho, sua mãe, ou
esse moleque imbecil e burro! — Patrícia dá um tapa na nuca dele.

— Não me bate não, tô armado — ele reclama.


— Você tá armado e eu tenho uma pomba gira que tá doida pra girar a
mão na tua cara, seu desgraçado!

CINCO DIAS DEPOIS

— Eu quero… — Sinto a mão do meu tio segurar por cima da minha, já


sem força. — Que você se lembre de mim, não nesses últimos momentos
como homem fraco… — Ele respira com dificuldade. — Mas nos bons
momentos que passamos juntos…

— Eu vou me lembrar, padrinho, eu prometo. — Seguro em sua mão.

Deitado na cama hospitalar e recebendo soro, sem forças, pálido e com


o olhar evasivo, ele observa a extensão do quarto da área VIP do Rota da
Vida, hospital que ele investiu a vida inteira.

Diferente de seu casamento, rodeado de toda a família que teve tudo


pago para viajar a uma praia maravilhosa, aqui, em seu quarto de hospital e
possível leito de morte, estamos só ele e eu, além de seu médico.
— Guilhermo.

— Sim, padrinho? — Tento me mostrar o mais forte que posso.

— Prometa.

— Eu prometo, padrinho.

— Prometa que vai voltar para casa — ele sorri. — Vai dar

significado à sua vida… não espere que seja tarde demais…

Aceno com a cabeça e vejo sua feição ficar bem mais tranquila.

— Não cometa os mesmos erros que eu.

— Shhh! O senhor precisa descansar…

— Não vale… — Ele respira fundo e tosse. — Não vale à pena viver
sem amor.

Ele fica em silêncio e puxa a coberta um pouco mais para cima, a ponto
de cobrir seu pescoço, depois puxa a minha mão para debaixo da coberta e

não a solta. Sorri, feliz, uma última vez e eu acompanho, atônito, seu último
fôlego.

É difícil dar esse adeus.

Mas fiz tudo o que estava ao meu alcance, desde que ele retornou de
Noronha. Estive sempre ao seu lado, ouvi tudo o que disse e dormi na cadeira
de rodas por dois dias, enquanto estava aqui ao seu lado, dando-lhe forças.
— Hora da morte: 18:26 — seu médico avisa.
“Tudo o que chega, chega sempre por alguma razão”.

— Fernando Pessoa.

— Eu vou matar a Patrícia! — Não contenho a raiva.


As coisas já estavam difíceis o suficiente, e colocar Heloísa no meio
não iria ajudar em nada.

— Somos amigas, você pode contar comigo — a minha amiga, agora


viúva, garante.

— Eu estou muito mal! Não sei o que fazer com o meu irmão…, mas
isso na verdade pouco importa agora. A maior questão de todas é: como

vamos conseguir esse dinheiro, antes que o pior aconteça…

— Tenho uma ideia. — Ela sorri de um jeito que embrulha o meu


estômago.

Quando ela me chamou para tomar um café na Av. Paulista, eu relutei.


No fim acabou sendo uma manhã bem agradável, nos divertimos vendo as
fotos da viagem a Noronha, ela conversou sobre como as coisas iam bem no
escritório que ela trabalhava e quando tocou na ferida, trazendo à tona a
minha situação, fiquei bem envergonhada.

— Eu pago a conta. — Ela se levanta e acerta tudo.

Andamos na calçada larga, o dia está agradável para um passeio,


mesmo no meio da semana.

— Para onde estamos indo?

— Tenho um compromisso agora. Você me acompanha?

— Sim, tudo bem… não sobrou nada lá em casa mesmo… os panos


para produzir vestidos… os vibradores da Patrícia… tudo roubado.

— É, ela me falou. — Heloísa suspira. — E o que pensa em fazer a

respeito?

— Não sei. — Sorrio de nervoso, estou tentando aproveitar o momento


e não ficar preocupada, para não surtar. — Vender o corpo? Você acha que
me dariam 100 reais por programa? — Tiro a bolsa do ombro e começo a

rodar.

— Amiga, você até que consegue mais… Uns 120, vai.

Dou um tapa no ombro dela.

— Imagina o tabu… mãe solo e garota de programa… aí sim eu nunca


mais iria arranjar um namorado na vida.

— Há quanto tempo você não namora?

— E eu já namorei alguma vez? — Cruzo os braços. — O mais

próximo que cheguei disso foi o Dênis, com quem saí umas três vezes no
máximo e tivemos o Phellippo. Depois disso eu me forcei a acreditar que
gostaria dele… que formaríamos uma família…

— Aí o idiota te deu um pé na bunda.

— Pois é. Sem família… sem namorado… pelo menos na época eu


tinha o meu pai, ele era talentoso, me fazia sentir segura e sabia o que fazer
para ter tudo sob controle em casa.
— Retornar para a faculdade de direito e terminar os estudos não é uma
opção? — Heloísa me puxa pelo braço quando um hippie tenta nos abordar

vendendo coador de café.

— E vou pagar com que dinheiro, minha filha?

— E se eu te dissesse que dinheiro não é problema?

— Onde? Só se for na China comunista, né? — Rio.

Heloísa me encara de lado de um jeito suspeito e eu não sei nem o que


dizer, o silêncio vai se prolongando a ponto de me deixar nervosa.

— Fala!

— E se eu te disser que na verdade te chamei aqui hoje porque Patrícia


e eu armamos algo…

— Ai meu Deus, o quê? — Coloco a mão no peito e atravesso rápido o


sinal com ela.

— Eu posso tirar dos meus fundos pessoais para que vocês comprem o
material para trabalhar… vocês fazem esse capital de giro consertar as coisas
e depois me devolvem…

Arregalo os olhos e a encaro de lado.

Uma amiga, não! Um anjo!

— Nossa… Heloísa… eu… nem sei como agradeceria isso!


— Ah, eu sei como — ela encosta debaixo de uma árvore, pinga um
colírio em cada olho e depois coloca um óculos escuros gigante no rosto. —

Como estou?

— Amiga… você estava tão bonita, agora parece que pegou uma gripe
ou alergia!

— Ótimo — ela segura com força em meu braço e me puxa para

atravessarmos para o outro lado da rua.

Eu, sem entender nada do que está acontecendo, só a sigo, meio atônita
e desviando das pessoas, até ela subir uns degraus pretos e passar por uma
porta de madeira maciça que tem três vezes minha altura, em um prédio
muito opulento por fora.

— Vem! — Ela me chama com a mão. — Vamos conseguir o seu


dinheiro!

— Não podemos começar sem a viúva! — Um dos dez advogados do


meu tio bate o pé.
Mesmo depois de morto aquele velho vai me fazer perder o juízo.

Estou pronto para arrancar cada fio de cabelo meu com uma pinça de

tanto ódio.

Ao velório de Alfredo Lamarphe, ninguém compareceu, exceto os


médicos do Rota da Vida – sua digníssima e aproveitadora esposa nem
chegou perto. Agora, na leitura de seu testamento, o salão está cheio. Vejo

meus primos que estavam em Noronha, uns tios espiando um por cima da
cabeça do outro, uma dúzia de carpideiras que estão debulhadas em lágrimas
e minha mãe, impaciente, ao meu lado.

— Espero que ele tenha feito a coisa certa, pelo menos no momento
final da vida — ela reclama e cruza as pernas.

Ayslan e Lisa, meus bons amigos, estão aqui também.

Tio Alfredo os acolheu, deu-lhes uma boa oportunidade e foram


parceiros em várias cirurgias. Eles, que conheciam o meu velho há menos

tempo do que todas essas pessoas, parecem mais tristes do que todas elas
juntas.

— Desculpem o atraso... eu não queria vir. — Uma voz feminina


invade o salão feito um relâmpago.

Não preciso inclinar o rosto para reconhecer a voz da viúva, que não
me parece nada triste.
E junto a ela… Yasmin…

Meu Deus, por que essa garota está acompanhada de tão péssima

companhia?

— Heloísa, o que está acontecendo? —ouço-a murmurar quando está


prestes a passar por mim.

— Vem comigo. — A outra passa altiva e sequer acena aos parentes do


ex-marido.

— Guilhermo — Yasmin segura em minha mão, que está repousada em


cima da roda.

Imediatamente a afasta, parece que uma onda de choque pega nós dois
de surpresa e até eu recolho a mão para o colo.

— Oi.

— Eu sinto muito pelo seu tio, receba minhas condolências.

— Obrigado, Yasmin.

— Será que eu posso…? — Ela se aproxima um pouco.

Não respondo, para além de menear a cabeça sutilmente. No que se


segue, sinto seu abraço apertado e caloroso. Sinto seus dedos me apertarem
nas costas e sua cabeça pousar em meu ombro.

Aquilo me desarma, mas eu tento permanecer austero.


Prometi que não iria me emocionar e seria o suporte da família. Mas
não contenho minhas mãos que sobem devagar e agarram suas costas nuas no

vestido preto. Aperto sua pele macia e ouço um leve gemido em meu ouvido.
Demoro de soltá-la, pois a sensação me causa um bem estranho, que não
consigo compreender.

— Ele te amava e você o respeitou até o último momento — ela

murmura. — Ele está feliz, lá no céu, te vendo.

— Se você o conhecesse, saberia que ele foi para o inferno — digo de


bom humor e ela fica chocada, até se afastar e encarar minha face. — Era um
safado desprezível e que do cristianismo, só gostava dos pecados e do vinho.

Ela sorri de um jeito tão singelo e respeitador que eu fico quebrado.

— Se precisar conversar, assim que terminar aqui, posso te passar meu


telefone.

— Ótimo. — Aceno com a cabeça.

— Amiga, vem logo! — Meu humor muda imediatamente ao ouvir a


voz da aproveitadora.

Yasmin é um oásis no meio do deserto que é sua amiga. Mas não a


julgarei pelas péssimas companhias que anda, eu por exemplo tenho Ayslan.

— Muito bem, agora que todos os herdeiros estão aqui reunidos,


podemos começar — o advogado informa o tabelião.
Uma dúzia de homens engomadinhos se entreolham e se sentam, numa
longa mesa diante de nós.

— Estas são as últimas vontades de Alfredo D. Lamarphe — o orador


inicia, faz a leitura chata e minuciosa dos dados pessoais do meu tio, seu
endereço e o nome de suas testemunhas na data da assinatura do testamento,
que aparentemente não é tão recente.

Rio por dentro, só de pensar que nada ficará para Heloísa.

Chegou com as mãos vazias e vai sair da mesma forma. Ela achava que
enganaria a quem?

— Deixo a mansão na Sicília, Itália, que herdei do meu falecido pai


para os meus irmãos. Que administrem a propriedade com carinho e que as
próximas gerações gozem dos vinhedos e herança que é de direito do nosso
sobrenome.

Justo. Imagino que ele passaria a mansão para um filho, mas como não

teve, deixou para os irmãos.

Já imagino as brigas por dividir a mansão, embora ela seja grande o


suficiente para trancar cada um em um quarto e ainda sobrar espaço.

— Para os meus sobrinhos e sobrinhos-netos, deixo um fundo de 5


milhões de dólares, para pagar custos universitários, quando necessário.

— Uau! — Vejo a animação dos mais jovens.


— Valeu, tio Alf! — Alguns comemoram.

— Para o meu querido Viking, também conhecido como Ayslan

Linkalter, um querido amigo, aprendiz e que se tornou parte da família, deixo


todo o meu acervo de arte Maori, Inca e diversas peças africanas, que
incluem vasos, itens de ouro, tapetes, quadros e joias, avaliados em mais de
15 milhões de dólares. Também permito que escolha qualquer um dos meus

carros para tornar seu.

— Uau! — Ayslan aperta meu braço, surpreso.

— Seu amor pela arte e pela cultura me faz crer que cuidará bem de
tudo que colecionei durante a vida.

— Obrigado, tio Lamparhe. — Ele bate com os coturnos pretos no


chão.

— Para a minha querida e inestimável Doutora coreana, também


conhecida como Lisa Han, uma querida amiga, aprendiz e que se tornou parte

da família, deixo todo o meu acervo de livros, manuais, objetos e patentes


cirúrgicas, avaliados em mais de 13 milhões de dólares.

— Caramba! — Han fica incrédula, pisca os olhos como se estivesse


com algum defeito.

— Ele está deixando herança para pessoas que não tinham o sangue
dele? — Minha mãe torce o nariz. — Espero que tenha deixado algo para
nós.

— Sua paixão pela medicina e sua mente inventiva, farão muito

proveito de todo o material que colecionei, produzi e patenteei durante a vida.

— Para o meu amado Guilhermo Lamarphe.

Prendo a respiração assim que ele diz o meu nome.

— Com esperança de que seu coração encontre conforto, paz e amor,


deixo todo o restante da minha herança.

— Uau! — Ayslan vibra novamente.

— Meus fundos de investimento, minhas mansões nos Estados Unidos,


França, Alemanha, Itália, Austrália e Brasil. Deixo todos os meus carros,
todo o meu dinheiro, todos os meus títulos e posses, avaliados em mais de 1
bilhão de dólares.

— Meu Deus do céu é muita grana! — Lisa e Ayslan se entreolham.

— Dá pra comprar muita coxinha, né mãe? — a pequena boca de


mochila comenta.

Para a tristeza de quase todos os presentes e para minha total surpresa,


recebo tal herança com alegria. Não vou mentir, não quero nada disso, mas
seria pior se ficasse para a esposa de merda dele.

— Entretanto... — O advogado conserta os óculos e toma minha


atenção. — Para que cada um dos meus herdeiros recebam sua herança,

Guilhermo Lamarphe…

Esse sou eu.

Espera. O velho colocou uma condição para receber a herança?

— Precisa se casar e ter um filho.

Reviro os olhos. O maldito não deixa de ser clichê, nem mesmo depois
da morte. Que absurdo!

— Em 365 dias, ou seja, no prazo de um ano. Sendo específico: o bebê


precisa nascer antes do prazo de um ano, senão toda a fortuna dada a cada um
dos herdeiros, estará sob o poder da minha digníssima e amada esposa,
Heloísa, que administrará tudo com totais poderes, até que o meu maior
herdeiro cumpra o seu desafio, ou perca toda a herança.

— Quê? — Pisco os olhos, as mãos agarradas nas rodas da cadeira.

— São 365 dias — Ayslan comenta. — E um bebê leva 9 meses para


nascer. Então, amigo, você precisa começar a tentar ter bebês logo, só tem 3
meses para um test drive, senão vai perder o prazo…

— E eu pensando que o prazo para concluir a tese do doutorado era


apertado. — Lisa ajeita seus óculos no rosto.

— Mas vai ser fácil — Ayslan me tranquiliza. — É só escolher uma


mulher de confiança e foder com ela até sua sementinha estar no útero dela.
Minha mãe dá um tapa no estômago do Viking, que ele até se curva.

— Olha a língua, garoto.

— Na verdade, a mulher precisa estar em seu período fértil, então não


são exatamente três meses — Lisa diz para esclarecer, mas só me deixa de
cabelo em pé.

— Ainda não terminei — o advogado chama a nossa atenção. — A


senhora Heloísa, ex-mulher do senhor Lamarphe, a partir deste momento
administra tudo e todas as posses que eram de Alfredo D. Lamarphe até que
Guilhermo cumpra a condição para herdar tudo…

Estou tão chocado que nem sei se estou respirando. Mas estou ouvindo
atentamente.

— Ela é quem deve escolher a mulher com quem o senhor Guilhermo


irá se casar e terá um filho. Façam se cumprir as obrigações testamentárias
imediatamente, incluso o prazo de 365 dias que deve começar a partir do

momento em que a senhora Heloísa escolha a candidata — ele finaliza por


fim. — Por isso precisávamos esperar que ela chegasse.

— Pois eu estou aqui — ela se levanta e me encara.

— A senhora já tem alguém em mente para que o senhor Guilhermo


cumpra as condições do testamento?

— Sim.
Sim? Como ela arranjou alguém tão rápido?! Acabamos de ouvir tudo!

— Ótimo, o prazo começa a contar a partir do momento que a

candidata for nomeada. — O advogado acena e fecha tudo, pronto para


guardar e ir embora.

— O nome dela é Yasmin do Amor.

— Quê? — A outra se ergue de supetão e agarra a amiga pelos braços.

Depois me encara, desesperada.

Eu sabia! Eu sabia que tinha algo de errado em tudo isso…


“Nunca espere demais, da sorte ou dos outros, no fim não há quem não
decepcione você”.

— Charles Bukowski.

Agora sim isso faz jus ao que é: um velório.


Todo mundo está com cara de que alguém morreu.

Se antes toda a família estava radiante e feliz – bem, nem todos… –,

agora sobra motivos para o ambiente ficar pesado.

Afinal de contas, todos esperavam receber algo do tio Alfredo, e de


certa forma, todos receberam, mesmo não sendo do jeito que queriam…

E para completar a felicidade de geral, agora tudo estava sob o controle


da aproveitadora.

Como ele foi tão estúpido para dar tudo de mãos beijadas para ela?

— Guilhermo… — Lisa tenta me convencer, no corredor ao lado de


fora, enquanto todos estão saindo.

Tento ignorar os olhares que colocam total responsabilidade, de agora


em diante, em minhas costas.

— Não. Não. Eu vou entrar com algumas ações, vou pagar os melhores

advogados desse país e o testamento será anulado — pondero.

— Aquele desgraçado do Lamarphe — Ayslan ri. — Não adianta cara,


é exatamente o tipo de coisa que ele faria. Ele gostava de nos impulsionar,
acho que nunca teria terminado minha residência e doutorado se ele não fosse
meu orientador… o cara tinha um senso de humor… — Ele lambe os lábios e
eu o reprovo. — Que foi?

— Que foi o que, Ayslan, não percebeu a roubada que ele me meteu?
— A roubada que ele te meteu — o outro ri. — Cara… é tão simples.

— Simples?

— Casa e faz o filho nela. — Ayslan sacode a cabeça, mostrando que é


óbvio.

— Bem simples mesmo. — Lisa analisa, cobre as orelhas da filha, que

está encarando a televisão que passa um comercial de hambúrguer.

— Mamãe, será que…

— Sim, filha, deixa só os adultos terminarem a conversa. — Ela


assente e volta a cobrir as orelhas dela.

— Não é simples assim. Não se casa com alguém sem amar. Não se faz
filho para deixar largado no mundo…

Ayslan encara o rolex em seu pulso e me lança um olhar furioso.

— Vinte minutos. Você agora tem 364 dias, 23 horas e 40 minutos! —

rosna.

— Na verdade, precisa de tempo para fazer o bebê e dar chance para


ele nascer, então 89 dias, 23 horas e… — Lisa comenta, mas a interpelo.

— Chega, vocês dois. Eu não sou moleque, eu não vou me dobrar ante
a vontade daquelazinha...

— Na real, foi o teu tio que te desafiou — Ayslan sacode os ombros.


Minha cabeça até parece que virou uma chaleira. Não duvido nada de
que está saindo muita fumaça dela e que estou tão vermelho quanto posso.

— Ou você se dobra diante da vontade daquelazinha — ouço a voz de


Heloísa e até fecho os olhos para me conter.

Tenho a leve impressão de que as pernas estão formigando, acho que


estou pronto para me levantar dessa maldita cadeira de rodas e chutá-la.

— Ou vai perder tudo — ela sorri com cinismo no fim.

— Você… — rosno. — Não vai ficar com nada. Vou pagar os melhores
advogados deste país…

— Os melhores advogados deste país trabalham para o seu tio — ela


analisa.

— Do mundo então.

— Bem… faça como preferir, eu sou dona do dinheiro, por enquanto, e

posso gastá-lo como bem entender. Então vou contratar uns cinquenta
advogados a mais, os melhores do mundo, só para ver até onde essa batalha
judicial vai.

— Vai ser uma briga boa! — ranjo os dentes.

— É… talvez você vença. — Ela faz um bico com os lábios, mostra


que não dá a mínima. — Em oito… doze anos, talvez… até lá vou ter sido
bem criativa torrando cada nota de dinheiro… — e suspira. — E queimando,
jogando fora ou revendendo a quinquilharia que ele colecionava.

— Não. — Ayslan avança e eu o seguro. Parece um leão em aparência

e pelo tamanho de urso, pode ser ainda mais feroz. — Não pode vender as
coisas que ele colecionava! Era a vida dele!

— Bem… — Ela sacode a bolsa de mão e nos dá as costas. — Se no


fim tudo for meu, eu farei como bem entender… — E sai desfilando.

— Guilhermo. — A voz feminina que chega aos meus ouvidos me traz


uma mistura agridoce de me acalmar e ao mesmo tempo me deixa furioso.

— Você estava envolvida com isso desde o início! — Encaro Yasmin


com desprezo.

— Guilhermo, me escuta.

— Não. Não quero ouvir. Foi bom te reencontrar, preciso admitir que
ainda senti uma conexão com você, naquele dia. Mas você é igual a ela. Uma

aproveitadora de merda!

— Guilhermo, eu não sabia. Eu só vim para a Paulista tomar um café


com a Heloísa… a conversa desenrolou, quando menos vi estava aqui, sem
saber o que estava acontecendo…

— Dá o fora daqui! — Viro o rosto e me afasto dela. — Pensei que


entendia o quanto a memória dele era importante para mim…

— Guilhermo… — ela insiste.


E eu me afasto cada vez mais até chegar ao fim do corredor.

Ayslan, Lisa e a pequena Kim demoram para chegar até mim.

Estou bufando de raiva. Nunca me senti tão desrespeitado em toda a


minha vida!

— Que piada de mal gosto, tio Alfredo!

Seguro firme no joelho e debaixo dele. Empurro a perna contra a


coluna de sustentação do lugar e dou um chute nela. Só pra saciar a vontade.

— Isso, extravasa essa raiva. — Lisa revira os olhos.

— Solta essa testosterona toda. Não deixa ela se concentrar no saco


não, senão o bichão fica duro… — Ayslan incentiva.

Lisa aperta com força as orelhas da filha.

— Fala sério!

— Então eu vou falar sério, Guilhermo — Ayslan se agacha para me

encarar olho a olho, na mesma altura. — Alfredo era um playboy, mas que
tinha gosto pela vida, pelo mundo, pela cultura. Ele comprou, ganhou e
conquistou objetos de tantos lugares…

— Eu sei.

— Pensa nos métodos cirúrgicos que ele desenvolveu! Pensa na merda


do Rota da Vida onde ele fundou a escola hospitalar e é um dos maiores
hospitais da América! Pensa nas produções dele, no legado, a vida do

homem! Vai deixar na mão daquela mulher?

— É óbvio que não — bufo. — Se você parasse de falar, me daria


tempo para ligar para bons advogados!

— É…, mas até vencer essa batalha judicial, ela vai ter queimado
metade do patrimônio.

— Não se a justiça intervir.

— Guilhermo — Ayslan ri. — Você acha que mora onde, meu


consagrado? Na Suíça? Estamos na Irlanda, é isso? No Setentrião? Amigo,
ele deixou claro: tudo pertence a ela até que você cumpra os ditames do
testamento.

— E se eu não quiser?

— Não quiser o quê? Se casar e meter um filho naquela gata? —

Ayslan ri.

— Você não entende… — Aceno negativamente.

— Me faça entender. Porque se você quiser que eu meta nela por


você…

Minha mão vai tão rápida na gravata dele e o puxa ainda mais rápido
diante de mim, que Ayslan arregala os olhos e tenta se afastar, mas estou tão
furioso que não há força que ele faça que vai se soltar do meu aperto.
— Nunca mais, eu disse: nunca mais diga isso.

— Ok.

— Prometa.

— Eu prometo.

— Promete o quê?

— Que nunca mais vou dizer que eu meteria nela por você. — Ele
pisca os olhos devagar.

O solto devagar e recupero a respiração a passos lentos.

Onde a merda da minha cabeça está indo?

Por que estou agindo feito um animal irracional?

— Quem é ela, Guilhermo? — Vejo-o colocar as mãos nos bolsos.

— Ninguém.

— Ninguém? — A risada soa alta. — Naquele dia na praia disse que

queria cumprimentá-la... E agora você perdeu a paciência por ninguém?

— É uma mulher do meu passado, só isso. Uma que eu comprei a


virgindade.

As pupilas dele lentamente se dilatam. Ayslan vira até o rosto para ver
se observa novamente a morena, mas a essa altura, ela já deve estar muito
longe daqui.
— Ela é… ela? Aquela?

— Cala a boca.

— Cara… — Ele move as mãos de mim até o fim do corredor, onde


está a porta da saída e depois de volta para mim. — Porra… é o destino… é
perfeito.

— Eu mandei calar a boca.

— OK, já sei — ele se diverte. — Quer que eu faça uma cirurgia nela?
— Move as sobrancelhas. — Devolva a virgindade dela?

No mínimo movimento que faço, ele dá três passadas largas para longe
de mim e fica rindo.

— Agora entendi porque ficou todo nervosinho…

— Que merda.

— Amigo, não faz graça não. Você tem 89 dias para tentar

insistentemente fazer um bebê nela, para receber sua herança bilionária… e


me dar o maldito carro que eu quero, junto com as artes Maoris e…

— Tá.

— Tá? — Ele cruza os braços. — Tão rápido assim?

— É. Mas ainda vou ligar para muitos advogados.


Consigo achar Heloísa a muitos metros de onde saímos, no meio de
uma pequena multidão, está quase atravessando o sinal.

Eu corro desesperada e desengonçada, a alcanço e fico ao seu lado.

— O que foi tudo isso? — pergunto.

— Acabei de conseguir o seu dinheiro — ela diz com simplicidade. —


E a minha aposentadoria.

— Heloísa… não… não parece justo…

Ela não diz nada e eu fico ainda mais aflita. Atravessamos o sinal e
caminhamos em silêncio por todo percurso, até chegar no Trianon. Estou tão
absorta que mantenho a boca aberta, tento expressar qualquer opinião, mas

nada sai.

— Era o que o Alfredo queria — é tudo o que ela diz, quando vê minha
feição.

— Que eu desse um filho para o Guilhermo? — Arregalo os olhos.

Eu nem conhecia aquele homem! Só segurei em sua mão duas vezes,


uma após o casamento e outra antes de ir embora.
Heloísa se diverte e tira os óculos escuros, consigo ver seus olhos meio
avermelhados.

— Ele queria que o sobrinho recomeçasse a vida. E como não


conseguiu convencê-lo, deixou uma chantagem após morrer.

— Mas e eu? E a minha vida?

— O que tem?

— Eu… eu não… — Me perco nos meus próprios pensamentos. — Eu


não sei.

— Amiga — Heloísa segura em meus ombros. — Qual o maior sonho


da sua vida?

— Me casar, ser mãe novamente, ter uma família, mas…

— Amiga, eu estou realizando o seu sonho e ainda não ouvi um


obrigado — ela desdenha.

— Mas eu quero tudo isso com alguém que me ame! Que queira estar
comigo! Que me deseje, que acorde ao meu lado e me dê forças para começar
o dia, que quando volte para casa eu sinta que valeu à pena.

— Ok. — Heloísa me lança um olhar de desafio. — Qual o nome dele?

— Dele quem, sua louca?

— Desse homem aí que você está sonhando. Qual o nome dele?


Engulo em seco e dou uma mordiscada no lábio inferior.

— Eu não sei…

— Porque ele não existe, Yasmin! Acorda para a vida! — ela ralha. —
Você tem a síndrome da princesa da Disney, quer encontrar um homem que
traga seu final feliz. Gata, você não vive em um conto de fadas!

Faço um bico. Essa doeu.

Mas eu tenho direito a sonhar!

— Ademais… se esse homem ainda não existe… o que te custa tentar


com o Guilhermo, hein? Não o acha bonito?

— Sim, mas…

— E ele é inteligente. Teimoso, igual você. Viajado, já conheceu o


mundo todo, gosta de desafios…

— Mas…

— Mas o quê, Yasmin?

Nem eu sei. Só estou completamente em choque e relutando, porque


hoje de manhã meu maior problema era uma soma alta em dinheiro que
precisava conseguir em três meses, senão meu irmão perde a cabeça e vão
destruir nossa casa e nossa vida…

Agora minha preocupação em três meses é carregar o bebê do


Guilhermo?

— Eu quero alguém para a vida toda — suspiro.

— Ih… síndrome da princesa da Disney…

— Eu quero estar com alguém que me ame, me deseje, que ao menos


queira estar comigo!

— Amiga, são 89 dias de convívio. São três meses. Se não der certo…
quem perde é ele, não você… e eu saio rica e pago toda a dívida do seu irmão
e ainda te dou um cachê.

Sou tomada por uma angústia que não tem explicação.

São tantas sensações envolvidas, tantas coisas que precisam de


resolução… não quero mais problemas para a minha vida, não sei se tenho
cabeça para isso…

— Sabe o que eu acho?

— O quê?

— Você está em negação.

— É claro que eu estou em negação, Heloísa, você quer, tipo, me jogar


em um contrato de casamento onde preciso fazer um filho com um cara em
três meses!

— Não… não estou falando disso. — Ela me analisa, dos pés à cabeça.
— Você está em negação. Todo esse tempo. Não deu certo com o Dênis, está

criando o filho de vocês sozinha, você diz que quer voltar a amar e ser

amada…, mas quando a oportunidade aparece, foge. Porque está em negação!

— Oportunidade? — Rio. — Só se for oportunidade de se humilhar,


né? Já não basta minha rotina, agora vou me humilhar pra ele…

Abaixo a cabeça.

— Você ainda não entendeu… — Heloísa estala a língua.

— O quê?

— Amiga, eu escolhi você porque eu sei que não vai ter o filho com
ele. Ele vai perder tudo. E nós duas saímos ganhando…

Pensar por essa perspectiva me deixa triste também.

Mesmo que Helô seja uma das minhas melhores amigas, Guilhermo
está certo em pensar que ela está se aproveitando da situação… me sinto em

uma saia justa e não sei o que fazer.

— Bem… eu posso ligar para os advogados e dizer que mudei de ideia


e escolhi a Patrícia Sanches para ter o bebê.

Mas ouvir isso muda alguma coisa em mim.

— Não.

— Não? — Ela cria esperanças em um sorriso fino.


E eu cubro o meu rosto, com vontade de me dar uns tabefes.

Tudo muda absolutamente quando ela diz que quer envolver Patrícia

nisso. Essa com certeza venceria Guilhermo em um 07x01. Mas o coitado


não merece tanto sofrimento assim…

— Então você aceita?

Minha cabeça acena um não. Eu digo:

— Sim.

— Ótimo. Então agora ele tem 89 dias e 23 horas para fazer esse
neném… ou vai perder tudo!

E a desgraçada acaricia a minha barriga.


“Dificuldades preparam pessoas comuns para destinos
extraordinários”.

— C. S. Lewis.

DOIS DIAS DEPOIS.


O hospital foi pego de surpresa quando um coração ficou disponível
para transplante e uma cirurgia de emergência precisou ser feita no início do
dia.

Não sei o que me deu mais prazer: poder chefiar a equipe pela primeira
vez desde o meu acidente ou ter a oportunidade de voltar para a minha área e
fazer o transplante de coração em alguém.

No Rota da Vida, poucos médicos possuíam essa especialidade, entre


eles o meu falecido tio. E talvez pelos outros médicos estarem fora do
perímetro quando o coração chegou, fui eleito para liderar o caso.

Não consigo conter o sorriso dentro da máscara quando estou prestes a


finalizar o procedimento. Quando percebo meu gesto instintivo de felicidade

e todos olhando para mim, tento voltar à expressão séria de antes.

Toda a equipe médica até prende a respiração e me observa com tensão,


quando massageio suavemente o novo coração da paciente chamada Eunice,
mas eu sei o que ocorre a seguir.

O coração transplantado bate com tanta força a primeira vez, que meus
dedos tremem. Afasto-me devagar e todo o aparato técnico detecta os
batimentos.

— Temos pulsação! — a enfermeira alerta.

— Bom trabalho, doutor Lamarphe — a equipe me parabeniza.

Lentamente tudo volta a criar forma diante de mim.

Subo à testa os óculos de lupa que usei para enxergar com detalhes toda

a área do transplante e afasto a cadeira de rodas com dificuldade, pois está


toda revestida por plástico esterilizado.

A recordação da primeira vez que segurei em um coração batendo após


a cirurgia vem à tona e o sorriso retorna. Tio Lamarphe me guiou, eu era só
um residente na época.

A sensação é tão única e forte que me marcou para sempre, foi ali que
decidi que me especializaria na cardiologia, embora sempre me requisitem na
cirurgia geral hoje em dia.

— Bom trabalho, equipe. — Viro-me para todos, inclusive para a turma


que está assistindo na sala acima. — Foram 5 horas de muita dedicação.
Estão todos de parabéns, façam seus relatórios, tomem um bom café e
descansem.

— Obrigado, doutor — ouço-os em uníssono.

A enfermeira chefe do caso me acompanha na sala de limpeza que


antecede a saída.
— Deixe a família vê-la assim que acordar, não deem nada gorduroso
ou com muito sódio nas refeições e se tiver qualquer agravamento, telefone-

me.

— Sim, senhor.

Agora sim retiro os óculos, a máscara, touca e as luvas cirúrgicas, lavo


bem as mãos e depois asseio os cabelos.

Assim que saio pela porta, sou abordado por alguns alunos residentes
que estavam assistindo.

— Doutor, será que o senhor poderia ler a minha tese de…?

— Agora não. Eu tenho um encontro. — Esquivo-me com educação e


sigo para meu dormitório, para me trocar.

— Doutor.

Meu Deus, eles não vão me deixar ir embora… preciso pegar o meu

celular e ver se Yasmin me retornou. Tomei a dianteira e enviei uma


mensagem para ela ontem à noite, pedindo para me encontrar em um
restaurante hoje, mas devido o plantão e cirurgia, não vi se me respondeu.

— Sim, doutor Bittencourt? — Viro-me para Dênis, um residente.

— Eu só queria saber… se o senhor tem disponibilidade para que eu


ingresse na turma da cardiologia. Agora que o velho Lamarphe se foi, creio
que o senhor será o diretor do departamento, certo? E possivelmente, o vice-
diretor geral do hospital…

— Ainda não foi decidido. — Avalio cuidadosamente a postura dele.

— Pensei que estava se divertindo na turma da cirurgia geral, com a doutora


Érica.

— Estou tentando achar o meu lugar. — Ele acena com a cabeça.

— Certo. Eu te informo se souber sobre as vagas. — Vou embora, não


sem antes fazer um raio-x mental dele.

— Doutor? — Ouço seus passos atrás de mim. — É… já descobriram


quem esqueceu o material cirúrgico dentro da paciente, semanas atrás?

O assunto é tão interessante que me faz dar meia volta.

— Ainda não. Alguns arquivos sumiram e… — Semicerro os olhos. —


Você estava na sala de cirurgia naquela ocasião, doutor Bittencourt?

— Sim — ele diz prontamente. Não sei se de um jeito suspeito, mas

aparentemente interessado. — Todo mundo só fala disso… todos que


participaram da cirurgia estão apreensivos.

— Deveriam estar. — Aceno com a cabeça e sigo para o meu


dormitório, para me trocar.
Não acreditei quando recebi uma mensagem de Guilhermo.

Depois de tudo o que aconteceu, imaginei que ele não gostaria de me


ver nem pintada de ouro!

Fiquei tão chocada que só respondi “sim” insistentemente a todas as


perguntas que ele fez, e assim marcamos um jantar em um lugar chamado
Restaurante Romano. Às 18h em ponto eu já estava lá, não era tão longe de
onde eu morava.

Patrícia me trouxe de carro e ficou fazendo piadinhas o caminho todo.

— Acho que nesse encontro pode rolar namoro, hein?

— Amiga, por favor, eu não sei nem onde enfiar a cara! — Confiro
minha maquiagem no espelho de mão.

— Não sabe? Então eu te digo…

— Não, não, não. Sem gracinhas hoje, por favor... você e Heloísa me
enfiaram em uma fria! O cara deve querer a minha cabeça!

— Você pelo menos sabe como iniciar o flerte que leva para uma boa
foda, né?

Patrícia de repente me lança um olhar sedutor e eu não seguro a risada.


— Que olhar é esse?

— É o olhar de: eu gastei 45 minutos me maquiando, se essa foda não

demorar pelo menos isso, nunca mais nos veremos de novo.

— Não seja esdrúxula. Não tenho segundas intenções nessa noite.

— Você ao menos lembra como os bebês são feitos, não é?

— Sim, mas nenhum bebê será feito essa noite! — Insisto. — Quero
me desculpar, ouvi-lo e ver se rola alguma coisa… e Heloísa foi bem clara:
devo enrolá-lo. Nenhum bebê será feito.

— Tá bom então — ela desdenha. — Tenha um bom jantar!

— Obrigada!

Assim que entro e dou o meu nome, o maître me encaminha para uma
mesa no andar de cima. O teto do ambiente é uma representação fidedigna da
pintura da Capela Sistina, poucas mesas estão espalhadas pelo ambiente de

meia luz e consigo ver a cozinha por uma parede de vidro, os chefs
trabalhando a todo vapor.

— Boa noite — amacio a voz e cumprimento Guilhermo quando o


encontro.

O jeito que ele segura em meu braço e deposita dois beijos em meu
rosto já me deixam toda mole. Mas eu respiro fundo, o que parece ser uma
péssima ideia, pois inalo todo o perfume dele até precisar tatear a mesa para
sentar.

— Guilhermo, antes de mais nada, eu gostaria de te pedir desculpas,

porque…

Ele me silencia erguendo a mão.

— Não precisa se desculpar. — Movimenta a cabeça devagar e me

encara com seus olhos grandes. — Não tenho vivido os meus melhores dias e
foram tantos acontecimentos ruins seguidos, que foi mais fácil descontar em
alguém. Eu que te peço desculpas.

Isso foi estranhamente inédito.

Cruzo as pernas e pego o cardápio para procurar algo gostoso para


comer.

Ih, a água custa 15 reais, melhor dizer que já vim jantada e tá tudo
certo.

— Como foi o seu dia? — ele pergunta.

— Foi… bom. Estou costurando bastante, mas achei um lugar na minha


agenda ocupada para vir te ver. — Jogo um charme.

— Pensei que fosse advogada.

— Não, não ainda, pelo menos. Não terminei a faculdade.

— Por quê?
Pronto. Começou aquele momento delicioso dos encontros que parece
que estou em uma entrevista de emprego. E como estou de saco cheio, vou

jogar logo um balde de água fria nele.

— Porque tive um filho. — Até paro de checar o cardápio para assistir


de camarote a expressão dele.

— Quantos anos ele tem?

— Três.

— Ah, agora ele já é grandinho o suficiente para ficar longe da mãe


por algumas horas — ele pensa. — Não tem com quem deixá-lo? Uma
amiga? Seus pais?

Espera.

Esse é o comentário dele?

Não vai dizer um: “ah, não quero ser pai do filho dos outros”. Ou:

“será que você deixaria seu filho de lado por mim?”

Estranho.

Essa versão nova da atualização do homem eu não conhecia ainda, não


tinha chegado em meu celular android.

— Até tem. Mas estou tão ocupada…

— Gosta de costurar? — Ele ergue a mão e chama o garçom.


Suspiro e começo a movimentar as mãos.

— Na verdade eu adoro… tudo o que faço aprendi com o meu pai. Ele

era muito talentoso e trabalhava para gente importante. Quando costuro…


lembro dele. Lembro dos seus conselhos, das suas lutas, do quanto ele fez de
tudo para manter nossa família de pé.

— Já escolheram?

— Sim, eu quero esse arroz com amêndoas, esses vegetais no vapor e a


picanha mal passada — ele diz. — Essa noite não bebo, estou dirigindo.

O garçom olha em seguida para mim.

— Um risoto de camarão com limão siciliano seria ótimo. E uma taça


de vinho — na dúvida, peço o mais barato.

Uma vida inteira bebendo Cantina da Serra, não vai ser um vinho
barato de restaurante que vai me derrubar.

O homem sai, após anotar tudo na comanda e eu retorno a encarar


Guilhermo, tentando lembrar do que estávamos falando e tentando esquecer
que vou deixar todo meu dinheiro nesse prato. Espero que valha a pena, pelo
menos.

— Quando o seu pai faleceu?

— Ano passado. — Pisco os olhos com demora, já me recordando do


que falávamos.
— Eu sinto muito.

— Eu também sinto muito, pelo seu tio. Vocês pareciam muito

próximos e pelo fato dele deixar tudo para você, imagino que era como um
filho para ele…

— Um bastardo — acena com a cabeça. — Senão, não teria me


deixado tamanho desafio.

— Me desculpe se estou sendo indiscreta, mas… — Levo as mãos para


o colo e limpo o suor no vestido preto. — Por que é um desafio?

Agora é ele quem suspira. Bebe um gole generoso do copo d’água que
está diante de si, depois confere as horas no relógio.

Guilhermo está com um terno preto, o cabelo que sobe em um topete,


parece perfeitamente desalinhado. Seus olhos grandes e acinzentados
parecem bem mais calmos do que a última vez que nos vimos.

— Não sei se estou pronto para ser pai — ele sorri de um jeito sincero.
— Tantas coisas ocorreram em minha vida que… eu só não quero ser um pai
ruim.

— Em Noronha você falou sobre o acidente que te deixou paraplégico


e tirou a vida da sua mulher e filha. Se refere a isso?

— Não só sobre isso… É difícil, mas aprendi a viver com a dor.

Será que aprendeu mesmo? Alguém que não volta para casa, como se
estivesse fugindo de lá, não me parece que aprendeu alguma coisa.

— Então sobre o que é?

— Eu não tenho uma boa relação com o meu pai. Desde o acidente nós
brigamos e não voltamos a nos ver. Não tive bons exemplos de figuras
paternas…

— Não me fale de bons exemplos de figuras paternas — o interrompo.


— Eu estou tão irritada! O pai do PH nunca quis conhecê-lo! Paga a pensão e
joga na minha cara que está me sustentando!

Suspiro de raiva.

Só de pensar nisso, me deixa triste. O melhor exemplo masculino em


casa, sempre foi o meu pai. Agora, com Diogo lá, tudo o que eu tenho é um
péssimo exemplo para o Phellippo...

— Sério? — Claramente ele fica aliviado por não precisar se

aprofundar em sua história.

— Sim, um grande idiota — balanço a cabeça, preciso mudar de


assunto, porque falar disso pode estragar o clima da noite. — Espero que meu
filho guarde em algum lugar da sua memória o exemplo que meu pai deu. Por
que se for seguir os outros exemplos, coitado...

— O seu exemplo deve valer de alguma coisa... — ele sugere.

— Coitado se ele ficar desmiolado igual a mãe... — Para a minha total


surpresa, ele ri.

Acho que estamos avançando...

— E como era a relação com o seu pai antes do acidente?

Guilhermo coça o queixo e demora em me responder. Respira fundo e


me olha de um jeito meio estranho.

— Eu não me lembro bem...

— Como assim “não se lembra bem”?

Ele limpa a garganta antes de dizer:

— Eu perdi algumas memórias... foi até por isso que fiquei de molho
no hospital, sem poder exercer minha profissão. Passei um longo período
apenas sendo professor ou supervisionando.

— Nossa! Sério?! — Fico de boca aberta.

— Sim. A boa notícia é que aparentemente lembro tudo sobre

medicina, cirurgia e cardiologia — ele ri. — Mas algumas pequenas coisas


ainda estão turvas em minha mente...

— Uau... — é tudo o que consigo expressar. — E qual foi a primeira


coisa que se lembrou, quando acordou?

Num aceno negativo com a cabeça, ele ri. Tento insistir um pouco mais
na questão e Guilhermo só me encara no fundo dos olhos e balança as
sobrancelhas.

— Não é importante — é tudo o que diz. — Hoje me permitiram

operar... depois de dois longos anos...

Rapidamente meus lábios se expandem e eu bato palmas silenciosas.


Parece algo incrível!

— E como foi?

— É sempre uma sensação incrível lembrar quem você é... no que é


bom...

Concordo de imediato quando ele diz isso, sinto o mesmo.

— Yasmin, eu preciso ser sincero com você.

— Ué, não estamos sendo sinceros um com o outro? — Passo os dedos


pelos fios de cabelo e sorrio.

— Estamos. — Ele limpa a boca com a água. — Tudo o que o velho

Lamarphe produziu é muito valioso. E não estou falando só do dinheiro, isso


é o de menos, eu trabalho, vivo bem com o que tenho, não é disso que estou
falando…

— Aham.

— Mas ele angariou durante a vida muitas coisas de um valor que


sequer dá para estipular. Itens colecionáveis e até mesmo toda patente
científica que produziu e se associou.

— Sim…

— Se tivesse que proteger e cuidar das coisas que seu pai costurava, o
que você faria?

Suspiro alto e não penso muito quando digo:

— Tudo.

E me sinto extremamente culpada, o único vestido que sei onde está, é


o que vendi para Heloísa. Os outros estão na mão de um bandido agora…

— É. Eu estou disposto a fazer tudo também — agora ele diz mais sério
que antes, com ar de homem de negócios. — Eu… não sei como é ser pai. Eu
perdi a minha filha antes mesmo de poder pegá-la no colo, ver seus olhos,
sentir seu cheiro…

Faço minha melhor expressão de eu sinto muito.

— Mas eu sei como gostaria que fosse a minha relação com o meu pai.
Eu saí da Itália e vim para cá, porque ele nunca gostou de mim. Gostaria que
ele me enxergasse como sou e me valorizasse pelo que sou. Gostaria de ter
sua atenção, seu respeito, seu carinho. Não vou negar isso a um filho meu.

— Sabe, Guilhermo, eu aprecio o quanto você quer se esforçar, de


verdade…, mas eu já tenho um filho. E não sei se quero ter outro com alguém
só por uma herança…
— Um filho é para sempre. Eu nunca irei abandoná-lo e não vou te
abandonar. Nós seremos para sempre uma família, mesmo que nós dois não

venhamos a dar certo. Eu vou amá-lo, vou respeitá-lo, vou dar a ele tudo o
que não recebi do meu pai, e não irei jamais culpá-lo, bater nele ou castigá-
lo por erros que por ventura eu venha a cometer em meu trabalho…

É… só isso já significa muita coisa.

— Eu não posso prometer te amar, Yasmin. Mas eu posso prometer que


vou me dedicar, me esforçar e lutar a todo instante para ser o melhor homem
da sua vida, enquanto tiver chance. Eu vou te apoiar, eu vou estar ao seu lado,
eu vou aprender como ser o homem que você precisa e também o pai para o
nosso bebê.

Homens… como são convencidos…

Agora ele está falando como se após ouvir tudo isso eu quisesse que ele
fosse pai do meu bebê.

… E eu quero mesmo.

— Tudo o que o velho Lamarphe me deixou, eu não quero nada.

— Como assim? — Arregalo os olhos.

— Vou deixar tudo para o nosso filho. Ele será o herdeiro de tudo, não
preciso do dinheiro, da casa, de nada. Tudo o que quero é manter o legado
dele, o trabalho que ele fez por toda a vida e isso inclui o hospital. É só isso o
que quero.

— Ok — é o que digo, na falta de saber o que deveria dizer.

— Certo. O que você quer?

De repente a voz some na hora de responder.

A garganta fica muda e eu até insisto em dizer algo, de boca aberta,

tentando esboçar minha reação, mas estou paralisada no rumo que essa
conversa tomou.

Acho que esse foi o melhor encontro de toda a minha vida.

Guilhermo e eu somos extremamente diferentes. Mas em diversos


pontos nós pensamos parecido. E por mais que eu não esteja obrigada a
conceder-lhe um filho, meu útero coçou.

— Eu quero… um próximo encontro.

— Quantos você quiser. — Ele encara o relógio. — Ainda temos 87

dias e algumas horas.

— Parece tempo o suficiente para mim — respondo.

— Para mim também. — Ele estende a mão e eu a aperto.


“Somos donos dos nossos atos

Mas não donos dos nossos sentimentos.

Somos culpados pelo que fazemos,

Mas não pelo que sentimos.


Podemos prometer atos,

Mas não podemos prometer sentimentos.

Atos são pássaros engaiolados.

Sentimentos são pássaros em voo”.

— Rubem Alves.

QUATRO ANOS ATRÁS

Prendo a respiração ao sentir Guilhermo trocar nossas posições,


colocando-me sentada no sofá e ele de joelhos em cima de mim.

Primeiro ele se livra do terno, revelando a camisa social toda


demarcada por seus músculos, o vão entre os botões deixam sua pele morena
à mostra quando se contorce para tirar a peça superior.

Assisto ao vivo um strip-tease e mal consigo manter meus olhos


atentos, não sei se de vergonha, excitação ou calor.

— Vou cuidar bem de você essa noite, Bella dona — ele diz, enquanto
desabotoa a camisa e deixa todo seu tronco nu.

— Eu não faço ideia de por onde começar — penso.

Só percebo que disse em voz alta quando ele responde:


— Poderia começar tirando sua roupa também. — A arqueada que sua
sobrancelha dá indica que vai me ajudar a me despir.

A primeira sensação que tenho quando a pele nua dele encosta na


minha, sem as roupas para intermediar, é de que não estou prendendo a
respiração: estou perdendo.

Sopro todo o ar quente que tenho na boca ao sentir os lábios dele em

meu pescoço, depositando um beijo doce e leve, que conforme sobe para meu
queixo e depois doma minha boca, se torna ardente e praticamente me tira do
lugar.

Ele continua de joelhos na poltrona, mas eu estou sentada em cima


dele, agarrada ao seu pescoço. Não paro de me mexer, não sei para onde mais
quero subir, só sei que a fricção no peito dele acende algo em mim e é muito
gostoso.

E cada vez que esse homem me pega pela nuca e faz seus dedos

subirem abertos até o topo da minha cabeça e afaga meus cabelos como se
minha cabeça coubesse na palma de sua mão, eu me derreto toda.

— Escuta — ele interrompe o beijo só para falar, depois volta a sugar


meus lábios. — Onde você quer ser fodida?

— Aqui. — Seguro na mão livre dele e a guio até meu sexo.

— Isso eu sei. — Ele ri diante do meu lábio de um jeito safado. —


Onde? Aqui na poltrona? Quer que eu te leve para a cama? Na mesa de
jantar? Na mesa da sala de jogos? Onde quer?

— Pode ser um pouco em todos os lugares — digo sem nem pensar de


tão ofegante que estou.

Solto um grito e cubro minha boca quando ele se levanta e me carrega


consigo. Sobe as escadas, demora um pouco no que faz, porque estou viciada

em seu beijo. Não sei se consigo parar de beijá-lo, é tão bom que parece que
nos encaixamos, tanto na boca quanto no corpo e isso gera uma combustão
em mim.

O outro grito surge quando ele me lança na cama, deixando-me deitada


e assistindo-o tirar a calça.

O volume dentro da sunga preta é grande e só para em sua cintura.

Guilhermo tira a minha calça jeans e me deixa só de sutiã e calcinha, os


cotovelos repousados na cama e os olhos mais do que atentos quando ele tira

sua última peça de roupa, chuta com o pé para qualquer canto do quarto e
sobe em cima de mim.

Volta a me beijar com intensidade e conforme deita seu corpo em cima


do meu, sinto seu pênis pressionar bem forte contra a minha calcinha.

Eu o abraço com força e me sinto tomada pelo cheiro, pelo calor e pelo
desejo ardente que sinto por esse homem.
Quando sua pele toca na minha sinto que deixa um rastro de fogo. E
quando sua língua desliza pela minha boca eu sinto que flutuo, mesmo sendo

ancorada pelos seus braços e deliciosamente apertada contra a cama.

— Meu Deus — eu rebolo debaixo dele quando sinto sua mão descer
por minha virilha e seu polegar encontrar uma parte sensível minha, como fez
mais cedo.

Ele me massageia suavemente, desce a cabeça até meu busto, nem


percebi a hora que ele tirou o meu sutiã, agora só sei que ele está me
encarando com muito tesão, enquanto chupa o meu mamilo com calma.

Sendo estimulada lá embaixo e aqui em cima, fica difícil manter um fio


de sanidade.

Ainda mais sob os olhos sérios deste homem e sua boca grande que
parece que vai me abocanhar inteira e me fazer derreter em sua língua.

— Não para.

— Eu não vou parar — ele diz de bom humor. — Não vou a lugar
algum, estou aqui com você — beija o meu mamilo e volta a chupá-lo
devagar.

A língua desse homem em minha pele me causa sensações que nunca


pensei que podia sentir antes. É uma mistura de arrepio com quero ficar
pelada que mal consigo controlar.
— Se lembra do meu nome? — ele murmura.

É óbvio que me lembro. Como poderia esquecer?

— Sim.

— Quero que se lembre dele — ele ri. — E o fale, sem parar, cada vez
que sentir que está perdendo o juízo.

Então eu devia ter começado a falar sem parar, desde que estávamos
lá embaixo…

Com um sorriso diabólico ele desce pela minha barriga, afasta a


calcinha com as duas mãos, ela praticamente desliza por minhas pernas.

Eu nunca estive assim, totalmente nua, diante de ninguém.

A primeira coisa que faço quando meu corpo não está mais coberto em
parte alguma e ele me observa tão atentamente, é colocar as mãos para me
cobrir.

— Por que quer se esconder de mim? — Ele beija o dorso de minhas


mãos. — Quero ver você, inteiramente nua.

— Ok.

Faço uma contagem regressiva mentalmente para afastar as mãos, mas


não consigo.

— Olha como você me deixou — ele exibe o corpo gostoso ao ficar de


joelhos na cama, o pau totalmente ereto. — Não seja má… eu quero ver

você… quero sentir seu cheiro… quero sentir o seu sabor… quero entrar em

você…

— É muito grande. — Arregalo os olhos. — Não sei se vai caber isso


tudo…

— Calma, eu prometi que iria ser gentil. Vamos até onde você

conseguir aguentar. — Ele retorna quase se deitando em cima de mim, mas


seus cotovelos sustentam seu peso. — O prazer também está aqui —
murmura e toca com o indicador em minha cabeça. — Mas para isso, precisa
afastar seus medos e confiar em mim…

— Vai doer? — pergunto.

— Vai. — Ele é direto e reto. — Mas você vai se acostumar e gostar.


Eu prometo.

Sua voz me tranquiliza e a forma como ele suga meu lábio inferior me

vence, sem precisar de mais réplica.

Deixo as mãos caírem para a cama gigantesca e o assisto descer ante o


meu corpo. Quando está entre minhas pernas, os dois polegares alisam
levemente meus lábios grandes, abrindo-os. E sua boca vai direto, feito uma
flecha que sabe seu alvo, para o lugar onde antes estimulara.

Eu preciso me agarrar à cama com todas as minhas forças para me


manter no lugar, o toque da língua dele e depois seu lábio tocando, lambendo
e friccionando naquela região faz minhas pernas tremerem.

— Guilhermo — chamo pelo seu nome.

— Já? — Ele ri docemente.

Eu nunca senti nada disso. Tudo é novidade para mim.

Já havia, é claro, sido beijada, mas não com tamanha intensidade a


ponto de sentir o coração na boca. Tampouco sentir o cheiro e o gosto da pele
de um homem que parece queimar quando toca em mim. E agora, com ele
sugando meu clitóris, eu não sei nem ficar parada. Meu corpo parece que
precisa se mover ou ao menos tremer.

— Eu quero você — ele diz, lá de baixo.

Insiste no mesmo movimento, lentamente eu sinto que estou ficando


toda molhada, mas ainda é estranho. A sensação muda completamente de

foco quando sua língua vai dentro de mim, o mais fundo que consegue.

Agora sim eu me agarro, mas aos seus cabelos.

Instintivamente cruzo as pernas em cima das costas dele e seguro seus


cabelos, não sei se quero tirá-lo o mais rápido dali ou apertá-lo para que vá
ainda mais fundo em mim.

— Guilhermo!
Sua língua serpenteia, contornando e lubrificando ainda mais a minha
vagina. E ele não para de me estimular com as mãos também.

Ele fica tempo o suficiente que quando se afasta por um momento, eu


já voltei a abrir as pernas na cama e ficar toda largada, como se estivesse
tentando recobrar os sentidos.

— É como eu pensei… — ele murmura, passa as mãos pelo rosto úmido

e depois lambe. — Você é deliciosa — ri com malícia e me puxa de uma vez


só para perto de si.

Sinto a glande grande e inchada esfregar com força pela minha


abertura, contornar meus lábios com mais suavidade e depois voltar e
friccionar em minha entrada.

Por que já estou perdendo o fôlego se nem ao menos começamos?

— Quando quiser, bella donna.

— Eu confio em você, não tenho medo. — Aceno com a cabeça.

A resposta dele é rir.

Não sei por quê.

Guilhermo se inclina até que nossos rostos estejam próximos


novamente e vejo os detalhes de sua íris.

— Não, você não confia. — Ele se diverte. — E ainda tem medo. —


Balança as sobrancelhas. — Mas eu vou te mostrar que não tem porque

permanecer assim.

Acontece simultaneamente, o beijo molhado e lento que me dá e a


sensação de seu pênis entrar devagar, praticamente escorregando em minha
direção a princípio, de tão molhada que estou.

O grito que solto é abafado dentro da boca dele e minhas mãos vão de

encontro às costas dele, o arranho com toda a força que tenho conforme entra
bem duro e pulsando dentro de mim.

Primeiro eu quero chorar e implorar para que ele tire.

Mas seus olhos me encaram com firmeza e me dizem silenciosamente


que eu preciso esperar.

A sensação é estranha, não sei exatamente o que sinto, só parece que


alguma coisa não está certa em meu corpo.

— Guilhermo — choramingo.

— Eu estou aqui com você — ele murmura e beija minha testa. —


Você está aqui comigo?

— Sim.

— Relaxe as pernas… respire… não precisa se comprimir toda…

— Ok…
— Me deixe entrar só mais um pouco… você está molhada o suficiente
para mim…

— É que é grande…

Ele ri feito um cafajeste. Mas seus olhos prateados piscam e ficam me


observando em silêncio, de um jeito doce e protetor.

Calmamente eu recupero o fôlego e tento destravar todo o meu corpo,


após sentir que tinha um intruso, eu comecei a me comprimir toda.

Abro a boca e respiro um ar gelado por ela quando Guilhermo desliza


para fora de mim até sair por completo.

Agora tudo parece mais estranho, meu corpo parece que sente falta…
que loucura!

— Eu quero sentir você — ele me pede com os olhões grandes e


brilhantes.

E um segundo depois volta a entrar em mim, dessa vez com muito mais
facilidade. Sinto minha vagina se dilatar conforme ele entra até certo ponto e
permanece ali. Seu olhar continua atento ao meu, parece que examina cada
uma das minhas expressões. E suas mãos confortam o meu corpo,
acariciando-o.

Ainda é incômodo, mas estou distraída em outras sensações.

Agora sinto que de fato nos conectamos, não apenas nosso beijo se
encaixa, mas nossos corpos também.

Uma pena que só vai ser dessa vez.

Atualmente

— Não precisava de todo esse trabalho — digo e encaro a rua vazia e o


portão da minha casa, ainda dentro do carro.

— Não foi trabalho algum, só queria garantir que chegaria bem em


casa.

Faço um bico e imito mentalmente as palavras dele, de algum jeito é


engraçado em minha cabeça, principalmente depois de algumas, melhor

dizendo: várias e muitas, taças de vinho.

O encontro rendeu. O papo foi incrível e eu quero repeti-lo.

E na volta para casa, olhando-o dirigir, fiquei o tempo todo pensando


em coisas do passado… e cada uma delas mexeu muito comigo.

Guilhermo foi o meu primeiro homem, e em comparação com todos os


que tive após ele, com certeza foi o melhor.
Atencioso, cuidadoso, provocativo… seus olhos cinzentos e brilhantes,
sua barba que já tem fios brancos, sua personalidade mais cascuda e seu jeito

temperamental de alguma forma me excitam.

E em momentos como esse, em que impera o silêncio, meu corpo


parece a terra toda magnetizada, pronta para girar em torno do sol, avançar
em sua órbita e beijá-lo.

Avanço cuidadosamente e fecho os olhos.

Eu preciso beijá-lo e vai ser agora.

Mas nada acontece.

Empurro o corpo para frente uma, duas, três vezes, até que enfim abro
os olhos e vejo que estou parada no meio do caminho.

— Você ainda não tirou o cinto de segurança — Guilhermo observa.

— Sim — murmuro, com vontade de dar uns tapas na minha testa.

Tiro o cinto e fico imobilizada, incerta se deveria seguir meus instintos


e só deixar as coisas fluírem.

— Obrigado pelo jantar, foi ótimo poder sair com você. E novamente,
parabéns pelo excelente dia! Que venham mais cirurgias! — Bato palmas de
um jeito desengonçado.

— Eu que agradeço por ter aceitado meu convite — ele responde.


— E… quando quiser começar os testes para fazer bebês… é só me
chamar! — Meu Deus! Onde é que eu estou com a cabeça? Por que eu disse

isso?

Estou alegre demais. Acho que minha boca está me traindo e dizendo
em voz alta tudo o que penso.

— Temos que tentar muitas vezes... — Tento corrigir, mas não sai

como esperado. — Fazer bebês...

Meu Deus! O que estou dizendo?

— Vou chamar sim — ele pisca.

— Bom… então foi uma ótima noite. Meu primeiro encontro em que
não quero fazer a Rihanna e matar um homem!

A expressão de surpresa que ele faz, me diz que estou falando


excessivamente coisas que não devo. Dou uns tapas na boca e abro a porta do

carro, pronta para sair.

— Rom pom pom pom — cantarolo baixinho.

Antes de colocar o primeiro pé para fora do veículo, sinto um puxão


que me tira do lugar e me faz não só me sentar de volta, como também me
arrasta pelo banco até ficar na ponta dele.

Guilhermo me traz até seu corpo e me beija com intensidade, eu me


agarro ao seu pescoço e me entrego facilmente. O cheiro refrescante dele me
atrai e me dá vontade de beijar todo seu corpo, a começar pelo pescoço. E
antes que eu perca completamente o juízo e tente tirar as calças dele,

Guilhermo segura por cima da minha mão.

O que eu poderia fazer?

Foi um jantar delicioso, um papo muito agradável, ele não foi um


imbecil e ainda por cima me trouxe boas lembranças.

Perder a virgindade foi o momento mais esquisito de toda a minha vida,


mas também o mais delicioso, comparado ao monte de fracassos que tive
depois.

— Vamos ter tempo o suficiente quando você estiver sóbria — ele


avisa e se despede com um aceno de cabeça.

— Boa noite. — Aceno para ele e não saio do lugar.

— Boa noite — ele diz e sorri de um jeito safado e diabólico.

E eu continuo no lugar, acenando com a cabeça, lembrando de como


esse desgraçado enfiou a língua em mim de um jeito que ninguém mais fez.

— Está ficando tarde, você não deveria ir para casa? — pergunto.

— Depois de você — ele responde, sempre sério e muito educado.

— Mas a minha amiga vem me buscar, relaxa…

— Yasmin, estamos na frente da sua casa.


Confiro pela porta aberta do carro que de fato estamos em frente ao
portão da minha casa.

Pisco os olhos e aceno.

— Não precisava de todo esse trabalho… — digo.

Guilhermo me puxa pelo pescoço e sela nossos lábios com demora.

Quando se afasta – porque eu fico parada no lugar –, ele afasta os cabelos do


meu rosto e afaga minha bochecha.

— Durma bem.

— Ok — digo e saio do carro.

Ele só vai embora após eu abrir e fechar o portão.

Eu tento seguir em linha reta para dentro de casa e consigo com


sucesso, após cinco minutos andando aleatoriamente pelo lugar, num misto
de lembranças muito boas.

— E ai, como foi a noite? — Patrícia pergunta ansiosa, assim que


abrimos a porta juntas, ela lá de dentro e eu aqui de fora.

Ou vai ver eu não estava conseguindo encaixar a chave…

— Amiga…

— Sim?! — Ela fica atenta.

— Ninguém vai te tratar melhor do que um homem tentando te comer


— digo da forma mais analítica que consigo.

— Sim — ela observa de um jeito muito pertinente.

— Graças a Deus! — Eu danço, sem sair do lugar. — Rom pom pom


pom...
“Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fossemos de
ferro”.

— Sigmund Freud.

Quando tento abrir os olhos, fecho-os imediatamente, pois a claridade


machuca as minhas retinas.

— Hora de acordar! — Patrícia arranca o cobertor e o joga para o outro

lado do quarto.

— Que horas são? Onde está o PH? — Esforço-me o máximo que


posso para vigiar o quarto.

— Já são quase nove da manhã e o seu filho está na escola! — Ela joga
óculos escuros em minhas mãos.

Não demora até que eu os coloque.

— Que dor de cabeça!

— Também pudera, o encontro foi tão bom que você bebeu! E bebeu…
e bebeu mais um pouco após chegar em casa. E não parava de dançar!

— Ah — coço a nuca e sinto meus fios todos amassados e


emaranhados. — Não me julgue, pela primeira vez na vida tive um encontro

bom. Mesmo que seja um que me obrigue a ter um bebê de um cara rico. —
Coço a região dos olhos por debaixo dos óculos.

— Ah, não me entenda mal, não estou te julgando! — Patrícia me puxa


de uma vez e entrega uma xícara de café bem forte nas mãos. — Mas
independente do dinheiro que a Heloísa te prometeu, nós vamos trabalhar!

— Sim! — Tento mostrar animação, mas ao menor sinal de ficar ágil,


já começo a bambear.
— As vendas online estão em um nível padrão, mas precisamos de
dinheiro urgente.

— Sim — murmuro enquanto beberico meu café amargo e ultra forte,


vou tirando o pijama enquanto isso e me preparo para tomar um banho
rápido. — E o que você pretende fazer?

— Já te falei. — Ela balança as sobrancelhas. — Vá para o banheiro,

tome o seu banho e me encontre lá embaixo!

Termino de tomar o café em goles generosos e depois tomo um banho


que parece lavar a alma. Seco os cabelos, visto uma blusa preta e calça jeans
e tênis confortáveis, desço correndo até a sala – ainda bagunçada e com
coisas fora do lugar.

— Tá, o que faremos?

Patrícia joga uma mochila preta grande em minhas mãos. Segura com
firmeza na alça da mala de rodinhas e balança os ombros.

— Vamos de porta em porta vender produtos eróticos.

— O quê? — Arregalo os olhos.

— Não fique tão surpresa, te falei que faríamos isso.

— Nós duas somos o quê? Testemunhas das Pirocas?

— Chame como quiser, eu chamo de empresárias e bem sucedidas.


Agora vamos, que os vibradores não vão se vender sozinhos! — Ela vai na

frente, decidida.

É a ideia mais louca que ouvi – após ser indicada como barriga de um
herdeiro para obter a herança. Mas se tem uma pessoa que vende areia no
deserto e convence qualquer um a comprar esses produtos, este alguém é
Patrícia Sanches Caldeirão, também conhecida como boca de confusão.

— Eles até se vendem sozinhos, no site — ela observa, dando uma


olhadela para trás. — Mas precisamos de mais dinheiro agora!

Meia hora depois, em uma parte mais nobre da zona norte, cá está ela
batendo palmas diante de um portão de ferro.

— Não! — A mulher grita lá do fundo. — Aqui todo mundo já tem


religião!

— Não é religião! É um prêmio que você recebeu, vem buscar! —


minha amiga grita daqui.

Bom… falou em prêmio ou receber coisa de graça, o brasileiro já se


atiça. Até eu fiquei toda ouriçada e curiosa em saber onde tudo isso vai dar.

A mulher vem, de braços cruzados.

— O que ganhei? É prêmio de quê?

— Um gel massageador que deixa tudo quente — Patrícia pisca, já


indicando com o olhar o que isso significa.
— E ganhei isso de onde? — A mulher segura o frasco vermelho,
interessada.

— De mim. E vai ganhar muito mais brindes quando comprar essas


maravilhas — ela puxa os dois zíperes da mala e mostra tanto pênis de
borracha que acho que a mulher teve uma vertigem ao ver.

— Não… não preciso disso não… — Ela vai se afastando. — Já

tenho… tenho marido em casa...

— E o do seu marido vibra em 12 modos diferentes, gera impulsos


eletromagnéticos que acendem sua libido e continua firme e viril até você ter
o seu orgasmo? — Patrícia, como uma boa advogada do diabo, já encurrala a
mulher.

Que fica sem resposta.

— Foi o que eu pensei. — Acena com a cabeça.

— Venham, saiam da rua, antes que meus vizinhos vejam isso! — A


mulher nos coloca para dentro.

— Relaxa, todas as suas vizinhas vão comprar também — ela garante.


Não acredito quando recebo uma mensagem dizendo que a minha mãe

veio ao hospital Rota da Vida. Ela nunca veio ao hospital, não que me
lembre.

Vou até o banheiro de porta muito estreita e lavo o rosto e as mãos,


pego no armário um terno reserva e jogo por cima da camisa social branca.

Chego à sala da vice presidência o mais rápido que consigo, e ao passar pela
porta, vejo-a examinando as gavetas da mesa em “L”.

Quando me vê, ela para imediatamente e sorri, abre os braços.

— Mio figlio![19] — Vem animada até mim e me dá um abraço


demorado. — Como está?

— Bem. Estava cochilando após ler todo o processo que os advogados


do Alfredo e Heloísa me enviaram, sobre o não cumprimento das questões do

testamento… — Massageio as têmporas e empurro a cadeira até chegar


próximo à grande janela, onde há muito espaço.

Ela acena com a cabeça, em silêncio.

Quando seus olhos passam pelo lugar, não sei se parece ter visto
alguém ou se está procurando algo, mas parece estar em alerta.

— A que devo a visita?


— Ah! Uma mãe zelosa não pode mais visitar seu filho querido?

— É claro que pode. — Balanço as mãos e as repouso no colo.

— Muito bem. — Ela anda pelo lugar, acho que em algum momento
faz menção de se sentar, mas se afasta rapidamente da cadeira de tio Alfredo.
— Pode acreditar no que ele fez?

— Qual das coisas que fez?

— Obviamente essa piada de mal gosto! — Acena com as mãos,


mostrando-se farta. — Coloca como condição de deixar tudo para você,
quando estiver com seu filho!

Ele não disse exatamente “estiver com seu filho”, mas “ter um filho”.
Acho que de tanto ficar na ponte Sicília – São Paulo, ela está engasgando na
própria língua.

— Tio Alfredo era…

— Destemperado! Era o que ele era! — Ela bufa. — Todas as coisas


valiosas da família Lamarphe… toda a herança que pertence às próximas
gerações… na mão daquela mulher?

— Eu sei. Eu sei, eu lutei o quanto pude, mas ele era…


destemperado… para não dizer que era um provocador.

— Precisamos tirar tudo dela. E rápido.


— Estou tentando, mamma[20]…

— O que o seu pai diria?

Quando diz isso, imediatamente perde minha atenção.

Viro o rosto para a janela e tento respirar fundo, mas parece que não
consigo.

— Você não é meu filho! — Ouço o grito dele após me empurrar. —


Nunca foi! — Me empurra.

— Mas, pai…

— Deveria ter morrido naquele acidente!

— Guilhermo? — A voz da minha mãe me arranca de uma lembrança


que de tão viva, acelera meu coração e me deixa todo arrepiado, como se
tivesse acabado de acontecer.

Quando na verdade foi há dois anos, após o acidente em que perdi tudo.

— Ele mataria o irmão… — Seus olhos vão de encontro a um grande


quadro, em que tio Alfredo, jovem, está com o Dourado, seu grande amigo e
co-fundador do hospital. — Fazendo idiotices mesmo depois de morto…

— Vamos evitar falar mal dele e nos concentrar em como reverter isso
— proponho.

— Sim! Estou ansiosa por isto!


Ela se nega a sentar, mas joga sua bolsa e seu casaco de pele em cima
da poltrona dele.

— Já te nomearam o vice diretor do hospital?

— Sou o interino, sim. Aparentemente ele deixou instruções para a


CEO para que isso fosse feito, pelo menos até a próxima reunião do conselho.

— Bobagem. Esse hospital é tão seu quanto da família Dourado!

— Por hora é da Heloísa, a ex-mulher dele.

— A puta? — Ela ri. — A aproveitadora?

— Pela força da lei, é como é.

— Não diga bobagens, Guilhermo. É questão de tempo até que você e a


família recuperem tudo.

— Pois é. — Aceno com a cabeça. — Até lá, tomei por bem cumprir a
parte do testamento que diz que só herdo tudo se tiver um filho.

A feição dela fica vermelha como se eu tivesse lhe dado um tapa.

Minha mãe nunca foi fã das mulheres com quem me relacionei. Ela
odiava a minha ex-mulher e a minha filha, antes mesmo de nascer. O que era
engraçado, pois foi ela quem nos aproximou, mas no fim…

— Tem certeza de que acordou? Pois só fala bobagens. Parece que está
dormindo!
— Mamma…

— Você não terá filho com nenhuma mulher! Muito menos uma que

está aqui para dar o golpe da barriga, assim como a outra tentou, com o
casamento!

— É a possibilidade mais próxima de manter as coisas sob controle…

— Bobagem! Esqueça isso! Já conversei com os seus tios e estamos


reunindo gente… advogados, pessoas de fora, todo o suporte que
precisamos…

Fico até sem saber o que dizer. Aparentemente ela já decidiu por mim.

De certa forma, até entendo. Bens da família estão em jogo…, mas


preciso fazer a minha parte para garantir que tudo ficará bem.

— Eu vi aquela mulher. Não te parece exatamente o que a amiga é?


Uma aproveitadora?

— Yasmin? — Arqueio a sobrancelha.

— Ah, ela tem nome!

— Yasmin não é esse tipo de mulher. Já a conheci antes e…

— Em que ocasião? — Ela se mostra interessada. — É filha de alguém


que vale à pena ser lembrado? Foi em uma reunião com a alta sociedade?

Ela bate com o indicador no queixo.


— Ah! É uma grande empresária, uma mulher bem sucedida! É isto?

— Eu já fodi ela.

Agora sim lhe desferi um tapa. Ela fica tão vermelha que fica
paralisada, encarando-me como se eu fosse o maior pervertido desse país.

— Comprei sua virgindade, para ser exato. Quatro anos atrás —

confirmo logo de uma vez que talvez eu seja.

— Você não disse isso…

— Na verdade, acabei de dizer.

— Não. Você não disse isso em voz alta e nunca deve repetir!

Ela vem até mim, o barulho dos saltos parece que ocupam toda a sala
vazia.

— Guilhermo, talvez você não se importe, porque nunca sai desse


hospital. Mas eu tenho uma vida lá fora! Eu sou membro da alta sociedade

brasileira! Eu tenho um exemplo a dar!

— E daí? Como se todo mundo não tivesse um teto de vidro…

— Todos tem seu teto de vidro, mas as paredes têm ouvidos! Guarde os
seus segredos para você e nunca os diga em voz alta, nem mesmo para mim!

— Mamma, você está exagerando…

— Estou? — Ela olha ao redor. — Você acha mesmo que conhecia


Alfredo Lamarphe? Faz ideia de quem ele era? Com o que estava envolvido?

Seus segredos, seus podres?

Acho curioso ela mencionar isso. Sempre fui muito próximo dele.
Praticamente seu braço direito, seu aluno, sua sombra. Eu saberia de qualquer
coisa…

— Não… você não sabe. — Ela ri como se eu fosse uma criança

inocente. E eu odeio essa feição que faz.

— Então revele os segredos dele… — a desafio.

Ela não somente se nega a dizer, como muda completamente de


assunto, como se jamais tivesse dito qualquer coisa anteriormente.

— Eu não vou permitir que se case com uma qualquer!

— Mas quem falou em casar? Eu preciso fazer um filho nela.

— Muito menos isso! Um filho é para sempre e não vou permitir que

nossa família esteja conectada com qualquer corja!

— Mamma, não seja dramática.

— Estou sendo prática — ela é firme. — Arranjarei outra mulher e


tentarei convencer a tal Heloísa a nomeá-la como sua pretendente. Mas vai
ser alguém da elite!

— Boa sorte. — Dou a conversa por encerrada.


Se isso é ser prática, não sei o que estou tentando fazer, então.

Me parece muito mais fácil resolver as coisas com Yasmin, já que

temos uma química e coisas em comum. Além de que é fácil conversar com
ela e avançamos muito na conversa da noite anterior.

— Está procurando alguma coisa? — Irrompo o silêncio e a deixo


paralisada.

Ela ficou parada, meio curvada com a bolsa e o casaco em mãos, mas
olhando fixamente para debaixo da mesa e arredores.

— Quando cheguei, deixei cair um dos meus brincos. — Ela vira em


minha direção e mostra sua orelha.

— Ah… precisa de ajuda?

— Não, Guilhermo. Você é quem precisa de ajuda! Para abrir os olhos


e perceber onde está se metendo!

Exagerada…

— Se era só isso, vou voltar ao meu dormitório, tenho duas cirurgias


importantes amanhã.

— Você ao menos entendeu alguma coisa do que eu disse? Tem ideia


do quanto essas pessoas podem ser perigosas?
—… E aí, menina, ela que nunca teve sorte no amor, agora vai ser
obrigada a ter um filho com esse cara rico, para que o testamento seja

cumprido e ele assuma as posses do falecido tio. — Patrícia toma um ar só


para beber o suco e encarar a quinta cliente do dia. — Esses biscoitos são d-i-
v-i-n-o-s!

— A minha avó que faz!

— Ela vende?

— Na verdade, sim…

— Então eu vou querer cinco pacotes! — ela diz animada.

— E como você está se sentindo sobre tudo isso? — A mulher, uma

completa desconhecida, se vira em minha direção.

— Eu não sei… é difícil estar nessa, sabe? Eu sempre sonhei em ter


uma família e ser amada…

— Ela tem síndrome de princesa da Disney — Patrícia me interrompe.


— Se duvidar, acha que vai encantar os animais cantando, só falta uma velha
bruxa vir dar uma maçã para ela comer…
Faço um bico e reviro os olhos.

— Eu não tenho síndrome de nada. Só quero ser feliz. Feliz de

verdade. E agora estou nessa encruzilhada: não posso dar o bebê que ele
quer, para minha amiga ficar com tudo. Mas ele mexe comigo e acho que não
precisa de muito para eu me sentir disposta, sabe?

— Eu sei. — A mulher rói as unhas.

— Enquanto eu finjo para a Heloísa que o enrolo, vou dar tempo de


conhecê-lo melhor e decidir. E enquanto finjo que enrolo a Heloísa para ele,
eu dou tempo para que ela fique cada vez mais firme em me dar um dinheiro.
Não sei, tô confusa…

— Mas você o ama?

— Que ama o quê! — Patrícia ri. — Mal se conhecem!

— Mas pode ser amor à primeira vista…

— É… — suspiro.

No reino das possibilidades, tudo pode ser…

— Torço para que dê tudo certo, Yasmin!

— Obrigada…

— Ótimo… — Patrícia sacode a cabeça. — Deu duzentos reais — diz


do nada, já com os produtos na sacola. — Vai ser no crédito ou no débito?
“A atração mental é muito mais forte do que a física. De uma mente
você não se liberta nem fechando os olhos”.

— (Autor Desconhecido).

Patrícia passa o caminho inteiro na volta para casa comemorando que


voltamos com a mala vazia e muito dinheiro na conta.

Ela é doida, devo admitir. Mas quando quer uma coisa, não há nada que

a pare.

— Olha só, acho que temos visita. — Ela aponta com a cabeça o carrão
em frente ao portão de casa.

Após estacionar atrás do veículo, Patrícia e eu damos uma volta até


identificar a pessoa no volante.

Meu Deus, eu devo ter bebido muito mesmo para não reconhecer o
carro de Guilhermo.

Embora em minhas memórias o carro era diferente ontem...

— Oi — aceno assim que ele me encara, de dentro do veículo.

Observo o suporte do lado de fora do carro, que provavelmente ele


deve se apoiar para entrar e sair. Depois fito seus olhos prateados.

— Esqueceu isso aqui ontem. — Guilhermo estende a minha bolsa.


Assim que a abro, vejo meu celular.

Sabia que estava esquecendo alguma coisa!

Patrícia me arrancou da cama e me distraiu o dia inteiro a ponto de eu


sequer levar a mão aos bolsos!

— Nossa, muito obrigada! Não dei falta dele nem por um segundo…
— Também, chegou ontem toda alegre e falava pelos cotovelos… e
hoje tive que tirá-la da cama à força… — Patrícia murmura em meu ouvido,

dá um checada em Guilhermo e se dirige para a entrada de casa. — Vou


entrando… comporte-se — pisca.

— Guilhermo, sobre ontem, eu queria te pedir desculpas. Acho que


bebi um pouco mais do que o normal…

— Jura? Não percebi.

Seu tom irônico me obriga a fazer uma careta.

— E… não me interprete mal, eu tentei beijar sua bochecha e no fim,


acabei te beijando…

— Só para desanuviar essa sua mente esquecida, fui eu quem te beijou


— ele esclarece, para minha surpresa.

Pisco os olhos devagar e entorto um pouco o rosto.

Não sei nem como reagir a essa situação.

— Você estava presa no cinto de segurança… foi engraçado, mas não


resisti à tentação.

— Não, tudo bem, o beijo foi ótimo!

De repente, um fogo começa a subir pelo meu corpo e quando me dou


conta, estou coçando o pescoço com a ponta dos dedos.
— É.

Na bolsa confiro todas as minhas coisas: identidade, cartões, algum

dinheiro, meu batom… e o celular com infinitas chamadas de Heloísa.

— Não precisava de todo esse trabalho. Você havia dito ontem que
tinha duas cirurgias importantes amanhã, deveria estar dormindo…

— Eu sei — ele acena. — Mas a sua amiga te ligou bastante… e eu


queria te ver.

— Ah. — O calor parece que vai se expandindo até chegar à cabeça.

Meu Deus! Estou suando!

— Mamãe! — Levo um susto ao ouvir a voz de Phellippo ao


longínquo, imediatamente me arrepio inteira e fico em alerta.

Mas está tudo bem. Ele só vem correndo, todo desengonçado,


balançando a mochila nas costas. E minha mãe tenta acompanhá-lo, mas

desiste no meio do caminho, cansada.

— Oi! — Agacho para abraçá-lo e enchê-lo de beijos.

Limpo sua testa de suor e confiro sua temperatura, ele parece bem.

— Como foi na escola?

— Foi bom.

— Bom muito bom ou só bom? — Faço um bico.


— Bom! — Ele vibra e me encara com seriedade com seus olhões
azuis, ao mesmo tempo que seus lábios formam um fino sorriso.

— Ah, esse é PH, o meu filho. — Pego o pequeno no colo e o ergo,


para que Guilhermo o veja. — E esse é um amigo da mamãe, PH.

É inusitado e curioso a forma como eles dois se encaram.

Phellippo fita o mais velho de um jeito mais inquieto, tenta espiar por
cima da janela. E Guilhermo nem pisca quando vê o meu pequeno. A
expressão que faz é engraçada e só dura meio segundo, como se conhecesse o
meu filho de algum lugar. Depois ele se aproxima da janela e o observa com
mais atenção, não passa despercebido que suas pupilas crescem. No fim,
acena com a mão.

— Oi, PH!

— Oi — o pequeno responde com timidez, após me encarar, acho que


pedindo aprovação.

— Meu Deus, eu não tenho fôlego para acompanhá-lo… — minha mãe


chia, põe a mão no peito e praticamente se arrasta até chegar a mim. — Oh!
— Abre a boca quando vê Guilhermo. — Bom dia!

— Bom dia, senhora — ele diz com gentileza.

— Yasmin, isso são modos? Vai deixar o homem na rua? Não vai
oferecer sequer uma água?
— Você quer? — Viro-me para Guilhermo.

— Eu estou bem, não se preocupe.

— Convide-o para entrar. — Ela me dá uma cotovelada bem discreta,


que só me faz dar uma curvada para frente e depois voltar a posição anterior.

— Você… quer entrar?! — Mexo as sobrancelhas indicando que estou

um pouco constrangida.

E, é claro que Guilhermo se diverte.

Até a chegada da minha mãe e do meu pequeno, ele estava com a


expressão de que estava com muita pressa. Mas agora parece que quer sim
entrar.

— Certo, vou aceitar o convite, porque tenho algo a tratar com você.

— É claro. — Sou eu quem arregala os olhos agora, após ouvir isso. —


Pode vir!

— Ok.

A porta do motorista dele abre de uma forma diferente das outras, ela
sobe completamente e então o banco dele é projetado para fora e desce por
uma espécie de elevador. Antes disso Guilhermo pega a cadeira de rodas
desmontada atrás de seu banco e a monta quando chega ao chão.

— Precisa de ajuda? — Coloco Phellippo no chão e me aproximo.


— Não, tudo bem, eu sei me virar. — Ele balança os ombros, monta a
cadeira com muita habilidade e passa do banco para ela se equilibrando e de

um jeito rápido.

— Uau! — Os olhos do meu filho brilham quando acompanha tudo


isso. — Seu carro é legal!

— Você gostou? — Guilhermo assiste a poltrona subir e retornar para

dentro, depois puxa a porta e fecha o veículo. — Depois podemos dar uma
volta, o que acha?

Imediatamente ele me encara, ansioso, buscando a aprovação.

— Sim! — Meu filho diz muito animado.

Não consigo descrever o alívio que sinto por eles terem gostado um do
outro.

Meu filho é bastante territorialista e o mais velho não para de encará-lo

com curiosidade. Agora presta atenção nos gestos que a criança faz, meu
filho é e sempre foi muito expressivo. Papai dizia que ele falava com as
mãos, tanta paixão com que se exibia enquanto falava.

— Vamos! — Convido-o com um aceno de cabeça e vamos para dentro


de casa.

Peço todas as desculpas possíveis por não haver jeito dele entrar pela
porta da frente. Há uma pequena escada para alcançar a entrada e Guilhermo
se recusou a aceitar qualquer ajuda para subir, então fomos pelos fundos,
direto do quintal para a cozinha.

— Bem-vindo à minha humilde casa. Não repare na bagunça.

Dizer isso praticamente faz parte da cultura brasileira, mas dessa vez há
uma bagunça mesmo: as lajotas da cozinha foram quebradas com martelos, as
janelas estão em estilhaços, alguns móveis totalmente destruídos.

O olhar dele não esconde o espanto conforme passa da cozinha para a


sala, onde eu abro espaço para que ele fique diante de mim no sofá.

Estou tão envergonhada que fico muda.

— O que está aprendendo na creche, PH? — ele pergunta.

— Comer a merenda. — Ele conta nos dedinhos. — Brincar um monte


e guardar os brinquedos!

— Que legal! — O adulto avalia.

— E pintar… cantar assim: o sapo não lava o pé, não lava porque não
quer — ele se engancha em algumas palavras, mas canta bem alto e animado,
balançando as mãos.

— Parece muito divertido. Você gosta da creche?

Meu filho balança a cabeça freneticamente.

— Vai todos os dias?


— Sim!

— Bem que você tem cara de menino inteligente — observa. —

Continue indo à escola!

Novamente ele sacode a cabeça e fica rindo.

— Phellippo, vem ajudar a vovó! — minha mãe grita da cozinha e ele

sai em disparada.

Ao ouvir o nome do meu filho, a feição dele volta a mudar. Guilhermo


pisca os olhos devagar e acompanha o pequeno correr de volta à cozinha, só
abaixa as sobrancelhas quando me encara, como se tivesse visto um
fantasma, ou algo assim.

Continuo sorrindo feito boba ao ver o meu filho correr e fico pensando
o quão surreal é essa cena. Esperei tanto tempo por um momento assim, que
não sei o que sentir…

Tudo bem que Guilhermo e eu não temos nada. Mas o fato dele não
menosprezar meu filho ou até mesmo fingir que ele não existe, já me faz
sentir bem.

— Essa bagunça… — Quebro o silêncio, desconcertada. — É uma


longa história…

— Invadiram sua casa? — ele diz, de bom humor. E ao examinar


minha feição de que seu palpite está certo, fecha o cenho. — O que houve?
— Meu irmão se meteu com coisa errada enquanto estive em Fernando
de Noronha… aí vieram aqui e destruíram quase tudo, levaram coisas de

valor também…

— E o que vocês ainda estão fazendo aqui? Ao menos foram à polícia?

— Nós estamos resolvendo tudo. — Tento tranquilizá-lo, mesmo que


eu não esteja tranquila.

— Mas como continuam aqui? Não tem medo de que retornem?

A minha resposta é um sincero e desajustado balançar de ombros.

— Precisam de alguma coisa?

— Não, não… eu sou igual a você, sabe… eu sei me virar. — Sorrio de


um jeito afiado. — Não gosto de aceitar a ajuda dos outros...

Ele não é o rei que não aceita a ajuda de ninguém? Então quero que ele
saiba a sensação de como é quando outra pessoa quer ajudar e não querem

aceitar.

— Mas é seguro ficar aqui?

— Até agora sim. Não se preocupe…

— Ok… — ele assopra devagar, após uma longa vista panorâmica do


ambiente. — Como está a sua cabeça? Está bebendo muita água?

Agora que ele perguntou, confesso que dói um pouco. E não bebi muita
água, desde que acordei, mas tomei café em praticamente todas as casas em

que fui vender vibradores.

— Sim — minto.

A desaprovação dele vem de imediato.

— Não sabe mentir — empurra a cadeira em direção à cozinha e só

volta de lá com uma jarra numa mão, copo no colo e a outra mão guiando
com maestria em minha direção. — Beba — diz como se fosse uma ordem.

Faço o que ele manda e fico massageando a minha cabeça.

— Devia ter falado disso tudo na noite passada… você chegou bem
tarde, sua mãe devia estar muito preocupada…

Tento minimizar a situação com um aceno e volto a beber.

— O que achou do PH?

Guilhermo levanta as sobrancelhas e umedece os lábios com a língua.

— É um menino cheio de energia… e tem as suas bochechas… E...


gostei do nome dele. Bem italiano...

— Sim! Eu lembro de ter ouvido ou visto em algum lugar, me


apaixonei na hora pelo som...

— Era o nome do meu avô. — Guilhermo coça a ponta do nariz


enquanto me avalia.
Massageio as maçãs do rosto e faço um bico, não tenho bochechas tão
grandes assim!

— Já começou aquela fase de inventar amigos imaginários? —


pergunta.

— É claro! Ele sempre está falando… esteja acompanhado ou sozinho


— rio.

— E há quanto tempo ele está na creche?

— Começou ano passado, quando tive que assumir as coisas da


família… assim eu me concentro melhor e ele se entretém com outras
crianças e aprende coisas novas…

— Sim…

Não sei por que, mas sinto um alívio quando tratamos de uma forma
tão natural sobre esse assunto. Acho que depois de tantos nãos e caras

babacas, estar conversando com um que age de forma digna e adulta, me


deixa surpresa.

— E o PH quer um irmão… ou uma irmã? — Ele arqueia a sobrancelha


de um jeito sinuoso que mostra que sua pergunta vai além do que quis dizer.

— Ele quer, sim…

— E o que estamos esperando para dar esse irmãozinho ou irmãzinha


para ele?
Eu sabia! O safado vai direto ao ponto.

E não tenho outra reação além de rir e ficar balançando a água no copo.

— Brincadeiras à parte… se você ou sua família precisarem de algo,


não hesite em me ligar.

— Pode deixar.

— Você tem um e-mail que use para me passar? — A pergunta é


inusitada. E eu rapidamente passo para ele.

A notificação chega em meu celular num piscar de olhos.

— Não faço ideia se você possui algum acordo com a Heloísa, mas me
adiantei em eu mesmo produzir um acordo.

O arquivo em PDF é gigantesco. E seu título é: Contrato de


Casamento.

— Guilhermo, eu reforço que discordo de tudo que a Heloísa está

fazendo…

— Tudo bem — ele diz de bom humor. — Ainda assim, sou um


homem prático e que gosta de ter tudo sob controle. E como já fizemos um
contrato antes, quando comprei sua virgindade, creio que não será problema
um novo contrato — ele diz a parte da virgindade com a voz reduzida, ainda
assim meu coração acelera.
Leio alguns termos enquanto deslizo os dedos.

— Você colocou tudo o que disse ontem à noite, no jantar.

— Sim. Que serei um bom pai e que me dedicarei para te proteger,


cuidar de você e estar aberto a te amar. Mas precisamos começar as tentativas
desse bebê o quanto antes.

Eu que pensava que não podia ficar com o coração mais desregulado,
agora sinto um calor insuportável me subir, coço as orelhas e continuo a
deslizar o dedo pela tela do celular.

— Tem um espaço em branco a respeito do dinheiro… Que dinheiro é


esse?

— Yasmin, quanto você quer para ter o nosso filho?

— Como assim?

— Diga um valor. Qualquer valor. Seja generosa consigo mesma, pois

eu tenho muito dinheiro guardado e estou disposto a cobrir a oferta da


Heloísa.

— Mas precisa disso?

— Só quero lhe mostrar o quanto levo a sério o fato de que todo o


trabalho do Lamarphe seja preservado, essa é minha única condição. Ele se
dedicou a vida inteira nisso, não posso permitir que caiam em mãos erradas.
Então tudo o que peço é a parte do hospital, os direitos autorais de sua
produção científica, por qualquer meio, e só. Mansões e dinheiro serão do
nosso filho.

Uau. Ele realmente leva muito a sério essa questão…

— Espero que entenda as minhas motivações…

Na verdade, eu entendo. Faria qualquer coisa para proteger as peças

valiosas que o meu pai produziu, e roubaram.

Creio que essa pode ser a oportunidade de recuperar tudo.

— Vou precisar conversar com a Heloísa…

— Fique à vontade. Quando estiver pronta, traga o contrato assinado e


com o valor que quer. Eu vou transferi-lo imediatamente para sua conta.

— E depois? — O contrato é tão longo que vou precisar consultar


alguns advogados também.

— Depois você se muda para a minha casa. Pode levar a sua família

e… sua amiga. E vai viver como a minha mulher.

— Tudo bem… é muita coisa a pensar…

— É sim — Guilhermo assente. — E após assinar, não tem como voltar


atrás.

— Sim, já assinei um contrato desses no passado. — Evito olhá-lo


enquanto estou vermelha.
— Então sabe como as coisas funcionam comigo.
“Se estiver tudo errado, comece novamente”.

— Fernando Pessoa.

DEZ DIAS DEPOIS


Guido,

Quando era criança, meu pai me contava uma história.

Dizia ele, que o pai dele dizia, que quando os antigos navegavam em

direção à guerra, eles queimavam os seus navios – coisa que séculos depois
os Vikings e até mesmo os conquistadores espanhóis fizeram ao chegar ao
“Novo Mundo”.

Assim, eles tinham uma única certeza: só há uma forma de voltar para
casa – vencendo a guerra.

Fugir não é opcional.

Perder não é opcional.

Se render não é opcional.

Os generais sabiam que, o que todo guerreiro quer no final das contas,
não é vencer a guerra, mas sim, retornar para sua casa, ser abraçado por
aqueles que o amam e respirar o final de sua aventura.

Neste momento, você deve me odiar.

Ainda assim, queimarei todos os seus navios.

Para que você encontre seu verdadeiro lar.


Não fuja!

Não perca!

Não se renda!

Após vencer a guerra, sua última tarefa é reconstruir sua embarcação


e voltar para casa.

O meu pai me fez prometer, e a todos os meus irmãos, que um dia


passaríamos essa história para nossos filhos. E agora te incubo dessa
missão.

Queime os seus navios!

E depois volte para seu verdadeiro lar.

Com profundo amor,

Alfredo Lamarphe.

Ayslan confere a mensagem que recebi em meu e-mail.

— Então foi isso que te impulsionou a pedi-la em casamento, semana


passada?

— Agora o fantasma do velho voltou para me assombrar — rio de


minha própria desgraça. — Então decidi tomar as rédeas da situação. Não

vou deixar que as coisas saiam do controle — respondo.

— Estou surpreso de que você partiu logo para um pedido de


casamento. Esperto..., mas arriscado. Será que vale à pena se prender a
alguém assim? — Ele ergue as sobrancelhas grossas. — Porém... essa é uma
forma de garantir que nada fique para a tal Heloísa. Mas me diga, a Yasmin

ainda não te respondeu?

— Não. — Tamborilo os dedos na mesa da sala da vice-presidência,


que estou ocupando temporariamente.

— Então já perdeu 10 dias?

— Não me lembre isso.

— Amigo, perdoe a minha ingenuidade, afinal de contas hoje eu sou


mais cirurgião plástico de vaginas do que obstetra. — Ele amarra os cabelos
em um coque frouxo no topo da cabeça. — Mas é tão fácil assim engravidar

em 77 dias?

— O que quer dizer?

— Estamos levando em consideração que vocês dois estão saudáveis e


aptos para terem filhos. Como está a qualidade do teu esperma?

— Quê? — Arregalo os olhos quando ele pergunta, fico ainda mais


apreensivo quando tira os óculos redondos e os sobe para o topo da cabeça.
— Tira o pau para fora, deixa eu dar uma examinada.

— Ficou maluco?

— Quando foi teu último exame de rotina? E as ereções, estão em dia?

— Sim, meu pau fica duro, se é isso que quer saber!

— Ótimo. Depois é saber como está a saúde dos óvulos dela e…

O olhar que lanço a ele, só de imaginar que ele pode examiná-la, já diz
tudo.

Ayslan percebe que é uma péssima ideia.

— Inseminação é uma opção?

— Sim, Ayslan, inseminação é uma opção, se ela não ovular…

— Então… é que você sabe que engravidar não é tão fácil, não é? Ela
precisa estar no período fértil e…

— Ayslan, eu sou médico também, podemos parar de falar disso?

Ele cruza os braços e apoia o corpo na mesa.

— Você sempre fica tenso quando falamos dessa Yasmin... — Ele coça
a barba e me observa por um longo período. — Quando acordou do coma e
perdeu parte da memória, só lembrava dessa tal Yasmin...

Agora sou eu quem cruza os braços.

— Todos nós achávamos que era um delírio seu... inclusive o fato de


você descrevê-la tão bem... devo admitir que não acreditava na existência
dela, até você me levar à praia em Noronha e me mostrar que ela era real.

— Eu disse a você que a tinha encontrado. — Balanço os ombros.

A verdade é que reencontrar Yasmin foi estranho.

Nos três primeiros meses após acordar do acidente, eu só me lembrava

dela. Não reconhecia os rostos dos meus familiares, também não reconhecia o
rosto da minha mulher, só o de Yasmin.

Ela me perseguia nos sonhos. E a minha imaginação sempre me levava


a ela.

O que foi completamente engraçado, pois quando recobrei a memória,


me lembrei de só termos contato uma única vez.

Ao reencontrá-la, uma parte minha parece que tomou vida novamente.

Eu consegui sair da prisão interna que me coloquei, que vai além de

estar confinado a essa cadeira de rodas.

— E agora... isso. Seu destino está nas mãos dela... ou melhor... no


útero dela —Ayslan se diverte.

Ele semicerra os olhos e anui devagar, afasta-se da mesa e pega o


jaleco.

— Bem… só espero que ela ligue rápido, pois são 3 meses para colocar
esse neném no forno…, mas são em média 6 dias férteis… o que diminui

suas chances para… 18 dias. Isso se ela já não estava em um período fértil e

saiu…

— Eu já fiz tudo o que podia — lamento.

Dois anos da vida lutando para recobrar o controle de tudo, e aí vem


essa mulher e me faz perder o equilíbrio. E a falsa sensação de estar

arrumando a vida, se desmancha.

— Vamos pensar pelo lado positivo, se ela demorar, ao menos você é


rico para fazer uma inseminação. Então boa sorte! — Ele acena com o bip
médico que pisca sem parar. — O dever me chama, amigo! — ele diz e sai da
sala.

Vivi dez dias de completa agonia.

Heloísa não respondeu nenhuma das minhas mensagens ou ligações,


após eu tê-la procurado para falar da oferta de Guilhermo.

Ela só disse que traí sua confiança e estava roubando sua herança…
Isso me deixou mal nos primeiros dias, mas depois refleti que a herança
era de direito da família de Guilhermo. Sem falar que, caso tenhamos um

bebê, isso significa que permanecerá com sua família.

— Bom, vamos lá… — Patrícia senta comigo na mesa da cozinha. —


Li todo o contrato e tenho observações.

Ela é a minha advogada, não posso arcar com custos advocatícios agora

e confio cegamente nela.

— Você administrará toda a herança do filho, até que ele assuma


maioridade. Achei interessante, ele colocou praticamente todo o poder em
suas mãos.

Aceno com a cabeça, incerta sobre o que vem a seguir.

— Você precisa estar disposta a querer fazer esse bebê…

— Eu quero…

— Eu sei, vi como olha para ele. E o fato dele ser cadeirante…?!

— O quê?

— Não sei. Acha que tudo bem?

— Não é assim que o vejo, ele é muito mais do que um cadeirante, para
mim... — Balanço os ombros.

— Certíssima, deitado todo mundo é igual. — Patrícia faz umas


anotações no caderninho. — Ele também propõe cuidar de você e da sua

família, foi tão gentil que até me incluiu!

— Olha só… — Confiro o trecho.

— Amiga, no geral parece uma excelente proposta, já que você está


disposta a ser mamãe novamente.

— Tá, diga os prós e contras.

— Prós: Vai conseguir todo o dinheiro para pagar a burrada do seu


irmão e recuperar seus vestidos e meus vibradores. Ele gostou do PH e pode
ser uma figura masculina boa para o pequeno. Ele deixa bem explícito no
contrato que gostaria que você retornasse à universidade e se formasse,
também coloca que vai ajudar financeiramente a reerguer o ateliê do seu pai e
conseguir bons clientes para as peças…

— Parece que tudo está a meu favor… — Apoio o rosto com as mãos.

— E vamos aos contras: Heloísa nunca vai te perdoar. E o Guilhermo


me parece ser um homem meio frio e independente demais...

— É, nunca aceita ajuda, nem nada do tipo. E não sei se ele está pronto
emocionalmente, sabe? Perdeu a mulher em um acidente, a filha estava na
barriga dela… tenho medo dele não conseguir se abrir… eu adoraria ser mãe
novamente, mas quero me conectar com alguém… quero ter tudo que não
tive com o pai do Phellippo!
— Tá bem, Cinderela — Patrícia desdenha. — Heloísa não retornou
nenhuma ligação? Não enviou nenhuma mensagem?

— Não.

— Também está me ignorando — ela avalia. — Então é isso, creio que


tudo esteja em suas mãos… eu fecharia o acordo, se fosse você e tivesse o
sonho de constituir uma família…

— Então o que eu faço, amiga?

Com um único olhar, ela me diz tudo. Coloca o contrato impresso


diante de mim, com uma caneta em cima. Também arrasta meu celular, em
cima da mesa, para ficar ao lado da papelada.

— Você faz o que precisa ser feito...

Yasmin decidiu fazer um grande suspense e me disse que daria sua


resposta em minha casa.

Enquanto retornava para o lugar que eu sequer lembrava da última vez


que havia ido, fui acometido por vários sentimentos no caminho.
A maioria dos móveis estavam cobertos por capas brancas. Parede,
chão e teto estavam impecavelmente lavados, com cheiro forte de produtos de

limpeza. Ao abrir portas e janelas, o ambiente pareceu respirar de alívio. Não


descuidei de nenhum momento da manutenção do lugar, mesmo sem voltar
nele.

— Sentiu saudades do lugar?

A voz feminina quase me tira do lugar.

Sou arrancado de meus próprios pensamentos e manobro a cadeira em


uma meia volta, de olhos arregalados.

Sou nocauteado por outra lembrança: Yasmin de calça jeans, o cabelo


escuro em um rabo de cavalo, pouca ou nenhuma maquiagem em seu rosto,
só os lábios vermelhos feito sangue.

Quando nossos olhares cruzam, ela sorri e dá uma leve inclinada para o
lado, tira a mochila das costas e joga ao pé da porta.

— O que foi, o gato comeu sua língua? — Ela se aproxima.

— Como entrou?

— Ah, você se esqueceu de fechar o portão e a porta. — Balança os


ombros. — Essa árvore — Yasmin mostra com o rosto. — Eu juro, essa deve
ser a coisa mais exótica que já vi numa sala de casa.

A árvore que o velho Lamarphe plantou está um pouco seca e


descuidada. As poucas folhas que lhe restaram, parecem prestes a cair. Fito
rapidamente seus galhos secos, até sua raiz.

— Foi um presente de boas-vindas, quando cheguei ao país — comento


alto e volto a encará-la. — Espero que tenha uma resposta para a minha
proposta...

— Tenho sim — ela diz após um suspiro.

— Você demorou em me ligar, pensei que tinha desistido...

— Seu contrato era muito grande e minha advogada precisou ler


minuciosamente cada linha.

— Não confia em mim — sorrio de canto.

— É óbvio que não — ela sorri do mesmo jeito, jogando seu charme.
Pisca os olhos grandes e caminha na direção da poltrona diante de mim. —
Está pronto para ouvir a resposta?

Não sei por que cada parte de mim fica em alerta quando a vejo. É
como se sem querer eu saísse do lugar ou se meu estômago se comprimisse
de uma só vez.

Tento manter a expressão séria, mas estou tenso.

— Você tem muitas exigências. Quer que eu volte a estudar, quer que
eu venha morar aqui, quer que eu tenha um filho com você o quanto antes...
— É — meneio a cabeça.

— Posso aceitá-las, mas tenho as minhas exigências também.

— Estou ansioso para ouvir.

— Eu quero te conhecer, de verdade. Não quero repetir os mesmos


erros do passado, não quero ficar grávida de um cara sem nem saber direito

quem ele é. Isso inclui, é claro, que você aceite a minha ajuda quando for
preciso. Sei que é independente e quer mostrar que consegue fazer as coisas
sozinho..., mas eu sinto que isso cria uma barreira entre nós.

— Justo.

— E eu tenho uma lista de coisas para fazer antes de engravidar, e


algumas delas incluem você.

— Quais tipos de coisas?

— Ah, você vai descobrir — rio. — E por último e não menos

importante: gosto da minha casa. Quero ficar lá.

— Yasmin, isso é inegociável...

— Por que? — ela se exaspera.

— Haviam buracos de bala no muro da sua casa e ela estava toda


destruída por dentro. Não vou permitir que a sua segurança ou da sua família
fique em risco.
— Não estamos mais em risco, o pior já passou...

— Eu não vou arriscar — digo, resoluto.

— Então temos um problema para assinar esse contrato... e o tempo


está passando... — ela me provoca.

— Pense no PH. Ou na sua mãe. Não vale à pena se expor a um risco

desses assim... — Tento ser sensato, depois é claro, de massagear as testa


com a ponta dos dedos.

— Estou pensando... e eu me sentiria mais confortável em ficar lá. Mas


se acontecer alguma coisa, eu dou a minha palavra que posso pensar em vir
para cá.

— Você é muito cabeça dura — avalio.

— Isso te assusta? — Ela se diverte, passa as duas pernas pelo braço da


poltrona e me observa de lá. — Eu sou o tipo de mulher que sai de casa para

fechar contrato, Guilhermo. Sabe o que isso significa?

Aceno negativamente, muitas coisas vêm à ponta da língua, mas prefiro


guardá-las para mim.

— Vou te dizer então o que isso significa.

Prontamente ela desliza o zíper da jaqueta preta para baixo. Tudo o que
consigo enxergar a partir dali é o sutiã vermelho muito chamativo em sua
pele clara. Num plano de fundo, com a visão mais turva, vejo o sorriso de
vitória nos lábios dela.

— Ao que parece, você é uma mulher muito prática e decidida.

— Não faça essa cara de surpresa, Guilhermo, você sabe muito bem
que sim.
“Sexo é escolha, amor é sorte”

— Rita Lee.

Eu me lembro da primeira e última vez que estive nessa casa.


Quando cheguei aqui, eu ainda era uma menina.

Estava amedrontada e incerta sobre o que deveria fazer, ainda assim o

fiz. A minha família precisava do dinheiro para se reerguer e eu agarrei a


oportunidade que apareceu, sem imaginar que encontraria esse homem.

Sinto o nó e a garganta seca, como senti daquela vez, quando o vi.

Alguma coisa no olhar de Guilhermo me deixou cativa, no primeiro


instante que nos vimos. Meu corpo começou a reagir antes de seus toques ou
beijos, apenas um olhar me fez suspirar e suar, perder o controle da minha
própria respiração e ficar paralisada.

Saí daqui uma mulher.

Aprendi tantas coisas naquela noite sobre a vida, corpos e desejo que
nada mais foi o mesmo. Minhas expectativas foram às alturas, porque a
minha primeira vez me surpreendeu e ninguém conseguiu suprir minhas
vontades após aquele momento.

Será que Guilhermo, mesmo quatro anos depois, seria capaz de me


fazer sentir aquilo que procuro?

—Bella donna.

A minha audição se lembra.

Uma corrente elétrica percorre meu corpo de imediato, não sei onde
começa, só sei que deixa um rastro quente pela minha espinha e se expande
em meu baixo ventre. Suas duas palavras ficam ecoando em minha cabeça e
antes de estender o pé em sua direção, é como se eu visse a jovem Yasmin

indo em sua direção.

Não consigo parar de encará-lo.

Dentro de mim, fiquei questionando se ele era apenas uma miragem ou


invenção da minha cabeça; mas em tudo Guilhermo era igual ou muito

melhor do que eu me lembrava.

Seu olhar duro e carrancudo não me dava medo, assim como sua barba
bem feita mesclada com fios brancos faziam meus pelos do braço se
eriçarem.

Ele não desvia o olhar quando me encara.

E eu resisto a tentação de virar o rosto, piscar ou abaixar a cabeça.

A simples presença de Guilhermo mexe comigo, de uma forma que eu

pensei por anos que já não era mais possível. No silêncio que precede a
aproximação dos meus passos, sinto o coração vibrar até as extremidades do
meu corpo.

Tudo em mim parece aquecer, florescer e queimar.

E o silêncio do seu olhar me deixa profundamente inquieta, ao mesmo


tempo que eu recobro o quão mulher me tornei.

E o quanto esperei por esse momento.


O momento em que me entregaria de novo para alguém que merecesse
cada parte de mim.

Seria Guilhermo esse homem?

Eu sinceramente não sei. Jurei a mim mesma que nunca mais veria esse
homem, desde que me deixara um bilhete que feriu meus sentimentos, na
manhã seguinte que fizemos sexo. Mas a cada encontro e reencontro recentes,

eu sentia que precisava de um pouco mais... conhecê-lo... desvendá-lo...


talvez pela vontade infantil de recriar as mesmas sensações do passado, ou
desvendar as coisas estranhas que senti ao encarar seus olhos prateados.

— Como se trava uma cadeira de rodas? — pergunto junto a um


suspiro.

Quando ouço o som da minha própria voz, percebo que estou tremendo.

Mas refletida nos olhos dele que brilham diante da minha imagem, vejo
uma mulher confiante e que é sexy.

Deixo de lado as questões em minha mente e me curvo quando ele


aponta para a pequena alavanca, empurro sua cadeira sem cortar nosso
contato visual e a estacionado ao lado da poltrona, travo-a ali mesmo.

Refletido em sua íris vejo uma mistura do sorriso da menina que eu fui
e da mulher que sou.

E por mais que uma parte de mim tenha medo de prosseguir e se


decepcionar, outra parte quer sentir e perder os sentidos.

Quer arriscar e ser inebriada pelo desejo.

— O que está fazendo? — Vejo sua sobrancelha se erguer.

Seguro com firmeza em seu ombro largo e passo uma perna por cima
do colo dele, num impulso sento em sua coxa e massageio devagar com a

ponta dos dedos por cima da ombreira do terno preto.

— Estou cumprindo a minha parte no contrato do casamento, contanto


que você esteja disposto a cumprir a sua parte também.

— Onde assino? — Vejo seus lábios se expandirem em um sorriso


maldoso.

Seus olhos descem para meus seios, depois minha cintura. E eu o ergo
seu queixo com o dedo, para encará-lo com seriedade.

— Me dá a sua palavra de que concorda.

— Eu concordo — ele assente.

Deveria colocá-lo para assinar os papeis que trouxe, de minha


contraproposta.

Mas agora que cheguei aqui, não quero sair.

Ainda mais quando sinto sua mão subir pelas minhas costas, puxando
meu corpo em direção ao seu.
Sinto o nariz pontudo de Guilhermo tocar meu abdômen, isso faz um
pouco de cócegas, mas também deixa meu corpo aceso. Ainda mais quando

percebo que ele acabou de desfivelar o meu sutiã.

Ao levantar o rosto e me encarar, seu nariz esbarra no meu e de certa


forma me empurra com leveza. Como não nego, ele prossegue no que faz.

Não tenho vergonha de ficar nua diante dele, mas fico apreensiva. Não

tenho vergonha do meu corpo, mas agora me questiono só por um momento


se ainda pareço de perto a menina que já fui um dia e ele desfrutou.

— O seu silêncio me consome — rio baixinho, sou calada antes de


terminar a frase, quando sinto o beijo quente em minha pele, sua barba de
certa forma me arranhar e suas mãos me apertarem com possessividade.

— Acho que esqueci como se fala em português por um momento —


ele pondera.

Fecha os olhos e respira fundo, sobe o rosto em minha direção.

— Você é perfeita.
O ser humano é incapaz de inventar rostos enquanto dorme.

Todas as pessoas com quem sonhamos, passaram diante dos nossos

olhos, seja em um esbarrão no metrô ou na fila do supermercado.

Nesse momento a minha memória fica atiçada, pois por muito tempo eu
sonhei com o rosto de Yasmin, mesmo sem lembrar quem ela era. E era um
sonho tão vívido e real que eu lembro dos seus longos cílios piscando quando

sentada em cima de mim, da textura da sua pele macia que facilmente se


arrepia ao meu toque, ou seu cheiro que me desperta fascínio.

— Eu quero ter o seu bebê — ela sussurra e atiça meu corpo.

Desde o acidente em que fiquei paraplégico, preciso de algum estímulo


físico mais direto para ficar excitado.

Desde o reencontro com Yasmin, quando a vi e ela caiu em meu colo,


isso mudou de alguma forma.

Não é apenas a mente que guarda as memórias, a pele também. A ponta


dos dedos, a palma das mãos, os lábios sedentos... ao tocá-la, sinto as
lembranças criando cor e vida diante de mim, assim como meu corpo reage
de imediato.

Na menor menção de que faço para tirar o terno que já estava


desabotoado, Yasmin ri e me impede. Desce as mãos pelo meu corpo e faz
questão de abotoá-lo, bem devagar.
— O que está fazendo? — A menor sensação de algo saindo ao meu
controle já me deixa em alerta.

— Não me leve a mal, Guilhermo, eu adoro te ver nu — ela sorri,


maledicente. — Mas você de terno... — Me avalia com um aceno de cabeça.
— Mexe com a minha cabeça...

Ela também mexe com a minha.

É capaz de furtar meus pensamentos, interromper meu fluxo de


concentração e povoar a minha imaginação de formas que prefiro guardar
apenas para mim.

Yasmin se inclina um pouco para trás quando começo a beijar seu


corpo lentamente, sua pele quente precisa ser desfrutada devagar e eu me
divirto com as leves marcas vermelhas que deixo por onde passo.

Ao chegar em seus seios e capturá-los com a língua, sinto-a estremecer


em cima de mim.

— Ahh!

Suas mãos seguram com firmeza em meus ombros e ela rebola tão
devagar que se torna incômodo sentir o pau latejando dentro da calça, louco
para sair.

Não me recordo da última vez que me senti tão excitado.

Na verdade, lembro sim. E precisei me jogar na piscina para apagar o


fogo, mas não consegui.

E agora, abrindo bem a língua para saborear o mamilo entumecido e

depois sugá-lo devagar, sinto meus instintos animais começarem a tomar o


completo controle de minhas ações.

Ouvir seus gemidos baixos e perceber que ela está aproveitando e


gostando, me deixa com ainda mais tesão.

Alcanço o pescoço e deixo um rastro de beijos pelo caminho, até


alcançar sua boca. Seguro com firmeza no queixo e sinto os seus lábios se
entregarem aos meus com delicadeza e lentidão, fazendo meu coração
disparar numa maratona em que estou parado.

O perfume de Yasmin que agora toma conta dos meus pulmões, me


deixa ainda mais cego de vontade.

Eu a quero de uma forma que não lembrava querer qualquer outra


coisa. Eu a desejo como um lobo deseja saciar sua fome, não importa o que

tenha de fazer.

Ela subitamente se afasta e levanta, a princípio fico tenso pensando que


vai fugir, mas na verdade ela retira a calça jeans com alguns puxões, quase
caindo para o lado. Se antes era impossível parar de olhar para seu corpo,
agora ela é tudo o que há na casa inteira.

A calcinha vermelha da mesma cor do sutiã até parece que deixa o meu
sangue mais quente no cérebro, e a cinta liga tão justa que se estende em uma
longa meia de renda não ajuda em nada.

Eu vou ficar louco, se é que já não estou. E vou sucumbir rápido aos
meus delírios.

— Ei!

Vejo-a chutar a calça para o lado e sair correndo pela casa, rindo como
se fosse algum tipo de brincadeira.

Por um milésimo de segundo me sinto inseguro.

Não posso simplesmente levantar da cadeira e correr para alcançá-la.


Um frio dolorido percorre minha espinha e eu me sinto incapaz.

Se ela fugir de mim, como faço, se não posso correr e tomá-la em meus
braços?

Dura um milésimo de segundo. Tempo suficiente para me lembrar do

quanto a quero e que não preciso por os pés no chão e correr para tê-la de
volta.

Destravo a cadeira imediatamente e seguro firme nas rodas, vou em seu


encalço.

— Aonde pensa que está indo?

— Você não me quer? Então venha me pegar! — ela provoca.


Não deveria fazer isso...

Fugir, se esquivar, tentar se afastar de mim... agora já é tarde.

Sou o tipo de homem compulsivo, quando algo desperta a minha


atenção e eu a quero, consigo custe o que custar.

Acho que não teria forças e ficaria travado no lugar, se isso ocorresse

com outra pessoa.

Mas é ela.

A mulher dos meus sonhos. O primeiro nome que veio à minha boca
quando despertei do coma. A lembrança de um dia inesquecível.

Não tenho opção de ficar parado. Minhas mãos rapidamente guiam a


cadeira para alcançá-la.

— Acha que se esconder atrás de móveis vai me impedir de te pegar?


— Seguro com firmeza nas rodas da cadeira e fico pendendo para seguir para

a direita ou esquerda.

Yasmin está do outro lado da mesa de mais de doze lugares, seus


cabelos escuros e grossos balançam contra o vento conforme tenta me
enganar para que direção vai seguir.

Não é fácil manobrar a cadeira estando excitado e com a glande


latejando a um ponto de me fazer ranger os dentes e persegui-la de volta para
a sala da casa.
Só acho que houve um erro de cálculo da parte dela.

Nunca que ela conseguiria correr mais rápido do que duas rodas e esses

braços empurrando.

Agarro-a pela mão e a puxo de uma só vez em minha direção, por mais
que ela pense que vai se sentar em meu colo, eu a agarro e a jogo por cima do
meu ombro. Estapeio sua bunda com força e escuto o som ecoar por todo o

longo cômodo.

— Não brinque comigo! — reclamo.

Contenho a vontade de marcar sua nádega com uma mordida ao ranger


os dentes.

E a diaba ri, como se aquilo tudo fosse muito divertido.

— Vamos fazer de novo!

Meu coração perde o compasso e eu não paro um instante para recobrar

o ar.

Quando a vi correr, parece que mais uma vez a tinha perdido,


deixando-a escorregar pelos meus dedos. A adrenalina que tomou conta do
meu corpo quase me fez saltar para fora da cadeira e correr em sua direção,
como se eu pudesse.

Não precisei disso, entretanto, consegui tomá-la de volta em dois


tempos.
Jogo-a contra a poltrona e ela cruza as pernas quando suas costas
encontram o apoio. Eu rapidamente abro suas pernas e avanço lentamente,

encarando-a no fundo dos olhos.

— Foi divertido, vai! Vamos fazer de novo!

Quantos anos ela acha que tem?

E por que eu estou rindo, como se quisesse fazer tudo isso de novo, só
para sentir o desespero, a adrenalina e a vitória novamente?

— Vamos fazer o meu jogo agora. — Minhas mãos sobem


cuidadosamente pela fina renda até alcançar a calcinha.

Yasmin para subitamente, tensa e alerta aos meus movimentos.

Para garantir que não vai fugir novamente, tomo por bem, segurá-la no
lugar, enquanto meu rosto sobe pela parte inferior de suas coxas, até chegar
na cinta liga, observo que sua calcinha está bem úmida e isso parece um bom

sinal.

Meio segundo facilmente se torna uma hora inteira enquanto me


aproximo dela e consigo lembrar com perfeição dos detalhes da nossa
primeira noite.

— Não precisa de camisinha dessa vez... — Ela mexe as sobrancelhas


rapidamente.

O jeito extrovertido que ela age diante da situação me diverte muito.


Puxo-a pelas pernas para que desça um pouco mais e eu possa alcançá-
la com mais facilidade. Ignoro o desconforto de ficar pendendo o corpo para

frente.

Ao afastar sua calcinha com os dedos, sinto que está realmente


molhada e com a ponta da minha língua, avanço um pouco mais até ouvi-la
gemer e sinto seu sabor inconfundível em minha boca.

Não vejo outra saída além de puxar sua calcinha até o meio das pernas
e afundar meu rosto para me inebriar de uma vez só em sua vagina.

Yasmin parece que fica mole ou perde o controle do próprio corpo.

Numa rápida olhada por cima de sua virilha, vejo que está de olhos
fechados e se afundando na poltrona, enquanto eu vou o mais fundo que
consigo, em um leve movimento que contorna primeiro seus lábios, depois
toda a sua boceta e por fim tento ir o mais fundo que consigo.

Afasto-me bastante babado e com o rosto impregnado com o cheiro

dela, acho que não poderia ser melhor do que isso.

Antes que ela diga mais alguma coisa, volto a beijar e lamber
suavemente sua parte mais sensível, seguro e aperto suas coxas, tentando
abrir cada vez mais suas pernas, para chegar o mais fundo que conseguir.

É quase insuportável agora sentir essa maldita ereção. Não tem jeito,
senão abrir o zíper e abaixar a cueca o quanto posso. Sentir o pênis pular para
fora da calça dá uma sensação de alívio e me faz respirar com mais
tranquilidade, mas em seguida sou acometido por outra sensação incômoda:

não estar dentro dela. E é quase tão insuportável quanto o aperto da cueca.

Acho que ainda estou cego pelo tesão, pois quando penso em segurar
na cintura e virá-la na poltrona, na verdade já fiz isso. E estou puxando-a em
minha direção, esfregando com força a glande inchada em sua vagina

molhada e quente.

— Por favor, vá devagar no início... — ela pede, o rosto afundado na


poltrona.

Até parece que não me conhece...

— Eu te disse uma vez que cuidaria bem de você. — Aliso suas costas,
até chegar em sua nádega. — Não vai ser diferente agora.

— Ok — Yasmin diz em um tom manhoso.

— Empina mais essa bunda. — A ajudo nisso com as minhas mãos.

De imediato consigo sentir sua entrada, não sei o que vem primeiro, a
sensação da cabeça do pau preenchendo a vagina ou o gemido alto que
Yasmin dá.

— Lembre-se de respirar — sussurro.

— Eu estou tentando...
— Relaxe, Yasmin... não precisa ter medo...

Timidamente ela desce o corpo que antes estava empinado e eu sinto a

buceta dela me engolindo bem devagar. A sensação faz meu corpo se


comprimir e minhas mãos crescerem nas nádegas dela, sentindo sua pele
macia mais quente que o normal.

Mal penetro a glande, ela empina o corpo de volta e eu deposito um

beijo em sua bunda.

— É tão bom quanto eu me lembrava... — ela murmura, provavelmente


mais para si mesma do que para mim.

E novamente, num esforço hercúleo, eu controlo os meus instintos e


reflexos para continuar sendo gentil e permitir que ela sinta pouco a pouco,
até se acostumar com a dor... feito da forma correta, rapidamente se torna
prazer.

— Lembre-se de que você é a minha mulher agora. — Deslizo as mãos

para a parte de baixo do seu corpo, subo da virilha até o abdômen, depois
alcanço seus seios e a puxo devagar, para que se levante e se sente em mim.

Ela parece ficar mais confiante quando põe os dois pés no chão e
consegue controlar o quanto sente de mim a cada sentada.

E é só isso que eu quero, dar prazer e sentir essa deliciosa sensação que
parece desligar todo o corpo e tomar cada um dos meus sentidos.
— Isso. — Acompanho seus movimentos ao beliscar bem de leve as
pontas dos dedos nos mamilos. —Bem devagar... isso... boa garota...

Yasmin joga os cabelos para trás e apoia suas duas mãos em minhas
coxas, desce um pouco mais a cada vez e seu corpo vai se soltando, sua
tensão desaparecendo, enfim parece estar se entregando ao momento.

— Não para... — sussurro ao alcançar seu ouvido.

A mão direita começa a descer cuidadosamente, enquanto a outra


continua o trabalho. Percebo que ela se arrepia facilmente pelo meu toque e
só paro quando, com o indicador e dedo do meio, encontro seu clitóris e
começo a massagear bem devagar.

Parece até que é nocauteada por uma nova sensação que a faz
estremecer. Yasmin deita suas costas em meu peitoral e repousa a cabeça em
meu ombro, agora seus pés estão apoiados na poltrona e ela está me sentindo
cada vez mais dentro, cada vez mais fundo.

— Gosta dessa sensação?

— Uhum — ela geme baixo.

Tiro só por um instante a mão esquerda do seio e enrolo seus fios e os


jogo por cima do ombro, assim consigo beijar sua nuca, mordiscar suas
costas bem de leve e lamber seu pescoço enquanto ela quica com mais força e
não para de gemer.
Algumas sensações na vida são inesquecíveis... a primeira vez que se
pula de asa delta... o momento derradeiro que você encara um medo profundo

e o vence... e quando uma mulher (virgem) decide se entregar de vez a você.

Em ambas, isso significa que um laço de confiança foi atingido e


depois daquele momento, a vida nunca mais é a mesma.

Isso também diz respeito à minha redescoberta da vida sexual após

ficar paraplégico.

Eu simplesmente tive que rever minhas considerações sobre sexo após


o acidente. Ele deixou de ser apenas um ato carnal e se tornou um elo, uma
aliança, um contrato de confiança, um ato de entrega e respeito.

Já havia sentido um deles numa ocasião, nunca os três juntos, não como
agora.

Porque quando ela se entrega a mim, sinto que também estou entregue.

Minha mente se desliga, esqueço minhas limitações, meu corpo vive


sensações que são antigas e ainda assim novas. O que eu achava que era
apenas uma torpe lembrança, agora me atinge feito um nocaute e meu corpo
se sente vivo, como só esteve antes uma vez.

— Guilhermo, eu acho que vou...

— Não — digo firme em seu ouvido. — Continua comigo... —


Diminuo a velocidade com que massageio seu clitóris.
— Mas eu acho que vou...

— Yasmin, segura só mais um pouco...

Ela mesma controla seus movimentos que já estão rápidos e bem mais
intensos, famintos, consumindo-me quase por completo. E eu não paro o que
estou fazendo, quero continuar a beijar sua nuca, quero continuar a beliscar
seu seio, quero continuar tocando seu clitóris com toda a dedicação que ela

merece.

— Guilhermo!

Ela diz uma última vez. E explode de prazer, sem parar de rebolar e
mover sua cintura para baixo. Une as pernas quando sente que um líquido
parecido com xixi escorre de si e mal consegue sustentar o corpo agora, já
que suas mãos e coxas tremem.

— Agora sou eu quem não vai parar. — Seguro em sua cintura e tomo
o controle da situação.
“No mesmo instante em que recebemos pedras em nosso caminho,
flores estão sendo plantadas mais longe. Quem desiste não as vê”.

— William Shakespeare.

QUATRO ANOS ATRÁS.


Paro de cantarolar no chuveiro quando ouço as batidas na porta. Deixo

a água corrente lavar meu rosto e asseio os cabelos para trás, diminuo o fluxo
de água, mas não o desligo totalmente.

Este banho está tão agradável que não quero terminar.

— Preciso ir, tem uma emergência no hospital. Você vai ficar bem? —
ele questiona após entreabrir a porta.

Mesmo que espiasse pelo longo cômodo, não me veria. Há uma


distância significativa entre a entrada do banheiro e a parede de vidro escura
onde há a banheira e chuveiro.

— Eu já estou terminando...

— Pode aproveitar. — Guilhermo acena e o meu sorriso só cresce. —


Quando sair, bata o portão.

— Ok...

Fico ansiosa para que ele diga algo sobre a noite passada, mas parece
ser realmente urgente a sua questão, ele fecha a porta e consigo ouvir o
sapato social batendo contra o chão, descendo as escadas; retorno ao meu
banho.

Eu não devia ter tido tanto medo, a minha primeira vez não foi tão
horripilante.
Na verdade, Guilhermo me deixou muito à vontade e foi muito
prestativo comigo. Sem falar que passamos a madrugada inteira na piscina

conversando coisas triviais, mesmo o meu plano original ter sido vir, fazer o
que tinha de ser feito, pegar o dinheiro e sair.

Quase meia hora depois quando já estou no quarto secando o cabelo e


terminando de me vestir, faço um check-up mental se não estou esquecendo

nada... vou até a mochila e vejo um bilhete. Sorrio ao imaginar o que possa
estar escrito.

“Não consigo encontrar o meu celular. De toda sorte, espero que a noite
tenha sido boa para você”

Parece até que flutuo nas nuvens.

Será que vamos nos reencontrar em algum outro momento? Ele parece
ser um homem tão interessante, acho que seria incrível poder conhecê-lo mais
afundo.

“Entretanto, foi um erro. Além de ser decepcionante. Não nos veremos


nunca mais. Espero que não atravesse o meu caminho novamente, ou
assumirá as consequências”
Os meus lábios vão retornando para o estado normal, até formar uma

careta.

Não sei se é de tristeza ou desgosto.

Acho que me enganei... pelo visto ele deve ser um babaca, como

qualquer outro homem.

Pelo visto só queria uma virgem para desflorar e depois descartar, pois
são assim que esses homens ricos são.

Amasso o papel e o jogo para trás, puxo a minha mochila e dou o fora
da casa dele.

Ele não quer que eu atravesse seu caminho?

Eu é que espero nunca mais vê-lo na vida.

ATUALMENTE

— Yasmin...

Abro os olhos bem devagar.

A única certeza que tenho é de que não dormi em minha cama, ela é
fofa e praticamente afunda quando eu me deito. Já essa cama é dura e firme,
além de que estou cercada por travesseiros.

— Oi. — Coço os olhos assim que encontro o rosto de Guilhermo

diante de mim.

Ele está com os cabelos molhados, camisa social branca de mangas


compridas que o deixa bem engomadinho, uma gravata azul escura e calças
sociais. O canto de seus olhos fica levemente puxado quando sorri.

— Eu a deixaria dormir, mas você pediu para que a acordasse...

— Que horas são? — Bocejo.

— Quase quatro e meia. Tem certeza de que não quer ficar e dormir?

— Não. — Me arrepio só de pensar.

Acho que fiquei tão impressionada com aquele maldito bilhete que ele
me deixou, que tive um pesadelo com ele. E, por Deus, eu não vou ficar aqui
e passar por tudo aquilo novamente. Prefiro ir embora com ele.

— Nossa... — me espreguiço e sento na cama, percebo que estou com


uma camisa branca dele que fica bem larga em meu corpo e está impregnada
com seu cheiro. — Você precisa acordar tão cedo assim para trabalhar?

— Pois é. — Ele tira o relógio digital da tomada e o coloca no pulso.


— Na verdade tenho cirurgia às cinco e meia, acordei mais cedo para te levar
para casa.
— Oh, não precisa se incomodar... — Ruborizo de imediato.

Ele acordou cedo por minha causa? Deveria ter descansado um pouco

mais!

— Não é incômodo. Te vejo lá embaixo?

— Claro.

Pisco os olhos e tento me localizar no quarto espaçoso dele, todos os


móveis estão distantes, dando um espaço bom para que ele transite com a
cadeira de rodas.

Rapidamente busco a minha calça jeans, visto toda a minha roupa e


coloco a jaqueta por cima da camisa dele.

— Se importa se eu ficar com ela? Devolvo depois. — Aponto para a


camisa.

— Sem problemas.

— Será que pode me emprestar algum tênis também? Ninguém merece


usar salto alto a essa hora...

— Yasmin, pegue o que tiver vontade — ele ri.

Corro até o closet dele e me deparo com o que parece uma loja inteira.
Existem tantos ternos, uma joalheria média com relógios, anéis, cordões... o
armário de sapatos cobre uma parede inteira e eu escolho o que parece mais
confortável.

Desço correndo para encontrá-lo e enfim irmos.

— Desculpa te fazer esperar... — digo ofegante.

— Tudo bem — Guilhermo confere o relógio. — Fiz ovos, bacon,


torradas e abacate amassado. Posso fazer um suco se quiser... fiz café.

— Não está com pressa? — Levo a mão ao peito e nem acredito


quando vejo a mesa montada. — Espera. Você fez isso?

— Qual a surpresa? Qual a dificuldade em fritar bacon e fazer torradas?

Pisco os olhos, sem acreditar. De onde ele tirou tempo para servir a
mesa?

— Nenhuma, aparentemente. — Balanço os ombros e me sento.

É engraçado, pois uma parte da mesa e da maioria das cadeiras ainda


está coberta por um pano branco, só a parte em que estamos e a cadeira em

que agora estou sentada está livre.

— O seu café é ótimo! — Parece que acordo quando engulo a bebida. É


forte, não tão amargo e tem um cheiro delicioso.

— Achou que viria à minha casa e eu te serviria água suja? —


resmunga, amassa o abacate e dedilha o tablet vendo as notícias do dia.

Fico inquieta enquanto estou provando a comida dele e, sem surpresa


alguma, admito que está tudo muito delicioso.

Guilhermo não devia ter feito nada disso, é um homem ocupado,

poderia só me levar em casa, no máximo passarmos em uma padaria no meio


do caminho e comer na viagem, para pouparmos seu tempo.

— Não coma tão rápido — ele chia, espiando-me por cima do tablet.
— Vai passar mal.

— Agora vai até controlar a velocidade com que como? — devolvo,


irritada.

— Não tenha pressa, temos tempo — ele me tranquiliza. — Dormiu


bem?

— Dormi sim, e você?

— Muito bem. — Ele continua a ler enquanto bebe o café, concentrado.


— Assinei os seus papeis, estão em cima da sua mochila.

— Já? Pensei que ia precisar de tempo para ler.

— Eu li. E mesmo que não concorde com algumas coisas, se as suas


exigências te deixam confortável, eu as aceito.

Novamente sinto as minhas bochechas queimarem e eu aceno


rapidamente com a cabeça.

— Posso marcar uma bateria de exames para você?


Suspiro, não incomodada, mas pensativa quando a realidade bate à
minha porta.

— Você só consegue pensar em ter um filho, não é?

— Na verdade, só quero saber se você está bem, como vai a sua saúde.

Não sei ao certo se acredito nas palavras dele, mas a única coisa que se

passa em minha cabeça é que ele precisa garantir que estou em perfeito
estado para gerar um filho saudável.

Não vou reclamar, eu assinei o maldito contrato.

— Antes de ficar grávida, quero aproveitar um pouco a vida...

Ele ergue a sobrancelha e me espia novamente por cima do tablet.

—... Ao seu lado — completo.

Não que eu tenha a esperança de que ele se apaixone por mim, mas
quero que possamos viver algo legal antes que os meus pés inchem, o

cansaço me abata e eu não consiga mais andar sem sentir dor.

Se essa criança for igual Phellippo, imagino que minha barriga vai ficar
gigante e os chutes não vão parar em certo ponto da gestação. Começo a
duvidar se vou conseguir fazer as coisas simples as quais me propus no
contrato.

— Eu sei que quer isso, eu li os papeis que assinei — ele diz


suavemente e bebe o café.

— Ótimo — digo animada. Mal posso esperar para arrastar Guilhermo

para um baile funk.

O olhar acusatório que ele me lança quando sorrio de canto, me faz


fechar o cenho.

— O que essa mente diabólica está aprontando?

— Nada... só estou pensando que o dia hoje vai ser cheio. Tenho
algumas roupas para entregar... produtos eróticos a vender... preciso passar na
faculdade para ver se ainda aceitam que eu retorne...

— Bobagem, se tiver problemas me coloque na linha e eu resolvo tudo


— ele diz com firmeza, mal tocou no café da manhã, já eu, devorei tudo e
estou quase pegando o restante.

— E sobre o dinheiro...

— Já transferi para sua conta. Só estou esperando a ligação do meu


gerente para finalizar a operação — Guilhermo diz e me encara, como se
perguntasse: algo mais?

— Parece que você pensou e já fez tudo... — Balanço os ombros. —


Obrigada.

Ele abaixa o tablet e abre um fino sorriso no canto dos lábios. Eu


retribuo e me levanto logo, senão vou continuar comendo até que não sobre
nada.

— Vamos? Não quero atrasá-lo.

— Já terminou?

— Uhum.

— Não se preocupe, as funcionárias da casa chegam em algumas horas,

não precisa tirar a mesa — ele me interrompe e passa por mim, empurrando
sua cadeira.

— Ok. — Sigo-o, pego minha mochila, os meus papeis e vou até a


garagem na frente da casa, onde o carro gigante dele está estacionado. —
Quer ajuda?

Antes que eu termine de dizer, a porta do motorista já se abriu e o


banco está descendo, Guilhermo não demora muito para mudar para o banco.

— Ei... eu não...

Tento ajudá-lo a desmontar a cadeira de rodas, mas não faço ideia de


onde preciso puxar ou mexer para fazer isso.

— Tudo bem, eu me viro.

— Mas eu quero ajudar...

— Relaxa, Yasmin, eu faço isso todos os dias, é bem mecânico, igual


encaixar a chave e girar na fechadura — ele diz e desmonta a cadeira diante
dos meus olhos. E mesmo vendo passo a passo, não faço ideia de como ele

fez isso. — Coloque o cinto! — ele reclama enquanto o banco do motorista

sobe.

— Prontinho.

— Perfeito, então vamos — ele dá a partida.

Após deixar Yasmin em sua residência, dirijo por uns vinte minutos até
chegar ao Rota da Vida.

Só percebo que o meu celular tinha inúmeras chamadas perdidas


quando já estou dentro do elevador no subsolo, subindo para o andar da sala

da vice-presidência.

Surpreendo-me quando vejo Ayslan com a cabeça deitada em cima da


mesa e Lisa do outro lado da sala, deitada em um banco, com um travesseiro
de pescoço amortecendo.

— Eu já ia descer! — Ayslan puxa o bip em sua cintura e se ergue,


quando entro. — Ah, aí está você! Por onde andou? Ficamos preocupados!
Lisa até abre os olhos, o corpo mecanicamente se senta, mas parece que
continua dormindo.

— Te procuramos por todo o hospital, em todos os dormitórios, em


cada canto desse lugar... e você não atendia a droga do celular.

— O que houve? Qual a emergência?

— A emergência é que pensei que tinham te sequestrado! Oras! Todos


os dias dorme no mesmo lugar, quando fui lá ontem, você sumiu. Não estava
aqui, não estava diante do berçário, não estava em canto algum...

— Estava em casa.

Lisa parece que acordou, está pálida e chocada. Pisca os olhos bem
devagar e se levanta, ainda sonolenta.

— O que você disse?

— Disse que estava em casa.

— Que casa? — Ayslan fecha o cenho.

— A minha. Eu tenho uma casa, esqueceu?

Pela expressão, ele não acredita em mim. E só leva isso a sério quando
mostro com o olhar de que não estou brincando.

— E nós aqui achando que a Heloísa tinha mandado te sequestrar, que


estava em cárcere privado...
— Vocês são muito exagerados — bocejo.

— E o que te fez voltar para casa?

— Como assim o que me fez voltar? É a minha casa. E pelo visto


tornarei a viver nela.

— Que milagre!

— Pois é. — Balanço os ombros.

Deixo a minha pasta em cima da mesa e já ligo para a sala de cirurgia


para confirmar se os preparativos estão ocorrendo, vou me reunir com a
equipe em vinte minutos.

— Não fiquem com essa cara, eu estou bem, nada aconteceu comigo.

— Engraçado que você está dizendo tudo isso de uma forma menos
rude, parece até que está de bom humor — Ayslan avalia.

— Ele transou. — Lisa até parece que desvenda.

Imediatamente corrijo a minha postura e só percebo que estou com um


sorriso fácil no rosto porque me obrigo a fechar o cenho.

— Vocês dois... saiam daqui! Vejo vocês após a cirurgia...

— É, ele transou — Ayslan avalia. Quando passa por mim, espeta seus
dedos indicadores em meus ombros. — Guilhermo está fazendo bebês... —
cantarola.
— Agora chega, vocês dois! Agradeço a preocupação, mas preciso
conversar com os parentes do paciente antes da cirurgia, devia ter feito isso

há uma hora, mas estava ocupado.

— Ocupado assistindo uma certa mulher dormir?

Pego uma porção de canetas no suporte da mesa e jogo em Ayslan, que


sai correndo balançando o jaleco no ar, rindo.

— Boa sorte aí, amigão! Estamos torcendo pelos seus bebês.

— Tomara que venham gêmeos. — Lisa bate em meu ombro e sai.

Eu rosno e mostro meu olhar furioso para eles, censurando-os,


enquanto se afastam, acenando e rindo para mim no corredor.

Quando a porta fecha automaticamente e eu me viro para a mesa, penso


um pouco na noite de ontem.

E um sorriso volta a despontar em meu rosto, antes que eu perceba.


“A lucidez é um luxo que nem todos podem se permitir”.

— José Saramago.

Quando a minha mãe e Phellippo entram na cozinha, se surpreendem


ao ver a mesa de café pronta. Nos últimos tempos eu tenho virado noites
trabalhando e não tenho tido tempo para levar meu filho à escola ou cuidar da
minha família como eu gostaria, e como acordei cedo, aproveitei a

oportunidade para mimar as pessoas que amo.

— Uau! Olha só para isso, PH! — Mamãe puxa a mãozinha dele. —


Olha que mesa bonita! Qual a ocasião especial, Yasmin?

— Nenhuma, mamãe, só acordei cedo e quis ser útil.

— Ah, você tem trabalhado tanto, não deveria se preocupar com isso...
— O sorriso dela parece que se estende pelo rosto todo. — Vamos comer?

O tom de animação dela parece que desperta PH de uma só vez, ele


vem e se joga em meus braços e eu cheiro seus cabelos, depois o sento na
cadeira ao meu lado.

— A vida mudou tanto desde a morte de Amauri... — ela suspira, mas


continua a sorrir. — Ele sempre preparava a mesa de café da manhã...

— Pois é. — Seguro por cima de sua mão, com muito carinho.

— Oba que eu senti um cheiro bom! — Patrícia chega, com os cabelos


amarrados.

E não demora muito para que Diogo também apareça. Ele não dá bom
dia, não diz nada, só pega algo para comer e se prepara para sair da cozinha.

— Eu quero conversar com você, Diogo, não saia — digo e corto o pão
para PH.
Meu irmão não me responde, dá as costas e desaparece subindo as
escadas da casa.

— Quer café, meu amor?

— Sim! — Ele diz animado, batendo as mãos abertas na mesa. —


Café!

— Dona Yasmin acordou cedo hoje... e bem disposta... — Patrícia


avalia, já com a xícara na mão, desfilando pela cozinha. — Esse milagre tem
nome? — Balança as sobrancelhas de modo insinuativo.

— Tem. — Encaro-a, prendendo o riso e deixando o ar de suspense se


estender o quanto posso. — Disposição.

— Hum, na minha terra chamamos de outra coisa. — Ela torna a mover


as sobrancelhas e bebe seu café, me olhando com muito orgulho por detrás da
xícara.

— Sei. Mamãe, pode ir descansar, eu levo o Phellippo para a escola.

— Tem certeza? Não precisa terminar algum trabalho, ou...

— Não, pode ficar tranquila, eu vou. PH, coma direitinho que a mamãe
já volta e te leva para a escola, tá?

— Tá — ele diz de boca cheia, comendo desesperado e os olhos bem


arregalados.
— Não coma tão depressa. — Acaricio sua cabeça, depois o braço da
minha mãe.

O que faço em seguida é ir ao rastro de Diogo lá em cima, encontro-o


em seu quarto. O olhar mais felino do que o normal, com fones de ouvidos
grandes que eu rapidamente arranco e escondo atrás das costas.

— Devolve! — ele manda.

— Eu vou ao banco sacar o dinheiro que você deve aos agiotas. Quero
os meus vestidos de noiva, todas as peças que aqueles crápulas roubaram
daqui e os produtos eróticos de Patrícia!

— Onde conseguiu o dinheiro? — ele pergunta de imediato,


desconfiado. — Foi rodar a bolsinha, é? — ele me provoca.

Dou um tapa tão forte no rosto dele que dói mais em mim do que nele,
com certeza.

— Você me respeita, moleque, eu sou sua irmã mais velha! — rosno,


com os dentes cerrados.

Estou tão cansada dos desacatos e da forma como meu irmão me trata,
que cheguei ao limite.

E não vou permitir que ele venha com gracinhas para cima de mim.

Eu salvei essa família duas vezes, a primeira da falência e a segunda de


um roubo que tirou não só valores importantes, quanto lembranças
inestimáveis. Não é um moleque mal agradecido que vai me diminuir.

— Eu vou te entregar o dinheiro no início da tarde. Antes da meia noite

eu quero tudo aqui. Vou revistar cada vestido, cada terno, cada piroca e se
estiver faltando algo, te faço voltar lá!

O “ok” dele é um balançar de ombros.

— Agora devolve meu fone.

— E você não vai mais se meter nessa merda de aposta! — rosno,


apontando o indicador de modo acusatório. — Não quer ser o homem da
família? Comece a agir como tal!

— Ah, é? E como você quer que eu ganhe dinheiro para sustentar a


casa? — ele provoca.

— Não sei, Diogo. — Sou eu quem balança os ombros agora. — Que


tal ir rodar a bolsinha?

Saio do quarto com um sorriso de vitória grafado em meu rosto e desço


de volta para a cozinha, onde encontro PH e mamãe cantando canções da
escola, enquanto tomam café.

— Perna de pau... olho de vidro e nariz de pica-pau! — Eles batem


palmas juntos quando terminam.

— Muito bem, você está aprendendo! — minha mãe diz orgulhosa.


— Sim. — PH empina o nariz e faz uma cara de convencido que não
faço ideia de quem lhe ensinou.

— Vamos? — o chamo. — Pode descansar, mamãe, eu o levo. —


Seguro em seu ombro quando ela faz menção de se levantar. — Quero ter
uma conversa com o Phellippo...

— Tudo bem. — Ela se agarra à xícara de café e acena para nós dois.

— Boa aula!

PH continua acenando para trás, mesmo depois de termos passado pela


porta.

A escolinha não é tão longe e é gostoso ir andando.

Há muito tempo não levo meu filho, essa é uma daquelas coisas
simples e bobas da vida, mas que depois de tanto tempo sem fazer, parece
que faz falta.

Sinto como se fosse ontem que ele estava em minha barriga, dando
chutes que fazia acreditar que ia ser atacante de futebol. E agora está
crescendo sem parar...

— Filho?

— Oi, mamãe — Ele levanta o rosto em minha direção.

Me derreto toda e acaricio seu rosto, não consigo resistir a esses olhos
azuis chamativos que parecem duas safiras brilhando diante do sol.
— O que você acha de ser promovido?

— Pomoído[21]? — Ele faz uma careta e engole algumas consoantes.

— Sim... o que você acha... — Seguro em sua mãozinha e vigio bem


todo o caminho à nossa frente, porque agora ele não para de olhar para mim,
esqueceu a rua. — De ter um irmão? Uma irmãzinha?

— Pa bincar? — Seus olhos parecem maiores agora.

— É... pra brincar... pra cuidar... amar... proteger. Você vai ser o irmão
mais velho... vai precisar criar responsabilidade.

— Eu tenho ponsabilitádi — ele se embanana todo ao falar a palavra


comprida e eu rio.

— Hum — Analiso.

— Mamãe?

— Sim, meu amor?

— O que é ponsabilitádi? — ele se embanana de novo, mas isso não o


impede de dizer.

— Responsabilidade é cuidar das coisas — explico. — Guardar os


brinquedos... não jogar a mochila no chão... É ter carinho por você mesmo e
pelas coisas que tem. Além, é claro, das pessoas que ama.

— Eu tenho ponsabilitádi — ele diz, mais decidido que antes, e


errando a palavra de novo.

— Hum, então será que você está pronto para ter um irmãozinho ou

irmãzinha?

— Sim!

— Eu vou ver. — Faço um olhar pensativo. — Vou ver como você

cuida de suas coisas e aí decido se você é responsável para ser promovido a


irmão mais velho.

— Tá bom, mamãe.

O suspiro de alívio vem em seguida. Não pensei que a conversa seria


tão fácil...

— Mas quem é o papai? O meu papai? Ele vai vir moiar com a gente?

— Não... — Cedo demais. Não vai ser nada fácil.

No final do corredor, uma família gigantesca aguarda notícias. Os pais


já idosos, a esposa que não para de andar em círculos, três crianças se
entretendo em seus celulares e mais alguns parentes avulsos que se
aglomeram quando me veem aproximar.

— Ele que é o médico? — ouço alguém da fila do fundo perguntar.

— Doutor — a mãe diz desesperada, quase se joga na minha frente. —


Deu tudo certo? O meu filho está bem?

A esposa está parada no lugar, mas bate o pé em um sinal de

nervosismo.

— Senhora Simões, gostaria de se aproximar? — peço.

A mulher se surpreende, vem andando rápido até se pôr ao lado da


sogra, que tenta dar um passo à frente para ficar mais perto de mim e
bloquear a visão da outra.

Manobro com a cadeira para ficar diante das duas.

— A cirurgia foi um sucesso — digo, olhando a esposa, que se entrega


às lágrimas, até parece que tiro sacos de cimento de seus ombros. — Levi

recebeu o novo coração muito bem. Vai demorar um pouco para acordar, ele
precisa de descanso. Vou permitir a entrada de um parente por vez, seguindo
as normas rígidas do hospital.

— Eu vou — a mãe se prontifica.

— Senhora, sei que quer ver seu filho, está preocupada e apreensiva,
mas acho de bom tom que a senhora Simões seja a primeira a vê-lo.
A esposa se surpreende. Até parece que vai sair do lugar e me abraçar.

— Mas ele é o meu filho! — ela insiste.

— E também é esposo e pai — avalio. — Tente se acalmar quando for


visitá-lo, nada de muitas emoções, tá? — Balanço a cabeça para a mulher que
avança, segura em minhas mãos e não para de balançar.

— Obrigada, doutor! Obrigada!

— Eu quero ser a primeira — a mãe não dá o braço a torcer.

— São recomendações médicas. — Uso essa cartada infalível para


encerrar a conversa.

O que eu deveria dizer? Que antes de ir para a mesa de cirurgia, Levi


me pediu que a primeira pessoa que ele queria ver era a esposa? E se algo
desse errado, que eu a abraçasse e a confortasse? Não, isso faria a mãe
resmungar demais com o filho. Prefiro sair como o médico malvado para a

mãe dele.

— Dá para acreditar que foi ele quem operou o Levi? — A mulher


resmunga, quando viro as costas.

— Um aleijado desses? — Outra voz mais ao fundo diz.

Sigo manobrando a cadeira pelo corredor, até ser abordado por uma
mulher alta, ruiva de cabelos longos, os olhos verdes se fixam em mim de
imediato.
— Doutor Lamarphe, tem um segundo?

— É claro, doutora Dourado. — Aceno e a sigo para sua sala.

A chefe do departamento de cirurgia geral, Érica Dourado, foi a minha


superior desde que voltei a atuar no hospital. Ela é apaixonada pelo trabalho,
assim como eu. E sua família é uma das fundadoras do Rota da Vida.

Ela desfila, deixa a porta escancarada para que eu passe e a fecha


quando estou diante da sua mesa.

Érica se senta e abre um grande sorriso.

— Como vão as coisas?

— Vão bem. — Tiro os óculos e os guardo no bolso do pijama


hospitalar.

— Eu queria te pedir desculpas, não pude comparecer à leitura do


testamento do Alfredo, tinha uma cirurgia importante naquele dia...

— Tudo bem, Érica — a acalmo quando chamo por seu nome. — Você
foi visitá-lo, quando estava em estado crítico. E foi ao velório...

— Ele era muito precioso para o hospital... fundou a escola hospitalar


aqui quando ninguém acreditava que ter residentes era uma boa ideia... e fico
feliz que agora você chefie o departamento.

— Obrigado.
Ela tamborila os dedos na mesa, avaliando-me. Parece que quer dizer
muitas coisas e está selecionando a que vai jogar primeiro.

— Ouvi dizer... — ela ri, asseia os cabelos e os joga para trás. — Que
vai precisar fazer um filho para receber a herança dele...

De repente sou bombardeado por algumas informações que tinham


passado despercebidas. Ela está com um decote generoso hoje e o jaleco

bastante aberto. Quando levanta a sobrancelha e seu olhar sorri para mim, eu
arregalo os olhos.

— É... o Lamarphe quis ir embora com grande estilo...

— Sabe que... se precisar de alguma coisa... estou aqui para ajudar.

— Obrigado — digo novamente, percebendo na armadilha que me meti


ao vir aqui. — Bem, eu tenho que...

— Está disponível esse final de semana? Bem, estou feliz que não sou

mais sua supervisora, acho que não vai ser de mal tom se sairmos...

— Na verdade, tenho planos. E compromisso. E alguém em quem


tenho que fazer o bebê. — Tento ser mais claro a cada nova frase.

— Ah... — Ela se encolhe um pouco. — Já escolheu a pessoa?

— Escolheram por mim.

Isso parece que a conforta, o sorriso confiante retorna para seus lábios.
— Mas eu gosto muito dela. É uma mulher incrível, acho que vai ser
menos insuportável do que imaginei

— Ah — ela suspira. — Bem... boa sorte, então.

— Certo. — Aceno com a cabeça e me preparo para sair.

— Só mais uma coisa, doutor Lamarphe?

— Sim — digo prontamente.

— Ao que parece, você se tornou um entusiasta para encontrar quem


cometeu o erro naquela cirurgia que eu chefiei.

Agora o assunto ficou ainda mais interessante, retorno para diante dela
e repouso as mãos no colo.

— Como deve imaginar, eu fiz a cirurgia, mas não fechei a paciente...

Afinal de contas, quem de nós fecha? Costurar alguém é algo que


sempre deixamos para um assistente ou residente que mereça.

Existe um glamour no que fazemos e não gostamos de nos rebaixar nos


pequenos gestos que podem desmerecer nossa patente – como fechar alguém.

— Não pensei nem por um segundo que poderia ser você, Érica.

— Obrigada — ela anui. — Mas não vejo por que toda essa inquisição
espanhola por causa de um erro bobo. E que você prontamente corrigiu.

— É aqui que discordamos. — Uno as mãos e respiro profundamente.


— Não foi um erro bobo. Não se deixa algo dentro de alguém que confiou a

vida nesse hospital, em seus médicos e no procedimento.

Deixo-a muda.

— Se fosse uma celebridade, um milionário ou figura pública, que é o


pessoal que normalmente atendemos aqui, o hospital já teria cortado a cabeça
de quem fez isso.

Ela concorda, a contragosto, mas concorda.

— Como foi alguém que veio pelo SUS, que o Alfredo insistiu para
que déssemos algumas vagas para o sistema na escola hospitalar, estão
desmerecendo o caso.

— Você tem um ponto. Mas...

— A senhora Oliveira decidiu por não processar o hospital, e olha que


era causa ganha.

Novamente ela concorda.

— Acredito que se isso ficar impune, passa uma mensagem errada. Não
é porque uma pessoa não pagou para estar aqui que deveria ser vítima de
maus tratos.

— Não foram maus tratos, foi apenas um alicate.

— Érica, ouça a sua voz por um segundo: foi apenas um alicate?


Ela fica muda, como esperei. Acho que não quer debater comigo.

— Você está certo — suspira. — Você é sempre muito... rigoroso e

exigente com os nossos altos padrões. Admiro isso em você. Só estou


preocupada, pois isso pode assustar alguns residentes... eles vêm de famílias
ricas e poderosas, a nata da sociedade brasileira.

— Que é atendida aqui — completo o pensamento dela.

— Sim — suspira novamente.

— E que se um alicate fosse deixado dentro de uma cantora... um


político... um ricaço...

— Estaríamos afundados — ela conclui. — Acho que só estou


querendo salvar a minha pele... afinal de contas, eu era a professora
responsável, não é?

— Não acho que a culpa seja sua. — Vejo um filete de calma brilhar

em seus olhos. — Acho que é um descuido padrão nosso, de concluir a


cirurgia e deixar nas mãos dos outros... acho que deveríamos ficar até o
último segundo, supervisionando atentamente.

— Sabe que isso seria, de certa forma, perder tempo, não é? Costurar
alguém não é a coisa mais difícil do mundo.

— Não é alguém que estamos costurando. — É a minha vez de


suspirar. — É uma vida única, alguém que tem família. Que é amado. Que
tem história. Pode parecer apenas um número para o hospital, Érica. Mas é
alguém insubstituível.

O sorriso que surge nos lábios dela até me acalma.

É difícil tentar levar o senso de humanidade para os colegas da


medicina, pois depois que chegamos neste patamar, o sentimento é o de que
só estamos abaixo de Deus.

Mas eu sempre achei que até mesmo Deus, sendo o maior de todos, tem
profundo carinho e amor pelos humanos.

— Você me deixa muito orgulhosa, Guilhermo — ela me surpreende


com o que diz.

— Sério?

— Sim. Fico feliz que tenha voltado a chefiar a cardiologia e mesmo


que temporariamente ocupar a vice presidência.

— Obrigado.

— Gostaria de continuar essa conversa em outro momento... outro


lugar... acho que poderíamos chegar a uma conclusão e apresentar à
presidência do hospital algumas mudanças.

— Na verdade, seria ótimo.

— Certo. Podemos jantar qualquer dia desses, o que acha?


— Se formos discutir esse assunto, seria interessante.

— Que ótimo! — Ela sorri. — Então aguarde o meu convite.


“Nada é tão ruim que não possa piorar”.

— Lei de Murphy.

O dia foi bem produtivo – com dinheiro na conta, não teria como não
ser.
Patrícia e eu ficamos bem ansiosas para o retorno de Diogo em casa, à
noite. Ela estava com uma lista dos produtos que foram levados e ia contar

um a um, jurou que se faltasse um gel, uma calcinha comestível, uma


piroquinha sequer, ia bater na casa dos agiotas.

E eu só ficaria em paz quando as obras do meu pai estivessem a salvo.

Fui à faculdade no período da tarde ver como poderia ficar a minha

vida acadêmica. Pelo visto o novo semestre iria começar no próximo mês,
então eu só precisava ficar atenta ao site da instituição e pegar as cadeiras que
faltavam, isso incluía o meu pior pesadelo: o TCC.

Também fiquei um bom tempo com Phellippo, parece que a nossa


conversa de mais cedo surtiu efeito. Ele ficou prestativo, não bagunçou nada
e ajudou a limpar e arrumar sua caixa de brinquedos, sua cama e seu material
escolar.

— Você ainda não teve a chance de me contar como foi com o bonitão

lá — Patrícia diz de braços cruzados, apreensiva com a demora de Diogo.

— Ah, minha querida advogada... — Abro um sorriso de canto. — Ele


assinou os papeis.

— Jura?

— Vou te mostrar, só um minuto — vou até a mochila e trago a prova


do crime.
Patrícia fica boquiaberta, sem acreditar que Guilhermo aceitou minhas
condições.

— E agora, qual o próximo passo? — ela pergunta.

— Eu tenho uma liiiista de coisas para fazer — digo animada. — Eu


sempre tive tantos planos para quando, enfim, fosse namorar! E agora posso
fazer tudo!

— Aham. — Ela não acompanha a minha animação, apenas assente e


continua com os olhos presos na assinatura do homem.

— Quero assistir ao pôr-do-sol com ele... ir em um podrão da cidade,


me sentar em um banco de praça e ficar vendo o tempo passar... maratonar
série da Netflix! — Digo com uma animação que já não tinha há tempos.

— Aham.

— Meu pai dizia que só se conhece alguém de verdade em três

ocasiões. E quero ter certeza de que conheço Guilhermo.

— Quais as ocasiões?

— Colocando a pessoa em uma situação em que ela saia da zona de


conforto... Tomando um belo porre, ficando os dois bêbados... E tirar um dia
para não fazer nada.

— Nada? — Ela semicerra os olhos.


— Nadica de nada.

— Tá, não estou entendendo, qual a lógica disso tudo?

— A primeira, tirar a pessoa da zona de conforto, te faz perceber como


o outro age quando as coisas não saem como planejado... você precisa saber
como seu parceiro realmente é, fora do roteiro...

Vejo-a assentir, ainda curiosa e confusa.

— Tomar um belo porre... porque quando a bebida entra, a verdade


sai... e eu preciso saber de umas verdades...

— Mas se tomarão um porre juntos, isso significa que você também vai
dizer umas verdades, não é?

— Claro. Quero conhecê-lo e quero que ele me conheça.

— Justo. — Ela move a mão, mostrando que eu continue.

— E não fazer nada. Nadinha, nadinha...

— Nesse caso, ficar na cama assistindo Netflix? — Ela pensa.

— E pedir comida em aplicativo... ou só comer o que está na


geladeira...

Isso é o que parece que a deixa mais perplexa.

— É a rotina, Patrícia! Eu preciso saber como ele vai reagir na questão


da rotina, quando os dias ficarem iguais... será que vai perder o interesse em
mim? Como que deve ser não ter assunto ao lado dele? Vou me sentir

desconfortável?

Após muito ponderar e avaliar, minha amiga devolve os papeis


assinados.

— Não é mais fácil partir para a amarração?

— Quê?

— Amarração, minha filha. Fazer o boy gostar de você, queira ele ou


não.

— N-n-não... — até gaguejo.

— Só vou precisar de um coração de pombo, uma linha vermelha de 50


metros, bem grossa, uma vela em formato de casal...

— Espera. Coração de pombo? Você não era vegana, sua louca?

— Um coração de pombo vegano — ela diz, tranquila. — Eu posso

substituir o coração de pombo, por exemplo, por uma ameixa. Um morango


bem carnudo. Uma maçã... huum...

Ah, pronto, agora a minha amiga Bela Gil da macumba perdeu o juízo
de vez.

— Nada de amarração! — Bato o pé.

— Um adoçamento então — ela decide. — Muito mel fresco, uma foto


dele, de repente uma calcinha sua, tudo dentro de um pote... hummm...

— Amiga, que tal a boa e velha conquista, sem apelar para o espiritual?

— Você acha que ele vale todo esse trabalho? — Há um quê de desdém
na voz dela.

Eu gosto da sensação de conquistar alguém.

Nos últimos tempos não pude exercer esse meu passatempo, pois não
havia ninguém que valesse à pena. Mas eu preciso que Guilhermo e eu
tenhamos uma relação agradável, pelo menos amigável, se vamos tomar esse
passo de ter algo que nos conecte pelo resto da vida.

Estou animada com os planos que fiz! E espero que tirá-lo da rotina e
da zona de conforto seja algo bom!

— Ele chegou! — Patrícia não consegue ficar no lugar, sai correndo até
o portão e eu a acompanho.

Um pequeno caminhão baú deixa várias caixas e sacolas pretas, quase


caio para trás imaginando que meus vestidos, ternos e peças sociais estejam
dentro deles.

Que descuido!

— Minhas pirocas! — Patrícia se agarra a uma caixa grande,


abraçando-a como se fosse um ente querido que não vê há muito tempo. —
Senti tanta falta!
— Está tudo aí — Diogo diz secamente. — Pronto, tudo resolvido —
balança os ombros e segue para dentro de casa.

— Vamos logo levar isso para dentro, quero ver se está tudo em ordem!
— Patrícia se agarra à caixa grande e sai andando como se fosse um pinguim.

Quando vendi a virgindade para Guilhermo, quatro anos atrás, meu pai
estava entregue ao alcoolismo. Depois de trabalhar fielmente para grandes
estilistas que roubaram seu trabalho, ele se viu sem nada, desamparado,
perdido na vida e sem um tostão no bolso para recomeçar.

Aqueles cem mil compraram o melhor tecido e material de costura para


poucas peças, que ele rapidamente vendeu e fez o dinheiro duplicar... depois
triplicar... o ateliê veio em seguida, junto a um corpo competente de
funcionários.

Nunca vi minha mãe e pai tão felizes, enfim ele estava trabalhando para
si e tendo todo o reconhecimento que mereciam.

Agora usei boa parte do dinheiro que Guilhermo me deu para recuperar
tudo. É a história do meu pai, aquilo que ele se dedicou, a prova viva de que
deu a volta por cima... uma verdadeira herança de família!

— Meu Deus, está chorando em cima dos vestidos... — Patrícia


lamenta, acena com desaprovação.

Rever essas peças é como ver uma foto rara de um momento sublime

que meu pai viveu, e que de certa forma eu o ajudei a conseguir.

Tudo isso é valioso para mim também.

Tiro uma foto minha agarrada a um dos vestidos, tomando o imenso

cuidado para que as caixas com produtos eróticos não saiam nela.

Enviei para Guilhermo, em seguida, com a seguinte mensagem:

“Obrigada. Seu dinheiro foi bem gasto. Consegui recuperar as relíquias


da família”.

Não demora muito até ele me enviar uma foto sua, de olhos revirados
para cima. Está todo envelopado em um pijama hospitalar da cor azul e de

máscara no rosto.

“Já está procurando seu vestido de noiva?”

Leio o que ele me enviou. Faço uma careta e quando dou conta, estou
rindo da foto ridícula.
Por um instante percebo que, enfim, vou realizar o sonho da minha
vida: ter a chance de usar um desses vestidos de noiva. Não por experimentar

ou ver como ficam em meu corpo... mas usarei em meu casamento!

“Brincadeiras à parte, fico feliz que esteja cuidando da herança que seu
pai te deixou. Estou orgulhoso de você. Quando vamos conversar sobre a

abertura do seu ateliê?

Sinto as bochechas enrubescerem e um calor tomar o meu coração.

“Estou orgulhoso de você”, retorno nesse trecho algumas vezes e não


contenho o sorriso.

Pisco os olhos, tentando imaginar se isso é real mesmo.

Guilhermo me entende nessa situação, melhor do que qualquer outro.

Ele também tem uma herança a zelar, mas infelizmente só tomará posse dela
quando nosso filho nascer...

Sinto-me presa a uma obrigação moral de cumprir a parte no acordo.

Não só isso, eu realmente quero ter esse bebê.

Guilhermo é um homem inteligente, muito gentil e que está


reaprendendo alguns sentimentos, sei que vai ser difícil se abrir..., mas eu
também não vou cansar de tentar. Eu vou insistir, até que ele ceda e me deixe

ver seu verdadeiro eu.

Sinto que não está tão longe de acontecer.

Respondo-o da seguinte forma:

“Quando estará livre? Quero te levar a um lugar e poderemos conversar


lá”

Ele responde:

“Tenho uma cirurgia agora de madrugada e amanhã irei supervisionar


os residentes. Acho que podemos nos encontrar na quinta, o que acha? E
para onde pretende me levar?”

Digito, animada:

“Marcado. Sexta-feira às 16h. Surpresa”.

Ele me responde com uma nova foto que é semelhante a anterior, só


que dessa vez ele está com um óculos arredondado com hastes douradas. Os
olhos estão revirados, não sei se de tédio, sono, ou apenas para me provocar.

Mesmo que ele não pergunte, envio uma mensagem falando do meu
dia. Quero ver como ele vai reagir a isso. Guilhermo passa a impressão de
que não gosta de tratar sobre coisas bobas do dia a dia. Mas como vou
conhecê-lo melhor, senão por esses pequenos detalhes?

“Fui à faculdade hoje fazer a matrícula. Lembrei que precisarei fazer o


TCC, quase desisti da ideia..., mas como trato é trato, em um mês e meio
estou de volta às aulas”

Penso em apagar assim que termino de digitar. O que ele vai


responder? Possivelmente um “E daí?” ou encerrar a conversa, porque está
muito ocupado.

“Fico feliz que esteja dando uma nova chance à faculdade, como pedi. O
direito possui diversos temas, pense em um que você goste muito e queira
defender, imagino que encontrará algo que se familiarize e o TCC não
vai te aterrorizar tanto.

E, claro, não se esqueça de continuar fazendo o que ama: costurar. Sei


que vai achar tempo para tudo, inclusive para mim.

Ou teremos sérios problemas”.

A risada agora sai alta.

— Ih, ela está rindo do nada agora... — Patrícia tenta espiar por cima

do meu ombro. — O que é, tá recebendo entidade, é?

— Não, só estou conversando com o Guilhermo.

— Ah, grava um áudio aí, quero agradecê-lo pela generosidade e por


trazer nossos pertences de volta.

— Ok, mas não fale besteira.

Dizer isso é o mesmo que dizer nada para Patrícia.

Aperto o botão de gravar e estendo o celular na direção dela, ainda


incrédula de que estou fazendo isso.

— Oi, Guilhermo, sou a amiga e sócia da Yasmin, a Patrícia. Obrigada,


viu? Graças a você, agora estamos cheias de piroca aqui em casa. Beijo!

Envio. Não sem antes deitar no chão e gargalhar.

— Amiga, você perdeu o juízo...

— E quando foi que eu tive, para perder? — ela diz feliz e vai
enfileirando os produtos eróticos. — Está tudo aqui. Pelo visto não vou
precisar dar uns tapas no seu irmão.

— Ah, não, pode dar, mesmo assim... — Engulo as palavras, quando

vejo que Guilhermo me mandou um vídeo.

E está carregando...

Ai meu Deus...

Aperto o play e vejo os olhos chamativos dele.

A câmera abaixa um pouco, pegando boa parte do seu tronco, ele


permanece de máscara, mas é perceptível que está contendo o riso.

— Oi, Patrícia, muito obrigado por sua mensagem carinhosa. — Ele


acena com a cabeça e vira a câmera, vejo quatro fileiras de cadeiras, lotadas
de pessoas de todas as idades, todos eles de jaleco e máscara.

— Aê, cheias de piroca! — um grita.

Duas moças estão agarradas uma à outra, morrendo de rir.

— Aê professor, levando a piroca pra casa dos outros... — continuam


comentando.

— Como pode ver... — Guilhermo retorna a câmera para seu rosto


semicoberto. — Será uma noite longa aqui. Se cuidem!

Cutuco a Patrícia várias vezes, enquanto me enrolo nas risadas. Perco o


fôlego e preciso limpar os olhos. Não sei com que cara fico, só sei que
Guilhermo nunca mais vai ouvir um áudio meu alto, principalmente perto de

seus alunos.

— Ah, devia ter mandado o gemidão do zap... — Patrícia lamenta. —


Yasmin... — Ela para de repente, a feição pensativa. — Me dá isso aqui.

Como ainda estou rindo, entrego o celular nas mãos dela e tento me
recompor.

— Yasmin — ela me chama.

— Quê?! — Digo sem fôlego.

— Hummmm — Patrícia arregala os olhos. Ouço o som do print que dá


em algum momento do vídeo, pois ouço as risadas dos alunos de Guilhermo.

E vejo o que ela quer me mostrar, em um zoom que me impressiona.


Patrícia tem olhos de águia!

— Esse aqui não é o Dênis Bittencourt?

Meu coração para, como se algo muito errado tivesse acontecido.

Observo com cuidado o zoom e confirmo a suspeita da minha amiga.


Bem lá ao fundo, com cara de deboche, está Dênis Bittencourt, o pai de
Phellippo.

— Mas que merda é essa? — Meu coração congela.

— Mais uma emoção pra sua vida aí...


“Deus, de fato, joga dados. E o problema é que muitas vezes ele os
lança em lugares que não enxergamos”.

— Stephen Hawking.

A sexta-feira chegou e com ela a minha ansiedade a mil.


O decorrer da semana foi bem ocupado: finalizei algumas peças de
roupa que faltava entregar, Patrícia insistiu para que saíssemos novamente

para vender produtos evangélicos por aí, já que havia sido bem lucrativo; e
eu tive alguns pesadelos sobre encontrar Dênis e Guilhermo no mesmo lugar.

Os meus sonhos e delírios em usar um vestido de noiva e ter o meu


momento da vida foi se dissolvendo, pois Dênis estragava o meu momento.

Não lembro de ter dançado na boquinha da garrafa durante a Santa


Ceia, não entendo como a vida poderia me punir e ser tão irônica agora,
justamente agora que tudo parecia estar dando certo!

Conheci Dênis um pouco depois de perder a virgindade com


Guilhermo. Ele era aluno da mesma faculdade que eu, no curso de medicina –
mas esse detalhe não parece ter chamado muito a minha atenção antes.

O que tivemos foi intenso e eu estava louca para sentir novamente


aquela sensação de medo e excitação que tive com Guilhermo,

principalmente porque após o bilhete que me deixara, decidi bloqueá-lo e


seguir a minha vida.

Alguns meses depois descobri que estava grávida, quando numa aula de
direito tributário eu vomitei, e olha que nem era uma das cadeiras mais chatas
do curso...

Como ele reagiu?


— Abortar é uma opção?

Pisquei os olhos, incrédula. Acho que fiquei branca feito papel, pálida,

senti como se o sangue tivesse parado de correr em mim.

— Como assim... abortar?! — Tentei sorrir, mas o meu olho direito


piscava em um tique nervoso.

— Yasmin, nós dois somos tão jovens... eu pretendo fazer intercâmbio


nos Estados Unidos, quero continuar curtindo a vida com você... não
precisamos ser pais agora.

Fiquei muda, sem saber o que dizer. Mas acho que a minha expressão
de horror falou por mim, principalmente porque sempre fui muito aberta com
ele sobre meu sonho de criar uma família – e ele parecia animado com isso.
Mas ele tinha outros planos...

— Yasmin, pensa, não tem porque interromper essa fase maravilhosa


da nossa vida por causa de um bebê! Não faz sentido!

Preferi não argumentar com ele. Só corri e chorei. Fui encontrada por
Patrícia e Heloísa, que me acalmaram e ficaram ao meu lado nisso tudo.

Voltei a ver Dênis outras vezes, mas de certa forma o meu


inconsciente, o meu corpo, cada parte de mim o rejeitava. Rejeitei seus
presentes, suas investidas, seus pedidos para que continuássemos a sair... eu
sabia no fundo o que ele queria e por mais que estivesse machucada,
precisava seguir em frente.

Cuidaria do meu filho sozinha – eventualmente ele me surpreendeu ao

querer registrar a criança e pagar pensão, mas nunca quis conhecer o


pequeno.

Nunca soube se tinha aversão a bebês, se já não me via mais como


antes ou se apenas era um babaca de merda que não merecia uma lágrima

sequer! Ou tudo isso batido no liquidificador, servido com gin e dois cubos
de gelo.

— Oi. — Guilhermo para o carro em frente ao meu portão.

Precisa me chamar umas duas vezes para que eu saia de meus próprios
pensamentos.

Vigio pelas janelas para ver se está sozinho mesmo, o que parece bem
estranho para nós dois.

— Tudo bem com você?

— Tudo, sim. — Balanço os ombros e acompanho seu olhar surpreso


ao me ver com uma cesta e dois travesseiros.

— O que vamos fazer?

— Eu disse que era surpresa. Agora vamos!

— Vamos para onde? — Ele segura com firmeza no volante enquanto


me vê entrar, colocar a cesta grande lá no banco detrás e enfim colocar o

cinto.

— Eu vou te dizendo, confie em mim.

— Ok. — O suspiro impaciente dele já era esperado.

E eu me divirto bastante.

— Como foi a sua semana, Guilhermo?

— Cheia de procedimentos. — Ele manobra calmamente para dar a


volta. — Quando não estou operando, preciso supervisionar um monte de
cabeças ocas — reclama.

Um calafrio de horror sobe pela espinha só de imaginar que Dênis está


lá, perto dele, o tempo todo.

— Como funciona? — pergunto.

— Como funciona o quê?

— Isso de ter alunos em um hospital.

— Ah, a residência — ele diz suavemente, é divertido ver um vinco se


formar em sua testa quando reclama do trânsito, resmunga umas palavras em
italiano e volta a falar quando tudo está mais calmo. — É basicamente uma
pós graduação, em que médicos graduados aprendem uma especialização
dentro do hospital. No meu caso, dou aulas na cirurgia geral e atualmente sou
o chefe na equipe de cardiologia.

— Ah, você é um médico que cuida de corações...

— Não entendi o tom de ironia em suas palavras... — Guilhermo me


lança um olhar divertido e continua seguindo minhas direções malucas, que
vão desde: volta, volta, às vezes um vira à direita, não, esquerda, não, a
minha direita e quase sempre se assusta quando coloco a cabeça para fora da

janela e grito para os outros motoristas: Dá a seta, seu animal!

— É muito difícil ser cirurgião?

— É muito difícil costurar uma bela roupa? — Ele sorri de canto. —


Imagino que um errinho e você tem que começar tudo de novo...

— É — concordo.

— Na cirurgia, um errinho significa que não tem como começar tudo


de novo. É só uma chance, é necessário ser preciso, objetivo e lidar com

imprevistos. Não tem espaço para medo ou incertezas — mexe os ombros,


quase se alongando.

Mal termina de dizer isso, ele desvia e evita bater em um carro que
causou um acidente, bem diante de nós.

— Puxa... — Me seguro na cadeira, praticamente congelada.

— Ansiosa para voltar às aulas?


— Eu não sei... vou ter que ler tantas coisas... e fazer tantos trabalhos...
— Só de lembrar o quão puxado é o curso, fico tensa.

— Sei que vai conseguir. — Ele acena ao terminar de dizer e olha para
mim.

Não sei por que, mas toda vez que Guilhermo me encara, sou capaz de
sentir algo forte. Agora sinto muita confiança, sinto que alguém vai estar lá e

torcer por mim, isso me deixa animada para superar esse próximo desafio.

— Vamos fazer um piquenique? — Ele ri.

— Será? — Tento fazer um suspense. Mas com uma cesta grande


dessas, acho que não deixei muitas possibilidades no ar. — Estamos quase
chegando...

O trânsito nesse horário é bem engarrafado, mas tivemos tempo de


sobra para chegar à Praça do Pôr do Sol, um lugar no Alto de Pinheiros. Um
campo gramado com árvores espalhadas, espaço formidavelmente grande e

com uma vista privilegiada da cidade de São Paulo.

O sol ainda não alcançou o horizonte, mas está quase. E muita gente
está reunida ali, seja andando de bicicleta, passeando com seus cachorros,
correndo, ou até mesmo sentados na grama, aguardando o grande momento.

— Quem mais você convidou? — Guilhermo espia para fora da janela.

— Ninguém, somos só você e eu...


— Aham. — Seu tom irônico me diverte.

Saio do carro e pego a cesta e travesseiros. Me coloco a postos na

frente da porta dele para ajudá-lo, mas Guilhermo nunca aceita minha ajuda.
Típico dele.

O banco do motorista desce, pois o carro é alto, e ele está preparado


com a cadeira de rodas em seu colo. Monta-a com calma e maestria, eu

observo exatamente como faz, para um dia poder ajudá-lo.

— Vai ter palestra? Um show? — Ele liga o alarme do carro quando o


banco retorna e a porta trava.

— Um show! — digo, decidida, carregando a cesta ao seu lado.

— Banda local?

— Digamos que... Internacional.

Parece que expectativas foram criadas, a perceber pelo olhar dele.

Seguimos bem adiante, no meio da multidão, onde encontramos uma vista


privilegiada, quase debaixo de uma árvore.

Tiro um lençol de dentro da cesta e cubro o chão, nem precisava na


verdade, já que a grama parece ótima, mas não sabia se Guilhermo ia gostar
disso.

— Pode vir — o chamo quando está tudo pronto.


Ele dá uma espiada ao redor, meio constrangido em sair da cadeira de
rodas para vir para o chão. Agora não tem como, precisa segurar em minha

mão e confiar em mim para se equilibrar e ir ao chão. Sustento o peso de seu


corpo enquanto coloco os travesseiros atrás de si para amparar suas costas.

— Quanta gente... o show deve ser bom...

Tiro da cesta uns morangos bonitos que encontrei na feira, uvas sem

caroço, um brigadeiro que eu mesma fiz, e garanti que Patrícia não colocasse
qualquer tipo de encantamento. Pães de queijo que minha mãe fez e uma
garrafa de vinho. E taças, é claro, que cobri com panos de prato para não
quebrar.

— Acertei que era um piquenique.

— Que médico esperto. — Rio e coloco tudo bem bonito diante de nós.

Eu que não me contenho, já lambuzo um morango no brigadeiro e


provo para garantir que está bom. Está perfeito, na verdade!

— Por que não trouxe o Phellippo? — ele pergunta.

E meu coração parece que perde o compasso. Não esperava nem que
ele tocasse nesse assunto.

— É tudo tão colorido e ele poderia correr na grama... parece divertido.


— Ele observa atentamente as pessoas ao redor.

Em sua maioria são famílias ou casais. É fácil ver idosos em cadeiras


de praia, ou dois jovens apaixonados, já agarrados, olhando para os prédios
de concreto ao longínquo, as casas quase irregulares, algum verde também,

que faz essa cidade respirar.

Meu coração fica quente ao perceber que ele quis incluir Phellippo
nesse momento. Também acho que ele teria adorado, mas...

— Quero passar um tempo com você. Só nós dois. Vamos ter outras

oportunidades para passear com o PH.

— Só nós dois. — Guilhermo levanta uma sobrancelha e novamente


indica com o queixo toda a multidão ao nosso redor.

Ele se assusta bem de leve quando me deito em cima de suas coxas e


fico fitando o céu – sendo que em parte, desse ângulo, também tenho a visão
privilegiada de seu rosto e seus olhos prateados.

Guilhermo estende bem a mão, ouço-o respirar pesadamente, para


alcançar um cacho de uvas, começa a arrancar uma a uma com seus lábios. E

deita o braço direito em cima de mim, seus dedos alisando por cima da minha
camisa.

A sensação é boa e faz o meu corpo se arrepiar. Fecho os olhos para


aproveitar o momento e tentar afastar da minha mente todas as preocupações
que me consumiram durante a semana.

Não sei quanto tempo esperei para trazer alguém aqui.


Esse é um dos vários objetivos da minha lista de coisas a se fazer
quando encontrar alguém que valha à pena.

E eu torço, do fundo do meu coração, que Guilhermo seja esse cara.

Ouvir o som de animação das pessoas na praça, me faz abrir os olhos.

O sol começa a se por. Alguns têm em mãos celulares e máquinas

fotográficas para registrar o momento. Outros, têm apenas a mão ou o corpo


do parceiro para se agarrar e poder ver – e eu sou uma delas.

Sento e me recosto no peito de Guilhermo, sem dizer nenhuma palavra.


E eu me encaixo tão bem em seus braços que parece que encontrei o meu
lugar.

Ele está quieto e pensativo, vejo uma expressão em seus olhos que não
conhecia até então.

Não sei se é uma admiração ou um contemplar, de quando se encontra

algo tão complexo que seria capaz de deixá-lo sem palavras. Só sei que pelos
seus olhos prateados eu consigo ver refletido o céu num tom rosado que se
expande e desce quase que em carmim, por todo o horizonte.

O sol desce devagar.

Deixa um brilho alaranjado incandescente e as sombras começam a


engolir o horizonte, pelo menos em minha visão, prédios já começam a ficar
ofuscados. Nenhuma luz elétrica de poste que se acende ou janelas que se
iluminam ao longínquo são capazes de se comparar com o grande luzeiro,
que em seu último ato parece que brilha mais forte, quente, quase fazendo o

céu derreter em novas cores.

Para por fim... deixar a escuridão entrar.

O raio incandescente no horizonte permanece por mais alguns


segundos. As estrelas no céu, agora mais nítidas do que mais cedo, brilham

no manto azul escuro do início da noite.

A cidade, logo a nossa frente, parece viva diante das luzes artificiais.

O suspiro de Guilhermo me tira do transe em que me meti, observando


tudo. Não sei o que é tão engraçado, só sei que estou sorrindo.

Quando ele abaixa o rosto em minha direção e seu nariz toca em minha
testa, fecho os olhos e sinto sua respiração quente em minha pele. Seu braço
direito me aperta bem devagarinho, até sua mão estar em minha cintura.

Sinto o corpo pender para trás e eu vou, sem medo. Quando as costas
alcançam o chão, Guilhermo põe as duas mãos em meu rosto, encarando-me
em silêncio. Não sei quais brilham mais, se as estrelas ou seus olhos... só sei
que nunca me vi refletida nas estrelas, então estou pendendo a achar que seus
olhos são mais bonitos e brilhantes.

— Se me dissesse que queria ter uma vista da cidade no pôr do sol, eu


poderia te levar em qualquer mirante, qualquer terraço dessa cidade... — ele
diz.

— Eu não estou aqui só pela vista — sorrio e pisco os olhos.

E num aceno de cabeça que ele dá, sinto que entende.

Eu estou aqui pelo momento único que algo assim pode proporcionar.
Estou aqui para descobrir como ele reage à simplicidade, se confia em mim a

ponto de não seguir um GPS ou até mesmo é capaz de entender que não
preciso estar no prédio mais caro desse país para ter um momento que valha à
pena.

— Estou tão preso àquele hospital, que não lembro há quanto tempo
não vejo um pôr do sol... — Sinto o peso da sua mão por cima de mim, seu
rosto me encarando sem piscar.

— É... eu também... — Balanço os ombros.

As palavras parecem que se dissolvem no ar.

Não há muito mais o que dizer. Só os nossos olhares que permanecem


atentos, um ao outro, em busca de quem vai quebrar o silêncio primeiro.

E em meio a todo o barulho externo do voo dos pássaros, pessoas se


levantando para ir embora ou crianças gritando de animação, tudo o que resta
dos nossos barulhos é o choque macio dos nossos rostos. A mão dele me
agarra pelo pescoço e me puxa em sua direção, fazendo a noite se calar de
uma só vez.
Só ouço o som da sua respiração intensa e só sinto o seu toque em meu
rosto, guiando-me por seus lábios que ao me beijar, recuperam no céu as

cores de um pôr do sol. Não sei se são rosadas, lilases, vermelhas ou


alaranjadas, só sei que é incandescente.

O beijo me faz queimar, o beijo me faz perder o fôlego e sentir cada


parte do meu corpo viva e desejosa dele. Sinto uma conexão que não

precisamos forçar, que simplesmente surge na troca de olhares e que explode


com um beijo.

A sensação de ter sua barba entre meus dedos me arrepia e ao dedilhar


seus cabelos, parece que meu corpo se lembra de algo que eu nunca deveria
ter esquecido. O sabor de estar apaixonada, do coração que parece um relógio
com defeito e que quer voltar e ir ponteiros, sem lógica alguma.

A sensação de querer dizer todas as coisas do mundo, mas encontrar no


silêncio de um beijo tudo o que vale à pena ser dito.
“Não há problema tão grande que não caiba no dia seguinte”.

— Millôr Fernandes.

A noite chegou e Guilhermo e eu continuamos deitados, beliscando


algumas uvas e morangos. Divididos entre olhar para o céu escuro ou
vislumbrar a cidade lá no horizonte, passamos boa parte do tempo ainda em
silêncio, aproveitando a companhia um do outro.

Guardamos tudo dentro da cesta uma hora depois e nos dirigimos ao


carro. O tempo começou a esfriar bem mais do que eu havia esperado, mas
dentro do veículo era quente e aconchegante.

— Obrigado pelo dia de hoje, não sei se consigo colocar em palavras

como foi bom.

— Eu que agradeço por ter confiado em minhas direções e ter vindo


aqui. — Sorrio, percebendo que estou nervosa.

A essa altura do campeonato, já não deveria mais ter essa sensação,


mas Guilhermo me deixa assim, acho que preciso aceitar.

Ao mesmo tempo que sou acometida por uma sensação de alívio e paz,
um calafrio sobe por minhas costas quando estamos tão próximos um do
outro; e eu me sinto envergonhada e até paralisada de todas as coisas que ele

desperta em mim, das coisas que me dá vontade de fazer...

Começo a me sentir meio louca.

— Quer que eu te leve para casa? Ou quer ir a outro lugar?

— Sim, tenho outro lugar em mente — digo.

Guilhermo liga o carro, já com um sorriso largo que imita o de mais


cedo. O sorriso de quem sabe que vai passar apuros no trânsito porque vai
seguir as orientações de uma maluca.

— De onde você arranja esses lugares? — ele pergunta, quando

estamos na pista.

— Eu conheço a cidade, gosto de explorar novos cantos nela — eu rio.

Quando chegamos a um lugar isolado e que não tem vista para canto

algum, tampouco residências por perto, só as luzes dos postes a certa


distância e as estrelas muito acima de nós, peço para que ele pare.

— Esse lugar não parece que tem nada de especial... — avalia.

O que está acontecendo comigo? Por que estou agindo assim? E por
que mal consigo me movimentar agora?

Preciso sair da minha própria cabeça e lutar contra minha vontade de


ficar grudada ao banco para me levantar, giro de leve a chave do carro, não a
ponto de desligá-lo totalmente.

— O que você...?

Não sei o que dizer. Pressiono o indicador contra o nariz dele. Minha
mão direita passa pelo seu cinto de segurança, após retirar o meu e encontra a
alavanca que empurra a poltrona o máximo que ela vai para trás, dando um
espaço mais generoso do que eu pude imaginar.

Algo em mim pega fogo, porque eu o desejo e não consigo conter essa
sensação.
Só sei que o quero, cegamente, a ponto de ignorar onde estamos.

Não há nada especial nesse lugar, para falar a verdade... Só ele e eu.

— Você tem certeza de que quer fazer isso? — Ele se mostra surpreso,
mas não nega nenhum dos meus gestos.

Na verdade, Guilhermo me puxa pelo braço para cima do seu colo,

onde sinto o contorno grande em sua calça pressionar contra a minha. Perco o
fôlego ao sentir suas mãos contornarem meu corpo e me puxarem, quase
fazendo subir por cima dele, de tão intenso que é.

Eu devia me sentir obrigada a dar esse bebê a ele. Fazer sexo só pelo
objetivo final.

Mas não é isso o que eu sinto.

Sinto sede de sua boca e não consigo me conter, dou vazão aos meus
impulsos e me entrego aos desejos, pois quando faço o que quero, não fico

encucada pensando se deveria ou não, se ele vai gostar ou não.

Não sei como, nem porque, mas preciso do corpo dele.

Não é o tipo de opção que consigo aguentar ou suportar, é algo mais


forte do que eu mesma consigo entender. É como passar um dia abafado
debaixo do sol e ver água gelada, ao chegar em casa.

— Eu quero te chupar — digo baixinho, contra seus lábios.


Minhas mãos tão agitadas tiram o cinto da calça e a desabotoam logo
em seguida. Minha pele se arrepia ao tocar no pau dele por cima da sunga,

tão duro.

Pensei que poderia esperar, pensei que poderia me conter, mas eu me


sinto atraída e entregue aos meus próprios caprichos.

Ao sentir o cheiro da pele dele, a minha reage, como a boca seca

quando vê água. E quando meus lábios tocam a glande inchada de seu pênis,
meu corpo deixa de lado que está esquentando, ele literalmente pega fogo.

A sensação é tão gostosa e única que solto um suspiro longo.


Guilhermo segura em meus cabelos, vai afastando os fios que teimam em cair
e deixa o meu rosto livre.

Ao toque da língua a sensação é sedosa, quente, estimulante.

Meu corpo fica eriçado, meus braços até tremem, mas eu continuo. E
ele parece gostar, pois seus suspiros de excitação rapidamente se tornam

gemidos altos. E não preciso de mais que isso para sugar a glande até ela
preencher a minha boca, depois um pouco mais da extensão do pau que pulsa
em mim.

— Cazzo[22], isso é muito bom — Guilhermo se esparrama na poltrona,


deixando o corpo relaxar.

De joelhos dentro do carro, tenho espaço o suficiente para me mover,


arranhar suas coxas por cima da calça e engolir cada vez mais fundo, até
senti-lo quase em minha garganta.

Não sei onde esbarro ou aperto na hora de puxar a calça dele, mas a
porta do motorista se abre para cima e a luz da lua entra em direção ao corpo
nu dele.

Até tinha me esquecido como essa pele morena e durinha era apetitosa

de ser vista. E com a leve subida da camisa que dá, consigo ver seu abdômen
demarcado.

Só de sentir o pênis dele todo molhado em minha mão e masturbá-lo,


deixando-o cada vez mais firme e pulsante, meu corpo começa a indicar que
não preciso de roupa. Sinto-me sufocada e até desconfortável de estar vestida,
como se tirar cada peça pudesse fazer o corpo respirar e aproveitar melhor.

Deveria só tirar a calça e já estaria ótimo, mas fico inteiramente nua e


entregue diante dele. Não importa o que faça, não consigo desgrudar de sua

pele, do seu sabor, da temperatura que ele emana e que preciso em mim.

— Eu preciso te sentir — murmuro.

Nesse meio tempo em que estava me despindo, não percebi que ele
abriu os botões da camisa, deixando o peitoral livre. Aproveito para segurar
em seus peitos, sento em seu colo e sinto suas mãos fortes – uma em minha
nuca e a outra em meu quadril –, me puxando.
Solto um gemido baixinho e deito o rosto no ombro largo de Guilhermo
quando sinto seu dedo me tocar.

— Você já está assim? — Ele passa a ponta do nariz pelo meu rosto.

Vejo seu dedo úmido e acompanho com o olhar ele levar o dedo à boca
e chupar.

Não tenho outra escolha quando Guilhermo segura firme em minha


coxa e a levanta sutilmente, para me fazer sentir seu pênis pressionar em
minha vulva – e se eu tivesse escolha, faria exatamente isso.

Bem devagar, esfregando a glande a ponto dela querer escorregar para


fora, e quando entra, vem acompanhada de um grito que contenho, do corpo
todo ficando em estado de alerta, elétrico, completamente necessitado do
dele.

— É o jeito que você me deixa... — meu raciocínio está tão lento que
só respondi a pergunta anterior agora.

— É, você me deixa louco também — ele responde.

As duas mãos apertam minhas nádegas e obrigam meu corpo a descer,


a engolir, a sentir o pau grande me preenchendo, pulsando dentro de mim.
Não sei se tateio o teto do carro, se me agarro à poltrona ou a ele, só sei que
sinto o corpo imediatamente sentir-se saciado, como a boca que sentia sede,
agora tem paz ao encontrar sua fonte de água.
A boca fica entreaberta.

Eu tento respirar o quanto posso e solto um sopro de ar quente quando

minha cintura desce e sobe, guiada pelas mãos de Guilhermo. Cada


movimento me exige uma lufada de ar. O corpo se contrai, minhas mãos se
fecham segurando na cabeceira da poltrona e eu cedo às minhas vontades.

Em alguma parte dentro de mim, me pergunto o que ele deve achar de

uma louca arrastá-lo para canto nenhum, só para transarmos em seu carro.

Bem que poderíamos estar em um motel... ou em sua casa..., mas não


consegui me conter.

É como uma chuva que chega e não avisa. Que arrasta as plantações em
vento, água e pressão. Eu quero senti-lo, quero amá-lo, como se eu pudesse
ser saciada.

E eu sei que não posso, é exatamente como a sede. Ela vem, porque é
uma necessidade sem fim. Ela se abranda, mas nunca é vencida. E mesmo

quando se cala, está lá, escondida, pronta para exigir mais.

E foi exatamente assim no passar dos dias.

Ficar assistindo Guilhermo nadar em sua piscina, ir tão agilmente de


um lado a outro, de repente despertava algo em mim. Quando me dava conta,
estava dentro da água, no interior da sua casa, sendo espremida contra a
parede e sentindo meu corpo pedindo pelo dele.
E ser prontamente atendida era a melhor parte.

Beijei seus braços fortes enquanto segurava na lateral da piscina,

apertando meu corpo a cada novo impulso, a cada estocada que seu pau dava
vindo dentro do meu corpo. O som da água e o cheiro fresco do corpo de
Guilhermo me embriagam, me deixam louca de amor, abraçada a seus
ombros, sentindo seus olhos pegarem fogo quando observam minha pele.

Eu perco as palavras, fito o lustre dourado no teto branco quando ele


segura em meu pescoço e aperta de um jeito que vou perdendo o fôlego. Meu
corpo pende para trás, na cama, sentada em cima dele, rebolando sem parar,
sentindo algo em mim arder de paixão e compulsão. Quanto mais sinto que o
tenho, mais eu quero tê-lo.

Até as minhas visitas ao hospital, em seu dormitório, não passavam em


branco.

Me assegurava de trancar a porta e garantir que ninguém nos

interromperia, sentava em seu colo, seja na cadeira de rodas, na cama, em


qualquer lugar que pudéssemos estar juntos e o beijava até meus lábios
ficarem dormentes, senti-o dentro de mim até meu corpo sentir a exaustão e
minha mente exilar todo medo, todas as dúvidas e receios que eu tinha sobre
mim, Guilhermo, Dênis ou qualquer obstáculo que se transpusesse em nosso
caminho.
Éramos tão bons um para o outro que dois meses e meio de convivência
rapidamente pareceram anos. Eu estava basicamente vivendo o meu sonho de

princesa, como Patrícia diria... exceto por um detalhe.

Um pequeno, gritante e avassalador detalhe...

Eu não estava ficando grávida.

E não foi por falta de tentativas, pois a minha vida sexual foi de uma
foda a cada encontro mais ou menos para praticamente dia sim, dia não, até
quase se tornar todos os dias.

Às vezes eu mal pensava nesse detalhe, porque o sexo com Guilhermo


era tão bom que era capaz de me fazer esquecer tudo: o medo de estar de
volta à faculdade, a apreensão de a qualquer momento esbarrar em Dênis no
hospital ou até mesmo de não estar cumprindo o meu papel nisso tudo, que
era gerar seu herdeiro.

— Yasmin, olha pra mim — ele diz, quando estamos a duas quadras da

minha casa. — Fique tranquila. Temos sempre a última opção da


inseminação...

— Eu... eu não entendo... estamos fazendo tudo tão certo... — digo,


frustrada. — Meus exames normais estão bons, os seus também... ainda não
saíram os exames específicos, ainda assim, algo grave teria sido detectado
nas primeiras análises, não? Estamos seguindo o cronograma, não sei o que
pode estar havendo de errado...

— Não quero que fique preocupada — ele diz de um jeito firme e me

encara com um fino sorriso no canto dos lábios. — Vai acontecer. Na hora
certa. Eu sei que sim...

— Se eu não ficar grávida em menos de um mês... — Engulo em seco,


triste só de pensar na questão.

— Vai ficar. Eu garanto — Guilhermo sempre me acalma com sua voz


firme, que faz as dúvidas em minha cabeça desaparecerem.

— Acho que só estou cansada... — Massageio o rosto. — Foi uma aula


looonga de direito civil, li tanta coisa que minha cabeça está girando até
agora...

— Eu sei. Tome um banho quente e durma. Não esqueça que nesse


final de semana te apresento aos meus amigos.

— Ok.

Tudo bem que eu já conhecia os amigos de Guilhermo, mas nunca fui


devidamente apresentada, para além da pessoa que deveria ter o filho dele –
ou naquele momento em Fernando de Noronha que os vi na praia.

Guilhermo e eu concordamos que no início desse nosso


relacionamento, deveria ser apenas nós dois. Sem Patrícia, sem Phellippo,
sem hospital ou outras coisas, só nós dois. Para nos conhecermos, sabermos
bem o que um precisava do outro e transformar isso em algo mais sólido.

Dois meses depois, sinto que avançamos muito.

Consegui tirar parte da sua teima em querer fazer tudo sozinho e não
aceitar ajuda. E ele se mostrou muito mais do que um homem inteligente e
gostoso, além de parecer frio.

Guilhermo se mostrou um bom ouvinte, conseguiu mais de uma dúzia


de novas clientes para as minhas costuras e o mais importante de tudo: me
apoiou em tudo o que eu quis fazer.

Isso gerou um laço de confiança muito forte entre nós dois, mesmo em
pouco tempo.

— Boa noite. — Ele me puxa pela cintura e pressiona seus lábios nos
meus com delicadeza, sua mão ainda arrepia minha pele quando me toca.

— Boa noite, espero que tudo corra bem na cirurgia amanhã.

— Obrigado.

Saio do carro e ajeito a mochila nas costas. Com a mão tateando os


bolsos, procuro a chave de casa, quando subitamente paro, olhando o chão.
Vejo pequenos pontos, a maioria deles circulares, outros um tanto tortos, por
onde passa luz.

Ao levantar o rosto até o portão, minha pressão cai.


Dou alguns passos até amortecer o peso do meu corpo no carro, quando
vejo os furos de bala no portão. O muro também parece esburacado.

— O que foi? — Guilhermo diz lá de dentro, mas fico muda.

Só percebo que fiquei paralisada tempo o suficiente quando ele está ao


meu lado, em sua cadeira de rodas. Guilhermo examina o local com
incredulidade e eu ainda estou paralisada pelo medo.

— Cadê a chave? — Ele estende a mão.

Eu entrego, ainda com o cérebro paralisado. Só consigo me dar conta


de alguma coisa quando vejo o portão se abrir e Guilhermo segue adiante.

Ele é assim, nunca vacila. Se tem que agir, tomar a frente, fazer algo,
simplesmente vai.

De repente penso: o meu filho! Minha mãe!

Entro correndo, em disparada pela porta da frente.

— Mamãe? Phellippo? Patrícia? — Procuro-os.

Não estão na sala, não estão na cozinha. Subo e também não estão em
nenhum quarto.

Solto um grito de susto quando desço de volta à sala e vejo Patrícia sair
do escritório. Ela se agarra ao meu braço e eu ao seu corpo.

— Está tudo bem? O que houve? — pergunto, desesperada.


— Tiros. Tiros por todos os lugares — ela diz aflita.

— Onde estão...?! — Nem consigo finalizar a frase, vejo o rostinho de

PH espiar por detrás da porta e a minha mãe também.

A única reação que tenho é a de correr até eles e abraçá-los.

— Vocês estão bem? Aconteceu alguma coisa a vocês? — Checo um e

outro.

Parecem assustados, fora isso, nenhum arranhão.

— E o Diogo?

— Saiu há pouco — minha mãe informa.

— Gente, o que houve aqui?

— Não sabemos, amiga. Foi há uma hora, mais ou menos. De repente


começaram os tiros... — Patrícia aponta para a janela e porta da sala. —
Saímos correndo, atingiram até aqui — ela aponta para os cacos de vidro,

fiapos de madeira e depois me mostra marcas nas paredes.

— Chamaram a polícia? — pergunto.

— Sim, mas não vieram até agora...

— Meu Deus...

— Você não viu seu celular? Te mandei mensagem, para você não vir,
podia ser perigoso — ela diz aflita.
— Estão todos bem? — Guilhermo pergunta, lá de fora.

— Sim... todos bem... só meu irmão que ainda não voltou — digo, o

coração acelerado.

A primeira coisa que me vem em mente é a droga das apostas que


Diogo se mete! E eu pedi para que não se envolvesse mais com isso! Que
droga!

— Ligue para ele — Guilhermo diz, firme. — E vocês coloquem tudo o


que precisam nas malas e venham para o meu carro.

— Como assim? — pergunto.

— Não vão dormir aqui hoje. Peguem o que é necessário e fechem


tudo, vamos para a minha casa.

Não tenho nem tempo para discutir.

Ficou acordado no início que eu não iria para a casa de Guilhermo, não

se não fosse caso de emergência ou extrema necessidade.

E acho que isso se encaixa em ambos.


“Excesso de expectativa é o caminho mais curto para a frustração”.

— Martha Medeiros.

Já não estava sendo fácil ter que lidar com o fato de não ficar grávida,
agora eu tinha outra preocupação: esse atentado contra a minha casa; e meu
irmão mais novo, que pelo visto não tinha colocado a cabeça no lugar.

— Filho, pega só as coisas necessárias e me espera na sala! — eu repito

quando o deixo em seu quarto.

Coloco algumas mudas de roupa na mala, alguns produtos de higiene


até. Mas o que toma o tempo, de fato, é pegar todo meu material de costura,
os vestidos de noiva e algumas outras peças.

Depois dou um jeito de voltar e levar a máquina de costura e o que


falta.

Patrícia nem liga para as roupas. Joga o laptop dentro da mochila, sai
arrastando caixas e caixas de produtos eróticos numa sacola gigante e sai
correndo, feito uma maratonista até o carro de Guilhermo, depois volta para
pegar mais.

— PH — chamo sua atenção, não contendo o riso. — O que a mamãe


disse?

— Ovosuir no quarto pegar nechechário — ele desata a falar, não sei se


no início é algum tipo de latim ou aramaico, só sei que entendo o final.

— E o que você pegou? — Olho suas mãozinhas.

— Vrum vrum. — Ele faz o som e balança o carrinho que dei de


presente.

Também está com a mochila da escola – aberta – lotada de seus


brinquedos de super herói.

— Uma cuequinha, uma roupa, o bonito não pegou? — Coloco a mão

na cintura.

— Tô de roupa. — Ele olha pra baixo, confuso.

— Tá bem, vai até a vovó e entra no carro. — Indico o caminho que ele

deve ir.

Phellippo sai andando como se fosse um pinguim atrapalhado, no meio


do caminho para e encara a rede de balanço. Segura nela e tenta puxar, sem
entender que para retirá-la precisaria ser bem mais alto.

— Nechechário — ele explica, quando vê que estou observando.

— Vai — indico com a mão para que ele deixe isso pra lá e siga o
caminho.

Essa sensação de ir embora da casa dos meus pais, mesmo que só por

um tempo, me traz angústia. Lembro que quando bem nova, meus pais se
mudaram do Espírito Santo para cá, justamente para essa casa.

Foi aqui que construímos a nossa família, foi aqui que vivenciamos
nossos sonhos, percalços e dificuldades. É muito difícil ir embora agora, mas
não posso deixar a vida da minha família em risco.

— Pegou tudo? — Patrícia, a maratonista, agora está com uma caixa


cheia de cachaça e vela.
— Eu não faço ideia de como vamos colocar tudo isso no carro —
limpo a testa.

— Pra isso temos carro também, né? — Ela me lembra.

A tensão e nervosismo me deixaram tão cega que mal pude raciocinar.


Ouvindo isso, corri de volta ao escritório e puxei a máquina de costura o
quanto pude, até Patrícia me ajudar.

Guilhermo não comentou nada do tanto de coisas que colocamos na


parte detrás de seu carro. Só observou em silêncio, talvez se arrependendo de
nos convidar para sair dali e ir para sua casa.

— Todas prontas? — ele pergunta.

Aliviado de que acenamos que sim, tranco tudo e desligo as luzes do


lugar. Observo PH encostado na cadeira de rodas, tocando insistentemente o
dedo indicador na mão de Guilhermo.

— Oi.

— Quero digir seu carro — ele diz confiante.

— Você tem tamanho para isso? — O outro ri.

— Eu sou gande. — PH fica na ponta dos pés e se equilibra no braço


da cadeira.

— Outro dia eu deixo.


— Outro dia, que dia? Aqui a pouco?

— PH, precisamos ir embora. — Pego ele no colo, senão não vai parar

de falar.

Patrícia fica dentro do carro lotado de coisas, parecendo que vai


explodir a qualquer momento. Mamãe, PH e eu vamos com Guilhermo.

O caminho é bem longo e Diogo, meu irmão, não atende o telefone,


nem dá sinal de vida. Volto para casa, nem que seja sozinha, para buscá-lo.
Não importa a burrada que tenha feito, não deixarei que nada lhe aconteça.

Demoramos quase uma hora até chegar ao condomínio luxuoso de


Guilhermo. Minha mãe a princípio fica tensa, ela tem horror em cogitar viver
em um apartamento, mesmo quietinha no banco de trás consigo ver que está
nervosa. Seu semblante melhora um pouco quando percebe que é um grande
condomínio de mansões.

— Aqui é um lugar muito bonito e sossegado — Guilhermo explica,

encarando-a pelo espelho. — Amanhã de manhã levo vocês na administração


para registrar o carro e suas identidades. Vocês são minhas convidadas, então
podem ficar o tempo que quiserem e não se preocupem comigo, passo quase
três dias inteiros fora de casa...

— Obrigada, senhor... — Ela sorri timidamente quando percebe que


nem sabe o nome dele.
— Guilhermo — falo eu. — E essa é minha mãe, Lúcia.

— É um prazer, senhora Lúcia — Guilhermo sorri. E acompanha de

soslaio PH esticando o braço, tentando tocar no volante. — Chegamos — ele


anuncia.

Patrícia que estava logo atrás de nós, entra também na garagem. E aí


começa todo o processo de levar as coisas lá para dentro.

— Yasmin — Guilhermo me chama, quando já está em sua extensa


sala. — Recebi umas ligações do hospital, pode ser uma emergência, preciso
ir.

— Tudo bem... prometo que não vamos tirar nada do lugar.

— Fiquem à vontade — ele me tranquiliza. — Tem um quarto nos


fundos, junto da churrasqueira, você pode levar suas coisas de trabalho para
lá e fazer de escritório. E tem três quartos sobrando lá em cima, então
escolham e se organizem...

— Ok, obrigada.

— E continue ligando para o seu irmão. Ele deve estar bem, mas traga-
o o quanto antes.

— Tudo bem.

O jeito acolhedor de Guilhermo me deixa sem jeito.


Estamos há dois meses nos divertindo, nos conhecendo, tornando a
nossa intimidade algo natural. Mas infelizmente falta o ponto chave do que

nos uniu: não há sequer o vestígio de um bebê em minha barriga.

E mesmo assim ele não me destrata, não mudou comigo e não foi rude
em momento algum, jogando a culpa em mim.

Mas eu me culpo. Não tem como não me culpar.

Ele está cumprindo com todo o contrato que assinamos, e eu... não.

— O namorado da Yasmin é bem rico, né, dona Lu? — Patrícia ajuda


minha mãe a carregar as coisas.

— Ele é muito gentil, o Guilhermo — ela diz com timidez.

Está estampado em seu rosto que não se sente feliz por ter saído da casa
que um dia chamou de lar. No entanto, ela e eu sabemos que não conseguiria
ficar lá, não depois do que aconteceu essa noite. Nem que tivéssemos que

dormir em um hotel de beira de estrada.

— Parece um palácio. — Ela olha para cima. — O teto é tão alto que
parece que estamos no shopping...

E eu rio.

— Tem uma piscina gigante dentro da casa — informo.

— Sério?
— Sério, mãe. E tem aquele jardim na frente. — Aponto para o lado
oposto ao qual estacionamos. — E um jardim ainda maior no terraço, a

senhora precisa ver!

— Que homem de bom gosto.

Claro que ele tem bom gosto. Ele gosta de mim, não é?

— Patrícia, me ajuda a levar as coisas para o novo escritório. E você —


aponto para PH — fique quietinho no lugar, tá?

— Tá bom, mamãe — ele acena.

— Ótimo. — Seguro em uma das sacolas e vou levando para o fundo.

— A árvore! — PH sai do lugar, como se nem tivesse concordado em


ficar quietinho, meio segundo atrás. — Olha!

Ele vai até o meio da sala e coloca a mãozinha no tronco da árvore.


Fica encarando ela com estranheza, mesma impressão que eu tive, de achar

um absurdo algo assim no meio da sala.

— Tá seca — conclui.

— PH, o que a mamãe disse? Quietinho! Ali! — Aponto pro sofá.

Tenho medo dele correr e se machucar... ou se perder, afinal esse lugar


é gigante. Ou até mesmo encontrar o lugar que fica a piscina e se jogar. Esse
menino é muito inconsequente e faz umas maluquices que não sei de onde
puxou, já que eu nunca faço nada estranho...

— Por que essa cara de velório, Yasmin? — Patrícia bufa, cruza os

braços. — Até esses dias estava radiante... tudo bem, não estava nos planos
sair de casa, né?

Ela vai colocando as sacolas no canto do quarto. Ele é grande,


praticamente do tamanho da sala da minha casa, é bem espaçoso.

— Não é isso. — Fungo baixinho.

— Então o que é?

— Não estou grávida.

Minha amiga pisca os olhos, como se tentasse entender onde que isso é
problema. Depois parece que um lampejo em cima de sua cabeça revela o
motivo da minha frustração.

— Ah... e o que ele te falou disso?

— Nada — arregalo os olhos. — E isso é mais assustador do que se


tivesse brigado comigo. Temos menos de um mês agora... e não tenho mais
escolha, vou começar o tratamento para na próxima fase fértil, eu seja
inseminada...

— Então não é tão ruim assim... mas vocês estavam tentando, não é?!

— Sim?! — digo de olhos arregalados.


— Acha que a Heloísa conseguiria mais tempo, caso...?

Até a interrompo, de tão absurda que é essa ideia.

— Ficou maluca? Heloísa deve querer a minha cabeça, a sua, e a do


bebê que nem foi gestado! Ela deve nos odiar, por roubar a herança que ela
queria roubar!

— Tem razão — a outra observa, pensativa. — Bem... ao menos não


estamos no olho da rua agora — ela diz animada, olhando ao redor.

— Acha que mamãe e PH vão se acostumar ao lugar? — Volto a ficar


aflita.

A minha mãe tem dias e dias. Dias em que não sai da cama, dias em
que faz questão de levar Phellippo à escola, nem que seja para tomar um sol e
caminhar. Uma coisa é certa: ela raramente sai de casa, senão para fazer o
que está acostumada. Fico tensa só de imaginar como deve ser vir para um
lugar totalmente estranho, agora.

— Vai sim... ela precisava de uma mudança na vida... — Patrícia


balança os braços. — E vai que ela arranja um coroa rico... pra dar o golpe
da barriga...

— Minha mãe não tem mais idade para isso, Patrícia.

— Para arranjar um coroa rico ou para dar o golpe da barriga? — Ela se


diverte.
— Mas é uma palhaça mesmo! — Dou um tapa em seu ombro. —
Agora vem, preciso mostrar a casa pra mamãe e PH, porque o lugar é grande

e eles podem se perder...

— Que bom que conseguiu dar uma passada aqui — Kleber, meu
colega e amigo médico, diz assim que entro na sala. — Te liguei assim que os
seus exames específicos chegaram... espero que não tenha atrapalhado nada...

— Não, fique tranquilo.

Posiciono a cadeira de rodas em frente à mesa dele. Não consigo


esconder a tensão, mal tenho conseguido dormir nas últimas noites. E agora

vivo à base de café ou de algum energético, mas sei que isso é perigosíssimo
para o que faço. Fico duplamente mal nessa questão.

— Você sabe que pessoas que sofreram algum trauma na medula ou


ficaram paraplégicos podem ter dificuldade para engravidar alguém, certo?

Aceno positivamente.

— Não é necessariamente uma regra..., mas acontece. Então não fique


tão tenso, temos um departamento bom que cuida de inseminação, contanto
que você e sua parceira estejam dispostos a passar pelo processo, ele será um

sucesso.

— Ok.

Fico cada vez mais aflito enquanto ele abre a resposta do exame. E
quase salto para fora da cadeira quando a porta se abre e Ayslan entra. Tira a

touca cirúrgica, mostrando seus cabelos em um coque, puxa a cadeira ao meu


lado e se senta.

— E aí, qual o resultado? — pergunta, mais ansioso que eu.

— Ele ainda não abriu... — sibilo.

— Bem... vejamos... o seu esperma está em ótima qualidade, ao que


tudo indica. Você não tem tido problemas nas ejaculações, não é? — Kleber
fica interessado enquanto vê os papeis.

— Eu... demoro... bem mais que o comum..., mas... — Fico


desconcertado, ainda mais com Ayslan me encarando tão de perto. — Sim, eu
ejaculo.

— Dentro dela? — Ayslan pergunta.

Empurro seu rosto para longe do meu.

— Cazzo! Que tipo de pergunta imbecil é essa?


— Não sei, se a qualidade do esperma está boa e você está fazendo seu
trabalho... — Ele para de falar e fecha o cenho.

E isso é pior do que qualquer outra coisa que ele possa dizer.

— Guilhermo — Kleber chama a minha atenção.

— Hum? — Não sei se estou constrangido por ter minha intimidade tão

exposta assim, ou se estou mal por não estar conseguindo fazer esse bebê.

— Tem a possibilidade...?

— Do quê? Fala de uma vez, homem!

— Dela não querer esse bebê?

— Como assim?

Até Ayslan conserta sua postura na cadeira e encara o outro médico.

— Você sabe... você está fazendo o seu papel... Onde estão os exames
dela? Ela está colaborando? Será que não está tomando uma pílula do dia

seguinte ou algo assim?

Que maldita sensação essa. Vai além do que simplesmente perder o


controle da situação: dessa vez é da vida.

— Não — respondo de imediato.

Yasmin assinou um contrato e parece que está tão disposta quanto eu


para que isso dê certo. Nos últimos tempos nos aproximamos muito... e tem
se tornado cada vez mais real a possibilidade de construirmos essa família.

— Seus exames estão em dia — Kleber estende os papeis.

Ayslan é mais rápido e os agarra no ar, confere cada coisa ele mesmo e
independente do que fale, eu confio.

— É, estão certos — ele pondera, o cenho fechado. Depois encara

Kleber, incomodado. — Não acho que duvidar da garota dele é certo. Podem
ter outras razões...

— É claro que sim — o médico assente. — Só estou checando todas as


possibilidades... garantindo que estamos observando todas as causas, para
resolver o problema.

— É — respiro fundo, num suspiro que faz meu corpo tremer. —


Obrigado, Kleber.

— Estou sempre à disposição — ele diz, antes de Ayslan e eu sairmos.

Passamos pelo corredor do Rota da Vida, meio distraídos. Eu fico


calado, não quero abrir a boca e dizer alguma coisa da qual vou me
arrepender. Mesmo que meus exames digam que estou bem, me sinto
abatido. Sinto que de alguma forma a culpa é minha. E Ayslan me encara, sua
presença é como um elefante no meio da sala.

— Você ainda tem um tempo...

— Vou perder a herança, sinto muito.


— Cala a boca e me escuta — Ayslan diz firme. — Temos a última
cartada na manga. Ela vai ficar grávida, confie em mim.

Acho divertido ele usar o “temos”, só porque tem coisas na herança a


receber e mais do que ninguém quer que Yasmin fique grávida.

— Eu estou entrando numa exaustão mental ridícula. — Sacudo a


cabeça. — Estou sem dormir... eu fiz minha parte, tentei de todas as formas...

ela também. Eu sei que sim. Não entendo...

— Isso é frustração — Ayslan observa, põe a mão em cima do meu


ombro. — Você já sentiu isso antes, quando não conseguia nem virar o
tronco para os lados. Ou levar as mãos até as costas. E cá está você, dois anos
depois, entre fisioterapia e acompanhamento psicológico, nadando feito um
atleta.

— O que isso quer dizer?

— Que a frustração passa. Eu te entendo. Mas não pode se deixar ser

vencido por isso...

Quando saímos do corredor, entramos por uma porta que só


funcionários tem acesso e saímos no grandioso hall de entrada do hospital, e
continuo a empurrar a cadeira de rodas, distraído. Ayslan, entretanto, estica o
pescoço e aperta meu ombro.

— O que foi? — rosno.


— Aquela não é sua mãe? — Ele aponta, a muitos metros de nós.

Assistimos ela sair pela porta da frente e só dura um segundo essa

visão, pois em seguida ela entra no carro.

— Pensei que ela tivesse voltado para a Itália...

— Vai ver, já voltou ao Brasil... — Balanço os ombros. — Ela gosta de

aparecer na sala da vice presidência sem avisar... parece que virou rotina...

— Aham — Ayslan solta a cabeleira. — E tudo está certo no final de


semana, para Lisa, boquinha de mochila e eu conhecermos a Yasmin?

— Não só ela. — Encaro sua surpresa. — A família toda.

— A família toda? Como assim? Pensei que só iam se casar se de fato


se apaixonassem, após ter o bebê...

— Ih, história longa, Viking — reclamo.

— Tá com pressa? Meu plantão acabou.

Após refletir um pouco e examinar o meu cansaço, decido por ir ao


restaurante do hospital com ele, para tomar um café forte.

Na madrugada precisarei monitorar alguns residentes que estão


trazendo um coração lá do nordeste e no início do dia preciso entrevistar
alguns pacientes que precisam passar por procedimentos.

Não custa nada contar a Ayslan tudo o que aconteceu.


“Naquele dia, fazia um azul tão límpido, meu Deus, que eu me sentia
perdoado para sempre. Nem sei de quê”.

— Mário Quintana.

O final de semana chegou, junto com Diogo.


Acho que em algum momento ele deve ter percebido que não sabia
cozinhar, lavar uma roupa e limpar a casa. Então parou com a teimosia de que

não queria morar na casa dos outros e veio até nós.

Eu devia estar alegre nesse momento. Esse cenário era tudo o que eu
sempre quis na vida: gostar de alguém e poder apresentar a minha família,
conhecer a sua – os amigos de Guilhermo eram como sua família –, e poder

sentir que tudo ia bem.

A não ser, é claro, pelo fato de que eu não estava grávida.

Outras pessoas não entenderiam a questão, principalmente porque na


vida a dois, as pessoas preferem esperar o filho depois de tudo estar em seu
devido lugar. Mas Guilhermo e eu não temos essa opção.

O relógio não está a nosso favor.

— Que cheiro bom, dona Lúcia — Guilhermo comenta.

Insistiu em contratar um buffet, fazer algo chique. Mas minha mãe


queria se sentir útil, estava incomodada por estar na casa de favor e sem fazer
nada... então inventou de fazer um feijão tropeiro cheio de carnes e farofa,
arroz, um salpicão que só ela sabe fazer, e Guilhermo garantiu que o amigo
Ayslan faria o churrasco.

— Não está se sentindo bem?

Essa pergunta de Guilhermo era carregada de um duplo sentido.


Tinha um quê de excitação, esperando que eu estivesse enjoada, um
pouco fatigada, mas não. Também era uma preocupação sobre meu humor,

porque eu não estava feliz com a situação.

— Hoje seria o dia em que revelaríamos a todos a minha gravidez... —


suspiro, mordo o lábio inferior. — Mas não estou...

— Vamos conseguir — o sorriso dele me passou alguma confiança,

parece até que renovou as minhas energias.

Em outra ocasião, com outro cara, imagino que já teria sido chutada. E
no mínimo Guilhermo processaria Heloísa, alegando que a pessoa que ela
colocou como condição de receber a herança, estava se negando a colaborar.

— Não fique assim, você não está fazendo nada de errado...

— Meus exames saem amanhã. Espero que não tenha nada de errado
comigo...

— Não há — ele assegura.

Sou salva pelo gongo. Digo, a campainha. Guilhermo vai atender os


amigos e PH corre atrás. Meu filho não consegue desgrudar dele, o observa, o
imita, e insiste sem parar pra entrar no carro e segurar o volante.

— Está tudo pronto.

Dou um salto no lugar e levo a mão ao peito. Patrícia quase me fez


morrer do coração.
— A comida está pronta?

— Que comida o quê! — Ela faz uma careta. — A macumba.

— Que macumba, Patrícia? Te pedi alguma coisa?

— Não. Mas eu consigo assistir suas lamúrias em silêncio? Não. Então


minha filha, eu fiz.

— Fez o quê?

— Uma macumba, ué. Um feitiço. Um ebó. Um despacho. Uma


batidinha bem de leve no tambor.

— Você sabe que isso é um termo meio pejorativo, né? Macumba é um


instrumento musical... isso seria uma oferenda, imagino.

— Óbvio que eu sei, porque eu sou macumbeira, mas eu sou vegana —


ela pisca. — Mas eu gosto da palavra macumba. Algum problema? Oferenda
não é impactante. Oferenda! — ela diz ao pé do meu ouvido. — Feitiço...

ebó...

Mas estou distraída e tensa, pensando em como os amigos de


Guilhermo vão reagir ao saber que a herança que eles também vão receber,
não está nada garantida.

— Macumba — ela sussura em meu ouvido e viro o rosto rapidamente,


encarando-a. — Viu? Tem presença. Por isso que gosto. Ademais, é gostoso
se apropriar de uma palavra que usam para te diminuir. É meio libertador.
— Tá bom. — Balanço os ombros.

— Eu fiz um alguidar lindo! Uma farofa flambada na cachaça...

pimentas dedo de moça gigantes e muitas, muitas, muitas pétalas de rosa.


Vou deixar aqui no jardim, precisa dormir aqui essa noite, depois vou levar
em um jardim bem lindo e florido, cheio de crianças, sem lixo, em frente a
uma igreja. Vou ver se acho uma de Santo Antônio...

— Patrícia — interrompo o monólogo do trabalho espiritual dela. — Tá


bom, não precisa me ensinar. Se você já fez, imagino que não pode mais
reverter, então deixa...

— Tá.

— Agora disfarça que estão vindo.

Imediatamente ela vira de costas e empina a bunda, parece até que vai
quebrar de tão envergada que está.

— Tô disfarçada de pista de decolagem de foguete da NASA. — Ela ri


baixinho.

Essa maluca...

— Boa noite! — Ayslan chega até nós, na entrada. — Ah, já nos


conhecemos. — Ele aperta a mão de Patrícia.

— Podemos nos conhecer melhor. — Ela faz uma cara de que não vale
a roupa que veste.
— E a futura senhora Lamarphe... posso chamá-la assim? — Ele
balança as sobrancelhas pra mim.

— Yasmin está bom. Oi, Ayslan, seja bem-vindo.

— Ah, eu adoro a casa cheia! — A mulher de feições orientais bate


palmas. — Uma festa! Em família! Não é lindo, Kim? — Vira para a filha.

A criança de olhos puxados está com uma mochilinha de ursinho. O


cabelo cortado tipo em chanel, faz sua cabeça parecer uma tigelinha.

— Cadê a comida? — a pequena pergunta.

— Ah, não seja mal educada. Cumprimente os adultos.

— Oi — ela diz, simpática. — Tem comida?

— Ah, a boquinha de mochila. — Guilhermo chega, e PH em sua cola.


— Sempre faminta... Por que você e o Phellippo não vão brincar? Quando a
comida estiver pronta, o tio avisa.

— Eu quero é comida — ela sai chutando o ar, alisando a barriguinha.

Phellippo vai atrás, examinando a mochila. O garoto é super expressivo


e conversador, enquanto a outra só pensa em comer e fica de cara feia quando
não está comendo.

— Yasmin, essa é a Lisa — Guilhermo nos apresenta formalmente.

— Já nos vimos, na praia. — A mulher sorri, seus olhos se fecham. —


Você é tão bonita quanto ele nos contou, ficamos bem...

— Que ótimo. Vamos para a cozinha, tem bebida, tem uns petiscos...

— Guilhermo a interrompe.

— Ok.

Diogo fica no sofá, mexendo no celular, bem antissocial. Dou um

tabefe em suas pernas, quando passo por ele.

— Tire os pés dos braços do sofá — reclamo.

Ele jurou que parou com as apostas. E jurou que não teve nada a ver
com o nosso portão, janelas e porta que foram alvejados de balas. Não quis
trazer um peso desnecessário a nossa relação, então fingi que acreditei. Mas o
que mais poderia ter sido? Só ele se metendo com coisa errada, é claro.

— Essa é a dona Lúcia do Amor, a mãe da Yasmin — Guilhermo a


apresenta.

— Sua futura sogra. — Ayslan abre uma longneck e já começa a beber.


— Ela é bem jovem, nem parece que é avó...

Reparo na feição da minha mãe e ela fica vermelha, igual um pimentão.


Vira o rosto quase de imediato, de volta à comida. Acho até que sorri em
algum momento.

— Eu conheci a Lisa e o Ayslan na USP. Eles vieram fazer


intercâmbio... eu já estava no Brasil há algum tempo... e depois fomos ser
residentes juntos no Rota da Vida, hospital que é em parte do meu tio
Lamarphe... — Guilhermo começa a explicar de onde conheceu os amigos.

— Seu hospital — Ayslan observa.

— É... estamos caminhando para isso — o outro diz, com a voz macia.

“Estamos caminhando para isso” significa: estamos transando sempre.

Mas não há sinal de bebês...

— A minha mãe não sabe — suspiro algo e chamo a atenção dela. — E


eu não sei nem como contar...

— Oh... — Lisa fica boquiaberta.

Ayslan vira a garrafinha na boca. E minha mãe fica apreensiva, me


encarando.

Como conto? Não faço ideia. O plano era chegar aqui hoje e dizer: oi
gente, estou grávida! Mas como faço isso agora? Vai soar bem estranho.

— Guilhermo e eu estamos tentando engravidar... — É tudo que sai,


não sei nem como prosseguir, diante da reação dela.

— Como assim, Yasmin? — Ela até solta a panela e escora no balcão.


— O que quer dizer com isso? Vocês mal se conhecem...

— É que... veja bem... nós... — começo a gaguejar e suar.

— Nós estamos muito apaixonados — Guilhermo diz, após pigarrear.


— Eu a amo. Ela me ama. Não tem por que esperar — ele examina o

desconforto inicial do rosto dela começar a desaparecer. — Queremos dar um

irmãozinho... ou irmãzinha pro Phellippo. Para que cresçam juntos,


aproveitem a companhia um do outro, sejam amigos...

Ela concorda, bem devagar, examinando minha feição pálida.

O silêncio que se segue, pelo menos pra mim, é meio constrangedor.

— Eu a pedi em casamento — Guilhermo reforça suas boas intenções.


— Mas ela disse que preferiria que isso ocorresse após o nascimento da
criança.

Lisa fica paralisada, o copo vazio em sua mão parece até pesado.
Ayslan continua com o rosto virado para cima, a boca no gargalo da
longneck, não há mais nenhuma cerveja ali. Guilhermo continua com seu
sorriso galante e tranquilizador, com ares de médico que sabe o que está
fazendo.

E eu fico travada no lugar.

— Bem... se é assim que vocês jovens fazem hoje em dia... — Ela


balança os ombros.

Para a minha total surpresa.

— Mas Amauri, meu falecido esposo, pensava assim também. Quis ter
o Diogo quando Yasmin tinha quatro anos... quase a mesma idade do PH. Ele
disse bem isso... que seriam amigos... fariam companhia um ao outro... —
seus comentários transparecem uma saudade e um amor que não se apagam.

— Minhas condolências, senhora do Amor — Lisa diz e afaga o braço


dela.

— Eu vou... cortar e preparar a carne pro churrasco... — Ayslan


começa a se mexer.

— Tá, eu acendo a churrasqueira — Guilhermo diz e vai lá para fora.

Consigo acompanhá-lo com o olhar porque a parede da cozinha que é


voltada para os fundos é toda de vidro, coisa muito estranha, principalmente
de noite quando perambulo pelo lugar em busca de água.

— Queria ter contado em um momento melhor, mãe... — Seguro em


seu ombro.

E o momento seria quando eu estivesse grávida, ou seja, a essa altura

do campeonato.

— Tudo bem... É a sua vida, você já é adulta. Voltou a estudar... está


trabalhando tanto... pensei que esperaria para fazer a família crescer... — Não
consigo identificar se sua voz é de um lamento calado, saudades do papai ou
só a surpresa.

— É, mas...

Quase escapa de meus lábios que estou sendo obrigada a ter um bebê.
Não que eu não queira, quero sim. Só Deus sabe como agora quero. E já
tentei dentro do carro, na cama do Guilhermo, dentro da piscina, em cima

dessa mesa... em tantos lugares...

— Mas a senhora não sente falta de um neném em casa? — Lisa diz


com tanto carisma que até eu sinto falta. — De pegar no colo... ninar... dar
aquele carinho que só uma avó consegue...

Minha mãe parece que amolece.

— Sim... foi bem gostoso com o Phellippo... e como o pai nunca quis
conhecê-lo, Amauri e eu tentamos suprir a ausência...

— Pensa só no primeiro banho do novo bebê... Imagino que a Yasmin


vai querer que seja a senhora a dar... — Lisa continua afagando o braço da
minha mãe, com um sorriso encantador.

Mamãe me olha de soslaio, quase perguntando se isso vai acontecer.

— É claro — digo de imediato.

— Pensa no bebê engatinhando... descobrindo tudo... o primeiro


dentinho... a primeira palavra... ele aprendendo a andar... caindo... — Lisa é
médica ou uma profissional da hipnose?

O que me deixa ainda mais intrigada é que ela sabe do contrato que me
obriga a ter a criança. Ela estava lá, na leitura do testamento e é uma das
beneficiadas. Mas ela tem um tato, um dom humano, que me surpreende.
— Você parece saber muito de bebês. — Minha mãe sorri, sem
nenhum outro sentimento além de calmaria e esperanças de que uma nova

criança venha.

— Eu adoro a minha! Não gostaria que crescesse! — Faz uma careta.


— E sou pediatra. Cirurgiã pediatra, na verdade, mas sou pediatra. Então
sabem que podem contar comigo para cuidar da saúde do filho ou filha de

vocês, quando precisarem. — Ela acena gentilmente com a cabeça.

E eu confiaria cegamente nela, principalmente após esse momento.

— Voltamos — Guilhermo e Ayslan aparecem.

Daqui consigo ver a churrasqueira ligada e algumas carnes já a postos.

— O que acham de morar no Brasil? É muito diferente de onde vocês


são?

Fico completamente chocada quando ouço minha mãe perguntar isso.

Ela é tão calada, gosta de ficar na dela e observar. Raramente consegue trocar
mais do que um “oi” com um estranho.

— O Brasil é muito bom. Temperatura agradável, muita


biodiversidade. — Lisa se senta à mesa e minha mãe a acompanha.

— É, as pessoas são calorosas... de onde viemos... lá na Europa e


Ásia... as pessoas não são muito carinhosas, não gostam de abraçar ou se
aproximar — Ayslan diz.
— Na Itália eles são um pouco calorosos, sim — Guilhermo torce o
nariz.

— Tanto quanto no Brasil? — o amigo provoca.

— É... não é pra tanto... — Guilhermo admite.

— Ah, eu gosto que as pessoas se cumprimentem com abraços

quentinhos. — Lisa franze o nariz, quase numa careta. — Na Coréia só te


abraçam quando é um parente de um paciente terminal que você salva a vida,
como demonstração de gratidão.

— Acho que nem isso às vezes... vocês gostam de se curvar... —


Ayslan volta a beber.

— É... nem sempre acontece. No Brasil, você vê a pessoa e abraça. Eu


gosto. — Ela ri e coloca cerveja no copo.

Eu estou tão chocada que não sei o que estou vendo: minha mãe está

entretida, sorrindo e compartilhando histórias com completos desconhecidos.


Mal a reconheço agora!

E sinto um alívio que deixa meu corpo leve, por ninguém estar me
olhando e julgando por não estar cumprindo com os acordos estabelecidos...

— Yasmin, faça um vestido bem bonito e dê a essa mulher — minha


mãe sussurra, quando me puxa consigo de volta ao fogão. — E um terno para
aquele altão cabeludo. Eles são pessoas boas.
— Pode deixar, mamãe...

A observo terminar de cozinhar.

É engraçado, quando criança eu gostava de observar meu pai costurar e


minha mãe cozinhar. Queria aprender o que eles sabiam. Adquirir suas
habilidades. E hoje estou aqui, costurando, não tão bem quanto papai, e
ajudando mamãe com o jantar.

— Como a senhora está se sentindo depois de ouvir tudo isso?

Espero seu julgamento. Minha mãe nunca foi uma pessoa de duas
caras. Quando desgosta, mostra na frente das pessoas, sem medo das
consequências. E ver seu semblante tranquilo, me deixa aliviada.

— Só não quero que repita os mesmos erros do passado... ter um filho


com alguém que nem quis conhecer o menino...

— Mas o Guilhermo não é assim, mamãe.

— Então tudo bem... — ela diz.

Assim, tão fácil que me assombra.

— Tudo bem? — A abraço pelo pescoço.

— É... a doutora tem razão... um bebê até que faz falta...


“Quanto mais um homem se aproxima de suas metas, tanto mais
crescem as dificuldades”.

— Johann Goethe.

O cheiro da comida rescinde no lugar, mas ainda não está pronta.


Por isso ocupamos o tempo conversando, bebendo e lembrando do
passado, principalmente quando Lisa, Ayslan e eu nos conhecemos. E

conforme a interação desenvolve, observo o humor de Yasmin.

A princípio imaginei que a noite seria um completo desastre. Meu


amigo Viking gosta de ser inconveniente e Lisa não fica atrás, fala pelos
cotovelos e vai tentando descobrir a vida dos outros. Que combinação inédita

essa, parece que a mãe de Yasmin gostou deles e isso já foi meio caminho
para que ela ficasse tranquila.

— Preciso pegar umas garrafas de vinho, você me ajuda? — Seguro em


sua mão.

O tom de surpresa na feição dela se mescla a um sorriso de canto.

Pedimos licença e vamos à adega da casa, que fica no subsolo. O


ambiente é espaçoso o suficiente para que eu transite com a minha cadeira,
mas as prateleiras são bem altas e não alcanço.

Yasmin se mostra surpresa em ver o lugar, acho que não tinha reparado
que no elevador havia um botão para descermos para além do térreo.

— Isso são barris de carvalho? — ela pergunta, surpresa.

— Sim. De uma época em que Ayslan e eu estávamos fazendo cerveja


artesanal. — Sacudo a cabeça, mostrando que não é importante. — Quero
que pegue aqueles ali. — Indico com a cabeça uma parte bem alta, mas que
ela pode alcançar. — Pode pegar umas quatro garrafas.

Yasmin se estica na ponta dos pés e pega de um a um e vai colocando

no chão, bem longe de si, acho que prevendo que pode tropeçar.

— E qual a comemoração especial?

Quando já está com a última garrafa em mãos, envolvo sua cintura com

as minhas mãos e a puxo para cima de mim. O corpo dela fica imediatamente
tenso e paralisado. Giro suavemente a cadeira, suportando nosso peso.

— Nossas famílias se conhecendo. Não é motivo o bastante?

Ela faz um bico. E eu passo o polegar por cima dele.

— Não faça essa cara.

— Estou preocupada... só isso...

— Pode ficar preocupada em algumas semanas. Até lá não tem por que
se preocupar.

— Não? — Seu sorriso é acompanhado de ironia.

Acho que essa é a hora de acalmá-la.

— O bebê vai ser gerado, Yasmin. Não precisa ficar tensa.

— Mas...

— Eu entro com recurso. Provamos, pelos nossos exames, que estamos


tentando... tem a inseminação... às vezes bebês nascem antes de nove meses...
existem tantas possibilidades...

Com o mesmo impulso que levanta os ombros, ela os abaixa, com um

semblante derrotado.

— Não faça essa cara — aperto sua cintura e a puxo para meu ombro.

Beijo sua testa e sinto minha respiração entrecortada quando estou

perto de seus lábios. Eu, mais do que ninguém, deveria estar tenso por essa
demora. Ao mesmo tempo, estou descobrindo um novo eu, junto a ela e estou
aproveitando isso.

Já havia aberto mão de ter a herança e deixar para as próximas


gerações, isso não era problema. O que pegava eram as produções científicas
do Alfredo e sua parte no hospital, mas até nisso sinto que posso dar um jeito.

— O mais importante é que você esteja comigo nessa.

— Eu estou.

Não preciso de mais nada, além disso. Acaricio seu rosto com demora e
toco seus lábios da mesma forma. Sinto o fôlego dela invadir a minha boca,
ela se entrega bem devagar e timidamente no beijo, e isso me deixa excitado.

Seguro firme em seu vestido, tentando me conter para não tirá-lo.

Mas aproveito seus lábios o quanto posso, deixo a língua passar


suavemente por cima da língua dela. Quando Yasmin envolve seus braços em
meu pescoço é bem mais difícil me conter, quando menos percebo estou com
as mãos no zíper de seu vestido, mas novamente me controlo.

Somos salvos pela campainha.

Se não fosse por isso, ficaríamos aqui mais alguns minutos e eu não
responderia por mim...

— A sua mãe adorou a ideia de ter um novo neto. E gostou dos meus

amigos...

Ela sorri, sinto a palma macia de sua mão contornar meu rosto.

— Acredite, meus amigos não valem nada.

— Acredite você, ela praticamente adotou a Patrícia como uma terceira


filha. E a Patrícia não vale nada — ela informa.

— Vamos aproveitar essa noite, sim? Depois resolvemos tudo, você e


eu.

— Ok... — ela suspira levemente e tenta se levantar.

— Não disse que era para se levantar — resmungo.

Volto a empurrar a cadeira e paro ao lado das garrafas que ela deixou
no chão. Yasmin as pega, deixa em seu colo e eu nos levo até o elevador.

Continuo a sentir o cheiro gostoso de seus cabelos diante do meu rosto.


É difícil deixá-la sair do meu colo, mas antes que a porta se abra, ela se
levanta e afaga meus cabelos. Diz “obrigada” com os lábios e volta para a
cozinha.

Dirijo-me até a porta de entrada da casa, vejo as crianças brincando no

jardim – um milagre que Kim Han não tenha reclamado de não ter comida
ainda – e abro o portão.

Sou pego de surpresa ao ver duas mulheres passando por ele: a minha
mãe e a doutora Érica do Rota da Vida.

De todas as duplas improváveis que eu poderia imaginar, essa é de


saltar os olhos.

Érica vem, os olhos fixos em mim. Já a minha mãe, para no lugar um


segundo ao se deparar com as crianças, depois segue depressa, quando
percebe que ficou para trás.

— Ah, você já tem convidados — ela observa, com o humor instável.

— É. Boa noite — cumprimento as duas. — O que fazem aqui?

— Uma mãe não pode visitar seu filho?

Mostro com a cabeça que sim, essa é uma discussão vencida.

— Juntas — ressalto.

Érica entreabre a boca, não passa despercebido sua hesitação. Já a


minha mãe, joga sua bolsa em meu colo.

— Estava no teatro quando encontrei a família Dourado — ela


movimenta a cabeça quando diz o sobrenome de Érica. — Convidei-os para

jantar, mas os pais da Érica preferiram voltar para casa... então me perguntei

como meu filho estava... não o vejo há tanto tempo...

— Certo.

Ela volta a espiar as duas crianças e novamente apressa o passo, passa


por mim e deixa Érica para trás.

— Espero que não estejamos incomodando... — diz.

— Era só uma pequena reunião familiar — balanço os ombros e a


convido para entrar.

Minha mãe parece de todo, horrorizada.

Primeiro quando passa e vê um rapaz jogado no sofá, o irmão de


Yasmin, solta um suspiro ou um grito contido de surpresa e pavor.

Depois segue o som e vai parar na cozinha, não sem antes olhar duas

vezes para trás.

Érica e eu não vamos com tanta pressa, mas também não falamos nada
um ao outro.

Ela me convidou anteriormente para conversarmos sobre meu instinto


inquisidor e eu fui. Fui com Ayslan e Lisa, que certamente seriam os meus
braços direitos se um dia eu assumisse o hospital. A conversa foi tão rápida e
improvisada da parte dela que me perguntei se havia mesmo se preparado
para debater as questões do hospital.

De toda sorte, quando ela saiu, pude contar algumas coisas da minha

nova vida para meus amigos.

— Mamma, essa é a Lúcia, mãe da Yasmin. — Passo por ela, que ficou
paralisada na entrada. — Ayslan e Lisa a senhora conhece. E essa é a
Yasmin.

— A aproveitadora — ela murmura para que eu escute.

— A futura mãe do meu filho — digo num tom um pouco mais alto,
mas que só ela e Érica escutam.

— A que vai roubar a nossa herança?

— Não me recordo te ter escutado seu nome como beneficiária da


herança. — Levanto a sobrancelha.

Só me dou conta do que disse quando sua face fica vermelha e ela anda,

os olhos fixos em Yasmin. Se senta na ponta da mesa e observa todos com


um grau de horror e distância.

— Esse é o jeito italiano que te criei? Confraternizar com o inimigo?!


— Volta a murmurar quando passo ao seu lado.

— Eles são da família agora — dessa vez falo alto e vou para o outro
lado da mesa.
— O jantar já vai ser servido — dona Lúcia diz, o rosto murchando,
igual ao da filha.

E minha mãe não dá a mínima importância, começa a conversar com


Érica como se estivesse em um bar lotado e só importasse sua companhia.

— Guido, você me ajuda com as carnes? — Ayslan me chama e eu


vou, após conferir que Yasmin está bem e vai conseguir ficar ali.

— Eu já volto — informo.

A mãe de Guilhermo traz uma energia que bagunça tudo o que


construímos durante a noite. Minha mãe volta a ficar calada, mesmo quando

Lisa puxa assunto. E aquela Érica, uma ruiva que parece ter saído da alta
sociedade em um vestido de grife, me olha de cima abaixo.

O que eu devolvo, porque sou desaforada e não aceito que me olhem


assim.

— Yasmin, temos um problema. — Patrícia vem correndo e para, ao


perceber que disse alto demais e para todos os presentes.
— Ótimo. Um problema. — Um sorriso azedo desponta dos lábios da
mãe de Guilhermo.

Perfeito... para provar que pior do que está... fica!

— Vem! — Ela me chama com a mão.

Saio da cozinha, após relutar em deixar minha mãe naquela companhia

duvidosa, mas ao menos ela tinha Lisa, uma pessoa que conquistou sua
confiança de imediato. Acompanho Patrícia e vejo Phellippo correndo em
minha direção.

Meu coração acelera de um jeito que não estava preparada, até perco o
fôlego.

— Mamãe, tá ardendo! — ele diz, quase sem ar, se abanando


desesperadamente.

— O que está ardendo, filho?

Ele cospe e abre a boca. Consigo ver um pequeno carocinho de


pimenta.

— Vai lavar a boca e beber muita água — digo e ele continua o trajeto
original, que era chegar à cozinha.

— Patrícia, não me diga que...

— Sim — ela diz, preocupada.


Ao chegarmos lá fora, lá está a menina de feições orientais, a famosa
boquinha de mochila com o prato arredondado de barro em suas mãos. A

boca toda suja de farofa e ela, tranquila, levando a pimenta dedo de moça até
a boca e comendo como se fosse uma bala de alcaçuz.

Minha pressão até cai.

Deus. Jesus. Maria. Todos os anjos do senhor!

— A menina tá comendo minha macumba! — Patrícia diz alarmada.

— Oi... — Respiro fundo e não me lembro do nome dela. —


Boquinha... — engulo em seco ao dizer o apelido, é tudo o que lembro. — Dá
esse prato pra tia, dá.

— Nããã — a menina diz e vira o rosto.

Enfia a mãozinha no alguidar e enche a boca de farofa.

— É farofa com cachaça e dendê! — Patrícia me segura no braço.

— Eu sei!!! — Lembro bem da receita que ela contou.

— Das duas uma: ou essa criança vai ficar bêbada ou vai ter uma
diarreia homérica...

Se não fosse o bastante a menina comendo um trabalho espiritual, ouvir


isso me deixa louca. Imagina só a cara de Lisa ao ouvir ou ver uma coisa
dessas.
— Dá pra tia, dá, lindinha. Boquinhazinha.

— Nããão.

De repente a menina se levanta, segura o prato com força contra o


corpo e sai correndo.

— Pega a macumba! Pega a criança! Não deixa ela fugir!

E a pequena sai em disparara, driblando a gente, só Deus sabe como,


enquanto degusta as pimentas e a farofa.

— Tô com fome!

— Tá com fome de macumba? Volta aqui sua louca! — Patrícia sai


desesperada atrás.

— Macumba! — a menina diz.

Fico paralisada no lugar e Patrícia também.

Só tem uma coisa pior do que quando uma criança aprende uma palavra

nova – e você sabe que ela vai repetir à exaustão. A pior coisa é quando a
palavra é:

— Macumba!

— Pega a boquinha de macumba! — Patrícia me empurra.

— Boquinha de mochila — corrijo.

E ficamos as duas, igual duas idiotas, tentando agarrar a criança que se


esconde atrás das plantas, passa por cima das flores, sobe no canteiro, faz um

zigue zague, e só para quando não resta mais nada ao prato. Larga-o, atrás de

uma planta volumosa e sai andando naturalmente para dentro da mansão.

— Já era sua macumba para ter filhos... — Patrícia lamenta.

E eu a puxo com força, seguindo a menina.

— Cala a boca! — rosno.

Quando chega à cozinha, não passa despercebido à mãe que a menina


está com a boca suja. E eu estou impressionada, PH deve ter dado uma
mordidinha e estava vermelho igual pimentão. Já a boquinha de macumba...
digo... boquinha de mochila, estava com a pele alva e uma feição angelical –
só Deus podia saber como isso era possível.

— Por que está com a boca suja, Kim? — a mãe pergunta.

— Macumba! — a menina levanta as mãos para os céus, jubilante e diz

numa alegria que eu não entendo. — Quero mais!

Vejo PH lá fora, acompanhando os adultos que cuidam do churrasco, se


abanando ainda.

— Quê? — A mãe pisca os olhos e se aproxima.

— Terra! Ela comeu terra! — Patrícia se agacha e limpa a boca da


menina. — Vamos dar um suco bem gostoso pra ela limpar essa boquinha,
né?
— Suco. — A menina até esquece da vida quando escuta isso. — Suco
eu quero!

E vai, saltitante até a mãe, que lhe oferece um copo generoso.

— Terra... terra... terra só se for de cemitério. Essa boca de macumba,


comeu meu feitiço — Patrícia murmura.

— O jantar está servido! — minha mãe diz, por fim, exultante por ter
finalizado a comida.

A pequena fica de cima, observando a travessa tão linda de feijão


tropeiro, colorido com cebolinha, salsa e tomate. O salpicão também muito
colorido. E ao que parece uma remeça de carne vai chegar logo...

— Tem macumba, tia? — A pequena tenta espiar por cima da mesa.

Patrícia sai correndo para conter danos e impedir que essa menina
repita a palavra, ou pelo menos falar por cima dela, para que a mãe não

escute.

E eu escuto Érica e a mãe de Guilhermo conversar, na verdade, acho


que todos escutamos.

— Isso parece uma lavagem. — Sua expressão horrorizada me causa


um embrulho no estômago. — Onde está a massa? Um bom molho de tomate
feito na hora? O queijo fresco? Isso é comida que se serve numa casa
italiana?
— Ah, a senhora queria um macarrão? — Minha mãe diz num tom
humilde. — Posso fazer, se esperar só mais um pouquinho...

— Macarrão! — A outra desdenha, o humor felino. E se levanta. —


Bem, acho que já gastamos tempo demais aqui. Devíamos mesmo ter ido a
um restaurante. Um fundo de quintal não nos decepcionaria, como isso aí —
ela diz para Érica.

— É... — ela concorda, mas consigo ver seus olhos brilhando ao ver a
comida na mesa.

— Ao menos tem um pouco do vinho que a família Lamarphe produz...


ao menos uma única coisa de bom gosto...

— Carrrrrneeeeee — Phellippo vem gritando, sacudindo os braços,


anunciando Ayslan com uma tábua de madeira gigante, onde consigo ver
uma fumaça exalando da carne.

— Vamos embora. — A mulher mais velha torce o nariz, parece que o

barulho do meu filho é a gota d’água nisso tudo.

— Vamos. — A Érica concorda, acena com os dedos para Guilhermo e


sai.

— Não se incomode, a comida parece deliciosa. — Lisa afaga as costas


da minha mãe.

— E é bom que sobra mais — a boquinha de macumba diz. Faminta.


Eu adorei essa criança.
“Todo sofrimento psicológico é fictício, porque ou está armazenado na
memória do passado, ou na imaginação do futuro, porque ambos são apenas
ilusórios... O passado já passou e o futuro ainda não chegou.

O único momento real é o presente, e nele reside a eternidade”.

— Buda.
Quando estou de volta à cozinha, minha mãe já não está lá. Sigo pela

casa até chegar ao portão, consigo alcançá-la ao ponto de vê-la entrando em


seu carro, junto a Érica.

Ao me ver parado no portão, decide vir até mim.

— O que você pensa que está fazendo? — Tenta controlar o tom de


voz, mas sai exasperado.

— Como assim?

— Guilhermo, que ideia absurda é essa de trazer essa gente para sua
casa? — Ela dispara, em italiano. — Em que momento aceitou confraternizar
com o inimigo? Será que não entende que está colocando tudo em risco?

— Em risco? Eu estou seguindo o que aquele maldito testamento diz.

— Para o inferno o Alfredo e o testamento! — Cruza os braços. —

Você não entende... nem mesmo Alfredo entendeu... a herança que ele
recebeu após a morte do pai e a que você recebe agora... é tanto dinheiro,
tanta coisa envolvida... como pode deixar que uma mulher coloque tudo a
perder?

— Eu acho que não estamos nos entendendo — observo, a voz branda.

— Ótimo, concordo nisso. Não estamos nos entendendo — ela acena,


nenhum fio de cabelo sai do lugar.
— Essa é a minha casa — digo de uma forma muito educada. — Você
pode vir aqui sem ser convidada, pois é minha mãe.

Ela assente sem demora.

— Mas não pode destratar a minha mulher ou a mãe dela. Não pode
diminui-las ou tentar criar alvoroço porque tem medo de que roubem a
herança.

— Você está cego... não consegue ver que está colocando tudo a
perder...

— Acho que é a senhora que não consegue ver o que está fazendo ou
ouvir o que está dizendo. Então não volte aqui, a não ser que aprenda a forma
correta de tratar os meus hóspedes...

— Ela ainda não está grávida, não é? — Cruza os braços.

Não sei ao certo como responder essa questão, então permaneço com o

semblante inalterado.

— Já passou pela sua cabeça que ela esteja sabotando o plano?


Impedindo a gravidez? — Ri. — Acha que uma mulher não conseguiria fazer
isso, se quisesse?

Sem esperar que eu responda, dá meia volta e retorna ao carro.

— Não me procure quando for tarde demais. Mas saiba que eu vou
lutar para não colocar todo o patrimônio da família a perder.
Dito isso, ela bate a porta do carro e desaparece pela estrada.

Fico ainda alguns segundos no lugar, ruminando algumas de suas

palavras. Acho que até sinto uma dor no joelho ou um mal estar na cintura,
curvo o corpo um pouco para respirar, enquanto a mão massageia o peito. Ao
me virar de volta para a garagem, vejo Phellippo me encarando.

— Guilermo — ele me chama.

— O que está fazendo aqui fora? Não está frio? — Empurro a cadeira
de rodas e aperto para o portão se fechar.

— Tá fio — ele responde, encosta na cadeira e vem comigo.

PH se tornou praticamente meu escudeiro. Por onde quer que eu vá, ele
vai junto. Fica contando umas histórias inventadas, que é uma mistura de
várias histórias que escuta na creche. E também fica observando
silenciosamente as coisas que faço. Acho que está naquela idade da imitação.
E ele me imita como ninguém.

— Guilermo sua mamãe biga com você? — Ele não desgruda do braço
da cadeira de rodas.

— É o que parece. — Comprimo os lábios, na falta de algo melhor a


dizer.

— Minha mamãe biga comigo. — O silêncio indica que está pensando.


— Você não guadou seus binquedos?
Esse menino tem sérios problemas em pronunciar o “r”. Acho
divertido.

— Antes fosse isso.

Sinto até falta de quando era criança e inocente, sem saber das coisas
que aconteciam. E ao mesmo tempo me sinto ferido por imaginar que há algo
que não está claro o suficiente, algo oculto de mim.

E isso parece que vai me consumir, de uma só vez.

Nunca esperei que o jantar fosse um grande sucesso – exceto pelos


planos frustrados de Patrícia.

O saldo positivo da noite foi que Lisa e Ayslan conseguiram convencer


a minha mãe de sair mais, conhecer novas pessoas, se inscrever em aulas de
dança e se enturmar. O outro saldo positivo foi que a minha família e os
amigos de Guilhermo se deram muito bem. Entretanto, como nem tudo são
flores, percebi que Guilhermo ficou um pouco indiferente após aquela noite.

Foi como se retornássemos à estaca zero, como se voltássemos


lentamente a ser dois desconhecidos – e que pior: viviam sob o mesmo teto.

Quando não estava no hospital, fazendo plantão, estava em seu

escritório dentro da casa ou fazendo algo importante fora.

Nossos horários já não se encaixavam, não voltamos a fazer amor. Eu


que de início estava dormindo em seu quarto, comecei a revezar e dormir no
quarto de Patrícia ou com a minha mãe e PH.

A minha mãe estava começando a ter a vida mais agitada que a minha!

— Ele ficou diferente após aquela noite... o que acha que foi?

— Espero que não tenha sido culpa do que fiz — Patrícia diz, detrás do
laptop. — Fiz a minha parte, tuuuuudo certinho. Tenho culpa de que no meio
da macumba tinha uma criança faminta?

— Palhaça.

— Você não o ama mais?

A pergunta de Patrícia mexe comigo e eu largo a máquina de costura.

Sinto uma bagunça formigar em minha cabeça.

Só Deus sabe o quanto pensei em voltar para casa, mesmo com o


perigo iminente e sem saber o que poderia acontecer conosco se decidíssemos
retornar. E agora um dinheirinho bom estava entrando, bem que poderíamos
alugar uma casa para poder viver e trabalhar...
— Não é que eu não o ame... eu ainda sinto algo muito forte por ele.
Mas é como se tivesse um muro entre nós. Um muro que nós dois

construímos, não é só culpa dele — preciso admitir, embora doa fazer isso.

Eu fui a primeira a ficar de cara amarrada e achar defeitos em tudo.

Estava me sentindo um grande fracasso por não estar cumprindo a


minha parte e fiquei tensa sobre o que ele acharia disso.

Bem, está aí: antecipei a minha dor e vivi ela duas vezes – antes de
acontecer e agora. Não sei qual dói mais.

— Tenho a sensação de que ele está me evitando...

— Como vão fazer um bebê assim, gente? — Patrícia não esconde o


tom de humor, mesmo que o assunto seja sério.

— Seria mais fácil se pudéssemos sentar e conversar. Mas eu tenho


medo. Medo do que ele vai dizer... medo de ouvir que ele desistiu, que não vê

mais esperança na situação.

— E o que você está esperando para a inseminação?

— Então! Não estou esperando nada! Mas Guilhermo não me


responde, não aceita minhas ligações, está sempre ocupado. Não consigo
acreditar que ele possa ter jogado a toalha...

— Ai, amiga... depois de tentar tantas vezes, talvez ele esteja mal
também, né.
— Estamos os dois mal.

O aperto no peito me sufoca.

Não sei, tenho a sensação de que os dias lindos que vivi com
Guilhermo, agora não significam nada. Ou pior, estão se apagando, sendo
levados como uma brisa que balança as árvores, sacode os ninhos e faz cair
tudo o que é frágil.

Será que era essa a nossa relação?

— Mas também, aquela mãe dele, né... que mulher carregada... —


Patrícia faz até o sinal da cruz.

— Imagino que ela queira proteger a herança da família. Sem falar que
o que a Heloísa planejou foi sacanagem, até eu não consigo apoiá-la.

— Não fale mal da Heloísa. Ela fez a parte dela que foi dar o golpe no
velho. Infelizmente isso respingou em uma amiga..., mas é aquilo... amigos,

amigos... negócios à parte. — Pelo visto ela continua a se divertir com a


minha cara.

Durante a noite, quando Guilhermo chegou do hospital, tentei abordá-lo


no elevador. Não tive muito sucesso.

— Oi — até essa pequena palavra saiu com muita dificuldade, como se


nem fossemos tão íntimos mais para tanto.

— Oi. Tudo bem?


— Sim. Como foi seu dia?

— Puxado.

O jeito monossilábico dele e um tanto frio, mostravam sua indiferença.

Claramente Guilhermo e eu éramos pessoas muito diferentes.

Fui criada em uma família que quando se há problemas, é preciso

sentar e conversar. Já ele, está fechado em si mesmo. Consigo ver a barreira


invisível, a redoma de vidro que construiu para que ninguém se aproxime e
não o machuque.

Até a expressão mudou.

Os olhos prateados parecem gélidos e distantes. Ao menor sinal de


aproximação, como ainda agora que estendi a mão para apertar o segundo
andar da casa, ele recolheu a mão para o colo e desviou o olhar.

— Falta... uma semana...

— Eu sei.

Mordisco o lábio inferior, os olhos começando a arder.

Então é isso? Ele desistiu do contrato? De mim?

De nós dois?

— Você havia dito que se a essa altura não tivéssemos sucesso, iríamos
para o plano B. Só estou esperando você me dar o sinal verde — me refiro
sobre a inseminação.

— Não sei. — Balança os ombros. — Será que vale à pena todo esse

desgaste e esforço?

Suspiro baixinho, quase sem forças.

— Desculpe. — Ele umedece os lábios com a língua. — Não quero ser

áspero. Só não quero mais alimentar falsas esperanças.

Sei que ele está machucado. Por mais que tente esconder, consigo lê-lo
com facilidade. Será que ele não consegue ver que estou machucada também?
Eu me joguei de cabeça nessa aventura! Sem plano B, sem outra opção, era
isso... ou nada.

— Você me acompanha ao hospital amanhã, se eu for? — Aperto meus


dedos.

A porta do elevador já está aberta há algum tempo e ainda não saímos.

— Estou ocupado, preciso monitorar os residentes.

— Depois de amanhã, então?

— Yasmin, descanse — ele suspira. — Durma um pouco... relaxe...

— Você não quer...? — Ergo a sobrancelha. Sinto, dentro de mim, que


estou me humilhando. Mas é ainda mais humilhante ficar nessa situação.

— Descanse — ele reforça. Não demonstra muito sentimento, além da


distância emocional e um certo cansaço.

— Eu estou aqui, tá? — Abaixo o rosto e comprimo o lábio. —

Qualquer dia da semana, assim que você estiver livre, é só me chamar que eu
vou...

— Obrigado.

Guilhermo sai do elevador e se dirige ao seu escritório.

E eu fico aqui parada, vendo-o se afastar fisicamente, porque


emocionalmente ele já está a léguas de distância.

Por que não consegui gerar esse bebê?

O que tem de errado comigo?

Como pude trair a confiança dele assim, quando ele fez tudo por mim?

Não me restam muitas opções, além de subir no terraço e caminhar


debaixo da noite escura. Desviar de algumas plantas, mal enxergar as estrelas

ao longínquo, pois os olhos estão marejados d’água.

Vem à tona a lembrança daquele dia em que vimos o pôr do sol e foi
naquele momento que eu tive absoluta certeza de que eu me sentia à vontade
para ser a mãe do filho de Guilhermo. Não era mais um contrato. Estávamos
conectados, de verdade, e nos apoiaríamos em tudo.

Agora é só uma memória boba e distante.


Que aparentemente não significa nada.

A indiferença dele dói, mais do que qualquer palavra que possa

pronunciar. E mal posso culpá-lo, porque entendo suas razões. Guilhermo


estava exatamente assim, quando cheguei. Azedo, com o astral baixo,
resmungão. Ele perdeu uma mulher e filha... perdeu o movimento das
pernas... perdeu o tio...

Acho que perder um bebê que sequer foi gerado foi o golpe de
misericórdia, aquele que o nocauteou de vez e o levou ao chão.

E acho que fui nocauteada também.

Deito a cabeça no tampão gelado de vidro temperado da mesa e afasto


o notebook com o braço. Estou tão esgotado emocionalmente que quase pedi
afastamento do meu cargo, para não cometer um erro.

Mas não posso.

O fio que segura a minha sanidade é estar na sala de cirurgia, cuidar


dos pacientes, ser a ponte que lhes dá uma nova chance.
Até dores no corpo, sensação de vulnerabilidade e de que sou um
estranho no mundo, voltaram.

Coisas que havia superado com fisioterapia e idas ao psicológico


parece que voltaram. Não consigo colocar uma camisa de mangas compridas
sem gemer e ter dificuldade ao encaixar os braços. Sinto os ossos doerem
como se meu corpo estivesse engessando. Empurrar a cadeira de rodas tem se

tornado um exercício de extrema fadiga.

Há alguns meses, quando reencontrei Yasmin, ela era como em meus


sonhos quando estive em coma.

Não parecia ter envelhecido um único dia, ela era como a minha garota,
aquela que despertou coisas estranhas em mim à primeira vista e eu precisava
de mais.

Ao poder viver ao seu lado nas últimas semanas, me apeguei a ela,


como se nada mais pudesse me sustentar tanto quanto o que eu sentia.

“Já passou pela sua cabeça que ela esteja sabotando o plano?
Impedindo a gravidez?”

Engraçado como as palavras são.

No momento em que ouvi isso, dentro de mim ri em desdém porque


parecia completamente absurdo.

Yasmin jamais seria capaz de fazer algo assim.


Mas essas palavras jogadas ao vento se tornaram meus pensamentos...
comecei a ouvi-las, não com a voz da minha mãe, mas com a própria voz da

minha cabeça. E feito uma pequena semente, ela começou a brotar no meio
da terra fértil da minha imaginação.

No café da manhã eu a observava, me perguntando: será que está


escondendo algo de mim?

Quando retornava para casa e a via lendo o material da faculdade, um


sussurro furtivo me chamava atenção: ela está mesmo ao meu lado? Ou está
ajudando a Heloísa a chegar cada vez mais perto da herança?

E no fim, numa manhã quando derrubei o meu relógio enquanto o


colocava e depois fui de cara contra o chão, machucando meu corpo inteiro, a
dor se calou dentro de mim quando vi algo debaixo da minha cama. Fiquei
em completa negação, até me arrastar com os braços e cotovelos, chegar em
um canto inacessível e puxar a cartela de anticoncepcional, bem lá no fundo.

Foi como um iceberg.

E eu era o Titanic inteiro, afundando em mim mesmo.

— De que adianta agora fazer a inseminação? Ela vai sabotar tudo... —


comentei com Ayslan.

Meu amigo não pareceu facilmente convencido, mas a minha cara


abatida o forçava a não querer me contrariar a priori.
— Faz e vê no que dá — o Viking balançou os ombros.

— Esperança dói, Ayslan.

— Como assim?

— Quando não se espera nada e por fim acontece, é mágico. Mas


quando você espera tanto... e espera... e espera... e nada acontece... dói.

— Tá bancando o psicólogo agora? Cadê teu diploma?

— Ah, vá pro inferno!

— O que eu sei é o seguinte: o tempo está acabando. E você ainda tem


uma janela de oportuni...

— Ayslan, do que adianta a oportunidade? — rosno. — Não vai dar em


nada!

— Você está sendo exagerado. Tipo quando dizia que nunca mais iriam
permitir que você entrasse na sala de cirurgia e...

Jogo a cartela quase toda usada de anticoncepcionais em cima da mesa


dele.

— Eu achei essa merda debaixo da cama. E aí, sabichão?

— É, cara, você tem um argumento.


“Não me lembro mais qual foi nosso começo. Sei que não começamos
pelo começo. Já era amor antes de ser”.

— Clarice Lispector.

Uma coisa que sempre achei intrigante: pimenteiras.


A arte de plantar, mesmo a mais simplória das plantas, exige um pouco
de ciência.

Você sabia que se não der água o suficiente para uma pimenteira, ela
seca? Imagino que sabe disso, pois é o óbvio. Agora, você sabia que se der
água demais, ela morre? É um fato curioso.

Outra coisa que descobri, nesse hobbie incomum, é que o gosto da

pimenta tem muito a ver com o adubo e irrigação da planta. E o segredo não
é dar excesso de água para a pimenta, após um dia de esquecimento, sem
molhá-la.

O segredo é regar do jeito certo. Todos os dias. Religiosamente. Não é


a quantidade, mas a frequência e qualidade.

Agora, gostaria de compartilhar uma coisa que me chocou enquanto


ficava velho: a obsolescência programada dos seres humanos.

Lembro da primeira vez que comprei um microondas. E pasme, ele

ainda funcionava – ou melhor, funciona, basta ir conferir em minha velha


casa.

Mas não é assim que o sistema ganha dinheiro. É preciso criar


produtos que uma hora quebrem ou fiquem obsoletos, senão o mercado não
consegue mais faturar com os mesmos objetos.

Sabe quantas vezes tivemos que trocar os microondas do Rota da Vida


em dez anos? Umas três! E eram todos novos, top de linha, os melhores!

De alguma forma, essa obsolescência chegou até os sentimentos

humanos.

Sempre me senti um esquisito, porque tudo ao meu redor parecia


descartável. Principalmente os sentimentos das pessoas. Pois em um mundo
“cheio de oportunidades”, é sempre mais fácil seguir para outra opção, do

que consertar o que se tinha.

O que pimentas e obsolescência têm a ver um com o outro? Você deve


se perguntar.

Eu não sei.

Não fui jardineiro, nem engenheiro de produtos. Fui médico, a vida


inteira.

Sempre fui curioso sobre a vida, o quão é frágil, o quão passa rápido,

o quão escapa de nossos dedos.

E um dia entendi porque tentava ressuscitar minhas plantas ou não


conseguia abrir mão do meu velho microondas: eles têm histórias. Uma
produziu molhos picantes que nem mesmo preparos mineiros atingiram, não
os que provei em toda a vida. E o outro cozinhou minhas refeições, quando
coloquei toda minha herança no hospital, como investimento longínquo.

Sempre fui apegado às histórias dos seres humanos.


Os seres humanos não são nada sem suas histórias.

Pensei isso num dia desses, quando segurava em um coração.

Era apenas sangue e batimento, algo tão mecânico. Mas que guardava
tantos segredos, dores e aflições... guardava filhos, netos, guardava sorrisos
e afetos. Mentiras e abnegações...

Adotamos a obsolescência em nossas vidas quando abrimos mão de


viver as histórias.

E a vida perde o sabor.

Por isso uma boa pimenta, pode cair bem.

Com profundo afeto,

Alfredo Lamarphe.

Dois anos atrás

O estado em que eu estava antes, simplesmente não sei.

Era um profundo nada. Um eterno vazio. Sem sonhos, sem cores, sem
vozes. Não sei ao certo quanto tempo fiquei apagado. Só sei que comecei a
ouvir alguns sons, antes de abrir os olhos.
Entendi o que as vozes diziam, mas nenhuma delas parecia familiar.

— Ele acordou! — Uma voz masculina diz. — Está mexendo a mão...

Abro os olhos, devagar. A luz parece que vai queimar as minhas


retinas, aperto os olhos com força e tento me levantar, mas não sinto resposta
vindo das minhas pernas. Não é nem como se houvesse um formigamento,
um torpor, uma dor lacerante... simplesmente não sinto nada.

Numa segunda tentativa de abrir os olhos, a garganta bastante seca e o


olfato sensível ao cheiro de hospital, olho para os médicos ao redor de mim.

Tem um cabeludo em especial que está me encarando com muita


expectativa. Não sei se está feliz porque despertei ou se deveria lembrar
dele...

Não consigo me sentar. Parece que a coluna não consegue manter meu
corpo estendido, mesmo com o apoio dos travesseiros.

— Yasmin — digo, para a surpresa de todos.

Os olhares parecem confusos e ressentidos.

Será que deveria chamar pelo nome de alguém ali?

— Guilhermo — quando o homem de mais idade me chama assim,


ouço, feito um murmuro, uma voz adulta ressoar em minha mente e o som se
estender com uma voz infantil em meus pensamentos, reconheço de alguma
forma que aquela voz era minha no passado.
— Está se sentindo bem? — O cabeludo me avalia. — Quem é
Yasmin?

— Onde ela está? Preciso vê-la — é tudo que digo, confuso.

Por que não consigo mexer os pés? Na vã tentativa de sair da cama,


fico preso no lugar e a pressão cai rápido. Os braços tentam usar toda a força
para sustentar o corpo, mas imediatamente sinto as mãos tremerem. Preciso

deitar e respirar fundo.

— Yasmin? — repito. — Onde ela está?

— Quem é Yasmin? — o velho pergunta.

— Não faço ideia, Alfredo — o cabeludo retorque.

Como não sabem? Quem é Alfredo?

Sei que provavelmente sonhei com ela. Antes de abrir os olhos e estar
consciente, acho que vi seus olhos castanhos bem profundos. Eles tinham um

brilho especial e ela sorriu para mim.

De alguma forma todo o meu corpo ficou eriçado, não sei se pelo ar-
condicionado ou pela lembrança que veio como um tabefe em minha cabeça.

— Yasmin?

— Guilhermo, quantos dedos vê aqui? — O senhor mais velho, de


nariz grande e meio torto, olhos de um azul vívido e chamativo, mostra a
mão.

— Três.

— Muito bom — ele diz.

— Qual o seu sobrenome?

Eu deveria me lembrar? De certo que sim. Mas algumas coisas estão

tão confusas agora...

— Em que ano se formou em medicina? — O cabeludo ergue a


sobrancelha.

— Medicina?

Foi nisso que me formei?

Como consigo lembrar de um nome, um rosto, um cheiro e não lembro


disso?

— Oh não... — ouço seu suspiro, quando cobre a boca e se vira de

costas.

Tento me levantar novamente, mas o peso de meus ombros me joga


para trás. Não sinto minhas nádegas, não sinto as pernas, não sinto os pés.
Até virar de lado parece uma tarefa hercúlea.

O que houve comigo?


1 semana após despertar do coma

Eu não conseguia mover as pernas e os pés. Mas isso não me intrigava


mais do que aquele rosto meio arredondado, de olhos grandes e castanhos que
a minha mente chamou de Yasmin.

Às vezes eu até me pegava sorrindo pensando nos lábios dela


levemente contorcidos ao me encarar e em suas mãos meio trêmulas.

Para a surpresa de todos – e a minha – tive uma ereção. O que foi


bastante curioso, já que fraturei a parte inferior da coluna e perdi todos os
movimentos da cintura para baixo.

Meu médico ficou absurdamente feliz, eu acho que também fiquei,


afinal de contas, isso era um bom sinal.

A primeira vez que me colocaram em uma cadeira de rodas foi uma das

sensações mais estranhas de toda a minha vida. Eu era um homem adulto, os


braços fortes, no espelho conferi o corpo atlético. Mas eu me sentia como um
bebê na parte inferior, frágil e descoordenado, necessitando de atenção extra
e redescobrindo como fazer coisas muito simples.

Quando me deixaram dar algumas voltas pelo hospital, supervisionado


por um médico, eu procurei esse rosto familiar em algum lugar.

Dentro de mim eu sabia que já a tinha visto ali, alguma vez. Mas
quando?

— Guilhermo?

O corpo se arrepiou por completo ao ouvir a voz. Virei o rosto para


trás, como se pudesse girar o corpo junto... ainda não estava acostumado com
a cadeira de rodas.

— Mio figlio?

Ao ouvir essas palavras, semicerrei os olhos. Me senti dentro de um


redemoinho de muitas informações, consegui reconhecer quase de imediato a
minha mãe e várias lembranças com ela vieram à tona.

— Voltei, assim que disseram que tinha acordado. Como está?

— Eu estou bem.

Minha expressão ainda continuava dura. Sabia quem ela era, mas não
conseguia lembrar seu nome.

— Sou eu. Paola — ela diz.

— Mamma — semicerro os olhos, contemplativo.

E ela sorri de um jeito maternal.

— Eu disse para não viajar de carro durante a madrugada — ela diz,


um minuto depois quando está empurrando minha cadeira. — Da Itália eu vi
a notícia de que o vento derrubou árvores aqui em São Paulo... a chuva era
intensa. Por que viajou aquela noite? O coração de uma mãe nunca se

engana!

Flashs daquela noite permeiam minha cabeça. Não sei se é imaginação


ou lembranças. Ainda não consigo diferenciá-las.

— Mas está vivo... e bem...

— Não consigo andar.

— Bobagem. A sua mãe está aqui. E vai cuidar de você.

— Eu não consigo lembrar de nada...

— Não se preocupe. Eu vou te ajudar a lembrar tudo, Guilhermo.

Abri os olhos quando a porta do quarto fez um leve ruído. Pelo visto já
havia dado o horário para que a enfermeira checasse os aparelhos, anotasse
minha pulsação e batimentos.

Ao espiar a porta, vejo duas pessoas. São médicos, mas nenhuma é a


enfermeira que está cuidando de mim à noite. Um é o cabeludo, chamado
Ayslan. E a outra é uma moça de feições orientais, que quando a encaro sinto
muita calma.

— O que vocês querem? — fecho os olhos.

— Queríamos te ver... saber como está — a moça diz de um jeito tão


gentil que fica difícil ser áspero.

— Eu te trouxe isso. — O outro se aproxima da cama e me entrega um

pequeno objeto.

— O que é isso? — pergunto. Ao tê-lo na palma da minha mão, lembro


de imediato, como um solavanco que um carro dá para funcionar. — Um
marca-passo — pisco os olhos, atônito.

— Ele lembrou — Ayslan abre um sorriso encorajador.

Não sei o que é tão emocionante em saber identificar um marca-passo.


Eu poderia facilmente colocar todo o material cirúrgico diante de mim e...
Espera. Eu era cirurgião! Consigo me lembrar disso agora.

— Olha o brilho nos olhos — Lisa cruza os braços.

Essa era uma memória. Eu não sabia como, mas era. Consigo lembrar
de tocar nisso... e colocar em alguém que estava deitado em uma cama alta.

De repente todo o restante vai criando cor e consigo identificar rostos.


Acho que até consigo ver, numa sala mais acima, por um vidro, o cabeludo
me observando trabalhar. E ao meu lado, o velho Alfredo.
— Ele está se lembrando de alguma coisa — Ayslan murmura.

É tão vívido, tão real, que sinto meus dedos tremerem.

— Precisa segurar com firmeza a ponto de acertar, e delicadeza a


ponto de não machucar o coração — ouço a voz de Alfredo.

Pisco os olhos. É bem real.

— Vamos fazer o coração voltar a bater em 5... 4...

Afasto minha mão, mas Alfredo insiste:

— Segura. Sente o batimento.

— 2... 1... — uma voz diz ao fundo.

Quando o coração bate, meus dedos tremem. A minha mão vibra. Por
meus braços corre um sinal elétrico, meu cérebro parece que vai explodir.

— Muito bem, Guilhermo. — Os olhos de Alfredo semicerram,


sorrindo. — A vida é frágil como uma pimenteira..., mas tão forte, igual a

pimenta que sai dela — diz.

— Guilhermo? — Ayslan me traz de volta.

— Yasmin — respondo. — Tem certeza de que não a conhecem?

Os dois se entreolham. Não parecem mais exultantes quanto antes.

Acenam em negação.

— Ele não se lembra, Ayslan... — Lisa sorri de um jeito doce.


— Eu consigo lembrar da Yasmin..., mas não consigo me lembrar da
Paloma...

Ao dizer esse nome, eles arregalam os olhos, surpresos.

— A Paloma morreu... com nossa filha... foi no acidente de carro.


Vocês a conheciam?

— Acho que nem você a conhecia direito, cara. Ela só chegou um dia e
disse que estava grávida de você... — Ayslan para de falar quando recebe um
cutucão da outra.

— Não foi isso o que a minha mãe disse...

E é engraçado. Pois não consigo lembrar de Paloma de forma alguma.


Mesmo as histórias que a minha mãe contou, nenhuma delas pareceu criar
vida quanto segurar o marca-passo.

O engraçado é que lembro de Yasmin. Não sei quando a vi, não sei

onde nos encontramos, mas ela me marcou de um jeito que me sinto


incomodado, como quando você está montando um quebra-cabeças, mas falta
uma peça. Bem lá no meio.

— Mas eu lembro de segurar um coração...

— Um? Vários — Ayslan se anima. — O Alfredo precisa saber disso!

Memória e imaginação... acho que estou conseguindo entender como


funcionam.
Mas o que é Yasmin? Uma memória ou só minha imaginação?

— A minha vida acabou! — Jogo os pesos de três quilos o mais longe


que consigo.

Sinto uma dor aguda que parece vir de dentro dos ossos. Me curvo,
quase sem ar, furioso. O fisioterapeuta encarregado de minha reabilitação,
Jorge Marinho, fica distante quando Ayslan lhe diz:

— Deixa comigo.

O cabeludo pega os pesos do chão e os devolve ao meu colo.

— O que foi?

— O que foi? — Rosno. — A porra da minha vida acabou! Não tenho


mais coordenação, mal consigo abrir os braços!

— Está indo bem, só precisa de tempo — diz calmamente. —


Recuperou a memória a algumas semanas... consegue responder qualquer
questão que faço sobre cirurgia ou cardiologia...

— Mas não consigo me mover direito! Não tenho mais minhas pernas!
Ayslan, já viu a altura das camas desse hospital? Eu nunca mais vou poder

atuar!

— Guilhermo...

— Cala a boca! — Afasto suas mãos e derrubo os pesos novamente. —


Não consigo sequer pegá-los do chão! Não consigo nem urinar sem que uma
equipe inteira me ajude!

— Só me escuta — aperta minha mão que treme em cima de minha


coxa. — Você é mais do que suas pernas, ok? Você é muito mais do que o
seu corpo. Sua fisioterapia só começou, precisa pegar leve e preparar os
músculos. Com o tempo...

— Tempo... tempo... com o tempo o quê, Ayslan?

Às vezes posso jurar que sinto meus pés, ou pelo menos, uma dor neles.
Meu fisioterapeuta diz que é uma dor fantasma e que está tudo bem.

Não sei o que é mais fácil de absorver: estar preso nessa maldita
cadeira de agora em diante ou o olhar de pena das pessoas ao meu redor. Não.
Tem algo pior: a droga desse hospital onde tudo é alto e nada foi preparado
para uma pessoa como eu, pelo menos, não como um funcionário.

— Você vai voltar a dar aula. E quando reconquistar a confiança de


todos, vai voltar a atuar, eu te prometo.

— Nunca vou alcançar os pacientes... — lamento, não num tom


choroso, mas num ar de negação.

— Então vamos fazer uma cadeira mais alta. Uma cadeira maleável que

te dê mais movimentos. Vamos abaixar as camas... Guilhermo, você é um dos


três melhores cardiologistas desse hospital. Eles não vão abrir mão de você.

— É... e quando não for o hospital? E quando for lá fora? Acha que o
mundo vai se adaptar a mim?

— Você vai exigir que sim. Se quer mudar algo, precisa ocupar espaço.
E a partir dos espaços que ocupa, você vai mudar partes do mundo. É pouco a
pouco, cara. O mundo não vai se adaptar a você num piscar de olhos e você
também não vai se adaptar a ele na mesma rapidez. Tempo, Guilhermo,
tempo!

Ayslan me devolve os malditos pesos de três quilos.

Três quilos!

Parece uma piada infame, idiota, rude.

Um homem como eu devia estar acostumado a levantar trinta,


cinquenta quilos!

— Pouco a pouco — Ayslan diz e segura firme em meu punho


fechado.

Me faz erguer o peso diante do meu corpo e quando os braços estão


estendidos, se afasta. Meu nariz e parte do meu rosto treme, sinto o suor
brotar de minha pele.

Essa merda é pesada demais!

— Só mais um pouco, doutor Lamarphe — Jorge murmura, de longe.


— Aguenta só mais um pouco...

DOIS ANOS APÓS O ACIDENTE.

O ardor da contração dos músculos faz as gotas de suor escorrerem pela


minha testa e descerem pelo pescoço e costas. Minhas mãos dentro das luvas
puídas seguram firme na barra e eu ergo o corpo todo, tirando-o do chão,

junto com a cadeira de rodas específica para fazer exercício.

Meu fisioterapeuta, que acompanha tudo, me observa. Aparenta estar


muito orgulhoso, embora não seja mais novidade de que eu tenha adquirido
força e flexibilidade para suportar qualquer peso, como antes.

— Você está indo muito bem — me avalia. — Todos estão comentando


que você foi ágil para salvar uma paciente que estava com um alicate dentro.
— Pois é.

Ayslan e Jorge me auxiliam na hora de firmar a cadeira no chão.

Começam a alongar minhas pernas com cuidado.

— A cirurgia foi um sucesso — Ayslan enche a boca para dizer.

— É. Todo mundo está falando — Jorge diz, feliz. — Você mudou

muito, Guilhermo. Ficou seis meses resignado, com a cara amarrada a maior
parte do tempo... fazia os exercícios por pura força do ódio.

— Ainda faço — pontuo. — Mas em algum momento precisei me


apegar em um objetivo para seguir em frente. E ser cirurgião foi tudo o que
me restou.

— Mas agora tem mobilidade de atleta.

O jeito orgulhoso e feliz que Jorge trata da minha evolução me deixa


sem graça. As coisas foram mudando lentamente a ponto de que não percebi

quando houve a grande mudança. Só sei que num dia eu mal suportava
segurar três quilos, uma semana depois meus braços já não tremiam...
algumas semanas seguinte e eu já fazia exercícios com uma barra de ferro e
três quilos de cada lado.

Hoje eu sustento o peso do meu próprio corpo e da cadeira, ao fazer


uma flexão na barra. E não só isso: para me transferir da cadeira de rodas
para a poltrona do carro ou para a cadeira especial que uso na sala de cirurgia.
— Fico feliz que não tenha mais nenhum drama em sua vida.

— Ah, esquece, Guido sempre acha um drama — Ayslan interpela o

homem. — Agora o drama é o tio.

— O Alfredo?

— É — torço o nariz.

— O que o homem fez?

— Vai se casar — Ayslan diz.

—... Com uma aproveitadora — complemento.

— Ah, esquece esse casamento. Ainda faltam uns dias para irmos à
Noronha. Vamos nos concentrar no treino e no seu ato heroico, pode ser? —
Meu amigo Viking me dá umas palmadas nas costas.

E eu seguro com firmeza a corda que está presa à barra. Fecho o punho
e puxo, saindo do chão, sustentando meu corpo. Só largo a corda quando

estou lá em cima, as mãos se apoiam na barra e começo as flexões


novamente.

— Aquela cirurgia de emergência mudou a vida dele — Ayslan


comenta com Jorge.
Atualmente

A minha vontade é de jogar o notebook do outro lado do escritório.

Por que mesmo depois de morto esse velho volta para me atormentar
através de e-mails? Já não fez o suficiente, colocando em minhas costas o

peso de ter um filho? Não percebeu que eu não conseguiria? Não passo de
um aleijado idiota que não consegue reproduzir!

E ainda preciso aturar charadas e enigmas malditos?

Acho que já tive a minha cota de sofrimento por uma vida inteira.
Principalmente porque eu sou o culpado de tudo o que está acontecendo.
Deveria, quem sabe, ter seguido o plano original e estar trabalhando para
anular aquele testamento idiota.

Seguro com firmeza no apoio para braço da cadeira, quando ouço

batidas na porta.

— Agora não! Estou ocupado!

— Guillermo — uma vozinha me chama do outro lado.

— Estou ocupado — insisto.

— Guillermo — a criança insiste.

— Agora eu não poss...


— Guillermo.

Ele não vai desistir. Vou até a porta e a abro, fito o menino todo

coberto por um pijama branco, os olhos azuis muito profundos me observam.

— Guillermo, queo domir?

Preciso raciocinar um pouco o que ele quis dizer. Não pode ter sido

uma simples pergunta sobre sua vontade.

— Vamo? — ele me chama com a mão.

Ah, entendi, ele quer que eu o coloque para dormir.

— Onde está sua mãe?

— Nuchei — ele sacode a cabeça.

— E o seu tio? Sua tia? Sua avó?

— Nuchei — ele repete no mesmo tom, apreensivo. — Guillermo...

— Tá, eu te levo para dormir. — Me dou por vencido, porque se puxar

para o debate, sei que não vou conseguir vencer essa criança.

Ele tem algo melhor do que qualquer argumento: suas próprias regras.

Phellippo vai na frente, indicando o caminho. Por onde passo e vigio a


casa, ela parece bem vazia.

Phellippo abre o quarto em que está hospedado com a avó. O lugar


nunca esteve tão impecavelmente arrumado e limpo. O pequeno escala a
cama, deita a cabeça no travesseiro e põe as mãozinhas para fora do cobertor.

— Muito bem. Agora que está seguro, preciso ir, estou ocupado — dou

meia volta.

— Guillermo?

— Oi, PH.

— Conta uma história.

— Ah, não eu não sei contar histórias... não gosto de ficção ou


fantasia, gosto de coisas técnicas.

Primeiro a criança me encara com seus olhos arregalados. Acho que


não entendeu algumas palavras e está um tanto em choque, tentando
descobrir o que significam. Mas como não tem muito tempo, diz:

— Começa assim: era uma vez...

— Era uma vez... — repito em um suspiro.

Não acredito que essa criança vai me fazer contar uma história para que
ela durma.

— Um pato.

É tão inesperado isso que eu arqueio a sobrancelha:

— Um pato? — pergunto.

Tantas histórias para contar, ele vai contar a história de um pato?


— Mas na verdade ele era um Sidney — ele sussurra, a mãozinha do
lado da boca, como se mais ninguém além de nós dois no amplo quarto

pudesse escutar o cochicho.

— Um cisne — corrijo.

— Isso. Sidney. Vai: era uma vez...

— Era uma vez... — repito, quase mecanicamente.

— Um pato.

— Um pato. — Apoio as costas na cadeira e respiro fundo.

— Mas ele era sidney, lemba disso, Guillermo.

— Vou lembrar. — Rio de nervoso e sem jeito.

Ai, Deus, vai ser uma noite daquelas...


“Não possuir algumas das coisas que desejamos é parte indispensável
da felicidade”.

— Bertrand Russel.

Aparentemente tudo voltou ao que era antes: passo boa parte do meu
tempo no hospital Rota da Vida. É aqui que trabalho, descanso e passo meu
tempo ocioso. Não é tão mal.

Estava acostumado a isso, antes de Alfredo inventar de mudar minha


rotina e estragar tudo.

Consigo me conectar comigo mesmo quando estou trabalhando:


esqueço meus problemas, minhas dores fantasmas e a sensação de que sou

um estrangeiro ou invasor em qualquer lugar. É também o único momento do


meu dia em que gosto e me permito conversar com outras pessoas, porque de
resto, sempre estou estudando ou lendo notícias para me distrair.

E um dos momentos de glória do meu dia é poder me sentar em uma


mesa bem distante de todas as outras, no restaurante dentro do hospital, tomar
o meu café e ficar lendo matérias aleatórias para distrair a mente.

— Está ocupada? — Ouço uma voz feminina, mas não dou tanta
atenção.

— Não, não, pode levar. — A mão sacode em direção à cadeira vazia.

Continuo concentrado em meu tablet.

— Na verdade, estava perguntando indiretamente se eu podia me


sentar. — Érica Dourado ajeita o jaleco e ocupa o lugar, antes que eu
responda.

Volto a me ocupar com minha leitura. Pressiono as hastes dos óculos


contra o rosto e aproximo um pouco mais as lentes da visão, eu estava um
pouco relaxado, parecendo aqueles velhos que ficam com os óculos na ponta

do nariz, quase caindo.

— Alô?! — Érica acena.

— Ah, pensei que precisava de um lugar silencioso para ficar. —


Repouso o aparelho eletrônico em cima da mesa.

— Sabe... eu não tive a chance de me desculpar com você...

— É? O que fez de errado agora?

— Sobre aquele dia em que apareci em sua casa, sem avisar... de fato
sua mãe e eu nos encontramos no teatro e, enfim, o fim da história você sabe.

— Não precisa se desculpar, ela é assim mesmo. Gosta de se intrometer


nas coisas.

Antes que eu pegue o tablet e retorne para minha leitura, Érica volta a

falar:

— Ela ficou chocada. Chocada não, aterrorizada, com a ideia daquela


menina...

— Yasmin. — Coço o queixo com o indicador.

—... estar morando com você agora. Na volta para casa ela não parava
de dizer: dormindo com o inimigo... e coisas do gênero.
— Minha mãe de fato tem o humor volúvel — é tudo o que tenho a
dizer.

Érica não se dá por vencida.

Acho que não veio aqui apenas para pedir desculpas, também não faço
ideia se quer tirar algo a limpo. Só sei que devo desistir da ideia de voltar a
ler, então levo o café amargo à boca e a observo por cima da fumaça da

caneca.

— Eu só estou curiosa...

— Uhum.

— O Alfredo te designou a uma missão impossível. Te obrigou a ter um


filho com uma mulher completamente desconhecida e aparentemente
suspeita, já que ela foi escolhida pela tal Heloísa...

— É, pois é.

— Em que momento pareceu fazer sentido levá-la para sua casa?

O silêncio prolongado entre a pergunta que fez e a falta da minha


resposta, faz com que Érica tente se justificar.

— Não me leve a mal. O seu tio e o meu tio-avô fundaram este


hospital. Ele é mais do que um bem precioso, ele é o suporte de toda uma
comunidade... ele é maior que todos nós. Tento me colocar em seu lugar e...
sabe... não conseguiria dormir com o inimigo.
— Por que não?

Érica sacode os ombros e faz uma careta.

— Você está me analisando?

— Estou.

— E o que está analisando?

— Não sou psiquiatra, então minha análise é irrelevante. — Retorno a


levar a caneca à boca.

E ela se diverte muito com o que eu disse. Ainda bem que não soou tão
ofensivo, embora meu humor não esteja dos melhores.

— Perdoe as minhas questões... só imagino que queira proteger o


hospital.

— Sim, é o que quero.

— E o legado do seu tio...

Começo a me perguntar se essa conversa vai levar a algum lugar.

Érica não me pegou em um bom dia, não estou disposto a conversar.


Tenho assuntos pendentes com alguém que eu achava que estava conhecendo
e agora é uma completa desconhecida, vivendo debaixo do mesmo teto que
eu.

Toda essa trivialidade está me cansando, embora ela seja uma imagem
bonita de se assistir... calada.

— Ela já está grávida?

De repente o assunto fica muito interessante, porque a minha atenção se


volta totalmente nisso. Foram três meses de tentativas, espera e fracassos que
me trouxeram a esse momento.

— Não.

— Hoje era o último dia, se for contar que um bebê leva 9 meses, e...

Eu quase solto um: jura? Mas não vou ser deselegante e despejar
minha raiva em Érica. Só não sei o que responder.

— Não tentaram a inseminação?

— Estou muito ansioso para ver onde essa conversa vai chegar —
comento e arrasto o tablet pela mesa até levantá-lo diante do meu rosto.

— Eu só acho que deveria processar a Heloísa por te forçar a tentar ter

um filho com alguém que não conseguiu... ou não quis... não é culpa sua...
você tentou... prova da sua boa disposição foi levá-la para sua casa, não? Um
bom advogado...

As palavras de Érica são tentadoras. Afinal de contas, que homem não


gosta de tirar o peso de suas costas e jogar a culpa em outra pessoa?

Culpar Yasmin era fácil e me deixaria dormir em paz, tendo alguém em


quem descontar todo o ódio e fazer sofrer pelo resto da vida. Só para não

carregar o fardo da verdade.

Não... eu sou adulto.

Não posso fugir das minhas responsabilidades, por mais tentador que
seja renegar a culpa e achar alguém para colocar.

Sou culpado também.

Se Yasmin sabotou o plano, tomou anticoncepcional ou simplesmente


não quis ter um filho comigo, eu também sou culpado. Não a conquistei. Não
a fiz se sentir segura em meus braços. Não a convenci de que estava falando
sério, sem blefar.

Fui incapaz de ser a pessoa que sonhei que poderia ser para ela. Ou
simplesmente fiz tudo errado.

Não precisava da herança mesmo... isso nem me incomoda...

Mas sei que Ayslan e Lisa não vão me deixar em paz. E vai ser
doloroso ver Heloísa vencer. Fora isso, o que mais posso fazer? Preciso ter a
hombridade de aceitar a perda e seguir a vida.

— Guilhermo?

— Desculpe, Érica, me distraí. Você fez alguma pergunta?

— Sim. Sua mãe havia mencionado sobre bons advogados italianos, ou


gente influente aqui no Brasil, enfim, seu caso pode ser ganho. É só

comprovar que a mulher lá não quis ter o filho e pronto. Era um jogo perdido

e que foi perda de tempo...

— Érica?

— Sim? — Ela diz toda solicita. Arruma os cabelos ruivos e sorri,


quando a encaro.

— Eu me sentei nesse lado do refeitório porque não queria ser


incomodado. — Garanto que dessa vez estou sendo rude.

Agora o silêncio parte dela.

Eu já voltei à minha leitura, é algo bem proveitoso, na verdade. Estou


conferindo o arquivo digitalizado do hospital – curiosamente não subiram as
informações do dia em que deixaram um alicate dentro da senhora Eunice
Oliveira, mas não estou atrás disso.

— Guilhermo... — ela ri, nervosa. — Tem tanta coisa em jogo... o


legado do Alfredo...

— E daí? — A espio por cima do tablet.

Ela parece inconformada com minha indiferença a essa questão.

Eu só cansei de sofrer, tive uma semana exaustiva, não fiquei em casa.


A última vez que pisei lá, precisei encarar Yasmin quase chorar na minha
frente, o que me destruiu por completo. E ler uma história pra Phellippo,
fingindo que tudo estava bem, também não ajudou.

Me autoexilei no hospital, em busca de paz.

Coisa que não estou tendo.

— O que ela te prometeu, Érica? — Vou direto ao assunto. Se quero


mesmo ficar em paz, acho que preciso acertar a flecha no alvo.

— Ela quem? — Érica se faz de desentendida.

— A minha mãe.

Ela fica muda, a boca entreaberta, as palavras entrecortadas.

Gagueja e não diz nada.

— Fala, pode falar. Não vou te julgar, prometo.

— É que... eu sempre gostei de você... você é o meu tipo de homem,


mas nunca me notou. E eu quero ajudar, sabe? Fui eu quem a procurei. Disse
que me candidatava para ser a mãe do seu filho...

Quando desata a falar a verdade, a conversa parece que fica


interessante. Não entendo por que ela não foi logo direto ao assunto, teria
poupado o tempo e seria tão mais prazeroso!

— Você precisa de alguém que esteja disposta a ter o seu filho.

Meneio a cabeça, em sinal de que estou concordando.

— E eu estou. Sei que não somos tão próximos... e você mal repara em
mim, a não ser quando encarna o inquisidor espanhol...

Rio do comentário dela. É, às vezes eu sou um pé no saco.

— Deveria processá-las. A aproveitadora e a outra que te fez perder


tempo. Nem que seja para conseguir outra pessoa... nem que seja para
reiniciar a contagem do tempo, sabe?

— Certo. — Pisco os olhos devagar e ela se cala.

Tento organizar os pensamentos, pois não sei bem como responder à


proposta dela. Novamente, muito tentador e simples. Mas a vida e as escolhas
que fazemos, nem sempre vão por esse caminho.

De pronto vem uma memória de alguns dias atrás, de uma conversa que
tive com Lisa e Ayslan que me serviu como um tapa na cara.

Meu rosto dói até agora.

— Estou preocupada com você, Guilhermo — Lisa mostra sua


inquietação.

— Preocupada comigo? Te pareço doente? — retruco e bebo meu café.


— Você está me parecendo um personagem de um livro que li uma vez
— ela lamenta, seu olhar está carregado de pena.

— Um personagem de ópera, imagino — brinco.

— Bento Santiago. — Seus olhos mostram tristeza. — O Dom


Casmurro.

— Sei, do Machado de Assis. — Fico calado ao engolir o líquido forte.


Nunca li este homem, mas é um clássico e a FUVEST quase sempre pede a
leitura dele para seu vestibular. — Por que te lembro o Dom Casmurro?

— A Yasmin traiu o Guilhermo? — Ayslan entra na conversa,


interessado.

— Não que eu saiba — Lisa diz apreensiva, olhando-o de cima a baixo.

— Então por que lembraria o Dom Casmurro? — o outro se revolta. —


Sempre pensei que fosse um livro sobre a suposta traição de uma mulher.

— Aí que você se engana. — Lisa semicerra os olhos, daquele jeito


afiado que costuma ter. — Pra mim sempre foi um livro sobre como um
homem paranoico e mimado deixou de viver intensamente o amor que
sempre quis, e se tornou um velho deplorável, sozinho e com surtos de
alucinação enquanto narra sua epopeia.

— Credo. Isso é Dom Casmurro? Tem certeza de que leu o livro certo?
Pra mim é sobre Capitu e traição — Ayslan sacode os ombros.
— É. Mas o livro se chama “Traição” ou se chama “Dom Casmurro”?
O livro é sobre a metamorfose de um homem que é consumido por suas

próprias paranoias até perder tudo e se apega ao passado em suas memórias,


para tentar encontrar a luz da felicidade.

— Credo — é tudo o que consigo dizer.

Prefiro acreditar que é sobre traição, como Ayslan propôs.

— Se continuar assim, Guilhermo, é isso que vai se tornar. Um Dom


Casmurro. Lamentando tudo o que não viveu porque deixou-se levar pelas
fantasias que criou e não pelo que sempre quis — Lisa bufa, cansada. — Fico
tão apreensiva com a masculinidade tóxica...

— Masculinidade tóxica? Agora vai me dizer que Dom Casmurro é


sobre isso?

— Não. Só penso que se Guilhermo parasse por um segundo e


refletisse o que realmente quer, sem a pressão do testamento, da família e de

nós mesmos, talvez pudesse ouvir seus sentimentos. Coisa que é quase um
tabu para os homens. Por isso é sempre mais fácil ouvir o Dom Casmurro
dentro de si. Mas o fim, amigo... o fim é amargo...

— Ignore-a — Ayslan se diverte, vê graça em provocar Lisa. — Ela


não leu o livro direito...

— Então leia o livro de novo — Lisa diz em tom de bronca. — E vai


perceber que o livro é menos sobre a traição de Capitu e mais sobre os
delírios de um homem que perdeu seu bem mais precioso e está em negação.

Na vã tentativa de viver tudo de novo, fantasia excessivamente sendo


melodramático e exagerado.

— Melodramático e exagerado? — Ayslan ri. — Não é essa uma obra


do realismo?

— Meu filho, não há nada mais real que homem melodramático e


exagerado neste país.

— Érica...

— Sim?! — Ela quase se levanta da cadeira.

— Eu não quero ter um filho — suspiro. — Eu não quero ter uma


família. Eu não quero ter uma mulher...

O desapontamento em sua expressão é gritante. E o pior é que nem


terminei de dizer o que pretendia.

—... A não ser que seja com a Yasmin.


Dói admitir isso em voz alta. Eu me sinto fraco, de alguma forma. Me
sinto medíocre e idiota. Mas também sinto que estou sendo verdadeiro

comigo mesmo e sendo realista.

— Ela foi a primeira coisa que lembrei, quando saí do coma. E eu a


procurei por dois anos, quase aceitando que a tinha inventado, para superar
um trauma..., mas ela existe. Ela é real. Ela é a minha Yasmin.

— Aham — ela concorda, murcha.

— Se ela acha que não vale à pena ter um filho comigo, eu acho que
não vale à pena ter um filho com mais ninguém. Que o Alfredo me perdoe,
mas eu quero que ele se foda no inferno onde está. Eu estou no meu inferno.
E não faço ideia de como sair dele.

— T-tudo bem.

— Não está tudo bem. Ela é a única mulher que me interessa. Ela é a
única que poderia ser a mãe do meu filho. Ela é a única pessoa com quem

sinto que me conectei de verdade na vida, sem precisar fingir ser qualquer
outra coisa, a não ser eu mesmo...

Rio de minhas próprias palavras, me sentindo idiota.

Por que estou dizendo tudo isso?

Certamente não é para Érica. Ela é uma pessoa que não me importo,
nem um pouco, então não precisaria dar-lhe satisfações.
Estou dizendo para mim mesmo.

Estou dizendo porque agora entendo porque a garganta está embargada,

porque o peito dói tanto, porque me sinto fraco e sem ânimo.

Yasmin era como o meu pote de ouro no fim do arco-íris. Eu acreditava


que ao encontrá-la, finalmente seria feliz e viveria plenamente.

Mas não.

Foi minha imaginação que criou tudo isso... E eu precisava admitir para
mim mesmo que falhei.

— Você ainda está aqui? — Percebo, quando abaixo o tablet.

—S-sim — ela diz paralisada.

Acho que não consegue acreditar em tudo o que eu disse...

E quer saber? Nem eu acredito.

— Então dê o fora — falo sério e não tiro os olhos dela até que se

levante e saia a passos largos, para fora do restaurante.

Suspiro e tento limpar a mente de tudo o que acabou de acontecer.

De certa forma dói enxergar tudo de modo cristalino, mas também me


liberta. Agora eu entendo que não estaria feliz se fosse outra mulher. E que
provavelmente passaria a vida toda procurando por Yasmin, até quebrar a
cara e me decepcionar.
Foi bom que aconteceu agora. Então tenho tempo para superar e seguir
adiante.

— Ah — suspiro de tensão quando encontro finalmente o que quero.

Não lembrava ao certo o dia da primeira cirurgia de marca-passo que


fiz. E isso ficou em minha cabeça nas últimas semanas a ponto d’eu sonhar
com a situação... principalmente porque essa foi uma lembrança forte que tive

após o coma.

Vejo o nome de Alfredo como chefe cirúrgico, e o meu nome como seu
residente. A maior parte da cirurgia fui eu quem fiz, sob sua orientação. Leio
o nome de toda a equipe médica, algumas anotações sobre o passo a passo da
cirurgia. E lá no fim, encontro o nome do meu paciente:

Amauri Santos do Amor.


“O amor não se deve somente queimar, mas também aquecer”.

— Johann Goethe.

Passei o dia supervisionando os residentes da cardiologia.


Foi um dia relativamente tranquilo, acredito que todos já estavam
pegando o meu ritmo de trabalho e a sensação de dever cumprido ao final do

dia veio igual um êxtase.

Tomei um banho gelado para deixar o corpo em estado de alerta, eu


precisava me ocupar de todas as formas possíveis, já que não voltaria para
casa – e também não era uma opção ficar pensando que hoje acabava o meu

prazo para que o bebê fosse fecundado.

Acho que a coisa certa, como capitão do navio, era segurar o leme e
assistir à embarcação naufragar. Sentir o peso das águas afundarem toda a
construção, ver o horizonte ficar cada vez mais distante ao submergir e por
fim, tomar meu último suspiro e aceitar meu destino: morrer afogado.

Saio do banheiro do dormitório, rindo de meus pensamentos catárticos,


quando subitamente paro na porta.

Ajeito a camisa branca de algodão e a calça de moletom. Continuo a

guiar a cadeira até a estante ao lado esquerdo do quarto espaçoso, em


comparação aos demais dormitórios do hospital, pego um livro sobre
fibromialgia para ler e ignoro a presença de Yasmin do Amor, parada ao lado
da mesa ao centro do ambiente.

Me dirijo até o lado da cama, resistindo à tentação de olhá-la.

Por uma faísca de segundo me pergunto: seria algum tipo de miragem


ou ela está mesmo ali? A imaginei tantas vezes comigo que ainda não
conseguia distinguir quando era real.

Ligo a luminária e ajusto sua posição atrás de mim, abro o livro e


retorno à minha leitura.

— Não vai dizer nada?

Só de ouvir a voz feminina sinto meu corpo todo despertar. Então eu


não estava imaginando, não era uma miragem.

— Você sabe que dia é hoje?

— Sexta-feira — comento, sem tirar os olhos do livro.

— É... sexta-feira — ela concorda. — Se não se lembra, o último dia


que temos...

— Eu sei — a interpelo.

O silêncio parece crescer no ambiente a ponto de tomá-lo; normalmente

ele é um detalhe em qualquer lugar, mas quando se trata de estar sozinho com
Yasmin, o silêncio toma a proporção do prédio inteiro, talvez uma cidade
calada, dentro de um quarto.

— O que deu em você, Guilhermo?

— O que deu em mim? O que isso quer dizer? Eu estou tentando ler...

— Você não marcou a inseminação. Não me avisou nada. Está me


ignorando...

Levanto a sobrancelha fingindo alguma surpresa sobre o que ela diz.

— Não me olhe dessa forma — Yasmin sorri de um jeito amargo. Dá


alguns passos até mim, para provar que não é apenas o meu pensamento
raivoso e joga a cartela de anticoncepcional em meu colo. — Quando iríamos
conversar sobre isso?

— Esperei que você pudesse esclarecer — sorrio. — Afinal de contas,


foi você quem quis sabotar tudo.

— Mas que merda você está falando? — Ela põe as mãos na cintura,
indignada. — Ayslan me contou que você achou isso debaixo da sua cama. E
você pensou que fui eu quem usei?

— Tem outra mulher que dormia em meu quarto? — Tenho alguma


satisfação ao provocá-la e sorrir em sarcasmo, parece que estou aliviando
todo o estresse.

E ela corresponde me dando um tapa bem forte na cara.

— Eu assinei um contrato! — diz raivosa.

— Que aparentemente não valeu nada para você.

Não feliz com o tapa que me deu, Yasmin avança com os punhos
fechados e começa a bater em meus ombros. Tento segurá-la, mas está tão
irada que não consigo contê-la.
— Eu quis ter esse filho! — ela diz aos prantos. — Esse era o meu
sonho, você não consegue entender?

Agora que está chorando, fica mais fácil controlar seus movimentos.

— Eu sempre quis ter uma família... e imaginava que poderia tê-la com
você. Eu trabalhei três meses para que não fôssemos completos
desconhecidos no momento em que o teste de gravidez desse positivo, e aqui

estamos, Guilhermo!

Ela enfim respira, parecia que não ia perder o fôlego.

— Somos completos desconhecidos e eu não estou grávida! Eu estou


aos pedaços!

Ao vê-la chorar, independente da mágoa e das coisas que engoli, eu a


puxo para meu colo e tento abraçá-la. Mas Yasmin se debate e se afasta de
mim.

— Como você ousa pensar que eu faria algo assim?

— Yasmin... eu...

— Você acha que eu me dediquei, fiz tudo o que concordamos, a troco


de nada?

— Yasmin, me escute.

— Você acha que eu trairia a sua confiança e sabotaria os nossos


planos, quando ao escolher você, eu dei as costas a uma das minhas melhores

amigas? Não pelo dinheiro. Mas porque discordo dela, achei errado, queria

estar do lado certo! — Ela treme enquanto chora, cobre os olhos e os coça
freneticamente.

A sensação de vê-la assim faz com que tudo o que pensei e senti, o
rancor e o torpor, todos os meus pensamentos e próprias questões fiquem em

segundo plano.

Não quero vê-la assim. Dói muito mais do que a dor que estou
tentando ignorar.

— Eu sei que errei — admito. Consigo alcançar sua mão e tento fazê-la
se aproximar. — Eu... achei que era mais seguro se me fechasse e aceitasse a
derrota.

Yasmin me reprova em um aceno de cabeça.

— Peço desculpas pelo que te fiz sentir e pelas minhas atitudes. Eu não

posso voltar no tempo e corrigir tudo, mas eu também fiquei magoado.


Pensei que estava armando nas minhas costas...

— E ao invés de vir conversar comigo, você simplesmente... desistiu?

— Achei que a raiva e a dor diminuiriam se fizesse isso...

É difícil encará-la agora. Eu não estava preparado para assumir meus


próprios erros. E agora me vejo na mesma situação em que um jovem
cirurgião se vê diante da arriscada tarefa de salvar alguém. Um erro, menor
que seja, um descuido, por mais bobo que pareça, coloca em risco tudo.

E foi isso o que fiz com Yasmin...

Ou melhor... fiz a nós dois.

Como pude ser tão idiota em só pensar em mim, a herança e o que eu

sentia? Devia ter prestado atenção nela e ver que eu estava enganado.

— Me deixe consertar isso, Yasmin.

— Como vai consertar? — ela ri de nervoso. — Não temos mais


tempo, Guilhermo...

— Talvez seja tarde para a herança, sim — comprimo os lábios. —


Mas não é tarde para nós dois.

Ela consegue me encarar sem desviar os olhos agora. E eu tento abrir o


meu sorriso mais sincero.

— Eu estive pensando e... não valeria à pena construir uma família, se


não fosse com você. E eu estou tão destruído porque eu realmente quis esse
filho. Não só pela herança, não posso negar que ela é muito relevante, mas
porque isso é tudo o que eu sempre quis e tive medo. E você me fez acreditar
que conseguiríamos... juntos.

— Medo de quê?
— Medo de não ser um bom pai e não poder cuidar da minha família.
Tenho minhas dificuldades, às vezes me sinto um super herói porque salvo

vidas, mas quando tudo se apaga e entro nesse quarto, lembro que sou só um
aleijado... Mas é exatamente isso o que eu sempre quis... uma família. E foi
assim que me senti ao seu lado, nos últimos tempos.

— Foi um período tão curto, Guilhermo...

— E eu ainda estou aprendendo. Venho de um lugar disfuncional, não


existiam laços como esse. Um laço que mesmo quebrado, eu sinto... ou
melhor, eu sei, que vale a pena ser reconstituído.

Embora ainda vermelha e com os olhos marejados, as expressões de


Yasmin ficam mais suaves. Ela abaixa os olhos e aceita que eu a puxe bem
devagar, até que esteja em meu colo, segura em meus braços, consigo ouvir
seu coração acelerado quando repouso a cabeça em seu peito.

— Sei que é idiota dizer isso, mas... as coisas da herança em algum

momento nós poderemos conquistar ou recuperar..., mas o que estávamos


construindo, se deixarmos acabar, perderemos para sempre.

De repente o silêncio deixa de ser a mobília principal do dormitório.


Começa a diminuir, como se a cidade acendesse as luzes e a respiração
ocupasse o teto. Yasmin e eu já não parecemos dois desconhecidos, somos no
momento velhos conhecidos que se reencontram, depois de um longo tempo
sem se ver.

E que ao se encarar, enxergam as boas memórias que construíram

juntos, as que o tempo é incapaz de apagar.

— Eu... — ela suspira. — Vim tão furiosa e querendo provar que estou
disposta que vesti isso — ela sobe o moletom e consigo ver sua lingerie
preta.

Yasmin ri um bocado e deita a cabeça em meu ombro.

— Me sinto tão idiota!

— Não está idiota, está linda. — Encaro seus olhos. Deixo meus dedos
suavemente acariciarem seu rosto, afastarem qualquer vestígio das lágrimas.
— Bella donna.

Eu me sinto um completo estúpido por agir e encarnar um adolescente


que comete idiotices, fica ansioso e até mesmo sem reação diante da garota

que gosta; mas no fim, não consigo escapar disso.

E é justamente nesse momento que me sinto conectado com meus


próprios sentimentos.
Eu tinha um plano em mente.

Quando Ayslan me contou tudo o que estava acontecendo, eu me


preparei para chegar ao hospital, encontrar Guilhermo e jogar tudo na cara
dele. E depois dizer que eu levava tão a sério esse contrato que estava
disposta a tentar uma última vez, nem que para isso fosse preciso ficar sob

sua supervisão para ele visse que eu não estava tentando atrapalhar nossos
planos.

Mas eu fiquei sem reação quando ele disse que queria construir uma
família comigo, independentemente de qualquer coisa. E fiquei ainda mais
mexida quando ele disse que poderia ser tarde para ter esse bebê, mas não
para continuarmos construindo o que estávamos fazendo.

Simplesmente esqueci todos os motivos pelos quais eu tinha ido ali


quando ele me acalmou e me puxou para me sentar em seu colo.

Meu corpo aqueceu, mas não era mais de raiva. A tensão de ódio agora
havia se tornado uma inquietação. E lentamente eu abandonei as minhas
dúvidas, as incertezas, inclusive os desaforos que tinha preparado para gritar
a plenos pulmões para perceber que estava à flor da pele.

Guilhermo tinha essa incrível habilidade de transmutar meus


sentimentos em um simples gesto, mas dessa vez eu fiquei sem palavras.
— Nós devíamos descansar — eu digo, a cabeça toda bagunçada.

— Tudo bem — ele concorda.

Levanto-me e arrumo os cabelos, para um segundo depois me jogar no


colo dele e agarrar seu pescoço. Encontro sua boca como o pulmão encontra
fôlego após ficar dentro d’água até chegar ao limite.

E ao ser correspondida, meu corpo parece que vai explodir.

As mãos de Guilhermo me abraçam, e eu desajeitadamente vou tirando


o moletom, balançando a cadeira de rodas a ponto de sentir que vamos
despencar ao chão, mas não paro.

Minhas sensações vão ao extremo e mal posso controlar. Eu o desejo


tão intensamente quanto o odiei minutos antes. E cada parte de mim precisa
sentir seu toque, sob a possibilidade de simplesmente pirar.

— Tem certeza?

— Tenho — digo decidida, arrancando a camisa de algodão dele.

Sinto o cheiro da sua pele e meus sentidos se aguçam. Meus lábios


beijam seu pescoço, descem ao peitoral, e acho que vou ficando cada vez
mais louca enquanto sou tomada por seu cheiro.

O abraço de Guilhermo me envolve e afasta quaisquer dúvidas que eu


poderia ter de que não deveríamos ficar juntos. Encaixamos tão bem como as
peças de um quebra-cabeça, nós nascemos para ficar juntos e vamos ser
felizes juntos.

Sua mão que contorna meu corpo, me abraça firme e faz sentir sua

pegada forte.

Arfo de prazer e me entrego a seus braços, remexendo sem parar em


seu colo.

Ajudo-o, ou talvez o atrapalhe mais do que necessário, ao tentar tirar


sua calça de moletom. E estamos tão cegos um pelo outro que parece até que
um terremoto está acontecendo, porque a cadeira sacode para todo lado,
temos a sensação de que vamos cair, mas não paramos em nenhum momento.

Fora de seu colo por alguns segundos, beijo seu abdômen e depois sua
virilha. Minha língua ali parece que causa um calor danado, porque ele joga o
rosto para trás e respira fundo.

Em um beijo suave que deposito na glande e depois me concentro a


acariciar sua cintura e abdômen, vejo o pau dele começar a criar volume, até

ficar completamente duro e pronto para mim.

Eu já estou pronta.

Deus, acho que nasci pronta.

Tive medo a primeira vez, porque era inexperiente. Tive medo a


segunda, porque não sabia se iria ser igual, mas agora eu entendo que para
Guilhermo, sempre estive pronta.
Abocanho a glande inchada e a sugo devagar, é tão macio e quente em
minha boca que me dá a vontade de não parar de chupá-lo tão cedo.

O cheiro de seu corpo limpo e perfumado, o calor que transpõe pela


pele e o toque de sua mão em minha nuca, me incentivando, me acariciando,
me mostrando o caminho mais ao fundo, me deixam louca.

— Não para — aperta os olhos, a cabeça ainda jogada para trás.

Não digo nada, sigo o controle de suas mãos que dominam bem a
situação, me mostrando o caminho a seguir.

Como senti saudades desse corpo. Como senti saudades desse cheiro.

Cada parte dentro de mim parece que pega fogo de uma só vez e eu não
afasto meus instintos, minhas vontades. Arranho suavemente com as unhas a
coxa e perna dele. Tateio seu abdômen e ombros, massageando-o com a
ponta dos dedos, ao devorá-lo e senti-lo cada vez mais grande e pulsando em
minha boca.

— Merda, não dá mais, preciso de você — ele diz e desce a cabeça em


minha direção.

Os olhos prateados incandescem num brilho de desejo.

Guilhermo fecha a mão em meu braço e me puxa de volta para cima de


si na cadeira, envolve meu corpo com os dois braços e me faz escorregar bem
devagar pelo seu corpo nu.
A mão firme dele segura em meu seio, a boca carnuda afastar a lingerie
e toma o meu mamilo em sua boca, o prazer é instantâneo e eu abraço sua

cabeça, rebolo suavemente em cima de seu pau em riste, pulsando


firmemente.

Não tenho tempo para mais nada, eu não preciso de mais nada, além de
senti-lo dentro de mim.

Estico o pescoço e tento puxar todo o ar que consigo. O corpo se retrai


de uma só vez e eu me concentro para poder relaxar. Seguro tão forte nos
ombros de Guilhermo que percebo de relance as marcas vermelhas das
minhas unhas que deixo por sua pele.

— Isso, eu quero você... eu preciso de você... — Fecho os olhos.

— Você é perfeita para mim — ouço sua voz rouca vir em um sussurro.

Um arrepio toma conta do meu corpo e eu o aperto cada vez mais, sinto
mais do que desejo e lascívia agora.

A pressão que invade meu corpo é acompanhada de uma vontade de


lacrimejar e gritar bem alto. Mas logo é sufocada por uma onda de prazer e
um calafrio de incerteza em minha barriga, o mesmo que senti da primeira
vez que o vi.

Guilhermo continua abraçado a mim, a cadeira de rodas sacode devido


aos meus movimentos e a intensidade com que ele consegue me fazer subir e
descer em seu pau. Uma de suas mãos desce, sorrateira, para massagear meu
clitóris em movimentos circulares, de modo muito dedicado e incisivo.

Senti-lo dentro de mim vai muito além do que a sensação física e carnal
que mistura dor com tesão.

Parece que estou redescobrindo meu corpo e ao fazer isso, redescubro


quem eu sou. Entrego-me sem medo e sem pudor, pois encontro o fogo da

paixão em seus lábios, o amor em seus braços e a liberdade em sua pele.

Estamos sentados um sobre o outro, mas sinto como se estivéssemos


voando.

Livres do chão, livres das paredes desse hospital, livres de nós mesmos.

Um certo medo sempre paira sobre mim, quando chego a esse


momento. Tenho receio do corpo não responder, de falhar, de em algum
momento parecer um bobo que mal consegue sair do lugar. Mas tudo
desaparece, o dormitório fica escuro, apenas os olhos de Yasmin me
iluminam e atraem magneticamente minhas mãos.
Cheiro seus cabelos, afasto-os do rosto, deito minha cabeça sobre seu
pescoço. Sinto-me ilimitado.

Tudo o que preciso está aqui. E com minhas mãos e boca, consigo
demonstrar todo o carinho e tesão que explode em mim, que rasgam a
timidez e o medo, afastam minha sensação de estar preso na maldita cadeira e
me faz sentir como se fossemos apenas aqueles dois jovens que se

conheceram lá atrás.

— Não, você não vai fazer isso — Rosno.

Minha mão é mais lenta que a furtiva saída dela do meu colo. Corre nua
pelo dormitório, como uma deusa, os cabelos pesados balançando contra o
escuro do quarto e nenhum vento para dar-lhe aquele ar selvagem.

— Não tente fugir de mim — semicerro os olhos.

Um frio sobe pela espinha. Eu não posso perdê-la. Não quero.

— Será que consegue me pegar?

— Não me provoque, mulher — sacudo a cabeça e vou em seu encalço.

É. Definitivamente não crescemos. Somos dois bobos imaturos e isso


seria completamente deprimente... se não estivéssemos apaixonados.

Não consigo pensar duas vezes, é como um momento cirúrgico em que


uma decisão precisa ser tomada e eu arrisco todas as minhas fichas. As mãos
vão para os pneus duros da cadeira, o impulso me tira do lugar, e em menos
de dez segundos eu a tenho em meus braços, jogada por cima do ombro.

É um lindo déjà vu.

Deito Yasmin na cama e quase caio da cadeira, quando me curvo. Ela


me segura pelos ombros, me empurra de volta e continua a rir, suando.

— Sua maluca.

— Mas você gosta, não é?

— É claro que gosto — admito. — Gosto de tudo em você.

Ela cruza as pernas, em vão.

Seguro firme em seus joelhos, afasto suas pernas e a deixo aberta para
mim. Num suspiro alto ela bate as mãos contra minha cama e sente ser
puxada em minha direção. Ri. Feito criança, feito travessa, não sei o que tem
tanta graça, mas também tenho vontade de rir.

Beijo suas pernas perfumadas. Apoio-as nos braços de minha cadeira e

continuo a puxá-la, para que venha toda para mim.

Yasmin estica bem o pescoço quando toco seus lábios vaginais com
minha boca e desço a língua úmida e leve por dentro do seu canal.

Que merda, isso é muito bom. E reforça o quanto vale à pena correr
atrás dela e tomá-la de volta.

Não penso duas vezes em molhar quase todo o meu rosto quando
abraço suas coxas, puxo seu corpo contra o meu e me afundo em sua vagina.

Minha boca vai faminta, salivando, desesperada para sentir seu gosto, cheiro,

sua textura.

Dou uma chupada caprichada em seus lábios e massageio o clitóris


devagar, deixando um sorriso escapar de meus lábios cada vez que ela respira
pesado e precisa tomar ar com a boca.

— Gosta disso?

— Uhum — diz manhosa, mal consegue rir ou manter uma expressão


séria.

O corpo está tomado por um êxtase que me excita só de ver.

— Eu faria qualquer coisa para sentir você assim... de novo, de novo e


de novo... — digo.

Yasmin fecha os olhos e deixa o corpo se afundar no colchão macio. E

eu aproveito a boa posição em que estamos para contornar seus lábios, sugar
e lamber sua vagina e depois deixo o corpo descer, quando passa pelo meu
pau, a glande esfrega com força contra a entrada.

Não tenho como mover a minha cintura para penetrá-la, então uso as
mãos para guiar nosso corpo.

As mãos abertas se fecham nas nádegas grandes, meus músculos se


retraem em guiar meu pênis para dentro dela. Escorrega fácil, está tão
molhada e preparada que não encontro qualquer dificuldade nisso.

É engraçada a sensação. Não é um formigamento ou dor fantasma que

sinto nos dedos dos pés, mas estou suando como se o corpo sinalizasse que
estou sentindo meus pés. Não importa. Acho que o cérebro só está
processando a sensação de liberdade quando eu deixo cair de meus ombros
todos os medos e receios para viver este momento.

Tive medo que algo assim nunca voltasse a acontecer.

E o peito retumba tão alto que mal posso acreditar que Yasmin é real.
Que este momento é fatídico. E que eu estou perdidamente apaixonado por
essa mulher.

— Isso — ela geme.

O abdômen se contrai quando tenta levantar, me estende os braços para


que eu a agarre.

Eu a puxo, tentando equilibrá-la em meu colo, mas ela vem num


impulso que faz a cadeira rodar para trás e bater firme na parede.

O soco nas costas me deixa mudo por um segundo e nada mais. O


coração desregulado se exaspera diante de tal acontecimento. Mas foi só um
choque momentâneo, coisa maluca que lembra nosso reencontro no estúdio
em Fernando de Noronha.

— Sua maluca!
— Sou mesmo — ela me envolve com seus braços.

Pressiona a cintura para baixo e me deixa mudo, a boca entreaberta

soprando todo o ar quente que há em meus pulmões.

Ouço o barulho dela batendo com a bunda em minhas coxas e eu fico


hipnotizado, segurando em sua cintura, não sei se guiando os movimentos ou
aproveitando cada milésimo de satisfação.

Acho que fiquei maluco também. Fui contaminado por essa mulher.

Cada toque de seus dedos, cada beijo em seus lábios, cada soprada de
ar contra meu rosto parece algo que já aconteceu. E algo novo também.

As sensações são únicas e inéditas, mas também iguais e nostálgicas.

— Eu te amo — ela me diz e me arranca do chão. Deita a cabeça em


meu peito.

Os pés correm uma maratona, é o que o coração sente. Tenho a ilusão

de ouvir o sangue correndo, quente e rápido pelas veias.

Meus braços sobem por suas costas, minhas mãos se agarram à suas
clavículas e eu a abraço com força contra meu corpo nu, deixando nossas
peles se misturarem em meio ao suor, calor e delírio de um:

— Eu te amo — que é o que respondo também.

Beijo seus cabelos escuros e esfrego meu nariz pela sua orelha, nuca e
pescoço.

Sinto que finalmente encontramos uma forma de nos conectar e esse é

um recomeço para o amor que estávamos construindo.


5 ANOS ATRÁS

“O amor não tem nada a ver com o que você espera receber – apenas
com o que espera dar – que é tudo”.

— Katharine Hepburn.
— Parabéns à equipe cirúrgica, o pessoal de apoio e ao doutor
Lamarphe pela excelente cirurgia. — Alfredo bate a mão aberta em minhas
costas.

Todos parecem muito satisfeitos com o trabalho e começam a afastar a


aparelhagem que não precisaremos mais.

— Os batimentos estão bons e a pulsação também. Ele deve acordar em


5 ou 7 horas. — Ele observa minha pressa. — Aonde você vai?

— Tenho que voltar à faculdade agora... — tento explicar.

— O trabalho só termina após conversar com a família. — Alfredo me


lança seu olhar de professor carrancudo. — Tenho uma emergência a
resolver, então você cuida disso. Dê todas as informações que eles precisarem

e depois vá dar sua aula.

— Ok.

Tão apressado que estou, tiro a bata descartável e depois as luvas. Lavo
as mãos, punhos e pulso com certa demora e tento recobrar o tempo no meio
do caminho.

Estou prestes a tirar a touca quando passo pela porta que separa o
corredor dos funcionários com a sala de espera da família do paciente Amauri
do Amor. Então paro subitamente ao ver uma mulher, quase uma garota, voar
em cima de mim.

— Ele está bem? Ocorreu tudo bem? O meu pai está vivo?

São tantas perguntas e seus olhos castanhos parecem tão assustados que
dou até um passo para trás, deixo a parte de tirar a touca e a máscara para
depois.

— Você precisa se acalmar.

— Eu não consigo ficar calma, a cirurgia demorou tanto! — diz


indignada.

Sua mãe vem em seguida, um olhar mais retraído, o corpo quase


encolhido.

— A cirurgia foi um sucesso — digo para o alívio das duas, que se


abraçam desesperadamente. — O senhor do Amor precisa descansar,

deixaremos que o visitem assim que acordar, isso deve levar entre 6 ou 8
horas. Ele não deve passar por estresse, nem grandes emoções nos próximos
dias, nada de esforço, carregar peso, tomar sol...

Paro de falar ao perceber que a filha do paciente não está prestando


atenção no que digo, embora esteja me encarando.

— Enfim, cuidados padrões pós-cirúrgicos. Vão receber tudo isso


impresso. E ele pode ficar internado no hospital por 3 dias, depois o quarto é
cobrado por dia.

— Não podemos vê-lo agora? — A filha morde o lábio inferior.

— Sinto muito, ele não está consciente.

Ao dar meia volta, sinto o aperto da mão feminina em meu braço,


tentando me impedir de seguir.

— Podemos dormir aqui?

Sou acometido por uma sensação estranha quando encaro o fundo dos
seus olhos. De repente a pressa fica para outro momento. E o cansaço
também.

— Sim, a acompanhante pode dormir no quarto.

— Mas eu posso ficar no corredor? Aqui fora na sala de espera?

— É claro — aceno para sair.

— Muito obrigada por cuidar tão bem do meu pai, doutor! — ela diz

animada, tenta se manter no lugar.

E eu bato a testa bem de leve na porta quando estou prestes a passar.

— Foi um prazer. Tenham um bom dia!


3 MESES APÓS A RECONCILIAÇÃO

Vem na maldade, com vontade

Chega, encosta em mim

Hoje eu quero e você sabe que eu gosto assim

Esperei tanto por esse momento que acho que não estou aproveitando o
suficiente. O plano original era levar Guilhermo para um show da Anitta ou
para uma boate super badalada da noite paulista, só para ver a reação dele.
Mas como surgiu a oportunidade da calourada de direito da faculdade, por
que não o arrastar para o meio do furacão?

A feição dele de que não faz ideia de onde está me faz rir por dentro.

— O que houve? Algum problema? A música está muito alta? —


Continuo a rir por dentro, por ser tão dissimulada.

— Não... eu só... — suas sobrancelhas ficam erguidas, observando toda


a situação.

E ele fica ainda mais sem graça quando um pessoal jovem passa de
jaleco – nunca entendi por que os alunos de medicina usam jaleco fora do

hospital ou da aula.

— Aí, professor Lamarphe, tá sumido. — Um dos estudantes bate em


suas costas.

— E você já não devia ter se formado? — Guilhermo devolve com seu


bom humor que poderia arrancar o braço de alguém numa mordida só, feito

um leão.

— Se você está incomodado, tudo bem... podemos ir embora... — Faço


um bico.

— Certeza? Você parece estar se divertindo — ele diz vitorioso.

Sacudo os ombros.

— Se você está velho demais para vir às festas universitárias e se


divertir, tudo bem...

Vejo um fogaréu dentro de seus olhos. Chamá-lo de velho foi golpe


baixo, mas é divertido ver esse homem irritado.

— Te achamos. — Lisa me dá um beijo em cada lado do rosto e


encosta na cadeira de Guilhermo. — Não é divertido? — Ela olha ao redor.

— Ô — seus lábios fazem uma curva para baixo.

— Essa é a melhor parte da faculdade. — Ayslan aparenta estar 110%


animado. — Faz lembrar dos bons tempos de estudante...

— Você adora o jeito brasileiro de transformar qualquer coisa em

carnaval — Guilhermo diz num tom de crítica, muito severo.

— Adoro! — Ayslan se sacode todo e começa a dançar junto com a


música.

— Acho que encontrei um parceiro de dança...

Ayslan e eu ficamos mexendo a bunda ao som de Anitta, ele de um


jeito bem mais duro e descoordenado e eu matando a saudade de me divertir
e ir em uma festa, há muito tempo que não me dava essa oportunidade.

Dessa vez é sem culpa.

O meu pequeno ateliê está lucrando algum dinheiro, já posso dar uma
tranquilidade financeira para a minha família e me dar ao luxo de ter algumas
funcionárias, assim consigo pegar muito mais material e estou preparando

uma coleção exclusiva para vender. A loja de produtos educativamente


evangélicos que sou sócia com Patrícia, também está indo de vento em popa.

Agora sim eu poderia tirar umas férias, sem culpa, mas prefiro tirar só
um dia e dançar um pouco, aproveitar que a vida parece ter voltado aos eixos.

— Meu Deus, o bar estava cheio! — Patrícia vem, esbaforida, me


entrega um copo com líquido vermelho.

— Ei!!! — Ayslan toma o copo da mão dela, antes que chegue até
mim. O líquido até derrama. — Está maluca? Vai dar álcool para a grávida?

— Faz isso de novo e eu arranco sua mão fora — Patrícia o fuzila com

o olhar.

— Era só suco de morango com leite condensado, relaxa — acalmo


Ayslan.

Ah... o bebê...

Guilhermo e eu decidimos mentir para seus amigos, para que eles não
pirassem. Inventamos que eu estava grávida e pronto, sem mais perguntas,
sem mais cobranças. E é claro que eles torciam o nariz em ideias como essa,
de eu vir dançar na calourada do meu curso, mas também não me deixavam
sozinha.

— Ah — Ayslan lambe os dedos, comprovando que não tem álcool


algum na bebida. — Eca, isso é muito açúcar — reclama.

— O bebê precisa — faço uma careta e pego meu copo grande, a boca
chega a salivar com o coquetel que pedi que fizessem sem vodca.

— Se a sua mãe não tivesse cuidando das crianças, com certeza estaria
aqui também. — Lisa se diverte mais com a feição de Guilhermo do que com
a música. — Ela seguiu mesmo os meus conselhos, não é?

— Sim — digo animada e dançando, tomando cuidado para não


derrubar o copo.
Mamãe agora tem a vida super badalada.

Antes vivia só dentro de casa, só queria saber de ficar na cama, sozinha

e no escuro. Depois de uma boa conversa com Lisa e o incentivo de


Guilhermo, agora ela só quer saber de forró, ter aulas de dança, caminha na
área livre do condomínio que possui um lago lindo, patos e outras boas
distrações.

Não tenho do que reclamar, tudo está perfeito e do jeito que eu sempre
quis.

Só Diogo que não dá o braço a torcer, se sente mal por não estar em
nossa casa, mas ele respeita Guilhermo e eles se dão muito bem. Ele está
longe de se tornar um irmão exemplar, mas parou de fazer as loucuras de
sempre.

— Professor Linkalter, que inesperado te ver aqui.

Paro de dançar quando percebo a cara azeda de Patrícia olhando para

uma mulher bem jovem, de jaleco, sorrindo para o cabeludo.

— Nos vemos mais tarde — ela pisca.

— Eu tenho que monitorar os residentes hoje? — Ayslan arregala os


olhos, assustado, até afasta a garrafa de cerveja.

— Não... não... é só que a festa vai até mais tarde... a gente se vê —


ela pisca e sai.
Patrícia move os lábios, imitando a garota, só que de um jeito mais
cartunesco. Não sei o que ocorre com ela, fica toda ouriçada quando vê o

amigo de Guilhermo, foi assim desde Fernando de Noronha, mas também não
dá abertura para o coitado.

— Essas festas de direito terminam como as festas de medicina? — ele


me pergunta.

— O que isso quer dizer?

— Não queira saber — Lisa aperta o ombro de Guilhermo e bebe sua


cerveja de canudinho.

— Digamos que nas festas de medicina... quando chega à noite...


ninguém é de ninguém...

O barulho de Lisa sugando o canudo fica ainda mais alto.

— Ah... com certeza... ainda mais porque tem tanta gente da medicina

aqui. — Olho ao redor. Quando meus olhos encontram os de Guilhermo,


sinto que sua mão está coçando para me dar umas palmadas na bunda.

— Foi isso que o manteve no Brasil, então... preparem-se para o Ayslan


sumir — Lisa diz.

— E você não vai arranjar alguém? — Guilhermo a provoca.

— Não, eu já tenho alguém em casa. Se chama Kim Han. E vai estar


faminta quando me encontrar, então sem after pra mim.
— Joga fora pra mim, por favor? — Entrego meu copo à Patrícia.

Não consigo beber mais. Entendo perfeitamente porque isso leva

vodca... sem o acréscimo alcóolico, a coisa fica rapidamente enjoativa.

— Guilhermo... você quer ir...? — pergunto.

— Ir... onde?

— Pra casa — digo.

— Pra casa? — Ele se diverte.

E eu me sento em seu colo, o rosto quase vermelho de vergonha.

O que eu disse a ele no início do dia, antes de virmos parar aqui?

— Eu vou te levar a um lugar legal. E lá eu vou dar o meu nome.

— O que é isso de dar o nome? — ele perguntou.

— Vou mostrar do que sou feita, vou mostrar ao mundo a que vim.

Horas depois, cá estava eu pulando, dançando, suando feito uma louca,

como se ainda fosse uma adolescente. Mesmo tão jovem, estou me sentindo
indisposta e com o estômago meio revirado agora.

— Quem é o velhinho agora? — Guilhermo provoca. — Está certa de


que quer isso?

— Uhum — balanço a cabeça.

— Não vai se arrepender? — Acho que ele está me punindo, enrolando


para irmos.

— Só vamos...

— Ok. Yasmin e eu estamos saindo, acho que ela ficou velha demais
para festas assim. — Guilhermo empurra as rodas da cadeira e acena para os
amigos.

— Eu até iria, mas há tanto tempo que não vou em uma festa que me
sinto obrigada a ficar — Lisa lamenta. — Nos vemos mais tarde!

Patrícia nem me dá tanta atenção, está olhando Ayslan com muita raiva,
enquanto ele se torna facilmente a atração da festa, seja entre suas alunas
residentes, alunos do curso de direito ou pessoas que viram um homem
gigante e que parece um Viking tão simpático e descontraído que é
impossível ignorar.

— Se divertiu? — Guilhermo nos leva para longe da festa.

Escuto uma gritaria de excitação que quase estoura meus tímpanos.


Faço um bico por ver que perdemos os pós coloridos, seria o auge do dia:
Guilhermo com o rosto e corpo coberto por tintura amarela, rosa e azul neon.

— Quer voltar? — ele provoca.

— Não, vamos ter outra oportunidade... — Não contenho o lamento em


minha voz, mas de fato estou meio indisposta agora.

— Machucou o pé?
— Não...

— O que foi então?

— Você deve estar me odiando por trazê-lo aqui, não é? — Passo o


dedo indicador na ponta de seu nariz.

— Não. Por que odiaria? — Sua feição se mantém séria.

— Imagino que não deve ser o maior fã da Anitta... Ou dessas músicas


eletrônicas...

— De fato, não sou — concorda. — Mas eu facilmente me sinto bem


em estar no mesmo lugar que você, então por que não tentar?

— Jura? — Meus olhos brilham.

— É claro. Existem músicas para vários momentos, parecia bem


divertido... embora eu goste de uma vida menos expositiva na frente dos
meus alunos... ainda bem que o pessoal do hospital não apareceu.

— Ah, você tem vergonha de mim?

— Não diga besteiras — ele reclama e abre a porta do carro para que eu
entre.

Saio do seu colo, após relutar um pouco e entro no automóvel, aguardo


até que ele esteja ao meu lado. Quando sobe e está ao meu lado, eu estou com
um aparelhinho branco em mãos apontado para ele.
Guilhermo nem dá muita atenção a princípio. Liga o carro, o ar para
ventilar e expulsar o cheiro que estava me dando náuseas e depois para, com

a mão no volante, encarando o teste de gravidez.

— Que é isso?

— Guilhermo...

— Ahn?

— Eu te trouxe aqui hoje porque queria que esse dia ficasse em sua
memória.

— Todo dia ao seu lado vale à pena estar na memória — ele pisca os
olhos prateados, onde vejo um brilho azul.

— Eu estou grávida! — Faço uma cara como se tivesse cometido uma


besteira inacreditável e tivesse sido pega no flagra.

— Sério?

— Sério!!!

Ele tira o cinto de segurança e me puxa para seus braços, me enche de


beijos e fica me encarando no fundo dos olhos, com o rosto próximo ao meu.

— E você inventa de ficar pulando e dançando feito louca? — reclama.

— Imagino que você não deixaria quando minha barriga começasse a


aparecer. — Levanto os ombros.
— Quando soube?

Comprimo os lábios e abro um sorriso parecido com o anterior.

— Há três meses.

— Quê?

— Sim. Eu estou grávida há três meses — balanço a cabeça, animada.

Mostro no celular o exame que fiz, para que ele cheque as datas.

Essa é uma excelente notícia. Guilhermo não precisa mais perder as


esperanças na herança... Phellippo nasceu antes de completar os nove meses,
se isso ocorrer com esse bebê, tudo está garantido!

— Já contou para sua mãe?

— Não...

— Patrícia?

— Não, Guilhermo, você é o primeiro a saber.

— Eu estou tão feliz! Parabéns! — Ele beija minha testa e me mantém


dentro de seu abraço.

— Agora vamos para casa. Não estou velha, só grávida. E enjoada.


Mas depois eu volto a dançar e você vai continuar com essa cara amarrada.

— Vamos ver.

Fico observando as expressões dele durante o percurso de volta para


casa. E me surpreendo com o simples fato dele não mencionar ou puxar o
assunto da herança. Parece algo já superado e que ele não tem mais

expectativas.

Tem sido assim desde que resolvemos nossas diferenças, no dormitório


do hospital.

— Estamos grávidos — Guilhermo assovia. — Vamos ter um bebê...

— Guilhermo?

— Sim, baby.

— Estacione. Preciso vomitar.


“Há duas espécies de chatos: os chatos propriamente ditos e os
amigos, que são os nossos chatos prediletos”.

— Mário Quintana.

Com a novidade revelada, precisei marcar o pré-natal. Elenquei bons


hospitais que cabiam em meu orçamento, mas fui pega de surpresa com a
insistência de Guilhermo para que tudo ocorresse no Rota da Vida. Neguei,

tentei discutir, todavia meus argumentos e a minha poupança foram vencidos


por: “aqui estão os melhores médicos desse país” e “eu pago”.

Só havia um pequeno detalhe nisso tudo: o perigo de encontrar Dênis


Bittencourt.

Minha mãe reconheceu de imediato o hospital quando chegamos.


Lembrou-me que tivemos a sorte de conseguir uma vaga para internar papai
aqui, anos atrás.

— O Guilhermo tem razão, o hospital é muito bom e você vai estar em


boas mãos — ela tenta me acalmar, mas eu fico tensa e vigiando tudo ao meu
redor.

— Quer que eu vá com você?

— Não precisa, Guilhermo... minha mãe e minha amiga vão me

acompanhar.

— E eu? — Phellippo mostra sua indignação por ter sido esquecido.

— Que tal passar o dia comigo? — Guilhermo pergunta.

— Sim! — PH nem liga mais por ter sido deixado de lado em minha
consulta.

Desde que conheceu Guilhermo, virou a pequena sombra dele. O enche


de perguntas, o observa atentamente e o imita de todos os jeitos possíveis.
Passar uma hora só os dois parece animá-lo.

— Então tenha uma boa consulta e me avise quando terminar. Vou


estar no sétimo andar — Guilhermo acena, PH sobe em seu colo e começa a
fazer um “vrum vrum” com a boca.

Eles tomam um caminho diferente do nosso e vão embora.

— É um lugar tão grande e chique... li em algum lugar que as


celebridades são atendidas aqui — Minha mãe não esconde a animação.

Seguimos para a consulta agendada previamente e mesmo em um lugar


tão caro, não sou poupada de ficar esperando o momento de ser atendida.

— Você parece nervosa... calma, filha, você já passou por tudo isso
uma vez, não precisa ficar preocupada...

Deito a cabeça no ombro de mamãe e respiro fundo.

Tinha esquecido dessa sensação de ficar ainda mais sensível e tudo


ganhar proporções maiores durante a gravidez. E olha que a barriga nem
começou a crescer e já estou em apuros.

— Yasmin do Amor? — A médica aparece e me causa um alívio


tremendo. — Queira me acompanhar.

A doutora Alissa Coelho foi indicada pelo Ayslan, pelo visto eles
trabalharam juntos no passado. Vou com a cara dela de imediato, uma mulher
de sorriso expansivo, a pele preta e brilhante feito um diamante, o cabelo
volumoso e cheio de vida.

— Olha só que família bonita — ela avalia quando nós três nos
sentamos diante de sua mesa. — Há quanto tempo descobriu a gravidez?

— Algumas semanas.

— E está de quantas semanas?

— Acho que 12.

— Hum... e estava passando em outro profissional antes?

— Sim, mas depois estava só recebendo alguns conselhos de um colega


seu, o Ayslan Linkalter.

— Hum! Eu adoro o Viking! Ele é um fofo — ela diz animada.

— Fofo... — Patrícia desdenha, entredentes.

Dou uma cotovelada de leve para que ela guarde isso para outro

momento.

— E você é mamãe de primeira viagem?

— Tenho um menino, o Phellippo. Ele tem 3 anos...

— E foi parto normal ou Cesária?

— Cesária. Ele nasceu enooorme, não sei se iria aguentar... — Encolho


os ombros e rio.
— Hum... eu trabalho com parto humanizado. Vamos estudar várias
opções, mas decidiremos, é claro, por aquela que você se sentir mais

confortável, tá? Ou você já está decidida a fazer outra Cesária?

— Não... estou aberta a opções...

Já me imaginei dando à luz dentro de uma banheira. Não sei se isso me


assusta ou anima, só sei que me sinto em boas mãos.

— Teve depressão pós-parto após o Phellippo? — Ela vai escrevendo e


lançando um breve olhar sobre mim, conforme pergunta.

— Não.

— E você é mãe solo? Tem parceira? Parceiro?

Meu Deus! Será que ela acha que Patrícia e eu temos um caso? Rio de
nervoso.

— O Guilhermo é um homem fenomenal, ele trabalha aqui.

— Aqui? — Ela coça o queixo com o lado detrás da caneta.

— Guilhermo Lamarphe é o pai do meu bebê.

— Oh — ela diz animada. — Parabéns! Conheço o Guilhermo, muito


rígido e de humor tempestivo, mas uma pessoa maravilhosa e correta.

— Sim... — sorrio.

— Então está em boas mãos. Sei que o Guilhermo não tem filhos,
posso sugerir aulas conjuntas para o momento do parto? Tem a opção de

fazer individual ou em grupo, com outros pais. É bem estimulante, treina a

sincronia do casal, fortalece os laços...

— Claro... pode sim... — Fico animada.

— E as vacinas? Estão em dia? São Paulo está tendo uma epidemia de


sarampo, você já completou as suas doses?

— Sim.

— Tétano?

— Aham.

— Trouxe sua carteirinha de vacinação? Preciso dar uma checada para


construir seu arquivo.

Minha mãe abre sua bolsa de mil e uma utilidades, vasculha bem lá
dentro e tira meu cartão. Me salvou, porque fiquei congelada no lugar

imaginando que esqueci isso. Após ela me pesar, aferir minha pressão ela
conclui:

— Perfeito, Yasmin, vou pedir uma bateria de exames, você já deve


conhecer o procedimento de quando teve o Phellippo... nos encontramos
assim que os resultados saírem para discutirmos tudo, inclusive sua
alimentação, os cuidados, marcar as aulas de preparação para o parto...
alguma dúvida?
— Sim... — mordisco o lábio inferior. — Existe... a possibilidade...

— Hum?

— Do bebê nascer antes dos nove meses?

— Como assim, Yasmin?

— É que eu queria saber se existe alguma forma dele nascer um pouco

antes de completar os nove meses...

Minha mãe me encara como se eu fosse maluca. E Patrícia percebe que


eu menti que estava grávida antes e que talvez eu não cumpra com a data
prevista para revisão do testamento, evito seu olhar exagerado de indignação.

— O bebê já tem compromissos? — A doutora se diverte. — Yasmin,


quanto mais tempo o bebê passa no útero, melhor. Assim ele é nutrido, tem
tempo de ter perfeita formação óssea, dos órgãos, evitamos síndromes e
problemas no intestino, no coração... então o ideal é que ele fique aí dentro o

máximo de tempo possível.

— Mas existem casos em que o bebê nasce tipo de oito meses e meio,
certo? — Patrícia cruza os braços.

— Claro, existem casos em que a gestação é interrompida e o bebê vem


prematuro. Por isso preciso que tome cuidado redobrado com sua comida,
cortar bebida... você fuma?

— Não.
— Já é um caminho. Vamos fazer de tudo para esse bebê nascer no
tempo certo... no tempo dele. Você anotou o primeiro dia do seu último ciclo

menstrual? Podemos calcular aqui agora uma data de previsão para o


nascimento — ela é tão solícita e me passa tanta segurança que fico
constrangida em insistir nesse assunto.

— Certo — é tudo o que digo, sem graça.

— Mais alguma pergunta? Aqui estão os seus pedidos de exame, sua


carteira de vacinação, eu te aguardo com os resultados e damos seguimento
ao seu pré-natal. Tudo bem?

— Nenhuma pergunta. Obrigada, doutora. — Aperto a mão da mulher


e saio, sentindo o olhar de minha mãe sobre minhas costas.

— Minha filha, que tipo de pergunta foi aquela? Como assim o bebê
nascer antes? Pra quê essa pressa?

Se os meus cálculos estão certos, o nascimento desse bebê vai ocorrer

depois da revisão do testamento. Estou levando em consideração a data das


semanas de gestação e minha experiência com PH, que nasceu de nove meses
certinho.

— Não, mãe... só queria saber...

— Toma juízo, minha filha...


— Guillermo, cheira meu pé. — PH tira o tênis e a meia quando sobe
em cima da minha mesa e me assiste mexer no notebook.

— Pra quê? — Arqueio a sobrancelha.

— Cheira — a criança insiste.

A criança quase chuta meu nariz, deita na mesa e me faz cheirar seu
pezinho.

— Que isso te lembra? O sapo não lava o pé. — Sem preparo e sem
nada ele começa a cantar, animado, batendo palmas.

Fico sem reação, mas na dúvida o acompanho, batendo palmas.

— Não lava porque não quer... — ele continua. E só para quando

termina a música. — Guillermo?

— Não, não pise no chão enquanto estiver descalço — o alerto quando


tenta saltar da mesa. — Estamos em um hospital, coloque sua meia.

— Tá bom — PH se ajeita e coloca a meia, o ajudo a calçar os tênis


novamente.

No geral ele é um menino muito obediente. É cheio de energia e gosta


de muita atenção, mas a mãe o ensinou bem, ele respeita quando pedimos as

coisas.

— Guillermo?

— Oi.

— Me pergunta as cores.

— Hummm, quais cores?

— Não sei, mosta e pegunta.

Esse menino e sua mania de engolir os erres...

— Que cor é essa? — Aponto para o calendário grande na parede.

— Branco — Phellippo se diverte e me contagia.

— E que cor é essa? — Mostro o monitor.

— Preto.

— Ah, está muito fácil então... que cor é essa?

— Azul!

— É um menino muito esperto. E essa cor?

— Rosa.

— Salmão. — Coloco a língua para fora.

— Samão... Samão não é cor. — Ele fecha o cenho.


— É o que então?

— Samão é assim. — Ele estende a mão aberta.

— Você é uma figurinha, garoto... — Não contenho o riso e o coloco


no chão.

— Doutor Lamarphe, um de seus alunos quer vê-lo — a secretária

avisa.

— Manda entrar.

— Quem falou? — Phellippo procura por minha mesa de onde veio a


voz. E espia por cima do móvel quando vê a porta se abrir.

— Boa tarde, professor.

— Boa tarde, doutor Bittencourt. — Aceno com a cabeça. — A que


devo a ilustre visita?

— Só estamos à espera do novo coração da paciente do quarto 608

chegar. E o paciente do quarto 630 já acordou e está com a família.

— Eles têm nome? — pergunto, pego o relatório que ele me entrega. —


Eu não atendo quartos, não sou camareiro de hotel, atendo gente.

— Alice e João Pedro.

— Certo, vou visitar o João Pedro antes de sair, em alguns minutos, só


estou esperando a minha mulher sair da consulta. E volto em quatro horas,
estimo que até lá teremos esse coração?

— Sim senhor.

— Quem foi buscá-lo?

— A Juliana, senhor.

— Excelente — viro o rosto e vejo PH encolhido, encarando o homem.

— Oi, pequenino. Está perdido? — O doutor Bittencourt acena. —


Não sabia que tinha filhos, doutor.

Antes de falar que não tenho, vejo a expressão arredia de Phellippo.


Não me recordo de ter visto ele dessa maneira antes.

— Seja educado e cumprimente o doutor Bittencourt — peço.

— Oi — ele diz timidamente.

— Mais alto, PH.

— Oi, doutor — Phellippo segura em minha mão e puxa suavemente,

eu me curvo para ouvi-lo, pois ele me chama como se fosse contar um


segredo. — Ele vai dar jeção?

— Não, não. Você tem medo de agulhas?

— Não. — O pequeno reflete um pouco. — Se for no bumbum eu


cholo um pouco — Mostra um espacinho entre o dedo indicador e polegar.

— Certo... ninguém vai levar injeção hoje — digo para seu completo
alívio.

— Ele tem o seu nariz — Dênis me importuna. Odeio que tente criar

alguma proximidade, na vã tentativa de que irei ser menos rigoroso e dar-lhe


prioridade nas cirurgias. — E o seu queixo. É igualzinho.

Examino o rosto de Phellippo e discordo. Há sim alguma familiaridade,


mas acho que é só porque ele está me imitando demais. Os olhos azuis até

lembram o do meu avô, são grandes, expressivos e brilham feito duas safiras
na luz. Mas são comuns.

— Posso fazer mais alguma coisa por você, doutor Bittencourt?

— Não, era só isso — ele assente. — Quer que eu cuide do menino


enquanto o senhor trabalha?

— Ah, mudou de ideia e está pensando em ir para a pediatria? —


provoco. — Vá descansar, e nos encontramos na sala de cirurgia. Avise a
Juliana para que se prepare, quero os dois como assistentes.

— Incrível! Obrigado pela oportunidade, eu não vou decep...

— Pode sair, doutor Bittencourt. — Aceno suavemente e o assisto ir,


bem animado.

— Cuidar de eu... não preciso ninguém cuidar de eu. — Phellippo faz


sua melhor expressão de zangado.

— Ah, você não precisa ser cuidado?


— Não, eu já sou grande — o menino diz.

— Grande quanto?

— Assim. — Sua mão sobe para muito além de sua altura. — Viu?

— Estou vendo. — Retorno para o notebook.

— Continua perguntando a cor! — PH segura em minha mão e puxa

novamente.

— Pensei que você havia me dito que tinha engravidado há mais de três
meses... tempo exato para esse bebê nascer e você cumprir com seu contrato
— Patrícia pede para que minha mãe siga pelo corredor do sétimo andar e vai

brigando comigo, logo atrás.

— Eu sei, eu sei, mas...

— Sabe? Não, você não sabe, gatinha. Eu sou sua advogada. Então
vou usar um termo do mundo do direito com você, ok?

— Ok.
— Tá vendo o tamanho dessa rola? — Patrícia abre bem os braços. —
É isso aqui que você vai encarar judicialmente se não cumprir o contrato!

— Mas Patrícia... — tento explicar que Guilhermo e eu conversamos


sobre isso, mas ela nem me escuta.

— Você assinou papeis, gatinha. Ele pode usar isso contra você. Não
importa o quanto está gentil e fofo agora, na hora que a situação apertar e a

rola chegar a esse tamanho... — Ela me lembra visualmente, com as mãos. —


Aí você vai ver. Olha o tamanho dessa trosoba, Yasmin. Sabe quanta piroca
e vibrador vamos ter que vender de porta em porta para pagar um processo
desses?

Não gosto nem de imaginar. Mas continuarei apegada na ideia de que


Guilhermo e eu nos acertamos e que não teremos problemas com isso. E de
alguma forma eu espero que esse bebê nasça antes. Com saúde, sem
problemas por ser pré-maturo, é claro.

— O Guilhermo sabe disso? Não. Não conte a ele... vamos...

Conforme nos aproximamos da recepção da sala de Guilhermo, eu vejo


a porta se abrir. Imagino que ele vai sair e vir com o meu filho, mas a visão
que eu tenho faz o meu corpo todo ficar gelado e um arrepio vir lá do fim da
espinha até a minha nuca.

Patrícia até para de falar e ficamos as duas, embasbacadas, assistindo


Dênis Bittencourt, o pai de Phellippo, sair da sala de Guilhermo.

O sorriso em seu rosto se apaga quase de imediato. E seu semblante

fica carregado daquele seu ar de superioridade, de cara rico e sem problemas,


que resolve qualquer coisa que se meta em seu caminho, sem pensar duas
vezes.

Ele passa por nós e me encara, vejo em seu olhar muitas dúvidas sobre

o que estou fazendo aqui, mas ainda assim sustenta sua feição de que eu nem
devia ter pisado os pés em um lugar como esse.

Eu evito olhar para trás. Não quero vê-lo de novo. Dou graças ao bom
Deus por não ter sido abordada e obrigada a trocar algumas palavras – ou
desaforos – com ele.

— Amiga, eu vi o que eu vi? — O braço de Patrícia até ficou gelado.

— Sim. — Continuo andando reto.

— O próprio satanás de orelha, aquilo ali.


“As grandes paixões são raras como as obras-primas”.

— Honoré de Balzac.

Passei o resto do dia com um mal-estar que não me permitiu costurar,


estudar ou até ficar de pé. Fiquei deitada no quarto, olhando pela janela a
vista privilegiada de um bosque com um lago bem diante da casa.

— Era só o que me faltava — a situação piorou quando vi o número de

Dênis me ligando.

O desgraçado raramente me liga, no passado, as únicas vezes que fez


foi para avisar que iria atrasar a pensão do filho. E o que me deixa mais
angustiada: ele se encontrou com Phellippo. Tudo bem, ele é o pai, um dia

teriam de se ver. Mas esperava no mínimo que fosse pela vontade de um ou


do outro, não por um acaso como esses.

— Você está bem? — Guilhermo se aproxima do pé da cama. Repousa


a mão sobre minha perna e acaricia devagar.

— Estou bem, só estou indisposta...

— Foi algo que comeu? Ou fez muito esforço?

— Não... deve ser só o ar seco mesmo. — Tento disfarçar o meu

semblante que mistura raiva e apreensão, não sei se consigo.

— Preciso retornar ao hospital para uma cirurgia. Me ligue caso se


sinta pior. Beba muita água e coma uma fruta.

— Está bem, doutor... — Faço uma careta.

— Volto de madrugada se tudo correr bem. Não me espere acordada,


descanse.
Guilhermo põe a mão sobre meu pescoço, depois minha testa para
checar minha temperatura. Depois me puxa de um jeito carinhoso para que eu

me aproxime mais para a beirada da cama, onde me beija e acaricia meus


cabelos.

— Vou falar com a Patrícia para ficar de olho em você — ele diz antes
de sair.

— Eu também ganho beijo? — Phellippo estica o pescoço por detrás do


gibi que está lendo.

— É claro que sim. — Guilhermo segura nas laterais do rosto do


pequeno e dá um beijo em sua testa. — Cuide da sua mãe enquanto eu estiver
fora!

— Cuide — ele responde, sacudindo a cabeça.

— Você é o homem da casa em minha ausência.

— Xuo gencha — o outro repete.

Minutos após a saída de Guilhermo, chega Patrícia com os olhos


esbugalhados e olhando para os cantos.

— E aí, contou a ele que...? — Para no meio da frase ao ver os pés de


PH em cima da minha coxa, ele deve estar deitado de um jeito super
desconfortável, mas é assim mesmo, não para quieto nem quando está lendo.

Lendo que no caso é ver as imagens do gibi.


— Você acha que o Dênis o reconheceu? — Aceno sutilmente para
indicar meu filho.

— Não sei. Você disse que ele nunca quis ver nem foto... duvido
muito... embora ele seja a sua cara, né?

Estendo o celular na direção da minha amiga e se antes estava


assustada, agora está no mínimo de cabelo em pé ao ver quem não para de me

ligar.

— Vai atender?

— Eu? Por que faria isso? — Faço a desentendida. — Não tenho


assunto, não tenho explicações a dar, nada a dizer para essa pessoa.

— Hum — Patrícia se senta ao meu lado. — Sabíamos que isso poderia


acontecer, desde que vimos a foto dele numa aula do Guilhermo...

— Pois é. Mas já tinha esquecido, foram tantas questões nos últimos

meses...

— Falando em questões, dona Yasmin, que história é essa de mentir


para mim? Eu sou sua amiga e advogada. Preciso saber de toda a verdade
para me preparar...

Sem saber o que dizer, fico quieta.

Até gostaria de explicar melhor para Patrícia toda a situação, mas


existem coisas entre um casal que só eles são capazes de entender. E mesmo
que na visão da minha amiga e advogada eu deveria ter tudo por escrito e
assinado em duas vias, eu confiava na palavra de Guilhermo... em seus

sentimentos... agora, mais do que nunca, eu o conhecia.

E estávamos em uma boa sintonia.

— Vou precisar ler aquele maldito testamento... lá dizia que o bebê


tinha que nascer dentro dos 365 dias? Ou se já tivesse sido gestado, contava

também?

— Precisa nascer antes dos 365 dias.

— Droga, Yasmin... vou tentar ligar para a Heloísa para ver se amoleço
o coração...

— Nem tenta. Ela vai pular de alegria...

Patrícia faz um bico.

— Ao menos você e Guilhermo estão bem?

— Sim. Eu só estou triste porque, enfim, estou vivendo o meu sonho de


princesa da Disney. — Sou eu quem faz uma careta agora ao citar o apelido
que ela me deu. — Mas de um jeito agridoce. Sem paz, nem nada.

— Mas sejamos práticas. O que de ruim pode acontecer? É só o bundão


do Dênis...

— Bundão — Phellippo diz em voz alta, me recordando que ainda está


ali e ouvindo algumas coisas.

— Filho, não fale essas palavras.

— A tia Patíxia...

— Sua tia não é bom exemplo para nada — digo.

— Quê isso, eu sou um ótimo exemplo — ela diz animada. — Um

ótimo exemplo do que não se deve fazer.

Os dias foram passando e as ligações se tornaram rotina – não atendi


nenhuma.

Um lado meu ficou curioso para saber o que era tão urgente que ele

precisava tratar, o outro lado ficou temeroso se com isso Dênis acabaria
entrando em pormenores com Guilhermo e aí a coisa desandaria de vez.

Ao menos tive muita coisa em que me ocupar: fiz os exames do pré-


natal, passei por um período estressante de provas na faculdade e peguei mais
leve na fabricação dos vestidos.

O cansaço tomava conta de mim facilmente e eu tive que adiar um


pouco o meu sonho de preparar uma coleção de roupas.

O que eu fiz bastante foi costurar umas bem bonitas para mim e já

deixar preparadas outras conforme a gestação prosseguisse.

— Olha só quem veio acompanhá-la hoje! — A doutora Alissa pareceu


sem graça ao ver Guilhermo.

— Não podia perder o primeiro ultrassom — ele disse com


simplicidade, não dando abertura alguma para a médica ser simpática.

— Eu estou animada! Os exames mostram que sua saúde está em


perfeito estado. Agora precisamos ver sobre o bebê... seu primeiro ultrassom
deveria ter sido feito há um mês... — A médica não deixa de me alertar sobre
o descuido que tive no início da gestação e eu fico quieta.

É engraçado ver como a equipe médica reage com Guilhermo na hora


da ultrassonografia. Todos ficam apreensivos e parecem tomar os cuidados
redobrados diante do olhar de águia dele.

— Como estão sendo os seus dias? — Alissa pergunta enquanto


prepara tudo.

— Um pouco de estresse e atarefada com a faculdade, mas já diminui o


ritmo no trabalho — respondo.

— Ela não para quieta — Guilhermo rosna, seguro em sua mão ao me


deitar na cama hospitalar.
— É bom manter um ritmo saudável de atividades, é bom para o corpo,
para a mente e também para o bebê. Só não pode exagerar, senhora

Lamarphe.

A médica vai dizendo de um modo tão automático que quando percebe


que me chamou pelo sobrenome de Guilhermo, abre bem os olhos e encara
de um para o outro.

— Do Amor — tenta corrigir. — Como prefere que eu a chame?

— Por Yasmin está ótimo. — Seguro firme na mão de Guilhermo.

Me sinto estranha ao ser chamada pelo sobrenome dele. Gosto muito do


meu, e o dele é muito bonito também. Mas o momento me causa uma
sensação desconfortavelmente boa, principalmente porque o tenho aqui ao
meu lado. Na primeira gestação éramos apenas o meu pai e eu – a minha
mãe, na época, não queria nem olhar para a minha cara.

— É bom tomar ômega 3, é uma gordura boa para ajudar a...

— Eu já disse isso a ela — Guilhermo a interpela.

— Eu tenho um médico em casa. — Faço uma cara que pede socorro


para a Alissa. — Mas eu disse que te consultaria sobre isso, doutora.

— Então tome sim, três vezes ao dia, um pouco antes das principais
refeições. E fico feliz que esteja sendo bem cuidada em casa. — Alissa
começa o procedimento após respirar bem fundo, parece que até ela está
tensa, com medo de fazer feio na frente de Guilhermo.

Antes de olhar para o monitor, ouço um batimento forte que me deixa

toda arrepiada. Guilhermo, que está atento, já abre um sorriso e vejo seus
olhos brilhando.

— Está nervoso, papai?

— Um pouco, não vou mentir — ele diz, seus dedos massageiam o


dorso da minha mão. — Sabia que o coração é o primeiro órgão que se forma
no bebê?

— Não... — Comprimo os lábios e olho para a tela.

Consigo ver perfeitamente uma silhueta minúscula, quase como um


bonequinho frágil. E o som do batimento começa a aumentar cada vez mais.

— Daqui há oito ou dez semanas já conseguiremos ver o sexo do bebê


— Alissa diz e faz uma pausa que me deixa aflita.

— O que foi? Há algo de errado?

Eu sei que nesse período já é possível ver se o bebê tem alguma má


formação ou problema...

— São dois corações — a médica avalia. — Parabéns, vocês são pais


de gêmeos!

Fico paralisada, sem saber como reagir. Só penso que passarei em


dobro todas as coisas que passei na gestação de PH. Mas ao mesmo tempo

sou acometida por uma sensação de paz e alegria ao saber que está tudo bem

com os bebês.

E como toda boa notícia dura pouco, Alissa avaliou uma possível data
de nascimento, analisando o desenvolvimento dos fetos e os exames: de dez a
quinze dias após o prazo que o testamento atribuiu para o nascimento do

herdeiro – no caso, os herdeiros.

Por mais que eu não quisesse estragar o momento e ficar de cara


amarrada, não vou mentir que o meu pensamento foi para Dênis quando
saímos da obstetra, com medo de me deparar com ele. Não sei por que, só sei
que algo em mim tinha criado mais aversão do que de costume.

Mas para felicidade geral da nação, o idiota não deu as caras.

— Como você se sente sobre o que ouviu? — pergunto a Guilhermo


quando já estamos em seu carro.

— Sobre ser pai de gêmeos? Fantástico! — Ele dá a partida e começa a


dirigir bem concentrado.

— Não só sobre isso... sobre a possível data do nascimento...

— O que tem?

— Não acha que é tarde demais? Em comparação ao nosso contrato e o


seu testamento.
A resposta dele é um sacudir de ombros que me deixa ainda mais
inquieta.

— Não vou pensar nisso agora... na verdade, não me importa muito —


ele assegura. — E você não devia se preocupar com mais isso, já está se
estressando com coisas demais.

— É que eu fico sentindo que falhei, sabe?

— Falhou em quê, Yasmin?

— Em cumprir prazos — meus lábios se curvam um pouco para baixo.

— Não vou mentir. Uma pequena parte de mim está preocupada sobre
o testamento. Mas eu me sinto confortável em saber que você e os bebês
estão bem — ele sorri para mim, ao dizer isso. — O Alfredo queria me
ensinar uma última lição e eu estou aprendendo. Se não vai me dar o prêmio
no final... — suspira. — Ao menos vou ter ganhado três outros.

— Três?

— Você e os nossos filhos.

Isso foi como o mar agitado quando encara o fim de uma tempestade e
ventania. De repente as ondas voltam a correr em seu próprio ritmo e tudo
parece mais calmo na superfície, mesmo que sempre agitado no fundo.

Guilhermo tem razão. Precisamos aproveitar esse momento.


Todo o meu mundo bagunçado e caótico, cheio de sentimentos

conflitantes e medos bobos fazia silêncio quando eu dormia ao lado de


Guilhermo.

E ficava cada vez mais gostoso conforme os dias passavam e após dias
cheios, conturbados e que testavam a minha sanidade, simplesmente tomar
um banho quente e relaxante, depois me deitar na cama e assistir algo na TV,
enquanto ele lia concentrado.

Éramos tão diferentes e isso não nos impediu de aproveitar a


companhia um do outro. Na verdade, eu ficava feliz todas as vezes que

Guilhermo me apresentava um pouco do seu mundo... uma barreira entre nós


foi quebrada quando pude levá-lo na fisioterapia e eu não só o acompanhava
nas aulas de natação, também me inscrevi para melhorar minha respiração e
mobilidade.

E o mais mágico de tudo era sentir que ele não estava excluindo
Phellippo da experiência.

Aliás, ele insistia para que o pequeno fizesse parte e se sentisse incluso
em diversos momentos. Fiquei feliz em ver que se tornaram bons amigos,
para Guilhermo parecia um treino de como ser papai e para o meu filho, eu

sentia que era como um complemento de amor e carinho

No início pensei até que Guilhermo poderia preencher um espaço que


faltava em PH..., mas a verdade é que não faltava nada.

Então sobrava, excedia, transbordava.

Enfim tudo parecia entrar nos eixos... e eu estava vivendo o meu sonho
de princesa.
“Nada inspira mais coragem ao medroso do que o medo alheio”.

— Umberto Eco.

Guilhermo ficou muito animado quando soube que Maria Bethânia ia


fazer um show no Theatro Municipal de São Paulo. Perguntou se eu queria ir
e eu achei que seria uma experiência interessante, afinal de contas, mesmo
morando boa parte da minha vida nessa cidade, nunca fui assistir algo no

Theatro, só o conheci por visita guiada da escola.

E assim, num dia de sábado muito agradável, Guilhermo, PH e eu


fomos ao Theatro.

Seria algo completamente inusitado, eu também não conhecia a

cantora, fiquei curiosa em saber como eram as músicas dela. Com certeza não
era algo estilo Anitta, parecia algo mais clássico como Elis Regina – que
minha mãe simplesmente era apaixonada.

Para a ocasião, Guilhermo comprou uma roupa social encantadora para


o meu filho e um vestido branco, além de um xale que brilhava mais que
diamantes, para mim. Tive um surto de fofura ao ver meu neném parecendo
um homenzinho de terno e gravata, extremamente charmoso. A gravidez já
estava mexendo bastante com os meus hormônios, mas dessa vez eu exagerei

no tanto que babei em meu pequeno.

Guilhermo também ficou extremamente elegante, na verdade ele já era


assim comumente, mas parecia que a roupa dava um ar todo especial.

O Theatro era exatamente como eu me lembrava: uma arquitetura


clássica paulista, um show de luzes ao lado de fora, belos tapetes vermelhos
estendidos dentro.
Não me contive e precisei parar alguém para que tirasse muitas fotos do
Phellippo com Guilhermo, eu no meio deles dois e só do meu filho para

guardar de recordação.

A apresentação de Maria Bethânia mal estava para começar e todos já


estavam ocupando seus lugares, corri para o banheiro. Cheguei naquela fase
da gravidez que a vontade de fazer xixi vem inesperada e em tom de

urgência, quase alarmante.

Quando voltei, meus dois homens estavam conversando:

— Aquele afresco ali — Guilhermo apontava. — Veio da Itália. Aquele


também.

— A mulher lutadora. — Foi tudo o que chamou a atenção de PH.

— Vamos? — chamo a atenção dos dois.

— Como combinamos — Guilhermo diz baixinho.

— Mamãe você está linda!

— Ah, obrigada, meu filho! Você também está muito bonito!

— Bella donna é como diz Itália.

— Em italiano — o outro corrige.

— É. diz Itália taliano — Phellippo diz confuso e coloca o dedo na


boca.
— Muito bem — Guilhermo nos mostra a entrada.

A visão que tenho é impactante. Não por ver todas as poltronas lotadas,

mas um lugar majestoso, bem mais gracioso que me lembrava. Os balcões


acima de nós, pelo menos o primeiro, ornado em um dourado vívido, cheio
de figuras. O teto também, brilhante, expansivo e num formato mais
arredondado.

Dou uma volta inteira ao meu redor para vislumbrar tudo.

— Tem esse formato por causa do som. — Guilhermo mostra o meu


assento. — Foi inspirado nas casas de ópera da Europa, principalmente da
Itália, numa época em que não haviam microfones. Então a voz precisaria ir e
voltar na acústica.

— Você sempre entende de tudo? — Sento e puxo PH para o meu colo.


Pelo visto ele vai ficar inquieto e vai ter que se sentar no colo do Guilhermo.

— Eu entendo da minha terra. — Ele olha ao redor com um sorriso

marcado no rosto. — Somos assim, não é? Por onde vamos, tentamos


encontrar familiaridade, para nos sentirmos em casa. Alfredo me trazia muito
aqui, dizia que se sentia em casa.

— E você se sente?

— Sim. — Balança a cabeça. — Tem uma magia nesse local... mesmo


vazio e em completo silêncio é cheio de vida. Mas quando tem espetáculo ou
um show... aí sim sou arrebatado de vez.

— E essa Maria Bethânia, como a conheceu? — Não sei se devo dizer

agora que não conheço nenhuma música da mulher.

— Gosto da cultura brasileira. Já viajei muito esse país, estive em


quase todos os lugares...

— Curtindo?

— Conhecendo a realidade médica do país. Alfredo era um ferrenho


defensor do SUS, tentou implantá-lo no hospital, mas só conseguiu na escola
hospitalar que ele dirigia. Ele me levou consigo e conhecemos as dificuldades
de alguns lugares... trabalhar no Rota da Vida é um sonho..., mas tem cidades
pequenas que nem médicos tem.

— Nossa...

Me distraio por um momento pensando que ele deu um tiro certeiro

com esse xale. Além de belíssimo, está esquentando meus braços, pois está
fazendo um pouco de frio essa noite.

— A primeira vez que vi a Maria Bethânia cantar, foi no Rio de


Janeiro. E eu me senti... — ele suspira.

— Na Itália? — rio.

— Não. — Ele segura minha mão. — No Brasil inteiro... um


pouquinho em Recife... No carnaval da Bahia... Entranhado nas florestas
amazônicas... numa canoa no Pará... atravessando um pantanal mato-
grossense... vendo a neve quase cair em Porto Alegre...

— Nossa. Você já esteve em todos esses lugares?

— Estive sim. Eu amo minha profissão e gosto das dificuldades que ela
propõe. Esse é um país muito grande, de cultura muito diversa, e ter a chance
de viver tudo isso em um único momento é... mágico.

— Guillermo — Phellippo sai do meu colo para ir sentar no dele. —


Ela canta borboletinha tá na cozinha?

A risada prolongada de Guilhermo deixa o pequeno animado pelo que


está por vir. E não tarda até as luzes começarem a se apagar lentamente, o
silêncio vai surgindo, e a banda começa a tocar.

Uma mulher de cabelos selvagens feito as nuvens que dão formato ao


céu e em roupas largas entra no palco. Está descalça, algumas correntes
douradas no pulso, traz consigo um microfone de fio. Ao chegar ao centro do

palco, solta sua voz de uma forma que eu me seguro na cadeira e me encolho,
não sei se assustada ou admirada. Só sei que parece que vou sair do próprio
corpo de uma só vez.

Vida, ó bela, ó terna ó santa, vida


É breve, é grande, é tanta vida
Ai, de quem não te canta, ó vida

Diante da vida delirante

Ai, de quem, vacilante


Repousa e não ousa viver
Deve passar toda existência
Entre o medo e a ansiedade

Não quero ter calmaria


Eu quero ser tempestade
Eu quero ser ventania
Eu quero andar pela cidade
Me embriagando de poesia
Bebendo a claridade
Da luz do dia

Quando recobro as forças e retorno para meu corpo após aplausos,


gritos e tanta emoção, olho para os dois ao meu lado, na meia luz, e vejo
Phellippo quietinho, olhando para o palco, os olhos prestando tanta atenção
como nunca vi antes.

Estou tão arrepiada que me remexo na poltrona, não sei se com


vergonha de ter levado Guilhermo para uma calourada universitária que
estava tocando Anitta e Marília Mendonça ou por vir despreparada sem

imaginar o que me esperava.

E foi como de repente olhar para o mar e ver ele crescer para cima de
mim e ser engolida em um milésimo de segundo, sem chance para encher os
pulmões.

Não viajei o Brasil todo. Não conheço tantos lugares assim... só São

Paulo e o meu velho Espírito Santo. Mas se fosse para comparar com algo,
seria com a chegada de Guilhermo em minha vida.

Me tomou de uma só vez, sem pedir licença. Me tirou de mim e me


devolveu outra, ainda a mesma.

Diante da vida que é sublime


Ai, de quem se reprime
E se ausenta e nem tenta viver

Deve ficar olhando o mundo


E lamentando sozinho
Não quero ter letargia
Eu quero ser rodamoinho
Eu quero ser travessia
Eu quero abrir o meu caminho
Ser minha própria estrela-guia
Virar um passarinho
Cantando a vida assim
Cantando além de mim

E além de além do fim[23]

Além de suas próprias músicas, a mulher interpretou belamente outras


canções que são clássicas da cultura brasileira, que facilmente ouvimos na
rádio. E a cada nova melodia era um novo sentimento que me fazia sair do
lugar, permanecendo sentada.

E tanta emoção me deixou inquieta e com vontade de voltar ao


banheiro.

— Minha bexiga não vai me dar paz — reclamo e me levanto.

— Quer que eu a acompanhe?

— Não, querido, aproveite — seguro em seu ombro e faço um cafuné


rápido em PH.

Mesmo fora do salão musical, consigo ouvir a voz potente da Maria


Bethânia. Agora está declamando um poema, não faço ideia de quem seja o
poeta, mas é muito bonito e parece casar perfeitamente com a música
anterior.
Chego à fila do banheiro e me deparo com aquele dilema gostoso: já
estou meio barrigudinha devido à gravidez, mas não o suficiente para que as

pessoas me deixem passar na frente.

Não conseguindo tocar a piedade das mulheres na minha frente, tiro o


celular do bolso e começo a mexer em coisas aleatórias.

— Vem comigo.

Um frio passa pela minha espinha e sou arrastada para longe do


banheiro.

Dênis me segura de um jeito tão agressivo e me leva para tão longe do


local enquanto tento me desvencilhar, que chama a atenção de um segurança
que vem atrás de nós.

— Está tudo bem, sou pai do filho dela — ele diz em tom de autoridade
e o homem assente.

Fico tão paralisada pela situação que esqueço de gritar socorro.

— Não está me atendendo por quê?

— O que diabos você está fazendo aqui? — é tudo o que consigo


perguntar. — Está me perseguindo?

— Quem você acha que cuida da agenda do doutor Lamarphe? Eu.

Arqueio a sobrancelha e tiro as mãos dele do meu braço.


— O que você quer, Dênis?

— Fui à sua casa e você não estava lá.

Sacudo os ombros.

— O que houve? Onde está morando? Está tentando fugir de mim?

— Desde quando te devo satisfações, seu imbecil?

— Me deve satisfações. Preciso saber para onde está levando meu


filho.

— Seu filho que você nunca nem quis conhecer? — Preciso rir.

— É, mas é o meu nome que consta na certidão de nascimento. E eu


pago a pensão. Então se você está me impedindo de vê-lo, vamos ter um
problema judicial.

Inacreditável ouvir isso de um cara que nunca quis uma foto do filho,
não deve nem imaginar como ele é, o viu na sala de Guilhermo por acidente e

não deve ter nem reconhecido! Vontade de dar uns socos nele.

— Falando em filho... o que é isso?

— O que é isso o quê? No curso de medicina não ensinam a reconhecer


uma mulher grávida? — provoco.

— Ah, então é isso. Já está dando o golpe da barriga de novo...

Agora sim o tapa veio. Devia ser um murro, mas foi um tapa bem dado
de fazer o rosto virar e ficar naquela posição por alguns segundos e a mão

dele segurando em cima da vermelhidão.

— Olha aqui, seu moleque, você não tem direito — aponto o dedo
indicador.

E ele segura em cima do meu dedo e o torce.

— Tenho direito sim, quando eu banco sua vida com aquela pensão.
Ainda mais agora que você está dormindo com o meu chefe. O que é isso?
Algum tipo de vingança?

— Banca a minha vida? — preciso rir. — Cai na real, Dênis, eu ganho


o dobro do que você me manda vendendo piroca. E você não faz mais do que
sua obrigação, custeando algumas coisas do seu filho. Como se seu dinheiro
fosse muita coisa...

— O negócio é o seguinte, Yasmin — ele ignora tudo o que eu disse.


— Eu lutei muito para chegar até aqui e não é você quem vai estragar a

minha vida. Cai fora, some da vida do meu chefe e não volta a aparecer
naquele hospital. Senão...

— Senão o quê, Dênis?

— Senão você nem queira saber! — Ele continua vermelho, não sei se
do tapa ou de tanta fúria. — Some! Vaza! Vai dar o golpe em outro cara. Eu
preciso concluir essa residência e você não vai estragar tudo novamente...
— Vê se cresce, moleque. Veste as calças e vira homem!

— Estou falando sério, Yasmin. Não faça isso tudo se tornar um

problema para você.

— Dênis, eu estou grávida e preciso ir ao banheiro. Tenho coisas mais


importantes a fazer do que dar importância aos seus chiliques. Então se me dá
licença...

— Não dou — ele me pressiona contra a parede.

Lá dentro, Maria Bethânia canta uma música de Roberto Carlos:

Acabei com tudo


Escapei com vida
Tive as roupas e os sonhos
Rasgados na minha saída

Mas saí ferido


Sufocando meu gemido
Fui o alvo perfeito
Muitas vezes no peito atingido

— Termina essa merda, volta pra tua casa e não se mete em meu
caminho. Senão eu tomo o meu filho de você.
— Você perdeu o juízo, Dênis?

Como diria Patrícia, queria perguntar: você fez a chuca com cachaça e

depois fez caipirinha, seu maluco?

— Se quer pagar para ver, se prepare então.

— Dênis — preciso sorrir, mas de nervoso. — Você nunca nem se

importou em conhecer o menino, dizia que ele iria atrasar sua vida. E agora
quer tirá-lo de mim?

— Você não vai destruir meus planos de novo — ele diz num tom
amargo. — Está avisada.

E sai, quase chutando o tapete do chão.

Eu sei que flores existiram


Mas que não resistiram

A vendavais constantes

Eu sei que as cicatrizes falam


Mas as palavras calam
O que eu não me esqueci

Não vou mudar


Esse caso não tem solução
Sou fera ferida
No corpo, na alma e no coração[24].
“A gargalhada é o sol que varre o inverno do rosto humano”.

— Victor Hugo.

Fiquei pelo menos uns cinco ou sete minutos sentada no vaso, olhando
para a porta. Senti um mal-estar tão insuportável que temi o pior: acontecer
algo aos bebês. Esperei pelo sangue, alguma dor mais aguda, mas não, era só
um solavanco no peito, um aperto incômodo no coração e falta de ar.

Provavelmente ansiedade.

Quando tornei ao meu estado normal, ou pelo menos um mais


tranquilo, saí do banheiro em direção à minha cadeira ao lado da de
Guilhermo, de muito fácil acesso.

PH estava muito entretido com a música, olhando o palco com


profunda atenção, já Guilhermo me acompanhou com o olhar enquanto eu
passava e me sentava.

— Tudo bem com você?

— Sim... eu só demorei porque a fila estava muito longa — tento me


justificar para não passar suspeitas.

— Não é isso. É que você está com uma expressão cansada...

— É, as crianças estão se remexendo aqui...

Guilhermo repousa a palma da mão em cima da minha barriga e


acaricia suavemente, enquanto volta a assistir Maria Bethânia interpretando
uma música de Alceu Valença.

Repentinamente vira seu rosto em minha direção, ao sentir minha


barriga vibrar. Em seguida eu seguro firme no apoio de braço da cadeira, a
sensação anterior era como gases, agora eu senti um chute de verdade. E que
veio seguido de outro.

— Au — seguro por cima da mão dele.

O sorriso dele parece muito com o da primeira vez que ouvimos os


corações. Ele afaga suavemente a minha barriga, dando-me um pouco de
alívio enquanto um outro chute não vem e depois o próximo.

Começo a me contorcer tanto na cadeira, que ele simplesmente diz:

— Vamos lá fora um pouco.

— Tem certeza de que não quer ficar e terminar de ver o show?

— Acho que vou fazer bem em seguir os conselhos da cantora: viver


cada momento intensamente e senti-lo como se nunca mais fosse se repetir.

Phellippo é quem não entende nada. Normalmente é o primeiro a ficar


agitado, correr pelo lugar e se divertir. Creio que nunca ficou tanto tempo
parado, assistindo algo.

— Quero te mostrar um lugar — Guilhermo diz e sai na frente, até


encontrar um bombeiro.

Não ouço bem o que conversam, só sei que a feição do homem fica um
pouco apreensiva.

Em seguida entramos na parte interna do local, que não é destinada ao


público e passamos pelos bastidores do funcionamento do Theatro. Phellippo
quer mexer em tudo que vê e sai acenando para as pessoas que aparecem,

meio que distraídas, em seu momento de descanso.

No fim de nossa pequena jornada entre armários, mesas e vestiários,


chegamos à entrada de um lugar no subsolo do Theatro.

— O que é isso? — pergunto.

— Um bar — Guilhermo agradece ao bombeiro. — E como pode ver,


nenhuma acessibilidade para um cadeirante. Mas é um lugar que vale à pena
conhecer.

— Nossa, não precisava de todo esse trabalho, Gui.

— Não foi trabalho algum — ele se despede do homem, ambos


parecem um tanto constrangidos, mas Guilhermo tenta minimizar tudo. —
Chega uma hora que você quase se acostuma com o descaso. A acessibilidade
é garantida por lei, mas ninguém parece levar a sério... os espaços raramente
estão preparados... é como se cadeirantes ou outras pessoas com necessidades

especiais não tivessem vida ou o direito de poder vivenciar experiências


como essa.

— E você fez tudo isso por mim? — Devo admitir que agora sou eu
quem está constrangida.

— Vai valer à pena, eu juro.

O lugar não está cheio, acho que pelo show que ocorre acima de nós.
Ainda há algum resquício do som potente da voz de Bethânia, e as poucas
pessoas que ocupam o espaço de meia luz, mas com mesas iluminadas,

balançam a cabeça para lá e para cá.

— Para você — Guilhermo pega Phellippo no colo. — Vá se divertir


numa piscina de bolinhas!

É tão inusitado que mal posso crer que ainda estamos no Theatro

Municipal. A arquitetura aqui embaixo é clássica, como lá em cima, só que


mais rústica, crua, igualmente europeia – um bar ou taverna, neste caso.

PH nos dá pouca atenção, se joga na piscina de bolinhas e sai chutando


e jogando todas enquanto percorre o lugar. Guilhermo me leva para a mesa
mais próxima, para que fiquemos de olho no pequeno e eu me sento na
cadeira alta.

— Eu já vim aqui antes, no Theatro, mas não sabia desse espaço aqui
embaixo...

— Maneiro, não é? — Ele olha ao redor. — Ayslan me trouxe aqui, na


primeira vez. Devo admitir que fiquei bem constrangido por não ter um
elevador ou espaço que trouxesse direto..., mas sinto que valeu à pena. E
normalmente tem som ao vivo, é muito bom.

Concordo ao balançar a cabeça e olho bem ao redor, em como o espaço


parece rústico e ao mesmo tempo moderno. É uma junção curiosa que essas
paredes e teto formam com a mesa, o bar e a piscina de bolinhas.

— Ainda estão chutando?

— Pararam, por enquanto. — Repouso as duas mãos na barriga.

— Quer ir para casa? Você parece bem cansada.

— Não... estou bem, sério. — Tento omitir o fato de que estava

tremendo poucos segundos antes de retornar ao salão de música. — E gostei


muito de vir ao show da Bethânia, ela tem uma voz potente, né?

— Como uma cantora de ópera... o som dela preenche todo o espaço —


Guilhermo não esconde a admiração. — Assim como você em minha vida.

É tão inesperado ouvir aquilo que fico atônita, de olhos arregalados.

— Na verdade, acho que é você que me faz sentir assim, Guilhermo...


você pode não saber, mas esteve em momentos tão cruciais da minha vida,
que parece ter caído do céu.

— Acho que me machuquei um pouco — ele pisca e sorri.

— Às vezes não sei o que fiz para merecer tanto carinho, tanto amor...
é comum que todos queiram as rosas, sem lembrar que elas vêm com
espinhos. E você me faz sentir tão confortável que eu me sinto bem, com os
espinhos que tenho em mim. Os que são meus. E os que colocaram em mim.

— Que bonito. — Sinto sua mão por cima da minha. — Você mudou a
minha vida, é o que posso dizer. A vida tem sido sombria desde o acidente...

ainda estou aprendendo a viver... e a cada dia me deparo com uma nova

dificuldade. Agora eu entendo o Alfredo.

Quando ele faz a menor menção ao testamento, eu me arrepio.

— Eu precisava mesmo dar uma chance ao amor. E tive sorte por ser
você. Não tenho ideia de como seria estar preso com alguém que não posso

ser sincero, admirar e me sentir livre. E, claro, ter forças para passar por tudo
isso e pedir a um bombeiro que me leve ao subsolo de um bar. — Balança os
ombros.

Antes que eu responda, um estrondoso aplauso e o som da voz da


mulher parece que tomam o ambiente:

Negue o seu amor e o seu carinho

Acho que nunca teria ido assistir um show de Maria Bethânia por
escolha própria, antes. E tampouco imaginaria estar no subsolo de um teatro,
me sentindo numa taverna na Inglaterra do século XIX. Mas essa é
certamente a graça de estar com alguém que é diferente de você e ainda assim
te completa.

— Quer dançar?
— Dançar? — Asseio os cabelos.

— Não faça essa cara, eu sei dançar — Ele me lança um olhar

desafiador.

— Aqui? Na frente de todo mundo?

— Todo mundo quem? — Guilhermo abre um sorriso de canto. — Só

estamos você... eu... e Bethânia, bem ao fundo.

Vejo ele se afastar um pouco e eu me levanto, ainda sem saber o que


devo fazer. Guilhermo segura em minha mão e me faz girar devagar, em meu
próprio eixo, a outra mão segura firmemente na roda da cadeira e a
movimenta com maestria, seguindo o ritmo da música ao fazê-la gingar.

Diga que você já me esqueceu


Pise, machucando com jeitinho

Este coração que ainda é seu

Sua mão vem para a minha cintura e segura tão firmemente que
acompanho seus passos, olhando fixamente para as rodas da cadeira.

— Ei, eu estou aqui — ele estica o pescoço e me encara com gentileza.

Fito seus olhos e abro um sorriso envergonhado, ainda tentando


entender como ele consegue se mexer tão bem. Balança os ombros

suavemente e vai me guiando com uma mão só, enquanto a cadeira vai

girando.

— A beleza da vida é que tem coisas que antes você achava


impossíveis... — sua voz rouca diz baixinho. — Até precisar fazê-las e vivê-
las.

— Tipo dançar em uma cadeira de rodas? — Agora meus olhos não


conseguem desviar dos dele.

— Tipo amar você — ele diz sério.

Droga, tarde demais. A maior vontade agora é esconder meu rosto que
está todo vermelho e meus olhos arregalados e brilhantes.

Diga que o meu pranto é covardia

Mas não esqueça que você foi meu um dia

Segurando firme em minha mão e largando a roda da cadeira para me


puxar pela cintura, quase dou um grito quando sinto meu corpo ir em direção
ao de Guilhermo. Sento em seu colo, os pés a um dedo do chão.

As minhas duas mãos encontram o apoio de seu pescoço e me deito em


seu peito, ouvindo o bater forte do coração. O cheiro refrescante que vem do
seu pescoço, do seu terno preto, do seu olhar que me faz sentir uma joia
preciosa.

Diga que já não me quer


Negue que me pertenceu

Só ele mesmo para me fazer esquecer as atrocidades que ouvi há alguns


minutos e me sentir confortável novamente.

Parece que o estresse escorreu pelos dedos, uma sensação de alívio se


apossou de mim e até os bebês inquietos pareceram me dar um minuto inteiro
de descanso, enquanto eu e o pai delas curtíamos o som, em silêncio, no leve
balançar da cadeira de rodas.

Que eu mostro a boca molhada

E ainda marcada pelo beijo seu[25]

— Por que seus olhos tentam fugir de mim? — ele murmura.

— Estou com vergonha...

— Vergonha? — Ele se mostra surpreso.


— Qual é, Gui, estou inchada, parecendo um balão de sentimentos
conflitantes e te deixando maluco... não devo parecer em nada a pessoa por

quem você se apaixonou...

— Não parece mesmo. — Ele encosta o nariz no meu. — Está muito


melhor.

E me cala com seus lábios, tocando nos meus com leveza, puxando o

meu fôlego e tomando a minha língua bem devagar, como uma dança lenta à
meia luz.

É estranho ter essa sensação de inquietude, de me sentir bem e ao


mesmo tempo tensa com a sensação de perdê-lo, ou perder o meu filho por
causa de Dênis...

— Você está perfeita, carregando a nossa família. — Seu rosto fica


colado no meu, enquanto ainda balançamos, as mãos dele indo e vindo com a
cadeira.

Ficamos mais duas ou três músicas assim, dançando do nosso jeito.


Aproveitando o calor, a companhia e o silêncio um do outro.

Após brincar, comemos alguns petiscos e Phellippo queria comer todo


o pudim de uma só vez.

Voltamos para o Theatro fazendo todo o percurso que nos levou ali,
rindo um para o outro do constrangimento que até os funcionários
compartilharam conosco e tivemos a sorte de pegar o fim do show de Maria
Bethânia.

Viver

E não ter a vergonha

De ser feliz

Cantar e cantar e cantar

A beleza de ser

Um eterno aprendiz

Eu sei, eu sei

Que a vida devia ser

Bem melhor e será

Mas isso não impede

Que eu repita

É bonita, é bonita

E é bonita
A voz da mulher volta a ocupar todo o espaço e minha pele até treme
ao ouvi-la cantar. Phellippo já se agita, fica quase que em pé em cima de

Guilhermo, espiando o palco.

O lugar parece que vira um carnaval dentro do Theatro, algumas


pessoas até se levantam para dançar em seu lugar. O som do samba é tão
contagiante que até eu me levanto, pego meu filho no colo e ficamos os dois

remexendo em pé.

— Viveeeeeer — é a única parte que Phellipo consegue cantar,


enquanto Bethânia continua a sambar, descalça, balançando as mãos e se
despedindo do público.

Somos nós que fazemos a vida

Como der, ou puder, ou quiser

Sempre desejada

Por mais que esteja errada

Ninguém quer a morte

Só saúde e sorte
E a pergunta roda

E a cabeça agita

Eu fico com a pureza

Da resposta das crianças

É a vida, é bonita

E é bonita[26]

— Viveeeeer — cantamos os dois juntos, eu balançando o pequeno em


meu colo.

— E não ter a vergonha de ser feliz — continuo cantando.

— Ser feliz — PH diz, me encarando.

— Cantar e cantar e cantar, a beleza de ser um eterno aprendiz —


cantamos todos na plateia.

— Pendiz — PH sacode as mãos para cima e fica mexendo a cabeça.


— Viveeeeer e ser feliz...

— Eu sei que a vida devia ser bem melhor, e será. — Encosto meu
nariz no dele, meu filho só acompanha balançando a cabeça. — Mas isso não
impede que eu repita...

— É bonita, é bonita, é bonita — ele canta.


“A beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está
no crepúsculo, nesse meio tom, nessa incerteza.”

— Lygia Fagundes Telles.

NO PASSADO
— Tem uma mulher esperando o senhor em sua sala, doutor Lamarphe

— a secretária no hall da vice-presidência me avisa.

— O quê? E você simplesmente a deixou entrar? — Mostro minha


perplexidade diante da situação.

Finalizei uma supervisão dos residentes e fui buscar um café bom e


forte e sou pego por essa surpresa!

Passo pelo balcão da secretária e entro em minha sala, quase


derrubando a porta. Não importa quem seja, estou ocupado e tenho um dia
atarefado diante de mim.

Meus pensamentos se calam em um estalo. E eu fico de pé, redobro a


atenção da minha mão para que a xícara de café não caia.

— Elizabeth?

Não consigo acreditar quando vejo a mulher.

Está diante da janela, observando calmamente o mundo lá fora. Em um


vestido vermelho ostentoso e os cabelos amarrados em uma fita vermelha,
parece que seus olhos verdes deixam um rastro incandescente enquanto fitam
o chão até chegar em mim.

— Olá, Alfredo. Quanto tempo...


Da minha ida até a poltrona atrás da mesa e levar a xícara à boca, leva
uns bons minutos. Principalmente porque fiquei paralisado com a inesperada

visita.

Elizabeth Boccuti foi a única mulher que amei na vida. E que tive a má
sorte de outro homem conquistar seu coração.

Muitas décadas se passaram, várias mulheres percorreram a minha

vida, mas nenhuma me causou o que seus olhos eram capazes de me causar.
E mesmo velho, vivido e desacreditado no amor, meu coração ignorava
completamente a racionalidade.

Ao revê-la, faltava-me o ar. Faltavam-me as palavras. Sentia-me


quarenta, cinquenta anos atrás, quando a conheci e éramos bem jovens.

— Por favor, sente-se — peço.

Elizabeth segura no vestido, anda calmamente até se sentar na cadeira à


minha frente.

— A que devo a visita? Já faz tanto tempo...

Tento me recordar da última vez que a vi. Desde então a vida mudou
tanto... o mundo também mudou. Mas ela me faz sentir como se nada dentro
de mim tivesse mudado.

— Por onde esteve? — Fico inquieto diante da presença dela.

— Eu estive... esperando por esse momento. — Ela faz meu corpo se


arrepiar com essas palavras. — Pelo nosso reencontro...

— Também estou feliz em vê-la. — Abro um sorriso bobo, de um

velho que tenta usar a máscara de quando era mais jovem, de quando era
realmente ingênuo.

Coisa que o passar do tempo arranca cruelmente de cada pessoa.

— Alfredo, preciso que faça uma coisa por mim. — Ela sorri, sabendo
que pode ter de mim o que quiser com esse sorriso. — Preciso que isso
chegue às mãos da sua neta — ela me estende um papel velho.

Ao abri-lo, confiro que é a propriedade de uma terra muito extensa, rica


em árvores, minério e... petróleo.

Arregalo os olhos ao encará-la.

A estranheza não vem pela propriedade ter sido passada para o meu
nome, como se eu a tivesse comprado, mas o fato dela dizer a quem devo

deixar a propriedade.

— Minha neta? — pergunto com uma risada baixa. — Eu nunca tive


filhos, Elizabeth, quiçá netos.

Ela não me acompanha no bom humor. Continua a me fitar seriamente,


mas de forma doce. E eu me sinto meio envergonhado, mas resisto à tentação
de afastar os olhos de sua imagem.

— Você foi a única mulher que amei. — Cruzo as pernas e repouso as


mãos no joelho alto. — E eu jurei para mim mesmo e para você que não
valeria a pena ter filhos, ou me casar com alguém, se não fosse com você...

Dizer isso me faz lembrar das dores do meu eu mais jovem. Mas
também me faz ter orgulho de ter cumprido minhas palavras.

— Sou um homem italiano tradicional. Cumpro com o dever e com a


minha palavra. Um homem sem palavra não é um homem, é nada.

— Lembro da sua promessa. — Agora ela sorri, quase enrubescendo.

— Então que história é essa de neta? — Arqueio a sobrancelha e


devolvo o documento.

— Eu sempre gostei de três coisas em você, Alfredo... — Ela também


cruza as pernas e segura com as mãos no joelho, coberto por seu longo
vestido. — O quanto é leal ao que acredita, o quão resistente é diante das
adversidades... e o quanto é inocente, mesmo com a verdade diante de seus
olhos.

— O que isso quer dizer?

Elizabeth pisca os olhos e sorri. Me entrega o papel novamente.

— Enquanto planejava vir aqui essa manhã, um pensamento roubou


minha atenção. Você sabia que normalmente as mulheres já nascem com
todos os óvulos? Elas não os produzem durante a vida...

A conversa toma um rumo inesperado. E eu fico igualmente atento,


pois gosto de ouvi-la.

— Você é ou era geneticista, então acredito.

— Retornar a esse lugar sempre me traz lembranças do passado, da


pessoa que fui. E imediatamente lembrei que uma das primeiras coisas que
aprendemos na escola de medicina... ou biologia, é que coisas não têm
sentimentos ou intenções... o vírus não quer... a célula não deseja... o átomo

não age por interesse... mas nós, seres humanos, temos o hábito de
antropomorfizar as coisas, conforme as observamos.

— Porque vemos o mundo como somos e não como ele é. — Afasto os


óculos do rosto para limpá-los.

— Justo. O milagre da vida é uma coisa muito interessante...

— Aham.

— O espermatozoide percorre todo um caminho difícil para acertar o

alvo. Milhões deles vão, só um chega. O objetivo: atingir um óvulo que já


existia, antes mesmo da menina conseguir olhar para os olhos da própria mãe.
E se der sorte, o encontro dessas duas formas carregadas de material genético,
formam uma nova vida.

— Esplêndido. — Quase aplaudo. Coloco os óculos em seu devido


lugar, no entanto.

— E se uma pequena coisa mudasse?


— O que isso quer dizer?

— E se houvesse um desvio no caminho? E se os avós não se

conhecessem... ou os bisavós nunca tivessem dito “oi” um para o outro?

— A vida aconteceria... só que não para aquele indivíduo que deveria


nascer — observo.

Ela parece contente com a minha resposta. Não sei se me subestimou


ou se essa é sua feição doce e natural.

— Quando eu vim dos Estados Unidos em busca de conhecer a minha


mãe, me deparei com uma cigana.

— Eu sei, eu te levei lá — lembro. — Mas fiquei do lado de fora.

— O que ela disse mudou a minha vida.

— Disse que você ia ter três filhos e se casar com Rodrigo Leão? —
Rio.

— Não — ela faz uma pausa contemplativa, como se voltasse para


aquele momento. — Ela disse: quem você era antes de seus pais nascerem?

Que pergunta esquisita. Mas fico ansioso para ouvir o que ela
respondeu na ocasião, pois nunca comentou isso comigo no passado.

— Eu pensei... e pensei de novo... e imaginei, por um instante, que a


minha mãe carregou o meu óvulo dentro de si mesma antes mesmo de nascer.
E a mãe dela também. E todas as outras mães antes. Mas como não somos

feitos só de um material genético, precisamos acrescentar os genes do pai...

então o que eu era antes dos meus pais nascerem, Alfredo? O que eu era
antes deles se encontrarem?

— Uma possibilidade — arrisco.

— Eu era um encontro? Eu era uma pequena porcentagem de todos os

meus ancestrais? Eu era o material genético que as células do corpo


acreditavam que podia sobreviver ao futuro?

O jeito sagaz e maluco dela não mudaram. E isso sempre me deixou


calado e atraído, os olhos brilhando, vendo sua mente funcionar.

— Eu era o choro que a minha mãe derramou ao se despedir e nunca


mais ver o meu pai ou conhecer a própria filha? Eu era a força do meu avô
que resistiu às provações para conquistar a minha avó? Eu era os medos? As
incertezas? Era as noites mal dormidas? Eu era o gozo? Eu era o amor, antes

dos meus pais nascerem?

— Devo admitir que essa é uma bela amostra de quando a filosofia


encontra a medicina — aceno com o rosto.

— Aquela pergunta me mudou para sempre, Alfredo. E foi ali que


percebi que a vida não é sobre achar a resposta, mas melhorar a pergunta.

— Nisso eu concordo plenamente. É a busca científica.


— Muito bem — ela diz satisfeita e me encara no fundo dos olhos. —
Então inclua isso em seu testamento... para a sua neta...

Olho novamente o documento.

Por que ela quer deixar uma propriedade tão grande e tão valiosa para
alguém que não existe e que nunca vai existir?

— Isso é algum tipo de lavagem de dinheiro? — Rio. — Quer que eu


seja seu laranja? Elizabeth eu renunciei ao mundo perigoso e ilegal já há
muitos anos...

— Você está melhorando a pergunta, Alfredo? — Ela ergue a


sobrancelha.

Respiro fundo e examino o documento novamente, tentando afastar a


distração e a tensão de rever meu grande amor diante de mim.

— Não é possível ter neta se não tive filhos...

— Eu sempre gostei da sua inocência. — O dedo indicador coça o


queixo. — E o quanto você era cego para as mulheres que faziam tudo por
você, para chamar sua atenção. Capazes de quaisquer coisas inimagináveis
para ter uma noite com você...

— Eram bons tempos — reflito. Mas não levei a que eu queria para a
cama.

— Mulheres, inclusive que sabiam das suas fraquezas... sabiam seduzi-


lo pela conversa... fazê-lo beber além do normal...

Conforme ela vai dizendo, minha sobrancelha se ergue de modo

alarmante.

— Como vai o seu irmão gêmeo?

— Não fala comigo desde o nascimento de Guilhermo — digo

automaticamente.

E faço uma pausa gritante ao perceber que falei isso.

A encaro mais uma vez.

— O que você está insinuando?

— Está melhorando a pergunta agora? — Elizabeth sorri. — Sempre


gostei da Paola. E das falhas tentativas dela em me impressionar e ser minha
amiga. De tentar rivalizar e querer algo que nunca poderia ser dela.

— Está falando de mim? — Minha cabeça fica completamente

embaralhada. — Isso é impossível, Elizabeth. Eu nunca faria isso com o meu


irmão...

— Mas e ela?

A pergunta vem como um tapa em meu rosto.

Algo que nunca sequer passou em minha cabeça agora era tudo.

Que espécie de hipótese era essa? Impossível!


— Se a ciência não me permite antropomorfizar células, átomos e
óvulos... vou comparar então com um rio.

Estou tão chocado que não consigo ter reação.

— O amor é como um rio. Desde que nasce, ele corre em direção ao


mar. Não importa quantas barragens, represas e desvios sejam feitos. Ele vai
continuar correndo, porque ele nasceu para desbocar no mar. E nenhum outro

lugar poderá satisfazê-lo, até chegar lá...

— Acho que ainda está antropomorfizando. — Fecho o cenho.

— Acho que precisa fazer um teste de DNA.

— Elizabeth, não brinque com isso. A vida do meu sobrinho...

— Seu filho, Alfredo — ela diz, resoluta, como se ela mesma tivesse
feito o teste. — Seu filho.

— Está dizendo que... o meu irmão? Eu? O meu sobrinho? Não. Isso

não pode ser verdade...

— É sua escolha se dirá isso a ele ou não...

— Não... Isso é... — continuo em negação.

Guilhermo não pode ser meu filho.

De todas as coisas, essa é a que me deixa mais apreensivo. Eu


abandonei a Itália e vim para o Brasil em busca de uma nova vida, após
receber a herança do meu avô. Queria me desvincular da rede de apostas que

a minha família tinha e seu possível envolvimento sustentando a máfia e o

tráfico de pessoas.

Claro que isso respondia porque meu irmão rejeitou o filho. Não sei se
ele cortou laços comigo, porque eu cortei laços com a família quando deixei
todo o meu mundo para trás e vim aqui, recomeçar, sozinho.

—... Mas uma coisa é certa, Alfredo. Sempre acreditei que quando
curamos algo dentro de nós, curamos também os nossos ancestrais. E os
nossos descendentes. Já fomos um com eles no passado. E tornaremos a ser
um com eles no futuro. Por isso, não permita que Guilhermo cometa os
mesmos erros que você. Tampouco tome o mesmo caminho que você.

Fico com a boca entreaberta, sem saber o que dizer após ouvir tudo
isso. Só agora me dou conta que o café gelou, pois não o bebi em nenhum
instante.

— Eu sinto muito que tenha parado a sua vida à minha espera...

— Aí que você se engana, Elizabeth. Não parei a minha vida por sua
causa. Só não tive família, é diferente...

— Já que está consciente de seu erro, não permita que seu filho siga
pelo mesmo caminho. — Ela acena com a cabeça e se levanta. — E não tenha
medo de seus erros. Conserte-os. Você ainda tem algum tempo.
Eu me levanto imediatamente. Como assim ela vai embora? Mal
chegou? Mal conversamos!

— Você encontrará respostas sobre a morte da Paloma e seu bebê neste


lugar. — Ela aponta para o documento da propriedade. — Lá eu enterrei uma
caixa com um celular que contém todas as ligações e conversas que elas
tiveram. E que a Paloma teve comigo, antes de ser assassinada.

— O que você quer dizer com isso, Elizabeth?

— Quero dizer que você precisa ser rápido. Pegar as provas, produzir
uma grande armadilha e distrair a Paola até o tempo que for necessário. Ou
ela vai matar mais algumas pessoas, até chegar à sua herança e...

— Eu simplesmente não entendo... Parece que você sempre fala por


enigmas... — digo, absorto.

— Porque a vida é um enigma — ela diz exultante e sai caminhando


sem pressa até a porta. — A vida é o eterno brilho de criar o novo, o

diferente... nenhuma vida, nenhum DNA se repete... nenhuma história,


nenhuma pessoa é igual. Tudo é único. E um grande enigma — ela recita
serenamente e quando chega a saída, para.

Vou até ela, seguro em suas mãos.

— Não quero que vá — suspiro.

— Porque o seu rio acha que eu sou o mar — ela sorri docemente. — E
na esperança de que um dia seremos um, você vai sempre correr até mim.
Independentemente do tempo e dos obstáculos..., mas eu preciso ir. E você

precisa se apressar.

Fico paralisado quando sinto suas duas mãos em minha face. E seus
lábios tocam suavemente meu rosto, seu perfume parece o mesmo de muitos
anos atrás e seus olhos ainda carregam aquele jeito voraz de querer viver a

vida.

— Há uma última coisa que preciso te dizer.

— Mais enigmas? — Fico apreensivo.

— Só três coisas deixam rastros por onde passam: a mentira, o DNA e


o amor. Todos eles marcam a ferro, para sempre, algo e alguém. Foi muito
bom te ver, Alfredo. O meu carinho por você, mesmo depois de décadas, não
desapareceu. E, lembre-se: deixe essas terras para a sua neta.

— Vamos nos reencontrar? — É tudo o que preciso saber, antes de tirar

a dúvida de minha cabeça e ter a certeza em minhas mãos de que Guilhermo


é meu filho.

— Vamos mais do que nos reencontrar, Alfredo... — Elizabeth acena.


— No futuro, nós seremos um.
“Você nunca conhece realmente as pessoas. O ser humano é mesmo o
mais imprevisível dos animais”.

— Hilda Hist.

QUATRO ANOS ATRÁS.


Yasmin cantarola enquanto está no chuveiro, não quero incomodá-la,

mas estou atrasado para uma cirurgia. E por onde quer que eu procure o meu
celular, não o encontro. Ajeito a gravata e abro a porta do banheiro, que está
todo brumado devido a água quente.

— Yasmin, eu preciso ir agora, tem uma emergência no hospital. Você

vai ficar bem?

Consigo ver a silhueta de seu corpo nu por detrás do vidro temperado e


fumê. Ela para, começa a se mexer rapidamente, sua voz mostra apreensão.

— Eu já estou terminando...

— Não se preocupe, pode aproveitar. — Aceno e sorrio ao vê-la de


cabelos molhados, me espiando. — Quando sair, bata o portão.

— Ok...

Desço as escadas vigiando tudo lá embaixo, na vã tentativa de


encontrar meu celular. Já devo ter recebido várias chamadas do hospital e
isso me deixa ainda mais irritado.

Ao retornar ao quarto e conferir ao lado da cama, pego uma das


camisinhas que usei na noite anterior e noto que ela furou. Só tenho tempo de
pegar caneta e papel, descer o mais rápido que posso as longas escadas, e no
sofá em que está a mochila dela, sento, apoio um livro debaixo da folha e
escrevo um bilhete:

“Não consigo encontrar o meu celular. De toda sorte, espero que a noite
tenha sido boa para você, como foi para mim”

Sinto as maçãs do meu rosto esquentarem, quando escrevo isso. Me


sinto um bobo, adolescente, um tanto infantil pela forma como me sinto. Mas
sinto uma energia, uma alegria fluir, de forma que não consigo explicar.

“A camisinha estourou, por favor compre um anticoncepcional. E espero


por uma mensagem sua, para que possamos nos ver novamente. Quem sabe
um jantar? Me ligue quando chegar em casa, para que eu saiba que está
tudo bem”

Deixo o bilhete ao lado da mochila, com a caneta em cima, e saio


apressado.

ATUALMENTE
Meu sono sempre foi muito leve.

Quando me tornei médico, então, qualquer vestígio de som ou vibração

me acordava instantaneamente. Às vezes eu mal podia dormir, pois uma


questão de segundos podia custar a vida de alguém, então me condicionei a
qualquer simples movimento, abrir os olhos e ficar ágil para correr – ou
empurrar as rodas – pelos longos corredores do Rota da Vida.

— Yasmin? — pergunto, piscando os olhos, tentando lembrar sobre o


que era meu sonho.

— Desculpa te acordar... preciso ir ao banheiro... — ela diz baixinho,


calça as pantufas e corre nas pontas dos pés até a suíte.

Viro o rosto e dou de cara com os cabelos volumosos de PH, sua


mãozinha mexendo em minha direção. Tento fazer o mínimo de barulho,
embora já comprovei que ele tem um sono pesado.

— Minha barriga está doendo... estou me sentindo estranha... — ela diz

quando volta.

Seguro firme na cama e me sento, quando minhas costas encontram a


cabeceira. Tateio meu lado até alcançar o braço da minha cadeira de rodas.

— Algum tipo de contração?

— Não... uma sensação seca na garganta... meu estômago se


revirando... estou meio enjoada...
Olho o relógio e confiro que são 4 da manhã.

Yasmin deita do outro lado e passa o braço por cima do filho e encontra

minha mão.

— Quer que eu busque água?

— Não...

— Você anda muito estressada, está passando por uma semana de


provas?

— Vai começar na próxima semana.

Ah, então acho que já entendi tudo. Está sofrendo por ansiedade ou está
estressada com alguma matéria.

— Eles não deveriam te passar o conteúdo e tudo mais em casa? Veja


se consegue fazer isso com as provas.

— Vou ver sim — ela suspira.

Phellipo abraça o barrigão da mãe e continua a dormir, a cabeça


encostada no braço dela. Eu vou me deitando, até que Yasmin diz:

— Sabe o que estou com vontade?

— Do quê? — fecho os olhos.

— De comer mandioca cozida na pressão junto com carne e depois


fritar. Huuummm...
Esse não foi o primeiro desejo de grávida dela. Primeiro veio uma
vontade surreal de comer gorgonzola, o qual eu tive que dissuadi-la, pois

alguns queijos como esse podem vir com uma bactéria e fazer mal aos bebês.
A outra vontade era de beber vinho, esse eu nem discuti, só olhei feio para ela
e ficamos rindo.

— Eu vou cedo ao supermercado e compro para você.

— Não qualquer mandioca. Eu estou com vontade de comer a


mandioca de um homem...

Viro o rosto e arqueio a sobrancelha para ela.

—... de um homem que passa na rua lateral da minha casa. É orgânica,


fresquinha, ele leva um carrinho lotado para vender na feira... acaba bem
rápido... huuum, ficam todas tão macias e...

Enquanto ela vai salivando e descrevendo a comida a ponto de me


deixar com fome, Phellippo vira de lado, fica de costas pra mãe e se agarra ao

meu pescoço, esconde a cabeça debaixo do meu queixo.

— Ele sempre passava por lá às 5 da manhã...

Estreito os olhos, imaginando o que isso pode significar.

— Será que você pode ir? Acho que não consigo dormir.

— Ir onde?
— Na rua lateral da minha casa, se for agora eu acho que consegue
comprar...

— Hoje?

— É... eu acho que quero comer isso agora...

— Agora?! Não pode esperar até o sol sair?

Yasmin acena que não com a cabeça.

— Você quer que seus filhos nasçam com cara de mandioca?

— O que isso significa? — Já me adianto e me levanto, mas PH vem


junto, grudado feito um bicho preguiça.

Deito-o e passo para a cadeira, vou até o closet, os olhos doem ao ligar
a luz. Pego uma jaqueta de couro e coloco por cima da camisa de algodão,
não troco a calça de moletom, nem tiro as meias, vou assim mesmo.

— O nome dele é Zé — ela diz com um bico e voz manhosa, antes que

eu saia do quarto.

Me apresso, pois não quero que meu filho nasça com cara de mandioca,
muito menos de uma mandioca de um homem chamado Zé.

— Fugindo, cunhado? — Ouço a voz masculina da escuridão.

É Diogo, irmão de Yasmin.

— Sua irmã está com desejo — suspiro. — E lá vou eu tentar realizar.


— Confiro que o celular está no bolso, pego a chave do carro em um pino

baixo ao lado da porta.

— Posso ir com você? O que ela quer?

Diogo e eu não criamos proximidade. Na verdade, ele mal conversou


comigo desde que vieram morar aqui.

— Claro. Põe um casaco, está frio. — Avalio a temperatura lá fora em


meu relógio digital e o aguardo retornar, com um moletom bem largo e boné
aba reta.

Passamos boa parte do caminho sem dizer nada um ao outro, já que não
temos proximidade, nem muito o que falar.

— O que ela quer comer mesmo? — Diogo olha bem onde estamos,
acho que está reconhecendo seu bairro.

— Mandioca.

— Clássico. Cozida com carne e depois frita? — Ele ri.

— Como sabe?

— Ela pedia pro meu pai isso, quando ficou grávida do PH. Ah, e
compra duas ou três barras de chocolate, alpino ou um meio amargo. Ela vai
comer com a mandioca.

— Quê? — Ergo a sobrancelha.


— Acredite, ela só vai lembrar disso quando você chegar lá. E já se
prepara, vai ter a carambola... e a cocada queimada... isso quando ela não te

pedir pra parar em um posto de gasolina e deixar a porta aberta, pra sentir
aquele cheiro esquisito...

Pisco os olhos, meio incrédulo. Mas ouço Diogo, já que ele


acompanhou a primeira gravidez da irmã.

— Como se sentiu ao descobrir que Yasmin estava grávida?

— Do PH ou agora?

— Do PH. — Manobro com o carro para virar uma rua bem íngreme.

— Não curti. Ela nunca disse quem era o pai e o cara nunca apareceu.
Só sei que é um cuzão, largou e a deixou criar a criança sozinha. Sempre quis
saber quem era o idiota, para dar um soco nele, cumprir meu dever de
homem.

Aceno com a cabeça, em silêncio. Daí ele continua:

— É diferente agora. Ela está mais madura... você é um cara responsa.

— Obrigado? — Sorrio, tentando entender se é um elogio.

— E está cuidando da nossa família. Eu cometi muitas burradas,


Guilhermo, mas aquele pessoal que atirou no portão da casa da minha mãe,
aquilo não tinha nada a ver comigo...
— O importante é que vocês estão bem, Diogo.

Ele ainda fica um tempo refletindo se acredito ou não em suas palavras.

— Para aqui. O Zé sobe por aqui — ele aponta e eu estaciono o carro.


— Quero te pedir desculpas, porque estou há tanto tempo em sua casa... mal
conversamos... só não quero parecer inconveniente. É duro... eu não tenho
um trabalho oficial, não conseguia sustentar a minha mãe, irmã e sobrinho

antes... e jamais conseguiria dar a elas o que você está dando...

— Vocês são a minha família agora, Diogo. Não se preocupe com isso.
— Tento minimizar a tristeza dele.

— Sempre que tento descolar uma grana, caio numa enrascada. Pelo
menos agora, usando o carro da Patrícia e Yasmin de Uber, estou tirando um
dinheiro. Nunca vai pagar a conta de luz inteira da sua mansão..., mas estou
fazendo minha parte.

— Está sim. — Respiro fundo e vejo o semblante dele, meio

decepcionado consigo mesmo e cabisbaixo. — O que você pensa em fazer no


futuro? O que pretende estudar?

— Estudar? — Ele ri. — Estudar não... Yasmin herdou a inteligência,


eu não...

— Mas se quisesse ser algo, qualquer coisa, o que gostaria de fazer?


Além de dirigir Uber.
— Ser cafetão.

De repente o carro mergulha em um silêncio profundo. Não sei se

simplesmente desvio os olhos ou pisco devagar, tentando processar a


informação.

— Você devia ser sua cara! — Ele se diverte. — Não, não, eu queria
ser jogador profissional.

— De futebol?

— Online. Qualquer jogo. Tem uns muito legais e eu sou bom, passo
horas jogando... seria legal ganhar dinheiro com isso.

— Parece mais razoável que ser cafetão. — Tento conter o riso. — Do


que precisa para isso?

— Um microfone... uma câmera... e um público, né?! Estou juntando


dinheiro, um dia chego lá. Quando vocês menos perceberem, viro digital

influencer de games.

— Parece legal. Em minha época não tinha isso, só as profissões mais


tradicionais... acho que escolheria isso também... jogar e ganhar dinheiro...

— Não é? — Ele ri. — Olha o Zé, pode deixar que eu compro. — Ele
se prontifica.

— Toma. — Entrego o dinheiro.


— Não, eu compro, pode deixar. — Ele sai do carro e volta dois
minutos depois, com muitos pacotes de mandioca.

— Chocolate, você disse... — Ligo o carro e partimos.

— E creme de leite. Manteiga... você tem isso em casa?

— Sim — digo suavemente e começo a dirigir.

— Meu pai queria que eu fosse advogado. Ou quem sabe um médico...


— Sorri de um jeito emocionado, como se lembrasse das broncas do pai. —
Queria que o filho fosse um doutor. No Brasil ou é isso ou ser jogador de
futebol, é o sonho de todo pai.

— E você alguma vez quis ser doutor?

— Muita responsabilidade... acho que não. É legal que todo mundo te


trata bem e você ganha um salário bom... vive na nata social brasileira...

— É isso o que você pensa da minha profissão? — Preciso rir. —

Nunca reparou em minhas olheiras?

— Ah, Guilhermo, mas você tem cara de ser muito certinho... de


cumprir as regras...

— É — temo em concordar.

Antes que o silêncio nos consuma novamente, ele volta a puxar


assunto:
— Você, como futuro pai... o que espera que seus filhos sejam?

— A coisa mais difícil dos dias de hoje — comprimo os lábios.

— Piloto de foguete espacial?

— Felizes — digo sem delongas. — Como futuro pai, é tudo o que


quero. E provavelmente era o que seu pai queria também.

— Não... não... meu velho queria que eu fosse médico ou advogado...


— ele ri.

— Isso era ser feliz para ele, Diogo. Do jeito que ele enxergava o
mundo, desejando o melhor para você. Na época dele isso era o vislumbre da
felicidade e da ascensão social: se tornar médico ou advogado.

Só de tê-lo deixado pensativo, me sinto satisfeito.

— Mas você é jovem... de um mundo diferente dos seus pais... precisa


encontrar seu próprio caminho para a felicidade.

—É — Diogo me encara. — Entendo porque a Yasmin gosta de você.

— Entende?

— Você é um cara firmeza demais.

Não sei se é o sono, mas novamente tento raciocinar o que isso pode
significar. Parece um adjetivo curioso para dar a alguém: firmeza. Que se não
me engano, na verdade é substantivo.
— Os seus filhos vão ser sortudos demais, cara.

— Você acha?

— Claro. Além de um pai que tem fortuna, um que também vai tentar
se adequar a um mundo que muda o tempo todo, para que eles alcancem a
felicidade.

— Sabe o que acho engraçado? — O olho rapidamente. — Nós


italianos temos um conceito sobre fortuna que significa exatamente isso. Não
como acúmulo de bens materiais, mas alguém que consegue ser maleável e se
adaptar aos desafios. Fortuna.

— Você inventou isso agora, né? — diz desconfiado.

— Não, não, é Maquiavel.

— Aquele sinistro?

Isso me faz rir.

— O filósofo dizia que um bom rei precisa ter virtude e fortuna. Ou


seja, ter a mente clara e habilidosa para traçar estratégias, a virtude, e saber
enfrentar os perigos inesperados, fortuna — bocejo.

— Legal. — Vejo que ele fica sem graça.

—... Enfim, qualquer dia desses deveríamos jogar.

— Ah, você curte jogar? Gosta do quê?


— Qualquer coisa, aprendo rápido... você deveria ensinar ao Phellippo
também.

— Você é mais legal do que pensei, Guilhermo. — Diogo acena e fica


olhando o dia amanhecer pela janela.

Chegamos ao mercado e eu desço junto a ele para comprar algumas


coisas para me preparar e não precisar sair de casa durante a madrugada.

— Carambola e cocada queimada, você disse?

— Não vai achar aqui. Precisam ser de um lugar específico, senão ela
não come. Não entendo bem de grávida, mas ela conseguia sentir a diferença
no sabor...

— Certo. Onde acho então?

— Relaxa, Guilhermo, eu sempre ia com meu pai comprar as coisas. Te


mostro tudo e voltamos para casa, pra fazer uma grávida feliz.
“O ciúme é um latido que atrai cães”.

— Karl Kraus.

Quando o cheiro da mandioca frita chegou ao meu olfato, veio a


vontade de fazer um creme de chocolate ou brigadeiro para comer junto.
Fiquei me remexendo, impaciente na mesa, encarando Guilhermo.

— Sabe com o que acho que isso ficaria bom?

— Chocolate? — ele responde, colocando uma panela morna em cima


do tampão de madeira. Vejo a cor brilhante do chocolate e fico muda,
encarando-o.

— Como você adivinhou?

— Tenho os meus meios — ele se diverte.

Durante a semana vieram outras sensações e desejos.

Teve um dia que antes de ir ao Rota da Vida, ter acompanhamento com


a doutora Alissa, eu simplesmente caminhei até o lago em frente à casa de
Guilhermo, subi o vestido até os joelhos, deitei na grama e fiquei lá pegando
um pouco de sol do início do dia, vendo os patos e gansos nadando e o leve
soar da água.

Também quis comer cocada com aquele cheirinho gostoso de


queimado, o caramelo levemente passado, a cor tostada... e carambolas! Meu
Deus! Tive que me controlar, pois Guilhermo ficou preocupado se aquilo
afetaria meus rins.

E como nem tudo são flores, vez ou outra recebia as ligações de Dênis
– que eu não atendia – e mensagens desaforadas dizendo que eu deveria
sumir da vida de Guilhermo ou dar um fim logo à gestação, ou ele entraria na
justiça.

Em alguns dias as dores voltavam bem fortes, bem diferentes de

cólicas, gases ou os bebês agitados. Era uma dor que vinha acompanhada de
muito estresse, palpitação e falta de ar. Mas eu tive sempre a sorte de ter
minha melhor amiga, minha mãe ou o homem que eu amava lá ao meu lado
para me socorrer e me fazer sentir bem.

— Você precisa contar tudo isso ao Guilhermo — Patrícia bate o pé.

— Não... é exatamente o que não devo fazer. Dênis não quer que eu
interfira na vida dele, e eu muito menos quero ter algo a ver com isso. Foi
mero acaso que ele ser aluno do Guilhermo, melhor não fazer nada... em
alguns meses vou dar à luz e vou seguir minha vida.

— Bom, ao menos vou tentar preparar todo um aparato jurídico para


contestar um pedido de paternidade dele. Ausente. Atrasou as pensões várias
vezes. Nunca nem conheceu o menino. E quer tomá-lo?

— Fala baixo, Patty.

— Qualquer coisa pede um dinheiro ao Guilhermo e contrata mais


advogados. Aliás, quando isso estourar, não vai ter como ele não saber, então
se eu fosse você, contava logo.

— Não. Dênis só quer me colocar medo e ameaçar. Se ele fizer algo,


sabe que vai ter problemas...
— Ai amiga, você tem o coração tão bom. Usando a boa e velha
palavra jurídica: eu já tinha mandado uma rola deste tamanho na casa dele, só

pra deixá-lo alerta.

— Eles estão vindo, faça silêncio.

Quando Phellippo, Guilhermo e minha mãe aparecem no quarto,


confiro que estão vestidos como Patrícia e eu: de macacão branco, luvas e

máscaras fora do rosto.

Esvaziamos todo o quarto que Patrícia estava ficando para se tornar o


quarto dos bebês, em contrapartida, Guilhermo contratou um arquiteto para
expandir a pequena casa dos fundos para construir mais dois andares, um
para servir de estoque da nossa loja e outro para ser o quarto da minha amiga.

E agora, com o quarto vazio e chão forrado de jornais, iríamos pintá-lo.

A minha médica gostou da ideia, disse que era muito bom que a família
pudesse compartilhar momentos como esse, ainda mais Guilhermo e eu.

Escolhemos tintas à base de água e tomamos todo o cuidado para nos


proteger. As cores que escolhemos foram amarelo e branco, que combinariam
bem com os móveis que encomendamos.

— Pintaaar! — PH diz ansioso, já pega um pincel e fica correndo ao


redor de Guilhermo, que está abrindo as latas de tinta que trouxe.

— Eu fico com o rolo porque eu não só amo, como adoro. — Patrícia


pega o objeto no chão e fica pronta para ajudar.

— Eu adoro pintaaaar! — Phellippo não se aguenta de tanta animação.

— Vai pintar bem lá no alto? — Guilhermo aponta o teto.

— Num acanço. — O pequeno se estica todo. — Mas vou pintar aqui e


aqui. — Ele mostra as partes mais baixas da parede.

— Muito bem. — O adulto leva a lata de tinta até o centro do lugar,


ajeita a máscara no rosto de Phellippo e ensina a ele como fazer.

— Eu te ajudo, amor. — Fico junto dos dois, vendo PH pintando e


Guilhermo mostrando como fazer.

— Tem certeza de que quer fazer isso? Suas costas não vão doer?

— Não, vai ser ótimo! — digo animada e pego outro rolo.

Decidimos que Patrícia e mamãe vão pintar mais em cima e subir na


escada, Guilhermo e eu vamos pintar mais ao centro e PH vai pintar bem

embaixo.

— Viveeeer — o pequeno começa a cantar. — E ser feliz. Cantar


cantar e cantar...

— Você gostou mesmo dessa música, não é? — Guilhermo afaga seus


cabelos e depois me faz parar o que estou fazendo, para colocar a máscara em
meu rosto, coisa que esqueci.
— Apendiz e é bonita bonita e é bonita. — PH fica agachado, ele tenta
fazer rápido e sempre volta no canto para reforçar a tinta.

— Onde está o Diogo, mamãe? Eu não o vi o dia todo...

— Está no meu escritório — me surpreendo quando é Guilhermo quem


responde.

— No seu escritório? Fazendo o quê, lá?

— Trabalhando.

— Trabalhando com o quê?

— Jogando. Comprei uma câmera e um bom microfone, e também um


computador de última geração. Ele disse que queria transmitir enquanto
jogava e eu já precisava comprar esse material para gravar umas aulas,
então...

Torço o nariz pela justificativa fajuta que dá só por ceder aos caprichos

do meu irmão. Mas não reclamo.

Só não quero que Diogo se aproveite de Guilhermo ser alguém tão


gentil.

— Ele sempre passa tanto tempo no playstation ou no celular... perde


tanto tempo...

— Vamos ver como ele se sai fazendo o que acredita que gosta. Vamos
dar essa oportunidade a ele.

A forma doce e ao mesmo tempo firme que Guilhermo diz, me deixa

muda.

Quero discordar, não sei se são os hormônios que estão bagunçando


meu humor ou o conhecimento prévio que tenho do meu irmão, que gosta de
procrastinar quando o assunto é trabalhar.

— Vamos apoiá-lo e ver como ele se sai — Guilhermo dá a última


palavra e continua a pintar, concentrado.

— Só faltam três provas para que eu passe e conclua o semestre. E


entregar uma prévia do TCC. E aí... férias... e depois um semestre com duas
cadeiras e o fim do trabalho de curso — digo aliviada, quase cantarolando
com PH.

— Vamos ter os bebês antes do seu próximo semestre? — Guilhermo


pergunta.

— Creio que sim, talvez eu perca umas semanas iniciais, mas eu


recupero depois...

— Peça pra continuar fazendo as coisas de casa, para não se desgastar


muito.

— Você tem razão...

É estranho ter alguém para cuidar de mim.


Nos últimos tempos eu é que precisava tomar a frente, decidir as coisas,
que o simples fato de Guilhermo me sugerir o que fazer, já parecia tirar

coisas de meus ombros.

— Como foi a recuperação após ter o Phellippo?

— Huuum, foi uma recuperação bem lenta, para falar a verdade. Fiquei
bem cansada e ele demandava muita atenção.

— Então já sabe que com dois a caminho, não vai ser muito diferente...

— Ou duas... — contraponho.

Ainda não sabemos o sexo dos bebês, deixamos para nos surpreender
na hora do parto. Guilhermo nem olhava mais na hora do ultrassom, porque
certamente desvendaria só de ver.

— Mamãe, canta comigo: viveeeeeer.

Enquanto estamos pintando a parede e cantando sem parar a música

que não sai da cabeça de PH, sinto o celular em meu bolso vibrar cada vez
mais. A cada nova mensagem e ligação, sem ao menos ver, sinto meu
coração doendo.

Não acredito que Dênis não vai me deixar em paz, sendo que isso é
tudo o que eu queria. Não é pedir demais. Eu só queria que ele continuasse
ausente, longe, ignorando a minha existência, como tem feito nos últimos
anos.
Por que me encher justamente agora?

— Vou fazer uma pausa para tomar água e descansar — digo tirando a

máscara.

Ao me afastar e ver de longe, percebo que pintamos quase tudo e o


trabalho está impecável, quase profissional. Claro que parece que cinco
pessoas diferentes, entre elas uma criança, pintaram o cômodo, mas com mais

uma mão de tinta daria pra uniformizar tudo.

— Quer que eu te acompanhe? — Guilhermo vira o rosto em minha


direção.

— Eu já volto, não precisa. — Agradeço com a mão e saio.

Desço o andar segurando o corrimão da escada. E vou direto para a


geladeira, pegar água saborizada com limão e laranja, me refresco um pouco
e pego o celular para conferir dezenas de chamadas não atendidas e inúmeras
mensagens:

“Então é assim que vai ser? Vai me ignorar?”

“Yasmin o que você está esperando? Para de atrapalhar a minha vida”


“Não acredito no que você está me obrigando a fazer”

As dores no centro da barriga são tão fortes que preciso ir até o sofá e
me sentar, apoiar as costas e respirar fundo. Por vezes fecho os olhos quando
uma dor aguda me atinge, uma sensação insuportável como se fosse uma
gastrite nervosa e aguda.

“Dênis, supera e me deixa em paz. Não sou uma ameaça para você, então
siga sua vida e me esqueça. Guilhermo não precisa saber de nada, então
pare de me atormentar”.

Parece até que um alívio me atinge, bebo bastante água e fecho os


olhos para relaxar a mente. Não tenho três segundos de descanso, o celular

vibra em uma ligação.

Mas não vou atendê-lo.

Será que ele não é capaz de entender que não temos nada a tratar?
Que as paranoias da cabeça dele não tem fundamento algum?

“Não posso permitir que meu filho seja criado por outro homem. Saia da
casa dele e dê um fim nisso”.

Preciso segurar o riso.

Agora não sei se está doendo por qualquer outro motivo ou a crise de
gargalhadas que sou acometida.

A pessoa nunca esteve na vida do filho e se acha no direito de dizer que


“não pode permitir que ele seja criado por outro homem”? Coitado.

“Eu estou te avisando, Yasmin. Não me faça perder o controle”.

Desligo o celular e paro de dar atenção a ele.

Tem gente que parece que suga a energia da gente, tira tudo o que há de
bom e nem precisa estar perto pra isso. Numa lida e rápida troca de

mensagens fiquei mais cansada do que estive lá em cima, pintando o quarto.

Quando estou de volta à cozinha e coloco o copo na pia, vejo em cima


do balcão um classificador que não me lembro de ter estado ali antes. Ou vai
ver estava tão distraída que não reparei.

Ao pegá-lo, vejo de cara o título em vermelho: “confidencial”.

Se isso não é chamariz suficiente para que eu o abra, não sei o que mais
seria. Abro e folheio rapidamente, confiro todos os termos jurídicos, a

assinatura de vários advogados e tem o nome de Guilhermo também, acho

bem estranho.

Será que é algo a ver com o testamento de Alfredo?

Ao fim das dezenas de páginas, um termo que passo os olhos e diz


basicamente que quando meu filho nascer, Guilhermo terá a guarda dele e

com isso ficará com toda a fortuna para si. Além de que eu e minha família
teremos que manter distância não só dele, como da criança.

A dor fica cada vez mais latente.

Antes que eu feche o classificador, com os dedos tremendo, percebo


que estou curvada, rangendo os dentes e tentando tomar fôlego.

Minha cabeça parece que vai explodir e eu sinto tanta dor que parece
que vou ter os bebês agora. Ou vou perdê-los.

Antes de cair de joelhos e a visão turva tomar conta de mim, ouço o


grito do meu irmão:

— Guilhermoooooo!

Deito no chão, tentando não ficar de lado, a insuficiência respiratória


doendo por toda a laringe. Fecho os olhos e me contorço de tanta dor.
Senti a alma sair do corpo quando escutei um grito vir lá do andar de
baixo.

Imediatamente todo mundo, inclusive Phellippo, saiu correndo para


conferir o que era. O pequeno até caiu no chão, tão desajeitado que saiu em
disparada.

Enquanto mãe e amiga desceram pelas escadas, levei Phellippo pelo


elevador até chegar na cozinha. A visão que tive me deixou imóvel por
alguns segundos: Yasmin deitada de barriga para cima e o macacão todo sujo
de sangue.

— Ela está em trabalho de parto? — Diogo perguntou, desesperado.

— Não, os bebês só nascem daqui uns meses — vou o mais apressado


que consigo até chegar nela.

— Mamãe! — Phellippo tenta abraçá-la, devido seus instintos, mas eu


o afasto e o entrego nos braços da avó. — Mamãe! — grita de novo, só que
mais agudo.

Confiro a pulsação dela com a minha mão e parece baixa. Não tenho
tempo para muita coisa, então preciso conferir se ela está consciente e
preparar todo mundo para ir ao hospital.

— Yasmin, consegue me ouvir?

Ela murmura baixinho, dá um aceno quase imperceptível.

— Ela bateu a cabeça? — Ligo a lanterna do celular e abro seus olhos

para ver como estão suas pupilas.

— Não, quando desci para tomar água, ela estava de joelhos, ajudei ela
a deitar... ela pediu que não contasse nada a ninguém...

— Liga o meu carro — aponto para Patrícia. — Me ajuda a levantá-la,


está consciente só que com a pressão baixa. Coloca ela em meu colo, segura
no tronco dela.

Diogo tenta levantar a irmã, mas não consegue. A mãe precisa vir
ajudar e até o pequeno tenta se intrometer.

Quando Yasmin está em meu colo e eu estou empurrando as rodas o


mais rápido que posso – com a ajuda de Phellipo tentando puxar o braço da
cadeira e o irmão dela me empurrando – eu ajeito sua postura em cima de
mim, confiro se está respirando.

— Respira pelo nariz, solta pela boca. Não abaixa o pescoço, vamos
chegar rápido no hospital.

Ao chegar no carro, é todo outro trabalho para colocá-la deitada no


banco dos fundos. A mãe vai lá, para que ela não caia e Phellippo fica
agachado ao lado dela.

— Vai ficar tudo bem, mamãe...

Como não tenho toda a agilidade para esperar o passo a passo do meu
carro, Diogo e Patrícia me sentam no banco do motorista e desmontam a
minha cadeira de qualquer jeito. Eu dou a partida e saímos o mais rápido

possível, os outros dois vem logo atrás.

— Alissa — ligo para ela assim que saímos. — Está no hospital?

— De saída. O que houve? Tem uma emergência?

— Yasmin está tendo um sangramento, me espere no estacionamento C


com a equipe de emergência.

— Ok — ela diz e eu desligo. Não tenho tempo para ouvir suas


preocupações agora.

Ligo para Ayslan.

— Na escuta — ele diz.

— Yasmin teve um sangramento, estamos indo ao hospital. Tem ideia


do que pode ter sido?

— Ela se machucou ou...?

— Não, teve tempo de repousar no chão.


— Estranho. Não está na data para o nascimento...

— Eu sei, Ayslan! — rosno.

— Exames e ultrassom detectaram má formação congênita? Ela bebeu


álcool? Comeu algo que poderia estar estragado?

— Não, nada disso. Só parecia mais estressada, sobrecarregada... ela

nunca me escuta, se encheu de coisas para fazer.

— Tá, dirige rápido e com cuidado. Vou separar uma sala na obstetrícia
já com soro. Ela não teve anemia, né? Mas posso alertar o banco de sangue
do hospital, fala o tipo sanguíneo dela...

Como Ayslan está com a cabeça mais fria e longe da situação,


consegue pensar mais claramente e dar suposições para qualquer tipo de
coisa, o que me deixa mais tranquilo e me faz dirigir melhor.

Ao chegar no estacionamento do hospital, uma pequena equipe médica

já está nos esperando, Alissa e Ayslan entre eles. Colocam Yasmin em uma
maca e a levam para um elevador, não consigo acompanhá-los pois ainda
estou descendo e montando minha cadeira de rodas, dona Lúcia e PH não
puderam acompanhá-la.

— E aí? — Diogo pergunta assim que o carro para, salta aos tropeções,
quase caindo.

— Vamos subir para o terceiro andar e pegar as informações com o


Ayslan, não se preocupem — digo.

— Ela tem a chance de perder os bebês? — Patrícia diz aflita.

— Não — tento acalmá-la, passando total certeza com minha voz.

Bom... eu espero que não.


“Todos veem o que você parece ser, mas poucos sabem o que você
realmente é”.

— Nicolau Maquiavel.

Como não pude entrar, fico na sala de espera junto a todo mundo,
aguardando notícias do estado de Yasmin. Uma hora parece durar a
eternidade aqui fora, ainda mais sem saber o que aconteceu.

Quando Ayslan sai da sala de emergência da obstetrícia, todo mundo


fica ao redor dele, enchendo-o de questões. Phellippo quer saber como está
sua mamãe, dona Lúcia está aflita por causa da filha, Patrícia só desata a falar
sem parar e eu fico quieto, conheço meu amigo pelo olhar e rapidamente

percebo que alguma coisa não vai bem.

— Ela está consciente, foi uma queda de pressão brusca e muito


estresse. Está recebendo soro e fazendo os últimos exames, por favor, fiquem
tranquilos — ele diz firme, olhando com seriedade para a família.

Três coisas são necessárias a um bom médico, além de conhecer os


instrumentos de sua profissão: saber falar com propriedade, acalmar aqueles
que não podem fazer nada e não prometer o que não pode cumprir.

— Ela volta pra casa hoje?

— Os bebês estão bem?

— Preciso falar com o pai agora. Se me dão licença — Ayslan abre seu
melhor sorriso, faz um cafuné rápido no pequeno que não está satisfeito com
as respostas.

Antes de me dizer qualquer coisa, meu amigo segura na cadeira de


rodas e vai me empurrando para longe.
— Fala logo o que aconteceu — digo, impaciente.

Ele continua a me empurrar, até que estejamos dentro de um corredor

vazio, só para funcionários.

— Por que seus bebês estão pequenos? No penúltimo mês de gestação


eles crescem quase um terço!

Pisco os olhos, sem saber exatamente o que dizer.

— Guilhermo, o prazo do testamento do Alfredo termina mês que vem!


Seus bebês tem seis ou sete meses! Não bate com a data que você disse que
Yasmin ficou grávida!

— Não vamos pensar na herança agora, Ayslan...

— Você mentiu pra mim! — ele diz indignado. — É claro que estou
preocupado com a saúde dos seus bebês, você é um irmão pra mim. Mas
mentiu. Me enganou. O que achou que conseguiria com isso?

— Tempo — sou sincero.

— Guilhermo, onde foi parar a ideia da inseminação?

— Nós não quisemos. Decidimos juntos. Queríamos que fosse no nosso


tempo, do nosso jeito, porque é a nossa família! — Altero a minha voz e
mostro que não estou nada contente com o tom dele. — Minha mulher
desfalecendo, sangrando, não sei se hemorragia interna ou o que pode ser. E
você preocupado com a porra de um carro e umas vinte, trinta peças de arte?
O empurro para que se afaste de mim.

— Eu não estou assim só pelo testamento, estou assim porque você

mentiu pra mim!

— Eu menti. Menti sim. Para deixá-la à vontade, tirar toda a pressão


dela, alcançar a minha própria felicidade, porra!

Precisamos de um tempo para descansar e respirar fundo.

Gritamos tão alto que chamamos a atenção de alguns técnicos que


apareceram pelo corredor para ver o que estava acontecendo.

— Anda, fala logo o que aconteceu, eu estou com uma dor insuportável
no peito!

— Guilhermo... — Ayslan engole em seco, sua voz não deixa claro se


vai deixar de lado nossa briga, mas tenta ser profissional. — Não
conseguimos ouvir o coração de uma das crianças, ela está com um problema

de circular do cordão.

— O cordão umbilical enrolou no pescoço de um dos bebês?

— É. E não conseguimos ouvir o coração. O outro está bem debilitado.


Ainda é cedo para dizer que foi um aborto, e ela não tem nenhum
machucado, nenhum trauma físico, só estresse. Essa mulher está estressada a
um ponto que parece ter sido torturada.

— Como assim?
— Não é o tipo de estresse que ocorre esporadicamente porque algo
aconteceu. É um estresse contínuo, de semanas ou até meses. E ao que

examinamos, ela chegou bem perto de ter uma parada cardíaca.

Eu não entendo. Yasmin queria se manter ativa, fazer suas coisas e


parecia muito bem.

Tentei de todas as formas impedi-la de manter o ritmo das atividades,

não importava que ela queria se sentir útil e continuar a rotina, precisava
entender que seria mãe de gêmeos, isso exige muito do corpo.

— O que a Alissa disse? — Tento de alguma forma esfriar a cabeça e


focar só no que pode ser feito, para que a dor não tome conta de mim.

— Ela está avaliando fazer o parto imediatamente, mas os bebês vão


nascer pré-maturos, com um terço do peso, os pulmões não vão ter sido
formados corretamente.

— E a Yasmin?

A feição que ele faz me desespera.

— Estamos tentando conter o sangramento, mas não para. Já


começamos as transfusões, mas se continuar assim e não acharmos o que está
causando isso... melhor ela nem voltar para casa e ficar entubada, como está
agora. Senão você terá de escolher entre seus filhos pré-maturos ou sua
mulher.
De todas as coisas que eu poderia ouvir, essa me machuca de uma
forma que eu não estava preparado. Como se uma cena retornasse de

imediato à minha mente, a visão do farol de um caminhão vindo com tudo e


batendo contra o carro, estraçalhando os vidros e me fazendo apagar.

Perder tudo pela terceira vez? Não sei se suporto.

Não consigo nem encontrar forças para empurrar minha cadeira,

paralisado pelo que ouvi.

— Tenho uma cirurgia agora, preciso ir. Mas a Alissa vai cuidar bem
da Yasmin, volto mais tarde para saber o que aconteceu.

Ayslan faz até menção de comentar novamente sobre minha mentira,


mas desiste no meio do caminho.

Me dá as costas e segue pelo corredor.

Levo um tempo até retornar para a sala de espera, agora sinto a

cobrança de algumas semanas sem fisioterapia e musculação. Acho que esse


estresse contribuiu para me deixar esperto no cansaço excessivo do corpo e
uma dor aguda na cintura.

Após reclamar em silêncio e fazer uma anotação mental de marcar


novas sessões com Jorge, encontro a família do Amor, todos tão apreensivos
que mal consigo reagir ou dizer qualquer coisa.

Phellippo que é o mais inquieto e faceiro, sai do lugar ao lado da avó e


vem ficar comigo. Segura por cima da minha mão e fica olhando ao redor,
como quem não quer nada.

— Guillermo...

— Hum?

— Você é médico, cura a mamãe — seu rostinho mostra uma tristeza e

um ar de incompreensão, por não saber exatamente o que está acontecendo.


Mas consegue sentir que algo está errado.

— Os outros médicos estão fazendo todo o possível para curá-la —


pego-o no colo e o abraço.

— Mas você é o que mais gosta dela, Guillermo, cura a mamãe.

Na falta de uma boa resposta, só encosto a cabecinha dele em meu


peito e tento distraí-lo com uma história.

Diogo reaparece com café, água e suco, oferece para todo mundo.

Phellippo pega a garrafinha de suco, mas parece sem apetite, todo tristonho.

— Guilhermo, posso falar contigo? — Diogo fica ao meu lado.

— Uhum.

— É que quando eu cheguei, a Yasmin deixou...

Quando a porta se abre, Diogo para de falar e todos nós voltamos a


nossa atenção para a Alissa que acabou de sair.
— Lamarphe, você me acompanha? — ela me chama.

— Claro.

— Guillermo quero ir! — PH se debate e começa a gritar quando o tio


precisa tirá-lo do meu colo.

— Eu já volto, não precisa ficar agitado. — Seguro em suas pernas. —

Fica calmo, pequeno, eu vou ver sua mãe e já volto.

— Quero ir — é tudo o que ele consegue dizer enquanto chora.

O tio continua a segurá-lo e eu passo pela sala. Ao chegar no ambiente


de higienização preciso passar para outra cadeira de rodas, colocar luvas,
máscara e touca.

A visão de Yasmin entubada, com tantos aparelhos ao seu redor, me


traz aflição. Me aproximo devagar e Alissa vai me contando tudo o que
houve.

— Ela vai ficar internada e sob observação.

— E os bebês? Ouviram os batimentos?

— Sim — ela diz e vem um alívio instantâneo. — Um deles está com o


batimento muito fraco, ainda estamos estudando a possibilidade de apressar o
parto, embora eu discorde da possibilidade. Conseguimos estancar a
hemorragia, agora ela está estável.
— E ela está acordada?

— Sim, quer falar com você.

Alissa confere como Yasmin está e quando me aproximo a ponto de


ficar quase ao lado dela, a equipe médica se afasta para nos dar alguma
privacidade.

— Eles não me contam nada — ela reclama, a voz bem fraca, quase
não sai.

— Não pode fazer esforço agora, tente descansar...

— Quero saber se perdi os bebês...

— Não. Eles estão bem, tem uma mãe muito forte e que nos deu um
baita susto. Mas estão bem, fora de perigo.

Parece até que ela se acalma, o corpo parece relaxar mais e a mão
esquerda começa a vir em minha direção.

— Guilhermo...

Seguro em sua mão, tomando cuidado para não acabar esbarrando nos
pequenos tubos.

— Pode ficar com a herança... não tire os bebês de mim...

Pisco os olhos, sem entender exatamente o que essas palavras


significam. De onde ela tirou isso?
— Ninguém vai tirar nossos filhos de você. — Checo seus batimentos e
a pressão sanguínea. — Descanse...

— Eu sei que sou culpada — ela diz com dificuldade em respirar,


ainda não entendo por que teima em continuar falando. — Não cumpri seu
contrato..., mas não os tire de mim... eu morreria.

— Você não vai morrer — só de ouvir isso meus olhos se enchem

d’água e tento abrir um sorriso para não a preocupar. — Você está bem, está
sendo bem cuidada, vai se recuperar em breve.

—Guilhermo...

— Yasmin, ninguém vai te separar dos nossos filhos. Nós somos e


vamos continuar a ser uma família. Já falei, esqueça o testamento. É a última
coisa que deve se preocupar nesse instante...

Não me preocupo tanto se a convenci, só me importo que ela fecha os


olhos e respira fundo, o corpo parece relaxar. Dou uma checada em sua

barriga grande e acaricio sua mão uma última vez antes de sair.

— Eu te amo.

A minha vontade é de não sair do quarto e fazer-lhe companhia o


tempo que for necessário. Mas sei que não vai conseguir espairecer e se
desligar um pouco do mundo e se recuperar, se eu permanecer aqui.

— Vai ficar tudo bem — reforço, após dizer que a amo.


— Os batimentos melhoraram e a pressão do corpo também. — Alissa
espia por cima de mim, o que os aparelhos mostram. — Agora vamos nos

concentrar nas crianças. Se tivermos sucesso em mantê-las essa semana no


útero, creio que ela termina a gestação. Isso, é claro, se não acontecer algo
assim novamente.

— Acha que foi pelo fato de pintarmos as paredes?

— Não, não é exaustão física, é mental. E ela não parava de falar sobre
você tirar os filhos dela... não sei, podia ser delírio, mas...

— Me ligue se algo acontecer.

— Pode deixar.

Saio do lugar após me higienizar e sou bombardeado de perguntas dos


familiares. É bem mais fácil lidar com toda a euforia, quando você não tem
alguma ligação com a pessoa, a mente até bagunça as informações.

— A Yasmin vai ficar internada por uma semana e aí vão avaliar se


fazem o parto ou se ela tem condições de seguir até o fim da gestação. Por
hora, ela está bem, se recuperando, com certeza amanhã ou depois já
consegue receber visitas.

— Graças a Deus! — A mãe parece mais tranquila dessa vez do que


quando Ayslan informou.

— Eu preciso ir em minha sala conferir minha agenda, talvez eu


remarque algumas consultas só para ficar disponível caso precisem de mim
no caso dela, ok?

— Obrigada, Guilhermo. — Dona Lúcia me abraça e eu não entendo


por quê.

Saio em direção à sala da vice-presidência e só me dou conta de que


estou sendo seguido quando entro no elevador. PH e Diogo entram logo atrás

de mim, o pequeno vem primeiro, o outro parece que queria interceptá-lo.

— Ela está bem mesmo? — O irmão de Yasmin pergunta.

— Estável. Já é um ótimo sinal, significa que com os cuidados e


descanso adequado pode se recuperar.

— Que bom. Agora deixa eu te falar, porque não tive a chance quando
você foi chamado...

— Sim, o que era?

— É que a Yasmin, quando se deitou no chão, deixou o celular comigo.


E ele não para de vibrar, está recebendo um monte de mensagens de um tal
Dênis. Tem ideia de quem seja?

— Não — pego o aparelho das mãos dele e vejo o nome do contato:


“Dênis”. Sem mais especificações ou sobrenome.

— Ele não para de ligar, também.


— Você atendeu?

— Não, não, estávamos no meio dessa correria toda que não tive a

chance. Quer que eu desbloqueie o celular? Sei a senha.

Me sinto em um dilema maldito sobre invadir a privacidade de Yasmin.


Não me sinto confortável com isso, mas devido a situação...

— Não importa, já desbloqueei. — Diogo me tira do dilema.

Saio do elevador um tanto às pressas, Diogo vem logo atrás e PH corre


o quanto pode, para nos acompanhar.

— Mas que porra de mensagens são essas?

Paro um instante e confiro algumas das coisas que foram enviadas à


Yasmin pelo tal Dênis.

— Não pói falar palavrão! — Phellippo fica escandalizado e até para


no lugar. — É feio.

O tio pede desculpas e volta para buscar a criança. Eu não perco tempo
e clico para ver o número de quem enviou, o sangue já esquenta em um nível
que vejo tudo em minha frente turvo.

A minha memória não é muito boa para números, tenho alguma


dificuldade em gravá-los. Mas tenho a impressão de conhecê-los, mesmo
quase nunca salvando meus contatos na agenda do celular.
Ligo para o número e sou atendido quase imediatamente.

— Resolveu recobrar o juízo? Acha que estou blefando?

Com a boca entreaberta e antes de dizer qualquer coisa, desligo a


ligação.
“Existem muitos motivos para não se amar uma pessoa, mas apenas
um para amá-la”.

— Carlos Drummond de Andrade.

A cada nova mensagem trocada entre Dênis e Yasmin que leio, fico de
cabelo em pé. São tantas atrocidades, ameaça e chantagem que meu estômago
fica revirado.

Quando comparo o número remetente de tamanho estapafúrdio e


algumas chamadas em meu telefone profissional, tenho a completa certeza de
que não estou enganado.

A porta da minha sala se abre tão rápido, que preciso segurar Diogo

pelo braço, porque ele já se prepara para levantar e socar a cara do sujeito.
Ainda bem que faço isso, pois quem entra é a doutora Érica Dourado.

— Desculpe o atraso... — ela diz sem jeito, asseia os cabelos. — Ah,


não sabia que estava acompanhado...

— Diogo, leva o PH para passear um pouco e volte em dez minutos.

— Quero estar aqui quando aquele idiota chegar — diz entredentes.

— Eu te chamo. — Aceno e o assisto sair. — Doutora Dourado,

precisamos conversar.

— Eu acabei de saber. Correu rápido a notícia de que sua mulher quase


perdeu os bebês — ela diz apreensiva. Não nos falamos desde sua investida e
ela parece sem graça ao tratar comigo. — Guilhermo, eu realmente sinto
muito...

— Sente? — Arqueio a sobrancelha. Desbloqueio o celular de Yasmin


e deslizo o aparelho por cima da mesa, para que ela leia as mensagens.
— Meu Deus, o que é isso?

— Isso é o que quase causou um infarto em minha mulher e quase me

fez perdê-la e aos meus filhos.

— Guilhermo... — está tão chocada que meu nome quase não sai.

Arregala os olhos e continua deslizando o dedo pela tela do celular,

conferindo as mensagens.

— Veja o número.

— Estou vendo...

Agora entrego o meu celular com o nome de Dênis Bittencourt nas


mãos dela. Érica fica muda e sem expressão. Parece que perde a cor, esquece
até como reagir.

— Isso... isso é... desumano. Precisa chamá-lo aqui, desligá-lo do


programa de residência e processá-lo.

— Eu vou. — Me surpreendo por concordarmos. — Mas eu gostaria da


sua ajuda.

— Minha ajuda?

— Sou conhecido no hospital por ser bem minucioso na área de


cirurgia e sempre observo meus alunos trabalharem. Acho curioso que... o
Dênis suture de um jeito bem peculiar...
— Aham.

— Pode parar de encobri-lo, Érica. Foi ele quem deixou o alicate

dentro da paciente.

A expressão dela só piora. Continua quieta, mal respira.

— Eu só gostaria de entender o que te fez proteger alguém como esse

cara. O que ele te prometeu? Ou foi algum tipo de chantagem?

— Foi... um erro. Um erro inocente, de alguém jovem. Como eu


poderia imaginar que alguém assim é um perigo em potencial para pacientes
e o próprio hospital? Todos nós cometemos erros, Guilhermo. Eu já cometi
muitos erros...

— Mas não podemos sair impunes. Porque isso cria a ilusão de que
estamos acima da ética e da lei.

Ela não contesta. Abaixa a cabeça e respira fundo.

— E o que você quer?

— Uma funcionária que não quis se identificar, me mandou provas


daquele dia, de que você deixou todos saírem e ficaram só Dênis e você para
suturar a senhora Oliveira. E encobriu tudo isso, até agora. Alguém que se
comporta feito um sociopata e ameaça uma mulher grávida.

— Certo. — Ela se dá por vencida. — Ele está fora do programa de


residência.
— E você, demitida.

Érica se engasga.

— Não, não... não pode me demitir! A minha família também é dona


desse hospital!

— E vão ficar sabendo da sua postura profissional. Tire suas coisas até

o fim do dia, ou mando a segurança tirar.

— Guilhermo, seja razoável, não fui eu que...

— Eu já terminei.

Estendo a mão para pegar os dois aparelhos de volta.

Ela teve sorte de eu não abrir um processo administrativo por encobrir


uma pessoa tão perigosa e que causou mal a uma paciente. E agora isso.

Minha cabeça vai explodir de tanta dor. Tudo o que eu queria agora era
gritar e poder resolver tudo, principalmente tirar Yasmin daqui e levá-la para

o mais longe possível.

Não consigo acreditar que a coloquei em perigo estando aqui.

Me sinto tão mal que nem percebo o momento em que Dênis entra em
minha sala. E em seguida Diogo vem correndo, com tudo, segurando Phellipo
em seus braços e simplesmente pula no ar, dando um chute com toda a força
do corpo, derrubando Dênis no chão.
— Você ficou maluco? — Quase caio da cadeira, no impulso de tentar
tomar Phellippo de seu colo.

— Eu vi o nome “Dênis” no jaleco — explica.

— Mas precisava fazer isso com a criança no colo?

— É, foi mal. — Diogo coça a nuca e me entrega PH que está

apreensivo, sem entender nada. — Aqui, levanta. — Estende a mão para


Dênis.

O outro, desnorteado, segura. Não sei nem porque faz isso. E leva um
chute em cheio na cara que preciso virar o rosto de PH pro meu peito, para
que não veja isso.

— Você não pode agredir um funcionário! — o outro diz no chão. —


Que porra está acontecendo? — Passa a mão pelo nariz ensanguentado.

— Não pói falar pavrão, né Guillermo?

— Não pode — concordo e aperto o botão para que a secretária, no


balcão à frente da sala, venha. — Toma, tira o garoto daqui. — O suspendo
por cima da mesa, antes que fique traumatizado.

Ela dá uma olhada rápida em Dênis no chão, pega a criança e sai


apressada.

— O que está acontecendo? — o outro grita.


— Dênis, eu vou te fazer uma pergunta muito sincera.

— Hmmm?

— Já apanhou de um paraplégico?

— Quê?

— Alguém, alguma vez na vida, passou com uma cadeira de rodas por

cima de você? — Tento melhorar a pergunta.

— O que isso quer dizer?

— Quer dizer que está formalmente dispensado da sua residência. De


brinde vai levar uma carta de recomendação, para qualquer lugar que sonhe
em trabalhar dentro deste país. Se um hospital aceitar tê-lo em seu corpo de
funcionários, vai viver um grande pesadelo. O Rota da Vida vai processá-lo
em nome da senhora Oliveira por deixar um alicate dentro dela. E a minha
mulher, Yasmin, vai abrir um B.O. e uma representação contra você, para que

fique longe dela e da nossa família.

Ele até para de lamentar quando entende, por fim, o que está
acontecendo.

Se levanta, tentando proteger o rosto manchado de sangue para não


levar outro chute de Diogo.

— E eu vou passar com a minha cadeira de rodas por cima de você —


aviso.
Nisso sou mais gentil que Diogo, não bato em alguém sem avisar antes.

Mas sou capaz de fazer muito pior.

— Te quero fora desse hospital em trinta segundos...

Confiro o relógio em meu pulso.

— Ou eu vou te jogar pela janela.

Sem respostas, explicações ou qualquer coisa, Dênis se levanta, treme


ao passar ao lado de Diogo. Não tem tempo nem de começar a negar e dizer
que é engano, que estou me confundindo.

Acho que um chute no peito de vez em quando pode fazer homens


como Dênis recobrarem um pouco da consciência e entender o que fizeram.

— 29...

— Acha que consegue movimentar as rodas tão rápido a ponto de


atropelá-lo? — Diogo observa, enquanto o outro sai cambaleando para fora

da sala.

— 27... o que você teria em mente?

— Posso te empurrar... assim você vai mais rápido...

— 25... gosto da sua sugestão. — Vejo Dênis pela porta entreaberta.

Não identifico que tipo de olhar ele lança para Phellippo, mas não
gosto.
Empurro a cadeira para sair da mesa e Diogo segura firme nela e me
leva em meio segundo para fora da sala.

— Sabe que ele pode abrir um B.O. contra nós dois por agressão, né?
— pergunto.

— Que ele abra três — Diogo chia e eu sinto que vou cair da cadeira a
qualquer instante tamanha é a velocidade que estou sendo impulsionado.

Dênis consegue entrar no elevador e aperta o dedo freneticamente no


botão, para que a porta feche. Mas a cadeira, Diogo e eu entramos com a
mesma intensidade, em cima dele, e meu punho fechado.

Eu só desejava que nada acontecesse aos meus bebês.

A sensação do corpo era como se eu tivesse corrido uma maratona, sem


me hidratar e sem me preparar. Cada parte de mim doía e minha cabeça
explodia de dor por causa de uma enxaqueca.

Tirando isso, minha recuperação foi muito boa.

Não lembrava de ter estado assim, desde uma dengue hemorrágica que
peguei há muitos anos e fiquei semanas no hospital.

Dessa vez, entretanto, em uma semana e meia fui liberada. Os bebês

estavam bem, só fui informada que o cordão umbilical enroscou no pescoço


de um deles, mas que isso era relativamente comum e que todos os cuidados
seriam tomados na hora do parto.

— Você pode terminar a gestação ou ter essas crianças a qualquer

momento. Então promete pra mim que vai repousar em casa, relaxar, não vai
se permitir ter qualquer estresse, Yasmin — Alissa pediu.

— Eu prometo, doutora, pode deixar.

Guilhermo e minha mãe vieram me visitar todos os dias. Era engraçado


porque meus bebês ficavam bem agitados durante a noite e quando
Guilhermo conversava comigo, de repente as coisas se acalmavam e parecia
até que os bebês entendiam que estava tudo bem.

Desde que fui internada não lembrava onde tinha deixado meu celular e

depois Diogo disse que não iria devolver, até que eu tivesse as crianças. E
ainda completou com um:

— Eu fui preso.

Disse com tanto orgulho e um sorriso estampado no rosto que eu fiquei


paralisada.

— Você ficou maluco? — Guilhermo bateu com a mão na nuca dele.


— Que parte do: ela não pode ficar estressada, você não entendeu?

— Como assim foi preso, Diogo? — Coloco a mão no coração, fecho

até os olhos.

— Quebrei na porrada o tal Dênis que te mandou as mensagens — ele


disse, se divertindo. — E eu empurrei o Guilhermo na cadeira de rodas pra
atropelar e passar por cima do maldito. Foi divertido, não faz essa cara.

— Ai Deus... mas agora está tudo bem?

— Sim. Seu irmão vai precisar fazer serviço comunitário. Não ia, mas a
boca dele é muito grande...

— O que você fez, Diogo?

— Ué, o policial perguntou: tinha intenção de matar? Guilhermo disse:


não. Eu falei: é lógico, né? Uma desgraça dessas, tem mais é que morrer, ué.
Aí me prenderam.

— E não te prenderam? — Encaro Guilhermo.

— Não, eu falei que empurrei a cadeira de rodas dele, contra sua


vontade, e passei sete vezes por cima do Dênis no chão.

Uma parte mínima de mim está aflita, porque já aconteceu. Outra parte
só quer rir, porque eu nunca imaginei que meu irmão fosse tão sem noção.

— Agora está tudo bem. Relaxe e não se preocupe com as loucuras do


seu irmão — Guilhermo diz e Diogo termina de me levar para o quarto.

Quando deito e só ficamos Guilhermo e eu, vejo-o de braços cruzados.

— Yasmin, você nos deu um grande susto. Poderia muito bem ter
contado tudo, não teria passado por nada disso. Lembre-se que independente
de qualquer coisa você tem a mim, ao seu irmão, sua mãe...

— Sim...

— Não quero dar lição de moral agora. Só durma...

— Guilhermo, tinha outra coisa.

— Outra coisa?

— Naquele dia, não foram só as mensagens e ligações do Dênis que me


fizeram isso... tinha outra coisa... eu li uns papeis, assinados por você.

— Por mim? O que diziam?

— Que quando nossos filhos nascessem — seguro na barriga porque

sinto um chute forte.

— Chega. Não fale mais nada...

—... você os tiraria de mim. E eu precisaria ficar distante.

— Quais papeis eram esses? Onde leu tamanha baboseira?

— Estavam na cozinha — é tudo o que consigo dizer, bocejo e me


cubro um pouco. — Estou com vontade de comer cocada...
— Vou buscar para você — ouço ele se aproximar.

Sua mão quente repousa em minha da minha cabeça, depois vai

descendo até chegar em minha barriga.

— Ninguém nunca vai tirar seus filhos de você, Yasmin. Nem o


Phellippo, nem os gêmeos que estão para nascer. Eu não vou deixar.

— Obrigada — digo baixinho.

— Eu estou aqui para cuidar de tudo. Não precisa se preocupar ou se


ocupar com nada, é só dizer e eu vou resolver. Não é só por você e pelos
bebês. É por nós, Yasmin. Eu preciso de você para que a nossa família fique
bem.

Ouvir isso me conforta de uma forma que o corpo parece mesmo


relaxar e se acalmar, depois de ter escutado que meu irmão foi preso. Ao
menos sei que fim Dênis teve e espero que não volte a se intrometer em
minha vida.

— Eu te amo, Guilhermo — digo baixinho.

— Eu também te amo, não se esqueça disso — ele diz.


“O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada.
Caminhando e semeando, no fim terás o que colher”.

— Cora Coralina.

Na manhã seguinte recebi uma visita inesperada: o corpo de advogados


de tio Alfredo e sua viúva, a aproveitadora, Heloísa.

O susto foi tão grande que precisei conferir a data para certificar-me de

que o prazo não havia terminado. Faltava menos de um mês para o


aniversário de morte e um mês da abertura do testamento.

— Bom dia, doutor Lamarphe. — O senhor Castro, advogado que


chefiava toda a questão, tomou a frente.

— Bom dia. — Encarei a todos sem mostrar qualquer sentimento.

— Como não recebemos notícias suas, viemos conferir como andam as


coisas.

— Ah, eu devia dar notícias? — Um sorriso breve me escapa. — De


quais notícias precisam?

— Se o herdeiro já nasceu. Ou se há previsão para seu nascimento — o


homem é curto e grosso.

— Não, o herdeiro ainda não nasceu — pondero e os convido a se


sentar, mesmo não estando feliz com a presença de Heloísa. — Por acaso,
gostaria de saber se há possibilidade de adiar a data...

— Adiar a data? — A voz dela me incomoda. — Por que faríamos


isso?

Evito respondê-la.
Dona Lúcia, que é muito educada e hospitaleira, oferece água, suco,
café e chá para os visitantes repentinos. Tento de todas as formas convencê-la

para que vá ficar com a filha, para que não precise ouvir sobre o contrato e
tome conclusões erradas.

— Yasmin e eu não conseguimos engravidar na data certa — suspiro.


Não como se me desse por vencido, mas com um alívio imenso de termos

chegado a esse ponto. — E agora está tendo problemas na gestação. Está de


sete meses.

— Sete meses? — A ex-amiga diz entredentes, chocada.

— Então não vão nascer a tempo? — um dos advogados observa.

Eles são ao todo, dez. Quase uma comitiva imperial.

— Espero que não. Ela precisa concluir a gestação no tempo certo para
que as crianças nasçam saudáveis.

— Quanta bobagem... — Heloísa revira os olhos.

— Tiveram o tempo estipulado — Castro observa. — 365 dias. Tempo


suficiente para cumprir os trâmites do testamento. Não há desculpa para esse
tipo de coisa.

— É uma gravidez de risco — é tudo o que consigo dizer.

Meu coração fica apertado e minhas mãos tremem levemente ao ter a


certeza definitiva agora, de que perderei tudo o que era de Alfredo para
Heloísa. Entretanto, não posso permitir que Yasmin arrisque sua vida ou a
dos bebês. Se vierem prematuros, podem não sobreviver.

— Pode adiantar o nascimento — um advogado de óculos redondos


diz.

— Está fora de cogitação. Yasmin teve uma hemorragia, quase morreu.


Os bebês e a mãe estão em estado delicado, não vou colocar a vida deles em

risco por isso.

— “Por isso” — um dos homens repete, num tom de admiração.

— Estamos tratando de uma herança bilionária, doutor Lamarphe —


Castro diz, me pressionando. — Que inclui patentes científicas, casas no país
e exterior, carros, uma parte do hospital...

— Eu sei.

— Daqui a um mês, ela terá oito meses. Pode estar apta a ter os bebês

— outro advogado comenta.

O papel da maioria deles é garantir que o testamento seja cumprido,


quer as coisas vão para Heloísa ou para mim. Alguns outros, poucos, são
advogados dela. E esses não escondem a felicidade, porque é um caso ganho.

— Vou entrar com uma ação para que adiem a leitura do testamento.
Tenho certeza de que não era da vontade do meu tio colocar a vida da minha
mulher ou dos meus filhos em risco.
— Era da vontade do seu tio que você cumprisse o testamento como foi
feito. Senão teria colocado 395 dias — Heloísa dispara.

Minha vontade é segurá-la pelos ombros e balançá-la até que


recobrasse um pingo de dignidade.

Como ela era capaz de fazer isso com a própria amiga?

Mas entendo o dinheiro falar mais alto.

— O que está havendo? — Yasmin aparece no elevador, precisa fazer


um esforço grande para não ficar curvada para frente, segura com a mão no
umbigo conforme caminha em nossa direção.

— Os advogados estão aqui com sua amiga... por causa do testamento


— digo com simplicidade.

— Heloísa, posso falar com você?

Yasmin me surpreende ao dizer isso. Sua mãe vem em nossa direção e

fica na sala, enquanto a ex-esposa do meu tio se levanta e a acompanha até a


cozinha.

Os advogados ficam quietos e a sala mergulha em um silêncio absoluto.


Heloísa não para de me encarar. Quando se senta em uma das cadeiras,

eu vou até a geladeira, pego um pouco de água para mim e retorno até ficar
diante dela.

— Quanto tempo...

— É... quase um ano que não nos vemos — suspira.

— Muitas coisas mudaram desde então, não é?

— Sim..., mas pra mim você ainda parece a mesma. Só está um pouco
maior e mais inchada do que quando teve o Phellippo. — Não há em sua voz
maldade ou um tom amargo.

Só vejo que está tão apreensiva, quanto eu.

— Você me odeia, Helô?

— Não, Mila, é claro que não te odeio. Vamos ser sempre amigas. Para

sempre.

Aceno brevemente com a cabeça.

— Entendo que tenha se apaixonado por ele ou aceitado uma proposta


melhor que a minha. Negócios são negócios...

— Às vezes não consigo dormir à noite, pensando que você me odeia.


Eu não pedi nada disso, Helô. Vocês me colocaram nessa situação... e
precisei seguir o meu coração. Aquilo que eu acreditava.

— Mila, você sempre terá a mim, independentemente de qualquer coisa

— ela tenta me acalmar. — Guilhermo disse há pouco que é uma gravidez


de risco. Você está de sete meses?

— Sete, sim.

— E já está deste tamanho?

— São gêmeos. — Acaricio a barriga. — Ou gêmeas, ainda não sei o


sexo dos bebês.

Uma coisa curiosa é que durante a minha gravidez o meu sexto sentido
me fez afastar e ignorar algumas pessoas. Não sei. Simplesmente não me
sentia confortável na presença de colegas de sala ou outros conhecidos, me
afastei. Mas com Heloísa me sinto à vontade, mesmo com um grande
problema de interesse entre ela e Guilhermo.

— Sabe que para receberem a herança, o Guilhermo precisa ser pai


antes do próximo mês, certo?

— Sim — respiro fundo.

— E o que acha disso?

Meus olhos se enchem de lágrimas.

— Eu não sei, Helô... eu não sei...


— Não chora... não precisa chorar...

— Eu sinto que falhei como mulher. Falhei como esposa, falhei como

futura mãe. Fico me culpando, mesmo que Guilhermo não queira mais falar
do assunto, porque ele já aceitou que não vai receber a herança.

— Oh... não chora. — Ela passa as mãos pelos meus ombros e me


abraça.

— Tenho medo de que um dia ele acorde e perceba que perdeu tudo
por minha causa. E a partir desse dia nunca mais queira olhar pra mim...

Preciso me sentar e respirar um pouco.

— Que rejeite as crianças, pois elas vão lembrá-lo para sempre tudo o
que ele perdeu... e que ele volte a se amargurar...

— Yasmin, me escute. — Heloísa me encara, séria. — Você precisa ser


forte. Você precisa acreditar em si mesma e no seu coração. Não é porque

estamos em lados distintos que vou me desfazer de você. Você e sua família
sempre terão a mim. E serão cuidados por mim, se necessário for. Mas seja
forte. E faça o que te fizer feliz.

A abraço de volta.

As palavras dela geram um alívio em mim, não porque diz que vai
cuidar de mim, mas porque era tudo o que eu queria ouvir dela nos últimos
onze meses que ficamos afastadas: confiar em meu coração.
Heloísa esteve ao meu lado, junto com Patrícia e papai quando todo
mundo achava que eu tinha destruído a minha vida ao ficar grávida de PH.

E me apoiou e me fortaleceu quando eu não tinha mais estruturas


quando perdi o meu pai.

Um alívio me consome porque aquela pessoa que eu tanto amei


continua aqui.

— Nenhum dinheiro ou herança vai me fazer te abandonar. Eu te amo,


boba. — Ela passa a mão em minhas costas. — E espero que um dia você me
convide para conhecer seus filhos.

— Vou sim...

Heloísa limpa meus olhos e eu limpo os seus, porque está chorando


também.

— Confie em seu coração. — Ela aperta minhas mãos e sorri. — Seja

feliz!

— Eu vou ser... eu já sou.

— É só isso que importa, Mila. Te amo — ela se despede, continuo


sentada e emocionada, aceno e a assisto sair da cozinha.

Levo meu próprio tempo até colocar o copo na pia e seguir para a sala,
agora vazia. Guilhermo e mamãe estão voltando de lá de fora, pelo visto os
visitantes já se foram.
— Minha filha, você está bem?

— Sim, mamãe. Pode subir? Quero conversar com o Guilhermo.

— É claro — ela diz, passando sua mão pelo meu braço e vai até o
elevador.

— Aconteceu alguma coisa? — Guilhermo fica apreensivo.

Passo por ele até chegar ao jardim lá fora.

— Estou bem sim...

— Não quer se deitar?

— Você vai perder a herança? — Vou direto ao ponto.

Ele ergue os olhos em minha direção, a boca fica entreaberta para me


responder, mas não diz nada. Seus lábios se fecham e abrem um sorriso de
canto, muito brando.

— Vou perder, sim. E ganhar o que importa: uma família.

— Tem certeza? Não acha que teria outras opções?

— O que quer dizer, Yasmin?

— Você vai perder tudo. TUDO. Tento pensar se isso fosse comigo e...
se eu perdesse tudo o que meu pai deixou... eu preferiria morrer. Pois eu o
perderia, para sempre.

Guilhermo se aproxima e me puxa pela mão, me faz sentar em cima de


si. Empurra a cadeira de rodas bem devagar, enquanto passeamos ao redor do

jardim.

— Eu nunca vou perder o Alfredo — diz. — Vou levar comigo, para


sempre, todos os ensinamentos que me deu e todas as broncas também. Ele
vai permanecer vivo, porque me ensinou a curar pessoas e enquanto eu
continuar a fazer isso, não vou perdê-lo.

— Mas e o hospital?

— Vai continuar funcionando. Foi feito pra salvar gente, dar


oportunidade para bons médicos e vou fiscalizar para que continuem a fazer
isso. A herança bilionária — Guilhermo sacode os ombros. — Quem liga?
Vou ter você e nossos filhos. Um dia teremos netos e quando os pegarmos no
colo, saberemos que aquela herança é maior do que qualquer outra.

Fecho os olhos ao sentir seus lábios em meu rosto e seu nariz descendo
pelo meu pescoço.

— Eu tenho dinheiro. Você tem talento. Somos esforçados. Acha que


precisamos de um bilhão de reais para sermos felizes e viver bem?

— Não.

— Sabe quantos zeros tem um bilhão?

— Muitos? — rio e ele vai espalhando beijos pelo meu braço.

— Será que um bilhão de reais pode comprar um neném que depois de


passar nove meses em sua barriga e mais doze meses fora, diz pela primeira
vez: “mamãe”?

— Eu acho que compra. — Faço uma careta e acaricio o rosto dele.

— Não, bella donna. — Ele segura em meu queixo e me encara bem de


perto. — Um bilhão de reais não vale uma vida inteira com você e as nossas
crianças. E vamos ser capazes de fazermos o triplo disso juntos, você e eu.

— Vou precisar fazer muitos vestidos... — Balanço os ombros.

— E eu vou precisar curar muitos corações — ele sorri. — Acha que


pode ficar ao meu lado enquanto tentamos conquistar isso juntos?

— Sim.

Não sei o que estou sentindo. Se é medo, inquietação, excitação. Só sei


que tenho esperanças para o futuro. E sei que se Guilhermo permanecer
comigo, tudo vai ficar bem.

— Aqui. Toma. — Ele me entrega uma nota de cem.

— Pra quê isso?

— Agora só faltam novecentos e noventa e nove milhões — semicerra


os olhos. — Novecentos e noventa e nove mil... e novecentos — suspira
quando termina.

Meu Deus. É muita coisa.


— Não, não, não... não faz essa cara, vamos conseguir.

— E se não conseguirmos? — Ouvir tudo aquilo me deu um tiro de

realidade.

— Não precisamos conseguir, boba — Guilhermo murmura, em frente


aos meus lábios. — Ainda podemos ver o sol se pôr numa praça e não gastar
nada. Vamos ser criativos.

— Promete que nunca vai me odiar, ou aos seus filhos, por te fazermos
perder isso?

— Yasmin, eu juro te amar e amar nossos filhos, por me ensinar o que


importa.

Deito a cabeça no ombro dele e fecho os olhos. Espero que ele se


lembre dessa promessa, pois irei cobrá-lo, caso precisar. Mas me esforçarei
para nem precisarmos lembrar de tal coisa.

Boa parte desse ano que vivi com Guilhermo, a última coisa que pensei
foi na herança. E pelo visto, ele também.

Sempre tão preocupado comigo e com o meu bem estar... atencioso e


galanteador, tão gentil com PH e minha família... não vejo a hora de terminar
logo minha faculdade, dar à luz a esses bebês e trabalhar duro para
conquistarmos tudo o que quisermos juntos.

Como a família que sempre sonhei.


ANOS ATRÁS

Foi difícil encontrar tio Alfredo.

O posto de saúde fica no meio de um sertão que mal tem poste de luz.
Ao longínquo é possível ver uns casebres, a maioria deles rodeados de poços,
árvores e umas cabras.

Quando o comboio me deixa no ponto, segue a estrada. E eu entro no


posto lotado, uma fila de espera gigantesca. Fico ansioso para encontrá-lo,
mas não me deixam entrar até que ele termine de atender uma senhora que foi

picada por uma cobra.

— Guido! — ele diz animado, limpa o suor da testa com o dorso da


mão e bate em meu ombro. — O que veio fazer aqui?

— O que o senhor veio fazer aqui? — eu que pergunto.

— Estavam sem médico. — Põe as mãos dentro do jaleco. — E


precisavam tanto...
— Aí mentiu que tiraria férias nos Estados Unidos para vir para cá?

— Eu disse que ia ao norte. Não te parece ao norte suficiente de São

Paulo? — meu tio ri.

E eu o reprovo com um aceno de cabeça.

— Isso te parece lugar para um dos melhores cirurgiões deste país,

trabalhar? — Olho ao redor.

A pequena sala de consultas é deplorável. Estou temeroso de ver onde


eles guardam vacinas, soro e se até têm máscaras ou luvas.

— Deveria ser — Alfredo põe a mão nas minhas costas, saímos e


conferimos o posto vazio, os únicos dois funcionários do lugar se preparam
para ir embora.

— Não entendo...

— Saí da Itália há taaaanto tempo... meus pais queriam que eu entrasse

pra máfia, porque dava dinheiro e fama. — Faz uma cara azeda. — Mas eu
sempre fui um intelectual, um homem dos conhecimentos, não das armas...

— E aí veio parar aqui? — provoco.

— Sim. Neste país! — diz exultante. — O Brasil me deu tudo... e mais


um pouco. E é um lugar tão diverso! Consegue imaginar que o mesmo país
que tem o Rota da Vida, também tem esses postinhos abandonados no
interior do sertão, que quase não aparecem médicos?
— E isso é problema seu porque...?

— Não é problema meu. — Estala a língua. — Mas eu sou um

sonhador. Meu ofício é quem eu sou. Não sei ser outra coisa senão médico.
Não saberia ser mafioso, não saberia ser príncipe, só sei curar gente. E é
preciso curar gente em tanto lugar... Por que não aqui?

Procuro uma réplica que coloque um pingo de juízo em sua cabeça,

mas ele parece alegre demais.

— Faz isso há quanto tempo?

— Desde sempre, é claro. — Balança os ombros. — E vir em lugares


como esse me faz perceber o quanto sou sortudo e tenho tudo, mesmo que às
vezes sinta que preciso de mais. Será que preciso?

— Conversa estranha. — Marcas de expressão devem se formar em


minha testa, pelo semblante que faço.

— Guido, precisamos ser gratos à terra que nos recebeu. Ao povo que
nos acolheu. E a sorte que nos abençoou na jornada. Só descobrimos quem
somos quando nos deparamos com lugares ou posições que não pretendíamos
estar. E este é um deles.

— E quem você é? — provoco.

— Eu ainda não sei. — Segura em meus ombros. — Mas sei que


nunca estive tão perto de descobrir.
“O destino dos homens é feito de momentos felizes, não de épocas
felizes”.

— Friedrich Nietzsche.

NO PASSADO
Era um dia quente e abafado, saí cedo do hospital para acompanhar o

velório de um homem que foi meu paciente.

Ao chegar no local em que estava sendo velado, cumprimentei a


família e encontrei um ou dois amigos que também eram clientes dele.
Amauri do Amor fazia ternos muito elegantes, sem falar em vestidos de

casamento que eram capazes de tirar o fôlego de quem os via.

— Era um homem bom. Veio para São Paulo realizar seu grande sonho
que era costurar para a alta sociedade... — o amigo dizia.

— Conseguiu — pondero, não prestando muita atenção no assunto.

Desde que cheguei ao local, não consigo tirar os olhos de uma criança
que está nos braços de uma jovem mãe.

Ele tem olhos azuis que me lembram nitidamente os olhos do meu pai.

Não sei se é saudade, não sei é a amargura de ter saído da minha terra e
evitado voltar... e quando a criança olha para mim, fico inquieto.

— Como vai a escola hospitalar do Rota da Vida, Lamarphe?

— Vai bem...

— Não pensa em se aposentar? Nunca conheci um homem que mesmo


depois de fazer fortuna, trabalhasse tanto!
— Talvez o Silvio Santos — respondo com bom humor. — Se me dão
licença...

De longe tive uma visão que pareceu miragem e precisei me aproximar


da família, reunida em volta do caixão. A pequena criança de olhos azuis tão
chamativos estava só com uma calça preta, a avó a abanava, devido ao calor.
Não vi sinal da mãe por ali.

“Só três coisas deixam rastros por onde passam: a mentira, o amor e o
DNA” a voz de Elizabeth soava em minha mente.

— Obrigada por vir, doutor. O senhor salvou meu marido no passado...


tenho certeza de que se tivesse tempo, o salvaria de novo — a mulher diz
enquanto balança levemente a criança.

Seus olhos azuis me hipnotizam que não consigo abrir a boca e dizer
algo.

— Mas ele viveu uma vida boa... correu atrás de tudo o que quis... — a

mulher continuava.

— Essa mancha nas costas do bebê — aponto. — Ele se machucou?

Há uma mancha café com leite nas costas da criança, bem abaixo de
seu ombro. Ela lembra o formato do mapa da Itália, o formato de uma bota.
Tenho uma igual. Meu pai dizia que só nascia nos filhos que tentavam fugir
de lá. Que a terra os chamava e que um dia eles teriam de voltar.
Só uma outra irmã nasceu com essa marca, que simplesmente sumiu
enquanto crescia. A minha nunca desapareceu. Nem mesmo a de Guilhermo.

— O Phellippo nasceu com ela — a avó diz com um sorriso


acalentador. — Passamos em um médico, ele disse que não é sinal de câncer
ou de coágulo no sangue. Algumas pessoas nascem com marcas de nascença.

— Sim — concordo. — Será que eu posso?

— Claro — a mulher me estende a criança e quando o pego no colo,


meu coração dispara de um jeito que não consigo explicar.

Sua mãozinha vai direto em meu nariz e o aperta com força. Me


examina com a minúcia das crianças, um sorriso bobo e expressão de
serenidade.

— E alguém de sua família tem tal marca de nascença, senhora do


Amor? — pergunto.

— Isso é que é curioso... não. — A mulher massageia os braços, quase


que os alongando, depois de ficar segurando o neto grande e pesado para uma
criança dessa idade. — Deve ter puxado da família do pai.

E ao fitar os olhos do menino, tudo o que tenho a dizer é:

— Certamente.
ATUALMENTE

— O meu maior desejo é que o Alfredo esteja queimando no inferno


agora — desabafo. — Depois de tudo o que me fez passar, é o mínimo que
ele merece.

— Mas valeu à pena? — Lisa pergunta.

— Se valeu à pena? — Estalo a língua e viro o rosto, de braços


cruzados.

Foi difícil contar aos meus amigos que perderíamos tudo da herança.

Lisa aceitou bem, o único comentário que fez a respeito de tudo foi:

— Contanto que a saúde da Yasmin e dos bebês seja preservada, creio


que é a coisa certa a se fazer.

Ayslan ainda estava de cara amarrada e me encarava com desconfiança.

— Como pode ficar assim? Não percebe que a mulher perdeu sangue e
pode ser delicado interromper a gestação agora? Bebês desenvolvem muito
nos dois últimos meses, principalmente no último. Ela precisa aguardar.

— Não estou assim por esses motivos. O Guilhermo mentiu, tentou nos

enganar, antes tivesse nos preparado desde o começo, para perder tudo. Eu
não me preparei!

— Então se prepara — Lisa o censura com o olhar. — Podemos viver


bem sem as coisas do Alfredo.

— Tomara que ele esteja queimando no inferno — é tudo o que Ayslan


diz.

Lisa fica alarmada. Quando sai de mim, parece que não liga.

— Ele gostava do calor. Era um homem tropical. — Ayslan balança os


ombros.

— Nunca vi alguém que gosta tanto de ressurgir dos mortos. —


Respiro fundo e estendo meu celular para Lisa. — Será que ele não podia

morrer e nos deixar em paz?

— Quem te mandou esse e-mail?

— Ele!

— Mas ele está morto, mortos não mandam e-mails. — Ela arqueia a
sobrancelha.

— É porque você não conheceu o meu primeiro orientador do TCC. —


Ayslan pega o aparelho e confere a foto. — Legal, uma mancha nas costas.

— É uma marca de nascença — o corrijo. — Também tenho.

— Cadê aqueles textos poéticos dele? Ao menos aquilo fazia sentido,


agora o homem sem camisa mostrando a mancha nas costas é meio
estranho... — Ayslan me devolve o celular.

— Mais uma das infinitas charadas que ele gostava de contar.

Deixamos esse assunto de lado e voltamos a tratar sobre o hospital.


Precisamos impedir que comece um desmonte do que Alfredo construiu, já
que não terei mais a prerrogativa de ser dono de parte do lugar, estou caçando
outra estratégia.

— Negociar com a Heloísa não é opção?

— Ela tem cara de que vai manter algo? Vai vender a parte dele do
hospital quando tiver a primeira oportunidade. Junto com aquelas obras de

arte, os carros e casas.

— As artes. — Ayslan cobre o rosto e curva o corpo.

— Pelo menos tente atrasá-la. Deve caber algum recurso...

— Alfredo não tinha descendentes vivos que pudessem lutar pela


herança. E deixou claro no testamento o que queria que fosse feito. E não o
retificou antes da morte, aquilo era antigo, de pelo menos um ou dois anos
atrás.
— Ele já tinha previsto que iria se casar?

— Acho que sim. Dá pra imaginar?

— Que homem de visão! — Ayslan comprime o lábio. — Quero te


pedir desculpas, se pareci um idiota. A culpa não é sua, nem da Yasmin. E
você está certo, não podemos deixar que essa herança suba à nossa cabeça e...

Ele interrompe a fala, só percebo o porquê quando viro o rosto e vejo


Phellippo vir até nós, andando todo desengonçado e travado. Para ao meu
lado e puxa minha mão.

— Guillermo.

— Sim, PH?

Mesmo ao meu lado ele me chama com a mãozinha, para que eu abaixe
o rosto.

— Quero fazer cocô.

— Você não faz sozinho?

O menino acena negativamente.

— Onde está sua avó?

— Saiu.

— E do que você precisa?

— Segura minha mão — ele cochicha.


— Quer que eu vá? — Lisa se prontifica. — Ele já usa o troninho,
como que é?

— Sempre é a Yasmin ou a avó que cuidam disso. Podem deixar, eu


vou — tranquilizo todos e o acompanho até o banheiro do andar de baixo
mesmo.

Está nítido que PH não vai aguentar muito.

Ao chegarmos no banheiro, percebo que não tem o suporte que PH


precisa para apoiar os pés e encaixar direito na privada. Vou o mais rápido
que posso até o elevador, ele até faz menção de me seguir, mas não consegue
mais caminhar.

Pego tudo o que preciso no andar de cima e retorno ao banheiro.

O menino já está todo despido e tremendo, só esperando que eu


coloque o assento do seu tamanho encaixado no sanitário, nem precisa direito
da escadinha, seus pés alcançam facilmente o chão.

— Segura minha mão — ele estende.

— Você é bem alto, não precisa ter medo de ficar entalado — tento
explicar, mas ele insiste que eu a segure.

E lá vamos nós. Viro o rosto para dar o mínimo de privacidade, que a


criança parece não se importar e ele faz rápido o que precisa.

— Na creche como que você faz? As professoras precisam segurar sua


mão?

— Não faz. — Ele balança os ombros. — Só faz cocô em casa.

— Isso faz muito mal pra flora intestinal — penso alto.

— Quem é flora?

— Deixa pra lá... terminou?

Phellippo só solta a minha mão quando sai do vaso sanitário, dá


descarga e se limpa de um jeito que puxa todo o papel higiênico, que se
esparrama no chão.

— Banho — ele pede. — Tô sujo.

— Você toma banho sempre depois de fazer cocô?

Ele pensa um pouco e acena positivamente.

Que criança estranha. Tira toda a roupa para fazer as necessidades e


depois toma banho.

Até parece comigo.

PH vira de costas e tenta colocar o papel higiênico de volta no rolo,


mas na verdade só continua a fazer sua bagunça. Quando estou prestes a
reclamar e levá-lo ao chuveiro de uma vez, paro, fitando suas costas.

É como uma flecha inesperada que voa tão rápido e atinge o alvo e é
impossível saber de onde veio. Um daqueles momentos da vida que parecem
estar nas páginas de Machado de Assis.

— O que é isso? — Passo o indicador na marca que vejo.

— Costas — Phellippo responde como se fosse um teste pra escola.

— Não, isso aqui — passo o dedo com mais força, como se pudesse
apagar a mancha, que permanece onde está. — De onde veio isso?

A criança me encara com o mesmo tom confuso que estou.

— Banho? — É a resposta que encontra.

Fico tão paralisado no momento que a única coisa que consigo fazer é
ver diante dos meus olhos tudo voltando em câmera lenta, tão rápido que leva
menos que um segundo. Começa neste momento e volta para a primeira vez
que vi Yasmin.

— Não pode ser.

— Mas eu quero banho — o outro conclui.

— Tá, vamos lá.

Embora todos os lugares da casa tenham sido reestruturados para serem


acessíveis a mim após o acidente, esse banheiro é o que tem menos espaço,
por isso nem box tem, o chuveiro fica no canto oposto em que está a pia.
Entrego o sabão para Phellippo e ligo o chuveiro, sem me importar muito que
estou me molhando.
Ele passa em si mesmo de uma forma engraçada e rápida.

— Pronto, tô limpo — ele diz alegre.

Esfregou o sabão em menos de três segundos.

— Me dá — pego de volta e passo direito em seus braços, esfrego suas


costas com o coração na palma da minha mão, os dedos quase deixando o

objeto escorregar. — Lava esse bumbum direito.

— Lavar bumbum — ele esfrega as mãos no sabão e se banha.

Ao limpar toda a espuma que escorre pelo ralo logo abaixo de si, a
mancha não sai.

— Limpo! — o menino diz alegre, preciso segurá-lo com a toalha,


senão vai sair correndo pela casa.

— Vamos secar esse cabelo e esses braços — digo, não importa o


quanto eu deslize a toalha por suas costas, é algo que está na pele dele, não

vai sair. — Vem cá.

Ignoro as roupas que ele estava e o coloco em meu colo, enrolado na


toalha. Volto para a sala, Ayslan e Lisa estão discutindo fervorosamente
alguma coisa, quando os interrompo.

— Vocês precisam ver isso!

— Ele cagou em você? — Ayslan ri. — Por que você está todo
ensopado?

— Olha! — insisto.

Viro Phellippo para que mostre as costas a eles. O pequeno ergue a


mão e aperta meu nariz, fica rindo enquanto me olha.

— Mas o que é isso?

— Eu não... — Lisa perde as palavras. — Você colocou isso aí?

— Eu não coloquei nada, já estava assim!

— Tecnicamente ele deve ter colocado isso aí — Ayslan ergue a


sobrancelha.

— Mas você não disse que tinha passado por cima do pai dele com a
cadeira de rodas? — Lisa permanece com um semblante cético que vai se
desmanchando a cada segundo.

— Vai ver o cara só achava que era o pai... sei lá... — Ayslan volta a

ficar animado. — Olha bem pra cara dessa criança!

Phellippo vira em direção a ele.

— Não te lembra alguém?

Lisa acena negativamente com o rosto e eu semicerro os olhos.

— Bom... ele é mais bonito que você, tem o rosto simétrico da mãe e os
olhos não parecem com os seus — analisa.
E eu o viro novamente para mostrar a marca nas costas.

— É a marca do Alfredo — ela pisca os olhos.

Preciso entregar a criança no colo de Ayslan, retiro a camisa úmida e


giro a cadeira para mostrar as minhas costas.

— Ah, você também tem! — ela diz surpresa. — Nunca vi isso aí!

— Cara... é igual... — Ayslan fica sem palavras.

— Mas como ele tem a mesma marca? Não entendi — Lisa coça o
queixo com o indicador.

— E o Alfredo dizia que de nós três ela era a mais inteligente... —


Ayslan provoca.

— Guillermo? — Phellippo me chama com sua mãozinha, para que eu


me aproxime.

— Oi, PH. — Mal consigo falar. Tem algo preso em minha garganta,

parece que o coração vai sair pela boca e estou sentindo meu corpo formigar.

— Você vai fazer cocô? — ele diz, após me observar sem camisa.

Até preparo a negativa, mas a boca treme a ponto de não conseguir


falar.

— Eu seguro sua mão. — Ele sacode a cabeça.


“Todo voo começa com uma queda”.

— George R. R. Martin.

Ao acordar tive que lidar com toda a euforia de Guilhermo. Phellippo


também estava muito contente e agitado, só não devia saber o motivo, estava
imitando o adulto, como sempre fazia.

— Quando essa mancha apareceu no PH?

— Hmmm... na verdade ele já nasceu com ela. Por que a pergunta?

Fui respondida com um virar de costas, Guilhermo tirou a camisa e


ficou em silêncio. Precisei apurar os olhos, examinar tudo com mais cuidado.

O pequeno ficou de costas também, tentando espiar para trás, não sei se para
conferir minha reação ou tentando encontrar a tal mancha.

— Como isso foi parar aí? — Passo os dedos por cima das costas do
adulto.

— Desde que nasci — ele se vira, intrigado. — Nunca reparou?

— Não... — tento recobrar na memória todas as vezes que o vi sem


camisa, mas ou estava na cadeira de rodas ou dentro da piscina. — O que isso
significa? — Fico atordoada.

— Precisamos fazer um teste de DNA.

— TNA — a criança concorda.

— Não, Guilhermo, não é possível...

Tento me lembrar da época que o conheci e perdi a minha virgindade.


Eu continuei menstruando após aquilo...

— Você usou camisinha, não lembra?


Ele sacode a cabeça, tentando se lembrar, mas parece que a informação
não vem de imediato.

— Pode ocorrer sangramento no início de uma gestação, mas isso não


significa menstruação — ele avalia em seu tom médico. — O que você acha
de um teste de DNA? Permitiria?

Arregalo os olhos, tão surpresa que fico.

Acho que o ponto não é permitir ou não, mas me parece impossível


essa hipótese. Os olhos de PH são bem parecidos com os de Dênis, enquanto
os de Guilhermo são mais prateados, lembram vagamente o azul forte da
criança.

Além de que, tenho quase certeza que Dênis fez de tudo na época,
inclusive um teste de DNA, para fugir de suas obrigações como pai.

Por que ele assumiria um filho que não era dele?

— É claro... — digo ao perceber que ainda aguardam uma resposta. —


Mas não tenha tanta esperança...

— Guillermo, o que é TNA?

— DNA — o outro ri e corrige a criança. — É um ácido


desoxirribonucleico que tem dentro de cada um de nós, que conta nossa
história e informação genética — parece que é ainda mais divertido contar
isso pra criança, que não vai entender nada.
Phellippo olha para mim, seus olhos vagam pelo quarto e o dedo vai na
boca.

— Ácibuxibuxi — o pequeno conclui.

— Entendeu?

— Entendeu — responde e espera o adulto sair pela porta do quarto.

PH sobe pela cama, fica ao meu lado e segura em meu braço.

— Não entendi nada — me confessa.

Tentei não pensar muito no assunto, para não alimentar falsas


esperanças e acabar me sentindo culpada, como antes.

O que me confortava era o fato de tudo estar indo bem nessa fase final
da gestação, Guilhermo e Phellippo se entrosando naturalmente, como
sempre.

Como anteriormente não havíamos feito o curso de gestação,


aproveitamos para fazê-lo.

Boa parte das coisas eu já sabia e foi emocionante ver mamães de


primeira viagem – a maioria deles com o barrigão menor que o meu – com

seus companheiros, tirando dúvidas e aprendendo como cuidar do bebê.

Mas alguém parecia até que estava estudando para o vestibular de


novo...

Fazendo mil anotações na apostila, perguntando cada minúcia, cada


coisa. Foi divertido ver o lado nerd e estudioso de Gui.

— Mas como você sabe o motivo que o bebê está chorando? — Me


perguntou em algum momento, talvez perplexo pela minha tranquilidade.

— Você aprende... vai descobrindo conforme os dias passam... percebe


que chorou porque a fralda está cheia... percebe que chorou porque está com
fome... quando tem cólicas...

— Ainda bem que tenho uma especialista comigo, eu pediria uma


tomografia a cada choro — avalia.

Foi bonito ver como ele era cuidadoso ao dar banho no bonequinho e
espiava os outros pais para ver como se troca uma fralda.

— Não olha com essa cara pra mim, já troquei algumas fraldas na vida
no meu período de residente, só não eram de bebês — resmungou.

E a melhor parte, é claro, foram os exercícios de relaxamento e de


amenizar a dor durante o parto.

Pensei que Guilhermo ficaria envergonhado de sair da cadeira de rodas


e vir para o chão fazer as dinâmicas comigo, principalmente porque estava
em um ambiente que os professores o conheciam, já que estávamos no Rota

da Vida. Mas não.

Ele sentou no colchonete fino no chão, com as costas apoiadas na parte


e eu me encaixei entre suas pernas, recebi uma boa massagem nas costas e na
barriga. Tiramos um tempo para fazer o que era comum no dia a dia, nisso ele

sempre foi muito cuidadoso e atencioso.

— Não deve ser tão difícil — ele concluiu quando já estávamos no fim
de tudo.

— Não é. Assusta no primeiro momento, quando eu era inexperiente e


não sabia o que fazer, era aterrorizante... agora vai ser bem mais fácil.

— É tipo cuidar de um coração — pensa.

— É... acho que é um bom exemplo. É delicado e precisa de muita


calma...

— Vamos nos sair bem, somos uma boa equipe — encosta a cabeça na
minha e ficamos assim por um tempo. — Antes de irmos pegar o resultado,
quero te mostrar meu lugar preferido no hospital.

— Claro, vamos lá!

Eu sempre me divirto quando as enfermeiras e os médicos tratam com


ele, porque ficam sem graça. E sair dali e passear pelos corredores do hospital
é saber que vão tentar pará-lo, pedir informações ou simplesmente
cumprimentá-lo.

— A maternidade — Guilhermo apresenta um corredor cujas janelas


são grandes, quase do tamanho da parede, e é possível ver o berçário da
maternidade.

Em algumas salas existem berços rodeados de aparelhos, acho que

incubadoras. Em outros, só as caminhas mesmo, com vários nenéns: uns


sorrindo para o nada, outros coçando o rosto com a mão envelopada, alguns
dormem tranquilamente e três médicas estão supervisionando cada um.

— Alfredo dizia que era o meu placebo.

— Placebo, como assim?

— Era só vir aqui e instantaneamente eu ficava bem. Conseguia


esquecer um dia estressante ou apaziguar a minha mente das névoas que a
cobriam.

— É um lugar muito bonito mesmo — encosto no vidro para ver todas


as gracinhas.

— Queria que ele tivesse tido a chance de conhecer um filho meu...


pegar no colo... saber o nome... acho que se sentiria feliz. Deve ser por isso
que pediu para que eu tivesse filhos, acho que ele enxergava em mim um
bom pai. Coisa que eu não conseguia ver.
— Conseguia? — me surpreendo ao ouvir isso.

— Eu vou ser um bom pai, eu te prometo — beija minha mão. — Vai

ser fácil, com você ao meu lado não vejo qual seria a dificuldade.

— Lembre-se que vão ser dois... ou duas... vai ser algo novo pra mim
também.

— Vamos dar conta — ele diz e saímos do lugar.

Meu coração parece que vai sair pela boca ao lembrar que estamos indo
buscar o resultado do teste de paternidade dele.

Não quero alimentar esperanças, nem sonhar com algo tão improvável,
mas seria estranhamente bom.

Só de saber que não tenho uma conexão com Dênis, vou lavar a alma.

— Pronta? — ele mexe no envelope e eu me sento, apreensiva.

Fecho os olhos e quando abro uma pequena fresta para espiar, ele está

rindo, de braços cruzados, me encarando.

— Você está bem?

— Estou suando frio...

— Não importa o resultado, Yasmin — Guilhermo fica sério. — Vocês


são a minha família e vou cuidar de vocês. Não vou deixar que nada nem
ninguém possa machucá-los. E vou amar o Phellippo da mesma forma que
amarei os nossos filhos. Essa formalidade não significa nada...

—... Além de uma herança bilionária — cruzo os dedos.

— Não encare como um papel de loteria... — desdenha. — Bom,


vamos ver se pelo menos acertei na quina... — diz.

Guilhermo abre o envelope com o papel virado para mim. Eu vejo os

números, não entendo absolutamente nada e não consigo descer a visão para
ver o que diz no final.

— Vê você, não sei analisar isso — percebo que ele está com o dedo
em cima do resultado.

— Eu sei que ele é meu filho — os olhos de Guilhermo brilham e abre


um sorriso de canto. — Eu sinto, dentro de mim. Eu vejo meu avô nele.
Quando me imita, parece que estou encarando o espelho, de uma versão
melhorada de mim.

Agora sou eu quem quer ver o resultado. Espeto o dedo dele para que
saia de cima, mas Guilhermo movimenta o exame de um lado para o outro,
para que eu não alcance.

— Eu acho que entendi o que o Alfredo fez.

— Como assim?

— Foi ele, Yasmin...


— Como assim?

— Alfredo deve ter descoberto tudo, de alguma forma, antes de nós

dois... e tentou impedir que ficássemos juntos, porque estava obstinado para
que eu seguisse seus passos e me tornasse uma versão dele. E era isso o que
eu sempre quis... até te conhecer.

— Eu... eu não entendo, Guilhermo.

— Mas algo deve ter mudado o coração dele... e ele tentou reverter o
que fez no passado...

— Eu não entendo...

— Alfredo estava encobrindo que Dênis havia cometido um erro no


hospital. Recebi as gravações e atas que sumiram em um pacote assinados
por ele. Ele queria, de alguma forma, proteger Dênis e mantê-lo aqui. Como
se ele tivesse alguma missão, como se encobrisse algo... agora eu entendo...

Quanto mais ele fala, menos eu sei do que se trata.

— Ele queria que eu fosse igual a ele. Bem, eu achei que queria ser
igual a ele... até te conhecer. Até sentir em cada parte do meu corpo que não
podia deixá-la ir. E só lembrar e pensar em você após meu acidente...

Guilhermo afasta o dedo que segura em cima do resultado e vemos


juntos.

Probabilidade de paternidade: 99,9998%


QUATRO ANOS ATRÁS.

Guilhermo não me respondeu a noite inteira.

Assim que amanheceu corri para sua casa e usei minha chave para
entrar, encontrei seu celular largado no sofá e praguejei bastante ao conferir
minhas ligações perdidas.

Marchei até a cozinha para beber água e respirar fundo, aproveitei para
checar o estado da casa. Visitei a adega na parte subterrânea, conferi a

biblioteca, fiquei feliz ao ver que meu sobrinho continuava aplicado.

Para ser como eu e assumir tudo o que construí, ele precisava se manter
centrado em boas atividades e não deixar que nada no caminho o impedisse
de conquistar tudo à sua frente.

Ao retornar para a sala, não encontrei sua pasta social, só um bilhete


que parecia endereçado a uma mulher, que ainda devia estar no lugar.
— Sem distrações — torci o nariz e rasguei o bilhete. Escrevi um eu
mesmo, imitando sua caligrafia. — Esse garoto ainda tem tanto a aprender...

— suspiro.

Dois anos atrás.

Já não conseguia dormir há dias.

Não sei se o estopim do mal-estar que me consumia era o diagnóstico


do meu médico, o acidente que deixara Guilhermo em coma ou a visita de
Elizabeth que me sacudiu para a vida.

— Eu não posso perdê-lo — era tudo o que eu dizia.

Assisti-lo dormir era doloroso.

E era ainda pior quando acordava e não se lembrava nem de mim. Só

de uma tal Yasmin, que com a riqueza de detalhes que descrevia, eu podia
ver diante de meus olhos uma garota descendo as escadas de sua casa,
pegando o bilhete que eu escrevi no passado e partindo, furiosa, sem nem
olhar para trás.

Isso misturado com as palavras de Elizabeth sobre a morte da mulher


que um dia chegou até Guilhermo e disse estar grávida dele, me deixaram
paranoico.
Teria sido a mesma mulher? Não podia ser.

Viajei até o lugar deixado a mim, um belo lugar com vista privilegiada

para o mar e uma terra extensa e frondosa, onde tudo parecia ter vida.

Era o mesmo lugar.

Exatamente onde eu trouxe Elizabeth no passado, para consultar-se

com uma cigana.

Essas coincidências malditas me deixaram louco e passei dias isolado


ali, tentando entender o que significava.

Não consegui decifrar.

Mas encontrei uma caixa que guardava um celular que continha as


gravações entre Paola e Paloma: as ameaças para que permanecesse onde
estava, que continuasse a enganar Guilhermo, que conseguisse tirar dele a
herança que receberia.

— O que isso significa?

Não entreguei à polícia.

— Volte para São Paulo agora à noite, Paloma, e venha sozinha.


Precisamos conversar — era a última coisa que Paola lhe dissera e então, o
acidente.

Guardei comigo isso até receber o ultimato do meu médico: eu tinha


um ano de vida, numa perspectiva otimista.

Um ano para consertar todas as coisas que arruinei ou omiti. Um ano

para tentar salvar em Guilhermo tudo o que tentei construir nos últimos anos:
um homem frio, centrado no trabalho e dedicado ao maior bem que
possuíamos: o hospital.

— Nossos ancestrais cometeram erros — Elizabeth dizia num sussurro,

em meus sonhos. — E ainda assim estamos aqui, porque os erros eram


necessários. Conserte os seus, Alfredo. Ainda não consegue entender, mas
isso mudará tudo...

Conhecer o meu neto foi como a punhalada no peito que eu precisava


para enxergar a pessoa que fui.

Os olhos lembravam o do meu pai, mas não eram serenos e bondosos,


do homem que disse: vá, meu filho, se é o que sonha, vá ao Brasil.

Eram olhos de denúncia. Olhos que eram mãos e me estapeavam o

rosto para lembrar o homem ruim que fui e que merecia um final pior ainda.

A essa altura da vida, não conseguia entender porque tomei algumas


atitudes, ao mesmo tempo que tentava justificar o que fiz. Guilhermo não
precisava de distrações, estava indo bem, era cotado para me substituir e já
conseguia me substituir em todas as cirurgias da cardiologia, tão hábil que se
tornou.
Ver uma das minhas advogadas no enterro do pai de Yasmin, acendeu
uma lâmpada em minha cabeça.

Entreguei a criança a avó e a puxei para o canto, para tratarmos de


negócios.

— Heloísa, preciso retificar meu testamento.

— Faremos isso sim senhor, doutor Lamarphe. Quando gostaria? —


ela disse assustada ao me ver no lugar.

— Hoje. Agora.

Não tinha mais tempo a perder.

E não podia contar com as previsões otimistas de meu médico, que não
era cigana alguma para saber do futuro.

O dia final do prazo do testamento chegou e não fui buscá-lo.

Recebi inúmeras ligações dos advogados de Alfredo, até me visitaram


perguntando porque não havia ido para a leitura final. Tudo o que eu disse
foi:
— Tenho ocupações mais importantes agora. Minha mulher e filho
precisam de toda a minha atenção.

Mesmo sem cabeça para receber qualquer coisa que me desviasse da


atenção da minha família, eles me deixaram uma carta escrita à mão por
Alfredo, além de um documento de uma terra que por si só era bilionária e
não estava no testamento.

Acompanhado a ele dizia que devia ser deixado para minha filha.

— As demais coisas da herança ficarão à sua espera no escritório de


advocacia, senhor Lamarphe — o Castro disse.

— Um dia vou lá — balancei os ombros, sem muito interesse nisso.

— O seu tio... pediu para que disséssemos... que sentia muito.

— Ele deve sentir sim... o calor. Por que está no inferno — fechei a
porta e voltei para minha rotina.

Um dia, desses em que não há nada para se fazer e Yasmin já mostrava


que ia entrar em trabalho de parto, abri a carta que me fora deixada.

Não sei muito bem o que senti ao lê-la.

A guerra existe porque os velhos precisam que os jovens resolvam seus


assuntos inacabados.
Não me explicarei. Não cogitarei encontrar justificativas para toda a

dor e sofrimento que causei. Apenas direi: mi scusi[27]. Sabendo que seu

perdão é um luxo que provavelmente nunca terei.

Mas na certeza de que ido até a guerra, lutado até suas últimas forças
e prestes a voltar para casa, você jamais se tornará o velho que um dia fui.

Você era a única coisa que me conectava à minha verdadeira casa.

E no desespero de perdê-lo e deixá-lo ir, agi por impulso e o impedi de


conhecer o seu verdadeiro lar.

Eu o amei como se fosse meu, antes de saber que era. E o sufoquei ao


tentar protegê-lo das dores que sofri e os espinhos que me espetaram.

No desejo de que meu exemplo o ensine o que jamais fazer aos seus
filhos,

Scusi.

Finchè c'è vita c'è speranza.

(Enquanto houver vida, há esperança).

Alfredo Lamarphe.
“O amor é formado de uma só alma, habitando em dois corpos”.

— Aristóteles.

O grande dia chegou.

As contrações já estavam em vinte minutos e foi uma grande correria


para ir ao hospital. Me senti vitoriosa por completar todos os meses de
gestação, mas agora era o frio na barriga que tomava conta de mim.

Ao chegar no Rota da Vida as contrações já estavam vindo de quinze


em quinze minutos e eram muito fortes. Uma dor absurda, bem mais intensa
da que senti na gestação de Phellippo.

— Vamos começar todo o processo? — Alissa abre um sorrisão ao me

encontrar no estacionamento, já com uma cadeira de rodas para mim.

— Ela não para de gritar — Guilhermo nos segue, PH também bem,


muito curioso.

Mamãe, Patrícia e Diogo estão terminando de estacionar os dois carros


e depois nos acompanharão.

— Vamos repassar todas as informações desse parto? — Alissa segura


em meus ombros. — Sorria! É seu grande dia! Vamos fazer sem pressa, sem
hora de sair, os gêmeos vão levar o tempo deles...

— Acha que nascem em seis horas? Oito horas? — Pergunto, ansiosa.

— No tempo deles — Alissa insiste.

Essa vai ser uma das experiências mais únicas de toda a minha vida.

Quando ganhei Phellippo, simplesmente cheguei ao hospital, fui


anestesiada e após algum tempo, já estava com ele em meu colo. Não sofri
nenhum tipo de abuso médico, mas Alissa me explicou que o descaso e às
vezes a forma mecânica e sem tato humano de alguns hospitais poderiam
deixar sequelas para sempre em uma mãe.

— Eles vão vir saudáveis, cheios de energia e disposição! Completaram


todo o período de gestação e agora a natureza está convidando os dois para
vir viver aqui conosco — ela diz alegre, sua voz me anima.

Chegamos ao ambiente previamente preparado, a sala de parto é grande

e possui cama, banheira, nenhuma máquina eletrônica, só a equipe médica.

— Vamos trocar sua roupa, te preparar e a hora que eles tiverem que
vir, virão. Não se preocupe — Alissa assegura.

— Eis vão nascer? — PH pergunta.

— Sim, em algumas horas você vai conhecer seus irmãozinhos —


Guilhermo afaga o pequeno no colo. — Que nome você acha que deveriam
ter?

— Pikachu — responde de imediato. — E chiquinha.

— Ah, você acha que é um menino e uma menina?

— É.

As contrações vão aumentando o ritmo em um curto intervalo.

No início é quase insuportável e sinto uma dor que me deixa paralisada,


fazendo-me contrair dedos dos pés e mãos, respirar com dificuldade e suar
muito.

Guilhermo limpa o meu suor e Phellippo abraça minha perna.

Os médicos não intervêm, só assistem como se estivessem distantes da


cena, como se não fossem os atores principais desse ato.

— Quando eu morava aí — PH massageia minha barriga. — Doía?

— Doeu um pouco, filho, você nasceu grandinho...

— Ah...

As contrações chegaram a um ritmo que precisei me preparar, de fato,


para ter os bebês. Phellippo foi passear com a tia Patrícia, mamãe e
Guilhermo ficaram comigo na sala, conversando, fazendo massagem em
minhas costas e cóccix, repetindo o quanto eu era forte.

— Não precisa ter medo, baby — ele tenta me acalmar.

— Mas está demorando tanto! Será que tem alguma coisa errada

comigo?

— Não tem nada errado, o tempo da natureza funciona diferente do


nosso tempo. Eles estão vindo, em breve estarão conosco.

Uma insegurança e receio tomaram conta de mim.

E se eu não for forte? E se não aguentar? E se tiver algo errado?

— Olha pra mim — Guilhermo beija minha mão e depois a aproxima


em seu rosto. — Vai ficar tudo bem, eu estou aqui com você. Respira

comigo.

Começamos a fazer o exercício de respiração e eu faço com toda a


força que consigo, Alissa examina como estou indo ao examinar entre minhas
coxas.

— Já foram oito horas de trabalho. Como está se sentindo?

— Exausta!

— Um já está vindo. Quer vir para a banheira?

— Pode ser, sim.

— O papai quer vir também?

Guilhermo acha aquilo inusitado. Entra primeiro na banheira após tirar


o pijama cirúrgico e me recebe em seus braços, deito a cabeça em seu peito e
sinto seu queixo em minha testa. Aperto os olhos com força e tento fazer

força, mas é em vão.

— Não precisa se esgotar, ele vai vir.

— É o que está com o cordão umbilical no pescoço? — Pergunto.

— Provavelmente sim, mas estamos prontos para recebê-lo.

— Bella donna — Guilhermo sussurra em meu ouvido. — Desde o


primeiro momento que eu te vi, eu sabia que era você. Eu sabia que me
encantaria e me entregaria a você. Que só você poderia ser a mãe dos meus

filhos. Eu não vou sair do seu lado, até que esteja tudo bem.

— E depois?

— E depois que tudo estiver bem eu permanecerei ao seu lado —


Guilhermo encosta o nariz em minha bochecha.

Cobre meus seios com suas mãos e roça bem devagar o queixo pelo
meu rosto, cantarola alguma coisa em italiano ao pé do meu ouvido enquanto
as contrações se tornam insuportáveis.

— Está vindo — Alissa diz animada.

Embora os médicos estejam atentos, não se aproximam.

— Respira comigo — Guilhermo pede e eu tento acompanhar seu ritmo


de respiração.

— Já consigo ver a cabeça! — Alissa afasta mais as minhas pernas.

— Será que eu consigo? — choramingo.

— Consegue sim. Já conseguiu coisas mais difíceis — Guilhermo


brinca com o nariz passando em meus cabelos. Toma um pouco de fôlego e
começa a cantar baixinho:

Para viver em estado de poesia


Me entranharia nestes sertões de você

Para deixar a vida que eu vivia

De cigania antes de te conhecer

De enganos livres que eu tinha porque queria

Por não saber que mais dia menos dia

Eu todo me encantaria pelo todo do teu ser

Ajeita meus cabelos, afastando-os de meu rosto. Passa suavemente as


mãos pela minha barriga, massageando com a ponta dos dedos pela pele.

— Está vindo, não se preocupe. Continue assim! — Alissa me apoia.

Espero que grite comigo, diga que preciso empurrar, ser mais forte ou
corajosa, mas ela acompanha o pai cantar e permanece atenta.

Pra misturar meia noite meio dia

E enfim saber que cantaria a cantoria

Que há tanto tempo queria

A canção do bem querer


— Está nascendo! — minha mãe comemora.

Com uma lufada de ar que parece que vai me deixar zonza, ranjo os

dentes até sentir que o bebê saiu. A água morna parece que acalma minha
pele, consigo recuperar fôlego após tanto esforço, mas aí vem a aflição de
não ouvir o choro.

— O que houve? — Não dou nem tempo para Alissa pegar a criança e

colocar em meu colo.

Coisa que acontece meio segundo depois, ela limpa o sangue da criança
ainda meus braços.

— É uma menina — anuncia.

A criança não chora, mas abre bem os olhos e encara os dois pais
apreensivos e suados, a espera de algum sinal de choro, que não vem.

— Oi, minha filha — toco seu rostinho e sinto uma lágrima queimar

em meu rosto.

— Já pensou no nome? — A voz de Guilhermo até tremula.

— Maia — digo. — Maianne.

Os olhos cristalinos da criança piscam e depois ela abre o berreiro, o


que me gera um alívio, porque parece que só assim ela de fato está viva em
meus braços.
É belo vês o amor sem anestesia

Dói de bom, arde de doce

Queima, acalma

Mata, cria

Chega tem vez que a pessoa que enamora

Se pega e chora do que ontem mesmo ria

Chega tem hora que ri de dentro pra fora

Não fica nem vai embora

É o estado de poesia

O pai canta para a pequena que instantaneamente para e fica piscando


os olhos, provavelmente sem entender o que estava acontecendo.

— O outro já nasceu? — Pergunto, tão distraída que fiquei enamorando


minha neném.

— Ele vai vir no tempo dele, pode relaxar e curtir sua cria — Alissa
diz, examinando de longe.

— Não vão cortar o cordão umbilical? — Pergunto.


— Não, ele ainda está nutrindo ela — Alissa diz muito educadamente.

Me informou tudo, absolutamente tudo sobre o parto humanizado

quando escolhemos isso, mas agora, eufórica e vivendo um dos melhores


momentos da minha vida, esqueci.

— Olha como é bonita — mamãe comenta, babando na neta. — Você


está sendo corajosa — suspira. — Minha mãe teve a mim e meus irmãos

assim, mas não tinha médicos, só parteira e ajudantes.

— E como foi? — Alissa questiona, interessada.

— Deve ter sido ótimo, teve nove — minha mãe se diverte. — E não
era por falta de hospital ou dinheiro... era porque preferia assim...

— É. É o momento da mãe e da criança, estamos aqui só pra assistir a


magia acontecer — a médica sorri.

Após curtir muito tempo com a minha pequena, fico encucada de não

estar sentindo tanta dor e contração para ter o outro bebê.

— Vamos neném, vem conhecer sua irmãzinha... — murmuro.

— Ele está se preparando para vir. Está se arrumando, ficando bem


bonito, para conhecer a mamãe — Guilhermo murmura para mim.

Ficamos uma, quase duas horas dentro da banheira aguardando, mas o


outro não vem.
Fico apreensiva, é claro, mesmo com Alissa e Guilhermo insistindo que
estava tudo normal e que chegaria a vez do outro neném.

Me sequei, deitei na cama e recebi uma massagem caprichada de


Guilhermo. PH entrou, maluco para conhecer os bebês.

— Ué, só um? — foi o que perguntou ao ver a irmãzinha. — Num era


dois?

— São dois sim. O outro está vindo.

— Vai demorar? — PH faz uma careta e deita na cama ao meu lado.

— Apressado igual a mãe — Guilhermo estala a língua.

— Ai! — sinto uma pontada tão forte dessa vez, que não tenho dúvidas
de que o outro está para nascer.

— Treze horas de trabalho. E o outro está vindo! — diz animada.

— PH, vamos cantar pra sua mãe? — Guilhermo chama a atenção da

criança.

Abro bem as pernas em cima da cama, um lençol hospitalar cobre por


cima das minhas coxas e Alissa examina debaixo.

— A dilatação está maravilhosa! Já consigo ver a cabeça! — Diz


animada.

— Cantar? — o pequeno diz, um pouco assustado com o grito que


estou tentando conter.

— Uma bem bonita. Canta pra mamãe — eu peço.

Agora parece que não dói tanto, só a movimentação do bebê que


incomoda mais. De resto, me surpreendo quando Alissa diz que a cabeça já
passou. E o bebê soltou o berreiro antes mesmo de sair inteiro, o que me
alivia muito.

Eu sei, eu sei

Que a vida devia ser

Bem melhor e será

Mas isso não impede

Que eu repita

— Essa num conheço — PH diz encarando o pai.

É bonita, é bonita

E é bonita
— Conheço! — Diz animado agora. — Viveeeeeer e ser feliz!

— Cantar... — o pai dá a deixa.

— Cantar cantar cantar pendiz — Phellippo canta do seu jeito.

— Já está quase terminando — Guilhermo beija minha testa. —


Continue assim.

Seguro firme em sua mão e me contorço em cima da cama, PH engole


algumas partes da música quando me vê nesse estado, mas fica acariciando
minha barriga e segura por cima da mão de Guilhermo, que está segurando
minha mão.

— Canta pra mamãe, filho.

Viver

E não ter a vergonha

De ser feliz

Cantar e cantar e cantar

A beleza de ser

Um eterno aprendiz

Ah meu Deus!
Eu sei, eu sei

Que a vida devia ser

Bem melhor e será

Mas isso não impede

Que eu repita

É bonita, é bonita

E é bonita

— É um menino — Alissa anuncia, repousando o pequeno embrulho


em cima da minha barriga.

Esse parece bem mais agitado que a irmã, mexe as mãozinhas sem
parar, como se tentasse agarrar o ar. Guilhermo ao encostar o rosto, tem o
nariz capturado pela mãozinha que reconhece a pele do adulto e só solta

algum tempo depois.

— Olha seu irmãozinho, filho — murmuro.

Não sei se o que sinto é esgotamento ou completa realização. Não sinto


mais tanta dor, estou mais confortável e tranquila, porque a minha
preocupação era a vida e saúde dos bebês.

— Qual o nome? — PH sorri pro bebê.


— Eu dei o primeiro nome, então você pode dar o nome agora — digo
a Guilhermo.

— Hum — ele pondera. Fizemos uma lista enorme de nomes caso fosse
menino ou menina.

Maia estava no topo da lista e ele gostou muito. Mas de último


momento pensei em chamar de Maianne, parecia diferente, original e soava

tão bem! Dos nomes de meninos, haviam vários que tínhamos selecionado:
João Paulo, Franchesco e Caio César...

— Amauri — Guilhermo diz após pensar muito.

— O nome do vovô? — PH faz uma careta divertida.

— É um nome bem bonito, não acha? — o pai afaga os cabelos do


filho. — Ele tem cara de Amauri.

Fico emocionada pela homenagem e por ele não ter saído do meu lado

em nenhum instante nas últimas quinze horas.

Desde que comecei a sentir as contrações, Guilhermo largou tudo o que


estava fazendo e veio ficar comigo, cuidar de mim e não perdeu um segundo
das contrações mais longas até o nascimento de nossos filhos.

— Amauri é um ótimo nome — digo.

— Amauri e Maianne — Guilhermo diz orgulhoso.


Esse momento me faz sentir estranha. Por que acabo de me dar conta
de que estou diante daquilo que sempre sonhei. Encaro mamãe, Phellippo e

Guilhermo. Desejei tanto viver o meu sonho de princesa que ainda estou
processando que ele aconteceu de fato.

— Você está bem? — Sinto minha testa ser secada por ele.

— Obrigada, Guilhermo — é tudo o que tenho a dizer.

— Obrigado pelo quê? — Seu sorriso mostra que está confuso.

— Por não desistir de mim. De nós. Por acreditar em mim e ficar ao


meu lado...

— Yasmin, será que você ainda não entendeu? Você é a minha


prioridade. Vou estar com você para sempre e nós vamos enfrentar todos os
obstáculos juntos. Se passamos por um parto assim e tantas pessoas que
tentaram nos separar, nada pode nos deter.

Sorrio e deixo uma lágrima rolar pelo meu rosto.

Uma sensação de menina, de adolescente, daqueles que você sente na


alma quando acha que é imortal e nada nunca poderá te machucar. A
sensação de ser invencível, de ser o suficiente, de não caber no próprio peito
e transbordar para todos os cantos, esparramando pela cama, pelo quarto, por
todo o hospital.

— Eu te amo, baby — Guilhermo diz e eu deito a cabeça em seu peito.


— Também te amo, mamãe — PH se agarra ao meu pescoço, preciso
segurá-lo para não subir em cima da minha barriga.

— E eu amo vocês.

Sem medo de não merecer tal sentimento, abraço-o. Eu lutei por ele.
Vivi o inferno, passei por desafios que testaram cada parte de mim.

Mas sinto que após toda essa tormenta, enfim estou em casa.

E minha casa é qualquer lugar em que eles estiverem.


“Se a gente cresce com os golpes duros da vida, também podemos
crescer com os toques suaves na alma”.

— Cora Coralina.

Antes de retornar para casa e levar Yasmin, passo na sala da vice


presidência.

Não sei se fico surpreso ao encontrar minha mãe ali, mas dessa vez não

está inquieta procurando coisas nas gavetas. Está sentada, o olhar vazio e
longínquo, demora um tempo até perceber que entrei no cômodo.

— Aí está você — diz de um jeito taciturno, evitando me olhar.

— Veio conhecer os netos? — Pergunto.

Não perco tempo e vou arrumando algumas coisas dentro da minha


pasta de trabalho. Vou precisar ficar afastado do hospital por algum tempo
para curtir a minha família e cuidar de Yasmin e nossas crianças. Então
preciso organizar minha agenda e remarcar algumas cirurgias.

— Imagino que não posso fazer nada para dissuadi-lo de ficar com as
crianças e descartar aquela família e ir embora para a Itália... — sua voz
parece não ter mais forças.

— Não, mamma, não pode e nem conseguirá.

Ela puxa para si um classificador que só observo que estava em cima da


mesa, quando toma em suas mãos. Abraça-o, de olhos fechados e acena em
negação.

— Eu a amo — preciso dizer. — Não tenho medo de perder a herança.


Na verdade... não penso em ir buscá-la. Um dia, se meus filhos quiserem ir
atrás, que vão. Mas é claro, vou garantir que os desejos do tio Alfredo se
concretizem e a faculdade dos mais jovens sejam pagos e Ayslan e Lisa
recebam sua parte...

— Ele era seu pai, Guilhermo.

A voz quase some ao dizer meu nome. E fico com uma expressão
congelada no rosto, tentando entender o que isso pode significar.

— Alfredo era seu pai — diz num tom de lamento. — E eu lutei muito
para que você não precisasse viver essa dor. E lutei muito para que não
seguisse a vida que ele teve... mas eu falhei.

— Como assim ele era meu pai?

— A minha família me obrigou a casar com o irmão dele, quando na


verdade eu o amava. Mas Alfredo nunca me amou, só me usou e me
descartou como se eu não valesse nada.

— E daí vocês dois criaram tudo isso? Tem noção do quanto foi difícil?

— Eu tenho noção — ela se levanta. — Mas sempre fomos duas


pessoas que não conheceram o amor, tentando impedir você de encontrá-lo.
Eu ainda sinto que só queria protegê-lo das decepções e da dor...

— Talvez tenha se projetado em minha vida — cruzo os braços.

— Eu tentei protegê-lo dos erros que eu cometi, Guilhermo.

— Mas eu precisava vivê-los. Não importa a vida que você viveu antes
de mim, eu precisava viver a minha vida, ter as minhas experiências!

Tento maneirar no tom duro que uso, pois o semblante dela é de derrota

total.

— E você conseguiu, parabéns — diz sem muita alegria e se levanta.


— Você vai ser feliz, só de não ter seguido os passos do seu pai e os meus...

— Vocês eram tão iguais assim?

— Ele era pior — Mamma avalia com seu ar de superioridade. — Mas


eu cometi muitos erros também.

Segura em meus ombros e me deposita dois beijos demorados no rosto.

— Vou para a Itália. Talvez eu nunca mais possa sair de lá, talvez não
nos vejamos novamente, caso você não me visite...

— O que houve? A polícia está atrás de você? — Brinco.

Ela só acaricia meus cabelos e me abraça com força.

— Cuide para que seus filhos nunca passem pelo que você passou, meu
menino — lamenta e não consegue me soltar.

Como uma mãe que vê o filho ir embora pela primeira vez e se


desmancha em mil saudades antes mesmo que ele suba no ônibus ou avião.

As despedidas são assim. Tão barulhentas quanto alguns encontros.

— Tem certeza de que não quer conhecer seus netos?


— Eu já deveria estar no aeroporto... — é tudo o que diz e sai da sala.

Não olha para trás enquanto caminha apressada, de cabeça erguida e

desaparece no elevador.

Levo um tempo até terminar de pegar todas as minhas coisas e sair da


sala da vice presidência.

Encontro toda a família reunida no hall do hospital, junto com os


membros da equipe médica que nos monitoraram e ajudaram no parto.

Phellippo não para de espiar as crianças no colo da mãe e vem ao meu


encontro, bem animado, segura em minha mão.

— Papai, posso digir o carro?

— Do que você me chamou? — Pisco os olhos como se tivesse sido


acertado por um golpe.

Yasmin e eu tivemos uma conversa com PH sobre eu ser seu

verdadeiro pai. Ele continuou a me chamar de Guillermo até então, mas agora
me tirou do eixo completamente. Fico até desconcertado, a garganta seca,
sem saber como responder.

— Meu filho — pouso minha mão aberta em sua cabeça. — Você


ainda é pequeno, quem sabe um dia...

Trago-o para o meu colo e o abraço bem apertado.


Por que alguns encontros são como um rio desaguando no mar.

Estrondo é como chamam.

Nem todos os rios encontram o mar. Mas os que encontram – após uma
longa jornada em que um dia foram cachoeira, correnteza e às vezes lago – o
fazem com a mesma força com que sua jornada começou no topo da
montanha.

E mesmo depois de empecilhos, trajetos tortuosos e obstáculos, o rio


não para. Pode não saber, mas nasceu para ser algo que vai além do que é, e
será maior do que qualquer outra coisa que encontrará em seu caminho.

Árvores, canoas e desertos. Homens, peixes e pontes. Nada é o


suficiente para que se aquiete em sua jornada, até lançar-se em um estrondo,
um barulhento e último suspiro de suas águas, até desaguar no mar.

É mais que seu destino. É sua missão.

É como o coração, que só sabe que precisa bater, até um dia descobrir
por quem.

Perde o compasso. Perde o ritmo de sua própria dança. Até encontrar


o som da musicalidade e batimento que o completa.

— Estamos todos prontos? — Pergunto.

— Sim!!! — Phellippo diz quase que desesperado.


— Amor?

— Tudo certo por aqui — ela confere os dois pequenos embrulhos em

seu colo.

— Vamos voltar para casa.

Os dias foram passando e com eles, vieram uma nova rotina.

Atrasei um pouco no início do novo semestre da faculdade para dar


toda a atenção que os gêmeos precisavam.

Não sei descrever o meu alívio ao ter Guilhermo para dividir as tarefas
comigo, ele se mostrou um pai muito zeloso que adorava dar banho nas

crianças e trocar suas fraldas, além de ficar cantarolando para eles quando
acordavam de madrugada.

Não sei que mágica era essa, só sei que ao cantar ele fazia com que os
bebês parassem de chorar e ficassem atentos.

Mamãe voltou a costurar.

Começou com roupinhas para os netos, mesmo sabendo que o que não
faltava para essas crianças era roupa. Eventualmente ela assumiu o controle

do Ateliê do Amor enquanto eu estava me recuperando, contratou mais

funcionários e começou uma nova produção de vestidos de noiva.

Patrícia continuou fazendo nosso negócio de produtos evangélicos


rendendo muito dinheiro, além de que se enfiou nos livros para passar no
concurso de delegata.

Não entendia, mas cada vez que via Ayslan ela pegava cada vez mais
em seu pé.

— Churrasco? De novo? Tudo pra você é churrasco, homem?

— Melhor que ficar comendo essas melancias grelhadas — Ayslan não


deixava barato.

Patrícia não tentava converter ninguém para o veganismo, mas a cada


oportunidade alfinetava Ayslan.

— Não sei pra quê isso de comer carne. Poderia ser feliz comendo
outras coisas...

— Meus ancestrais criaram lanças pra caçar carne, não repolho — o


outro retrucava na mesma altura, dois brigões.

— Ah, ótimo! Então porque não faz uma lança dessa árvore aqui —
apontou para a árvore no meio da sala. — E vai caçar uns animais, hein
senhor paleolítico?
— Eu vou te mostrar uma lança — o cabeludo a encarou com raiva.

Enfim... um dia ainda vão descobrir que todo esse ódio pode ser

facilmente resolvido entre quatro paredes.

Diogo, para mim, foi a maior surpresa de todas.

Devo admitir, eu torci o nariz quando ele ocupou o escritório de

Guilhermo, ainda mais quando descobri o valor da câmera, microfone e


computador que ele comprou para o meu irmão.

Diogo foi deixando de trabalhar como Uber e se dedicava todos os dias


a fazer lives. Assisti algumas enquanto estava em repouso, ele jogava de tudo
um pouco, de jogos de tiro, até uns de fazendinha que eram muito fofos.

Quando recebeu seu primeiro pagamento, nem acreditou e comprou


presentes para todos. E me prometeu que nunca mais iria se meter em coisas
erradas.

Mas eu juro, papai, eu vou ficar de olho e dar uns bons cascudos nele,
caso saia da linha!

Eu...? Eu ainda não acredito.

Quando olho para trás e vejo o ano que se passou, fico me perguntando
de onde arranjei forças, de onde tive coragem, como não tive um troço e caí
no chão por cada coisa que me aconteceu.

Acho que foi mais fácil suportar tudo porque eu sabia que era o certo.
Eu não ia desistir. Era mais do que o meu sonho, fazia parte de quem eu era.

E agora posso admitir que sou muito mais feliz do que antes, na

verdade, muito mais feliz do que imaginei que um dia seria.

Tantos espinhos e tropeços no passado não me fizeram esperar o pior


da vida, mas as minhas expectativas foram abaixando, abaixando,
abaixando... até que um dia o universo me surpreendeu com um reencontro.

Com um recomeço.

Com alguém que eu nunca imaginei que retornaria para a minha vida,
mas que quando chegou, alguma parte dentro de mim soube que não podia
deixar ir.

Algumas pessoas a gente se agarra como se fosse uma parte nossa


vivendo fora.

E eu não me arrependo de nada.

— Você disse alguma coisa? — Guilhermo vira o rosto em minha


direção.

— Não... — suspiro, ajeitando meus cabelos. — Só estava rezando pro


papai.

— Ah... — ele ergue a sobrancelha e volta a fechar os olhos.

Encaro a lápide do meu pai e abro um sorriso fino, como se ele pudesse
me olhar de volta e sorrir. O cemitério todo gramado e florido fica

especialmente bonito nessa parte do ano, em que se comemora o aniversário

de morte dele. Não esperaria nada diferente.

Por onde passava ele levava beleza, calor e paz.

Me posiciono atrás da cadeira de rodas de Guilhermo e o abraço,


encosto meu queixo em seu ombro.

— Quer visitar o Alfredo agora?

— Outro dia... outro dia... — ele desconversa, suas mãos fortes


seguram por cima da minha.

Algumas feridas levam tempo para cicatrizar e é bom deixar que a


natureza trabalhe do jeito que sabe: em seu próprio ritmo.

— Notícias da sua mãe? — Pergunto.

— Não... sem notícias. Meu irmão só disse que ela vai ficar longe por

muito tempo.

— Acha que ela foi presa? — coloco a língua para fora.

— Eu não duvido de mais nada...

Solto um grito quando Guilhermo me tira do chão e me faz sentar em


cima de si. Sai empurrando a cadeira com as próprias mãos, seu olhar
decidido e carrancudo, abre um sorriso de canto para mim ao me fitar tão de
perto.

Tudo tem sido novidade já há algum tempo.

Estou experimentando a sensação de ter uma família que mesmo com


seus erros e acertos, tenta se manter unida.

Não somos perfeitos.

Às vezes discutimos na hora do jantar ou discordamos sobre nossos


pontos de vista. Ainda assim, torcemos uns para os outros. E cuidamos uns
dos outros.

Estou descobrindo a cada dia como é isso. De ser filha, de ser mulher,
de ser mãe.

De ser estudante de direito, de ser costureira como papai foi um dia e


de ser eu mesma.

O meu sonho de princesa é um pequeno detalhe de toda a minha vida. É

o meu porto seguro quando sinto que nada está dando certo, é a minha força,
quando sinto que estou prestes a desistir e é o meu descanso, quando deito na
cama todas as noites e vou dormir.

Pelo menos, quando os gêmeos deixam.

A vida é assim. Uma eterna descoberta e conquista.

Ainda estou aprendendo. É tudo novo para mim. Afinal de contas...


Eu nunca fiz isso antes.
DOIS ANOS DEPOIS

A vida mudou bastante desde que tive os gêmeos e só se passaram dois


anos.

O Ateliê do Amor tem feito muito sucesso: muitos clientes na fila de


espera, enquanto mamãe, eu e outras costureiras preparamos lindos vestidos
de noiva.

Por mais que eu deveria aproveitar a explosão da marca e transformar


tudo numa produção fordista, ainda sinto a necessidade de cuidar de cada
peça com tanto esmero como se fosse o meu pai a fazê-lo.

Mal acreditei quando me dei férias, arrastei todo mundo de casa para

Fernando de Noronha para uma semana de curtição, praia e descanso


merecido.

— Meu filho, não coma areia! Não tem um gosto muito bom... — tento
impedir Amauri de levar a areia molhada à boca, mesmo assim ele faz.

Ayslan empurra a cadeira de rodas de Guilhermo, propícia para andar


na praia e entrar no mar. O pai carrega a pequena Maianne em seus braços,
mostrando toda a vista da água cristalina, o perfeito céu azul se mescla com o
infinito azul do mar. Pequenas ondas balançam suavemente até a cadeira

entrar na água, a menina rapidamente gruda no pescoço do pai.

— Não precisa ter medo, filha. É o mar. Olha que bonito e como é
imenso — ele mostra.

— Vem conhecer o mar também, Amauri — chamo o comilão de areia,


deve ser de tanto espiar a pequena Kim que sempre tem algo para comer, mas
pelo menos nunca come coisas impróprias... a não ser oferendas deixadas em
jardins.

Seguro nas mãos do meu pequeno e o ajudo a caminhar pela areia, seus

pézinhos deixam a marca por onde passam.

Quando uma onda vem em nossa direção, assim que estamos prestes a
entrar na água, faço-o pular bem alto e o repouso já dentro do mar.

Primeiro ele treme e faz uma careta, começa a bater os braços de um


jeito desengonçado.

— Devolve o meu camarão! — Kim Han, a eterna boquinha de


mochila, sai correndo furiosa atrás de Phellippo que roubou sua comida e
consegue correr bem mais rápido na frente.

Enfim ele chegou na fase de que gosta de ser malino e provocativo,


chamar a atenção de tudo e de todos, e isso inclui a Kim.

— Vou te encher de cascudos! — a criança ameaça.

— Só se me pegar! — O outro devolve, esquivando-se das mãos dela.

Patrícia não pode comparecer, suas férias não deram match com as
nossas. Mas vamos voltar, quando liberarem a delegata.

O sorriso fica fácil aqui, rio para o nada, tudo me diverte e me acalma.

Quem diria que venceríamos? E como é bom estar feliz em ver todas as
pessoas ao seu redor fazendo sucesso e conquistando seus sonhos!
Se alguém me dissesse no passado que isso iria acontecer, eu apenas
diria: é um bom sonho.

Hoje posso chamar de realidade.

— Seus ancestrais vêm de um lugar que tem muito mar — Guilhermo


sussurra para a pequena Maianne. — Pessoas que não tinham medo do
horizonte — aponta para onde o céu e mar se encontram, bem ao longe. — E

que quando sentiam que seu destino e felicidade era cruzar isso tudo, eles
iam, sem pensar duas vezes...

— É claro que ela está entendendo isso tudo — preciso rir.

A criança de olhos arregalados encara o pai, passa as mãozinhas por


seu rosto, não responde nada, só sorri e tenta se esconder em seus braços.

— Esse é um dos lugares mais lindos que já estive em toda a minha


vida — Gui me encara. — Ainda mais porque foi aqui que eu reencontrei o
amor da minha vida.

— Na verdade foi dentro de um pequeno estúdio, cheio de espelhos,


bem ali — aponto na direção em que deve estar a pousada. — E você me
chamou de aproveitadora.

— É verdade — ele abaixa o rosto para rir.

Segura nos braços da pequena e a senta na borda de sua cadeira,


deixando-a bater os pés na água. Amauri está sob meus cuidados, preciso
ficar curvada o tempo todo enquanto seguro suas mãos e o impeço de
avançar.

— Não podia ser em lugar diferente... — ele tira, não sei de onde, uma
caixinha.

Ayslan vem e pega o meu filho para que eu possa reagir, mas na
verdade eu só fico paralisada no local.

Guilhermo e eu fomos obrigados a estar um com o outro.

E nisso descobrimos que talvez o nosso destino fosse justamente esse.

Nunca passamos pelas formalidades de ser pedido em namoro ou


casamento, embora ele me comprou um anel de compromisso desde antes do
parto dos gêmeos, quando nos conciliamos.

Mas esse anel é bafônico e o diamante dele parece querer brilhar mais
do que o sol.

— Eu quero te ver bem linda em um dos vestidos do seu pai — só isso


já me faz desmanchar inteira. — E estou ansioso para passar a vida inteira ao
seu lado, como se fosse o primeiro dia do nosso reencontro. Em que você me
despertou coisas que eu nem sabia que podia sentir, e outras que não tinha
ideia que podia lembrar.

— Ai Guilhermo...

— Quer casar comigo?


— Casa! — Maianne se agita toda, batendo palmas.

— Eu também já não posso viver sem você, Guilhermo. Obrigado, por

me amar, me respeitar e me entender. Também por insistir que eu termine as


coisas que sempre deixo de lado...

— Tá certo. Mas vai se casar comigo?

— É lógico que sim! — digo quase em desespero, fico apreensiva na


hora em que coloca o anel em meu dedo, com medo de que caia no mar.

— Vocês são o meu casalzão — Ayslan pisca e me abraça de lado,


depois faz o mesmo com o amigo.

— E você, cabeludão, se já não for o suficiente para seu currículo ser o


padrinho dos meus filhos, gostaria que fosse o padrinho do meu casamento.

— Ah, eu ficaria honrado, meu irmão.

— Estou louca para ligar para a Patrícia! Ela vai surtar! E vai ser minha

madrinha, é claro!

Ayslan acena negativamente e ri para a criança em seu colo.

— É... isso não vai prestar...


ALGUMAS CENAS APÓS O FIM

A vida nunca mais foi a mesma depois do acidente que me tirou tudo.

Percorri um longo caminho sem luz e sem fé, ignorando minhas dores,
meus medos e dissabores. Apegando-me firmemente ao trabalho, pois era
tudo o que me restava e me fazia sentir normal.

Lembro do meu primeiro dia na fisioterapia, encarava o corpo forte e

másculo no espelho, mas não tinha forças para levantar uma simples bola que
cabia em minha mão e esticar o braço para o lado com ela.

Conforme recuperava a memória e lembrava da medicina, de meu


ofício cirurgião e de meus roteiros de aula, mais chocado ficava: eu nunca

mais seria o mesmo. Minha vida tinha acabado para sempre.

Então ela chegou.

Feito o céu que fica mais escuro antes do sol nascer e depois rasga as
trevas com o esplendor de sua luz, Yasmin surgiu em um momento onde tudo
era dor e mágoa. Onde tudo era passado e inacessível.

E então eu entendi.

Ainda assim tive medo do que ia achar de mim, tive medo de que

tivesse dó e não me enxergasse como o homem que fui. Mas ela viu muito
além das minhas limitações. E eu de fato entendi.

Entendi que não precisava andar para voltar a ser feliz. Entendi que
podia muito bem reconstruir a vida, mesmo depois de ter perdido tudo. E
entendi que toda a força que eu buscava primeiro tinha que partir de mim, em
aceitar meu estado e erguer a cabeça.

— A aivore tá bonita — Phellippo repousa sua mãozinha rechonchuda


por cima da minha.

Olhamos juntos a árvore no centro da sala de casa, cheia de luzes, bolas

coloridas de natal, debaixo dela muitos presentes.

— Quando cheguei eia seca, né papai?

Pego o meu pequeno no colo e o estico para que coloque mais uma bola

azul na ponta dos galhos.

— Era seca sim.

— Agoia bonita — pondera.

— É.

— O que houve?

— A árvore precisava de tempo, filho — o aninho em meu colo, dou


algumas cutucadas e faço cócegas em sua barriga, para que ria.

— Tempo.

— Ela tinha água. Ela tinha adubo. Era bem cuidada, recebia sol. E
mesmo assim estava seca...

A criança estica o rosto e me encara, pensativo.

— Tempo é um ingrediente invisível que pode curar todas as coisas.

— Guediente.

— E ele vai em todas as coisas. É tipo a cola do universo. A árvore


precisava de tempo, acima de tudo. E agora está bonita.

— Bonita, papai — repete.

— Bonita, meu filho — beijo sua testa. — E a estrela que vai bem lá
em cima. Você coloca?

— Papai, não alcanço — PH faz um bico.

Vira o rosto para olhar bem lá pra cima.

— Então vamos chamar sua mamãe e pedir que pegue uma escada. Ela
põe a estrela e aí vai ficar mais bonita. Depois vamos tomar banho e nos
preparar para a noite de natal.

— Oba!!!

— Papai noel vai vir, será?

— Babbo natale! — Diz animado, em italiano. — Vou ganhar pesentes


esse ano?

— Todos nós vamos, filho. Todos nós vamos.


Maianne segura o mais firme que pode no assento do sofá e remexe
muito o bumbum com a fraldinha. Amauri fica no chão, examinando a irmã.

Todos estão atônitos, vendo-os dar seu primeiro passo.

É claro que foi uma grande festa quando começaram a falar “Bubu” e
“agaa”, o que quer que isso poderia significar. A euforia também tomou
conta da família quando começaram a engatinhar e se arrastar pelo chão.

Amauri gostava de deitar no chão gelado, abrir os bracinhos como se


fosse um peixinho nadando e ficar curtindo seu nado imaginário. Já a irmã
era mais ativa, travessa, foi a primeira a querer ficar de pé e cair também. E
logo que caiu de bunda no chão, levantou-se para ficar em pé novamente.

— Olha só, olha só, vai andar! — Patrícia segura no braço de dona
Lúcia.

— Pappa — Maianne diz, virando o rosto para todos os cantos, me


procurando.

— Oi, Maia. Estou aqui, filha — aceno.

Ela vira de costas, tateia o sofá e pisa em falso no chão. Se


desequilibra, mas não cai.

— Cuidado, meu amor.

— Papapapapapa — ela sai dizendo enquanto vem em minha direção.


O irmão não liga muito, deita as costas no chão e fica se sacodindo
como se fosse um pinguim desenhando asas de anjo no gelo.

— Vai conseguir, vai conseguir! — Ayslan diz animado.

Diz tão alto e de forma chamativa que a criança para e fica espiando os
tios.

— Vovó — a criança diz.

— Vai meu amor, vai pro papai — dona Lúcia incentiva.

Patrícia, aflita, vai encostando em Ayslan e os ombros se tocam. É bem


rápido e eles percebem de imediato, se afastam como se fossem dia e noite,
diabo e Deus, contrários que não podem se aproximar.

— Não distrai a menina — ela chia.

— Você que está distraindo! — O Viking protesta.

— Meu Deus, eles não param nunca — passo os dedos pelo anel de

Yasmin e a puxo para o meu colo.

— Vem filha, vem pra mamãe — ela chama.

— Mamamama — Maianne estica os joelhos rechonchudos e pisa no


chão, sacode o corpo e os ombros, animada, ao perceber que consegue dar
cada passo.

— Vem pro papai, filha, vem cá — incentivo.


E com o mesmo medo de um pássaro que nunca se jogou de um
penhasco para planar e bater as asas em seu primeiro voo, ela larga o sofá e

se equilibra com os pezinhos frágeis. É também a mesma coragem de quem


um dia não pode mais andar, mas sabia que poderia ser livre.

— Que menina esperta. Que menina forte — a mãe a pega no colo e a


enche de beijos.

— Vai andar hoje, Amauri?

O pequeno de olhos acinzentados vira o rosto, indiferente a isso. Quer


ficar em sua piscininha imaginária, rolando e batendo as mãos no chão.

Cada um leva seu tempo.

E cada um faz aquilo que o leva para o caminho da felicidade.

Todos os beneficiários da herança receberam sua parte, mas Guilhermo


negou-se a ir assinar os papeis para oficializar seus benefícios. Tive de
convencê-lo a ir, dois anos depois do nascimento de nossos filhos, para que
desse por encerrado esse capítulo de nossa história.
Não sei, algo dentro de mim dizia que precisávamos por um ponto final
nisso.

Na visita ao escritório de advocacia, Heloísa me contou que era ela


quem enviara os e-mails deixados por Alfredo. E que também precisava que
nós descobríssemos sobre a paternidade de Guilhermo a respeito de PH,
sozinhos. Pois ela e Alfredo temiam a interferência de Paola no caso.

Não entendi muito bem o que isso queria dizer. Só sei que encerramos
esse assunto, foi bom abraçá-la e saber que estava indo bem na vida.

Passamos a tarde inteira no centro de São Paulo comprando coisas para


o natal da família e retornamos tarde para casa.

No meio da estrada, lembrei de algumas vontades que não pude realizar


com Guilhermo devido a tantos problemas que tivemos no passado, então
pedi que dirigisse para o melhor podrão da cidade e só fomos embora após
comprar algumas frutas no mercado mais próximo.

Paramos a Hilux preta no mesmo lugar em que um dia estacionamos no


passado. Um que dava uma vista panorâmica da cidade iluminada. Abri o
bagageiro e sentei as crianças em cima, coloquei um avental em todos.

— Que lugar bonito — Phellippo olha para as estrelas.

O céu noturno não tem nuvens, milhões de micro pontinhos brilham


acima de nós. Abro os potes com morango, banana cortada, laranja e
melancia.

Aguardo que Guilhermo chegue com o pacote de lanches e me sento na

porta rebaixada, acima dele.

— Vou acompanhar as crianças e ficar só com as frutas — Guilhermo


diz e rouba um morango das mãos de Amauri.

A criança pisca os olhos devagar, incrédulo, tentando entender o que


aconteceu.

— Ah, come comigo...

— Essas coisas processadas? — ri. — Não, vou acabar dormindo mal e


tendo problemas amanhã.

— Eu como, mamãe — Phellippo enfia a mão no pacote e pega uma


batata frita. Leva à boca, junto com o pedaço de banana que estava na outra
mão.

— Você sempre tem ideias estranhamente legais — Ele se dá por


vencido, olhando o horizonte, enquanto rouba um pedaço de kiwi das mãos
de Maianne.

— É claro que tenho — digno indignada. Tiro o lanche de tamanho


absurdo do pacote, preciso segurar com as duas mãos para dar a primeira
mordida. — E a cidade é tão linda — espio o show de luzes diante de nós.

Amauri agarra o pedacinho de banana e enfia todo na boca. Baba mais


do que morde. E depois, guloso, pega um morango e faz careta quando sente
o tom mais azedo da fruta.

— Na próxima poderíamos ir assistir ao por do sol — proponho.


Indignada que ele não vai comer o outro lanche.

— Na praça? — Guilhermo pondera. — Parece uma boa ideia. Próxima


quinta?

— Próxima quinta — confirmo. — Sua agenda está cheia essa semana?

— Está, sim. Mas eu consigo, nem que seja meia hora, para ir ficar com
vocês...

— A minha também está... graças a Deus é tem chegado cada vez mais
trabalho... e as crianças estão ficando arteiras. Aprenderam a andar e viraram
pequenos terroristas.

— Estão na idade — Guilhermo ri.

— Podíamos ir a um show da Anitta também. Que tal?

Guilhermo faz uma careta e é obrigado a tossir o kiwi para fora. As


crianças gargalham com a cara do pai e Phellippo vem lhe dar uns tapinhas
nas costas, para que não engasgue.

— Ah, vamos sim — sorri ironicamente. — É tudo o que as crianças


querem...
— Eu adoro o seu humor — faço uma careta. Pego um morango e jogo
em sua cabeça.

— Ah, isso não vai ficar barato! — Rosna. — Segura seus irmãos! —
Diz a Phellippo.

E vem furioso atrás de mim, que saltito com meu lanche na mão,
desviando de Guilhermo.

— Está ficando lerdo, Guilhermo?

— Ah, eu vou te mostrar quem é lerdo!

18 ANOS DEPOIS

— E aí, velhinho.

— E aí, velhinho? — Arqueio a sobrancelha ao encerar Phellippo.

Assisto-o vir até mim, abraçar minha cabeça e afagar meus cabelos
lentamente. Eu dou uma boa olhada em como cresceu e como se parece

comigo. Por mais que ele tente me irritar, chamando-me de “velhinho”, não

tem como ser ranzinza com ele.

— Tá quente, né?

— É o Rio de Janeiro, filho. É assim desde antes de você nascer —


ralho. — Por que estamos aqui?

Ao chegar no aeroporto Tom Jobim, fomos avisados pela assessora de


Phellippo que um carro estava pronto para nós. Sua mãe, seus irmãos e eu
entramos e viemos parar aqui, no alto do morro, em meio a vegetação rica.

— Não está atrasado para sua corrida? — Olho o relógio no pulso.

— É só amanhã.

— Só amanhã? — Arregalo os olhos. — Viemos às pressas, filho. Não


queríamos perder.

— E não vão. Vai ser amanhã cedinho.

A paixão de Phellippo por carros o levou a se tornar piloto profissional.


Competia até na Fórmula 1 agora. Um jovem e promissor piloto, que estava
ganhando espaço nos jornais e nas redes.

— Então o que viemos fazer aqui?

— Mamãe disse que quando o senhor vinha ao Rio de Janeiro, pulava


de asa delta... — seu olhar travesso até me arrepia. — Como depois da

corrida aqui no Rio, vamos para Paris, não podia perder a oportunidade de

trazê-lo aqui. Tio Ayslan disse que era seu lugar favorito.

— Filho...

— Qual é, pai, está com medo? — Ele me provoca.

De onde será que puxou esse jeito? Certamente da mãe. E de mim.

— Medo... — desdenho.

— Ou ficou velhinho demais para pular de asa delta?

— Fiquei paraplégico — pisco os olhos.

— Para de dar desculpas e assume logo que ficou velhinho — ele coça
minha cabeça.

— Velhinho...

— Vamos pular?

— Como assim, pular? Agora? Aqui?

— Aqui e agora — Phellippo lambe os beiços, decidido.

Kim Han, a famosa boquinha de mochila – que eu ainda não sei se se


tornou melhor amiga de meu filho ou namorada, já que nunca me contam –
está lá atrás, parece que está filmando tudo. Um prato cheio para Lisa e
Ayslan.
— Ô boquinha de mochila, filma isso na horizontal, para ficar bonito
— tiro a mochila do colo e entrego para Yasmin.

— Você vai mesmo? — Ela sorri, eufórica.

— Ah... eu não sou tão velho... — sacudo os ombros. — Ou sou? —


murmuro quando ela me dá um beijo.

— Se divirta, papai — Maianne me abraça.

— Vou me divertir.

— Voa bem alto — Amauri aponta para o céu.

— Muito alto — concordo.

— Boa tarde, senhor Lamarphe. Seja bem vindo! — O instrutor diz,


animado ao me ver. — Quanto tempo, hein!

— É, meu velho. Algumas coisas nunca mudam — sacudo os ombros.


Nem lembro direito do homem, faz tanto tempo que não venho aqui que era

apenas uma mera lembrança e boas histórias de natal.

— Vou registrar tudo! Dá um tchauzinho pra mamãe e pro tio Ayslan!


— Boquinha me chama.

— Tchau — aceno com a mão e reviro os olhos.

O coração parece que vai saltar pela boca, sinto a vibração forte até a
garganta. O homem passa todo o aparato sobre mim e me prepara para o voo,
antes me dá as instruções.

— Está com medo?

— Homens como eu não tem tempo para medo — desdenho. — E


quando têm, vão com medo mesmo.

— Se divirta, amor! — Yasmin bate palmas e dá pulos no lugar,

ansiosa.

Não sei o que seria de mim sem essa mulher.

Talvez viveria uma vida mais segura e pacata. Monótona, sem


descobertas e sem fazer coisas loucas. Há quem goste.

Eu, por outro lado, não poderia pedir uma vida ou uma família
diferente.

— Isso vai ter volta — lembro a Phellippo.

— Relaxa, vou estar logo atrás do senhor. E se conseguir convencer

mamãe...

— Nem pensar. Eu que não vou pular nisso não.

— Ah, pula, mamãe... — Maianne começa a sacudir sua mão.

— É tão alto — ela se encolhe.

— Mas você vai ter asas! — Amauri aponta para o instrumento.

Menos de dez minutos depois, Phellippo, Yasmin e eu estamos


sobrevoando o céu de uma bela manhã no Rio de Janeiro. Assistindo ao

horizonte a orla da praia se enchendo de banhistas e a água rebentando na

areia.

Hoje posso confirmar que nada foi o mesmo depois do acidente.

As coisas mudaram. Eu mudei. O mundo mudou.

Em um ritmo diferente, seguimos uma dança nova, em que a vida se


refaz. E coisas que eu acreditava serem impossíveis antes, voltam como
sensações únicas.

— Guilhermo, eu quero desceeeeer — ouço Yasmin gritando, a muitos


metros de mim.

O que posso fazer? Ela e eu somos incapazes de dizer não para


Phellippo, que nos colocou nessa enrascada.

E ainda bem que colocou.

Os filhos vêm e nos tiram da zona de conforto, para que reaprendamos


a viver.

E sou muito grato a isso.


Nasci e cresci na Bahia, moro atualmente em São Paulo.

Os primeiros livros que li foram “As Crônicas de Nárnia” (o volume


inteiro), A Menina que Roubava Livros, Harry Potter e a Pedra Filosofal
(esses dois foram o meu primeiro impulso de identidade de escrita); “A
Doçura do Mundo” e “A Distância Entre Nós” (também responsáveis por
me fazer apaixonar por dramas e questões sociais).

Sou formado em história pela UESB.

Nessa casa de conhecimento eu aprendi a amar e valorizar culturas,


línguas, o passado e o presente, e os mecanismos do homem, sejam eles

simbólicos ou físicos, para criar, manter ou derrubar o poder estabelecido. O


primeiro roteiro de “Nas Mãos do CEO” foi escrito em uma das aulas de
História do Brasil a partir de sua era de redemocratização.

Sou apaixonado pela arte.

Cresci escutando Andrea Bocelli e Yma Sumac. Tentava, desde cedo,


imitar a escrita de Machado de Assis e Olavo Bilac. Fernando Pessoa? Esse
sempre me intrigou. E são de escritores que me deixam inquieto que eu gosto.
Florbela Espanca conheci na faculdade, mesmo período em que comecei a ler

Simone de Beauvoir, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Noberto Bobbio e, é


claro, Zygmunt Bauman. E mesmo com mais de vinte anos de idade, e
completamente apaixonado por esses e outros pensadores, ainda não dispenso
as tirinhas de Mafalda, Garfield, Calvin e Haroldo, Peanuts!

Sou bem distraído.

Por isso eu só mexo com o que pode me fascinar e me deixar


completamente hipnotizado. Alejandro Jodorowsky? Lars Von Trier?
Christopher Nolan? Tim Burton? Devo estar assistindo algo deles agora.
Goya? Salvador Dalí? Van Gogh? Frida Kahlo? Passo horas olhando e
pesquisando as obras.

Sou bem eclético.

Tenho interesse em escrever sobre romances, erotismo, comédia,

magia, política, conspiração, existencialismo, filosofia amadora e psicologia.

E sempre tenho tempo para acompanhar o movimento das estrelas.

Você pode entrar em contato comigo por aqui:

Email – yuletravalon@gmail.com

Saber as novidades, receber brindes e me acompanhar por aqui:


Instagram – @yuletravalon

Curtir, ver minhas indicações e materiais antigos por aqui:

Facebook – /yuletravalon

E nos vemos na próxima! Até lá!

Yule Travalon.
As obras estão elencadas pela ordem de acontecimentos, caso você
queira seguir a leitura por ordem cronológica.

CONTOS

Quando o amor é Cego | Ethan e Valentina

Trago o seu Amor de volta em 7 Dias | Cadu e Vânia

SÉRIE – REDE DE PODER

Nas Mãos do CEO | Ricardo, Maria Eduarda e Leonardo

Resistindo ao Passado | Mikhael e Rafaela

Café Coado na Calcinha | Leonardo e Giulia

SÉRIE – CONSPIRAÇÃO

Protegida pelo Bilionário | Héctor e Beatriz


Caçada pelo Mafioso | Shawn e Layla

Ninguém Segura essa Babá* | Jacob e Bruna

COMÉDIA ROMÂNTICA

Show de Vizinho | Kaleb e Anne

Como Destruir um CEO Bilionário | Blake e Isabella

Ninguém Segura essa Babá* | Jacob e Bruna

SÉRIE – IMPÉRIO

Nas Mãos do Protetor | Ana Clara e Raphael

*Ninguém Segura Essa Babá é o quarto livro da Série Conspiração,


originalmente com o título “Comprada pelo Bilionário”. O terceiro livro da
Série, “Escolhida pelo Príncipe” ainda será lançado.
NINGUÉM SEGURA ESSA BABÁ

Comédia Romântica (Livro Único)

Jacob Parker, um cafajeste sedutor incapaz de amar alguém que não a si


mesmo, realizou seu grande sonho: ser CEO do Banco CS Gallagher. De
brinde vieram as manchetes de jornais e escândalos: sua fama de libertino e
fomentador de atentado ao pudor ganharam destaque nas mídias e toda sua
carreira ficou ameaçada por seu estilo de vida boêmia. A saída para limpar
sua imagem e reconquistar o respeito da elite é apenas uma: um casamento

por contrato.

Quando Bruna Martins se inscreveu em um programa de babá


americano, só tinha uma coisa em mente: fugir do padrasto abusador e
recomeçar a vida em outro lugar, com uma nova família. Mas ao chegar aos

Estados Unidos, ela descobre que um triste acidente tirou a vida dos
Hansmann, a família dos gêmeos que estariam aos seus cuidados. Em busca
das crianças em Nova York, ela vai se esbarrar com o seu novo guardião – o
polêmico, infame e extremamente atraente Jacob Parker.

Ele precisa de uma mentira que salve sua carreira e cuidar de seus
sobrinhos.

Ela precisa de um recomeço e uma nova família para suportar as


sombras do passado.

Juntos eles vão descobrir que possuem algo em comum, e talvez isso
mude suas vidas para sempre.
COMO DESTRUIR UM CEO BILIONÁRIO

Comédia Romântica (Livro Único)

Isabella Miller Hathaway é uma brilhante jornalista que não consegue


emprego em lugar algum. Desde que terminou com Chad Dawnson, sua vida
virou de cabeça para baixo: ele retirou a guarda de seu filho, constantemente
a persegue e usa da influência do pai, um poderoso juiz, para intimidar
qualquer um que pense em dar uma oportunidade de emprego para a nova-
iorquina. Decidida a fugir com o filho e recomeçar a vida, Bella vê a luz no

fim do túnel quando é contratada para investigar e destruir a carreira de um


poderoso homem. Tudo o que ela precisa é se infiltrar na vida de Blake
Gallagher, alguém que fez parte de seu passado, descobrir suas
vulnerabilidades e expor para o mundo inteiro.

Blake Gallagher é um bilionário arrogante, rude e sem coração. Para


substituir o pai na presidência do Banco CS Gallagher ele é capaz de tudo e
por isso arranjou inúmeros inimigos. Controlador, frio e calculista, abriu mão
do amor para ser um dos homens mais poderosos do mercado financeiro
americano – a única pessoa capaz de conhecer seu lado humano é Rowan, sua
filha com Síndrome de Down. Quando seu irmão Franklin Gallagher tenta
enfrentá-lo na disputa pelo cargo de CEO, Blake sabe que os fantasmas de
seu passado podem vir à tona, principalmente pelo retorno da “senhorita

Miller” à sua vida, a mulher que ele comprou a virgindade no passado.

Bella fará tudo o que for necessário para proteger a si e ao filho das
garras de Chad, mesmo que isso signifique destruir o homem que a ajudou no
passado – por isso usará um disfarce inusitado para ser a secretária gostosona
do CEO. Blake lutará pelos seus segredos e objetivos, mesmo diante da sua
única fraqueza. Nessa briga de egos pelo controle um do outro eles
descobrirão que juntos podem ser mais fortes para recomeçar?
Bella e Blake estão prestes a descobrir.
NAS MÃOS DO CEO

Livro sobre conspiração no Brasil.

Ricardo Leão sempre desfrutou dos prazeres da vida: viveu


intensamente, viajou o mundo e arrastou todas as mulheres que quis para a
cama. A única coisa que ele não conseguiu foi obter sucesso em sua vingança
contra seu tio, o homem que matou seu pai e o sócio, assumindo o poder da
LEÃO&DOURADO, um conglomerado que atua principalmente na área de
construção. No entanto, Ricardo pretende tomar o poder de uma forma
inusitada: contrata uma garota como “acompanhante de luxo” para que ela se
infiltre na empresa, durma com quem tiver de dormir e descubra as fraquezas

e segredos do alto escalão. Com isso, ele terá em suas mãos a empresa e

realizada sua vingança.

Maria Eduarda Ferrari precisa sustentar a família; com uma mãe


depressiva que nunca sai da cama e uma irmã mais nova, ela se sente
intimada a manter a família em pé, mesmo que isso contribua para que ela

não tenha tempo para uma vida pessoal: ela cursa Letras e todo o restante do
seu tempo é gasto como garçonete no Restaurante Romano ou em outros
bicos que encontra... quando encontra... até que Ricardo Leão lhe faz uma
proposta indecente. E irrecusável.

Ela tem contas a pagar; Ele tem uma vingança em rumo. Ela quer
descobrir como é o mundo dos ricos e poderosos; Ele carrega uma série de
segredos que podem afastá-los.

Logo agora que ele está se apaixonando...

Logo agora que ela está em suas mãos...


PROTEGIDA PELO BILIONÁRIO

Primeiro livro da série “Conspiração”.

Beatriz Rodrigues é uma mineira que foi para Nova York em busca do
sonho americano. O resultado? Tudo o que conseguiu foi ser uma imigrante
ilegal, com medo de ser encontrada e deportada a qualquer instante.
Esgueirando-se pelos cantos durante o dia e stripper pela noite, Beatriz se
tornou “Sabrina”, objeto de desejo dos homens poderosos que frequentam o
La Chica, o clube noturno onde se apresenta. Bia nunca encontrou motivos
para aceitar as propostas indecentes que recebia até Héctor Mitchell lhe
oferecer muito mais do que um Green Card, uma conta gorda e a

independência que ela tanto almeja.

Héctor Mitchell é um bilionário muito cobiçado pelas mulheres da elite


nova-iorquina, mas ele não passa mais do que uma noite com elas; ninguém é
capaz de prendê-lo, o amor é apenas um fantasma e o mundo um mar de
oportunidades. Obsessivo por controle, Héctor vê as coisas saírem do

controle quando seu pai, o CEO da Mitchell & Smith entra em coma e seu
testamento é aberto: Héctor é o único herdeiro e beneficiado de todos os bens
e o cargo presidencial da empresa familiar, isso se conseguir provar que pode
ter um relacionamento sério e duradouro, sem traições ou escapadas por mais
de um ano.

Bia se sente tentada com a proposta de Héctor, mas é um perigo


inesperado que a leva aos seus braços. Ao decidir protegê-la, Héctor sabe que
terá de abrir, pela primeira vez, as portas do seu mundo: seus segredos, sua

verdadeira face... e o seu bem mais precioso: Anthony, seu filho acamado,
cheio de problemas e doente.

Poderia um casamento por contrato se tornar uma amizade, paixão ou


até mesmo um amor?

Beatriz e Héctor estão prestes a descobrir.


Primeiramente agradeço a Deus.

Se ainda estou aqui, vivo e escrevendo, deve ser um mistério que só Ele
entende.

Não foi um ano fácil. Além da bactéria filha-da-puta micróbio-do-


caralho tive que lidar com minha ansiedade e depressão voltando.

Houveram dias que eu nem saí da cama. Houveram dias que eu nem
comi. E só Deus sabe o quanto eu precisava do meu tempo, de um tempo das
redes e algumas pessoas, para recomeçar.

Agora agradeço a você. Por ter chego aqui, por ter lido até aqui, por ser

seu primeiro contato com uma obra minha ou mais uma aventura em minhas
loucuras.

Heráclito de Éfeso costumava dizer que “ninguém pode entrar duas


vezes no mesmo rio”. Eu, filósofo de coisa alguma, desejo que você não seja
a mesma após ler esse livro. Que ele tenha mudado algo em sua vida, de
alguma forma. Nem que seja pelas piadas bobas, pelas reflexões de botequim
ou pela história de Guilhermo e Yasmin.

Agradeço ao meu pessoal dos bastidores, sem essas pessoas seria

impossível entregar a qualidade visual e de escrita que tanto preso. Obrigado


Talita Laquímia, Dani Vazzoler, Lucas Bernardes, April Kroes!

Agradeço às betas maravilhosas que foram ajustando os recortes do


livro, mostrando o que precisava ser incrementado e tirado. Recebam meu

amor e respeito @loucuras_resenhas_spoilers – Mérice, Nane e Ma tem me


ajudado bastante a engrossar o caldo das histórias. E estamos eufóricos neste
momento, produzindo o livro do príncipe (ops, falei. Continue lendo o
arquivo até o fim para conhecer minha nova história!). Também quero
agradecer a Lorrana Alice pela leitura e comentários, além de ter dito a
melhor frase sobre uma personagem minha: “o diabo trabalha duro, mas
Elizabeth Boccuti trabalha mais”. Hahahahahahaha!

Pelas jogatinas até tarde da noite, trocando figurinhas e preparando o


roteiro de nosso próximo livro juntos, G. R. Oliveira, obrigado por ser meu
irmão. Agradeço a Zoe X por me acolher, me adotar em sua família aqui em
São Paulo e dividir momentos incríveis comigo. Nana Simons, tudo pra mim,
parceira de karaokê e estilo Kardashian de viver (hahahahaha). Amo vocês
do fundo do meu coração <3
Vocês não sabem, mas enquanto escrevia Show de dia dos Namorados

eu estava no ponto mais crítico de minha ansiedade. Mal saía de casa, mal
dormia, tinha crises que vinham do nada e por motivo nenhum.

Escrever aquele livro foi a salvação da minha vida, porque pela


primeira vez em meses consegui espairecer, concentrar minhas forças em

algo que amava e compartilhar momentos especiais do meu menino das


fomigas.

Obrigado por seu carinho. Obrigado por ter lido esse livro. Obrigado
por ter dado uma chance ao meu menino.

Em “Como Destruir um CEO Bilionário”, Bella pergunta a Blake: não


quer me perguntar porque sou assim? Por que sempre tento fazer graça com
tudo? E a resposta dela é a minha resposta.

Por detrás das minhas piadas, minhas tiradas de humor e momentos

loucos de comédia, estou suprimindo algumas lágrimas. Rindo de dores do


passado, me divertindo com lembranças que machucam, extravasando as
partes que me sufocam.

Uma vez me ensinaram que rir espanta qualquer demônio, olho gordo
ou maldição. É verdade. Em Show de dia dos Namorados eu espantei muita
coisa e ao escrever esse livro aqui, espantei ainda mais.
Por isso eu desejo que ria. Espante seus fantasmas. Afaste o que te
assola.

Ao rever as avaliações deixadas no meu primeiro livro Young Adult, eu


senti o carinho de vocês. Imaginei o quanto riram e o quanto torceram pela
Emily e Nicolas, assim como eu torci para que ele um dia encontrasse o
amor.

Obrigado pelo carinho com meu pequeno menino fomiga. Ele manda o
toma carinho dele, do lado de cá.

Como de praxe – e minha parte favorita nos agradecimentos –, coloco


os nomes de quem avaliou “Um Show de dia dos Namorados”, meu último
livro, como forma de agradecimento.

As meninas que tiveram as resenhas publicadas no livro físico: Carol


Ferreira, Juliana Alves Magaldi, Annabella Literária, Nany Hächler, Cely
Soares, Lidiane Mastello (@amorporlivros_1991) e Chrystal Rocha. Muito

obrigado por abrilhantarem a obra com avalições tão lindas!

Vocês estão aqui há tanto tempo que já fazem parte de casa! Algumas
conhecem minhas obras melhor do que eu! Obrigado Ceci Conceição,
Antônia Maria Farias Silva Xandu, Deinivan Paiva (Deiva), Lu Literária,
Ivone Duarte, Lays Cristina, Kelly Chaves, Talita Cerqueira, Paty Nunes,
Luciana Tenório, Camila Gomes (e provavelmente muitas outras, já que eu
fui pegando nome por nome e acabei me emocionando ao ler as avaliações).

Feh Seixas que queria tanto essa história e conversou comigo no

lançamento da Zoe X, Daisy Capistrano que chegou e tem feito brindes


lindos para os livros físicos, Luciana, Aline e várias outras meninas que
compraram o físico do menino fomiga <3

Obrigado por avaliarem e me emocionarem tanto! Em dias complicados

de ansiedade como os que vivi esse ano, releio suas avaliações e lembro o
motivo de escrever. Suas palavras não me deixam desistir: Artur, Carla
Barbosa, Karyna Souza, Yuna, Mônica Guimarães 10, Gracy Carla, Flávia
Souza, Isabela Azevedo Tavares, Cleiva Paiva, a autora Bruna Rodrigues,
Adiany Rosely, Viviane Oliveira, Aline arruda, Stephani Cristina, Amanda,
Paula Souza, Angélica, Patrícia Fernanda marafigo, RaiGf, Mari n., Carina
timn, Suelen, Luciana, Juliana h.cardamone, Sheila, Bruna Luiza Queiroz,
Consuelo A. Patrocinio, Ana Carla, Andrea Oliveira, Dana Souza, Crissy,

Julia Menezes, MMBB, Maiara Sabino, Sandra, Aline Teixeira de Lima,


Vanessa, Luciara Cristina dos Santos, Gabi, Glaziele Meireles, Amanda
Freitas, Aline, Jordhana, Pammela Gaspar serafim Araújo Elisabeth kedna
bergamine dos reis, Bete dorta, Mari Dias, Carolina Marques de Oliveira.

Ester Titonelli, por seus comentários construtivos e dicas a respeito do


Guilhermo.
Como algumas avaliações estavam com o nome “Cliente Kindle”,
talvez você tenha avaliado e seu nome não esteja aqui. Mas sinta-se

representada e toma carinho! Obrigado por avaliar!

E não vá embora ainda!

Ainda tem uma cena extra te esperando e os primeiros capítulos de O


HERDEIRO – Um bebê para o Príncipe!

Seria o livro “Escolhida pelo Príncipe”?

Só Deus sabe! Haahahahahha!

Amo vocês <3

Yule.
Estava em busca de um novilho desgarrado que fugiu das instalações da
velha fazenda, quando um carro me chamou atenção. Passava pela estrada
que dava direto na propriedade da minha família e como a ilha era pequena e
eu conhecia praticamente todos os moradores e seus automóveis, achei
estranho o veículo.

Deixei de lado a busca pelo novilho e segui, segurando firme nas rédeas

do cavalo e me inclinando para frente para me equilibrar enquanto ele


disparava, para poder chegar antes que a Ferrari no casarão.

Tive a certeza de que não era um dos moradores e sim um visitante


quando saiu do carro, tirou os óculos escuros e deu uma olhada panorâmica
no lugar.

Não desci do cavalo. Trotei até chegar diante dele e ajeitei o chapéu de
couro em minha cabeça, semicerrei os olhos.

— Está perdido, forasteiro? — Tentei abrir um sorriso para não parecer

intimidante.

— Essa é a propriedade dos Lamarphe? — Sua voz grossa pergunta,


um pouco de sotaque americano, mas um português impecável.

— Quem gostaria? — Fito seus olhos verdes que brilham feito duas
esmeraldas, quando ergue o rosto em minha direção.

— Bernardo Mitchell — ele diz. — E você é...?

— Maianne. Maia, para os íntimos — respondo com sequidão. Ao


perceber que ele nunca deve ter ouvido falar de mim, digo meu nome
completo: — Então você pode me chamar de Maianne do Amor Lamarphe —
desço os dedos até a cintura e tiro a espingarda de lá. — O que veio fazer nas
terras da minha família?

Ele ri com desdém, não parece se amedrontar ao ver a arma.

— Terras da sua família? — Diz, com um sorriso maldoso. — Essas


terras pertenceram à minha família, até o seu avô Alfredo Lamarphe roubá-
las da minha bisavó.

— Não faço ideia do que está dizendo — pisco os olhos e desço do


cavalo, mas atenta aos movimentos dele.

— Eu sou filho de Anthony Mitchell — ele diz. — E Victória Leão.


Vim dos Estados Unidos porque recebi a missão de recuperar as terras da
minha família.

Eu não dou a mínima para quem são os pais dele. Atiro no chão, perto
de seus pés, para que fique esperto.

— Dê o fora daqui — é tudo o que digo.

O homem não se intimida. Na verdade, se aproxima. O fato de ser mais


alto que eu e parecer bem forte, não me assusta. Desde criança meus pais me
traziam aqui. Devo ter derrubado meu primeiro touro antes de completar 18.

— Qual era o nome da sua bisavó? — Pergunto.

— Elizabeth Bocutti. De quem Alfredo Lamarphe roubou essas terras.

— Ele não roubou — digo séria. — Ele as recebeu. Comprou.

— Comprou? — o outro desdenha. — A um preço irrisório? Terras


que tem petróleo?

Ah, então ele sabe! Deve ser mesmo quem diz ser e vir da família que
antes era proprietária das terras. Abaixo a espingarda, mas continuo alerta. O
jeito de Bernardo não me engana, parece o tipo de homem aproveitador que
espera só uma chance para mostrar quem realmente é e dar o fora.

— Diga-me o preço. Quero comprá-las.

— Essas terras me pertencem agora. Meu avô me deixou como herança


— digo.

— É, mas a minha bisavó disse que elas eram minha herança. E eu as

quero de volta.

— Só por cima do meu cadáver — cruzo os braços.

— Não é pelo petróleo, Maianne — parece se divertir quando diz meu

nome. — Faz parte da história da minha família. Preciso do lugar, senão não
posso voltar aos Estados Unidos.

— Tem um hotel lá — aponto no horizonte. — Bem de frente para o


mar. Espero que curta morar por aqui até o último dia da sua vida. Mas não
terá a fazenda de volta — é tudo o que tenho a dizer.

— É o que veremos — ele sorri, com seus olhos de esmeralda fitando-


me.
– O HERDEIRO –

Um bebê para o príncipe


HAAKON III

— Eu estou farto dos seus escândalos, Haakon! — o rei grita comigo.


— Não permitirei que manche ainda mais a reputação da Casa Iranovichk!

Sua fúria ganha força, feito uma panela de pressão, devido ao meu
silêncio.

— Não tem nada a dizer em sua defesa?

— Eu não fiz nada. Só encontrei a Lady Pâmela e disse: oi, casada. E


ela levantou o vestido... — me defendo. — Eu abaixei as calças... e o resto é
o mundo animal em ação...

O que posso fazer? Minha reputação me precede.

— O que faço com você?


— Aceite a minha renúncia ao trono e paro com os escândalos —
proponho.

— Um dia você será rei — ele ignora completamente o meu pedido,


como tem feito nos últimos anos. — Então comece a agir como um!

— Então se prepare para mais manchetes sobre a casa Iranovichk,


papai — abro um sorriso de escárnio.

Levanto-me da cadeira de madeira escura e almofada vermelha no


assento, e faço uma reverência demorada, sacudindo a mão sem parar. Em
resposta ouço-o bufar de ódio.

Tive a quem puxar. Sou mais cabeça dura que o rei e não vou realizar
seu pedido, mesmo que como ordem real: não me casarei com a mulher que
ele escolheu e não me limitarei às regras idiotas desse palácio para garantir a
sucessão do trono.

— Você não pode fugir de quem é, da sua essência! Precisa parar de

agir por impulso e aceitar o seu destino! — Esbraveja.

— Não... já sou crescido, posso fazer o meu próprio destino — ranjo os


dentes.

— A casa real jamais aceitará a sua renúncia! — Ele explode, derruba o


cetro, laptop, uma pilha de documentos da mesa.

— Nenhum de vocês precisa me impedir, se eu sumir! — Bato a porta e


marcho pelo corredor, cego de ódio.

Ainda escuto, mesmo de longe:

— Você será rei e dará um herdeiro a essa Casal Real, nem que essa
seja a última coisa que eu faça, após morrer! Volto e te atormento, seu
moleque!

E num sorriso de quem aceita o desafio, murmuro:

— Então vida longa à vossa majestade.

6 MESES DEPOIS

O meio da tarde fria e nublada em São Paulo com fina garoa me faz
lembrar da estação atual no Grande Setentrião, país formado por um
conjunto de quatro ilhas acima da Escandinávia, o lugar onde nasci.

Nesse período o sol sequer desponta no horizonte, o dia e a noite são


igualmente escuros e demorados. Luzes de um verde profundo e lilás
vibrante descortinam o céu na aurora boreal e todos buscam um pouco de
pecado e prazer para se aquecer.

São Paulo não parece diferente.

De todos os lugares por onde passei desde a minha fuga, o Brasil foi de
longe o mais interessante e rico em experiências. Vivi tantas culturas, climas
e situações dentro deste país, que a sensação de que viajei o mundo inteiro
sem sair daqui me consome.

Para minha surpresa, conheci muitos imigrantes que encontraram aqui


um lar, o que me fez decidir por encerrar minha jornada em busca de uma
nova casa e ficar na cidade da garoa.

Mas aí eles me acharam.

Começou pela manhã.

Saí no meio do dia para vender alguns diamantes e ter dinheiro vivo em
mãos, já que usar cartões estava fora de cogitação. Meu país é um dos

maiores produtores de diamantes no mundo, minha família possui um estoque


invejável e eu estou vivendo como se não houvesse amanhã com a parte que
me cabe da riqueza.

Deu certo. Até o momento.

— Droga! — Resmungo.

Coloco as mãos dentro do moletom ao encarar em um dos muros da


Avenida Paulista um cartaz gigante com minha foto. Leio rapidamente os
escritos em vários idiomas: você viu esse homem? Contate-nos pelo
número...

— Não é ele? — uma mulher aponta o celular em meu rosto, ouço um


click baixinho e a vejo andar depressa, quase fugindo como se eu fosse algum
tipo de criminoso.

Arranco o cartaz da parede e o jogo no lixo mais próximo. Não era

bom, de todo modo, não valorizava meu perfil, nem mostrava minhas novas
tatuagens.

Deveriam atualizar essa foto.

— Depressa! Nós o encontramos! — Ouço duas vozes que soam em


minha língua materna, viro o pescoço para conferir.

Ao ver o selo real de minha casa estampado em seus ternos, não tenho
dúvida: pertencem à guarda secreta do palácio. Imediatamente viro para o
lado oposto, mas as vozes aumentam:

— Alteza?!

— Mais rápido, não o deixe escapar! Ligue para todas as autoridades,


diga que o encontramos!

— Senhor?!

Corro o mais rápido que consigo para o metrô mais próximo, conforme
avanço as pessoas vão se afastando da calçada, dando espaço. Dou graças a
Deus por ter alguns reais no bolso para comprar o bilhete, pulo alguns lances
de escadas para ganhar tempo e desapareço em um vagão.

— Malditos, não acredito que vou precisar ir embora deste país. Logo
quando estava me encontrando... — digo ofegante, quando tenho tempo para
isso.

Se essa é a última vez que estarei em São Paulo, vou curtir a noite
como se o mundo fosse acabar. É tudo o que penso.

Vendi menos diamantes do que queria, mas estou com uma mala cheia
de dinheiro. Planejei toda a minha fuga: posso voltar para Bahia, um lugar
quente e acolhedor. Vou viver velejando e sem dormir, por causa das festas
alternativas. Depois dou um jeito de pedir exílio no Japão, quem sabe em
Dubai...

Prestes a chegar numa das casas noturnas mais caras que a cidade que
não dorme tem a oferecer, vejo os homens de mais cedo. Apresso o passo
para entrar, mas eles me alcançam, tão absortos quanto eu por esse encontro.

— Que merda! Vocês não desistem! — Resmungo.

Ao ver o maior deles abrir a boca, o interrompo com a mão.

— Não diga uma palavra! Não me importa, não quero saber. Eu me


desliguei dos meus deveres reais, mesmo que seu rei não tenha aceitado.
Então voltem para a Velha Escandinávia e me deixem em paz!

— Vossa Alteza, príncipe Haakon — ele se dirige com muito respeito a


mim e se curva.

O que chama bastante atenção na fila lotada para entrar na casa


noturna. As pessoas começam a esticar o pescoço e perguntar em voz alta

quem sou eu.

— Não faça isso, não aqui — o levanto. — Não vou voltar e vocês não
podem me levar à força — cruzo os braços.

— Não tem acompanhado os noticiários, Alteza?

— Não. Não perco tempo com TV e internet, tem tanta coisa para viver
fora daquele palácio que a última coisa que quero é notícias de minha pátria!

— O senhor precisa voltar, Alteza — o outro diz, curva a cabeça

sutilmente para não chamar tanta atenção.

— Como vieram parar aqui? Fui tão óbvio assim? Primeiro fui para o
Canadá, depois estive no Chile... Caramba... Vocês dois devem ser bons
mesmo!

— Não há mais tempo, precisamos tratar algo de urgência.

— A minha única urgência é encher a cara e perder o juízo essa noite


— rio. — Longe dos paparazzi e manchetes do Setentrião. Me procurem
amanhã... ou quando eu estiver sóbrio novamente... quem sabe semana que
vem...

Aproximo-me do segurança na porta da casa noturna, pronto para


entrar.

— O senhor precisa retornar e assumir o trono.

— Como vocês são chatos... nunca desistem — resmungo e dou-lhe as


costas.

— Seu avião chega amanhã no fim da tarde.

— Quantas vezes preciso repetir? Não quero, nem preciso da porra do


trono!

— Viemos buscá-lo porque sua majestade, o rei, teve um mal súbito e


estava no hospital...

Interpelo o homem antes que me convença com seu teatrinho.

— Pois mande os meus mais sinceros votos de boa saúde e recuperação


à sua majestade.

— Alteza... o rei está morto.


RAVENA LESSA

— Você vai ser minha ou não será de mais ninguém.

Aos 12 anos, numa aula de história, a professora Sônia desafiou a


turma a escrever uma linha cronológica que contasse toda nossa trajetória de
vida:

— O conceito da micro-história, é que fatos acontecem conosco


enquanto grandes coisas ocorrem no mundo. Então façam uma linha do

tempo contando todos os acontecimentos importantes que marcaram as suas


vidas no passado e o que imaginam que pode acontecer daqui para frente!

O exercício era criativo e me deixou muito empolgada.

Em um cartão de gramatura grossa, a minha cronologia começava


assim:

Nasci no dia 19 de novembro de 1999, ali pertinho da virada do século.


Aos 4 anos, meus pais e eu nos mudamos de Guarulhos para Poços de
Caldas em Minas Gerais.

Não fiz alfabetização na escola, sou filha de uma professora, então


aprendi a ler e escrever desde cedo, pulei direto para a primeira série, por isso
sempre convivi com crianças um ou dois anos mais velhas que eu.

Aos 9 anos, na quinta série, conheci Gustavo Borges.

E isso mudou completamente meus planos para o futuro.

A linha do meu conto de fadas que previa o futuro seguia assim: aos 15
vou me formar no ensino médio; aos 16 Gustavo e eu daremos nosso
primeiro beijo e entrarei na faculdade de inglês. Com 17 quero começar a
trabalhar, para aos 18 conhecer a Inglaterra com o meu namorado (guardei
para mim mesma que perderia a virgindade nessa ocasião). Aos 19 vamos nos
casar, com 20, formada, vamos nos mudar para a capital de Minas e aos 25
quero ser mãe de um príncipe.

Expectativa: uma menina sonhadora e apaixonada pelo garoto mais


interessante da escola, achando que viveria uma vida de princesa da Disney.

Realidade: preciso fugir do país. Para um lugar tão tão distante.

— Você vai ser minha ou não será de mais ninguém — Gustavo repete,
ao pé do ouvido.

Pressiona o cano frio de sua arma em minha nuca e me abraça por trás,
sua cintura se move de forma muito violenta e eu estou quieta, as lágrimas
descendo em silêncio, engulo o choro e o desespero para fazer suas vontades.

— Me diz quem é o seu dono.

Na ausência da minha resposta, ele afasta meus cabelos escuros e


volumosos do rosto, aperta a arma contra a minha bochecha e ergue o rosto
para me encarar.

— Diz que eu sou seu dono — rosna de forma mais agressiva.

— Você é... — digo, não sem soltar um gritinho de desespero.

— Diz que você me ama.

— Eu... eu te amo...

— Diz que você nunca vai me deixar!

O meu silêncio que dura meio segundo e meus olhos dilatados, o faz
estapear meu rosto com força. Gustavo aponta a arma para o teto e atira, só

para me provar que ela está carregada e ele está pronto para acabar com toda
essa merda.

— Diz que você nunca vai me deixar! — Ele manda, sinto a linha fina
entre vida e morte no calor do cano da arma em minha testa.

— Eu nunca... NUNCA vou te deixar, Gustavo — engulo o choro.


Assim como fiz com o meu orgulho e meus sonhos do futuro.
A verdade é que vou deixá-lo, sim.

E vai ser essa noite.

A essa altura do campeonato, com 24 anos, eu imaginei que estaria


vivendo o famigerado “felizes para sempre” de minhas fantasias pré-
adolescentes com o garoto que eu amava.

Na verdade, eu sei muito bem que estou no começo da história, naquela


parte que as meias-irmãs da Cinderela a colocam para catar ervilhas no chão
ou o pai da Bela fica preso numa torre por ter roubado uma rosa da Fera –
quem sabe dentro de um filme de terror, ao observar os últimos meses, acho
que combina mais com minha situação.

— Você não existe sem mim — Gustavo empurra meu corpo para longe
e se limpa com o lençol, joga-o na minha cara. — Lembre-se disso.

E sai, batendo a porta do quarto.

Eu não sabia que quando criança, ao desejar aquele belo garoto de


olhos zuis, banquei a profetiza de minha própria história.

E a carrasca também.

Tudo o que escrevi naquele cartão de uma aula de história aos 12 anos
de idade, de fato se realizou. O meu primeiro beijo (e perda de virgindade) foi
com Gustavo. E não só namoramos, viemos morar juntos em Belo Horizonte,
capital de Minas Gerais, longe de nossas famílias.
A única coisa que difere do meu plano original, é que me formei em
psicologia, não em inglês (embora eu me tornei fluente nessa língua). E o

meu príncipe encantado na verdade era um sapo – daqueles bem venenosos.

Comecei a trabalhar aos 17, como estagiária em uma clínica particular,


em um prédio comercial bem no centro da cidade. Gustavo passou no
concurso da Polícia Federal, nos mudamos para um apartamento maior e eu

já estava vendo meus planos de ser mãe aos 25 se concretizando.

— Não, ela ainda não merece ser mãe. Tem muito que aprender — Ele
dizia em tom de humor na frende dos meus amigos.

E comumente dizia para mim:

— Você vai me dar um filho, sim. Quando merecer.

Tudo em nosso relacionamento era sobre isso. “Merecer”.

Tudo bem que era sempre em tom de piada para amenizar o peso das

palavras, mas Gustavo foi se transformando em outra pessoa, aos poucos.


Sempre foi ciumento, nada de tão exagerado, até o dia em que doou as
minhas roupas porque achava que eram curtas ou tinham decotes demais.
Não demorou muito e eu o peguei usando meu celular escondido – numa
dessas discussões ele me convenceu a deletar todas as redes sociais.

O tempo passou... percebi que a área que eu queria trabalhar na


psicologia estava ligada ao sexo e me tornei sexóloga e terapeuta de casais –
olhe só a ironia, comecei a salvar o casamento dos outros.

Como se tudo já não estivesse estranho o suficiente, meu namorado ia

me buscar no trabalho, não me permitia voltar sozinha para casa... minha


fama cresceu, gente da alta sociedade começou a vir à clínica que eu montei
no mesmo prédio em que fui estagiária... daí, de uma hora para outra,
Gustavo decidiu que seria bom que eu trabalhasse de casa.

Segundo ele, eu podia muito bem atender meus pacientes pela webcam.
Por que não pegava bem ficar a sós com outro homem dentro de uma sala a
portas trancadas por 45 minutos.

Quando menos percebi, estava afastada dos meus amigos do trabalho...


de minha própria clínica... já não tinha mais contato com os amigos da
faculdade...

E então eu entendi. Quero dizer, descobri.

Na sétima sessão de terapia com uma paciente chamada Érica Gusmão,

ela me disse com quem eram seus problemas conjugais: Gustavo Borges, um
rapaz que veio do interior de Minas, passou no concurso da polícia, se
conheceram na faculdade... e tiveram uma filha.

Ele não tinha só outra vida! Ele tinha uma filha! Uma filha!

Era o casamento perfeito. O pai dela, um político famoso daqui de BH,


adorava o genro. Mas Gustavo às vezes sumia... não atendia as ligações... já
parecia não desejá-la como antes...

— Acha que pode me ajudar, doutora?

Ravena. Esse era o nome da filhinha dele. O meu maldito nome.

O tipo de piada tão idiota e tão cretina que me deixou sem reação, ao
descobrir.

Me senti tão humilhada, tão menosprezada e enganada que fiz minhas


malas e decidi ir embora para a casa dos meus pais, no interior.

— No dia em que você me deixar, eu te mato — foi o que ele disse.

Me fez ligar para os meus pais e cancelar a ida repentina, me fez dizer
– com a arma na cabeça – que tanto trabalho havia acabado com minha saúde
mental e eu precisava me desligar de tudo e todos para me recuperar.

Oito meses se passaram desde então. Duzentos e quarenta dias em que


tive tempo para muitas coisas: planejar um homicídio, me matar ou fugir.

Eu vou fugir.

Como diria Freud, ou Arnold Schwarzenegger: “hasta la vista, baby”.

Já saí do estado de negação, parei de acreditar nas mentiras dele de que


abandonaria a mulher e ficaria comigo, aceitei que eu podia salvar qualquer
casamento, menos o meu...

O estopim, o relâmpago que iluminou meu céu e mudou tudo, veio


quando ele começou a ficar agressivo e me bater, chegamos ao cúmulo de ter

uma arma apontada em minha cabeça para que eu sirva aos seus desejos.

Eu não aguentava mais.

Quase me tornei atriz de tanto fingir que estava bem, de que podia
esquecer tudo, que ainda o amava, como a garota iludida de 12 anos.

Já não sinto nada. Só quero sair daqui.

Num dia desses, quando estava limpando a casa para minuciosamente


pegar o que era necessário para fugir, encontrei duas coisas: uma foi o papel
grosso e escrito com canetão que contava minha cronologia, feito aos 12
anos. Constava ali, nas seguintes palavras: aos 25 serei mãe de um príncipe.

Chorei desesperadamente, culpando a menina burra que fui.

Como não enxerguei os sinais? Como pude deixar que minha vida
tomasse esse rumo? Onde errei para que Gustavo se casasse e desse um filho

à outra mulher?

Agora, mais do que nunca, eu sabia que jamais realizaria o sonho de ser
mãe aos 25, quem sabe em idade alguma.

No meio de tranqueiras dentro de uma gaveta, achei um cartão de


visitas com nome, endereço e telefone de Leon, meu primo.

Leon também morou no interior e quando se assumiu gay foi um


grande escândalo, ainda mais em nossa família tão religiosa numa cidade
pequena. Foi embora para São Paulo e de lá foi para Paris.

— Nena, sai dessa pelo amor de Deus! — Ele disse desesperado, ao

telefone.

— Eu estou tentando. Juro que estou tentando, Leon...

— Não tem um vizinho? Um amigo? Alguém que possa te ajudar a

fugir daí?

— Não, não tem... — lamento.

— Precisamos bolar um plano. Você pode ficar aqui em casa enquanto


se recupera mental e financeiramente...

— Leon, não quero te incomodar, ainda mais agora que sua vida está
dando certo em Paris...

— Prima, tenho duas coisas para te contar — ele respira fundo: — Não
estou mais em Paris. E não vai ser incomodo nenhum. Você foi uma das

poucas pessoas da família que não virou as costas pra mim e não me tratou
diferente quando me assumi, tenho muita consideração por você... Vamos
fazer assim, se eu te mandar a passagem, você vem?

Parecia um anjo caindo do céu, vindo em minha salvação.

Ou uma fada madrinha.

Chorei tanto ao telefone porque vi ali uma luz no fundo do poço em


que eu estava. E eu nem pedi nada, só queria desabafar e chorar, porque doía

demais passar e guardar comigo tudo o que estava acontecendo.

— Onde você está morando?

— Em Koioskovo.

— Que lugar é esse? É na Rússia? — fico toda arrepiada.

— Não, boba. É em um reino bem ao norte da Suíça,


chamado Setentrião.

— Nossa... nunca ouvi falar, Leon.

— Prima, se não vier, por favor, promete que vai sair daí e não vai virar
estatística!

— Vou sair daqui, sim.

— Não vale a pena viver com esse homem, Nena, não importa que ele
é seu primeiro amor. Se tu me ama e se ama, cai fora, garota!

— Posso pensar na sua proposta, Leo?

— Pode sim. Mas por favor, pense rápido, não quero que aconteça o
pior...

— Mas como eu vou te pagar? — Fico inquieta.

Procuro na internet o preço da passagem só de ida para Koioskovo e


quase caio dura no chão.
— Você pode trabalhar em minha confeitaria, que tal? Você não havia
me dito que encontrou meu cartão aí em suas coisas e que tinha se formado

em gastronomia? Só vem, Nena, vamos fazer a confeitaria Lessa ser um


sucesso aqui!

É. Eu menti para o Leon.

Estava desesperada, precisava ser ouvida e não queria reaparecer do

nada depois de um ano sem falar com ele só para pedir um favor.

Disse que me formei em gastronomia, que tinha montado uma cozinha


autoral mineira aqui em BH e pedi umas receitas a ele, para iniciar a
conversa. Mas avançamos bem rápido e eu desabafei tudo antes do tempo.

Tinha tanta coisa entalada na garganta, tanta frustração, tantas noites


mal dormidas... me derramei como um rio.

E o maior spoiler vem agora: não sei fazer brigadeiro sem queimar,
imagine confeitar um bolo!

— Vem, Nena, por favor... se não pode ficar nos seus pais, nem tem
outro lugar para ir...

— Não... não... eles adoram o Gustavo e frequentam a igreja que os


pais dele são pastores...

— Então, prima, sai daí. Posso te pagar uma passagem para qualquer
lugar do mundo, mas aqui posso cuidar de você. Pense que não vai precisar
pagar as contas, terá um teto, comida quentinha, roupa lavada...

— Tá bem — me dou por vencida.

Não queria amolá-lo, mas a proposta é tentadora e eu preciso sair desse


inferno.

— Promete? Posso comprar a passagem agora?

— Sim... mas espere, precisamos de uma data e eu vou planejar a fuga.

Meu plano de fuga foi o seguinte: deixei tudo para trás.

Geladeira, fogão, a televisão gigantesca da sala... o apartamento que eu


paguei mais que a metade e o carro que Gustavo já não me deixava dirigir.

Minha clínica, os livros raros e enciclopédias, meu escritório e o quadro


vazio que ostentava meu diploma na parede.

Tudo ficou para trás.

Na madrugada de uma quinta-feira em que Gustavo saiu para o trabalho


– ou foi ficar com a esposa –, joguei roupas (dei preferência para as de frio),
diploma e notebook, tudo dentro de uma mala grande, na de mão coloquei
roupas íntimas, produtos de higiene e um sobretudo felpudo.

Usei o aplicativo de Uber na conta de Leon, parti para o aeroporto e

viajei para Guarulhos, onde eu ia pegar o voo internacional primeiro para o


Reino Unido e depois para o Setentrião.

Para minha total surpresa a viagem foi um sucesso – até Guarulhos.

Eu ainda tinha que esperar uma hora até embarcar novamente, então
sentei em um banco afastado de todas as pessoas para comer o sanduíche que
trouxe de casa, só haviam outros três homens sentados a uma distância
considerável.

— Fica calma e não grita — ouço a voz de Gustavo ao meu ouvido.

Nessa hora senti a comida entalar na garganta, tossi alto e quase


coloquei o lanche para fora. O dia era frio, mas não foi isso que me fez
tremer, foi a presença dele.

— Achou que eu não perceberia? — Gustavo lambe os lábios e olha ao


redor.

— Gustavo, me deixa ir...

— Eu te falei, Ravena — segura com tanta força em meu braço que


sinto a circulação de sangue ser prejudicada. — Ou você é minha ou não será
de mais ninguém.

— Gustavo, na frente das pessoas não — choramingo.


— Eu estou armado — ele sussurra. — Levante-se. E vamos embora
para casa.

— Eu não quero ir... — faço um bico.

— Para onde você ia, hein, sua vagabunda? Ia correr pra dar pra outro,
é? — segura em meu queixo com agressividade, mas seu semblante continua
límpido.

— Gustavo, me deixa ser feliz, por favor — me desespero e começo a


chorar.

Ele me abraça contra seu corpo para abafar o barulho e fazer cena para
os transeuntes.

— Você só vai ser feliz comigo — afasta minhas lágrimas. — Eu te


perdoo, tá? — Sela nossos lábios com demora, sinto o gosto salgado invadir
minha boca. — Vamos voltar para nossa casa, dizer para as pessoas que você
teve um colapso nervoso e tudo vai ficar bem.

— Você vai mudar? — Pergunto, as mãos trêmulas mal conseguem


ficar paradas no colo.

— Eu vou mudar, amor. Por você. Eu te amo — ele me levanta junto


consigo e me faz sentir sua arma dentro do uniforme. — Agora vamos lá,
voltar para o nosso ninho de amor.

As pessoas ao redor continuam distraídas, prestando atenção aos


letreiros que anunciam os próximos voos – o meu, inclusive, vai sair em 45
minutos e a chamada para embarcar já começou.

— Vem amor. Confie em mim. Eu te amo — ele sussurra, os olhos azuis


brilham.

Gustavo fecha a mão em meu punho com muita força e arrasta minha
mala com a outra. Não sei o que parece às vistas das pessoas: um homem

fardado com jeito de bom policial arrastando uma criminosa para longe dali
ou um esposo protetor tentando levar a mulher para casa.

— Não quero ir — digo baixinho, tão amedrontada só de pensar em


reviver todos os últimos seis meses da vida, que mal consigo chorar.

— Você quer, sabe que quer vir comigo. Sua vida é toda comigo, amor.
Está assim por que não tivemos um filho? Volta comigo. Isso vai provar que
você merece. Ainda dá tempo, vamos resolver isso...

— Por favor, Gustavo, me solta...

— Estou fazendo isso para o seu próprio bem.

— Se não me soltar, eu vou gritar!

— Ah, é? — Ele enfim para de bancar o bom moço e se vira para mim,
mostrando sua verdadeira face. — Grita. Grita, sua puta histérica, faz o teu
show, vai. Só vai confirmar para essas pessoas que você perdeu o juízo. E eu
estou tentando te ajudar.
— Gustavo... — choramingo, tentando me soltar.

Ninguém ao nosso redor parece ligar para a situação, mesmo vendo que

estou sendo arrastada contra a minha vontade. Assim como nenhum vizinho
nunca ligou para a polícia ou as pessoas se afastavam discretamente, na
garagem, quando viam Gustavo explodindo comigo.

— Vem, porra!

— Ela disse para soltar! — Me arrepio toda ao ouvir uma voz bem
forte e cheia de sotaque vindo atrás de mim.

Na sequência, tudo o que vejo é um coturno indo em direção ao peito


de Gustavo, derrubando-o no chão. Com a mesma força que ele cai e me
puxa para baixo, o homem estranho me puxa também e me deixa em pé, me
agarra em seus braços e me afasta de perto de Gustavo.

Pega minha mala do chão, a entrega em meus braços e me empurra


delicadamente pelos ombros.

— Foge! — Rosna bem alto.

— Mas eu... — nem sei o que dizer, fico dividida entre ver Gustavo se
levantando e o homem me enxotando do lugar. Não tenho nem tempo de
agradecer.

— Sai daqui! — Ele insiste.

E eu começo a correr, sem olhar para trás.


RAVENA LESSA

Tentei esconder o meu nervosismo enquanto passava pela imigração e


me dirigi o mais rápido que pude para pegar o avião. A fila da primeira classe
já estava vazia e a executiva ainda tinha duas pessoas, fiquei logo atrás da
última e tirei passaporte e passagem para embarcar.

A sensação de que a qualquer momento Gustavo entraria na aeronave e

me tiraria dali à força me deixou sufocada.

Andei pelo corredor com as pernas bambas, guardei a mala de mão na


parte de cima e me encolhi na poltrona da última fileira da executiva, como
se pudesse ficar invisível com esse simples gesto.

Demorou mais ou menos sete minutos até que todos os tripulantes


entrassem e as comissárias, muito gentis, os ajudasse a guardar suas malas.
Mas o sopro de alívio só veio quando ouvi:

— Senhoras e senhores, bem vindos ao voo de número 1736, partindo

do Aeroporto Internacional de Guarulhos com destino ao Aeroporto de


Londres Heathrow. Nosso tempo de voo é de aproximadamente 11 horas e 30
minutos...

Larguei a bolsa que estava no colo e comecei a examinar

freneticamente meu espaço mediano: uma outra poltrona logo ao meu lado –
vazia –, entradas USB disponíveis, um espaço contendo jornais e revistas,
além de, é claro, um pequeno televisor nas costas da poltrona diante de mim e
um espaço generoso para esticar as pernas – como sou baixinha, me contento
a ficar encolhida mesmo.

Já estava me preparando para o começo da viagem, coisa que sempre


me deixa ansiosa, quando o avião parou e começou a regredir para a pista de
passageiros.

— Com licença — chamo a comissária. — Por que o avião parou?

— Está tudo em ordem — ela tenta me tranquilizar. — Só vamos


precisar subir um passageiro de última hora e recomeçar os procedimentos.
Fique em seu lugar.

Minhas mãos começam a suar e eu fico inquieta no lugar.

Será que enfim ele conseguiu? Essa vai ser a minha sentença? Voltar
para Belo Horizonte e continuar cativa de Gustavo? Não posso aceitar.

Demorou até que eu despertasse do pesadelo e decidisse sair dele.

Planejei tudo minuciosamente e tomei a coragem de ir para um lugar


desconhecido, um país nórdico que nunca ouvi falar até uns meses atrás.

— Por favor, Deus, nunca te pedir nada: deixa sua filha fugir desse
inferno! — rezo baixinho.

O avião parece que de repente fica pequeno, quando dois homens


vestidos de preto entram.

Fodeu. É a polícia federal, eu estou perdida!

Fico dividida entre espiar o longo corredor por cima das poltronas e
cabeças de passageiros ou orar.

Os dois homens fardados, carregam insígnias militares no peito e


andam daquele jeito robótico e altivo de gente do exército. A comissária de

voo vem prestativa, logo atrás deles, tenta acalmar os passageiros com as
mãos.

Quando os três param diante de mim, fico dividida entre calcular um


novo plano de fuga e sorrir de um jeito decente para que não suspeitem que
estou prestes a quebrar a janela e pular fora. De toda sorte, evito um contato
visual.

Como diria Freud, em suas famosas sessões: vai ser dedo no cu e


gritaria.

— Com licença, senhorita — a voz simpática e cordial da comissária de

bordo não me tranquiliza.

— S-sim? — gaguejo.

Só consigo pensar numa coisa: daqui não saio, daqui ninguém me tira!

Nem mesmo a polícia federal ou o exército!

— Posso ver a sua passagem?

Tiro-a do bolso, não sem antes apalpar a calça inteira e balançar o papel
no ar, num tremelique frenético.

— A senhorita está na poltrona certa — ela aponta.

Até agora, nenhum sinal de que vou ser presa.

— Consideraria ceder o seu lugar para um desses dois cavalheiros e


pegar o próximo voo?

— Quê? Pegar o próximo voo? Não. De jeito nenhum!

— Além disso vai ficar em um hotel custeado pela nossa companhia e


receber um valor em dinheiro para cobrir qualquer despesa que tenha — ela
checa os homens mal-encarados atrás de si.

— Não, meu anjo. Me ajuda a te ajudar — digo nervosa. — Preciso sair


desse aeroporto o mais rápido possível e não é para ficar em um hotel.
Preciso estar nesse voo.

De repente me calo e me preparo para encolher no lugar.

Um novo passageiro surge pelo corredor, puxando sua mala de mão.

É ele! O reconheço de imediato!

O homem que deu um chute em Gustavo e me tomou em seus braços

para que eu não caísse no chão. Prendo a respiração ao examiná-lo: está


vestido de modo mais despojado que seus seguranças, usa uma jaqueta de
couro preta bem chamativa, coturnos longos, óculos Rayban escuros e um
boné que esconde sua identidade.

Também noto que meu herói desconhecido está com um hematoma


logo abaixo do olho esquerdo, consigo ver a vermelhidão, quase roxo,
debaixo de seus óculos. Sua pele muito clara faz o hematoma parecer grave e
eu mordisco o lábio inferior como se pudesse pedir desculpas pelo ocorrido,
já que imagino que isso foi coisa de Gustavo.

Sem tirar os olhos de mim, ele estende sua passagem para a aeromoça
que confere:

— É, esse é o seu lugar, no corredor — ela assente. — Senhorita...


pense bem. Consideraria então vender o seu lugar por... 10 mil reais? — Ela
olha para os homens que entraram antes, quase que procurando aprovação.

Não vou mentir.


Parece extremamente tentador: pagaria o valor inteiro da passagem e
ainda sobraria um dinheiro para começar a vida na Europa com um pé de

meia. Mas antes que eu ceda à oferta e fale sobre meu ex psicopata que me
aguarda lá fora, percebo que o homem forte e alto de boné, bem diante de
mim, está movendo os lábios sutilmente e fazendo um gesto negativo com a
cabeça.

Acho que ele quer que eu fique em meu lugar.

— Infelizmente não posso?

— Parem de incomodá-la — a voz grave dele me faz tremer. — A bela


moça só quer viajar, não veem que a estão deixando tensa? — Suspira.

— Mas Al... — ouço um deles dizer.

— Chega! — o homem rosna, dando fim à conversa. — Ela disse que


vai ficar.

A mulher comprime os lábios ao encarar os estrangeiros e balança os


ombros.

— Senhores, estamos lotados, posso ver se outros passageiros cedem


seus lugares — diz de forma solicita e sai pelo corredor.

Sinto um alívio sobrenatural quando todos vão embora, menos o que


tem cara de estrela do rock. Ele tira os óculos escuros e vejo com nitidez o
machucado logo abaixo de seu olho cor de mel. Vendo-o de tão perto, penso
que ele nunca deve ter pego um sol na vida, assim como nunca deve ter tido
espinhas – seria uma versão viking do Edward Cullen?

Seguro-me no assento, sem conseguir desgrudar de seu olhar


penetrante. Me encolho, um pouco amedrontada, quando ele ergue a mala
para encaixar no compartimento, a camisa branca por debaixo da jaqueta se
levanta, mostrando-me a linha em V de seu abdômen, além do contorno de

seu corpo e uma tatuagem que parece terminar pelas costas, coxas e até
dentro da cueca vermelha.

O homem tira o boné, revela seus cabelos pretos perfeitamente


desalinhados e fica rindo para o nada, estica bem as pernas longas para
debaixo do assento da frente e se instala por completo.

Não sei o que dizer. Acho que deveria começar por um obrigado.

Sem a atitude dele, quando ninguém parecia se importar, acho que


estaria em outro avião, de volta para Minas.

— Você não tem ideia de que acabou de salvar a minha vida. Muito,
muitíssimo obrigada! Eu devo minha vida a você!

Fico até trêmula e emocionada por fazer essa declaração. Só eu sei a


dor que carreguei no peito e na alma nos últimos anos e mal posso acreditar
que escapei de tudo.

Uma lágrima involuntária escorre pelo meu rosto e eu começo a fungar.


Me sinto boba, idiota, vou chorar na frente de um desconhecido!

— Toma — ele tira um lenço branco de dentro da jaqueta.

Aproximo-o do meu rosto e sinto o perfume dele invadir meus


pulmões. O toque macio do lenço é uma novidade para minha pele, nunca
senti algo tão agradável e cheiroso em toda a minha vida.

— Obrigada — tento engolir meus sentimentos, começo a falar em


inglês, para treinar e ver como me saio.

— Não chore. O pior já passou — ele comprime os lábios em forma de


coração, num tom de cereja madura.

— Está fugindo também? — Pergunto baixinho e tento espiar se os


guardas, seguranças, pessoal do exército, sei lá... foram embora.

— Sempre — ele sacode os ombros.

O riso que solto parece um espirro.

— Fica tão mais bonita assim. Não chore.

— Obrigada — devolvo o lenço.

— Pode ficar. Precisa mais do que eu — diz de bom humor, seus olhos
parece que contornam meu rosto, observam meus pequenos gestos, me sinto
meio estranha.

— Ravena — estendo a mão.


O ilustre desconhecido me olha, admirado. Fica alguns segundos
parado, como se não soubesse exatamente o que fazer ou dizer.

— Iovius — sua mão toma a minha por baixo, ele beija o dorso de
minha palma e eu sinto um calafrio ao sentir seus lábios em minha pele.

Verdade seja dita: nome e hábito estranho. Quem é que beija a mão
dos outros hoje em dia?

— Iovius? — pergunto, espantada.

— Ravena? — Ele devolve no mesmo tom de estranhamento.

Começo a rir, não faço nem ideia do porquê. E no meio disso solto um
ronco ridículo que me faz enfiar o lenço no meio da cara e conter a
gargalhada boba.

— Do que está fugindo, “Iovius”?

— De responsabilidade.

Ah, o típico homem que tenho atendido por toda a minha vida. Os
casamentos nunca dão certo, ficam no mesmo emprego para sempre, não
conseguem subir na vida porque não se comprometem, não se
responsabilizam...

Antes que eu termine minha análise mental – e algo parece errado,


porque tudo em Iovius parece exalar responsabilidade –, ele devolve:
— E você? Do que está fugindo?

Abaixo o rosto e embrulho o lenço, como se fosse um origami. Solto

um suspiro lento e baixo, os olhos voltam a formigar.

— Acho que percebeu. Na verdade, foi o único em oito meses que


percebeu e fez algo... obrigada.

— Não me agradeça por fazer o que é certo — diz num tom formal.

— É que... essa era minha última chance. Se eu não embarcasse... O


que seria de mim? — Fungo novamente e aperto o pano macio contra meu
rosto, contenho o grito que vem da garganta e choro em silêncio, começo a
tremer.

Na menor menção que Iovius faz de subir a mão em minha direção, eu


protejo o meu rosto, como se esperasse a pancada vir de uma vez.

Quando espio por uma fresta entre os dedos, confiro que ele só tirou a

pequena cortina da janela oval ao meu lado e está dando uma espiada lá fora,
seus olhos brilham como duas esmeraldas em contato com a luz.

— Gosta do sol?

Essa pergunta me deixa intrigada e me faz sair do cantinho sombrio da


minha mente em que estou.

Sinto o calor irradiando pela janela, aquecer meu rosto.


— Gosto. Venho de Minas... nessa época, costumamos dizer que lá tem
um sol para cada um.

O riso dele é gostoso de ouvir, o jeito que sua boca em formato de


coração se expande e mostra seus dentes brancos e alinhados me deixa meio
perdida em meus próprios pensamentos.

— Gosto do sol — ele diz.

— Com licença — a comissária retorna. — Infelizmente ninguém


cedeu lugar ao seu pessoal, então eles tiveram de desembarcar. Também não
conseguimos um lugar na primeira classe para o senhor... E como não quis ir
na cabine com o piloto e copiloto, temo que este seja seu lugar.

— Parece perfeito, para mim — Ele me encara, como se esperasse um


comentário meu.

— Para mim também — aperto o lenço entre os dedos, afundando-o no


colo.

A voz de Iovius é muito grave e carregada de um sotaque que não é


exatamente o inglês britânico, lembra um sueco ou dinamarquês.

— Se precisar de mais alguma coisa, não hesite em me chamar... — A


comissária acena com o rosto e sai.

Quando o avião começa a se mover e os avisos de segurança são


passados mais uma vez, dou graças a Deus.
Agradeço pelo milagre que me gerou no dia de hoje e fico ansiosa para
chegar logo no Reino Unido, fazer a parada de três horas e depois ir de

encontro ao meu primo no Grande Setentrião.

— Minha nossa senhora da bicicletinha sem rodinha e sem freio —


enfio a mão dentro da bolsa, desesperada.

Esqueci de tomar o meu dramin! E nesse momento derradeiro em que o

avião levanta voo, tudo o que eu gostaria era de estar dopada.

— Não! Não! Eu não posso acreditar!

Me distraí com Gustavo tentando frustrar meus planos e depois com


esse homão que surgiu e esqueci do meu remédio!

Procuro-o dentro da bolsa, reviro tudo e não o encontro de jeito algum.


Fecho os olhos com força e mal respiro ao sentir a aeronave percorrer a pista
de voo com uma velocidade assustadora. Na guinada que dá para cima e
meus ouvidos entopem, abro os olhos e quase salto da poltrona.

Iovius está com o pescoço esticado em direção à janela ao meu lado,


seu rosto está iluminado com os raios de sol e seus olhos verdes parecem
ganhar mais vida quando fitam os meus tão de perto. Seu cheiro quente de
café e avelã invade minhas narinas feito um nocaute e as borboletas em meu
estômago se preparam para seu primeiro voo, após uma vida inteira no
casulo.
— Pelo amor de Deus, sobe logo, sobe logo... — aperto os olhos
novamente ao sentir o avião sacudir.

As minhas mãos inquietas ficam batendo contra o apoio do braço, até


sentir uma mão enorme cobri-la e segurar com força. O arrepio me obriga a
abrir os olhos e encarar o sujeito.

— Ai meu Deus! — solto um gemidinho quando o avião sacode mais

uma vez.

— Vai ficar tudo bem, respira.

Sinto a mão dele me apertar com mais incisão. E não retrocede para seu
lugar, continua com o pescoço esticado em direção à luminosidade da janela,
seu cheiro parece irradiar calor, assim como o sol.

Quando o avião finalmente se estabiliza no ar, me xingo mentalmente


com todos os palavrões que conheço. Por que diabos eu inventei de ir de
avião, se tenho tanto medo? Não podia ter pego um navio e demorado uma

semana para chegar lá? Não podia ter tomado o dramin antes da imigração?

Fiquei tão envergonhada com todo o show que dei, que fiquei quietinha
enquanto sobrevoávamos o oceano Atlântico.

Passei o dia inteiro observando a imensidão azul e tentando me


convencer de que enfim eu estava a salvo e não precisava mais ter medo de
nada.
Nunca mais alguém vai me manter cativa e me obrigar a fazer coisas
contra minha vontade.

Enfim eu sou livre!

HAAKON III

Eu não queria voltar para casa. Não nessas circunstâncias.

Algo dentro de mim dizia que uma hora ou outra eu retornaria ao


Setentrião, mas só quando eu estivesse preparado.

Meu pai, um homem conservador e com um pensamento filosófico


como dos nórdicos, sempre dizia: nada acontece sem que Deus saiba. Não
existem acasos, nada acontece por coincidência, tudo é um fio na longa teia

que ele tece.

Me senti estranho quando vi mais cedo um homem fardado arrastando


essa mulher contra sua vontade.

Cada parte dentro de mim se contorceu e eu não pude segurar meus


instintos: antes que tomasse conta, estava com ela em meus braços. Agora
estamos sentados juntos, sobrevoando o oceano.
Em algum momento durante o fim da tarde, percebi o celular dela
escorregar de suas mãos e Ravena pendeu a cabeça para o lado. Assisti tudo

em câmera lenta, quase me afastei, mas ela repousou o rosto em meu braço e
um fino sorriso se abriu em seus lábios carnudos.

— Assim é melhor, porque não chora... — murmuro.

Ao tentar voltar minha atenção para a revista que estava lendo, ouço o

barulho de seu ronco.

— O que é isso? — viro o rosto de supetão.

Ela ronca mais alto, a boca entreaberta, o nariz faz um barulho como se
fosse uma porquinha.

— Noites mal dormidas, hein? — olho para os lados, a aeronave está


em silêncio.

Puxo-a sutilmente para perto de mim, numa posição mais confortável,

para que não acorde com um torcicolo.

Passados alguns minutos, minhas vistas ficam turvas.

E antes que eu perceba, fecho os olhos e sinto minha cabeça inclinar


para o lado dela e se apoiar em cima de sua cabeça.

Durmo também.
RAVENA LESSA

Ao acordar, percebo que estou com a cabeça encostada na parede do


avião e coberta por um fino lençol azul marinho, tão macio e perfumado

quanto o lenço de mais cedo.

Meus olhos até brilham porque despertei numa boa hora.

— O seu jantar — a comissária deixa um banquete para meu


companheiro de viagem, em cima da mesa de seu banco e no carrinho parado
no corredor.

Acho que trouxe a cozinha toda do avião para ele.

E para mim, um sanduíche murcho com suco gelado em copo


descartável.

Pego sem ânimo a minha refeição e confiro as horas no relógio: faltam


poucas horas para chegarmos à Londres. E meu estômago ronca bem alto,
quase dizendo: se você engolir esse sanduíche chechelento, vai ter troco!

— Quer dividir?

Existem muitas coisas irresistíveis em um homem. E uma delas é


quando oferece comida. Ainda mais uma que parece ter sido feita em um
restaurante 5 estrelas.

— Tem certeza? Parece tão bom... — coço os olhos.

— Prove.

O grandalhão me entrega um de seus filés, alho poró salteado, batatas


rústicas e arroz. Também me oferece seu champanhe.

— Não, obrigada, estou devidamente medicada — nego com a mão,


tomei juízo e tomei meu dramin.

Não esperava o gesto e isso abrandou o meu dia de uma forma que meu
passado e meus pesadelos, definitivamente ficaram um oceano para trás.

Comi bem, muito melhor do que se tivesse engolido o sanduíche.

E fiquei ouvindo música para passar tempo, meu companheiro de


viagem estava lendo algo no kindle.

Quis perguntar para onde ia, quem realmente era, como chegou ao

Brasil e o que achou da minha terra. Também quis perguntar se poderia fazer
algo por ele, ainda mais olhando para o hematoma em seu olho a cada dez
minutos e me sentindo culpada por isso.

Mas cada vez que abria a boca, perdia o fôlego.

Meu coração batia forte, desesperado, enquanto sonhava o cheiro dele


me acompanhava e agora tenho a sensação de que estou com ele em minha
roupa.

Fui consumida por uma vergonha sem fim e me contive apenas a babar

e admirá-lo.

O pouso da aeronave foi mais tranquilo que a subida.

Fiquei hipnotizada encarando toda a Londres e depois seu aeroporto,

quase festejando por estar a um oceano inteiro de distância do meu ex.

A comissária veio escoltar o gostosão, então ele foi o primeiro a se


levantar, enquanto todos os passageiros o observavam, alguns tirando fotos e
outros em burburinhos.

— Meu pai dizia que nada na vida é completo, sem seu contrário. Então
espero que após fugir, chegue onde quer — Iovius se despede de mim com
um beijo no rosto e um abraço que me faz derreter em seus braços.

Vejo-o tirar a mala do compartimento e colocá-la debaixo do braço.

Estou tão hipnotizada e sorrindo que só percebo tardiamente um adesivo nela


– um adesivo que eu coloquei, pequeno e discreto, para identificar a minha
mala.

— Ei...

Iovius desaparece pela porta do avião, não sem antes acenar para mim –
até parece que faz isso para toda a tripulação, que está de pé assistindo-o ir.

— Aquela mala é minha — digo, por fim, quando saio do meu encanto.
Corro até a comissária.

— Oi, o rapaz que saiu levou a minha mala por engano... Essa é a dele!

— Mostro o objeto.

— Impossível, senhorita. Essa é a sua mala — ela checa.

— Não. Tinha um adesivo... era pequeno e...

— Seja bem vinda à Londres — ela sorri e me enxota.

— Ai meu deus... O que eu faço com essa mala aqui? — Sacudo,


parece mais pesada que a minha. É idêntica, mesmo tamanho, cor e formato,
só não possui o pequeno adesivo que coloquei.

Ajeito a bolsa no ombro e saio com o objeto que não me pertence, após
alguns passageiros desembarcarem.

O frio me abraça de um jeito que me agarro à roupa que estou usando e


praguejo pelos infortúnios que passei, sem esquecer é claro, do fato de que

estou feliz e longe do Brasil.

Procuro Iovius por todos os cantos do aeroporto, tento abrir a maldita


mala para ver se acho algum telefone ou forma de entrar em contato para
devolver essa e pegar a minha mala de volta. Mas sequer acerto o código
dela, nenhum genérico ou dos que procuro na internet servem.

Bom... como disse alguma poetisa francesa ou Deus após o sétimo dia
de criação: c’est la vie...
Suspiro e encaro o céu nublado Londrino pela grande janela de vidro
do aeroporto.

Pelo menos em algumas horas vou para meu destino final e encontrarei
meu primo.

E enfim vou poder recomeçar a minha vida.


HAAKON III

O avião real que me buscou em Lodres, pousa numa pista particular


destinada aos nobres.

Koioskovo, a capital do Setentrião, fica no extremo norte do país e por


isso nessa época do ano o sol não nasce, temos dias escuros, frios e
melancólicos. Durante a viagem de volta aproveitei o quanto podia para

receber os últimos raios solares, porque estava ciente de que eles seriam um
luxo que não teria aqui.

Pela janela oval do avião da família, vejo uma multidão já formada do


lado de fora, sendo contida pelo exército. Jornalistas se empurram, fotógrafos
se posicionam e os gritos da população são tão altos que escuto de dentro da
aeronave fechada.
Minha atenção é roubada quase instantaneamente quando um homem
da minha altura, vestido de preto e com insígnias no peito, entra. A pupila

preta se dilata em seus olhos verde-esmeralda e um sorriso preenche seu


rosto.

— Alteza... — Svar, o meu primo, me cumprimenta com uma


reverência demorada, depois me abraça pelo ombro. — Primo... eu sinto

muito...

— Não sei se estou triste ou furioso — bufo. — Desde que nasci escuto
que um dia serei rei, mas para isso meu pai precisaria morrer... — olho para o
teto. — Não parece um dia feliz. Eu não queria perder o meu pai,
independente do quanto discordássemos...

Svar sacode a cabeça repetidamente enquanto me olha da cabeça aos


pés, até que seu aceno se torna negativo.

— Por que está vestido como um astro do rock?

— É, eu sei, não posso sair assim — passo as mãos pela jaqueta de


couro preta. Não deveria sequer estar usando jeans.

— Não mesmo. Não parecem trajes apropriados para um futuro rei,


principalmente um que está de luto — fecha as janelas que me dão visão de lá
de fora. — Onde estão as suas vestes reais?

— É uma história engraçada...


— Suponho que sim.

— Estão dentro da minha mala — aponto-a em cima da mesa.

— Então coloque-as.

— Então... Essa não é a minha mala — abro e mostro o que há dentro:


cinco pares de sutiã e calcinha, luvas, um sobretudo feminino e produtos de

higiene.

— De onde veio isso? — Se exalta. — Melhor nem me contar... não


pode sair assim, não está adequado! Se sair desse avião parecendo uma
estrela do rock’n roll, sairá em todas as capas de jornais do mundo com
manchetes dizendo que desdenha da morte do próprio pai!

Concordo com ele. Vou tirando cada peça da mala, examinando com
calma e tentando pensar em uma saída.

— Foi exatamente o que me perguntei. “De onde veio isso?” — Seguro

uma calcinha bege em minhas mãos. — Quem usa tal tipo de coisa?

— Larga isso! — Svar a arranca de minhas mãos, tenso só de imaginar


que por algum feixe ou entrada das janelas, os fotógrafos capturaram o
momento.

Tiro o sobretudo preto e meio felpudo, parece ter sido feito para uma
criança ou adolescente, não para um homem de quase dois metros
e Svar sacode a cabeça em negação.
— Eu tenho tantas perguntas... por que não esperou o avião real no
Brasil? E por que embarcou assim?

— Por que eu tive pressa e não queria ser reconhecido — respondo


com simplicidade e observo seu ar de desaprovação, embora não o externe
em palavras.

— Você precisa causar um escândalo por onde passa, não é? Mal

voltou à sua terra natal e quer reaparecer em todos os jornais... — se diverte.


— Seu pai estaria louco...

— Ele conhecia bem o filho que gerou — pisco. — E acho que devo
usar isso ou precisarei aguardar que alguém venha com roupas pretas, em
respeito à morte do rei. Ou você tem um lençol sobrando aí?

Ele prende o riso ao acompanhar minha saga de tentar entrar na peça


tão apertada, meus braços parecem ficar o dobro do tamanho nas mangas.

— Quanto tempo vai demorar até que alguém venha até nós e traga

roupas adequadas? — Começo a bater o pé.

— Uma hora, talvez uma hora e meia... Isso, é claro, só para você ir ao
palácio e encontrar a vó, em seguida partem juntos para Drü. Haakon?
HAAKON?! — diz meu nome mais alto no fim, ao perceber que já estou na
porta do avião, vestido com o sobretudo.

A multidão vai ao delírio e começa a gritar meu nome.


Como não pode me puxar para dentro, Svar murmura:

— Retire os óculos e boné. Mantenha o rosto erguido e não sorria, pode

erguer a mão em forma de cumprimento, não acene — ele me passa todo


o procedimento e eu ajo dessa forma.

Tento me conter e não rir de seu olhar de desespero ao me ver com o


sobretudo feminino. E o grito de assombro dos súditos ao encararem o roxo

em meu olho deixa Svar paralisado, ele não tinha notado.

— Alteza, o senhor poderia nos dar uma palavra?

— Príncipe, o senhor assumirá como rei de imediato?

— Meu senhor, o que houve com seu olho?

Os membros do exército continuam com seus rostos erguidos, embora


seus olhos me sigam quando passo por eles. Os repórteres não param de fazer
perguntas e são tantas luzes e flashs em meu rosto que é difícil manter a

postura e não cobri-lo com a palma da mão.

Ando de modo firme e ergo a mão para o povo do meu país, que me
recepciona com aplausos.

Não tarda até que eu entre no carro blindado e Svar vem depois, senta-
se ao meu lado e fica em alerta, exasperado, encarando o hematoma.

— Sério? Não acredito que você fez isso. A Rainha mãe vai nos matar!
— Bobagem — minimizo. — As pessoas estão aqui em pé, no frio, não
podia deixar que esperassem nem um segundo a mais, seria crueldade.

— Para o Palácio de Skarsgard — ele diz ao motorista. — E ligue no


jornal principal do país, por favor.

— Lá vamos nós...

— E pelo amor de Deus, o que aconteceu com seu olho?

— Você ficaria chocado se visse o que aconteceu com o outro cara —


cruzo os braços.

Quando as janelas do blindado se fecham por completo, a barulheira lá


fora acaba.

E eu sou imerso em meu próprio barulho interno.

Contenho meu pulso em cima do joelho, a mão começa a se mexer


involuntariamente, em espasmos estranhos. Flashbacks e gritos vêm até mim,

discussões, ofensas e denúncias trocadas com o meu pai, ele resistindo a me


ceder a renúncia e a minha fuga.

Tudo passa rápido em minha mente e eu já sinto o peso maldito da


coroa, que se sente até mesmo quando ela não está em sua cabeça.

Nasci para um dia ser responsável por milhões de pessoas. Logo eu...
conhecido como príncipe inconsequente e irresponsável...
— O Príncipe de Drü chegou ao país com uma roupa inusitada — a voz
na tela média dentro do carro me chama a atenção. — Seria última moda? —

ironiza.

— Mas era preta, em respeito ao luto nacional — o outro comentarista


diz logo em seguida. — Sua Alteza é conhecido por não seguir as normas,
costumes e tradições. Sempre está envolvido em pequenos escândalos...

— Como quando foi pivô do divórcio do Lorde Ulisses e Lady Pâmela


— a comentarista ácida diz. — Ou quando namorou escondido com uma
plebeia que misteriosamente apareceu grávida e morta, dentro do mar...

O nome dela era Dianna, digo mentalmente, furioso. A lembrança faz


meu peito doer, como se uma faca tivesse sido fincada nele.

— Ou quando criança que ele tirou os próprios sapatos e deu para um


órfão descalço que assistia a carruagem real passar — o outro defende,
rápido, tentando apagar o incêndio do comentário anterior. — Ou quando

cozinhou no aniversário do país para uma multidão.

— Blanco, não te incomoda ter um futuro rei que não tem cabelos
grandes? — a mulher ri. — É a primeira vez em mil, quem sabe dois mil anos
que um rei do Grande Setentrião é quase careca. Em nossa tradição, homens
que pertencem à realeza e um dia assumirão o trono jamais cortam seus
cabelos, pois é sinal de seu poder e ancestralidade.
— Se não se lembra, Yanca, o Príncipe de Drü cortou seus cabelos em
uma visita ao hospital do câncer, na capital, três anos atrás. Os cabelos foram

doados para fazer perucas para as crianças do hospital. Sua


Alteza Haakon Terceiro é um homem moderno, que se importa com os
súditos e que coloca seu povo em primeiro lugar. Antes mesmo da tradição.

Contenho o sorriso, mas Svar não deixa passar.

— Não importa o quanto você seja louco e desafie as normas


estabelecidas, eles te amam — acena com a cabeça.

— A maioria deles — digo com um olhar de tristeza, olho pela janela e


aceno com a mão para as pessoas na estrada que tentam chamar minha
atenção.

— O príncipe precisa usar dessa sua boa fama para unificar o país e
afastar qualquer fantasma de uma República. Se tiver sorte, talvez consiga
que seja apenas fundada uma monarquia parlamentarista...

Meu país não é uma monarquia absolutista, temos uma constituição que
guia as ações do rei. Temos um parlamento com duas câmaras, uma de
Lordes – daqueles que estão lá pela linhagem sanguínea – e outra de Comuns
– daqueles que foram eleitos pelo povo. Só não temos primeiro ministro, o rei
ocupa o poder executivo e abaixo dele há os dois líderes das câmaras.

No reinado de meu pai, a questão de fundar uma República foi


descartada, mas sempre houve o burburinho de eleger um primeiro ministro e
minimizar os poderes do rei. Mas o carisma de meu pai e de meu avô, a

firmeza ao governar e dirigir o país, impediu que isso entrasse em pauta.

Agora as coisas podem ser diferentes...

Eu tentei fazer a minha parte, tentei renunciar. Seria melhor para mim,
para o meu país e o meu povo.

Mas o meu pai não aceitou.

— Blanco, seja sincero, você se sente confortável em ser governado por


um rei autista? — a jornalista provoca.

— Ele não é autista, tem Déficit de atenção e é hiperativo. Tem


TDAH — o outro esclarece. — E, sim, me sinto extremamente confortável
em ser governado pelo agora Almirante da marinha, engenheiro e diplomata.
Acima de tudo, um rei humanizado, que pensa primeiro em seu povo do que
em si mesmo.

—... e cozinheiro... e pintor... e economista... e mais uma dúzia de


outras coisas que ele tentou fazer e nunca finalizou.

— Credo, essa mulher deve te odiar — Svar faz uma careta.

— Ela é republicana — respondo de imediato.

Svar abaixa o volume, mas continuo a ler as legendas na tela. A voz


dele fica em segundo plano, quase que como sussurro:
— O chefe de gabinete do Palácio já preparou o seu discurso do velório
de sua majestade. Vamos partir para Drü em duas horas. Vovó escolheu 12

princesas, para que você escolha uma e tenha um herdeiro, elas começam a
chegar no final de semana. Serão 15 dias para que escolha sua consorte, e
depois 75 para gerar o bebê real. Seu pai colocou uma condição para que
você só assuma o trono e controle de tudo quando tiver um herdeiro — a voz

de meu primo vai ficando cada vez mais distante.

— Vou renunciar — digo.

— Você não pode. O país não suportaria. Já tivemos um monarca que


renunciou e o filho dele também. Seu pai era amado, um exemplo para o
Grande Setentrião. As pessoas precisam de um novo líder, um forte, firme,
que unifique a todos, Haakon. E eles gostam de você. Não devia ficar
ouvindo o que esses jornalistas dizem...

— Eu sou rebelde demais para seguir o roteiro da realeza... E hiperativo

a ponto de nunca saberem o que esperar de mim. Há coisa pior do que um rei
imprevisível? As pessoas querem confiança e estabilidade... tudo o que não
tenho a oferecer.

— E é isso que gostam em você. Fala a língua dos mais jovens, é


arteiro e cheio de pegadinhas... Vive à flor da pele, é justo e coloca as pessoas
em primeiro lugar. Vamos pensar em uma coisa de cada vez, primo. Primeiro
o baile, depois o herdeiro, então quem sabe você não renuncie quando sua

linhagem estiver assegurada...

— Não vou me casar à força.

— Haakon... o futuro do país está em suas mãos...

— Estamos falando da vida de mais de 50 milhões de pessoas.

— E você é amado por 87% delas.

— Você não entendeu, primo — suspiro.

Svar é uma das poucas pessoas que posso conversar informalmente, o


que para pessoas comuns não significa nada, mas para mim é tudo.

Todos sempre me tratam com extrema formalidade e nunca podem se


aproximar demais.

— Não quero viver essa vida planejada, onde estou sob os olhares de
todos e preciso seguir regras a todo instante. E essas princesas... todas foram

ensinadas desde crianças a como agradar o seu futuro rei...

— Sim.

— Não é o que espero de uma mulher. Não a minha mulher. Quero que
ela me respeite, não porque sou sei rei, mas porque eu sou digno e fiz por
merecer. Sabe o que foi mais incrível de estar no Brasil? Não me
conhecerem. Não saberem que era eu. Me tratavam como uma pessoa
qualquer! Já experimentou isso?

— É um luxo que poucos de nós conhecemos, Haks.

— É incrível, cara — seguro em seu ombro. — As pessoas que gostam


de ti, gostam de verdade. Não precisam fingir, só porque você é um nobre...

Pelas ruas que passamos, pessoas se aglomeram e correm atrás do

carro, chamando por meu nome. Aqui em meu país, raramente tenho
privacidade e nunca poderia ter a vida que levei nos últimos meses.

Isso significa que não posso ser eu mesmo e isso é tão cruel quanto
colocar um animal selvagem em uma gaiola.

— Príncipe Haakon! — gritam em uníssono quando saio do carro, já


no pátio do palácio, a metros de distância das longas grades.

— Príncipe! — acenam e jogam flores. — Alteza!

— Viu? Eles te amam — Svar murmura.

— Essa gente merece um rei melhor.

Ao menor sinal de meu aceno, a multidão explode em alegria, batem


palmas, cantam o hino de nosso país e jogam flores, presentes e toda sorte de
coisa pelas grades.

Os guardas só mantêm a segurança, deixam que eles fiquem no limiar


da entrada dos jardins do palácio.
Da última vez que vi um deles empurrar uma pessoa para longe, dei-lhe
um golpe na face que saiu em todos os jornais. Agora não testam mais os

meus limites.

— Sua Alteza Real, o Príncipe de Drü, da


casa Iranovichk, Haakon III! — Sou anunciado pela voz alta e grave do
arauto que fica na entrada, quando entro no palácio.

— Vossa Alteza — sou recepcionado de cara por Laios, o secretário da


família, chefe do gabinete do Palácio, o cara que gosta de me lembrar todas
as tradições e regras; ou como gosto de chamar: o papagaio do rei.

— Sentiu a minha falta, Laios? — assisto-o beijar o dorso de minha


mão.

— É claro, Alteza — abre um sorriso de canto. — Todo o seu povo


sentiu e aguardou seu retorno. Anunciamos que foi em missão secreta para
um país do oriente...

— Que legal.

— E aí o senhor apareceu no Aeroporto Internacional de Guarulhos —


ele me mostra um vídeo em seu tablet. — De boné e óculos. Dando um chute
no peito de um cidadão brasileiro. Melhor! Um Policial Federal!

— Olha aí o que aconteceu com o outro cara — mostro ao meu primo.

— É, ele te acertou em cheio — observa o momento derradeiro que


meu hematoma foi produzido. — Espera, isso são dentes voando? — Segura
no aparelho eletrônico e tenta olhar de perto.

— Fiquei gostoso no vídeo, Laios?

Ele fica quieto e ergue a sobrancelha, fazendo-se de desentendido.

— Fala que eu fiquei gostoso, esse vídeo me valorizou muito.

— É claro, Vossa Alteza — ele pisca os olhos, meio furioso e eu me


divirto. — Espero que haja uma explicação excepcional para tal atitude,
principalmente vinda de um príncipe herdeiro.

— Ele estava machucando uma mulher e fazendo-a chorar... cerceando


seu direito de ir e vir.

— Que ela procurasse as autoridades, então. A melhor saída era mesmo


que o senhor chegasse com um chute no peito do cidadão e arrancasse os
dentes da boca? — Laios olha para o vídeo.

— Teve uma cabeçada também — aponto com o indicador. — Olha só


ele desmaiando.

— E a história da jovem indefesa vem junto ao vídeo? Por que só vejo


o futuro soberano deste país segurando nas mãos de uma desconhecida,
tirando-a de perto de outro homem, abraçando-a e uma briga selvagem. Que
não condiz com o perfil de um futuro monarca.

— Acho que o vídeo conta a história toda — analiso.


— Estão pedindo dois milhões de euros para manter o vídeo em
segredo e não enviá-lo para os jornais de todo o mundo.

— Ah, pode enviar — sacudo os ombros. — Eu fiquei gostoso, gostei


do ângulo que filmaram.

— Vejo que Vossa Alteza continua um pândego.

— E discordando efusivamente de violência contra a mulher — aponto


o indicador para ele e pisco.

Estendo minha mão novamente e ele a beija. Só assim para ele ficar
calado.

— O que Vossa Alteza real fazia no Brasil ou porque viajou para cá em


um avião comercial, cheio de plebeus, ainda me é um mistério.

— A polícia secreta me encontrou e me contou sobre a morte de Sua


Majestade — aceno com a cabeça. — Peguei o primeiro avião que pude.

— Não podia aguardar o avião real, meu senhor?

— Não, não podia. Acordei agitado durante a madrugada, comprei a


primeira passagem para voltar, na última poltrona disponível e vim
embora. Pode me chamar de inconsequente, rebelde e pândego, Laios. Não
pode dizer que sou infiel ao meu país e ao meu rei. Assim que soube, vim
prontamente. Não podia esperar nem mesmo um segundo.

— Entendo. E que tipo de visita educativa fazia neste país de terceiro


mundo?

— Fui conhecer os bordéis — tiro o sobretudo feminino e jogo na cara

dele. Tiro do bolso do casaco a calcinha bege que guardei. — E o resto não é
da sua conta. Aliás, tem uma mala dentro do avião real. Será que podia
encontrar a dona disso? — Esfrego a peça íntima no rosto dele. — Trocamos
as malas.

— Já li sobre encontrar mulheres por sapatos de cristais, não com


calcinhas beges, meu futuro soberano.

— Pois faça o seu melhor.

Estou pronto a me dirigir ao quarto para trocar de roupa, quando fico


no lugar, ao ver minha avó, a Rainha mãe, surgir no alto da escadaria.

— Olha só como esse peralta está corado! — A Rainha mãe diz e todos
se curvam imediatamente, assim que surge, desce amparada por quatro
funcionárias do palácio.

— Vovó — fico de braços abertos a sua espera.

Ela vem o mais rápido que pode, batendo sua bengala no chão. Abraça
minha cabeça com ternura e beija o topo de meus cabelos, depois faz o
mesmo com seu outro neto, Svar.

— Está bronzeado. Bonito. Se estivesse de cabelos compridos e barba,


seria a própria imagem do pai!
— O que será providenciado, majestade — Laios se intromete.

— Não, eu gosto como está. Um guerreiro Viking jovem, moderno, um

rei do século XXI! — diz animada, faz uma pinça com o dedo indicador e do
meio ao tocar em minha jaqueta de couro. — Não te parece um rei que
seguiria a qualquer lugar, Svar?

— Sem sombra de dúvidas, majestade, em um maremoto, na guerra, na

tormenta ou no exílio, eu o seguiria — meu primo diz com firmeza.

— Como é o Brasil? — ela muda de assunto, para não comentar das


minhas vestes, a careta em seu rosto é impagável.

— Quente. Pessoas acolhedoras e gentis. Mesmo quando a vida é difícil


eles são fortes e nunca desistem — respondo.

— Seu avô dizia que vemos nós mesmos nos lugares para onde vamos
— ela me dá uns tapinhas no rosto e me chama com o indicador. — Laios,
diga em voz alta nosso roteiro de hoje!

— Sim, majestade. Vamos viajar para Drü, o príncipe velará o rei e


depois atirará uma flecha de fogo em seu navio... — ele vai dizendo atrás de
nós.

— Por que não o enterramos aqui mesmo em Koioskovo, vovó?

— É a tradição, querido, todos os reis são colocados em um navio no


país do eterno verão. Viaja pelo mar quente e cheio de vida. E sua jornada só
acaba quando o novo rei acerta sua flecha de fogo — ela diz enquanto
dispensa os funcionários que trazem bebidas e aperitivos em bandejas.

— Sobre ser o novo rei... — suspiro.

— Você será coroado, mas não governará — ela diz para meu completo
choque.

— Como assim?

— Seu pai convenceu o conselho que você só se tornaria o soberano


quando tivesse um herdeiro e garantisse a sua linhagem. Svar deve ter lhe
contado sobre o baile e as princesas...

— Sim. Completamente desnecessário...

— O povo gosta de distração. E quer ver, fotografar e assistir seu futuro


rei dançar.

— E quem vai governar nesse meio tempo?

— Um regente.

—... Retornaremos em quatro dias para anunciar o regente, escolhido


pelo parlamento. É mister lembrar que o príncipe terá de anunciar sua esposa
em até 15 dias, para cumprir o prazo de gerar o bebê e tê-lo em um ano
— Laios continua.

— Ter o herdeiro em um ano?! — Me exaspero.


Minha avó estende a mão para Laios e ele beija seu dorso. Com o olhar
ela me lembra: “só assim para ele ficar calado”.

— Não há com o que se preocupar. Tenho absoluta certeza que


encontrará em uma princesa ou em uma das ilustres convidadas, aristocratas,
uma boa esposa, uma boa mulher e uma boa mãe para a criança real — acena
com firmeza.

— Os membros da Câmara dos Lordes estão ansiosos para apresentar


suas filhas à vossa alte... — Laios se cala porque Svar ergue a mão, para que
ele beije.

— Não dê ouvidos a ele, vovó e eu vamos garantir que você e


só você escolha a mulher que quiser — meu primo garante.

— Mesmo que não seja uma princesa? — Ergo a sobrancelha.

— Aí seria pedir demais — Svar comprime os lábios.

— Precisa ser alguém com perfil de rainha, de soberana, de Augusta!


— A Rainha-mãe diz animada. — Uma mulher que seja exemplo para todas
as outras.

— Não sei se gosto da ideia. Quero me apaixonar...

— Você é o futuro rei, querido. Só pode estar apaixonado pela coroa e


por seu país. E se não for uma princesa... — minha avó sorri, como se essa
hipótese fosse impossível. — Ela precisa ser aprovada pelo conselho e
parlamento.

— E por que eu faria isso?

— Por que após o seu herdeiro nascer, vamos convencer o conselho de


aceitar sua renúncia.

— Mas vai levar um ano!

— Um ano passa muito rápido...

— Conheço a maioria das princesas e nenhuma delas me desce.

— Então encontre uma boa mulher, de boa linhagem e bom histórico e


tentaremos transformá-la em sua consorte — minha avó diz, mesmo avessa à
ideia. — Afinal de contas, toda mulher tem uma rainha escondida dentro de
si. Até mesmo essas dos bordéis que você costuma ir — faz uma careta azeda
e enxota os funcionários com a mão enluvada, cheia de anéis. — Veja só o
desespero em que chegamos para salvar essa dinastia e a monarquia... —

apoia sua mão no peito de Svar.

— Estou vendo — digo, estupefato.

[1]
Do italiano “vem” ou “venha”.
[2]
Do italiano “mulher bonita” ou “bela mulher”.
[3]
Do italiano “obrigado”.
[4]
Do italiano: “de nada” ou “você é bem-vindo”.
[5]
Do italiano “que porra é essa”.
[6]
Do italiano “não fale comigo sobre amor”.
[7]
Nota do autor: “Macumba” é uma árvore africana e um instrumento musical. O termo
costuma ser usado no Brasil como sinônimo de: 1) Oferenda; Ebó; Despacho; 2)
Identificar religiões afro-brasileiras de modo pejorativo; Aqui e em outras passagens a
personagem usa de modo informal e descontraído com a amiga para identificar o “feitiço”
ou “oferenda” que fez.
[8]
Do italiano “puta merda!”.
[9]
“Que porra!”
[10]
Do italiano “mulher infernal”.
[11]
Aqui é uma força de expressão. Guilhermo não possui o movimento das pernas. Em
outros momentos da narrativa ele usará termos semelhantes para descrever sua raiva e
frustração.
[12]
“Obrigado”.
[13]
Do italiano “eu nunca disse isso”.
[14]
Do italiano “Deus”.
[15]
“Meu Deus! Olhe só para você!”
[16]
“Mãe, eu estou bem, hum?”
[17]
“Não se preocupe”.
[18]
“Muito bem”.
[19]
“Meu filho!”
[20]
“Mãe”.
[21]
Algumas falas da criança foram transcritas de forma errada propositalmente.
[22]
“Porra”
[23]
NOTA DO AUTOR: Musica: “Salmo” de Maria Bethânia.
[24]
NOTA DO AUTOR: Música: “Fera Ferida”, composição de Erasmo Carlos e Roberto
Carlos, interpretada por Maria Bethânia.
[25]
NOTA DO AUTOR: Música: “Negue”, escrita por Enzo de Almeida Passos e Adelino
Moreira, aqui interpretada por Maria Bethânia.
[26]
NOTA DO AUTOR: Música: “O que é, o que é?”, escrita por Gonzaguinha e aqui
interpretada por Maria Bethânia.
[27]
“Me desculpe”.

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