Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Instagram:
@yuletravalon
www.yuletravalon.com.br
Grupo:
Romances Yule Travalon
Chega de tentar dissimular e disfarçar e esconder
O que não dá mais pra ocultar e eu não posso mais calar
Já que o brilho desse olhar foi traidor
E entregou o que você tentou conter
espalhadas pelo livro, assim como seus momentos de extrema coragem que
desafiam seus limites.
pessoa é única. E cada vida é um recorte que vai desde as escolhas que fez às
coisas que omitiu. Por isso te convido a conhecer a trajetória de Guilhermo
com o coração aberto.
No mais, se há qualquer outra coisa a ser dita, foi dita pelo poeta. Então
usarei sua canção para resumir cada capítulo, cada parágrafo, cada linha do
meu trabalho neste livro:
Quando eu soltar a minha voz por favor entenda
O que é amar.
(“Sangrando” de Gonzaguinha).
QUATRO ANOS ATRÁS
Não cheguei aqui por acaso. Houve um longo tempo entre a proposta
Pesei e julguei tudo o que estava envolvido e percebi que era a coisa
certa a se fazer, minha família precisava do dinheiro.
Até pensei que ele havia se esquecido de nosso acordo, já que não me
respondeu em nenhum momento do dia. E quando ligou, foi para perguntar
onde eu estava e enviou um carro luxuoso que me trouxe da Zona Norte até
esse condomínio cheio de mansões na Zona Sul de São Paulo.
Pelo caminho eu me distraí com a névoa que cobria desde a copa das
árvores até os pequenos e escuros lagos que se projetavam no horizonte.
Não consigo.
Não sou de ficar envergonhada, mas agora sinto minha face toda
queimar, ao vê-lo. E meu corpo parece que fica todo gelado quando nossos
olhares se encontram.
— Nunca fez isso o quê? — O timbre forte da voz dele me faz tremer
no lugar em que estou.
telefone.
— Nunca fez sexo ou vendeu sua virgindade por cem mil reais?
situação.
A sala da casa desse homem faz parecer que não existe privacidade: as
paredes laterais, tirando as estruturas, são inteiramente feitas de vidro e
consigo ver pela noite escura e densa lá fora: três carros na garagem ao lado,
No início fico em dúvida sobre o que isso significa, mas sua mão
direita se move indicando que eu devo me aproximar e é exatamente o que
faço.
Depois, com um puxão rápido que não me deixa escapar, me coloca em seu
colo, os joelhos pressionando o estofado da poltrona, meu coração
desregulado e nossos rostos a poucos centímetros um do outro.
Meu coração que estava quase saindo pela boca, agora está preparado
para fugir de vez.
Fecho e aperto os olhos com força ao sentir suas duas mãos tocarem em
minhas costas e descerem até minhas nádegas, contornando meu corpo e me
abraçando com uma firmeza que faz com que cada parte de mim comece a
aquecer, a ponto da combustão.
Esse homem tem uma voz forte e potente, mas agora, ao pé do meu
ouvido, me desmonta inteira.
causa uma sensação estranha que ainda não tinha experimentado por toda a
vida.
Meu coração está prestes a sair pela boca… e parece que para, quando
sinto sua mão invadir a minha calça e massagear sutilmente por cima da
minha calcinha. O senhor Lamarphe me encara no fundo dos olhos, os
músculos de seu rosto enrijecem conforme o estica até que estejamos a
— Como sou o seu primeiro, vou fazer de tudo para tornar esse
momento especial — ele diz novamente, com uma lábia invejável.
— Não tem como ser mais especial do que ganhar 100 mil reais —
sussurro de volta, em tom de provocação.
Com a cabeça ele acena de modo negativo, mas com o olhar me faz
perceber que eu disse a coisa certa.
A mão livre dele traz o celular diante do rosto. A tela ilumina suas
pupilas negras que contrastam com o resto do olho cintilante. Não importa o
que está fazendo, não para de me tocar. Consegue, não sei como, afastar a
minha calcinha e massagear uma parte que me faz querer travar as pernas e
me jogar para cima dele, perco o fôlego tão rápido que até me desequilibro.
A princípio não quero olhar, não quero estragar o momento, mas ele
insiste.
— Machado de Assis.
maldito momento, há dois anos. Não há um dia que passe sem que eu acorde
desesperado com a sensação do estilhaçar do vidro voando para todos os
lados, a luz do farol do caminhão vindo em nossa direção, ou do toque de sua
mão em meu braço quando o impacto nos acertou em cheio.
de medicamento e refeições.
Às vezes parece que estar limitado devido ao meu acidente apagou todo
o meu histórico de bom médico.
Dia após dia, há dois anos, eu preciso provar que estou apto novamente
a exercer minha profissão e raramente me colocam para fazer os
procedimentos. Posso orientar a equipe, fazer observações, dar instruções,
mas nunca me deixam atuar sem que uma equipe gigantesca esteja preparada
ao meu redor, como se eu fosse cometer um deslize a qualquer momento.
E pensar que um dia fui o nome mais forte para ser o CEO desse
lugar…
Mas dessa vez eu não pude esperar pela assistência médica, só contei
com a ajuda da equipe de enfermeiros. A pressão da paciente caiu, ela chegou
Toda vez que estou à trabalho no centro cirúrgico, uso uma cadeira de
rodas diferenciada: mais alta e que me dá melhor mobilidade, já que as camas
e macas do hospital podem ser bem altas e não estarem devidamente
adaptadas para um funcionário com necessidades especiais, como eu.
— Bom dia — digo assim que a porta do elevador abre.
para a minha presença, não sei se é porque estou sem jaleco ou somente
porque pareço um paciente de cadeira de rodas – mesmo com pijama
cirúrgico.
Os dois que estavam na frente saem primeiro, o elevador segue até seu
destino final. Assim que abre, Ayslan me leva para fora e me empurra com
toda a velocidade que consegue, atravessamos o corredor em questão de
eu fosse um anão.
Este hospital, como a maioria dos lugares, não foi preparado para
Não.
Meu trabalho é a única coisa que me mantém vivo, o fio que segura
minha sanidade. Não dediquei mais de uma década de estudo, prática e
— Agora não, ainda tenho trabalho pelo resto do dia — ele agradece
com a mão. — Tem gente esperando para ter a virgindade de volta lá
embaixo e eu só vim porque você me bipou.
Ah, ele está aqui porque foi chamado também? Pensei que só queria
me infernizar.
— E a doutora Han? — Meu tio olha para nós dois e por fim percebe
que falta alguém.
— Eu vou morrer.
Aguardo que ele prossiga e diga o restante, mas tudo o que faz é
comprimir o lábio em um sorriso contido. Não sei se espera que digamos
algo... Na dúvida, tento ser analítico:
— Todos nós vamos morrer um dia. Todo ser humano tem duas coisas
em comum: nasceu e vai morrer, faz parte do ciclo da vida.
Itália e viesse para o Brasil, ser seu braço direito. Ele me ajudou e me apoiou
em todos os momentos, ainda mais após o meu acidente.
emoções agora.
que podemos fazer por você, senhor Lamarphe? — Ele até o trata com
formalidade agora.
amor.
Não sei quantas conversas tivemos nos últimos anos. Mas a minha
posição nunca mudou e eu permaneço incisivo.
— Eu já amei, uma vez. E isso me foi arrancado, junto com o meu bem
mais precioso, assim como minha capacidade de andar e ser reconhecido
— Rubem Alves.
arremessa na bagagem.
O meu interesse é conhecer alguém que valha à pena e viver tudo o que
temos direito.
Nas cinco primeiras saídas foi legal. Eu podia ter sido desovada em um
matagal? Sim. Poderia estar sem o fígado e um dos rins? É uma
possibilidade. Traficada para a Turquia? Acho que já cheguei bem perto
disso.
Nas outras dez, parecia que eu conhecia o roteiro muito bem: qual o
seu nome? Qual o seu telefone? Onde você mora?
um cartão da Riachuelo...
derretendo de calor.
Mas sabe o que nunca vou usar de verdade, faça chuva ou faça sol?
Seja frio ou calor? Um vestido de noiva.
Cada vez que saio com um babaca vejo que estou longe de colocar o
véu e subir no altar.
Acho que foi nesse momento em que de fato virei adulta, aos 23 anos,
pois precisei tomar as rédeas da situação e me tornei arrimo da família.
Mamãe caiu em uma depressão profunda e raramente sai da cama, Diogo, o
meu irmão mais novo, agora chega tarde em casa, sempre bêbado e gritando
comigo e eu me sinto culpada por ver os negócios da família indo por água
abaixo.
As coisas estavam indo bem... papai parecia saudável e estava feliz por
trabalhar junto comigo no ateliê e me ensinar seu ofício, que sua mãe lhe
ensinou... agora não sobrou mais nada, além de dívidas e algumas peças
raras que ele nunca expôs ao público.
meus sonhos, para ser o suporte da família, que está em pedaços. Não posso
permitir que tudo se desmanche assim, não sem lutar.
da casa.
Papai vivia muito inspirado nos últimos tempos, por isso produziu
alguns ternos e vestidos e me disse que não os venderia. Não até encontrar o
preço certo. Dizia ele que eram as relíquias da família e que ainda
Bem... desde que papai morreu as coisas não têm sido fáceis. E não é
todo dia que você recebe a ligação de uma grande amiga que revela que vai
se casar e precisa de um vestido urgentemente. E que paga o valor que for
necessário por ele...
Planejamos uma linda e gloriosa carreira juntas, até a vida puxar cada
uma de nós para um canto. Helô se formou e foi trabalhar de cara em um
grande escritório de advocacia aqui na capital paulista. Patrícia se formou,
mas já havia se estabelecido antes de se formar vendendo produtos eróti...
evangélicos, chamemos assim – e ela está focada em passar no concurso para
delegata.
E eu...
Eu, mais do que ninguém, acompanhei toda sua luta e seu esforço para
conquistar cada cliente, cada pequeno espaço, e quando a demanda aumentou
demais, eu fui seu braço direito.
Além de, é claro, ser mãe em tempo integral, porque o pai do PH nunca
quis conhecê-lo, só paga a pensão porque é a única coisa nesse país que dá
cadeia de fato.
— Ih, minha filha, desencana — ela fala com naturalidade e bate com
um pênis de borracha em cima da mesa. Em seguida liga o vibrador dele e o
negócio começa a girar. — Homem consegue fazer isso? Homem vibra desse
jeito, Yasmin?
— Ih, minha filha, isso aí quem faz pela gente é a nossa mãe. Homem
não. Homem só dá desgosto — ela resume a ópera.
E vai se casar para dar golpe no velho. Certa ela, vou chegar nesse casamento
fingindo que sou cupim.
— Cupim?
— A paixão dela tem cor: azul. E tem número: 100. E vem numa mala,
cheia de notas não marcadas... Yasmin, não faz essa cara. Quem gosta de
homem é a mãe deles, que tem a obrigação de aturar. Heloísa gosta é de
dinheiro e está realizando o sonho dela e o meu. Agora se arrume logo que
Fico mais alguns minutos para assisti-lo dormir, até ouvir a barulheira
de Patrícia lá embaixo.
No meu quarto eu troco de roupa, coloco uma blusa branca por debaixo
do moletom e uma calça preta da adidas, de tecido muito leve, além de calçar
um tênis confortável, amarro os cabelos em um coque frouxo e confiro na
bolsa se todos os meus documentos e a passagem estão nela.
Desço as escadas com uma mala de mão pequena, com coisas muito
simples e básicas: três mudas de roupa, dois biquinis e um vestido bonito
para ser a madrinha do casamento da minha amiga.
— Essencial? — Deslizo o rosto para observar bem tudo isso. Não sei
nem se vai caber no uber que vamos chamar. — Uma mala de pirocas é
essencial?
— É lógico — ela logo protesta. — É casamento, minha filha. Em
Fernando de Noronha. O povo vai estar tudo doido e eu vou vender prazer
— Minhas roupas.
farofa amarela, pimenta dedo de moça, uns búzios, um prato de barro grande
e um monte de legumes: beterraba, alface, couve, brócolis, batata doce...
encostar.
— Perdi nada não. Olha, não conta para a Helô que te contei, mas fui
eu que fiz o trabalho para ela conseguir fisgar o coroa. Se deu certo para ela,
vai dar certo para mim. Quer um para você também?
— Ah, não sei... vai fazer oferenda, tem farofa, tem cachaça, tem até
beterraba e alface, coisa que nunca vi. Não devia ter um frango?
— Renato Russo.
A viagem de São Paulo a Recife durou 3 horas, o que foi ótimo, já que
consegui desacelerar a mente e dormir um pouco.
Assim que desembarcamos no aeroporto Gilberto Freyre, fomos
abraçados pelo calor de Recife e eu me senti feliz por não estar usando
Não tivemos que esperar muito para seguir o nosso destino final,
ficamos no máximo 45 minutos entre bocejos e beliscadas numa marmita que
minha amiga trouxe – e me garantiu que não era qualquer tipo de trabalho
espiritual.
privilegiada nos Dois Irmãos, duas rochas gigantes uma ao lado da outra de
uma beleza ímpar. Alguns minutos depois pousamos no aeroporto e fomos
em busca das nossas malas.
Nesse momento dei graças a Deus por ela ter colocado tudo em mala
grande e não na de mão.
Encaro-a.
— Para caçar os velhinhos ricos, né? Amiga, diz a verdade, tenho cara
de cuidadora de idoso?
Meus pulmões até estranham esse cheiro delicioso e ímpar que provém
do mar, refrescante e leve.
Jurei a mim mesma que quando tivesse dinheiro para tirar férias, iria
para Miami, quem sabe as Bahamas ou até mesmo a Itália…, mas agora,
depois de ter uma vista panorâmica desse patrimônio brasileiro, duvido que
encontraria algo tão belo quanto Fernando de Noronha.
E super entendo o fato de Heloísa ter escolhido aqui para registrar seu
momento de amor, este é um lugar para ficar eternizado na memória.
— Ai, eu nem acredito que vocês vieram! — nossa amiga diz animada.
eixo.
— Meu Deus, pra quê tanta felicidade? Quem vai casar sou eu!
amiga há tanto tempo que tinha medo de ao reencontrá-la a amizade não ser
mais a mesma… engano meu.
— Fazer o quê, né… ser mãe me valorizou pra caramba — dou uma
voltinha.
— Ai, amiga, é tão bom te ver! Estou tão feliz por você! Parabéns!
— Muito bom te ver também, meu amor — Helô me abraça com força.
— Vamos logo, pois quero experimentar esse vestido e ajustá-lo, para que
depois disso possamos aproveitar cada minuto nessa ilha paradisíaca!
— Sim!
A primeira visão que tive logo à esquerda, em uma parede de vidro que
separava a recepção do restaurante, foi um banquete digno de camarim de
celebridade. Eu nem estava com fome, mas depois de ver tantas frutas
coloridas, além de pães, caldos, bolos e pescados, me convenci de que minha
primeira parada após um banho seria ali.
É… pensando bem, até que não é tão bonito não. Que lugar cafona…
— É, minha filha, porque dois mil reais de diária… é muita piroca que
tenho que vender, hein? Cada pessoa nessa ilha vai ter que comprar uma…
— Patrícia limpa a testa.
A minha rotina e obrigações são o elo que tem mantido minha cabeça
no lugar. Não gosto sequer de lembrar da época pós-acidente em que fiquei
meses sob observação, de molho e quase um ano inteiro sem poder voltar a
trabalhar.
Ela precisa saber que nem tudo é festa e alguém nessa família é contra
toda essa loucura. Sei que não posso impedir, mas ao menos posso assustá-la
e mostrar que não pode me enganar, sei reconhecer uma aproveitadora
quando vejo.
Está tão distraída vendo sua própria imagem no espelho e parece tão
feliz, que seria uma pena tirá-la do sério agora.
Na verdade, eu não ligo e vou acabar com essa festa antes que comece.
Verdade seja dita, o maldito do velho Lamarphe tem bom gosto para
mulheres, isso eu nunca duvidei e acho que de certa forma herdei isso dele. A
mulher tem curvas que nem mesmo as ondas do mar ou nuvens cortadas por
caças poderiam produzir. O cabelo negro é longo e cobre quase suas costas
toda, sua pele é morena e parece uma bonequinha com não mais do que 1,65
de altura.
Não consigo ver seu rosto e seus olhos, está posicionada de uma forma
diante do espelho em que não tenho acesso a isso, mas a julgar pelo resto do
pacote, deve ser só uma dessas modelos de passarela que acha que vai ter
vida fácil ao se casar com um homem que está prestes a bater as botas e ficar
com toda sua fortuna.
Não vai.
Ainda tenho tempo para vê-la jogar o vestido de noiva para o ar e cair
em cima de mim, o impacto faz com que minha cadeira rode para trás e eu
não consigo pará-la até sentir a parede bater contra minhas costas.
— Heloísa vai ficar linda nesse vestido. — Estendo a peça fina diante
do meu corpo, tomando cuidado redobrado para que não toque o chão,
mesmo dentro da capa protetora.
Papai ficaria orgulhoso de vê-la usando uma de suas obras de arte. Ele
sabia o quanto minhas amigas eram importantes para mim, por serem meu
amparo e suporte fora de casa…
Sou tomada por uma lembrança antiga. Quando criança, sempre entrava
imagem do vestido em mim, no espelho, até que um puxão arranca meus pés
do lugar e me lança no colo de um homem.
Meu cérebro de repente deu uma tela azul, ou melhor, talvez cinza, e só
seu pescoço e prendendo a respiração, tenho certeza de que sei quem ele é.
Esses olhos eu reconheceria em qualquer lugar.
Meu cérebro parece que para e vem uma sensação estranha de frio na
barriga.
Dou alguns passos para trás, ainda sem cortar o campo visual. Ele
também faz questão de me encarar, agora não parece tão irritado, só intrigado
mesmo.
baixo ventre aquecer. De repente parece que sou nocauteada com o cheiro
dele em minhas narinas, minha nuca fica quente e começo a me arrepiar
lentamente. Esse cheiro me traz uma lembrança muito boa.
— Você não é a noiva? O que pensou, que iria armar todo esse plano
perfeito e alguém não descobriria?
Ou talvez seja apenas uma miragem, meu cérebro deve estar pregando
peças… vi o rosto desse homem em tantos outros, sonhei com ele tantas
vezes, desejei que me tocasse só mais uma vez, mas ao que parece,
Guilhermo Lamarphe só tinha interesse em arrancar a virgindade de uma
mulher como eu e desaparecer…
— Então onde está a aproveitadora? Quero ter uma conversa com ela.
Novamente ele ri. Depois olha para o lado e respira fundo, dois vincos
se formam nas maçãs do seu rosto, como covinhas.
— O meu tio vai se casar com uma maldita aproveitadora que só quer
tirar o dinheiro dele — explica. — Ele tem pouco tempo de vida, perdeu o
juízo e acredita que se casar com uma qualquer vai provar algum ponto para
Eu juro que tento me concentrar no que ele diz, mas os lábios dele se
mexem de uma forma tão tentadora que uma parte do meu cérebro desliga e
outra parte traz um flashback do passado.
Ele bufa, todo bravinho. Novamente vejo seu rosto se contorcer, ele
mal se mexe.
Lembro dele falando uma dúzia de palavras que soavam assim quando
estava em cima de mim e me encarava com tesão.
me enganei…
E mesmo após a conversa ter sido encerrada, ele não vai embora.
Continua a me observar em silêncio e eu não saio de onde estou. Cara feia
para mim é fome, e se ele está com fome, posso resolver o problema dele.
O olhar que ele lança à mão dela, faz parecer que está suja de cocô ou
algo pior. E antes de sair, novamente me observa de um jeito soturno.
Aquelas sobrancelhas grossas e nariz grande que formam um olhar duro e
penetrante não podem ser facilmente esquecidas.
— Ok então… — Heloísa bate as mãos uma na outra e me encara. — O
que deu nele? — Ri.
Balanço os ombros e fico imóvel até que ele esteja fora do estúdio.
Tento me concentrar no que devo fazer agora, até esqueço onde está
minha bolsa de costura. Só consigo pensar em Guilhermo de cadeira de
rodas.
— Como estou?
— Espero que seu pai, lá no céu, esteja feliz por esse vestido ter caído
feito uma luva em mim. Acho que você terá pouco trabalho, ele parece ter
sido feito para mim…
— Sim…
— O Guilhermo?
— Não, é que…
minha amiga que iria se casar com o tio, ele disse que você era… — evito
completar.
— O que foi?
Ainda não sei onde ela quer chegar, mas na dúvida, concordo.
— Bem… um dia o Alfredo estava retificando o testamento junto ao
pessoal, me viu e me chamou…
— Hum…
— Não me diga que ele quis comprar sua virgindade — cubro a boca.
— Não, sua louca! — Ela ri. — Ele propôs que eu me casasse com ele.
De mentirinha. Para dar uma sacudida no sobrinho e…
— Aham.
— Espera aí. — Estendo a mão. — Mas se ele vai deixar tanto dinheiro
para o Guilhermo… por que se casar? Não entendi…
— É uma provocação.
Cubro a minha boca com uma mão, a outra segura no braço dela.
— Meu Deus…
— Bem… ele acredita que esse casamento fake pode ser a provocação
perfeita… também é um tiro desesperado, porque a qualquer momento o
Alfredo pode morrer, ele está em estado terminal.
pergunto.
herdeira de tudo.
— Entendi, então isso tudo é para fazer ele ter raiva de você e querer
lutar pela herança e por consequência ter um filho?
Enquanto Heloísa segue para a frente do espelho para ter uma visão
deslumbrante de si mesma no vestido, eu fico aqui no canto de braços
cruzados, ainda com a sensação de que o cheiro daquele homem está
impregnado em mim e com um pensamento que não sai da minha cabeça:
— Cecília Meireles.
Será que ela me reconheceu? E se sim, o que deve ter pensado de mim
ao me ver em uma cadeira de rodas?
virgindade.
Depois que ela desapareceu por quatro anos, sem me dar notícias, perdi
a esperança de vê-la novamente.
Tão doce, olhos gentis e rosto redondo… assim como sabe ser teimosa,
temperamental e respondona...
Ajusto a cadeira para que ela fique travada e arranco minhas calças,
quanto mais demora, mais raivoso fico, evito chutar[11] os sapatos mocassim
para não ter de catá-los feito um imbecil mais tarde. Depois desabotoo a
camisa branca de linho e a deixo no encosto da cadeira.
— Merda!
Não importa.
Subo para tomar uma lufada de ar e com a mão na sunga preta, confiro
que o choque térmico não foi o bastante para enganar meu corpo.
Lembro da época em que fiquei desesperado por achar que perdi todos
os movimentos do quadril para baixo e isso incluía meu pênis. Mesmo que eu
seja tão frágil como um bebê da cintura para baixo, percebi em poucas
semanas, após acordar, que minhas ereções não foram afetadas.
rotina sexual.
Eu sempre fui um cara ativo e depois que arranjei uma parceira sexual
fixa, fazíamos todos os dias pelo menos duas vezes, em qualquer lugar, em
qualquer momento, do jeito mais adolescente possível.
Após o acidente, passei por um jejum de mais de um ano até voltar a ter
relações de novo, e ainda assim com muito medo do meu campeão não
funcionar direito… e mesmo depois que percebi que ele ainda estava vivo,
um bom soldado de guerra que foi ferido, mas não abatido, acho que só
Não foi por falta de tesão. E a insegurança foi embora cedo, sou um
médico cirurgião, fui treinado para agir sob pressão, tomar atitudes diante das
situações mais imprevisíveis e o sexo voltou a me causar uma euforia boa. O
que faltava era alguém especial. Alguém que não me visse como um pobre
coitado acorrentado a uma cadeira e sim como o homem que sou.
Sexo deixou de ser minha obsessão e o trabalho tomou conta de tudo,
meu real propósito de existir.
Eu não me lembro da última vez em que não fiz… nada. E não pensei
em trabalho… Devo admitir que estou com saudade do bip na minha cintura,
mas ao mesmo tempo é bom estar aqui dividido entre sentimentos de raiva e
tesão.
pudesse voltar a transar… mas quando voltei, já não parecia a mesma coisa,
não tinha o mesmo fogo, nem tesão que antes…
— Meu Deus! — Ouço uma voz feminina aflita, mas deixo para lá.
Preciso relaxar.
— E?
Que merda! Quando ela me toca, meu corpo parece ser vítima de uma
corrente elétrica que me deixa ainda mais aceso. E mesmo que
instintivamente eu queira me afastar, não consigo.
— Sei lá, eu pensei que algo poderia ter acontecido… você podia ter
tido um desmaio e caído… não sei… eu não pensei… eu só vim correndo e
pulei, pensei que precisava de ajuda…
Mas não sei se ela gostaria de ser voluntária para o que eu quero…
— Não vai dizer nada? — Ela arfa, desesperada. Ainda não soltou o
meu braço e a água está nos puxando levemente para a borda.
— Como você consegue fazer isso? — Ela arregala os olhos. Não tanto
quanto, quando toca em meu corpo para me afastar e pega exatamente onde
não deveria. E pelo choque, parece que não quer soltar.
Yasmin fica muda. Abre primeiro o olho direito, ainda não sei se
surpresa ou desapontada por não ter sido beijada.
— Então… você não está em perigo? — Ela asseia os cabelos para trás
também.
— Não, Yasmin. — Acho divertido o fato dela ainda não ter soltado o
volume da minha sunga. Puxo meu corpo com as mãos e a pressiono com
força contra a piscina. — Acho que é você que está em perigo…
— Quê?
Pisco os olhos até perceber que falei alto mais para mim mesmo do que
para ela.
— Desculpa. — Ela enfim solta meu pau. — É… eu… não sei o que
dizer… bem…
— O quê?
Quando a chamo pelo nome, parece que vira outra pessoa, ainda parece
não acreditar. Eu também. Até consigo esquecer que ela é amiga de alguém
que quer dar um golpe em minha família e sou transportado para a primeira
vez que a vi… a primeira vez que a desejei… a primeira vez que a tive.
Mas ela nunca sequer me mandou uma mensagem após aquela noite.
— Precisa de ajuda?
costas e ficar ostentando meu campeão querendo sair da sunga, ela já o viu
uma vez mesmo, então não há problema…
Mesmo de olhos fechados, tenho a impressão de que ela ainda não saiu
do lugar. E quando finalmente abro, após sentir a cabeça tocar o outro
extremo do lugar, confiro que realmente não saiu.
Dio[14], por que fizeste teu filho gostar das malditas desobedientes e de
cabeça dura?
— Você é médico, sabe muito bem que ninguém gripa por esse motivo.
Gripe é um vírus — ela me corrige.
Ela se lembra?
Viro o rosto em sua direção e a vejo abraçada aos joelhos. Parece com
medo, parece excitada, parece até que lembrou como é ser minha.
restante do corpo, até que eu sinta meu rosto receber a brisa do lugar.
— Você não deixou de ser safado — ela cruza os braços, ainda de pé.
mas o encontro com essa mulher causou algo em mim. Foi como ter perdido
— Não mudou nada mesmo — ela bufa, dá meia volta e some da minha
vista.
Mesmo que Yasmin tente me ajudar, eu esquivo e dou o meu jeito para
retornar para a cadeira de rodas, demora mais do que estou acostumado, mas
quando consigo, fico aliviado e rapidamente coloco minha camisa.
Havia esquecido, por uma fração de tempo, o real motivo de estar aqui.
E por incrível que pareça, sinto saudade desse momento em que meu único
pensamento era me sentir vivo e ser observado por essa mulher.
— Não.
“A vida acontece num equilíbrio entre a alegria e a dor”.
— Carl Jung.
Parecia até a mesma cena, só que dessa vez ao ar livre. E foi gostoso
recuperar essa lembrança, porque eu me diverti muito com ele.
ligar para a situação, demorou quanto tempo quis no centro do lugar até
encontrar um lugar, típico de um milionário playboy que gosta de ter a
atenção para si.
— Eu aqui toda preocupada que você ia perder a vista de todo esse filé
mignon. — Ela acena com a cabeça para um bando de homens que parecem
fotocópias uns dos outros.
Esse reencontro foi muito inesperado e não sei o que sinto sobre ele. Na
— O que foi? Por que está tão compenetrada? — Agora que os noivos
terminaram de discursar e os garçons se movimentam servindo os pratos, ela
fala mais alto.
— Nada…
— Pois é… eu fui ligar para o meu filho e depois fui para a piscina, já
disse…
Patrícia que não é boba nem nada, deve ter juntado ‘um mais um’ e
levanta o olhar para Guilhermo. Ele não é o único que está com vestes
casuais e de sunga, mas certamente é o que mais chama atenção, ainda mais
pelo porte e o jeito altivo que se mantém.
— Yasmin...
— O casamento que seria daqui uns dias, vai ocorrer depois de amanhã.
85% dos convidados já estão aqui, a preocupação do Alfredo era a demora da
família em vir, mas como estavam a maioria no Brasil, chegaram rápido.
— Ah…
É óbvio que Guilhermo não está ouvindo nada do que estamos tratando.
Mas o olhar que ele me lança de onde está, é tempestivo, carregado de
julgamento.
O que me impediu de fazê-lo ao fim, foi minha mãe que veio até mim,
agarrou-me pelas bochechas e me deu dois beijos demorados nela.
— Dio mio! Guardati![15] — Encara-me da cabeça aos pés. — Está
magro e mal cuidado. Tem dormido?
preoccuparti[17].
Ela me lança um olhar que ignora tudo o que eu disse, dá meia volta e
sei que vai fazer um prato gigantesco de comida. Dizem que mãe é mãe em
todo lugar e em qualquer idade, mas as italianas são decididas no que
querem.
E a minha quer sentir que seu filho que perdeu tudo está bem.
— Não tão cedo, a não ser que aquele velho tente nos arrastar para lá
também.
— Você é pior do que eu, Han, não descansa nem aqui. — Massageio
minhas têmporas.
provocação. Como pode uma criança de quatro anos ser tão sinistra?
E para completar, enfia a empada grande toda na boca, toda de uma vez
e mastiga, com ódio, me encarando.
— Depois vai ficar com indigestão e vai dar trabalho para sua mãe! —
Preciso esperar alguns minutos para ser notado pela celebridade da vez.
O que eu mais odeio nele, é que é tão cabeça dura que não importa o
que eu diga, não vai mudar seus pensamentos.
É muito difícil, mas não posso negar estar com ele, apoiando-o.
Mas por que logo com uma mulher que parece uma aproveitadora?
tudo quando já era tarde demais… entretanto, tudo o que posso fazer agora é
estar ao lado dele e viver cada momento como se fosse o mais importante.
Por hora me contenho a dar meia volta e sair do lugar, para respirar a
noite.
— Vá embora — ele rosna, nem olha para trás, só fica encarando o céu
que escureceu bem rápido.
— E daí?
família, de um jeito bem rápido e prático. Acho que foi uma forma inteligente
de rever a todos…
Estou incerta sobre o que digo, não devo me meter nos assuntos dos
outros, ainda mais em um tão delicado. Mas ao terminar de dizer, Guilhermo
É claro que não lhe direi que tudo isso é um golpe, para colocá-lo
diante de toda a família e depois forçá-lo, como herdeiro de quase tudo, a
cumprir os critérios do testamento para receber a herança.
Ele acena com a cabeça, ainda olha para o mesmo lugar, pensativo.
— Eu ouvi que ele tem pouco tempo de vida, está muito doente...
Talvez ele tenha feito isso para dar um último adeus. Normalmente são os
que ficam que se despendem, ele mudou as regras. Antes de ir, quer se
despedir, em grande estilo…
— É... é bem a cara dele fazer isso — Guilhermo diz, no fim até ri, mas
continua com um olhar desapontado. — Você é muito esperta… — Ele me
encara com um brilho no olhar.
Fui mal acostumada pelos caras babacas com quem saí por todos esses
anos. Todos sempre tinham elogios, mas depois quebravam o clima me
depreciando de alguma forma.
— As coisas não andam fáceis na minha vida — digo assim que engulo
a comida saborosa e cara, graças a Deus que não sou eu quem está pagando.
— Não queria vir… estava com medo de me dar um período de descanso sem
de fato merecer… e eu cheguei hoje… e de alguma forma já me sinto
recarregada.
O silêncio dele me assusta, a priori. Dou até uma checada para ver se
ainda está ali ao meu lado ou se sorrateiramente fugiu, sem fazer barulho.
— Eu falo algo sobre mim… você fala algo sobre você… não é assim
que funciona? — Rio.
Meu Deus! Eu estou tão ansiosa e quero ouvir da boca dele o que
nos vimos, você não estava em uma cadeira de rodas... — balanço os ombros.
— Tudo bem. Ficar paraplégico não foi o pior... perdi a minha mulher e
filha...
Cubro a boca e arregalo os olhos. Meu Deus! Era pior do que pensei!
Guilhermo vira o rosto para me encarar e vejo que ele está meio triste
por contar isso, mas também parece mais leve e liberto. Como se tivesse
tirado uma parede de concreto que estava entre nós dois.
— Você sabe que sua mão ainda está gordurosa, não é? — Ele abaixa o
olhar e eu recolho minha mão.
Depois ele começa a rir, o que me deixa menos tensa e me faz rir
também.
delicioso.
— Não sei. Só sei que depois, quando entrei naquela piscina, foi como
se eu me lembrasse de quem realmente era, antes de estar preso a essa
cadeira…
— E por que não tem feito isso na sua casa? Lá tem um piscinão, se
brincar, maior que esse. — Volto a comer.
— John Green.
Vejo os cabelos negros dela esparramados pela cama, enquanto dorme.
Não consigo resistir à tentação e vou lentamente em sua direção, abaixo meu
rosto e sinto a textura de seus fios na ponta do meu nariz.
Abro os olhos e vejo o Viking bem perto de mim, a primeira coisa que
faço é empurrar sua cara feia para longe.
higiene.
Quando saio do quarto, até me assusto. Vejo Lisa, Ayslan e meu tio
Alfredo me aguardando. A pequena boquinha de mochila está dormindo no
sofá, mastigando lentamente, um sanduíche mordido em suas mãos.
comilona.
— E então, como foi seu primeiro dia dormindo em um lugar que não é
um dormitório de hospital? — o velho provoca.
segundo... por que se casar? Logo você que passou a vida toda livre...
— Eu sei...
— Sim, eu sei.
— Fiz medicina na Itália por sua causa, vim para o Brasil porque você
precisava de apoio... sempre admirei a vida livre e emocionante que você
tinha...
herança... — lamento.
— Quando descobri que tinha pouco tempo de vida, tudo o que pensei
foi: eu não tenho um herdeiro...
— Não, Guido.
— Não?
— Da mesma forma que você me admirou a vida toda até aqui, quero
que admire o meu último ato. Nunca é tarde demais. Nem para mim, nem
para você...
Não sei porque, mas fico todo arrepiado quando ele diz isso.
— Nós três temos uma surpresa para você. — Meu tio retorna animado.
— Dio... — suspiro.
— Ayslan, pode trazer...
Meu tio e Lisa Han entram na frente, ansiosos. Eu fico tenso, até ver
Ayslan entrar com uma cadeira preta que parece de praia, só que com pneus
grossos, no assento dela um colete salva vidas.
— Uma cadeira anfíbia. Assim, você vai poder ir para a praia conosco!
— Meu amigo diz animado. — Vem, senta aqui, experimente!
Fico tão absorto que as palavras fogem da minha boca. Só quero xingar
e reclamar.
Sicília.
Han bate palmas, animada. E meu tio me lança um olhar orgulhoso, não
sei por quê.
— É hoje que eu vou conseguir meu velho podre de rico! Passa esse
bronzeador em mim — Patrícia pede.
Rio de Janeiro.
pomposa.
areia.
Patrícia está babando. Seu rosto está virado na direção em que três
pessoas estão vindo. Primeiro eu vejo Guilhermo, numa cadeira especial,
colete salva vidas cobrindo seu tronco. Mas Patrícia está apontando para o
cabeludo descamisado, empurrando o amigo.
estremece.
— Sim — respondo, tomando cuidado no tom que vou usar para não
chamar a atenção dela.
— Ô.
— Quero dizer, é, ele fica bem mesmo... — Evito o contato visual com
ela. — Eles estão vindo em nossa direção, disfarça...
— Tô disfarçada.
para mim.
Agora percebi que eu prendo a respiração toda vez que nos encaramos.
Parece que todo o resto é engolido por uma escuridão e só restamos nós dois.
Só sei que noite passada, fui dormir pensando nele. Imaginando como
foi superar o acidente – coisa que aparentemente ele não superou... E surpresa
por ele se lembrar de mim, mesmo tendo certeza de que li um bilhete escrito
por ele de que preferiria esquecer tudo o que aconteceu entre nós, no dia
seguinte ao ato consumado.
— Dormiu bem?
E não passa despercebido. Sinto que ele me censura com o olhar, como
se não devêssemos ficar nos encarando na frente dos outros, mas é a única
coisa que ele faz, com seus olhos prateados.
— Com uma coisa boa — é tudo o que ele diz e faz um gesto rápido
como se indicasse ao amigo que deveriam seguir o caminho.
— Bom dia....
— Bom dia — Patrícia e ele, entretanto, não param.
— Não posso.
— Não pode?!
Ótimo, ela veio para a praia só para desfilar e pegar um bronze, e ainda
vai me deixar ir dar um mergulho sozinha.
— Mas piranhas também sabem nadar — avalio.
— Albert Einstein.
aplicativo, o frio na barriga foi perdendo o sentido... até agora. Cada vez que
vejo Guilhermo é como reascender uma lembrança do nosso primeiro
momento ou como foi viver depois dele... coisa que nem mesmo o pai do PH
me fez sentir, logo em seguida.
Confiro que a minha amiga voltou a ficar de olho nos homens de idade
avançada e cara de mega empresários, e vou em direção à água cristalina que
parece me convidar para um mergulho.
ilha.
A uma certa distância, vejo os três amigos em uma parte em que a água
bate nos joelhos do mais alto e quase cobre toda a cadeira anfíbia em que
Guilhermo está. Daqui consigo ouvi-lo resmungar, o que acho muito
engraçado.
— Você disse que íamos dar um mergulho, a água nem chega na minha
cintura — o outro replica.
Ele sai do mar com a cadeira e eu não entendo o que está acontecendo,
até vê-lo pegar embalo, correndo depressa e empurrando com toda força.
E fecha os olhos quando a água do mar o atinge com força, mas o outro
não para de empurrar e eles seguem até que a cadeira toda fique submersa e
só reste a visão do pescoço para cima de Guilhermo.
— E aí, se sente melhor?
Guilhermo rosna de um jeito feroz, mas acaba rindo enquanto bate a água
contra o rosto do amigo.
Após uma espécie de abraço que vira briga e umas tentativas de afogar
um ao outro, eles ficam rindo e o olhar de Guilhermo parece que dissolve
todo o resto de peso e angústia que carregava. O canto de seus lábios fica em
um contorno de sorriso, sem parar.
Mesmo com o barulho e o balanço das ondas do mar, além dos outros
sons provenientes dos outros banhistas – a maioria deles cópias menos
atraentes e mal feitas de Guilhermo –, fico atenta a ouvi-los.
— Não, esse lugar vai ficar marcado por ser o lugar em que a
aproveitadora venceu — Guilhermo diz de mau humor.
Como ele veio parar aqui? Pensei que ele estava junto com o amigo!
Acho que me distraí e não vi a hora que ele mergulhou e veio parar
aqui.
termina rindo.
Não estou com a cabeça submersa, mas parece que perco o fôlego ao
tê-lo tão perto de mim. Seu rosto molhado e os cabelos sem forma, a ponta do
nariz longo e seus olhos prateados me deixam hipnotizada.
— Sério?
Eu fico nervosa quando ele me olha. Já faz tantos anos que não nos
vemos e a sensação que tenho, toda vez que nossos olhares se cruzam, é a
mesma de quando entrei em sua mansão pela primeira vez... quando estive
em cima dele na poltrona... e o quanto nos divertimos naquela madrugada.
— Gostei das boias também. — Indico com o queixo os braços fortes
dele.
— Cala a boca. — Ele bufa e estapeia a água mais uma vez, eu repito o
movimento e direciono no rosto dele.
Ficamos nessa situação bem infantil, rindo feito dois idiotas, até ouvir o
grito do Ayslan, amigo dele, que acena a alguns metros de nós.
— Sim, consigo!
— Sobre ontem... não quero que fique com uma impressão ruim de
mim. É que... Foi muito estranho te rever.
Mas cada vez que presto atenção, vejo que estamos cada vez mais
próximos um do outro, quase ficando colados.
Não sei como, mas meu corpo todo se eriça, só pela lembrança.
Como o mar, cada átomo, cada célula, cada órgão e pedaço meu
dança.
Não sei se estou arrepiada debaixo d’água, só sei que meu corpo todo
Estou presa no lugar, a única coisa que faço prontamente é subir para
tomar ar. E depois retorno para conferir o que ocorreu.
Dessa vez, quando sou chamada, nado até Guilhermo com certa timidez
e o acompanho até chegarmos bem próximo dos animais. Ao meu lado, o
homem indica que eu espere o próximo movimento vir deles, e para minha
surpresa, filhote e adulto se aproximam cautelosamente.
Eu consigo, mesmo depois de relutar comigo mesma, a não fugir.
Não sei se teria coragem de tocar nos animais, não sem Guilhermo
aqui, parece que ele sabe o que está fazendo e está no controle da situação.
Meu coração não para de bater rápido. Não acredito no que acabei de
fazer.
— Não?!
— Então teve muita sorte. Estranho eles estarem tão perto da praia,
devem ter se perdido. E é melhor não contar a ninguém, essa é uma área em
preservação, não se pode nadar deliberadamente com eles, sem o
acompanhamento de um especialista — ele diz em tom informativo, mas
também se vangloriando.
E não sei exatamente como me sinto por tê-lo visto passar na minha
frente, cuidar de mim e me deixar ficar em suas costas quando o golfinho se
aproximou.
Seus olhos me encaram tão de perto que eu não sei ao exato se estou
encolhendo ou se estou crescendo cada vez mais, ao me ver espelhada dentro
de suas pupilas.
E sem dizer nem mais uma palavra, ele me beija com tanta paixão e
Seus lábios cobrem a minha boca e num estalo se afastam, para cobrir
meu pescoço de beijos e subir rente à minha nuca, respirando tão perto de
minha pele, fazendo-me sentir todas as palavras que guardei para dizer-lhe
quando um dia o reencontrasse.
Agora não me sinto mais boba pelo impulso estúpido que tive agora há
pouco.
Agora foi ele quem sentiu e não se segurou. E esse maldito beijo
desperta em mim, coisas que pensei que estavam guardadas há quatro longos
anos.
Será que quando o beijei, minutos antes, ele sentiu o mesmo que eu?
Como seu corpo reagiu quando sentiu o meu novamente?
— Stai bene? — ele pergunta, diante dos meus lábios, após sugar meu
lábio inferior bem devagar.
— Albert Camus.
Mesmo sabendo que era pura mentira, as palavras ditas foram lindas. E
Guilhermo, como padrinho de casamento do tio, não fez nenhuma besteira, se
manteve austero e pareceu feliz o tempo todo.
Não havíamos trocado nenhuma outra palavra desde que voltamos para
Ele não disse nada sobre o beijo que lhe dei e eu fiquei ainda mais
confusa quando fui beijada por ele. E as minhas dúvidas agora só cresciam, já
que não tivemos oportunidade de conversar, devido as ocupações do
casamento que fora adiantado.
— Você já vai? Não vai aproveitar e ficar mais uns dias? É uma
semana de festa! — Afastei os fios de cabelo que teimavam em voar em
minha face.
Decifrar que tipo de sensação é essa que depois de anos retornou com
força total.
E o fato dele ter me beijado não vai me deixar em paz por dias!
— Sério? — o provoco.
Não sei o que deu em mim. A presença dele ainda me causa uma certa
Em minhas memórias ele será sempre o cara alto e viril que tirou a
minha virgindade. Nunca o conheci de fato, mas o pouco tempo que
passamos juntos no passado, pude vislumbrar sua personalidade: um cara
animado, divertido, sem muito pudor.
— Preciso te agradecer.
sobre o assunto. — Você já achou seu homem rico, só falta se casar com ele
agora…
mim.
— É sério isso?
Tentei tornar cada momento útil e único, eu não achava que merecia
férias, mas já que estava nelas, precisei me jogar de cabeça.
O jeito sarcástico dele fez falta. Seu olhar de tédio, sua loucura
repentina de ficar flutuando na piscina e ficar totalmente pelado, além do
último momento em que nos vimos, antes dele partir, em que ele me disse
obrigado.
Subo as escadas e vou direto para o quarto do meu filho e quando não o
vejo em canto nenhum, parece que me socaram o estômago. Perco o fôlego e
seguro na parede, antes que caia dura no chão.
me levanta.
— O que é isso? Cadê o meu filho? Por que você está com isso?
— Fica tranquila, eu vou consertar tudo.
— O que aconteceu?
— No quarto dela.
Numa rápida averiguada, percebo que este é o único lugar da casa que
ficou inteiro.
— Meu Deus, o que houve com essa casa?! — ela murmura, logo atrás
de nós.
minha amiga.
— Não, por sorte ela tinha levado o PH para sair nesse dia... — Diogo
me encara da mesma forma que sempre me olhou desde a morte de papai:
Onde que eu estava com a cabeça quando decidi viajar e deixar eles
sozinhos?
— Eles levaram tudo o que acharam de valor, como garantia de que irei
pagá-los em até três meses, senão voltam aqui e… — ele engole em seco.
papai fez.
O lugar está vazio, até o computador velho foi levado. A mesa está
virada no chão, caixas vazias onde colocávamos os produtos para enviar
estão bagunçadas e rasgadas.
Você e sua turma não sabem com quem que estão lidando! Eu vou atrás dos
meus vibradores e eles estarão aqui de volta, ou não me chamo Patrícia
Sanches Caldeirão!
— Patrícia, ele tem razão. Olha o que fizeram com a nossa casa… —
Não escondo que perdi as esperanças já. — Quanto você está devendo,
Diogo?
— Quatrocentos.
— Não. A casa que o nosso pai tanto lutou para comprar, não! — Me
levanto.
Eu sou a responsável.
— Cara de… quem não tem mais forças pra lutar, né amiga?
Mal ela termina de falar, eu a abraço com todas as minhas forças. Não
sei o que seria de mim sem a minha amiga.
— Escuta, nada de mal vai acontecer a você, ao seu filho, sua mãe, ou
esse moleque imbecil e burro! — Patrícia dá um tapa na nuca dele.
— Prometa.
— Eu prometo, padrinho.
— Prometa que vai voltar para casa — ele sorri. — Vai dar
Aceno com a cabeça e vejo sua feição ficar bem mais tranquila.
— Não vale… — Ele respira fundo e tosse. — Não vale à pena viver
sem amor.
Ele fica em silêncio e puxa a coberta um pouco mais para cima, a ponto
de cobrir seu pescoço, depois puxa a minha mão para debaixo da coberta e
não a solta. Sorri, feliz, uma última vez e eu acompanho, atônito, seu último
fôlego.
Mas fiz tudo o que estava ao meu alcance, desde que ele retornou de
Noronha. Estive sempre ao seu lado, ouvi tudo o que disse e dormi na cadeira
de rodas por dois dias, enquanto estava aqui ao seu lado, dando-lhe forças.
— Hora da morte: 18:26 — seu médico avisa.
“Tudo o que chega, chega sempre por alguma razão”.
— Fernando Pessoa.
— Eu estou muito mal! Não sei o que fazer com o meu irmão…, mas
isso na verdade pouco importa agora. A maior questão de todas é: como
respeito?
rodar.
próximo que cheguei disso foi o Dênis, com quem saí umas três vezes no
máximo e tivemos o Phellippo. Depois disso eu me forcei a acreditar que
gostaria dele… que formaríamos uma família…
— Fala!
— Eu posso tirar dos meus fundos pessoais para que vocês comprem o
material para trabalhar… vocês fazem esse capital de giro consertar as coisas
e depois me devolvem…
Como estou?
— Amiga… você estava tão bonita, agora parece que pegou uma gripe
ou alergia!
Eu, sem entender nada do que está acontecendo, só a sigo, meio atônita
e desviando das pessoas, até ela subir uns degraus pretos e passar por uma
porta de madeira maciça que tem três vezes minha altura, em um prédio
muito opulento por fora.
Estou pronto para arrancar cada fio de cabelo meu com uma pinça de
tanto ódio.
meus primos que estavam em Noronha, uns tios espiando um por cima da
cabeça do outro, uma dúzia de carpideiras que estão debulhadas em lágrimas
e minha mãe, impaciente, ao meu lado.
— Espero que ele tenha feito a coisa certa, pelo menos no momento
final da vida — ela reclama e cruza as pernas.
tempo do que todas essas pessoas, parecem mais tristes do que todas elas
juntas.
Não preciso inclinar o rosto para reconhecer a voz da viúva, que não
me parece nada triste.
E junto a ela… Yasmin…
Meu Deus, por que essa garota está acompanhada de tão péssima
companhia?
Imediatamente a afasta, parece que uma onda de choque pega nós dois
de surpresa e até eu recolho a mão para o colo.
— Oi.
— Obrigado, Yasmin.
vestido preto. Aperto sua pele macia e ouço um leve gemido em meu ouvido.
Demoro de soltá-la, pois a sensação me causa um bem estranho, que não
consigo compreender.
Chegou com as mãos vazias e vai sair da mesma forma. Ela achava que
enganaria a quem?
Justo. Imagino que ele passaria a mansão para um filho, mas como não
— Seu amor pela arte e pela cultura me faz crer que cuidará bem de
tudo que colecionei durante a vida.
— Ele está deixando herança para pessoas que não tinham o sangue
dele? — Minha mãe torce o nariz. — Espero que tenha deixado algo para
nós.
Guilhermo Lamarphe…
Reviro os olhos. O maldito não deixa de ser clichê, nem mesmo depois
da morte. Que absurdo!
Estou tão chocado que nem sei se estou respirando. Mas estou ouvindo
atentamente.
— Sim.
Sim? Como ela arranjou alguém tão rápido?! Acabamos de ouvir tudo!
— Charles Bukowski.
Como ele foi tão estúpido para dar tudo de mãos beijadas para ela?
— Não. Não. Eu vou entrar com algumas ações, vou pagar os melhores
— Que foi o que, Ayslan, não percebeu a roubada que ele me meteu?
— A roubada que ele te meteu — o outro ri. — Cara… é tão simples.
— Simples?
— Não é simples assim. Não se casa com alguém sem amar. Não se faz
filho para deixar largado no mundo…
rosna.
— Chega, vocês dois. Eu não sou moleque, eu não vou me dobrar ante
a vontade daquelazinha...
— Você… — rosno. — Não vai ficar com nada. Vou pagar os melhores
advogados deste país…
— Do mundo então.
posso gastá-lo como bem entender. Então vou contratar uns cinquenta
advogados a mais, os melhores do mundo, só para ver até onde essa batalha
judicial vai.
e pelo tamanho de urso, pode ser ainda mais feroz. — Não pode vender as
coisas que ele colecionava! Era a vida dele!
— Guilhermo, me escuta.
— Não. Não quero ouvir. Foi bom te reencontrar, preciso admitir que
ainda senti uma conexão com você, naquele dia. Mas você é igual a ela. Uma
aproveitadora de merda!
— Fala sério!
encarar olho a olho, na mesma altura. — Alfredo era um playboy, mas que
tinha gosto pela vida, pelo mundo, pela cultura. Ele comprou, ganhou e
conquistou objetos de tantos lugares…
— Eu sei.
— É…, mas até vencer essa batalha judicial, ela vai ter queimado
metade do patrimônio.
— E se eu não quiser?
Ayslan ri.
Minha mão vai tão rápida na gravata dele e o puxa ainda mais rápido
diante de mim, que Ayslan arregala os olhos e tenta se afastar, mas estou tão
furioso que não há força que ele faça que vai se soltar do meu aperto.
— Nunca mais, eu disse: nunca mais diga isso.
— Ok.
— Prometa.
— Eu prometo.
— Promete o quê?
— Que nunca mais vou dizer que eu meteria nela por você. — Ele
pisca os olhos devagar.
— Ninguém.
As pupilas dele lentamente se dilatam. Ayslan vira até o rosto para ver
se observa novamente a morena, mas a essa altura, ela já deve estar muito
longe daqui.
— Ela é… ela? Aquela?
— Cala a boca.
— OK, já sei — ele se diverte. — Quer que eu faça uma cirurgia nela?
— Move as sobrancelhas. — Devolva a virgindade dela?
No mínimo movimento que faço, ele dá três passadas largas para longe
de mim e fica rindo.
— Que merda.
— Amigo, não faz graça não. Você tem 89 dias para tentar
— Tá.
Ela não diz nada e eu fico ainda mais aflita. Atravessamos o sinal e
caminhamos em silêncio por todo percurso, até chegar no Trianon. Estou tão
absorta que mantenho a boca aberta, tento expressar qualquer opinião, mas
nada sai.
— Era o que o Alfredo queria — é tudo o que ela diz, quando vê minha
feição.
— O que tem?
— Mas eu quero tudo isso com alguém que me ame! Que queira estar
comigo! Que me deseje, que acorde ao meu lado e me dê forças para começar
o dia, que quando volte para casa eu sinta que valeu à pena.
— Eu não sei…
— Porque ele não existe, Yasmin! Acorda para a vida! — ela ralha. —
Você tem a síndrome da princesa da Disney, quer encontrar um homem que
traga seu final feliz. Gata, você não vive em um conto de fadas!
— Sim, mas…
— Mas…
— Amiga, são 89 dias de convívio. São três meses. Se não der certo…
quem perde é ele, não você… e eu saio rica e pago toda a dívida do seu irmão
e ainda te dou um cachê.
— O quê?
— Não… não estou falando disso. — Ela me analisa, dos pés à cabeça.
— Você está em negação. Todo esse tempo. Não deu certo com o Dênis, está
criando o filho de vocês sozinha, você diz que quer voltar a amar e ser
Abaixo a cabeça.
— O quê?
— Amiga, eu escolhi você porque eu sei que não vai ter o filho com
ele. Ele vai perder tudo. E nós duas saímos ganhando…
Mesmo que Helô seja uma das minhas melhores amigas, Guilhermo
está certo em pensar que ela está se aproveitando da situação… me sinto em
— Não.
Tudo muda absolutamente quando ela diz que quer envolver Patrícia
— Sim.
— Ótimo. Então agora ele tem 89 dias e 23 horas para fazer esse
neném… ou vai perder tudo!
— C. S. Lewis.
Não sei o que me deu mais prazer: poder chefiar a equipe pela primeira
vez desde o meu acidente ou ter a oportunidade de voltar para a minha área e
fazer o transplante de coração em alguém.
O coração transplantado bate com tanta força a primeira vez, que meus
dedos tremem. Afasto-me devagar e todo o aparato técnico detecta os
batimentos.
Subo à testa os óculos de lupa que usei para enxergar com detalhes toda
A sensação é tão única e forte que me marcou para sempre, foi ali que
decidi que me especializaria na cardiologia, embora sempre me requisitem na
cirurgia geral hoje em dia.
me.
— Sim, senhor.
Assim que saio pela porta, sou abordado por alguns alunos residentes
que estavam assistindo.
— Doutor.
Meu Deus, eles não vão me deixar ir embora… preciso pegar o meu
— Amiga, por favor, eu não sei nem onde enfiar a cara! — Confiro
minha maquiagem no espelho de mão.
— Não, não, não. Sem gracinhas hoje, por favor... você e Heloísa me
enfiaram em uma fria! O cara deve querer a minha cabeça!
— Você pelo menos sabe como iniciar o flerte que leva para uma boa
foda, né?
— Sim, mas nenhum bebê será feito essa noite! — Insisto. — Quero
me desculpar, ouvi-lo e ver se rola alguma coisa… e Heloísa foi bem clara:
devo enrolá-lo. Nenhum bebê será feito.
— Obrigada!
Assim que entro e dou o meu nome, o maître me encaminha para uma
mesa no andar de cima. O teto do ambiente é uma representação fidedigna da
pintura da Capela Sistina, poucas mesas estão espalhadas pelo ambiente de
meia luz e consigo ver a cozinha por uma parede de vidro, os chefs
trabalhando a todo vapor.
O jeito que ele segura em meu braço e deposita dois beijos em meu
rosto já me deixam toda mole. Mas eu respiro fundo, o que parece ser uma
péssima ideia, pois inalo todo o perfume dele até precisar tatear a mesa para
sentar.
porque…
encara com seus olhos grandes. — Não tenho vivido os meus melhores dias e
foram tantos acontecimentos ruins seguidos, que foi mais fácil descontar em
alguém. Eu que te peço desculpas.
Ih, a água custa 15 reais, melhor dizer que já vim jantada e tá tudo
certo.
— Por quê?
Pronto. Começou aquele momento delicioso dos encontros que parece
que estou em uma entrevista de emprego. E como estou de saco cheio, vou
— Três.
Espera.
Não vai dizer um: “ah, não quero ser pai do filho dos outros”. Ou:
Estranho.
— Na verdade eu adoro… tudo o que faço aprendi com o meu pai. Ele
— Já escolheram?
Uma vida inteira bebendo Cantina da Serra, não vai ser um vinho
barato de restaurante que vai me derrubar.
próximos e pelo fato dele deixar tudo para você, imagino que era como um
filho para ele…
Agora é ele quem suspira. Bebe um gole generoso do copo d’água que
está diante de si, depois confere as horas no relógio.
— Não sei se estou pronto para ser pai — ele sorri de um jeito sincero.
— Tantas coisas ocorreram em minha vida que… eu só não quero ser um pai
ruim.
Será que aprendeu mesmo? Alguém que não volta para casa, como se
estivesse fugindo de lá, não me parece que aprendeu alguma coisa.
— Eu não tenho uma boa relação com o meu pai. Desde o acidente nós
brigamos e não voltamos a nos ver. Não tive bons exemplos de figuras
paternas…
Suspiro de raiva.
— Eu perdi algumas memórias... foi até por isso que fiquei de molho
no hospital, sem poder exercer minha profissão. Passei um longo período
apenas sendo professor ou supervisionando.
Num aceno negativo com a cabeça, ele ri. Tento insistir um pouco mais
na questão e Guilhermo só me encara no fundo dos olhos e balança as
sobrancelhas.
— E como foi?
— Aham.
— Sim…
— Se tivesse que proteger e cuidar das coisas que seu pai costurava, o
que você faria?
— Tudo.
— É. Eu estou disposto a fazer tudo também — agora ele diz mais sério
que antes, com ar de homem de negócios. — Eu… não sei como é ser pai. Eu
perdi a minha filha antes mesmo de poder pegá-la no colo, ver seus olhos,
sentir seu cheiro…
— Mas eu sei como gostaria que fosse a minha relação com o meu pai.
Eu saí da Itália e vim para cá, porque ele nunca gostou de mim. Gostaria que
ele me enxergasse como sou e me valorizasse pelo que sou. Gostaria de ter
sua atenção, seu respeito, seu carinho. Não vou negar isso a um filho meu.
venhamos a dar certo. Eu vou amá-lo, vou respeitá-lo, vou dar a ele tudo o
que não recebi do meu pai, e não irei jamais culpá-lo, bater nele ou castigá-
lo por erros que por ventura eu venha a cometer em meu trabalho…
Agora ele está falando como se após ouvir tudo isso eu quisesse que ele
fosse pai do meu bebê.
… E eu quero mesmo.
— Vou deixar tudo para o nosso filho. Ele será o herdeiro de tudo, não
preciso do dinheiro, da casa, de nada. Tudo o que quero é manter o legado
dele, o trabalho que ele fez por toda a vida e isso inclui o hospital. É só isso o
que quero.
tentando esboçar minha reação, mas estou paralisada no rumo que essa
conversa tomou.
— Rubem Alves.
— Vou cuidar bem de você essa noite, Bella dona — ele diz, enquanto
desabotoa a camisa e deixa todo seu tronco nu.
meu pescoço, depositando um beijo doce e leve, que conforme sobe para meu
queixo e depois doma minha boca, se torna ardente e praticamente me tira do
lugar.
E cada vez que esse homem me pega pela nuca e faz seus dedos
subirem abertos até o topo da minha cabeça e afaga meus cabelos como se
minha cabeça coubesse na palma de sua mão, eu me derreto toda.
em seu beijo. Não sei se consigo parar de beijá-lo, é tão bom que parece que
nos encaixamos, tanto na boca quanto no corpo e isso gera uma combustão
em mim.
sua última peça de roupa, chuta com o pé para qualquer canto do quarto e
sobe em cima de mim.
Eu o abraço com força e me sinto tomada pelo cheiro, pelo calor e pelo
desejo ardente que sinto por esse homem.
Quando sua pele toca na minha sinto que deixa um rastro de fogo. E
quando sua língua desliza pela minha boca eu sinto que flutuo, mesmo sendo
— Meu Deus — eu rebolo debaixo dele quando sinto sua mão descer
por minha virilha e seu polegar encontrar uma parte sensível minha, como fez
mais cedo.
Ainda mais sob os olhos sérios deste homem e sua boca grande que
parece que vai me abocanhar inteira e me fazer derreter em sua língua.
— Não para.
— Eu não vou parar — ele diz de bom humor. — Não vou a lugar
algum, estou aqui com você — beija o meu mamilo e volta a chupá-lo
devagar.
— Sim.
— Quero que se lembre dele — ele ri. — E o fale, sem parar, cada vez
que sentir que está perdendo o juízo.
Então eu devia ter começado a falar sem parar, desde que estávamos
lá embaixo…
A primeira coisa que faço quando meu corpo não está mais coberto em
parte alguma e ele me observa tão atentamente, é colocar as mãos para me
cobrir.
— Ok.
você… quero sentir seu cheiro… quero sentir o seu sabor… quero entrar em
você…
— Calma, eu prometi que iria ser gentil. Vamos até onde você
Sua voz me tranquiliza e a forma como ele suga meu lábio inferior me
foco quando sua língua vai dentro de mim, o mais fundo que consegue.
— Guilhermo!
Sua língua serpenteia, contornando e lubrificando ainda mais a minha
vagina. E ele não para de me estimular com as mãos também.
permanecer assim.
O grito que solto é abafado dentro da boca dele e minhas mãos vão de
encontro às costas dele, o arranho com toda a força que tenho conforme entra
bem duro e pulsando dentro de mim.
— Guilhermo — choramingo.
— Sim.
— Ok…
— Me deixe entrar só mais um pouco… você está molhada o suficiente
para mim…
— É que é grande…
Agora tudo parece mais estranho, meu corpo parece que sente falta…
que loucura!
E um segundo depois volta a entrar em mim, dessa vez com muito mais
facilidade. Sinto minha vagina se dilatar conforme ele entra até certo ponto e
permanece ali. Seu olhar continua atento ao meu, parece que examina cada
uma das minhas expressões. E suas mãos confortam o meu corpo,
acariciando-o.
Agora sinto que de fato nos conectamos, não apenas nosso beijo se
encaixa, mas nossos corpos também.
Atualmente
Empurro o corpo para frente uma, duas, três vezes, até que enfim abro
os olhos e vejo que estou parada no meio do caminho.
— Obrigado pelo jantar, foi ótimo poder sair com você. E novamente,
parabéns pelo excelente dia! Que venham mais cirurgias! — Bato palmas de
um jeito desengonçado.
isso?
Estou alegre demais. Acho que minha boca está me traindo e dizendo
em voz alta tudo o que penso.
— Temos que tentar muitas vezes... — Tento corrigir, mas não sai
— Bom… então foi uma ótima noite. Meu primeiro encontro em que
não quero fazer a Rihanna e matar um homem!
— Durma bem.
— Amiga…
— Sigmund Freud.
lado do quarto.
— Já são quase nove da manhã e o seu filho está na escola! — Ela joga
óculos escuros em minhas mãos.
— Também pudera, o encontro foi tão bom que você bebeu! E bebeu…
e bebeu mais um pouco após chegar em casa. E não parava de dançar!
bom. Mesmo que seja um que me obrigue a ter um bebê de um cara rico. —
Coço a região dos olhos por debaixo dos óculos.
Patrícia joga uma mochila preta grande em minhas mãos. Segura com
firmeza na alça da mala de rodinhas e balança os ombros.
frente, decidida.
É a ideia mais louca que ouvi – após ser indicada como barriga de um
herdeiro para obter a herança. Mas se tem uma pessoa que vende areia no
deserto e convence qualquer um a comprar esses produtos, este alguém é
Patrícia Sanches Caldeirão, também conhecida como boca de confusão.
Meia hora depois, em uma parte mais nobre da zona norte, cá está ela
batendo palmas diante de um portão de ferro.
veio ao hospital Rota da Vida. Ela nunca veio ao hospital, não que me
lembre.
Chego à sala da vice presidência o mais rápido que consigo, e ao passar pela
porta, vejo-a examinando as gavetas da mesa em “L”.
Quando seus olhos passam pelo lugar, não sei se parece ter visto
alguém ou se está procurando algo, mas parece estar em alerta.
— Muito bem. — Ela anda pelo lugar, acho que em algum momento
faz menção de se sentar, mas se afasta rapidamente da cadeira de tio Alfredo.
— Pode acreditar no que ele fez?
Ele não disse exatamente “estiver com seu filho”, mas “ter um filho”.
Acho que de tanto ficar na ponte Sicília – São Paulo, ela está engasgando na
própria língua.
Viro o rosto para a janela e tento respirar fundo, mas parece que não
consigo.
— Mas, pai…
Quando na verdade foi há dois anos, após o acidente em que perdi tudo.
— Vamos evitar falar mal dele e nos concentrar em como reverter isso
— proponho.
— Pois é. — Aceno com a cabeça. — Até lá, tomei por bem cumprir a
parte do testamento que diz que só herdo tudo se tiver um filho.
Minha mãe nunca foi fã das mulheres com quem me relacionei. Ela
odiava a minha ex-mulher e a minha filha, antes mesmo de nascer. O que era
engraçado, pois foi ela quem nos aproximou, mas no fim…
— Tem certeza de que acordou? Pois só fala bobagens. Parece que está
dormindo!
— Mamma…
— Você não terá filho com nenhuma mulher! Muito menos uma que
está aqui para dar o golpe da barriga, assim como a outra tentou, com o
casamento!
Fico até sem saber o que dizer. Aparentemente ela já decidiu por mim.
— Eu já fodi ela.
Agora sim lhe desferi um tapa. Ela fica tão vermelha que fica
paralisada, encarando-me como se eu fosse o maior pervertido desse país.
— Não. Você não disse isso em voz alta e nunca deve repetir!
Ela vem até mim, o barulho dos saltos parece que ocupam toda a sala
vazia.
— Todos tem seu teto de vidro, mas as paredes têm ouvidos! Guarde os
seus segredos para você e nunca os diga em voz alta, nem mesmo para mim!
Acho curioso ela mencionar isso. Sempre fui muito próximo dele.
Praticamente seu braço direito, seu aluno, sua sombra. Eu saberia de qualquer
coisa…
— Muito menos isso! Um filho é para sempre e não vou permitir que
temos uma química e coisas em comum. Além de que é fácil conversar com
ela e avançamos muito na conversa da noite anterior.
Ela ficou parada, meio curvada com a bolsa e o casaco em mãos, mas
olhando fixamente para debaixo da mesa e arredores.
Exagerada…
— Ela vende?
— Na verdade, sim…
verdade. E agora estou nessa encruzilhada: não posso dar o bebê que ele
quer, para minha amiga ficar com tudo. Mas ele mexe comigo e acho que não
precisa de muito para eu me sentir disposta, sabe?
— É… — suspiro.
— Obrigada…
— (Autor Desconhecido).
Ela é doida, devo admitir. Mas quando quer uma coisa, não há nada que
a pare.
— Olha só, acho que temos visita. — Ela aponta com a cabeça o carrão
em frente ao portão de casa.
Meu Deus, eu devo ter bebido muito mesmo para não reconhecer o
carro de Guilhermo.
— Nossa, muito obrigada! Não dei falta dele nem por um segundo…
— Também, chegou ontem toda alegre e falava pelos cotovelos… e
hoje tive que tirá-la da cama à força… — Patrícia murmura em meu ouvido,
— Não precisava de todo esse trabalho. Você havia dito ontem que
tinha duas cirurgias importantes amanhã, deveria estar dormindo…
Limpo sua testa de suor e confiro sua temperatura, ele parece bem.
— Foi bom.
Phellippo fita o mais velho de um jeito mais inquieto, tenta espiar por
cima da janela. E Guilhermo nem pisca quando vê o meu pequeno. A
expressão que faz é engraçada e só dura meio segundo, como se conhecesse o
meu filho de algum lugar. Depois ele se aproxima da janela e o observa com
mais atenção, não passa despercebido que suas pupilas crescem. No fim,
acena com a mão.
— Oi, PH!
— Yasmin, isso são modos? Vai deixar o homem na rua? Não vai
oferecer sequer uma água?
— Você quer? — Viro-me para Guilhermo.
um pouco constrangida.
— Certo, vou aceitar o convite, porque tenho algo a tratar com você.
— Ok.
A porta do motorista dele abre de uma forma diferente das outras, ela
sobe completamente e então o banco dele é projetado para fora e desce por
uma espécie de elevador. Antes disso Guilhermo pega a cadeira de rodas
desmontada atrás de seu banco e a monta quando chega ao chão.
um jeito rápido.
dentro, depois puxa a porta e fecha o veículo. — Depois podemos dar uma
volta, o que acha?
Não consigo descrever o alívio que sinto por eles terem gostado um do
outro.
com curiosidade. Agora presta atenção nos gestos que a criança faz, meu
filho é e sempre foi muito expressivo. Papai dizia que ele falava com as
mãos, tanta paixão com que se exibia enquanto falava.
Peço todas as desculpas possíveis por não haver jeito dele entrar pela
porta da frente. Há uma pequena escada para alcançar a entrada e Guilhermo
se recusou a aceitar qualquer ajuda para subir, então fomos pelos fundos,
direto do quintal para a cozinha.
Dizer isso praticamente faz parte da cultura brasileira, mas dessa vez há
uma bagunça mesmo: as lajotas da cozinha foram quebradas com martelos, as
janelas estão em estilhaços, alguns móveis totalmente destruídos.
— E pintar… cantar assim: o sapo não lava o pé, não lava porque não
quer — ele se engancha em algumas palavras, mas canta bem alto e animado,
balançando as mãos.
sai em disparada.
Continuo sorrindo feito boba ao ver o meu filho correr e fico pensando
o quão surreal é essa cena. Esperei tanto tempo por um momento assim, que
não sei o que sentir…
Tudo bem que Guilhermo e eu não temos nada. Mas o fato dele não
menosprezar meu filho ou até mesmo fingir que ele não existe, já me faz
sentir bem.
valor também…
Ele não é o rei que não aceita a ajuda de ninguém? Então quero que ele
saiba a sensação de como é quando outra pessoa quer ajudar e não querem
aceitar.
Agora que ele perguntou, confesso que dói um pouco. E não bebi muita
água, desde que acordei, mas tomei café em praticamente todas as casas em
— Sim — minto.
volta de lá com uma jarra numa mão, copo no colo e a outra mão guiando
com maestria em minha direção. — Beba — diz como se fosse uma ordem.
— Devia ter falado disso tudo na noite passada… você chegou bem
tarde, sua mãe devia estar muito preocupada…
— Sim…
Não sei por que, mas sinto um alívio quando tratamos de uma forma
tão natural sobre esse assunto. Acho que depois de tantos nãos e caras
E não tenho outra reação além de rir e ficar balançando a água no copo.
— Pode deixar.
— Não faço ideia se você possui algum acordo com a Heloísa, mas me
adiantei em eu mesmo produzir um acordo.
fazendo…
Eu que pensava que não podia ficar com o coração mais desregulado,
agora sinto um calor insuportável me subir, coço as orelhas e continuo a
deslizar o dedo pela tela do celular.
— Como assim?
— Depois você se muda para a minha casa. Pode levar a sua família
— Fernando Pessoa.
Dizia ele, que o pai dele dizia, que quando os antigos navegavam em
direção à guerra, eles queimavam os seus navios – coisa que séculos depois
os Vikings e até mesmo os conquistadores espanhóis fizeram ao chegar ao
“Novo Mundo”.
Assim, eles tinham uma única certeza: só há uma forma de voltar para
casa – vencendo a guerra.
Os generais sabiam que, o que todo guerreiro quer no final das contas,
não é vencer a guerra, mas sim, retornar para sua casa, ser abraçado por
aqueles que o amam e respirar o final de sua aventura.
Não perca!
Não se renda!
Alfredo Lamarphe.
em 77 dias?
— Ficou maluco?
O olhar que lanço a ele, só de imaginar que ele pode examiná-la, já diz
tudo.
— Então… é que você sabe que engravidar não é tão fácil, não é? Ela
precisa estar no período fértil e…
— Você sempre fica tenso quando falamos dessa Yasmin... — Ele coça
a barba e me observa por um longo período. — Quando acordou do coma e
perdeu parte da memória, só lembrava dessa tal Yasmin...
dela. Não reconhecia os rostos dos meus familiares, também não reconhecia o
rosto da minha mulher, só o de Yasmin.
— Bem… só espero que ela ligue rápido, pois são 3 meses para colocar
esse neném no forno…, mas são em média 6 dias férteis… o que diminui
suas chances para… 18 dias. Isso se ela já não estava em um período fértil e
saiu…
Ela só disse que traí sua confiança e estava roubando sua herança…
Isso me deixou mal nos primeiros dias, mas depois refleti que a herança
era de direito da família de Guilhermo. Sem falar que, caso tenhamos um
Ela é a minha advogada, não posso arcar com custos advocatícios agora
— Eu quero…
— O quê?
— Não é assim que o vejo, ele é muito mais do que um cadeirante, para
mim... — Balanço os ombros.
— Parece que tudo está a meu favor… — Apoio o rosto com as mãos.
— É, nunca aceita ajuda, nem nada do tipo. E não sei se ele está pronto
emocionalmente, sabe? Perdeu a mulher em um acidente, a filha estava na
barriga dela… tenho medo dele não conseguir se abrir… eu adoraria ser mãe
novamente, mas quero me conectar com alguém… quero ter tudo que não
tive com o pai do Phellippo!
— Tá bem, Cinderela — Patrícia desdenha. — Heloísa não retornou
nenhuma ligação? Não enviou nenhuma mensagem?
— Não.
Quando nossos olhares cruzam, ela sorri e dá uma leve inclinada para o
lado, tira a mochila das costas e joga ao pé da porta.
— Como entrou?
— É óbvio que não — ela sorri do mesmo jeito, jogando seu charme.
Pisca os olhos grandes e caminha na direção da poltrona diante de mim. —
Está pronto para ouvir a resposta?
Não sei por que cada parte de mim fica em alerta quando a vejo. É
como se sem querer eu saísse do lugar ou se meu estômago se comprimisse
de uma só vez.
— Você tem muitas exigências. Quer que eu volte a estudar, quer que
eu venha morar aqui, quer que eu tenha um filho com você o quanto antes...
— É — meneio a cabeça.
quem ele é. Isso inclui, é claro, que você aceite a minha ajuda quando for
preciso. Sei que é independente e quer mostrar que consegue fazer as coisas
sozinho..., mas eu sinto que isso cria uma barreira entre nós.
— Justo.
Prontamente ela desliza o zíper da jaqueta preta para baixo. Tudo o que
consigo enxergar a partir dali é o sutiã vermelho muito chamativo em sua
pele clara. Num plano de fundo, com a visão mais turva, vejo o sorriso de
vitória nos lábios dela.
— Não faça essa cara de surpresa, Guilhermo, você sabe muito bem
que sim.
“Sexo é escolha, amor é sorte”
— Rita Lee.
Aprendi tantas coisas naquela noite sobre a vida, corpos e desejo que
nada mais foi o mesmo. Minhas expectativas foram às alturas, porque a
minha primeira vez me surpreendeu e ninguém conseguiu suprir minhas
vontades após aquele momento.
—Bella donna.
Uma corrente elétrica percorre meu corpo de imediato, não sei onde
começa, só sei que deixa um rastro quente pela minha espinha e se expande
em meu baixo ventre. Suas duas palavras ficam ecoando em minha cabeça e
antes de estender o pé em sua direção, é como se eu visse a jovem Yasmin
Seu olhar duro e carrancudo não me dava medo, assim como sua barba
bem feita mesclada com fios brancos faziam meus pelos do braço se
eriçarem.
pensei por anos que já não era mais possível. No silêncio que precede a
aproximação dos meus passos, sinto o coração vibrar até as extremidades do
meu corpo.
Eu sinceramente não sei. Jurei a mim mesma que nunca mais veria esse
homem, desde que me deixara um bilhete que feriu meus sentimentos, na
manhã seguinte que fizemos sexo. Mas a cada encontro e reencontro recentes,
Quando ouço o som da minha própria voz, percebo que estou tremendo.
Mas refletida nos olhos dele que brilham diante da minha imagem, vejo
uma mulher confiante e que é sexy.
Refletido em sua íris vejo uma mistura do sorriso da menina que eu fui
e da mulher que sou.
Seguro com firmeza em seu ombro largo e passo uma perna por cima
do colo dele, num impulso sento em sua coxa e massageio devagar com a
Seus olhos descem para meus seios, depois minha cintura. E eu o ergo
seu queixo com o dedo, para encará-lo com seriedade.
Ainda mais quando sinto sua mão subir pelas minhas costas, puxando
meu corpo em direção ao seu.
Sinto o nariz pontudo de Guilhermo tocar meu abdômen, isso faz um
pouco de cócegas, mas também deixa meu corpo aceso. Ainda mais quando
Não tenho vergonha de ficar nua diante dele, mas fico apreensiva. Não
— Você é perfeita.
O ser humano é incapaz de inventar rostos enquanto dorme.
Nesse momento a minha memória fica atiçada, pois por muito tempo eu
sonhei com o rosto de Yasmin, mesmo sem lembrar quem ela era. E era um
sonho tão vívido e real que eu lembro dos seus longos cílios piscando quando
— Ahh!
Suas mãos seguram com firmeza em meus ombros e ela rebola tão
devagar que se torna incômodo sentir o pau latejando dentro da calça, louco
para sair.
tenha de fazer.
A calcinha vermelha da mesma cor do sutiã até parece que deixa o meu
sangue mais quente no cérebro, e a cinta liga tão justa que se estende em uma
longa meia de renda não ajuda em nada.
Eu vou ficar louco, se é que já não estou. E vou sucumbir rápido aos
meus delírios.
— Ei!
Vejo-a chutar a calça para o lado e sair correndo pela casa, rindo como
se fosse algum tipo de brincadeira.
Se ela fugir de mim, como faço, se não posso correr e tomá-la em meus
braços?
quanto a quero e que não preciso por os pés no chão e correr para tê-la de
volta.
Acho que não teria forças e ficaria travado no lugar, se isso ocorresse
Mas é ela.
A mulher dos meus sonhos. O primeiro nome que veio à minha boca
quando despertei do coma. A lembrança de um dia inesquecível.
a direita ou esquerda.
Nunca que ela conseguiria correr mais rápido do que duas rodas e esses
braços empurrando.
Agarro-a pela mão e a puxo de uma só vez em minha direção, por mais
que ela pense que vai se sentar em meu colo, eu a agarro e a jogo por cima do
meu ombro. Estapeio sua bunda com força e escuto o som ecoar por todo o
longo cômodo.
o ar.
E por que eu estou rindo, como se quisesse fazer tudo isso de novo, só
para sentir o desespero, a adrenalina e a vitória novamente?
Para garantir que não vai fugir novamente, tomo por bem, segurá-la no
lugar, enquanto meu rosto sobe pela parte inferior de suas coxas, até chegar
na cinta liga, observo que sua calcinha está bem úmida e isso parece um bom
sinal.
frente.
Não vejo outra saída além de puxar sua calcinha até o meio das pernas
e afundar meu rosto para me inebriar de uma vez só em sua vagina.
Numa rápida olhada por cima de sua virilha, vejo que está de olhos
fechados e se afundando na poltrona, enquanto eu vou o mais fundo que
consigo, em um leve movimento que contorna primeiro seus lábios, depois
toda a sua boceta e por fim tento ir o mais fundo que consigo.
Antes que ela diga mais alguma coisa, volto a beijar e lamber
suavemente sua parte mais sensível, seguro e aperto suas coxas, tentando
abrir cada vez mais suas pernas, para chegar o mais fundo que conseguir.
É quase insuportável agora sentir essa maldita ereção. Não tem jeito,
senão abrir o zíper e abaixar a cueca o quanto posso. Sentir o pênis pular para
fora da calça dá uma sensação de alívio e me faz respirar com mais
tranquilidade, mas em seguida sou acometido por outra sensação incômoda:
não estar dentro dela. E é quase tão insuportável quanto o aperto da cueca.
Acho que ainda estou cego pelo tesão, pois quando penso em segurar
na cintura e virá-la na poltrona, na verdade já fiz isso. E estou puxando-a em
minha direção, esfregando com força a glande inchada em sua vagina
molhada e quente.
— Eu te disse uma vez que cuidaria bem de você. — Aliso suas costas,
até chegar em sua nádega. — Não vai ser diferente agora.
De imediato consigo sentir sua entrada, não sei o que vem primeiro, a
sensação da cabeça do pau preenchendo a vagina ou o gemido alto que
Yasmin dá.
— Eu estou tentando...
— Relaxe, Yasmin... não precisa ter medo...
para a parte de baixo do seu corpo, subo da virilha até o abdômen, depois
alcanço seus seios e a puxo devagar, para que se levante e se sente em mim.
Ela parece ficar mais confiante quando põe os dois pés no chão e
consegue controlar o quanto sente de mim a cada sentada.
E é só isso que eu quero, dar prazer e sentir essa deliciosa sensação que
parece desligar todo o corpo e tomar cada um dos meus sentidos.
— Isso. — Acompanho seus movimentos ao beliscar bem de leve as
pontas dos dedos nos mamilos. —Bem devagar... isso... boa garota...
Yasmin joga os cabelos para trás e apoia suas duas mãos em minhas
coxas, desce um pouco mais a cada vez e seu corpo vai se soltando, sua
tensão desaparecendo, enfim parece estar se entregando ao momento.
Parece até que é nocauteada por uma nova sensação que a faz
estremecer. Yasmin deita suas costas em meu peitoral e repousa a cabeça em
meu ombro, agora seus pés estão apoiados na poltrona e ela está me sentindo
cada vez mais dentro, cada vez mais fundo.
ficar paraplégico.
Já havia sentido um deles numa ocasião, nunca os três juntos, não como
agora.
Porque quando ela se entrega a mim, sinto que também estou entregue.
Ela mesma controla seus movimentos que já estão rápidos e bem mais
intensos, famintos, consumindo-me quase por completo. E eu não paro o que
estou fazendo, quero continuar a beijar sua nuca, quero continuar a beliscar
seu seio, quero continuar tocando seu clitóris com toda a dedicação que ela
merece.
— Guilhermo!
Ela diz uma última vez. E explode de prazer, sem parar de rebolar e
mover sua cintura para baixo. Une as pernas quando sente que um líquido
parecido com xixi escorre de si e mal consegue sustentar o corpo agora, já
que suas mãos e coxas tremem.
— Agora sou eu quem não vai parar. — Seguro em sua cintura e tomo
o controle da situação.
“No mesmo instante em que recebemos pedras em nosso caminho,
flores estão sendo plantadas mais longe. Quem desiste não as vê”.
— William Shakespeare.
a água corrente lavar meu rosto e asseio os cabelos para trás, diminuo o fluxo
de água, mas não o desligo totalmente.
— Preciso ir, tem uma emergência no hospital. Você vai ficar bem? —
ele questiona após entreabrir a porta.
— Eu já estou terminando...
— Ok...
Fico ansiosa para que ele diga algo sobre a noite passada, mas parece
ser realmente urgente a sua questão, ele fecha a porta e consigo ouvir o
sapato social batendo contra o chão, descendo as escadas; retorno ao meu
banho.
Eu não devia ter tido tanto medo, a minha primeira vez não foi tão
horripilante.
Na verdade, Guilhermo me deixou muito à vontade e foi muito
prestativo comigo. Sem falar que passamos a madrugada inteira na piscina
conversando coisas triviais, mesmo o meu plano original ter sido vir, fazer o
que tinha de ser feito, pegar o dinheiro e sair.
nada... vou até a mochila e vejo um bilhete. Sorrio ao imaginar o que possa
estar escrito.
“Não consigo encontrar o meu celular. De toda sorte, espero que a noite
tenha sido boa para você”
Será que vamos nos reencontrar em algum outro momento? Ele parece
ser um homem tão interessante, acho que seria incrível poder conhecê-lo mais
afundo.
careta.
Acho que me enganei... pelo visto ele deve ser um babaca, como
Pelo visto só queria uma virgem para desflorar e depois descartar, pois
são assim que esses homens ricos são.
Amasso o papel e o jogo para trás, puxo a minha mochila e dou o fora
da casa dele.
ATUALMENTE
— Yasmin...
A única certeza que tenho é de que não dormi em minha cama, ela é
fofa e praticamente afunda quando eu me deito. Já essa cama é dura e firme,
além de que estou cercada por travesseiros.
diante de mim.
— Quase quatro e meia. Tem certeza de que não quer ficar e dormir?
Acho que fiquei tão impressionada com aquele maldito bilhete que ele
me deixou, que tive um pesadelo com ele. E, por Deus, eu não vou ficar aqui
e passar por tudo aquilo novamente. Prefiro ir embora com ele.
Ele acordou cedo por minha causa? Deveria ter descansado um pouco
mais!
— Claro.
— Sem problemas.
Corro até o closet dele e me deparo com o que parece uma loja inteira.
Existem tantos ternos, uma joalheria média com relógios, anéis, cordões... o
armário de sapatos cobre uma parede inteira e eu escolho o que parece mais
confortável.
Pisco os olhos, sem acreditar. De onde ele tirou tempo para servir a
mesa?
— Não coma tão rápido — ele chia, espiando-me por cima do tablet.
— Vai passar mal.
— Na verdade, só quero saber se você está bem, como vai a sua saúde.
Não sei ao certo se acredito nas palavras dele, mas a única coisa que se
passa em minha cabeça é que ele precisa garantir que estou em perfeito
estado para gerar um filho saudável.
Não que eu tenha a esperança de que ele se apaixone por mim, mas
quero que possamos viver algo legal antes que os meus pés inchem, o
Se essa criança for igual Phellippo, imagino que minha barriga vai ficar
gigante e os chutes não vão parar em certo ponto da gestação. Começo a
duvidar se vou conseguir fazer as coisas simples as quais me propus no
contrato.
— Nada... só estou pensando que o dia hoje vai ser cheio. Tenho
algumas roupas para entregar... produtos eróticos a vender... preciso passar na
faculdade para ver se ainda aceitam que eu retorne...
— E sobre o dinheiro...
— Já terminou?
— Uhum.
não precisa tirar a mesa — ele me interrompe e passa por mim, empurrando
sua cadeira.
— Ei... eu não...
sobe.
— Prontinho.
Após deixar Yasmin em sua residência, dirijo por uns vinte minutos até
chegar ao Rota da Vida.
da vice-presidência.
— Estava em casa.
Lisa parece que acordou, está pálida e chocada. Pisca os olhos bem
devagar e se levanta, ainda sonolenta.
Pela expressão, ele não acredita em mim. E só leva isso a sério quando
mostro com o olhar de que não estou brincando.
— Que milagre!
— Não fiquem com essa cara, eu estou bem, nada aconteceu comigo.
— Engraçado que você está dizendo tudo isso de uma forma menos
rude, parece até que está de bom humor — Ayslan avalia.
— É, ele transou — Ayslan avalia. Quando passa por mim, espeta seus
dedos indicadores em meus ombros. — Guilhermo está fazendo bebês... —
cantarola.
— Agora chega, vocês dois! Agradeço a preocupação, mas preciso
conversar com os parentes do paciente antes da cirurgia, devia ter feito isso
— José Saramago.
— Ah, você tem trabalhado tanto, não deveria se preocupar com isso...
— O sorriso dela parece que se estende pelo rosto todo. — Vamos comer?
E não demora muito para que Diogo também apareça. Ele não dá bom
dia, não diz nada, só pega algo para comer e se prepara para sair da cozinha.
— Eu quero conversar com você, Diogo, não saia — digo e corto o pão
para PH.
Meu irmão não me responde, dá as costas e desaparece subindo as
escadas da casa.
— Não, pode ficar tranquila, eu vou. PH, coma direitinho que a mamãe
já volta e te leva para a escola, tá?
— Eu vou ao banco sacar o dinheiro que você deve aos agiotas. Quero
os meus vestidos de noiva, todas as peças que aqueles crápulas roubaram
daqui e os produtos eróticos de Patrícia!
Dou um tapa tão forte no rosto dele que dói mais em mim do que nele,
com certeza.
Estou tão cansada dos desacatos e da forma como meu irmão me trata,
que cheguei ao limite.
E não vou permitir que ele venha com gracinhas para cima de mim.
eu quero tudo aqui. Vou revistar cada vestido, cada terno, cada piroca e se
estiver faltando algo, te faço voltar lá!
— Tudo bem. — Ela se agarra à xícara de café e acena para nós dois.
— Boa aula!
Há muito tempo não levo meu filho, essa é uma daquelas coisas
simples e bobas da vida, mas que depois de tanto tempo sem fazer, parece
que faz falta.
Sinto como se fosse ontem que ele estava em minha barriga, dando
chutes que fazia acreditar que ia ser atacante de futebol. E agora está
crescendo sem parar...
— Filho?
Me derreto toda e acaricio seu rosto, não consigo resistir a esses olhos
azuis chamativos que parecem duas safiras brilhando diante do sol.
— O que você acha de ser promovido?
— É... pra brincar... pra cuidar... amar... proteger. Você vai ser o irmão
mais velho... vai precisar criar responsabilidade.
— Hum — Analiso.
— Mamãe?
— Hum, então será que você está pronto para ter um irmãozinho ou
irmãzinha?
— Sim!
— Tá bom, mamãe.
— Mas quem é o papai? O meu papai? Ele vai vir moiar com a gente?
nervosismo.
recebeu o novo coração muito bem. Vai demorar um pouco para acordar, ele
precisa de descanso. Vou permitir a entrada de um parente por vez, seguindo
as normas rígidas do hospital.
— Senhora, sei que quer ver seu filho, está preocupada e apreensiva,
mas acho de bom tom que a senhora Simões seja a primeira a vê-lo.
A esposa se surpreende. Até parece que vai sair do lugar e me abraçar.
mãe dele.
Sigo manobrando a cadeira pelo corredor, até ser abordado por uma
mulher alta, ruiva de cabelos longos, os olhos verdes se fixam em mim de
imediato.
— Doutor Lamarphe, tem um segundo?
— Tudo bem, Érica — a acalmo quando chamo por seu nome. — Você
foi visitá-lo, quando estava em estado crítico. E foi ao velório...
— Obrigado.
Ela tamborila os dedos na mesa, avaliando-me. Parece que quer dizer
muitas coisas e está selecionando a que vai jogar primeiro.
— Ouvi dizer... — ela ri, asseia os cabelos e os joga para trás. — Que
vai precisar fazer um filho para receber a herança dele...
bastante aberto. Quando levanta a sobrancelha e seu olhar sorri para mim, eu
arregalo os olhos.
— Está disponível esse final de semana? Bem, estou feliz que não sou
mais sua supervisora, acho que não vai ser de mal tom se sairmos...
Isso parece que a conforta, o sorriso confiante retorna para seus lábios.
— Mas eu gosto muito dela. É uma mulher incrível, acho que vai ser
menos insuportável do que imaginei
Agora o assunto ficou ainda mais interessante, retorno para diante dela
e repouso as mãos no colo.
— Não pensei nem por um segundo que poderia ser você, Érica.
— Obrigada — ela anui. — Mas não vejo por que toda essa inquisição
espanhola por causa de um erro bobo. E que você prontamente corrigiu.
Deixo-a muda.
— Como foi alguém que veio pelo SUS, que o Alfredo insistiu para
que déssemos algumas vagas para o sistema na escola hospitalar, estão
desmerecendo o caso.
— Acredito que se isso ficar impune, passa uma mensagem errada. Não
é porque uma pessoa não pagou para estar aqui que deveria ser vítima de
maus tratos.
— Não acho que a culpa seja sua. — Vejo um filete de calma brilhar
— Sabe que isso seria, de certa forma, perder tempo, não é? Costurar
alguém não é a coisa mais difícil do mundo.
Mas eu sempre achei que até mesmo Deus, sendo o maior de todos, tem
profundo carinho e amor pelos humanos.
— Sério?
— Obrigado.
— Lei de Murphy.
O dia foi bem produtivo – com dinheiro na conta, não teria como não
ser.
Patrícia e eu ficamos bem ansiosas para o retorno de Diogo em casa, à
noite. Ela estava com uma lista dos produtos que foram levados e ia contar
vida acadêmica. Pelo visto o novo semestre iria começar no próximo mês,
então eu só precisava ficar atenta ao site da instituição e pegar as cadeiras que
faltavam, isso incluía o meu pior pesadelo: o TCC.
— Você ainda não teve a chance de me contar como foi com o bonitão
— Jura?
— Aham.
— Quais as ocasiões?
— Mas se tomarão um porre juntos, isso significa que você também vai
dizer umas verdades, não é?
desconfortável?
— Quê?
Ah, pronto, agora a minha amiga Bela Gil da macumba perdeu o juízo
de vez.
— Amiga, que tal a boa e velha conquista, sem apelar para o espiritual?
— Você acha que ele vale todo esse trabalho? — Há um quê de desdém
na voz dela.
Nos últimos tempos não pude exercer esse meu passatempo, pois não
havia ninguém que valesse à pena. Mas eu preciso que Guilhermo e eu
tenhamos uma relação agradável, pelo menos amigável, se vamos tomar esse
passo de ter algo que nos conecte pelo resto da vida.
Estou animada com os planos que fiz! E espero que tirá-lo da rotina e
da zona de conforto seja algo bom!
— Ele chegou! — Patrícia não consegue ficar no lugar, sai correndo até
o portão e eu a acompanho.
Que descuido!
— Vamos logo levar isso para dentro, quero ver se está tudo em ordem!
— Patrícia se agarra à caixa grande e sai andando como se fosse um pinguim.
Quando vendi a virgindade para Guilhermo, quatro anos atrás, meu pai
estava entregue ao alcoolismo. Depois de trabalhar fielmente para grandes
estilistas que roubaram seu trabalho, ele se viu sem nada, desamparado,
perdido na vida e sem um tostão no bolso para recomeçar.
Nunca vi minha mãe e pai tão felizes, enfim ele estava trabalhando para
si e tendo todo o reconhecimento que mereciam.
Agora usei boa parte do dinheiro que Guilhermo me deu para recuperar
tudo. É a história do meu pai, aquilo que ele se dedicou, a prova viva de que
deu a volta por cima... uma verdadeira herança de família!
Rever essas peças é como ver uma foto rara de um momento sublime
cuidado para que as caixas com produtos eróticos não saiam nela.
Não demora muito até ele me enviar uma foto sua, de olhos revirados
para cima. Está todo envelopado em um pijama hospitalar da cor azul e de
máscara no rosto.
Leio o que ele me enviou. Faço uma careta e quando dou conta, estou
rindo da foto ridícula.
Por um instante percebo que, enfim, vou realizar o sonho da minha
vida: ter a chance de usar um desses vestidos de noiva. Não por experimentar
“Brincadeiras à parte, fico feliz que esteja cuidando da herança que seu
pai te deixou. Estou orgulhoso de você. Quando vamos conversar sobre a
Ele também tem uma herança a zelar, mas infelizmente só tomará posse dela
quando nosso filho nascer...
Ele responde:
Digito, animada:
Mesmo que ele não pergunte, envio uma mensagem falando do meu
dia. Quero ver como ele vai reagir a isso. Guilhermo passa a impressão de
que não gosta de tratar sobre coisas bobas do dia a dia. Mas como vou
conhecê-lo melhor, senão por esses pequenos detalhes?
“Fico feliz que esteja dando uma nova chance à faculdade, como pedi. O
direito possui diversos temas, pense em um que você goste muito e queira
defender, imagino que encontrará algo que se familiarize e o TCC não
vai te aterrorizar tanto.
— Ih, ela está rindo do nada agora... — Patrícia tenta espiar por cima
— E quando foi que eu tive, para perder? — ela diz feliz e vai
enfileirando os produtos eróticos. — Está tudo aqui. Pelo visto não vou
precisar dar uns tapas no seu irmão.
E está carregando...
Ai meu Deus...
seus alunos.
Como ainda estou rindo, entrego o celular nas mãos dela e tento me
recompor.
— Stephen Hawking.
para vender produtos evangélicos por aí, já que havia sido bem lucrativo; e
eu tive alguns pesadelos sobre encontrar Dênis e Guilhermo no mesmo lugar.
Alguns meses depois descobri que estava grávida, quando numa aula de
direito tributário eu vomitei, e olha que nem era uma das cadeiras mais chatas
do curso...
Pisquei os olhos, incrédula. Acho que fiquei branca feito papel, pálida,
Fiquei muda, sem saber o que dizer. Mas acho que a minha expressão
de horror falou por mim, principalmente porque sempre fui muito aberta com
ele sobre meu sonho de criar uma família – e ele parecia animado com isso.
Mas ele tinha outros planos...
Preferi não argumentar com ele. Só corri e chorei. Fui encontrada por
Patrícia e Heloísa, que me acalmaram e ficaram ao meu lado nisso tudo.
sequer! Ou tudo isso batido no liquidificador, servido com gin e dois cubos
de gelo.
Precisa me chamar umas duas vezes para que eu saia de meus próprios
pensamentos.
Vigio pelas janelas para ver se está sozinho mesmo, o que parece bem
estranho para nós dois.
cinto.
E eu me divirto bastante.
— É — concordo.
Mal termina de dizer isso, ele desvia e evita bater em um carro que
causou um acidente, bem diante de nós.
— Sei que vai conseguir. — Ele acena ao terminar de dizer e olha para
mim.
Não sei por que, mas toda vez que Guilhermo me encara, sou capaz de
sentir algo forte. Agora sinto muita confiança, sinto que alguém vai estar lá e
torcer por mim, isso me deixa animada para superar esse próximo desafio.
O sol ainda não alcançou o horizonte, mas está quase. E muita gente
está reunida ali, seja andando de bicicleta, passeando com seus cachorros,
correndo, ou até mesmo sentados na grama, aguardando o grande momento.
frente da porta dele para ajudá-lo, mas Guilhermo nunca aceita minha ajuda.
Típico dele.
— Banda local?
Tiro da cesta uns morangos bonitos que encontrei na feira, uvas sem
caroço, um brigadeiro que eu mesma fiz, e garanti que Patrícia não colocasse
qualquer tipo de encantamento. Pães de queijo que minha mãe fez e uma
garrafa de vinho. E taças, é claro, que cobri com panos de prato para não
quebrar.
— Que médico esperto. — Rio e coloco tudo bem bonito diante de nós.
E meu coração parece que perde o compasso. Não esperava nem que
ele tocasse nesse assunto.
Meu coração fica quente ao perceber que ele quis incluir Phellippo
nesse momento. Também acho que ele teria adorado, mas...
— Quero passar um tempo com você. Só nós dois. Vamos ter outras
deita o braço direito em cima de mim, seus dedos alisando por cima da minha
camisa.
Ele está quieto e pensativo, vejo uma expressão em seus olhos que não
conhecia até então.
algo tão complexo que seria capaz de deixá-lo sem palavras. Só sei que pelos
seus olhos prateados eu consigo ver refletido o céu num tom rosado que se
expande e desce quase que em carmim, por todo o horizonte.
A cidade, logo a nossa frente, parece viva diante das luzes artificiais.
Quando ele abaixa o rosto em minha direção e seu nariz toca em minha
testa, fecho os olhos e sinto sua respiração quente em minha pele. Seu braço
direito me aperta bem devagarinho, até sua mão estar em minha cintura.
Sinto o corpo pender para trás e eu vou, sem medo. Quando as costas
alcançam o chão, Guilhermo põe as duas mãos em meu rosto, encarando-me
em silêncio. Não sei quais brilham mais, se as estrelas ou seus olhos... só sei
que nunca me vi refletida nas estrelas, então estou pendendo a achar que seus
olhos são mais bonitos e brilhantes.
Eu estou aqui pelo momento único que algo assim pode proporcionar.
Estou aqui para descobrir como ele reage à simplicidade, se confia em mim a
ponto de não seguir um GPS ou até mesmo é capaz de entender que não
preciso estar no prédio mais caro desse país para ter um momento que valha à
pena.
— Estou tão preso àquele hospital, que não lembro há quanto tempo
não vejo um pôr do sol... — Sinto o peso da sua mão por cima de mim, seu
rosto me encarando sem piscar.
— Millôr Fernandes.
Ao mesmo tempo que sou acometida por uma sensação de alívio e paz,
um calafrio sobe por minhas costas quando estamos tão próximos um do
outro; e eu me sinto envergonhada e até paralisada de todas as coisas que ele
estamos na pista.
Quando chegamos a um lugar isolado e que não tem vista para canto
O que está acontecendo comigo? Por que estou agindo assim? E por
que mal consigo me movimentar agora?
— O que você...?
Não sei o que dizer. Pressiono o indicador contra o nariz dele. Minha
mão direita passa pelo seu cinto de segurança, após retirar o meu e encontra a
alavanca que empurra a poltrona o máximo que ela vai para trás, dando um
espaço mais generoso do que eu pude imaginar.
Algo em mim pega fogo, porque eu o desejo e não consigo conter essa
sensação.
Só sei que o quero, cegamente, a ponto de ignorar onde estamos.
Não há nada especial nesse lugar, para falar a verdade... Só ele e eu.
— Você tem certeza de que quer fazer isso? — Ele se mostra surpreso,
mas não nega nenhum dos meus gestos.
onde sinto o contorno grande em sua calça pressionar contra a minha. Perco o
fôlego ao sentir suas mãos contornarem meu corpo e me puxarem, quase
fazendo subir por cima dele, de tão intenso que é.
Eu devia me sentir obrigada a dar esse bebê a ele. Fazer sexo só pelo
objetivo final.
Sinto sede de sua boca e não consigo me conter, dou vazão aos meus
impulsos e me entrego aos desejos, pois quando faço o que quero, não fico
tão duro.
quando vê água. E quando meus lábios tocam a glande inchada de seu pênis,
meu corpo deixa de lado que está esquentando, ele literalmente pega fogo.
Meu corpo fica eriçado, meus braços até tremem, mas eu continuo. E
ele parece gostar, pois seus suspiros de excitação rapidamente se tornam
gemidos altos. E não preciso de mais que isso para sugar a glande até ela
preencher a minha boca, depois um pouco mais da extensão do pau que pulsa
em mim.
Não sei onde esbarro ou aperto na hora de puxar a calça dele, mas a
porta do motorista se abre para cima e a luz da lua entra em direção ao corpo
nu dele.
Até tinha me esquecido como essa pele morena e durinha era apetitosa
de ser vista. E com a leve subida da camisa que dá, consigo ver seu abdômen
demarcado.
pele, do seu sabor, da temperatura que ele emana e que preciso em mim.
Nesse meio tempo em que estava me despindo, não percebi que ele
abriu os botões da camisa, deixando o peitoral livre. Aproveito para segurar
em seus peitos, sento em seu colo e sinto suas mãos fortes – uma em minha
nuca e a outra em meu quadril –, me puxando.
Solto um gemido baixinho e deito o rosto no ombro largo de Guilhermo
quando sinto seu dedo me tocar.
— Você já está assim? — Ele passa a ponta do nariz pelo meu rosto.
Vejo seu dedo úmido e acompanho com o olhar ele levar o dedo à boca
e chupar.
— É o jeito que você me deixa... — meu raciocínio está tão lento que
só respondi a pergunta anterior agora.
uma louca arrastá-lo para canto nenhum, só para transarmos em seu carro.
É como uma chuva que chega e não avisa. Que arrasta as plantações em
vento, água e pressão. Eu quero senti-lo, quero amá-lo, como se eu pudesse
ser saciada.
E eu sei que não posso, é exatamente como a sede. Ela vem, porque é
uma necessidade sem fim. Ela se abranda, mas nunca é vencida. E mesmo
apertando meu corpo a cada novo impulso, a cada estocada que seu pau dava
vindo dentro do meu corpo. O som da água e o cheiro fresco do corpo de
Guilhermo me embriagam, me deixam louca de amor, abraçada a seus
ombros, sentindo seus olhos pegarem fogo quando observam minha pele.
E não foi por falta de tentativas, pois a minha vida sexual foi de uma
foda a cada encontro mais ou menos para praticamente dia sim, dia não, até
quase se tornar todos os dias.
— Yasmin, olha pra mim — ele diz, quando estamos a duas quadras da
encara com um fino sorriso no canto dos lábios. — Vai acontecer. Na hora
certa. Eu sei que sim...
— Ok.
Consegui tirar parte da sua teima em querer fazer tudo sozinho e não
aceitar ajuda. E ele se mostrou muito mais do que um homem inteligente e
gostoso, além de parecer frio.
Isso gerou um laço de confiança muito forte entre nós dois, mesmo em
pouco tempo.
— Boa noite. — Ele me puxa pela cintura e pressiona seus lábios nos
meus com delicadeza, sua mão ainda arrepia minha pele quando me toca.
— Obrigado.
Ele é assim, nunca vacila. Se tem que agir, tomar a frente, fazer algo,
simplesmente vai.
Não estão na sala, não estão na cozinha. Subo e também não estão em
nenhum quarto.
Solto um grito de susto quando desço de volta à sala e vejo Patrícia sair
do escritório. Ela se agarra ao meu braço e eu ao seu corpo.
outro.
— E o Diogo?
— Meu Deus...
— Você não viu seu celular? Te mandei mensagem, para você não vir,
podia ser perigoso — ela diz aflita.
— Estão todos bem? — Guilhermo pergunta, lá de fora.
— Sim... todos bem... só meu irmão que ainda não voltou — digo, o
coração acelerado.
Ficou acordado no início que eu não iria para a casa de Guilhermo, não
— Martha Medeiros.
Já não estava sendo fácil ter que lidar com o fato de não ficar grávida,
agora eu tinha outra preocupação: esse atentado contra a minha casa; e meu
irmão mais novo, que pelo visto não tinha colocado a cabeça no lugar.
Patrícia nem liga para as roupas. Joga o laptop dentro da mochila, sai
arrastando caixas e caixas de produtos eróticos numa sacola gigante e sai
correndo, feito uma maratonista até o carro de Guilhermo, depois volta para
pegar mais.
na cintura.
— Tá bem, vai até a vovó e entra no carro. — Indico o caminho que ele
deve ir.
— Vai — indico com a mão para que ele deixe isso pra lá e siga o
caminho.
Essa sensação de ir embora da casa dos meus pais, mesmo que só por
um tempo, me traz angústia. Lembro que quando bem nova, meus pais se
mudaram do Espírito Santo para cá, justamente para essa casa.
Foi aqui que construímos a nossa família, foi aqui que vivenciamos
nossos sonhos, percalços e dificuldades. É muito difícil ir embora agora, mas
não posso deixar a vida da minha família em risco.
— Oi.
— PH, precisamos ir embora. — Pego ele no colo, senão não vai parar
de falar.
— Ok, obrigada.
— E continue ligando para o seu irmão. Ele deve estar bem, mas traga-
o o quanto antes.
— Tudo bem.
E mesmo assim ele não me destrata, não mudou comigo e não foi rude
em momento algum, jogando a culpa em mim.
Ele está cumprindo com todo o contrato que assinamos, e eu... não.
Está estampado em seu rosto que não se sente feliz por ter saído da casa
que um dia chamou de lar. No entanto, ela e eu sabemos que não conseguiria
ficar lá, não depois do que aconteceu essa noite. Nem que tivéssemos que
— Parece um palácio. — Ela olha para cima. — O teto é tão alto que
parece que estamos no shopping...
E eu rio.
— Sério?
— Sério, mãe. E tem aquele jardim na frente. — Aponto para o lado
oposto ao qual estacionamos. — E um jardim ainda maior no terraço, a
Claro que ele tem bom gosto. Ele gosta de mim, não é?
— Tá seca — conclui.
braços. — Até esses dias estava radiante... tudo bem, não estava nos planos
sair de casa, né?
— Então o que é?
Minha amiga pisca os olhos, como se tentasse entender onde que isso é
problema. Depois parece que um lampejo em cima de sua cabeça revela o
motivo da minha frustração.
— Então não é tão ruim assim... mas vocês estavam tentando, não é?!
A minha mãe tem dias e dias. Dias em que não sai da cama, dias em
que faz questão de levar Phellippo à escola, nem que seja para tomar um sol e
caminhar. Uma coisa é certa: ela raramente sai de casa, senão para fazer o
que está acostumada. Fico tensa só de imaginar como deve ser vir para um
lugar totalmente estranho, agora.
— Que bom que conseguiu dar uma passada aqui — Kleber, meu
colega e amigo médico, diz assim que entro na sala. — Te liguei assim que os
seus exames específicos chegaram... espero que não tenha atrapalhado nada...
vivo à base de café ou de algum energético, mas sei que isso é perigosíssimo
para o que faço. Fico duplamente mal nessa questão.
Aceno positivamente.
sucesso.
— Ok.
Fico cada vez mais aflito enquanto ele abre a resposta do exame. E
quase salto para fora da cadeira quando a porta se abre e Ayslan entra. Tira a
E isso é pior do que qualquer outra coisa que ele possa dizer.
— Hum? — Não sei se estou constrangido por ter minha intimidade tão
exposta assim, ou se estou mal por não estar conseguindo fazer esse bebê.
— Tem a possibilidade...?
— Como assim?
— Você sabe... você está fazendo o seu papel... Onde estão os exames
dela? Ela está colaborando? Será que não está tomando uma pílula do dia
Ayslan é mais rápido e os agarra no ar, confere cada coisa ele mesmo e
independente do que fale, eu confio.
Kleber, incomodado. — Não acho que duvidar da garota dele é certo. Podem
ter outras razões...
aparecer na sala da vice presidência sem avisar... parece que virou rotina...
— Mário Quintana.
Eu devia estar alegre nesse momento. Esse cenário era tudo o que eu
sempre quis na vida: gostar de alguém e poder apresentar a minha família,
conhecer a sua – os amigos de Guilhermo eram como sua família –, e poder
Em outra ocasião, com outro cara, imagino que já teria sido chutada. E
no mínimo Guilhermo processaria Heloísa, alegando que a pessoa que ela
colocou como condição de receber a herança, estava se negando a colaborar.
— Meus exames saem amanhã. Espero que não tenha nada de errado
comigo...
— Fez o quê?
ebó...
— Tá.
Imediatamente ela vira de costas e empina a bunda, parece até que vai
quebrar de tão envergada que está.
Essa maluca...
— Podemos nos conhecer melhor. — Ela faz uma cara de que não vale
a roupa que veste.
— E a futura senhora Lamarphe... posso chamá-la assim? — Ele
balança as sobrancelhas pra mim.
— Que ótimo. Vamos para a cozinha, tem bebida, tem uns petiscos...
— Guilhermo a interrompe.
— Ok.
Ele jurou que parou com as apostas. E jurou que não teve nada a ver
com o nosso portão, janelas e porta que foram alvejados de balas. Não quis
trazer um peso desnecessário a nossa relação, então fingi que acreditei. Mas o
que mais poderia ter sido? Só ele se metendo com coisa errada, é claro.
— É... estamos caminhando para isso — o outro diz, com a voz macia.
Como conto? Não faço ideia. O plano era chegar aqui hoje e dizer: oi
gente, estou grávida! Mas como faço isso agora? Vai soar bem estranho.
Lisa fica paralisada, o copo vazio em sua mão parece até pesado.
Ayslan continua com o rosto virado para cima, a boca no gargalo da
longneck, não há mais nenhuma cerveja ali. Guilhermo continua com seu
sorriso galante e tranquilizador, com ares de médico que sabe o que está
fazendo.
— Mas Amauri, meu falecido esposo, pensava assim também. Quis ter
o Diogo quando Yasmin tinha quatro anos... quase a mesma idade do PH. Ele
disse bem isso... que seriam amigos... fariam companhia um ao outro... —
seus comentários transparecem uma saudade e um amor que não se apagam.
do campeonato.
— É, mas...
Quase escapa de meus lábios que estou sendo obrigada a ter um bebê.
Não que eu não queira, quero sim. Só Deus sabe como agora quero. E já
tentei dentro do carro, na cama do Guilhermo, dentro da piscina, em cima
— Sim... foi bem gostoso com o Phellippo... e como o pai nunca quis
conhecê-lo, Amauri e eu tentamos suprir a ausência...
O que me deixa ainda mais intrigada é que ela sabe do contrato que me
obriga a ter a criança. Ela estava lá, na leitura do testamento e é uma das
beneficiadas. Mas ela tem um tato, um dom humano, que me surpreende.
— Você parece saber muito de bebês. — Minha mãe sorri, sem
nenhum outro sentimento além de calmaria e esperanças de que uma nova
criança venha.
Ela é tão calada, gosta de ficar na dela e observar. Raramente consegue trocar
mais do que um “oi” com um estranho.
Eu estou tão chocada que não sei o que estou vendo: minha mãe está
E sinto um alívio que deixa meu corpo leve, por ninguém estar me
olhando e julgando por não estar cumprindo com os acordos estabelecidos...
Espero seu julgamento. Minha mãe nunca foi uma pessoa de duas
caras. Quando desgosta, mostra na frente das pessoas, sem medo das
consequências. E ver seu semblante tranquilo, me deixa aliviada.
— Johann Goethe.
essa, parece que a mãe de Yasmin gostou deles e isso já foi meio caminho
para que ela ficasse tranquila.
Yasmin se mostra surpresa em ver o lugar, acho que não tinha reparado
que no elevador havia um botão para descermos para além do térreo.
no chão, bem longe de si, acho que prevendo que pode tropeçar.
Quando já está com a última garrafa em mãos, envolvo sua cintura com
as minhas mãos e a puxo para cima de mim. O corpo dela fica imediatamente
tenso e paralisado. Giro suavemente a cadeira, suportando nosso peso.
— Pode ficar preocupada em algumas semanas. Até lá não tem por que
se preocupar.
— Mas...
semblante derrotado.
— Não faça essa cara — aperto sua cintura e a puxo para meu ombro.
perto de seus lábios. Eu, mais do que ninguém, deveria estar tenso por essa
demora. Ao mesmo tempo, estou descobrindo um novo eu, junto a ela e estou
aproveitando isso.
— Eu estou.
Não preciso de mais nada, além disso. Acaricio seu rosto com demora e
toco seus lábios da mesma forma. Sinto o fôlego dela invadir a minha boca,
ela se entrega bem devagar e timidamente no beijo, e isso me deixa excitado.
Se não fosse por isso, ficaríamos aqui mais alguns minutos e eu não
responderia por mim...
— A sua mãe adorou a ideia de ter um novo neto. E gostou dos meus
amigos...
Ela sorri, sinto a palma macia de sua mão contornar meu rosto.
Volto a empurrar a cadeira e paro ao lado das garrafas que ela deixou
no chão. Yasmin as pega, deixa em seu colo e eu nos levo até o elevador.
jardim – um milagre que Kim Han não tenha reclamado de não ter comida
ainda – e abro o portão.
Sou pego de surpresa ao ver duas mulheres passando por ele: a minha
mãe e a doutora Érica do Rota da Vida.
— Juntas — ressalto.
jantar, mas os pais da Érica preferiram voltar para casa... então me perguntei
— Certo.
Depois segue o som e vai parar na cozinha, não sem antes olhar duas
Érica e eu não vamos com tanta pressa, mas também não falamos nada
um ao outro.
De toda sorte, quando ela saiu, pude contar algumas coisas da minha
— Mamma, essa é a Lúcia, mãe da Yasmin. — Passo por ela, que ficou
paralisada na entrada. — Ayslan e Lisa a senhora conhece. E essa é a
Yasmin.
— A futura mãe do meu filho — digo num tom um pouco mais alto,
mas que só ela e Érica escutam.
Só me dou conta do que disse quando sua face fica vermelha e ela anda,
— Eles são da família agora — dessa vez falo alto e vou para o outro
lado da mesa.
— O jantar já vai ser servido — dona Lúcia diz, o rosto murchando,
igual ao da filha.
— Eu já volto — informo.
Lisa puxa assunto. E aquela Érica, uma ruiva que parece ter saído da alta
sociedade em um vestido de grife, me olha de cima abaixo.
duvidosa, mas ao menos ela tinha Lisa, uma pessoa que conquistou sua
confiança de imediato. Acompanho Patrícia e vejo Phellippo correndo em
minha direção.
Meu coração acelera de um jeito que não estava preparada, até perco o
fôlego.
— Vai lavar a boca e beber muita água — digo e ele continua o trajeto
original, que era chegar à cozinha.
boca toda suja de farofa e ela, tranquila, levando a pimenta dedo de moça até
a boca e comendo como se fosse uma bala de alcaçuz.
— Das duas uma: ou essa criança vai ficar bêbada ou vai ter uma
diarreia homérica...
— Nããão.
— Tô com fome!
Só tem uma coisa pior do que quando uma criança aprende uma palavra
nova – e você sabe que ela vai repetir à exaustão. A pior coisa é quando a
palavra é:
— Macumba!
zigue zague, e só para quando não resta mais nada ao prato. Larga-o, atrás de
— O jantar está servido! — minha mãe diz, por fim, exultante por ter
finalizado a comida.
Patrícia sai correndo para conter danos e impedir que essa menina
repita a palavra, ou pelo menos falar por cima dela, para que a mãe não
escute.
— É... — ela concorda, mas consigo ver seus olhos brilhando ao ver a
comida na mesa.
— Buda.
Quando estou de volta à cozinha, minha mãe já não está lá. Sigo pela
— Como assim?
— Guilhermo, que ideia absurda é essa de trazer essa gente para sua
casa? — Ela dispara, em italiano. — Em que momento aceitou confraternizar
com o inimigo? Será que não entende que está colocando tudo em risco?
Você não entende... nem mesmo Alfredo entendeu... a herança que ele
recebeu após a morte do pai e a que você recebe agora... é tanto dinheiro,
tanta coisa envolvida... como pode deixar que uma mulher coloque tudo a
perder?
— Mas não pode destratar a minha mulher ou a mãe dela. Não pode
diminui-las ou tentar criar alvoroço porque tem medo de que roubem a
herança.
— Você está cego... não consegue ver que está colocando tudo a
perder...
— Acho que é a senhora que não consegue ver o que está fazendo ou
ouvir o que está dizendo. Então não volte aqui, a não ser que aprenda a forma
correta de tratar os meus hóspedes...
Não sei ao certo como responder essa questão, então permaneço com o
semblante inalterado.
— Não me procure quando for tarde demais. Mas saiba que eu vou
lutar para não colocar todo o patrimônio da família a perder.
Dito isso, ela bate a porta do carro e desaparece pela estrada.
palavras. Acho que até sinto uma dor no joelho ou um mal estar na cintura,
curvo o corpo um pouco para respirar, enquanto a mão massageia o peito. Ao
me virar de volta para a garagem, vejo Phellippo me encarando.
— O que está fazendo aqui fora? Não está frio? — Empurro a cadeira
de rodas e aperto para o portão se fechar.
PH se tornou praticamente meu escudeiro. Por onde quer que eu vá, ele
vai junto. Fica contando umas histórias inventadas, que é uma mistura de
várias histórias que escuta na creche. E também fica observando
silenciosamente as coisas que faço. Acho que está naquela idade da imitação.
E ele me imita como ninguém.
— Guilermo sua mamãe biga com você? — Ele não desgruda do braço
da cadeira de rodas.
Sinto até falta de quando era criança e inocente, sem saber das coisas
que aconteciam. E ao mesmo tempo me sinto ferido por imaginar que há algo
que não está claro o suficiente, algo oculto de mim.
A minha mãe estava começando a ter a vida mais agitada que a minha!
— Ele ficou diferente após aquela noite... o que acha que foi?
— Espero que não tenha sido culpa do que fiz — Patrícia diz, detrás do
laptop. — Fiz a minha parte, tuuuuudo certinho. Tenho culpa de que no meio
da macumba tinha uma criança faminta?
— Palhaça.
construímos, não é só culpa dele — preciso admitir, embora doa fazer isso.
Bem, está aí: antecipei a minha dor e vivi ela duas vezes – antes de
acontecer e agora. Não sei qual dói mais.
— Ai, amiga... depois de tentar tantas vezes, talvez ele esteja mal
também, né.
— Estamos os dois mal.
Não sei, tenho a sensação de que os dias lindos que vivi com
Guilhermo, agora não significam nada. Ou pior, estão se apagando, sendo
levados como uma brisa que balança as árvores, sacode os ninhos e faz cair
tudo o que é frágil.
— Imagino que ela queira proteger a herança da família. Sem falar que
o que a Heloísa planejou foi sacanagem, até eu não consigo apoiá-la.
— Não fale mal da Heloísa. Ela fez a parte dela que foi dar o golpe no
velho. Infelizmente isso respingou em uma amiga..., mas é aquilo... amigos,
— Puxado.
— Eu sei.
De nós dois?
— Você havia dito que se a essa altura não tivéssemos sucesso, iríamos
para o plano B. Só estou esperando você me dar o sinal verde — me refiro
sobre a inseminação.
— Não sei. — Balança os ombros. — Será que vale à pena todo esse
desgaste e esforço?
Sei que ele está machucado. Por mais que tente esconder, consigo lê-lo
com facilidade. Será que ele não consegue ver que estou machucada também?
Eu me joguei de cabeça nessa aventura! Sem plano B, sem outra opção, era
isso... ou nada.
Qualquer dia da semana, assim que você estiver livre, é só me chamar que eu
vou...
— Obrigado.
Como pude trair a confiança dele assim, quando ele fez tudo por mim?
Vem à tona a lembrança daquele dia em que vimos o pôr do sol e foi
naquele momento que eu tive absoluta certeza de que eu me sentia à vontade
para ser a mãe do filho de Guilhermo. Não era mais um contrato. Estávamos
conectados, de verdade, e nos apoiaríamos em tudo.
Acho que perder um bebê que sequer foi gerado foi o golpe de
misericórdia, aquele que o nocauteou de vez e o levou ao chão.
Não parecia ter envelhecido um único dia, ela era como a minha garota,
aquela que despertou coisas estranhas em mim à primeira vista e eu precisava
de mais.
“Já passou pela sua cabeça que ela esteja sabotando o plano?
Impedindo a gravidez?”
minha cabeça. E feito uma pequena semente, ela começou a brotar no meio
da terra fértil da minha imaginação.
— Como assim?
— Você está sendo exagerado. Tipo quando dizia que nunca mais iriam
permitir que você entrasse na sala de cirurgia e...
— Clarice Lispector.
Você sabia que se não der água o suficiente para uma pimenteira, ela
seca? Imagino que sabe disso, pois é o óbvio. Agora, você sabia que se der
água demais, ela morre? É um fato curioso.
pimenta tem muito a ver com o adubo e irrigação da planta. E o segredo não
é dar excesso de água para a pimenta, após um dia de esquecimento, sem
molhá-la.
humanos.
Eu não sei.
Sempre fui curioso sobre a vida, o quão é frágil, o quão passa rápido,
Era apenas sangue e batimento, algo tão mecânico. Mas que guardava
tantos segredos, dores e aflições... guardava filhos, netos, guardava sorrisos
e afetos. Mentiras e abnegações...
Alfredo Lamarphe.
Era um profundo nada. Um eterno vazio. Sem sonhos, sem cores, sem
vozes. Não sei ao certo quanto tempo fiquei apagado. Só sei que comecei a
ouvir alguns sons, antes de abrir os olhos.
Entendi o que as vozes diziam, mas nenhuma delas parecia familiar.
Não consigo me sentar. Parece que a coluna não consegue manter meu
corpo estendido, mesmo com o apoio dos travesseiros.
Sei que provavelmente sonhei com ela. Antes de abrir os olhos e estar
consciente, acho que vi seus olhos castanhos bem profundos. Eles tinham um
De alguma forma todo o meu corpo ficou eriçado, não sei se pelo ar-
condicionado ou pela lembrança que veio como um tabefe em minha cabeça.
— Yasmin?
— Três.
— Medicina?
costas.
A primeira vez que me colocaram em uma cadeira de rodas foi uma das
Dentro de mim eu sabia que já a tinha visto ali, alguma vez. Mas
quando?
— Guilhermo?
— Mio figlio?
— Eu estou bem.
Minha expressão ainda continuava dura. Sabia quem ela era, mas não
conseguia lembrar seu nome.
engana!
Abri os olhos quando a porta do quarto fez um leve ruído. Pelo visto já
havia dado o horário para que a enfermeira checasse os aparelhos, anotasse
minha pulsação e batimentos.
pequeno objeto.
Essa era uma memória. Eu não sabia como, mas era. Consigo lembrar
de tocar nisso... e colocar em alguém que estava deitado em uma cama alta.
Quando o coração bate, meus dedos tremem. A minha mão vibra. Por
meus braços corre um sinal elétrico, meu cérebro parece que vai explodir.
Acenam em negação.
— Acho que nem você a conhecia direito, cara. Ela só chegou um dia e
disse que estava grávida de você... — Ayslan para de falar quando recebe um
cutucão da outra.
O engraçado é que lembro de Yasmin. Não sei quando a vi, não sei
Sinto uma dor aguda que parece vir de dentro dos ossos. Me curvo,
quase sem ar, furioso. O fisioterapeuta encarregado de minha reabilitação,
Jorge Marinho, fica distante quando Ayslan lhe diz:
— Deixa comigo.
— O que foi?
— Mas não consigo me mover direito! Não tenho mais minhas pernas!
Ayslan, já viu a altura das camas desse hospital? Eu nunca mais vou poder
atuar!
— Guilhermo...
Às vezes posso jurar que sinto meus pés, ou pelo menos, uma dor neles.
Meu fisioterapeuta diz que é uma dor fantasma e que está tudo bem.
Não sei o que é mais fácil de absorver: estar preso nessa maldita
cadeira de agora em diante ou o olhar de pena das pessoas ao meu redor. Não.
Tem algo pior: a droga desse hospital onde tudo é alto e nada foi preparado
para uma pessoa como eu, pelo menos, não como um funcionário.
— Então vamos fazer uma cadeira mais alta. Uma cadeira maleável que
— É... e quando não for o hospital? E quando for lá fora? Acha que o
mundo vai se adaptar a mim?
— Você vai exigir que sim. Se quer mudar algo, precisa ocupar espaço.
E a partir dos espaços que ocupa, você vai mudar partes do mundo. É pouco a
pouco, cara. O mundo não vai se adaptar a você num piscar de olhos e você
também não vai se adaptar a ele na mesma rapidez. Tempo, Guilhermo,
tempo!
Três quilos!
muito, Guilhermo. Ficou seis meses resignado, com a cara amarrada a maior
parte do tempo... fazia os exercícios por pura força do ódio.
quando houve a grande mudança. Só sei que num dia eu mal suportava
segurar três quilos, uma semana depois meus braços já não tremiam...
algumas semanas seguinte e eu já fazia exercícios com uma barra de ferro e
três quilos de cada lado.
— O Alfredo?
— É — torço o nariz.
— Ah, esquece esse casamento. Ainda faltam uns dias para irmos à
Noronha. Vamos nos concentrar no treino e no seu ato heroico, pode ser? —
Meu amigo Viking me dá umas palmadas nas costas.
E eu seguro com firmeza a corda que está presa à barra. Fecho o punho
e puxo, saindo do chão, sustentando meu corpo. Só largo a corda quando
Por que mesmo depois de morto esse velho volta para me atormentar
através de e-mails? Já não fez o suficiente, colocando em minhas costas o
peso de ter um filho? Não percebeu que eu não conseguiria? Não passo de
um aleijado idiota que não consegue reproduzir!
Acho que já tive a minha cota de sofrimento por uma vida inteira.
Principalmente porque eu sou o culpado de tudo o que está acontecendo.
Deveria, quem sabe, ter seguido o plano original e estar trabalhando para
anular aquele testamento idiota.
batidas na porta.
Ele não vai desistir. Vou até a porta e a abro, fito o menino todo
Preciso raciocinar um pouco o que ele quis dizer. Não pode ter sido
para o debate, sei que não vou conseguir vencer essa criança.
Ele tem algo melhor do que qualquer argumento: suas próprias regras.
— Muito bem. Agora que está seguro, preciso ir, estou ocupado — dou
meia volta.
— Guillermo?
— Oi, PH.
Não acredito que essa criança vai me fazer contar uma história para que
ela durma.
— Um pato.
— Um pato? — pergunto.
— Um cisne — corrijo.
— Um pato.
— Bertrand Russel.
Aparentemente tudo voltou ao que era antes: passo boa parte do meu
tempo no hospital Rota da Vida. É aqui que trabalho, descanso e passo meu
tempo ocioso. Não é tão mal.
— Está ocupada? — Ouço uma voz feminina, mas não dou tanta
atenção.
— Sobre aquele dia em que apareci em sua casa, sem avisar... de fato
sua mãe e eu nos encontramos no teatro e, enfim, o fim da história você sabe.
Antes que eu pegue o tablet e retorne para minha leitura, Érica volta a
falar:
—... estar morando com você agora. Na volta para casa ela não parava
de dizer: dormindo com o inimigo... e coisas do gênero.
— Minha mãe de fato tem o humor volúvel — é tudo o que tenho a
dizer.
Acho que não veio aqui apenas para pedir desculpas, também não faço
ideia se quer tirar algo a limpo. Só sei que devo desistir da ideia de voltar a
ler, então levo o café amargo à boca e a observo por cima da fumaça da
caneca.
— Eu só estou curiosa...
— Uhum.
— É, pois é.
— Estou.
E ela se diverte muito com o que eu disse. Ainda bem que não soou tão
ofensivo, embora meu humor não esteja dos melhores.
Toda essa trivialidade está me cansando, embora ela seja uma imagem
bonita de se assistir... calada.
— Não.
— Hoje era o último dia, se for contar que um bebê leva 9 meses, e...
Eu quase solto um: jura? Mas não vou ser deselegante e despejar
minha raiva em Érica. Só não sei o que responder.
— Estou muito ansioso para ver onde essa conversa vai chegar —
comento e arrasto o tablet pela mesa até levantá-lo diante do meu rosto.
um filho com alguém que não conseguiu... ou não quis... não é culpa sua...
você tentou... prova da sua boa disposição foi levá-la para sua casa, não? Um
bom advogado...
Não posso fugir das minhas responsabilidades, por mais tentador que
seja renegar a culpa e achar alguém para colocar.
Fui incapaz de ser a pessoa que sonhei que poderia ser para ela. Ou
simplesmente fiz tudo errado.
Mas sei que Ayslan e Lisa não vão me deixar em paz. E vai ser
doloroso ver Heloísa vencer. Fora isso, o que mais posso fazer? Preciso ter a
hombridade de aceitar a perda e seguir a vida.
— Guilhermo?
comprovar que a mulher lá não quis ter o filho e pronto. Era um jogo perdido
— Érica?
— A minha mãe.
— E eu estou. Sei que não somos tão próximos... e você mal repara em
mim, a não ser quando encarna o inquisidor espanhol...
De pronto vem uma memória de alguns dias atrás, de uma conversa que
tive com Lisa e Ayslan que me serviu como um tapa na cara.
— Credo. Isso é Dom Casmurro? Tem certeza de que leu o livro certo?
Pra mim é sobre Capitu e traição — Ayslan sacode os ombros.
— É. Mas o livro se chama “Traição” ou se chama “Dom Casmurro”?
O livro é sobre a metamorfose de um homem que é consumido por suas
nós mesmos, talvez pudesse ouvir seus sentimentos. Coisa que é quase um
tabu para os homens. Por isso é sempre mais fácil ouvir o Dom Casmurro
dentro de si. Mas o fim, amigo... o fim é amargo...
— Érica...
— Se ela acha que não vale à pena ter um filho comigo, eu acho que
não vale à pena ter um filho com mais ninguém. Que o Alfredo me perdoe,
mas eu quero que ele se foda no inferno onde está. Eu estou no meu inferno.
E não faço ideia de como sair dele.
— T-tudo bem.
— Não está tudo bem. Ela é a única mulher que me interessa. Ela é a
única que poderia ser a mãe do meu filho. Ela é a única pessoa com quem
sinto que me conectei de verdade na vida, sem precisar fingir ser qualquer
outra coisa, a não ser eu mesmo...
Certamente não é para Érica. Ela é uma pessoa que não me importo,
nem um pouco, então não precisaria dar-lhe satisfações.
Estou dizendo para mim mesmo.
Mas não.
Foi minha imaginação que criou tudo isso... E eu precisava admitir para
mim mesmo que falhei.
— Então dê o fora — falo sério e não tiro os olhos dela até que se
após o coma.
Vejo o nome de Alfredo como chefe cirúrgico, e o meu nome como seu
residente. A maior parte da cirurgia fui eu quem fiz, sob sua orientação. Leio
o nome de toda a equipe médica, algumas anotações sobre o passo a passo da
cirurgia. E lá no fim, encontro o nome do meu paciente:
— Johann Goethe.
Acho que a coisa certa, como capitão do navio, era segurar o leme e
assistir à embarcação naufragar. Sentir o peso das águas afundarem toda a
construção, ver o horizonte ficar cada vez mais distante ao submergir e por
fim, tomar meu último suspiro e aceitar meu destino: morrer afogado.
— Eu sei — a interpelo.
ele é um detalhe em qualquer lugar, mas quando se trata de estar sozinho com
Yasmin, o silêncio toma a proporção do prédio inteiro, talvez uma cidade
calada, dentro de um quarto.
— O que deu em mim? O que isso quer dizer? Eu estou tentando ler...
— Mas que merda você está falando? — Ela põe as mãos na cintura,
indignada. — Ayslan me contou que você achou isso debaixo da sua cama. E
você pensou que fui eu quem usei?
Não feliz com o tapa que me deu, Yasmin avança com os punhos
fechados e começa a bater em meus ombros. Tento segurá-la, mas está tão
irada que não consigo contê-la.
— Eu quis ter esse filho! — ela diz aos prantos. — Esse era o meu
sonho, você não consegue entender?
Agora que está chorando, fica mais fácil controlar seus movimentos.
— Eu sempre quis ter uma família... e imaginava que poderia tê-la com
você. Eu trabalhei três meses para que não fôssemos completos
desconhecidos no momento em que o teste de gravidez desse positivo, e aqui
estamos, Guilhermo!
— Yasmin... eu...
— Yasmin, me escute.
amigas? Não pelo dinheiro. Mas porque discordo dela, achei errado, queria
estar do lado certo! — Ela treme enquanto chora, cobre os olhos e os coça
freneticamente.
A sensação de vê-la assim faz com que tudo o que pensei e senti, o
rancor e o torpor, todos os meus pensamentos e próprias questões fiquem em
segundo plano.
Não quero vê-la assim. Dói muito mais do que a dor que estou
tentando ignorar.
— Eu sei que errei — admito. Consigo alcançar sua mão e tento fazê-la
se aproximar. — Eu... achei que era mais seguro se me fechasse e aceitasse a
derrota.
— Peço desculpas pelo que te fiz sentir e pelas minhas atitudes. Eu não
sentia? Devia ter prestado atenção nela e ver que eu estava enganado.
— Medo de quê?
— Medo de não ser um bom pai e não poder cuidar da minha família.
Tenho minhas dificuldades, às vezes me sinto um super herói porque salvo
vidas, mas quando tudo se apaga e entro nesse quarto, lembro que sou só um
aleijado... Mas é exatamente isso o que eu sempre quis... uma família. E foi
assim que me senti ao seu lado, nos últimos tempos.
— Eu... — ela suspira. — Vim tão furiosa e querendo provar que estou
disposta que vesti isso — ela sobe o moletom e consigo ver sua lingerie
preta.
— Não está idiota, está linda. — Encaro seus olhos. Deixo meus dedos
suavemente acariciarem seu rosto, afastarem qualquer vestígio das lágrimas.
— Bella donna.
sua supervisão para ele visse que eu não estava tentando atrapalhar nossos
planos.
Mas eu fiquei sem reação quando ele disse que queria construir uma
família comigo, independentemente de qualquer coisa. E fiquei ainda mais
mexida quando ele disse que poderia ser tarde para ter esse bebê, mas não
para continuarmos construindo o que estávamos fazendo.
Meu corpo aqueceu, mas não era mais de raiva. A tensão de ódio agora
havia se tornado uma inquietação. E lentamente eu abandonei as minhas
dúvidas, as incertezas, inclusive os desaforos que tinha preparado para gritar
a plenos pulmões para perceber que estava à flor da pele.
— Tem certeza?
Sua mão que contorna meu corpo, me abraça firme e faz sentir sua
pegada forte.
Fora de seu colo por alguns segundos, beijo seu abdômen e depois sua
virilha. Minha língua ali parece que causa um calor danado, porque ele joga o
rosto para trás e respira fundo.
Eu já estou pronta.
Não digo nada, sigo o controle de suas mãos que dominam bem a
situação, me mostrando o caminho a seguir.
Como senti saudades desse corpo. Como senti saudades desse cheiro.
Cada parte dentro de mim parece que pega fogo de uma só vez e eu não
afasto meus instintos, minhas vontades. Arranho suavemente com as unhas a
coxa e perna dele. Tateio seu abdômen e ombros, massageando-o com a
ponta dos dedos, ao devorá-lo e senti-lo cada vez mais grande e pulsando em
minha boca.
Não tenho tempo para mais nada, eu não preciso de mais nada, além de
senti-lo dentro de mim.
— Você é perfeita para mim — ouço sua voz rouca vir em um sussurro.
Um arrepio toma conta do meu corpo e eu o aperto cada vez mais, sinto
mais do que desejo e lascívia agora.
Senti-lo dentro de mim vai muito além do que a sensação física e carnal
que mistura dor com tesão.
Livres do chão, livres das paredes desse hospital, livres de nós mesmos.
Tudo o que preciso está aqui. E com minhas mãos e boca, consigo
demonstrar todo o carinho e tesão que explode em mim, que rasgam a
timidez e o medo, afastam minha sensação de estar preso na maldita cadeira e
me faz sentir como se fossemos apenas aqueles dois jovens que se
conheceram lá atrás.
Minha mão é mais lenta que a furtiva saída dela do meu colo. Corre nua
pelo dormitório, como uma deusa, os cabelos pesados balançando contra o
escuro do quarto e nenhum vento para dar-lhe aquele ar selvagem.
— Sua maluca.
Seguro firme em seus joelhos, afasto suas pernas e a deixo aberta para
mim. Num suspiro alto ela bate as mãos contra minha cama e sente ser
puxada em minha direção. Ri. Feito criança, feito travessa, não sei o que tem
tanta graça, mas também tenho vontade de rir.
Yasmin estica bem o pescoço quando toco seus lábios vaginais com
minha boca e desço a língua úmida e leve por dentro do seu canal.
Que merda, isso é muito bom. E reforça o quanto vale à pena correr
atrás dela e tomá-la de volta.
Não penso duas vezes em molhar quase todo o meu rosto quando
abraço suas coxas, puxo seu corpo contra o meu e me afundo em sua vagina.
Minha boca vai faminta, salivando, desesperada para sentir seu gosto, cheiro,
sua textura.
— Gosta disso?
eu aproveito a boa posição em que estamos para contornar seus lábios, sugar
e lamber sua vagina e depois deixo o corpo descer, quando passa pelo meu
pau, a glande esfrega com força contra a entrada.
Não tenho como mover a minha cintura para penetrá-la, então uso as
mãos para guiar nosso corpo.
sinto nos dedos dos pés, mas estou suando como se o corpo sinalizasse que
estou sentindo meus pés. Não importa. Acho que o cérebro só está
processando a sensação de liberdade quando eu deixo cair de meus ombros
todos os medos e receios para viver este momento.
E o peito retumba tão alto que mal posso acreditar que Yasmin é real.
Que este momento é fatídico. E que eu estou perdidamente apaixonado por
essa mulher.
— Sua maluca!
— Sou mesmo — ela me envolve com seus braços.
Acho que fiquei maluco também. Fui contaminado por essa mulher.
Cada toque de seus dedos, cada beijo em seus lábios, cada soprada de
ar contra meu rosto parece algo que já aconteceu. E algo novo também.
Meus braços sobem por suas costas, minhas mãos se agarram à suas
clavículas e eu a abraço com força contra meu corpo nu, deixando nossas
peles se misturarem em meio ao suor, calor e delírio de um:
Beijo seus cabelos escuros e esfrego meu nariz pela sua orelha, nuca e
pescoço.
“O amor não tem nada a ver com o que você espera receber – apenas
com o que espera dar – que é tudo”.
— Katharine Hepburn.
— Parabéns à equipe cirúrgica, o pessoal de apoio e ao doutor
Lamarphe pela excelente cirurgia. — Alfredo bate a mão aberta em minhas
costas.
— Ok.
Tão apressado que estou, tiro a bata descartável e depois as luvas. Lavo
as mãos, punhos e pulso com certa demora e tento recobrar o tempo no meio
do caminho.
Estou prestes a tirar a touca quando passo pela porta que separa o
corredor dos funcionários com a sala de espera da família do paciente Amauri
do Amor. Então paro subitamente ao ver uma mulher, quase uma garota, voar
em cima de mim.
— Ele está bem? Ocorreu tudo bem? O meu pai está vivo?
São tantas perguntas e seus olhos castanhos parecem tão assustados que
dou até um passo para trás, deixo a parte de tirar a touca e a máscara para
depois.
deixaremos que o visitem assim que acordar, isso deve levar entre 6 ou 8
horas. Ele não deve passar por estresse, nem grandes emoções nos próximos
dias, nada de esforço, carregar peso, tomar sol...
Sou acometido por uma sensação estranha quando encaro o fundo dos
seus olhos. De repente a pressa fica para outro momento. E o cansaço
também.
— Muito obrigada por cuidar tão bem do meu pai, doutor! — ela diz
Esperei tanto por esse momento que acho que não estou aproveitando o
suficiente. O plano original era levar Guilhermo para um show da Anitta ou
para uma boate super badalada da noite paulista, só para ver a reação dele.
Mas como surgiu a oportunidade da calourada de direito da faculdade, por
que não o arrastar para o meio do furacão?
A feição dele de que não faz ideia de onde está me faz rir por dentro.
E ele fica ainda mais sem graça quando um pessoal jovem passa de
jaleco – nunca entendi por que os alunos de medicina usam jaleco fora do
hospital ou da aula.
um leão.
Sacudo os ombros.
O meu pequeno ateliê está lucrando algum dinheiro, já posso dar uma
tranquilidade financeira para a minha família e me dar ao luxo de ter algumas
funcionárias, assim consigo pegar muito mais material e estou preparando
Agora sim eu poderia tirar umas férias, sem culpa, mas prefiro tirar só
um dia e dançar um pouco, aproveitar que a vida parece ter voltado aos eixos.
— Ei!!! — Ayslan toma o copo da mão dela, antes que chegue até
mim. O líquido até derrama. — Está maluca? Vai dar álcool para a grávida?
— Faz isso de novo e eu arranco sua mão fora — Patrícia o fuzila com
o olhar.
Ah... o bebê...
Guilhermo e eu decidimos mentir para seus amigos, para que eles não
pirassem. Inventamos que eu estava grávida e pronto, sem mais perguntas,
sem mais cobranças. E é claro que eles torciam o nariz em ideias como essa,
de eu vir dançar na calourada do meu curso, mas também não me deixavam
sozinha.
— O bebê precisa — faço uma careta e pego meu copo grande, a boca
chega a salivar com o coquetel que pedi que fizessem sem vodca.
— Se a sua mãe não tivesse cuidando das crianças, com certeza estaria
aqui também. — Lisa se diverte mais com a feição de Guilhermo do que com
a música. — Ela seguiu mesmo os meus conselhos, não é?
Não tenho do que reclamar, tudo está perfeito e do jeito que eu sempre
quis.
Só Diogo que não dá o braço a torcer, se sente mal por não estar em
nossa casa, mas ele respeita Guilhermo e eles se dão muito bem. Ele está
longe de se tornar um irmão exemplar, mas parou de fazer as loucuras de
sempre.
amigo de Guilhermo, foi assim desde Fernando de Noronha, mas também não
dá abertura para o coitado.
— Ah... com certeza... ainda mais porque tem tanta gente da medicina
— Ir... onde?
— Vou mostrar do que sou feita, vou mostrar ao mundo a que vim.
como se ainda fosse uma adolescente. Mesmo tão jovem, estou me sentindo
indisposta e com o estômago meio revirado agora.
— Só vamos...
— Ok. Yasmin e eu estamos saindo, acho que ela ficou velha demais
para festas assim. — Guilhermo empurra as rodas da cadeira e acena para os
amigos.
— Eu até iria, mas há tanto tempo que não vou em uma festa que me
sinto obrigada a ficar — Lisa lamenta. — Nos vemos mais tarde!
Patrícia nem me dá tanta atenção, está olhando Ayslan com muita raiva,
enquanto ele se torna facilmente a atração da festa, seja entre suas alunas
residentes, alunos do curso de direito ou pessoas que viram um homem
gigante e que parece um Viking tão simpático e descontraído que é
impossível ignorar.
— Machucou o pé?
— Não...
— Não diga besteiras — ele reclama e abre a porta do carro para que eu
entre.
— Que é isso?
— Guilhermo...
— Ahn?
— Eu te trouxe aqui hoje porque queria que esse dia ficasse em sua
memória.
— Todo dia ao seu lado vale à pena estar na memória — ele pisca os
olhos prateados, onde vejo um brilho azul.
— Sério?
— Sério!!!
— Há três meses.
— Quê?
Mostro no celular o exame que fiz, para que ele cheque as datas.
— Não...
— Patrícia?
— Vamos ver.
expectativas.
— Guilhermo?
— Sim, baby.
— Mário Quintana.
acompanhar.
— Sim! — PH nem liga mais por ter sido deixado de lado em minha
consulta.
— Você parece nervosa... calma, filha, você já passou por tudo isso
uma vez, não precisa ficar preocupada...
A doutora Alissa Coelho foi indicada pelo Ayslan, pelo visto eles
trabalharam juntos no passado. Vou com a cara dela de imediato, uma mulher
de sorriso expansivo, a pele preta e brilhante feito um diamante, o cabelo
volumoso e cheio de vida.
— Olha só que família bonita — ela avalia quando nós três nos
sentamos diante de sua mesa. — Há quanto tempo descobriu a gravidez?
— Algumas semanas.
Dou uma cotovelada de leve para que ela guarde isso para outro
momento.
— Não.
Meu Deus! Será que ela acha que Patrícia e eu temos um caso? Rio de
nervoso.
— Sim... — sorrio.
— Então está em boas mãos. Sei que o Guilhermo não tem filhos,
posso sugerir aulas conjuntas para o momento do parto? Tem a opção de
— Sim.
— Tétano?
— Aham.
Minha mãe abre sua bolsa de mil e uma utilidades, vasculha bem lá
dentro e tira meu cartão. Me salvou, porque fiquei congelada no lugar
imaginando que esqueci isso. Após ela me pesar, aferir minha pressão ela
conclui:
— Hum?
— Mas existem casos em que o bebê nasce tipo de oito meses e meio,
certo? — Patrícia cruza os braços.
— Não.
— Já é um caminho. Vamos fazer de tudo para esse bebê nascer no
tempo certo... no tempo dele. Você anotou o primeiro dia do seu último ciclo
— Minha filha, que tipo de pergunta foi aquela? Como assim o bebê
nascer antes? Pra quê essa pressa?
A criança quase chuta meu nariz, deita na mesa e me faz cheirar seu
pezinho.
— Que isso te lembra? O sapo não lava o pé. — Sem preparo e sem
nada ele começa a cantar, animado, batendo palmas.
coisas.
— Guillermo?
— Oi.
— Me pergunta as cores.
— Preto.
— Azul!
— Rosa.
avisa.
— Manda entrar.
— Sim senhor.
— A Juliana, senhor.
— Certo... ninguém vai levar injeção hoje — digo para seu completo
alívio.
— Ele tem o seu nariz — Dênis me importuna. Odeio que tente criar
lembram o do meu avô, são grandes, expressivos e brilham feito duas safiras
na luz. Mas são comuns.
— Grande quanto?
— Assim. — Sua mão sobe para muito além de sua altura. — Viu?
novamente.
— Pensei que você havia me dito que tinha engravidado há mais de três
meses... tempo exato para esse bebê nascer e você cumprir com seu contrato
— Patrícia pede para que minha mãe siga pelo corredor do sétimo andar e vai
— Sabe? Não, você não sabe, gatinha. Eu sou sua advogada. Então
vou usar um termo do mundo do direito com você, ok?
— Ok.
— Tá vendo o tamanho dessa rola? — Patrícia abre bem os braços. —
É isso aqui que você vai encarar judicialmente se não cumprir o contrato!
— Você assinou papeis, gatinha. Ele pode usar isso contra você. Não
importa o quanto está gentil e fofo agora, na hora que a situação apertar e a
Ele passa por nós e me encara, vejo em seu olhar muitas dúvidas sobre
o que estou fazendo aqui, mas ainda assim sustenta sua feição de que eu nem
devia ter pisado os pés em um lugar como esse.
Eu evito olhar para trás. Não quero vê-lo de novo. Dou graças ao bom
Deus por não ter sido abordada e obrigada a trocar algumas palavras – ou
desaforos – com ele.
— Honoré de Balzac.
Dênis me ligando.
— Vou falar com a Patrícia para ficar de olho em você — ele diz antes
de sair.
— Não sei. Você disse que ele nunca quis ver nem foto... duvido
muito... embora ele seja a sua cara, né?
ligar.
— Vai atender?
meses...
também?
— Droga, Yasmin... vou tentar ligar para a Heloísa para ver se amoleço
o coração...
— A tia Patíxia...
Um lado meu ficou curioso para saber o que era tão urgente que ele
precisava tratar, o outro lado ficou temeroso se com isso Dênis acabaria
entrando em pormenores com Guilhermo e aí a coisa desandaria de vez.
O que eu fiz bastante foi costurar umas bem bonitas para mim e já
Lamarphe.
— Então tome sim, três vezes ao dia, um pouco antes das principais
refeições. E fico feliz que esteja sendo bem cuidada em casa. — Alissa
começa o procedimento após respirar bem fundo, parece que até ela está
tensa, com medo de fazer feio na frente de Guilhermo.
toda arrepiada. Guilhermo, que está atento, já abre um sorriso e vejo seus
olhos brilhando.
sou acometida por uma sensação de paz e alegria ao saber que está tudo bem
com os bebês.
E como toda boa notícia dura pouco, Alissa avaliou uma possível data
de nascimento, analisando o desenvolvimento dos fetos e os exames: de dez a
quinze dias após o prazo que o testamento atribuiu para o nascimento do
— O que tem?
— Não vou mentir. Uma pequena parte de mim está preocupada sobre
o testamento. Mas eu me sinto confortável em saber que você e os bebês
estão bem — ele sorri para mim, ao dizer isso. — O Alfredo queria me
ensinar uma última lição e eu estou aprendendo. Se não vai me dar o prêmio
no final... — suspira. — Ao menos vou ter ganhado três outros.
— Três?
Isso foi como o mar agitado quando encara o fim de uma tempestade e
ventania. De repente as ondas voltam a correr em seu próprio ritmo e tudo
parece mais calmo na superfície, mesmo que sempre agitado no fundo.
E ficava cada vez mais gostoso conforme os dias passavam e após dias
cheios, conturbados e que testavam a minha sanidade, simplesmente tomar
um banho quente e relaxante, depois me deitar na cama e assistir algo na TV,
enquanto ele lia concentrado.
E o mais mágico de tudo era sentir que ele não estava excluindo
Phellippo da experiência.
Aliás, ele insistia para que o pequeno fizesse parte e se sentisse incluso
em diversos momentos. Fiquei feliz em ver que se tornaram bons amigos,
para Guilhermo parecia um treino de como ser papai e para o meu filho, eu
Enfim tudo parecia entrar nos eixos... e eu estava vivendo o meu sonho
de princesa.
“Nada inspira mais coragem ao medroso do que o medo alheio”.
— Umberto Eco.
cantora, fiquei curiosa em saber como eram as músicas dela. Com certeza não
era algo estilo Anitta, parecia algo mais clássico como Elis Regina – que
minha mãe simplesmente era apaixonada.
guardar de recordação.
A visão que tenho é impactante. Não por ver todas as poltronas lotadas,
— E você se sente?
— Curtindo?
— Nossa...
com esse xale. Além de belíssimo, está esquentando meus braços, pois está
fazendo um pouco de frio essa noite.
— Na Itália? — rio.
— Estive sim. Eu amo minha profissão e gosto das dificuldades que ela
propõe. Esse é um país muito grande, de cultura muito diversa, e ter a chance
de viver tudo isso em um único momento é... mágico.
palco, solta sua voz de uma forma que eu me seguro na cadeira e me encolho,
não sei se assustada ou admirada. Só sei que parece que vou sair do próprio
corpo de uma só vez.
E foi como de repente olhar para o mar e ver ele crescer para cima de
mim e ser engolida em um milésimo de segundo, sem chance para encher os
pulmões.
Não viajei o Brasil todo. Não conheço tantos lugares assim... só São
Paulo e o meu velho Espírito Santo. Mas se fosse para comparar com algo,
seria com a chegada de Guilhermo em minha vida.
— Vem comigo.
— Está tudo bem, sou pai do filho dela — ele diz em tom de autoridade
e o homem assente.
Sacudo os ombros.
— Seu filho que você nunca nem quis conhecer? — Preciso rir.
Inacreditável ouvir isso de um cara que nunca quis uma foto do filho,
não deve nem imaginar como ele é, o viu na sala de Guilhermo por acidente e
não deve ter nem reconhecido! Vontade de dar uns socos nele.
Agora sim o tapa veio. Devia ser um murro, mas foi um tapa bem dado
de fazer o rosto virar e ficar naquela posição por alguns segundos e a mão
— Olha aqui, seu moleque, você não tem direito — aponto o dedo
indicador.
— Tenho direito sim, quando eu banco sua vida com aquela pensão.
Ainda mais agora que você está dormindo com o meu chefe. O que é isso?
Algum tipo de vingança?
minha vida. Cai fora, some da vida do meu chefe e não volta a aparecer
naquele hospital. Senão...
— Senão você nem queira saber! — Ele continua vermelho, não sei se
do tapa ou de tanta fúria. — Some! Vaza! Vai dar o golpe em outro cara. Eu
preciso concluir essa residência e você não vai estragar tudo novamente...
— Vê se cresce, moleque. Veste as calças e vira homem!
— Termina essa merda, volta pra tua casa e não se mete em meu
caminho. Senão eu tomo o meu filho de você.
— Você perdeu o juízo, Dênis?
Como diria Patrícia, queria perguntar: você fez a chuca com cachaça e
importou em conhecer o menino, dizia que ele iria atrasar sua vida. E agora
quer tirá-lo de mim?
— Você não vai destruir meus planos de novo — ele diz num tom
amargo. — Está avisada.
A vendavais constantes
— Victor Hugo.
Fiquei pelo menos uns cinco ou sete minutos sentada no vaso, olhando
para a porta. Senti um mal-estar tão insuportável que temi o pior: acontecer
algo aos bebês. Esperei pelo sangue, alguma dor mais aguda, mas não, era só
um solavanco no peito, um aperto incômodo no coração e falta de ar.
Provavelmente ansiedade.
Não ouço bem o que conversam, só sei que a feição do homem fica um
pouco apreensiva.
— E você fez tudo isso por mim? — Devo admitir que agora sou eu
quem está constrangida.
O lugar não está cheio, acho que pelo show que ocorre acima de nós.
Ainda há algum resquício do som potente da voz de Bethânia, e as poucas
pessoas que ocupam o espaço de meia luz, mas com mesas iluminadas,
É tão inusitado que mal posso crer que ainda estamos no Theatro
— Eu já vim aqui antes, no Theatro, mas não sabia desse espaço aqui
embaixo...
— Às vezes não sei o que fiz para merecer tanto carinho, tanto amor...
é comum que todos queiram as rosas, sem lembrar que elas vêm com
espinhos. E você me faz sentir tão confortável que eu me sinto bem, com os
espinhos que tenho em mim. Os que são meus. E os que colocaram em mim.
— Que bonito. — Sinto sua mão por cima da minha. — Você mudou a
minha vida, é o que posso dizer. A vida tem sido sombria desde o acidente...
ainda estou aprendendo a viver... e a cada dia me deparo com uma nova
— Eu precisava mesmo dar uma chance ao amor. E tive sorte por ser
você. Não tenho ideia de como seria estar preso com alguém que não posso
ser sincero, admirar e me sentir livre. E, claro, ter forças para passar por tudo
isso e pedir a um bombeiro que me leve ao subsolo de um bar. — Balança os
ombros.
Acho que nunca teria ido assistir um show de Maria Bethânia por
escolha própria, antes. E tampouco imaginaria estar no subsolo de um teatro,
me sentindo numa taverna na Inglaterra do século XIX. Mas essa é
certamente a graça de estar com alguém que é diferente de você e ainda assim
te completa.
— Quer dançar?
— Dançar? — Asseio os cabelos.
desafiador.
Sua mão vem para a minha cintura e segura tão firmemente que
acompanho seus passos, olhando fixamente para as rodas da cadeira.
suavemente e vai me guiando com uma mão só, enquanto a cadeira vai
girando.
Droga, tarde demais. A maior vontade agora é esconder meu rosto que
está todo vermelho e meus olhos arregalados e brilhantes.
E me cala com seus lábios, tocando nos meus com leveza, puxando o
meu fôlego e tomando a minha língua bem devagar, como uma dança lenta à
meia luz.
Voltamos para o Theatro fazendo todo o percurso que nos levou ali,
rindo um para o outro do constrangimento que até os funcionários
compartilharam conosco e tivemos a sorte de pegar o fim do show de Maria
Bethânia.
Viver
De ser feliz
A beleza de ser
Um eterno aprendiz
Eu sei, eu sei
Que eu repita
É bonita, é bonita
E é bonita
A voz da mulher volta a ocupar todo o espaço e minha pele até treme
ao ouvi-la cantar. Phellippo já se agita, fica quase que em pé em cima de
remexendo em pé.
Sempre desejada
Só saúde e sorte
E a pergunta roda
E a cabeça agita
É a vida, é bonita
E é bonita[26]
— Eu sei que a vida devia ser bem melhor, e será. — Encosto meu
nariz no dele, meu filho só acompanha balançando a cabeça. — Mas isso não
impede que eu repita...
NO PASSADO
— Tem uma mulher esperando o senhor em sua sala, doutor Lamarphe
— Elizabeth?
visita.
Elizabeth Boccuti foi a única mulher que amei na vida. E que tive a má
sorte de outro homem conquistar seu coração.
vida, mas nenhuma me causou o que seus olhos eram capazes de me causar.
E mesmo velho, vivido e desacreditado no amor, meu coração ignorava
completamente a racionalidade.
Tento me recordar da última vez que a vi. Desde então a vida mudou
tanto... o mundo também mudou. Mas ela me faz sentir como se nada dentro
de mim tivesse mudado.
velho que tenta usar a máscara de quando era mais jovem, de quando era
realmente ingênuo.
— Alfredo, preciso que faça uma coisa por mim. — Ela sorri, sabendo
que pode ter de mim o que quiser com esse sorriso. — Preciso que isso
chegue às mãos da sua neta — ela me estende um papel velho.
A estranheza não vem pela propriedade ter sido passada para o meu
nome, como se eu a tivesse comprado, mas o fato dela dizer a quem devo
deixar a propriedade.
Dizer isso me faz lembrar das dores do meu eu mais jovem. Mas
também me faz ter orgulho de ter cumprido minhas palavras.
não age por interesse... mas nós, seres humanos, temos o hábito de
antropomorfizar as coisas, conforme as observamos.
— Aham.
— Disse que você ia ter três filhos e se casar com Rodrigo Leão? —
Rio.
Que pergunta esquisita. Mas fico ansioso para ouvir o que ela
respondeu na ocasião, pois nunca comentou isso comigo no passado.
então o que eu era antes dos meus pais nascerem, Alfredo? O que eu era
antes deles se encontrarem?
Por que ela quer deixar uma propriedade tão grande e tão valiosa para
alguém que não existe e que nunca vai existir?
— Eram bons tempos — reflito. Mas não levei a que eu queria para a
cama.
alarmante.
automaticamente.
— Mas e ela?
Algo que nunca sequer passou em minha cabeça agora era tudo.
— Seu filho, Alfredo — ela diz, resoluta, como se ela mesma tivesse
feito o teste. — Seu filho.
— Está dizendo que... o meu irmão? Eu? O meu sobrinho? Não. Isso
tráfico de pessoas.
Claro que isso respondia porque meu irmão rejeitou o filho. Não sei se
ele cortou laços comigo, porque eu cortei laços com a família quando deixei
todo o meu mundo para trás e vim aqui, recomeçar, sozinho.
—... Mas uma coisa é certa, Alfredo. Sempre acreditei que quando
curamos algo dentro de nós, curamos também os nossos ancestrais. E os
nossos descendentes. Já fomos um com eles no passado. E tornaremos a ser
um com eles no futuro. Por isso, não permita que Guilhermo cometa os
mesmos erros que você. Tampouco tome o mesmo caminho que você.
Fico com a boca entreaberta, sem saber o que dizer após ouvir tudo
isso. Só agora me dou conta que o café gelou, pois não o bebi em nenhum
instante.
— Aí que você se engana, Elizabeth. Não parei a minha vida por sua
causa. Só não tive família, é diferente...
— Já que está consciente de seu erro, não permita que seu filho siga
pelo mesmo caminho. — Ela acena com a cabeça e se levanta. — E não tenha
medo de seus erros. Conserte-os. Você ainda tem algum tempo.
Eu me levanto imediatamente. Como assim ela vai embora? Mal
chegou? Mal conversamos!
— Quero dizer que você precisa ser rápido. Pegar as provas, produzir
uma grande armadilha e distrair a Paola até o tempo que for necessário. Ou
ela vai matar mais algumas pessoas, até chegar à sua herança e...
— Porque o seu rio acha que eu sou o mar — ela sorri docemente. — E
na esperança de que um dia seremos um, você vai sempre correr até mim.
Independentemente do tempo e dos obstáculos..., mas eu preciso ir. E você
precisa se apressar.
Fico paralisado quando sinto suas duas mãos em minha face. E seus
lábios tocam suavemente meu rosto, seu perfume parece o mesmo de muitos
anos atrás e seus olhos ainda carregam aquele jeito voraz de querer viver a
vida.
— Hilda Hist.
mas estou atrasado para uma cirurgia. E por onde quer que eu procure o meu
celular, não o encontro. Ajeito a gravata e abro a porta do banheiro, que está
todo brumado devido a água quente.
— Eu já estou terminando...
— Ok...
“Não consigo encontrar o meu celular. De toda sorte, espero que a noite
tenha sido boa para você, como foi para mim”
ATUALMENTE
Meu sono sempre foi muito leve.
quando volta.
Yasmin deita do outro lado e passa o braço por cima do filho e encontra
minha mão.
— Não...
Ah, então acho que já entendi tudo. Está sofrendo por ansiedade ou está
estressada com alguma matéria.
alguns queijos como esse podem vir com uma bactéria e fazer mal aos bebês.
A outra vontade era de beber vinho, esse eu nem discuti, só olhei feio para ela
e ficamos rindo.
— Será que você pode ir? Acho que não consigo dormir.
— Ir onde?
— Na rua lateral da minha casa, se for agora eu acho que consegue
comprar...
— Hoje?
Deito-o e passo para a cadeira, vou até o closet, os olhos doem ao ligar
a luz. Pego uma jaqueta de couro e coloco por cima da camisa de algodão,
não troco a calça de moletom, nem tiro as meias, vou assim mesmo.
— O nome dele é Zé — ela diz com um bico e voz manhosa, antes que
eu saia do quarto.
Me apresso, pois não quero que meu filho nasça com cara de mandioca,
muito menos de uma mandioca de um homem chamado Zé.
Passamos boa parte do caminho sem dizer nada um ao outro, já que não
temos proximidade, nem muito o que falar.
— O que ela quer comer mesmo? — Diogo olha bem onde estamos,
acho que está reconhecendo seu bairro.
— Mandioca.
— Como sabe?
— Ela pedia pro meu pai isso, quando ficou grávida do PH. Ah, e
compra duas ou três barras de chocolate, alpino ou um meio amargo. Ela vai
comer com a mandioca.
pedir pra parar em um posto de gasolina e deixar a porta aberta, pra sentir
aquele cheiro esquisito...
— Do PH ou agora?
— Do PH. — Manobro com o carro para virar uma rua bem íngreme.
— Não curti. Ela nunca disse quem era o pai e o cara nunca apareceu.
Só sei que é um cuzão, largou e a deixou criar a criança sozinha. Sempre quis
saber quem era o idiota, para dar um soco nele, cumprir meu dever de
homem.
— Vocês são a minha família agora, Diogo. Não se preocupe com isso.
— Tento minimizar a tristeza dele.
— Sempre que tento descolar uma grana, caio numa enrascada. Pelo
menos agora, usando o carro da Patrícia e Yasmin de Uber, estou tirando um
dinheiro. Nunca vai pagar a conta de luz inteira da sua mansão..., mas estou
fazendo minha parte.
— Você devia ser sua cara! — Ele se diverte. — Não, não, eu queria
ser jogador profissional.
— De futebol?
— Online. Qualquer jogo. Tem uns muito legais e eu sou bom, passo
horas jogando... seria legal ganhar dinheiro com isso.
influencer de games.
— Não é? — Ele ri. — Olha o Zé, pode deixar que eu compro. — Ele
se prontifica.
— É — temo em concordar.
— Isso era ser feliz para ele, Diogo. Do jeito que ele enxergava o
mundo, desejando o melhor para você. Na época dele isso era o vislumbre da
felicidade e da ascensão social: se tornar médico ou advogado.
— Entende?
Não sei se é o sono, mas novamente tento raciocinar o que isso pode
significar. Parece um adjetivo curioso para dar a alguém: firmeza. Que se não
me engano, na verdade é substantivo.
— Os seus filhos vão ser sortudos demais, cara.
— Você acha?
— Claro. Além de um pai que tem fortuna, um que também vai tentar
se adequar a um mundo que muda o tempo todo, para que eles alcancem a
felicidade.
— Aquele sinistro?
— Não vai achar aqui. Precisam ser de um lugar específico, senão ela
não come. Não entendo bem de grávida, mas ela conseguia sentir a diferença
no sabor...
— Karl Kraus.
E como nem tudo são flores, vez ou outra recebia as ligações de Dênis
– que eu não atendia – e mensagens desaforadas dizendo que eu deveria
sumir da vida de Guilhermo ou dar um fim logo à gestação, ou ele entraria na
justiça.
cólicas, gases ou os bebês agitados. Era uma dor que vinha acompanhada de
muito estresse, palpitação e falta de ar. Mas eu tive sempre a sorte de ter
minha melhor amiga, minha mãe ou o homem que eu amava lá ao meu lado
para me socorrer e me fazer sentir bem.
— Não... é exatamente o que não devo fazer. Dênis não quer que eu
interfira na vida dele, e eu muito menos quero ter algo a ver com isso. Foi
mero acaso que ele ser aluno do Guilhermo, melhor não fazer nada... em
alguns meses vou dar à luz e vou seguir minha vida.
A minha médica gostou da ideia, disse que era muito bom que a família
pudesse compartilhar momentos como esse, ainda mais Guilhermo e eu.
— Tem certeza de que quer fazer isso? Suas costas não vão doer?
embaixo.
— Trabalhando.
Torço o nariz pela justificativa fajuta que dá só por ceder aos caprichos
— Vamos ver como ele se sai fazendo o que acredita que gosta. Vamos
dar essa oportunidade a ele.
muda.
— Huuum, foi uma recuperação bem lenta, para falar a verdade. Fiquei
bem cansada e ele demandava muita atenção.
— Então já sabe que com dois a caminho, não vai ser muito diferente...
— Ou duas... — contraponho.
Ainda não sabemos o sexo dos bebês, deixamos para nos surpreender
na hora do parto. Guilhermo nem olhava mais na hora do ultrassom, porque
certamente desvendaria só de ver.
que não sai da cabeça de PH, sinto o celular em meu bolso vibrar cada vez
mais. A cada nova mensagem e ligação, sem ao menos ver, sinto meu
coração doendo.
Não acredito que Dênis não vai me deixar em paz, sendo que isso é
tudo o que eu queria. Não é pedir demais. Eu só queria que ele continuasse
ausente, longe, ignorando a minha existência, como tem feito nos últimos
anos.
Por que me encher justamente agora?
— Vou fazer uma pausa para tomar água e descansar — digo tirando a
máscara.
As dores no centro da barriga são tão fortes que preciso ir até o sofá e
me sentar, apoiar as costas e respirar fundo. Por vezes fecho os olhos quando
uma dor aguda me atinge, uma sensação insuportável como se fosse uma
gastrite nervosa e aguda.
“Dênis, supera e me deixa em paz. Não sou uma ameaça para você, então
siga sua vida e me esqueça. Guilhermo não precisa saber de nada, então
pare de me atormentar”.
Será que ele não é capaz de entender que não temos nada a tratar?
Que as paranoias da cabeça dele não tem fundamento algum?
“Não posso permitir que meu filho seja criado por outro homem. Saia da
casa dele e dê um fim nisso”.
Agora não sei se está doendo por qualquer outro motivo ou a crise de
gargalhadas que sou acometida.
Tem gente que parece que suga a energia da gente, tira tudo o que há de
bom e nem precisa estar perto pra isso. Numa lida e rápida troca de
Se isso não é chamariz suficiente para que eu o abra, não sei o que mais
seria. Abro e folheio rapidamente, confiro todos os termos jurídicos, a
bem estranho.
com isso ficará com toda a fortuna para si. Além de que eu e minha família
teremos que manter distância não só dele, como da criança.
Minha cabeça parece que vai explodir e eu sinto tanta dor que parece
que vou ter os bebês agora. Ou vou perdê-los.
— Guilhermoooooo!
Confiro a pulsação dela com a minha mão e parece baixa. Não tenho
tempo para muita coisa, então preciso conferir se ela está consciente e
preparar todo mundo para ir ao hospital.
— Não, quando desci para tomar água, ela estava de joelhos, ajudei ela
a deitar... ela pediu que não contasse nada a ninguém...
Diogo tenta levantar a irmã, mas não consegue. A mãe precisa vir
ajudar e até o pequeno tenta se intrometer.
— Respira pelo nariz, solta pela boca. Não abaixa o pescoço, vamos
chegar rápido no hospital.
Como não tenho toda a agilidade para esperar o passo a passo do meu
carro, Diogo e Patrícia me sentam no banco do motorista e desmontam a
minha cadeira de qualquer jeito. Eu dou a partida e saímos o mais rápido
— Tá, dirige rápido e com cuidado. Vou separar uma sala na obstetrícia
já com soro. Ela não teve anemia, né? Mas posso alertar o banco de sangue
do hospital, fala o tipo sanguíneo dela...
já está nos esperando, Alissa e Ayslan entre eles. Colocam Yasmin em uma
maca e a levam para um elevador, não consigo acompanhá-los pois ainda
estou descendo e montando minha cadeira de rodas, dona Lúcia e PH não
puderam acompanhá-la.
— E aí? — Diogo pergunta assim que o carro para, salta aos tropeções,
quase caindo.
— Nicolau Maquiavel.
Como não pude entrar, fico na sala de espera junto a todo mundo,
aguardando notícias do estado de Yasmin. Uma hora parece durar a
eternidade aqui fora, ainda mais sem saber o que aconteceu.
— Preciso falar com o pai agora. Se me dão licença — Ayslan abre seu
melhor sorriso, faz um cafuné rápido no pequeno que não está satisfeito com
as respostas.
— Você mentiu pra mim! — ele diz indignado. — É claro que estou
preocupado com a saúde dos seus bebês, você é um irmão pra mim. Mas
mentiu. Me enganou. O que achou que conseguiria com isso?
— Anda, fala logo o que aconteceu, eu estou com uma dor insuportável
no peito!
de circular do cordão.
— Como assim?
— Não é o tipo de estresse que ocorre esporadicamente porque algo
aconteceu. É um estresse contínuo, de semanas ou até meses. E ao que
não importava que ela queria se sentir útil e continuar a rotina, precisava
entender que seria mãe de gêmeos, isso exige muito do corpo.
— E a Yasmin?
— Tenho uma cirurgia agora, preciso ir. Mas a Alissa vai cuidar bem
da Yasmin, volto mais tarde para saber o que aconteceu.
— Guillermo...
— Hum?
Diogo reaparece com café, água e suco, oferece para todo mundo.
Phellippo pega a garrafinha de suco, mas parece sem apetite, todo tristonho.
— Uhum.
— Claro.
— Eles não me contam nada — ela reclama, a voz bem fraca, quase
não sai.
— Não. Eles estão bem, tem uma mãe muito forte e que nos deu um
baita susto. Mas estão bem, fora de perigo.
Parece até que ela se acalma, o corpo parece relaxar mais e a mão
esquerda começa a vir em minha direção.
— Guilhermo...
Seguro em sua mão, tomando cuidado para não acabar esbarrando nos
pequenos tubos.
d’água e tento abrir um sorriso para não a preocupar. — Você está bem, está
sendo bem cuidada, vai se recuperar em breve.
—Guilhermo...
barriga grande e acaricio sua mão uma última vez antes de sair.
— Eu te amo.
— Não, não é exaustão física, é mental. E ela não parava de falar sobre
você tirar os filhos dela... não sei, podia ser delírio, mas...
— Pode deixar.
— Que bom. Agora deixa eu te falar, porque não tive a chance quando
você foi chamado...
— Não, não, estávamos no meio dessa correria toda que não tive a
O tio pede desculpas e volta para buscar a criança. Eu não perco tempo
e clico para ver o número de quem enviou, o sangue já esquenta em um nível
que vejo tudo em minha frente turvo.
A cada nova mensagem trocada entre Dênis e Yasmin que leio, fico de
cabelo em pé. São tantas atrocidades, ameaça e chantagem que meu estômago
fica revirado.
A porta da minha sala se abre tão rápido, que preciso segurar Diogo
pelo braço, porque ele já se prepara para levantar e socar a cara do sujeito.
Ainda bem que faço isso, pois quem entra é a doutora Érica Dourado.
precisamos conversar.
— Guilhermo... — está tão chocada que meu nome quase não sai.
conferindo as mensagens.
— Veja o número.
— Estou vendo...
— Minha ajuda?
dentro da paciente.
— Mas não podemos sair impunes. Porque isso cria a ilusão de que
estamos acima da ética e da lei.
Érica se engasga.
— E vão ficar sabendo da sua postura profissional. Tire suas coisas até
— Eu já terminei.
Minha cabeça vai explodir de tanta dor. Tudo o que eu queria agora era
gritar e poder resolver tudo, principalmente tirar Yasmin daqui e levá-la para
Me sinto tão mal que nem percebo o momento em que Dênis entra em
minha sala. E em seguida Diogo vem correndo, com tudo, segurando Phellipo
em seus braços e simplesmente pula no ar, dando um chute com toda a força
do corpo, derrubando Dênis no chão.
— Você ficou maluco? — Quase caio da cadeira, no impulso de tentar
tomar Phellippo de seu colo.
O outro, desnorteado, segura. Não sei nem porque faz isso. E leva um
chute em cheio na cara que preciso virar o rosto de PH pro meu peito, para
que não veja isso.
— Hmmm?
— Já apanhou de um paraplégico?
— Quê?
— Alguém, alguma vez na vida, passou com uma cadeira de rodas por
Ele até para de lamentar quando entende, por fim, o que está
acontecendo.
— 29...
da sala.
Não identifico que tipo de olhar ele lança para Phellippo, mas não
gosto.
Empurro a cadeira para sair da mesa e Diogo segura firme nela e me
leva em meio segundo para fora da sala.
— Sabe que ele pode abrir um B.O. contra nós dois por agressão, né?
— pergunto.
— Que ele abra três — Diogo chia e eu sinto que vou cair da cadeira a
qualquer instante tamanha é a velocidade que estou sendo impulsionado.
Não lembrava de ter estado assim, desde uma dengue hemorrágica que
peguei há muitos anos e fiquei semanas no hospital.
momento. Então promete pra mim que vai repousar em casa, relaxar, não vai
se permitir ter qualquer estresse, Yasmin — Alissa pediu.
Desde que fui internada não lembrava onde tinha deixado meu celular e
depois Diogo disse que não iria devolver, até que eu tivesse as crianças. E
ainda completou com um:
— Eu fui preso.
até os olhos.
— Sim. Seu irmão vai precisar fazer serviço comunitário. Não ia, mas a
boca dele é muito grande...
Uma parte mínima de mim está aflita, porque já aconteceu. Outra parte
só quer rir, porque eu nunca imaginei que meu irmão fosse tão sem noção.
— Yasmin, você nos deu um grande susto. Poderia muito bem ter
contado tudo, não teria passado por nada disso. Lembre-se que independente
de qualquer coisa você tem a mim, ao seu irmão, sua mãe...
— Sim...
— Outra coisa?
— Cora Coralina.
O susto foi tão grande que precisei conferir a data para certificar-me de
Evito respondê-la.
Dona Lúcia, que é muito educada e hospitaleira, oferece água, suco,
café e chá para os visitantes repentinos. Tento de todas as formas convencê-la
para que vá ficar com a filha, para que não precise ouvir sobre o contrato e
tome conclusões erradas.
— Espero que não. Ela precisa concluir a gestação no tempo certo para
que as crianças nasçam saudáveis.
— Eu sei.
— Daqui a um mês, ela terá oito meses. Pode estar apta a ter os bebês
— Vou entrar com uma ação para que adiem a leitura do testamento.
Tenho certeza de que não era da vontade do meu tio colocar a vida da minha
mulher ou dos meus filhos em risco.
— Era da vontade do seu tio que você cumprisse o testamento como foi
feito. Senão teria colocado 395 dias — Heloísa dispara.
eu vou até a geladeira, pego um pouco de água para mim e retorno até ficar
diante dela.
— Quanto tempo...
— Sim..., mas pra mim você ainda parece a mesma. Só está um pouco
maior e mais inchada do que quando teve o Phellippo. — Não há em sua voz
maldade ou um tom amargo.
— Não, Mila, é claro que não te odeio. Vamos ser sempre amigas. Para
sempre.
— Sete, sim.
Uma coisa curiosa é que durante a minha gravidez o meu sexto sentido
me fez afastar e ignorar algumas pessoas. Não sei. Simplesmente não me
sentia confortável na presença de colegas de sala ou outros conhecidos, me
afastei. Mas com Heloísa me sinto à vontade, mesmo com um grande
problema de interesse entre ela e Guilhermo.
— Eu sinto que falhei como mulher. Falhei como esposa, falhei como
futura mãe. Fico me culpando, mesmo que Guilhermo não queira mais falar
do assunto, porque ele já aceitou que não vai receber a herança.
— Tenho medo de que um dia ele acorde e perceba que perdeu tudo
por minha causa. E a partir desse dia nunca mais queira olhar pra mim...
— Que rejeite as crianças, pois elas vão lembrá-lo para sempre tudo o
que ele perdeu... e que ele volte a se amargurar...
estamos em lados distintos que vou me desfazer de você. Você e sua família
sempre terão a mim. E serão cuidados por mim, se necessário for. Mas seja
forte. E faça o que te fizer feliz.
A abraço de volta.
As palavras dela geram um alívio em mim, não porque diz que vai
cuidar de mim, mas porque era tudo o que eu queria ouvir dela nos últimos
onze meses que ficamos afastadas: confiar em meu coração.
Heloísa esteve ao meu lado, junto com Patrícia e papai quando todo
mundo achava que eu tinha destruído a minha vida ao ficar grávida de PH.
— Vou sim...
feliz!
Levo meu próprio tempo até colocar o copo na pia e seguir para a sala,
agora vazia. Guilhermo e mamãe estão voltando de lá de fora, pelo visto os
visitantes já se foram.
— Minha filha, você está bem?
— É claro — ela diz, passando sua mão pelo meu braço e vai até o
elevador.
— Você vai perder tudo. TUDO. Tento pensar se isso fosse comigo e...
se eu perdesse tudo o que meu pai deixou... eu preferiria morrer. Pois eu o
perderia, para sempre.
jardim.
— Mas e o hospital?
Fecho os olhos ao sentir seus lábios em meu rosto e seu nariz descendo
pelo meu pescoço.
— Não.
— Sim.
realidade.
— Promete que nunca vai me odiar, ou aos seus filhos, por te fazermos
perder isso?
Boa parte desse ano que vivi com Guilhermo, a última coisa que pensei
foi na herança. E pelo visto, ele também.
O posto de saúde fica no meio de um sertão que mal tem poste de luz.
Ao longínquo é possível ver uns casebres, a maioria deles rodeados de poços,
árvores e umas cabras.
— Não entendo...
pra máfia, porque dava dinheiro e fama. — Faz uma cara azeda. — Mas eu
sempre fui um intelectual, um homem dos conhecimentos, não das armas...
sonhador. Meu ofício é quem eu sou. Não sei ser outra coisa senão médico.
Não saberia ser mafioso, não saberia ser príncipe, só sei curar gente. E é
preciso curar gente em tanto lugar... Por que não aqui?
— Guido, precisamos ser gratos à terra que nos recebeu. Ao povo que
nos acolheu. E a sorte que nos abençoou na jornada. Só descobrimos quem
somos quando nos deparamos com lugares ou posições que não pretendíamos
estar. E este é um deles.
— Friedrich Nietzsche.
NO PASSADO
Era um dia quente e abafado, saí cedo do hospital para acompanhar o
— Era um homem bom. Veio para São Paulo realizar seu grande sonho
que era costurar para a alta sociedade... — o amigo dizia.
Desde que cheguei ao local, não consigo tirar os olhos de uma criança
que está nos braços de uma jovem mãe.
Ele tem olhos azuis que me lembram nitidamente os olhos do meu pai.
Não sei se é saudade, não sei é a amargura de ter saído da minha terra e
evitado voltar... e quando a criança olha para mim, fico inquieto.
— Vai bem...
“Só três coisas deixam rastros por onde passam: a mentira, o amor e o
DNA” a voz de Elizabeth soava em minha mente.
Seus olhos azuis me hipnotizam que não consigo abrir a boca e dizer
algo.
— Mas ele viveu uma vida boa... correu atrás de tudo o que quis... — a
mulher continuava.
Há uma mancha café com leite nas costas da criança, bem abaixo de
seu ombro. Ela lembra o formato do mapa da Itália, o formato de uma bota.
Tenho uma igual. Meu pai dizia que só nascia nos filhos que tentavam fugir
de lá. Que a terra os chamava e que um dia eles teriam de voltar.
Só uma outra irmã nasceu com essa marca, que simplesmente sumiu
enquanto crescia. A minha nunca desapareceu. Nem mesmo a de Guilhermo.
— Certamente.
ATUALMENTE
Foi difícil contar aos meus amigos que perderíamos tudo da herança.
Lisa aceitou bem, o único comentário que fez a respeito de tudo foi:
— Como pode ficar assim? Não percebe que a mulher perdeu sangue e
pode ser delicado interromper a gestação agora? Bebês desenvolvem muito
nos dois últimos meses, principalmente no último. Ela precisa aguardar.
— Não estou assim por esses motivos. O Guilhermo mentiu, tentou nos
enganar, antes tivesse nos preparado desde o começo, para perder tudo. Eu
não me preparei!
Lisa fica alarmada. Quando sai de mim, parece que não liga.
— Ele!
— Mas ele está morto, mortos não mandam e-mails. — Ela arqueia a
sobrancelha.
— Ela tem cara de que vai manter algo? Vai vender a parte dele do
hospital quando tiver a primeira oportunidade. Junto com aquelas obras de
— Guillermo.
— Sim, PH?
Mesmo ao meu lado ele me chama com a mãozinha, para que eu abaixe
o rosto.
— Saiu.
— Você é bem alto, não precisa ter medo de ficar entalado — tento
explicar, mas ele insiste que eu a segure.
— Quem é flora?
É como uma flecha inesperada que voa tão rápido e atinge o alvo e é
impossível saber de onde veio. Um daqueles momentos da vida que parecem
estar nas páginas de Machado de Assis.
— Não, isso aqui — passo o dedo com mais força, como se pudesse
apagar a mancha, que permanece onde está. — De onde veio isso?
Fico tão paralisado no momento que a única coisa que consigo fazer é
ver diante dos meus olhos tudo voltando em câmera lenta, tão rápido que leva
menos que um segundo. Começa neste momento e volta para a primeira vez
que vi Yasmin.
Ao limpar toda a espuma que escorre pelo ralo logo abaixo de si, a
mancha não sai.
— Ele cagou em você? — Ayslan ri. — Por que você está todo
ensopado?
— Olha! — insisto.
— Mas você não disse que tinha passado por cima do pai dele com a
cadeira de rodas? — Lisa permanece com um semblante cético que vai se
desmanchando a cada segundo.
— Vai ver o cara só achava que era o pai... sei lá... — Ayslan volta a
— Bom... ele é mais bonito que você, tem o rosto simétrico da mãe e os
olhos não parecem com os seus — analisa.
E eu o viro novamente para mostrar a marca nas costas.
— Ah, você também tem! — ela diz surpresa. — Nunca vi isso aí!
— Mas como ele tem a mesma marca? Não entendi — Lisa coça o
queixo com o indicador.
— Oi, PH. — Mal consigo falar. Tem algo preso em minha garganta,
parece que o coração vai sair pela boca e estou sentindo meu corpo formigar.
— Você vai fazer cocô? — ele diz, após me observar sem camisa.
— George R. R. Martin.
O pequeno ficou de costas também, tentando espiar para trás, não sei se para
conferir minha reação ou tentando encontrar a tal mancha.
— Como isso foi parar aí? — Passo os dedos por cima das costas do
adulto.
Além de que, tenho quase certeza que Dênis fez de tudo na época,
inclusive um teste de DNA, para fugir de suas obrigações como pai.
— Entendeu?
O que me confortava era o fato de tudo estar indo bem nessa fase final
da gestação, Guilhermo e Phellippo se entrosando naturalmente, como
sempre.
Foi bonito ver como ele era cuidadoso ao dar banho no bonequinho e
espiava os outros pais para ver como se troca uma fralda.
— Não olha com essa cara pra mim, já troquei algumas fraldas na vida
no meu período de residente, só não eram de bebês — resmungou.
— Não deve ser tão difícil — ele concluiu quando já estávamos no fim
de tudo.
— Vamos nos sair bem, somos uma boa equipe — encosta a cabeça na
minha e ficamos assim por um tempo. — Antes de irmos pegar o resultado,
quero te mostrar meu lugar preferido no hospital.
ser fácil, com você ao meu lado não vejo qual seria a dificuldade.
— Lembre-se que vão ser dois... ou duas... vai ser algo novo pra mim
também.
Meu coração parece que vai sair pela boca ao lembrar que estamos indo
buscar o resultado do teste de paternidade dele.
Não quero alimentar esperanças, nem sonhar com algo tão improvável,
mas seria estranhamente bom.
Só de saber que não tenho uma conexão com Dênis, vou lavar a alma.
Fecho os olhos e quando abro uma pequena fresta para espiar, ele está
números, não entendo absolutamente nada e não consigo descer a visão para
ver o que diz no final.
— Vê você, não sei analisar isso — percebo que ele está com o dedo
em cima do resultado.
Agora sou eu quem quer ver o resultado. Espeto o dedo dele para que
saia de cima, mas Guilhermo movimenta o exame de um lado para o outro,
para que eu não alcance.
— Como assim?
dois... e tentou impedir que ficássemos juntos, porque estava obstinado para
que eu seguisse seus passos e me tornasse uma versão dele. E era isso o que
eu sempre quis... até te conhecer.
— Mas algo deve ter mudado o coração dele... e ele tentou reverter o
que fez no passado...
— Eu não entendo...
— Ele queria que eu fosse igual a ele. Bem, eu achei que queria ser
igual a ele... até te conhecer. Até sentir em cada parte do meu corpo que não
podia deixá-la ir. E só lembrar e pensar em você após meu acidente...
Assim que amanheceu corri para sua casa e usei minha chave para
entrar, encontrei seu celular largado no sofá e praguejei bastante ao conferir
minhas ligações perdidas.
Marchei até a cozinha para beber água e respirar fundo, aproveitei para
checar o estado da casa. Visitei a adega na parte subterrânea, conferi a
Para ser como eu e assumir tudo o que construí, ele precisava se manter
centrado em boas atividades e não deixar que nada no caminho o impedisse
de conquistar tudo à sua frente.
— suspiro.
de uma tal Yasmin, que com a riqueza de detalhes que descrevia, eu podia
ver diante de meus olhos uma garota descendo as escadas de sua casa,
pegando o bilhete que eu escrevi no passado e partindo, furiosa, sem nem
olhar para trás.
Viajei até o lugar deixado a mim, um belo lugar com vista privilegiada
para o mar e uma terra extensa e frondosa, onde tudo parecia ter vida.
para tentar salvar em Guilhermo tudo o que tentei construir nos últimos anos:
um homem frio, centrado no trabalho e dedicado ao maior bem que
possuíamos: o hospital.
rosto para lembrar o homem ruim que fui e que merecia um final pior ainda.
— Hoje. Agora.
E não podia contar com as previsões otimistas de meu médico, que não
era cigana alguma para saber do futuro.
Acompanhado a ele dizia que devia ser deixado para minha filha.
— Ele deve sentir sim... o calor. Por que está no inferno — fechei a
porta e voltei para minha rotina.
dor e sofrimento que causei. Apenas direi: mi scusi[27]. Sabendo que seu
Mas na certeza de que ido até a guerra, lutado até suas últimas forças
e prestes a voltar para casa, você jamais se tornará o velho que um dia fui.
No desejo de que meu exemplo o ensine o que jamais fazer aos seus
filhos,
Scusi.
Alfredo Lamarphe.
“O amor é formado de uma só alma, habitando em dois corpos”.
— Aristóteles.
Essa vai ser uma das experiências mais únicas de toda a minha vida.
— Vamos trocar sua roupa, te preparar e a hora que eles tiverem que
vir, virão. Não se preocupe — Alissa assegura.
— É.
— Ah...
— Mas está demorando tanto! Será que tem alguma coisa errada
comigo?
comigo.
— Exausta!
filhos. Eu não vou sair do seu lado, até que esteja tudo bem.
— E depois?
Cobre meus seios com suas mãos e roça bem devagar o queixo pelo
meu rosto, cantarola alguma coisa em italiano ao pé do meu ouvido enquanto
as contrações se tornam insuportáveis.
Espero que grite comigo, diga que preciso empurrar, ser mais forte ou
corajosa, mas ela acompanha o pai cantar e permanece atenta.
Com uma lufada de ar que parece que vai me deixar zonza, ranjo os
dentes até sentir que o bebê saiu. A água morna parece que acalma minha
pele, consigo recuperar fôlego após tanto esforço, mas aí vem a aflição de
não ouvir o choro.
— O que houve? — Não dou nem tempo para Alissa pegar a criança e
Coisa que acontece meio segundo depois, ela limpa o sangue da criança
ainda meus braços.
A criança não chora, mas abre bem os olhos e encara os dois pais
apreensivos e suados, a espera de algum sinal de choro, que não vem.
— Oi, minha filha — toco seu rostinho e sinto uma lágrima queimar
em meu rosto.
Queima, acalma
Mata, cria
É o estado de poesia
— Ele vai vir no tempo dele, pode relaxar e curtir sua cria — Alissa
diz, examinando de longe.
— Deve ter sido ótimo, teve nove — minha mãe se diverte. — E não
era por falta de hospital ou dinheiro... era porque preferia assim...
Após curtir muito tempo com a minha pequena, fico encucada de não
— Ai! — sinto uma pontada tão forte dessa vez, que não tenho dúvidas
de que o outro está para nascer.
criança.
Eu sei, eu sei
Que eu repita
É bonita, é bonita
E é bonita
— Conheço! — Diz animado agora. — Viveeeeeer e ser feliz!
Viver
De ser feliz
A beleza de ser
Um eterno aprendiz
Ah meu Deus!
Eu sei, eu sei
Que eu repita
É bonita, é bonita
E é bonita
Esse parece bem mais agitado que a irmã, mexe as mãozinhas sem
parar, como se tentasse agarrar o ar. Guilhermo ao encostar o rosto, tem o
nariz capturado pela mãozinha que reconhece a pele do adulto e só solta
— Hum — ele pondera. Fizemos uma lista enorme de nomes caso fosse
menino ou menina.
tão bem! Dos nomes de meninos, haviam vários que tínhamos selecionado:
João Paulo, Franchesco e Caio César...
Fico emocionada pela homenagem e por ele não ter saído do meu lado
Guilhermo. Desejei tanto viver o meu sonho de princesa que ainda estou
processando que ele aconteceu de fato.
— Você está bem? — Sinto minha testa ser secada por ele.
— E eu amo vocês.
Sem medo de não merecer tal sentimento, abraço-o. Eu lutei por ele.
Vivi o inferno, passei por desafios que testaram cada parte de mim.
Mas sinto que após toda essa tormenta, enfim estou em casa.
— Cora Coralina.
Não sei se fico surpreso ao encontrar minha mãe ali, mas dessa vez não
está inquieta procurando coisas nas gavetas. Está sentada, o olhar vazio e
longínquo, demora um tempo até perceber que entrei no cômodo.
— Imagino que não posso fazer nada para dissuadi-lo de ficar com as
crianças e descartar aquela família e ir embora para a Itália... — sua voz
parece não ter mais forças.
A voz quase some ao dizer meu nome. E fico com uma expressão
congelada no rosto, tentando entender o que isso pode significar.
— Alfredo era seu pai — diz num tom de lamento. — E eu lutei muito
para que você não precisasse viver essa dor. E lutei muito para que não
seguisse a vida que ele teve... mas eu falhei.
— E daí vocês dois criaram tudo isso? Tem noção do quanto foi difícil?
— Mas eu precisava vivê-los. Não importa a vida que você viveu antes
de mim, eu precisava viver a minha vida, ter as minhas experiências!
Tento maneirar no tom duro que uso, pois o semblante dela é de derrota
total.
— Vou para a Itália. Talvez eu nunca mais possa sair de lá, talvez não
nos vejamos novamente, caso você não me visite...
— Cuide para que seus filhos nunca passem pelo que você passou, meu
menino — lamenta e não consegue me soltar.
desaparece no elevador.
verdadeiro pai. Ele continuou a me chamar de Guillermo até então, mas agora
me tirou do eixo completamente. Fico até desconcertado, a garganta seca,
sem saber como responder.
Nem todos os rios encontram o mar. Mas os que encontram – após uma
longa jornada em que um dia foram cachoeira, correnteza e às vezes lago – o
fazem com a mesma força com que sua jornada começou no topo da
montanha.
É como o coração, que só sabe que precisa bater, até um dia descobrir
por quem.
seu colo.
Não sei descrever o meu alívio ao ter Guilhermo para dividir as tarefas
comigo, ele se mostrou um pai muito zeloso que adorava dar banho nas
crianças e trocar suas fraldas, além de ficar cantarolando para eles quando
acordavam de madrugada.
Não sei que mágica era essa, só sei que ao cantar ele fazia com que os
bebês parassem de chorar e ficassem atentos.
Começou com roupinhas para os netos, mesmo sabendo que o que não
faltava para essas crianças era roupa. Eventualmente ela assumiu o controle
Não entendia, mas cada vez que via Ayslan ela pegava cada vez mais
em seu pé.
— Não sei pra quê isso de comer carne. Poderia ser feliz comendo
outras coisas...
— Ah, ótimo! Então porque não faz uma lança dessa árvore aqui —
apontou para a árvore no meio da sala. — E vai caçar uns animais, hein
senhor paleolítico?
— Eu vou te mostrar uma lança — o cabeludo a encarou com raiva.
Enfim... um dia ainda vão descobrir que todo esse ódio pode ser
Mas eu juro, papai, eu vou ficar de olho e dar uns bons cascudos nele,
caso saia da linha!
Quando olho para trás e vejo o ano que se passou, fico me perguntando
de onde arranjei forças, de onde tive coragem, como não tive um troço e caí
no chão por cada coisa que me aconteceu.
Acho que foi mais fácil suportar tudo porque eu sabia que era o certo.
Eu não ia desistir. Era mais do que o meu sonho, fazia parte de quem eu era.
E agora posso admitir que sou muito mais feliz do que antes, na
Com um recomeço.
Com alguém que eu nunca imaginei que retornaria para a minha vida,
mas que quando chegou, alguma parte dentro de mim soube que não podia
deixar ir.
Encaro a lápide do meu pai e abro um sorriso fino, como se ele pudesse
me olhar de volta e sorrir. O cemitério todo gramado e florido fica
— Não... sem notícias. Meu irmão só disse que ela vai ficar longe por
muito tempo.
Estou descobrindo a cada dia como é isso. De ser filha, de ser mulher,
de ser mãe.
o meu porto seguro quando sinto que nada está dando certo, é a minha força,
quando sinto que estou prestes a desistir e é o meu descanso, quando deito na
cama todas as noites e vou dormir.
Mal acreditei quando me dei férias, arrastei todo mundo de casa para
— Meu filho, não coma areia! Não tem um gosto muito bom... — tento
impedir Amauri de levar a areia molhada à boca, mesmo assim ele faz.
— Não precisa ter medo, filha. É o mar. Olha que bonito e como é
imenso — ele mostra.
Seguro nas mãos do meu pequeno e o ajudo a caminhar pela areia, seus
Quando uma onda vem em nossa direção, assim que estamos prestes a
entrar na água, faço-o pular bem alto e o repouso já dentro do mar.
Patrícia não pode comparecer, suas férias não deram match com as
nossas. Mas vamos voltar, quando liberarem a delegata.
O sorriso fica fácil aqui, rio para o nada, tudo me diverte e me acalma.
Quem diria que venceríamos? E como é bom estar feliz em ver todas as
pessoas ao seu redor fazendo sucesso e conquistando seus sonhos!
Se alguém me dissesse no passado que isso iria acontecer, eu apenas
diria: é um bom sonho.
que quando sentiam que seu destino e felicidade era cruzar isso tudo, eles
iam, sem pensar duas vezes...
— Não podia ser em lugar diferente... — ele tira, não sei de onde, uma
caixinha.
Ayslan vem e pega o meu filho para que eu possa reagir, mas na
verdade eu só fico paralisada no local.
Mas esse anel é bafônico e o diamante dele parece querer brilhar mais
do que o sol.
— Ai Guilhermo...
— Estou louca para ligar para a Patrícia! Ela vai surtar! E vai ser minha
madrinha, é claro!
A vida nunca mais foi a mesma depois do acidente que me tirou tudo.
Percorri um longo caminho sem luz e sem fé, ignorando minhas dores,
meus medos e dissabores. Apegando-me firmemente ao trabalho, pois era
tudo o que me restava e me fazia sentir normal.
másculo no espelho, mas não tinha forças para levantar uma simples bola que
cabia em minha mão e esticar o braço para o lado com ela.
Feito o céu que fica mais escuro antes do sol nascer e depois rasga as
trevas com o esplendor de sua luz, Yasmin surgiu em um momento onde tudo
era dor e mágoa. Onde tudo era passado e inacessível.
E então eu entendi.
Ainda assim tive medo do que ia achar de mim, tive medo de que
tivesse dó e não me enxergasse como o homem que fui. Mas ela viu muito
além das minhas limitações. E eu de fato entendi.
Entendi que não precisava andar para voltar a ser feliz. Entendi que
podia muito bem reconstruir a vida, mesmo depois de ter perdido tudo. E
entendi que toda a força que eu buscava primeiro tinha que partir de mim, em
aceitar meu estado e erguer a cabeça.
Pego o meu pequeno no colo e o estico para que coloque mais uma bola
— É.
— O que houve?
— Tempo.
— Ela tinha água. Ela tinha adubo. Era bem cuidada, recebia sol. E
mesmo assim estava seca...
— Guediente.
— Bonita, meu filho — beijo sua testa. — E a estrela que vai bem lá
em cima. Você coloca?
— Então vamos chamar sua mamãe e pedir que pegue uma escada. Ela
põe a estrela e aí vai ficar mais bonita. Depois vamos tomar banho e nos
preparar para a noite de natal.
— Oba!!!
É claro que foi uma grande festa quando começaram a falar “Bubu” e
“agaa”, o que quer que isso poderia significar. A euforia também tomou
conta da família quando começaram a engatinhar e se arrastar pelo chão.
— Olha só, olha só, vai andar! — Patrícia segura no braço de dona
Lúcia.
Diz tão alto e de forma chamativa que a criança para e fica espiando os
tios.
— Meu Deus, eles não param nunca — passo os dedos pelo anel de
Não entendi muito bem o que isso queria dizer. Só sei que encerramos
esse assunto, foi bom abraçá-la e saber que estava indo bem na vida.
— Está, sim. Mas eu consigo, nem que seja meia hora, para ir ficar com
vocês...
— A minha também está... graças a Deus é tem chegado cada vez mais
trabalho... e as crianças estão ficando arteiras. Aprenderam a andar e viraram
pequenos terroristas.
— Ah, isso não vai ficar barato! — Rosna. — Segura seus irmãos! —
Diz a Phellippo.
E vem furioso atrás de mim, que saltito com meu lanche na mão,
desviando de Guilhermo.
18 ANOS DEPOIS
— E aí, velhinho.
Assisto-o vir até mim, abraçar minha cabeça e afagar meus cabelos
lentamente. Eu dou uma boa olhada em como cresceu e como se parece
comigo. Por mais que ele tente me irritar, chamando-me de “velhinho”, não
— Tá quente, né?
— É só amanhã.
corrida aqui no Rio, vamos para Paris, não podia perder a oportunidade de
trazê-lo aqui. Tio Ayslan disse que era seu lugar favorito.
— Filho...
— Medo... — desdenho.
— Para de dar desculpas e assume logo que ficou velhinho — ele coça
minha cabeça.
— Velhinho...
— Vamos pular?
— Vou me divertir.
O coração parece que vai saltar pela boca, sinto a vibração forte até a
garganta. O homem passa todo o aparato sobre mim e me prepara para o voo,
antes me dá as instruções.
ansiosa.
Eu, por outro lado, não poderia pedir uma vida ou uma família
diferente.
mamãe...
areia.
Email – yuletravalon@gmail.com
Facebook – /yuletravalon
Yule Travalon.
As obras estão elencadas pela ordem de acontecimentos, caso você
queira seguir a leitura por ordem cronológica.
CONTOS
SÉRIE – CONSPIRAÇÃO
COMÉDIA ROMÂNTICA
SÉRIE – IMPÉRIO
por contrato.
Estados Unidos, ela descobre que um triste acidente tirou a vida dos
Hansmann, a família dos gêmeos que estariam aos seus cuidados. Em busca
das crianças em Nova York, ela vai se esbarrar com o seu novo guardião – o
polêmico, infame e extremamente atraente Jacob Parker.
Ele precisa de uma mentira que salve sua carreira e cuidar de seus
sobrinhos.
Juntos eles vão descobrir que possuem algo em comum, e talvez isso
mude suas vidas para sempre.
COMO DESTRUIR UM CEO BILIONÁRIO
Bella fará tudo o que for necessário para proteger a si e ao filho das
garras de Chad, mesmo que isso signifique destruir o homem que a ajudou no
passado – por isso usará um disfarce inusitado para ser a secretária gostosona
do CEO. Blake lutará pelos seus segredos e objetivos, mesmo diante da sua
única fraqueza. Nessa briga de egos pelo controle um do outro eles
descobrirão que juntos podem ser mais fortes para recomeçar?
Bella e Blake estão prestes a descobrir.
NAS MÃOS DO CEO
e segredos do alto escalão. Com isso, ele terá em suas mãos a empresa e
não tenha tempo para uma vida pessoal: ela cursa Letras e todo o restante do
seu tempo é gasto como garçonete no Restaurante Romano ou em outros
bicos que encontra... quando encontra... até que Ricardo Leão lhe faz uma
proposta indecente. E irrecusável.
Ela tem contas a pagar; Ele tem uma vingança em rumo. Ela quer
descobrir como é o mundo dos ricos e poderosos; Ele carrega uma série de
segredos que podem afastá-los.
Beatriz Rodrigues é uma mineira que foi para Nova York em busca do
sonho americano. O resultado? Tudo o que conseguiu foi ser uma imigrante
ilegal, com medo de ser encontrada e deportada a qualquer instante.
Esgueirando-se pelos cantos durante o dia e stripper pela noite, Beatriz se
tornou “Sabrina”, objeto de desejo dos homens poderosos que frequentam o
La Chica, o clube noturno onde se apresenta. Bia nunca encontrou motivos
para aceitar as propostas indecentes que recebia até Héctor Mitchell lhe
oferecer muito mais do que um Green Card, uma conta gorda e a
controle quando seu pai, o CEO da Mitchell & Smith entra em coma e seu
testamento é aberto: Héctor é o único herdeiro e beneficiado de todos os bens
e o cargo presidencial da empresa familiar, isso se conseguir provar que pode
ter um relacionamento sério e duradouro, sem traições ou escapadas por mais
de um ano.
verdadeira face... e o seu bem mais precioso: Anthony, seu filho acamado,
cheio de problemas e doente.
Se ainda estou aqui, vivo e escrevendo, deve ser um mistério que só Ele
entende.
Houveram dias que eu nem saí da cama. Houveram dias que eu nem
comi. E só Deus sabe o quanto eu precisava do meu tempo, de um tempo das
redes e algumas pessoas, para recomeçar.
Agora agradeço a você. Por ter chego aqui, por ter lido até aqui, por ser
seu primeiro contato com uma obra minha ou mais uma aventura em minhas
loucuras.
eu estava no ponto mais crítico de minha ansiedade. Mal saía de casa, mal
dormia, tinha crises que vinham do nada e por motivo nenhum.
Obrigado por seu carinho. Obrigado por ter lido esse livro. Obrigado
por ter dado uma chance ao meu menino.
Uma vez me ensinaram que rir espanta qualquer demônio, olho gordo
ou maldição. É verdade. Em Show de dia dos Namorados eu espantei muita
coisa e ao escrever esse livro aqui, espantei ainda mais.
Por isso eu desejo que ria. Espante seus fantasmas. Afaste o que te
assola.
Obrigado pelo carinho com meu pequeno menino fomiga. Ele manda o
toma carinho dele, do lado de cá.
Vocês estão aqui há tanto tempo que já fazem parte de casa! Algumas
conhecem minhas obras melhor do que eu! Obrigado Ceci Conceição,
Antônia Maria Farias Silva Xandu, Deinivan Paiva (Deiva), Lu Literária,
Ivone Duarte, Lays Cristina, Kelly Chaves, Talita Cerqueira, Paty Nunes,
Luciana Tenório, Camila Gomes (e provavelmente muitas outras, já que eu
fui pegando nome por nome e acabei me emocionando ao ler as avaliações).
de ansiedade como os que vivi esse ano, releio suas avaliações e lembro o
motivo de escrever. Suas palavras não me deixam desistir: Artur, Carla
Barbosa, Karyna Souza, Yuna, Mônica Guimarães 10, Gracy Carla, Flávia
Souza, Isabela Azevedo Tavares, Cleiva Paiva, a autora Bruna Rodrigues,
Adiany Rosely, Viviane Oliveira, Aline arruda, Stephani Cristina, Amanda,
Paula Souza, Angélica, Patrícia Fernanda marafigo, RaiGf, Mari n., Carina
timn, Suelen, Luciana, Juliana h.cardamone, Sheila, Bruna Luiza Queiroz,
Consuelo A. Patrocinio, Ana Carla, Andrea Oliveira, Dana Souza, Crissy,
Yule.
Estava em busca de um novilho desgarrado que fugiu das instalações da
velha fazenda, quando um carro me chamou atenção. Passava pela estrada
que dava direto na propriedade da minha família e como a ilha era pequena e
eu conhecia praticamente todos os moradores e seus automóveis, achei
estranho o veículo.
Deixei de lado a busca pelo novilho e segui, segurando firme nas rédeas
Não desci do cavalo. Trotei até chegar diante dele e ajeitei o chapéu de
couro em minha cabeça, semicerrei os olhos.
intimidante.
— Quem gostaria? — Fito seus olhos verdes que brilham feito duas
esmeraldas, quando ergue o rosto em minha direção.
Eu não dou a mínima para quem são os pais dele. Atiro no chão, perto
de seus pés, para que fique esperto.
Ah, então ele sabe! Deve ser mesmo quem diz ser e vir da família que
antes era proprietária das terras. Abaixo a espingarda, mas continuo alerta. O
jeito de Bernardo não me engana, parece o tipo de homem aproveitador que
espera só uma chance para mostrar quem realmente é e dar o fora.
quero de volta.
nome. — Faz parte da história da minha família. Preciso do lugar, senão não
posso voltar aos Estados Unidos.
Sua fúria ganha força, feito uma panela de pressão, devido ao meu
silêncio.
Tive a quem puxar. Sou mais cabeça dura que o rei e não vou realizar
seu pedido, mesmo que como ordem real: não me casarei com a mulher que
ele escolheu e não me limitarei às regras idiotas desse palácio para garantir a
sucessão do trono.
— Você será rei e dará um herdeiro a essa Casal Real, nem que essa
seja a última coisa que eu faça, após morrer! Volto e te atormento, seu
moleque!
6 MESES DEPOIS
O meio da tarde fria e nublada em São Paulo com fina garoa me faz
lembrar da estação atual no Grande Setentrião, país formado por um
conjunto de quatro ilhas acima da Escandinávia, o lugar onde nasci.
De todos os lugares por onde passei desde a minha fuga, o Brasil foi de
longe o mais interessante e rico em experiências. Vivi tantas culturas, climas
e situações dentro deste país, que a sensação de que viajei o mundo inteiro
sem sair daqui me consome.
Saí no meio do dia para vender alguns diamantes e ter dinheiro vivo em
mãos, já que usar cartões estava fora de cogitação. Meu país é um dos
— Droga! — Resmungo.
bom, de todo modo, não valorizava meu perfil, nem mostrava minhas novas
tatuagens.
Ao ver o selo real de minha casa estampado em seus ternos, não tenho
dúvida: pertencem à guarda secreta do palácio. Imediatamente viro para o
lado oposto, mas as vozes aumentam:
— Alteza?!
— Senhor?!
Corro o mais rápido que consigo para o metrô mais próximo, conforme
avanço as pessoas vão se afastando da calçada, dando espaço. Dou graças a
Deus por ter alguns reais no bolso para comprar o bilhete, pulo alguns lances
de escadas para ganhar tempo e desapareço em um vagão.
— Malditos, não acredito que vou precisar ir embora deste país. Logo
quando estava me encontrando... — digo ofegante, quando tenho tempo para
isso.
Se essa é a última vez que estarei em São Paulo, vou curtir a noite
como se o mundo fosse acabar. É tudo o que penso.
Vendi menos diamantes do que queria, mas estou com uma mala cheia
de dinheiro. Planejei toda a minha fuga: posso voltar para Bahia, um lugar
quente e acolhedor. Vou viver velejando e sem dormir, por causa das festas
alternativas. Depois dou um jeito de pedir exílio no Japão, quem sabe em
Dubai...
Prestes a chegar numa das casas noturnas mais caras que a cidade que
não dorme tem a oferecer, vejo os homens de mais cedo. Apresso o passo
para entrar, mas eles me alcançam, tão absortos quanto eu por esse encontro.
— Não faça isso, não aqui — o levanto. — Não vou voltar e vocês não
podem me levar à força — cruzo os braços.
— Não. Não perco tempo com TV e internet, tem tanta coisa para viver
fora daquele palácio que a última coisa que quero é notícias de minha pátria!
— Como vieram parar aqui? Fui tão óbvio assim? Primeiro fui para o
Canadá, depois estive no Chile... Caramba... Vocês dois devem ser bons
mesmo!
A linha do meu conto de fadas que previa o futuro seguia assim: aos 15
vou me formar no ensino médio; aos 16 Gustavo e eu daremos nosso
primeiro beijo e entrarei na faculdade de inglês. Com 17 quero começar a
trabalhar, para aos 18 conhecer a Inglaterra com o meu namorado (guardei
para mim mesma que perderia a virgindade nessa ocasião). Aos 19 vamos nos
casar, com 20, formada, vamos nos mudar para a capital de Minas e aos 25
quero ser mãe de um príncipe.
— Você vai ser minha ou não será de mais ninguém — Gustavo repete,
ao pé do ouvido.
Pressiona o cano frio de sua arma em minha nuca e me abraça por trás,
sua cintura se move de forma muito violenta e eu estou quieta, as lágrimas
descendo em silêncio, engulo o choro e o desespero para fazer suas vontades.
— Eu... eu te amo...
O meu silêncio que dura meio segundo e meus olhos dilatados, o faz
estapear meu rosto com força. Gustavo aponta a arma para o teto e atira, só
para me provar que ela está carregada e ele está pronto para acabar com toda
essa merda.
— Diz que você nunca vai me deixar! — Ele manda, sinto a linha fina
entre vida e morte no calor do cano da arma em minha testa.
— Você não existe sem mim — Gustavo empurra meu corpo para longe
e se limpa com o lençol, joga-o na minha cara. — Lembre-se disso.
E a carrasca também.
Tudo o que escrevi naquele cartão de uma aula de história aos 12 anos
de idade, de fato se realizou. O meu primeiro beijo (e perda de virgindade) foi
com Gustavo. E não só namoramos, viemos morar juntos em Belo Horizonte,
capital de Minas Gerais, longe de nossas famílias.
A única coisa que difere do meu plano original, é que me formei em
psicologia, não em inglês (embora eu me tornei fluente nessa língua). E o
— Não, ela ainda não merece ser mãe. Tem muito que aprender — Ele
dizia em tom de humor na frende dos meus amigos.
Tudo bem que era sempre em tom de piada para amenizar o peso das
Segundo ele, eu podia muito bem atender meus pacientes pela webcam.
Por que não pegava bem ficar a sós com outro homem dentro de uma sala a
portas trancadas por 45 minutos.
ela me disse com quem eram seus problemas conjugais: Gustavo Borges, um
rapaz que veio do interior de Minas, passou no concurso da polícia, se
conheceram na faculdade... e tiveram uma filha.
Ele não tinha só outra vida! Ele tinha uma filha! Uma filha!
O tipo de piada tão idiota e tão cretina que me deixou sem reação, ao
descobrir.
Me fez ligar para os meus pais e cancelar a ida repentina, me fez dizer
– com a arma na cabeça – que tanto trabalho havia acabado com minha saúde
mental e eu precisava me desligar de tudo e todos para me recuperar.
Eu vou fugir.
uma arma apontada em minha cabeça para que eu sirva aos seus desejos.
Quase me tornei atriz de tanto fingir que estava bem, de que podia
esquecer tudo, que ainda o amava, como a garota iludida de 12 anos.
Como não enxerguei os sinais? Como pude deixar que minha vida
tomasse esse rumo? Onde errei para que Gustavo se casasse e desse um filho
à outra mulher?
Agora, mais do que nunca, eu sabia que jamais realizaria o sonho de ser
mãe aos 25, quem sabe em idade alguma.
telefone.
fugir daí?
— Leon, não quero te incomodar, ainda mais agora que sua vida está
dando certo em Paris...
— Prima, tenho duas coisas para te contar — ele respira fundo: — Não
estou mais em Paris. E não vai ser incomodo nenhum. Você foi uma das
poucas pessoas da família que não virou as costas pra mim e não me tratou
diferente quando me assumi, tenho muita consideração por você... Vamos
fazer assim, se eu te mandar a passagem, você vem?
— Em Koioskovo.
— Prima, se não vier, por favor, promete que vai sair daí e não vai virar
estatística!
— Não vale a pena viver com esse homem, Nena, não importa que ele
é seu primeiro amor. Se tu me ama e se ama, cai fora, garota!
— Pode sim. Mas por favor, pense rápido, não quero que aconteça o
pior...
nada depois de um ano sem falar com ele só para pedir um favor.
E o maior spoiler vem agora: não sei fazer brigadeiro sem queimar,
imagine confeitar um bolo!
— Vem, Nena, por favor... se não pode ficar nos seus pais, nem tem
outro lugar para ir...
— Então, prima, sai daí. Posso te pagar uma passagem para qualquer
lugar do mundo, mas aqui posso cuidar de você. Pense que não vai precisar
pagar as contas, terá um teto, comida quentinha, roupa lavada...
Eu ainda tinha que esperar uma hora até embarcar novamente, então
sentei em um banco afastado de todas as pessoas para comer o sanduíche que
trouxe de casa, só haviam outros três homens sentados a uma distância
considerável.
— Para onde você ia, hein, sua vagabunda? Ia correr pra dar pra outro,
é? — segura em meu queixo com agressividade, mas seu semblante continua
límpido.
Ele me abraça contra seu corpo para abafar o barulho e fazer cena para
os transeuntes.
Gustavo fecha a mão em meu punho com muita força e arrasta minha
mala com a outra. Não sei o que parece às vistas das pessoas: um homem
fardado com jeito de bom policial arrastando uma criminosa para longe dali
ou um esposo protetor tentando levar a mulher para casa.
— Você quer, sabe que quer vir comigo. Sua vida é toda comigo, amor.
Está assim por que não tivemos um filho? Volta comigo. Isso vai provar que
você merece. Ainda dá tempo, vamos resolver isso...
— Ah, é? — Ele enfim para de bancar o bom moço e se vira para mim,
mostrando sua verdadeira face. — Grita. Grita, sua puta histérica, faz o teu
show, vai. Só vai confirmar para essas pessoas que você perdeu o juízo. E eu
estou tentando te ajudar.
— Gustavo... — choramingo, tentando me soltar.
Ninguém ao nosso redor parece ligar para a situação, mesmo vendo que
estou sendo arrastada contra a minha vontade. Assim como nenhum vizinho
nunca ligou para a polícia ou as pessoas se afastavam discretamente, na
garagem, quando viam Gustavo explodindo comigo.
— Vem, porra!
— Ela disse para soltar! — Me arrepio toda ao ouvir uma voz bem
forte e cheia de sotaque vindo atrás de mim.
— Mas eu... — nem sei o que dizer, fico dividida entre ver Gustavo se
levantando e o homem me enxotando do lugar. Não tenho nem tempo de
agradecer.
freneticamente meu espaço mediano: uma outra poltrona logo ao meu lado –
vazia –, entradas USB disponíveis, um espaço contendo jornais e revistas,
além de, é claro, um pequeno televisor nas costas da poltrona diante de mim e
um espaço generoso para esticar as pernas – como sou baixinha, me contento
a ficar encolhida mesmo.
Será que enfim ele conseguiu? Essa vai ser a minha sentença? Voltar
para Belo Horizonte e continuar cativa de Gustavo? Não posso aceitar.
— Por favor, Deus, nunca te pedir nada: deixa sua filha fugir desse
inferno! — rezo baixinho.
Fico dividida entre espiar o longo corredor por cima das poltronas e
cabeças de passageiros ou orar.
voo vem prestativa, logo atrás deles, tenta acalmar os passageiros com as
mãos.
— S-sim? — gaguejo.
Só consigo pensar numa coisa: daqui não saio, daqui ninguém me tira!
Tiro-a do bolso, não sem antes apalpar a calça inteira e balançar o papel
no ar, num tremelique frenético.
Sem tirar os olhos de mim, ele estende sua passagem para a aeromoça
que confere:
meia. Mas antes que eu ceda à oferta e fale sobre meu ex psicopata que me
aguarda lá fora, percebo que o homem forte e alto de boné, bem diante de
mim, está movendo os lábios sutilmente e fazendo um gesto negativo com a
cabeça.
seu corpo e uma tatuagem que parece terminar pelas costas, coxas e até
dentro da cueca vermelha.
Não sei o que dizer. Acho que deveria começar por um obrigado.
— Você não tem ideia de que acabou de salvar a minha vida. Muito,
muitíssimo obrigada! Eu devo minha vida a você!
— Pode ficar. Precisa mais do que eu — diz de bom humor, seus olhos
parece que contornam meu rosto, observam meus pequenos gestos, me sinto
meio estranha.
— Iovius — sua mão toma a minha por baixo, ele beija o dorso de
minha palma e eu sinto um calafrio ao sentir seus lábios em minha pele.
Verdade seja dita: nome e hábito estranho. Quem é que beija a mão
dos outros hoje em dia?
Começo a rir, não faço nem ideia do porquê. E no meio disso solto um
ronco ridículo que me faz enfiar o lenço no meio da cara e conter a
gargalhada boba.
— De responsabilidade.
Ah, o típico homem que tenho atendido por toda a minha vida. Os
casamentos nunca dão certo, ficam no mesmo emprego para sempre, não
conseguem subir na vida porque não se comprometem, não se
responsabilizam...
— Não me agradeça por fazer o que é certo — diz num tom formal.
Quando espio por uma fresta entre os dedos, confiro que ele só tirou a
pequena cortina da janela oval ao meu lado e está dando uma espiada lá fora,
seus olhos brilham como duas esmeraldas em contato com a luz.
— Gosta do sol?
uma vez.
Sinto a mão dele me apertar com mais incisão. E não retrocede para seu
lugar, continua com o pescoço esticado em direção à luminosidade da janela,
seu cheiro parece irradiar calor, assim como o sol.
semana para chegar lá? Não podia ter tomado o dramin antes da imigração?
Fiquei tão envergonhada com todo o show que dei, que fiquei quietinha
enquanto sobrevoávamos o oceano Atlântico.
HAAKON III
em câmera lenta, quase me afastei, mas ela repousou o rosto em meu braço e
um fino sorriso se abriu em seus lábios carnudos.
Ao tentar voltar minha atenção para a revista que estava lendo, ouço o
Ela ronca mais alto, a boca entreaberta, o nariz faz um barulho como se
fosse uma porquinha.
Durmo também.
RAVENA LESSA
— Quer dividir?
— Prove.
Não esperava o gesto e isso abrandou o meu dia de uma forma que meu
passado e meus pesadelos, definitivamente ficaram um oceano para trás.
Quis perguntar para onde ia, quem realmente era, como chegou ao
Brasil e o que achou da minha terra. Também quis perguntar se poderia fazer
algo por ele, ainda mais olhando para o hematoma em seu olho a cada dez
minutos e me sentindo culpada por isso.
Fui consumida por uma vergonha sem fim e me contive apenas a babar
e admirá-lo.
— Meu pai dizia que nada na vida é completo, sem seu contrário. Então
espero que após fugir, chegue onde quer — Iovius se despede de mim com
um beijo no rosto e um abraço que me faz derreter em seus braços.
— Ei...
Iovius desaparece pela porta do avião, não sem antes acenar para mim –
até parece que faz isso para toda a tripulação, que está de pé assistindo-o ir.
— Aquela mala é minha — digo, por fim, quando saio do meu encanto.
Corro até a comissária.
— Oi, o rapaz que saiu levou a minha mala por engano... Essa é a dele!
— Mostro o objeto.
Ajeito a bolsa no ombro e saio com o objeto que não me pertence, após
alguns passageiros desembarcarem.
Bom... como disse alguma poetisa francesa ou Deus após o sétimo dia
de criação: c’est la vie...
Suspiro e encaro o céu nublado Londrino pela grande janela de vidro
do aeroporto.
Pelo menos em algumas horas vou para meu destino final e encontrarei
meu primo.
receber os últimos raios solares, porque estava ciente de que eles seriam um
luxo que não teria aqui.
muito...
— Não sei se estou triste ou furioso — bufo. — Desde que nasci escuto
que um dia serei rei, mas para isso meu pai precisaria morrer... — olho para o
teto. — Não parece um dia feliz. Eu não queria perder o meu pai,
independente do quanto discordássemos...
— Então coloque-as.
higiene.
Concordo com ele. Vou tirando cada peça da mala, examinando com
calma e tentando pensar em uma saída.
uma calcinha bege em minhas mãos. — Quem usa tal tipo de coisa?
Tiro o sobretudo preto e meio felpudo, parece ter sido feito para uma
criança ou adolescente, não para um homem de quase dois metros
e Svar sacode a cabeça em negação.
— Eu tenho tantas perguntas... por que não esperou o avião real no
Brasil? E por que embarcou assim?
— Ele conhecia bem o filho que gerou — pisco. — E acho que devo
usar isso ou precisarei aguardar que alguém venha com roupas pretas, em
respeito à morte do rei. Ou você tem um lençol sobrando aí?
— Quanto tempo vai demorar até que alguém venha até nós e traga
— Uma hora, talvez uma hora e meia... Isso, é claro, só para você ir ao
palácio e encontrar a vó, em seguida partem juntos para Drü. Haakon?
HAAKON?! — diz meu nome mais alto no fim, ao perceber que já estou na
porta do avião, vestido com o sobretudo.
Ando de modo firme e ergo a mão para o povo do meu país, que me
recepciona com aplausos.
Não tarda até que eu entre no carro blindado e Svar vem depois, senta-
se ao meu lado e fica em alerta, exasperado, encarando o hematoma.
— Sério? Não acredito que você fez isso. A Rainha mãe vai nos matar!
— Bobagem — minimizo. — As pessoas estão aqui em pé, no frio, não
podia deixar que esperassem nem um segundo a mais, seria crueldade.
— Lá vamos nós...
Nasci para um dia ser responsável por milhões de pessoas. Logo eu...
conhecido como príncipe inconsequente e irresponsável...
— O Príncipe de Drü chegou ao país com uma roupa inusitada — a voz
na tela média dentro do carro me chama a atenção. — Seria última moda? —
ironiza.
— Blanco, não te incomoda ter um futuro rei que não tem cabelos
grandes? — a mulher ri. — É a primeira vez em mil, quem sabe dois mil anos
que um rei do Grande Setentrião é quase careca. Em nossa tradição, homens
que pertencem à realeza e um dia assumirão o trono jamais cortam seus
cabelos, pois é sinal de seu poder e ancestralidade.
— Se não se lembra, Yanca, o Príncipe de Drü cortou seus cabelos em
uma visita ao hospital do câncer, na capital, três anos atrás. Os cabelos foram
— O príncipe precisa usar dessa sua boa fama para unificar o país e
afastar qualquer fantasma de uma República. Se tiver sorte, talvez consiga
que seja apenas fundada uma monarquia parlamentarista...
Meu país não é uma monarquia absolutista, temos uma constituição que
guia as ações do rei. Temos um parlamento com duas câmaras, uma de
Lordes – daqueles que estão lá pela linhagem sanguínea – e outra de Comuns
– daqueles que foram eleitos pelo povo. Só não temos primeiro ministro, o rei
ocupa o poder executivo e abaixo dele há os dois líderes das câmaras.
Eu tentei fazer a minha parte, tentei renunciar. Seria melhor para mim,
para o meu país e o meu povo.
princesas, para que você escolha uma e tenha um herdeiro, elas começam a
chegar no final de semana. Serão 15 dias para que escolha sua consorte, e
depois 75 para gerar o bebê real. Seu pai colocou uma condição para que
você só assuma o trono e controle de tudo quando tiver um herdeiro — a voz
a ponto de nunca saberem o que esperar de mim. Há coisa pior do que um rei
imprevisível? As pessoas querem confiança e estabilidade... tudo o que não
tenho a oferecer.
— Não quero viver essa vida planejada, onde estou sob os olhares de
todos e preciso seguir regras a todo instante. E essas princesas... todas foram
— Sim.
— Não é o que espero de uma mulher. Não a minha mulher. Quero que
ela me respeite, não porque sou sei rei, mas porque eu sou digno e fiz por
merecer. Sabe o que foi mais incrível de estar no Brasil? Não me
conhecerem. Não saberem que era eu. Me tratavam como uma pessoa
qualquer! Já experimentou isso?
carro, chamando por meu nome. Aqui em meu país, raramente tenho
privacidade e nunca poderia ter a vida que levei nos últimos meses.
Isso significa que não posso ser eu mesmo e isso é tão cruel quanto
colocar um animal selvagem em uma gaiola.
meus limites.
— Que legal.
Estendo minha mão novamente e ele a beija. Só assim para ele ficar
calado.
dele. Tiro do bolso do casaco a calcinha bege que guardei. — E o resto não é
da sua conta. Aliás, tem uma mala dentro do avião real. Será que podia
encontrar a dona disso? — Esfrego a peça íntima no rosto dele. — Trocamos
as malas.
— Olha só como esse peralta está corado! — A Rainha mãe diz e todos
se curvam imediatamente, assim que surge, desce amparada por quatro
funcionárias do palácio.
Ela vem o mais rápido que pode, batendo sua bengala no chão. Abraça
minha cabeça com ternura e beija o topo de meus cabelos, depois faz o
mesmo com seu outro neto, Svar.
rei do século XXI! — diz animada, faz uma pinça com o dedo indicador e do
meio ao tocar em minha jaqueta de couro. — Não te parece um rei que
seguiria a qualquer lugar, Svar?
— Seu avô dizia que vemos nós mesmos nos lugares para onde vamos
— ela me dá uns tapinhas no rosto e me chama com o indicador. — Laios,
diga em voz alta nosso roteiro de hoje!
— Você será coroado, mas não governará — ela diz para meu completo
choque.
— Como assim?
— Um regente.
[1]
Do italiano “vem” ou “venha”.
[2]
Do italiano “mulher bonita” ou “bela mulher”.
[3]
Do italiano “obrigado”.
[4]
Do italiano: “de nada” ou “você é bem-vindo”.
[5]
Do italiano “que porra é essa”.
[6]
Do italiano “não fale comigo sobre amor”.
[7]
Nota do autor: “Macumba” é uma árvore africana e um instrumento musical. O termo
costuma ser usado no Brasil como sinônimo de: 1) Oferenda; Ebó; Despacho; 2)
Identificar religiões afro-brasileiras de modo pejorativo; Aqui e em outras passagens a
personagem usa de modo informal e descontraído com a amiga para identificar o “feitiço”
ou “oferenda” que fez.
[8]
Do italiano “puta merda!”.
[9]
“Que porra!”
[10]
Do italiano “mulher infernal”.
[11]
Aqui é uma força de expressão. Guilhermo não possui o movimento das pernas. Em
outros momentos da narrativa ele usará termos semelhantes para descrever sua raiva e
frustração.
[12]
“Obrigado”.
[13]
Do italiano “eu nunca disse isso”.
[14]
Do italiano “Deus”.
[15]
“Meu Deus! Olhe só para você!”
[16]
“Mãe, eu estou bem, hum?”
[17]
“Não se preocupe”.
[18]
“Muito bem”.
[19]
“Meu filho!”
[20]
“Mãe”.
[21]
Algumas falas da criança foram transcritas de forma errada propositalmente.
[22]
“Porra”
[23]
NOTA DO AUTOR: Musica: “Salmo” de Maria Bethânia.
[24]
NOTA DO AUTOR: Música: “Fera Ferida”, composição de Erasmo Carlos e Roberto
Carlos, interpretada por Maria Bethânia.
[25]
NOTA DO AUTOR: Música: “Negue”, escrita por Enzo de Almeida Passos e Adelino
Moreira, aqui interpretada por Maria Bethânia.
[26]
NOTA DO AUTOR: Música: “O que é, o que é?”, escrita por Gonzaguinha e aqui
interpretada por Maria Bethânia.
[27]
“Me desculpe”.