Você está na página 1de 6

Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266, 1995.

AXEXE: UM RITO DE PASSAGEM*

Helmy M ansur M anzochi**

...é através da ação ritual que se propulsionam as trans­


formações sucessivas e o eterno renascimento...
(J.E. Santos)

MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 5: 261-266, 1995.

RESUMO: Neste artigo descrevemos a cerimônia do Axexê, observada no


terreiro de Candomblé “Ilê Olorum Wam Be”, em São Paulo, em 1991. Ela é
celebrada quando morre uma pessoa importante da comunidade. Na concepção
africana, a morte não significa a extinção total, mas uma mudança de plano de
existência e de status, para se chegar ao “estado ancestral” .

UNITERMOS : Morte - Transformação - Vida - Ancestrais - Candomblé Afro-


Brasileiro.

Introdução afastar da comunidade a alma do morto para que


descanse em paz” (Ferreti, 1985).
Com o pesquisadora da Cultura A fricana e Esse rito não é aberto ao público, porém, ti­
Afro-Brasileira, nos propusemos a assistir as ce­ vemos permissão do pai-de-santo (Amoiá) para
rimônias realizadas durante um ciclo anual (1990- assistí-lo e neste trabalho descrevemos as observa­
1991), em terreiro de Candomblé. ções feitas.
A ‘pesquisa de campo’ foi realizada no terreiro O Axexê é uma cerimônia ritual fúnebre cele­
“Ilê Olorum Wam Bê”, que possui dois espaços brada para uma pessoa importante da com unidade
em São Paulo, um deles localizado no município religiosa, chefe, filho-de-santo ou ogã.
de Juquitiba e o outro em Taboão da Serra. “Não só etnólogos, desde Herz, sublinharam
Durante a realização dos trabalhos de campo, que a morte, assim como a iniciação, é uma
faleceu um membro da casa. Foram então progra­ passagem para um a outra vida com provas
mados os ritos fúnebres (Axexê), “cujo objetivo é múltiplas a fim de se chegar ao estado ances­
tral, onde o nascimento realiza, para a cons­
ciência coletiva, a mesma transformação da
(*) Artigo que fez parte da dissertação de mestrado da auto­ morte...” (Kabengele, 1977).
ra, apresentada na ECA/USP.
(**) Mestre em Artes Plásticas pela Escola de Comunicação Esse rito é realizado em um período de sete
e Artes da Universidade de São Paulo. dias consecutivos. No entanto, se um membro da

261
MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266,1995.

casa se oferece para fazer as obrigações,' durante - Ta nu batatun enoviô


sete anos, a cerimônia se realiza em apenas três ETILERUÔ
dias. Foi isto o que aconteceu no caso observado.
Entre um e outro canto, o pai-de-santo pro­
Sobre o portão de entrada do “Ilê Olorum Wam
nunciava palavras com energia e em tom im pera­
Bê” foram colocadas cabaças pintadas de branco,
tivo, acompanhando-as de gestos bruscos.
com panos drapeados, formando um conjunto este­
Os cantos entoados durante toda a noite eram
ticamente agradável.
intercalados por danças e saudações do grupo de
No interior do terreiro, em um tronco de árvore
tocadores que se dirigiam ora aos homens, ora às
próximo à casa de Baba Egun, também estavam
mulheres.
colocadas cabaças de vários tam anhos e panos
Nos ritos de Axexê não são usados atabaques;
brancos, os quais representavam os ancestrais do
em seu lugar são utilizados recipientes de barro,
pai-de-santo da casa.
p ercu tid o s com fo lh as de p alm eira. U m dos
Todos os participantes, devidamente vestidos
instrumentos musicais utilizados é o Gã, seme­
de branco, simbolizando luto, usavam pulseiras de
lhante ao Agogô, mas com uma só cam pânula de
palha da costa, trançadas e firmemente amarradas.
ferro (Carneiro, 1948) (Figs. 1 e 2).
As pulseiras são usadas contra Eguns.
Durante os três dias da cerimônia, as canções
Para iniciar a cerimônia, os participantes se
se repetiram exatamente na mesma seqüência.
dirigiram ao barracão, em ordem hierárquica, tendo
Alguns fatos que merecem destaque ocorreram
na frente os membros mais importantes. Na entrada
em cada um dos dias, os quais são relatados a
todos lavaram as mãos em uma bacia que continha
seguir:
água com folhas maceradas e em seguida tiraram
No primeiro dia foi colocada uma panela de
os calçados.
barro no centro do barracão, a qual representava o
Após a entrada de todos os membros no recin­
espírito do morto presente na sala. Aqueles que
to, o pai-de-santo saudou:
dançavam depositavam moedas ao passarem junto
- Agô Babá dela. E, ao seu redor, milho branco, mel, água,
acaçás, cachaça (em volta do axé do mastro).
e os assistentes repetiram:
No segundo dia, os ogãs, antes de iniciar a
- Agô Babá cerimônia, caminharam pelo corredor formado pelas
casas, batendo com longas varas de bambú nos seus
Sons de instrumentos se fazem ouvir e a voz
beirais, até alcançarem o portão de entrada.
do chefe do culto, cantando:
No terceiro dia, q uatro p esso as, as m ais
... Cocorororó... é um bé é um taberé influentes do culto, carregaram um lençol, que
(repetido por oito vezes) aparentemente continha um corpo em seu interior.
- Axexê mojubá o No entanto, esse corpo era form ado por folhas
Axexê, axexê omã (refrão) verdes de plantas, que foram derramadas sobre uma
- Axexê boluô Kê oabalô pessoa. Esta pessoa havia se apresentado para,
Axexê, axexê omã durante sete anos, cultuar os orixás daquele que
Aféieie a inokê, oluô deoaxeké em vida fora seu amigo.
Bandakuxé oluô deoaxemim No decorrer de todo o ritual não observamos a
Koja, koja bamba eruku, ocorrência de possessão. “A possessão ocorre
Kafideriku ô lebarê quando a divindade se apossa do crente, servindo-
- Ta nu batatun enoviô se dele como instrumento para sua comunicação
com os mortais” (Carneiro, 1948).
Encerrada a cerimônia, o pai-de-santo colocou-
(1) São oferendas rituais feitas às divindades para propiciar
se à disposição para esclarecer quaisquer dúvidas
ajuda, ao crente, em questões m ateriais e espirituais
(Cacciatore, 1977).
(2) O ancestral é o intermediário entre o ser supremo e os
homens (Kabengele, 1977). (4) O Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/USP) possui
(3) Eguns são espíritos, almas dos mortos que voltam à terra dois destes instrumentos no cenário “Raízes Africanas”,
em determinadas cerimônias. Há na Ilha de Itaparica o “Culto localizado em sua exposição de longa duração Formas de
aos Egunguns” (Cacciatore, 1977). Humanidade.

262
Fig. 1 - Agogô de ferro. Nagô, República do Benin. Museu de Fig. 2 - Agogô afro-brasileiro de metal Museu de Arqueologia
Arqueologia e Etnologia - USP. Inv. n° 77/d.4.420. e Etnologia - USP. Inv. n° 74/2.2.
MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Re v. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266, 1995.
MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266, 1995.

dos participantes em relação às cerimônias reali­ de existência individual, ao “òrum”, nível de exis­
zadas. tência coletiva. Celebrados os rituais, transforma-
Depois de responder às perguntas formuladas, se em ancestral.
o pai-de-santo, visivelmente alegre e descontraído, Além dos descendentes que o ser gerou du­
dirigiu-se para a cozinha, onde foi servida uma rante a sua permanência no “àiye”, passando para
refeição com posta de peixe, arroz e vinho branco e o “òrum ”, participará, como elemento do coletivo,
dengue. da formação de novos seres.

“Sem Axexê, não há começo, não há exis­


Comentários tência. O Axexê é a origem, e ao mesmo tem­
po o morto...” (Santos, 1975).
O nosso primeiro contato com um rito fúnebre Assim , a concepção que a com unidade de
de heranças africanas ocorreu durante a ‘pesquisa candomblé tem da morte é que ela não significa a
de cam po’ em cumprimento à metodologia propos­ extinção total, ou aniquilamento. M orrer é uma
ta de assistir, por um ciclo anual, as cerimônias de transformação, uma mudança de plano de exis­
um terreiro de candomblé, fazendo este trabalho tência e de status. E são essas transformações que
parte da dissertação de mestrado. dão sentido às suas vidas, como também às suas
Na concepção da comunidade de candomblé, mortes.
cada criatura, ao nascer, traz consigo seu”Ori” (des­ As cerimônias fúnebres assistidas, compostas
tino) e a ela deve ser assegurado o seu pleno desen­ pelas rezas cantadas e dançadas, marcam a pas­
volvimento. O ser maduro para a morte é o que sagem do ser de um plano de existência ao outro, o
completou o seu “O ri”, ao passar do “àiye”, nível que se constitui no seu eterno renascimento.

ANEXO

Yá mofondó do ocoxé
Cantos entoados:
Yá makuná nabaquendé
1) Cocorororó... é um que é um taberé Yá mukuná nabaquendé
(Repete)
3) Dabió a coké ó
Axexê mojuba ê
Orete o megé da biodé
Axexê axexê omã
Ó olóró da mi cója ó
Axexê boluô kê oabalô
Corojá oyaé aé oyaé
Axexê axexê omã
A corojaoyaé
Aféiéié a énokô, oluô deoxeké á olóró da mi cója 6
Bandakuxé, oluô deoaxemim
4) Yá tiléruó
Kojá kojá bamba eruku,
ó duró-ó iku ayé
Kafideriku ô lebarê...
p duró-ó iku ayé
Tá nu batatum... enoriô iku lapalá Babá
Tá nu batatum... enoriô iku goma kekeré
Tá nu batatum... enoriô ó duró iku ayé
(repetido várias vezes) A uié é maboya
Etileruô olómá nixé
(Repete)
2) Ó oniê
A uié é ki komoré
A murassabina abaquassebé
e sufunhé balé cóm a boya
A murassabiô nabaquassebé
elomá nixé
Yá m ofonã eua koisô
5) Ya
ó bobo
(5) Dengue é um mingau de farinha de milho branca.

264
MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266, 1995.

Yasin abáagogéa Kaimá ayé kaimá


e é... e é quénda maionqué pepelé pepelé
Yasin alágogéá quenda nuquen
Yasin du balakoxé quenda nuquen
(Repete) omolucum... é madjá iré
ó bobo omulucum... é madjá iré
olani ná kóta moda moré é é madja iré
kóta moda moré é madjá iré da silé
eran osa á morólodé losa beiá
9) Ya tilérué
zarina kóta moda moré
ó bibó marió ió ió
kóta moda moré
iku balé kan Agó Babá
eran osa a morólóde losa beiá
é... apá nu apágogó
akuleruó exu balé
apá nu mafagogó
akulériré exu balé
apá nu mafamoró
óbobó m año
apá nu mafomoró
6) Yá tilérué é abiku oloré
óbobó marió é abiku oloré
Tambóafá Tambogirá loré ni abá oré
é moná siré loré ni abá oré
O óbobo marié é abiku oloyé
é bango bango taté mamé é abiku oloyé
é bango bango taté mamé loré ni abá oré
(repete) Loré ni abá oré
é simbelequé un un un un simbelequé 10) Yá tiléruó
simbelequé tubabá kéoanin Babá Ikú Balé
Jora jora konkanga maneto ó bobó bó marió
Jora jora konkanga Airá Abiku Airá Abiku Abiku
Jora jora konkanga tateto Aira ... Abiku ú ú
Jora jora konkanga Aira ... Abiku ú ú
Abiku oloré
7)Yá tilérué
A irá ... Abiku ú ú Airá
ó bobo oyá
Abiku u Airá
ó bobó oyá
Abiku
batuká nu balé yaré
Abiku ... Abiku A irá
batuká nu balé yaré
Abiku ú ú Airá
agó megé
é Iku ó ónixoloró
oyatú felebé é marió
á foforé oni xoroxé
8) Tá no bongoróé Iku ó onixoloró
Tá tá tá no bongoió á foforó oni xoroxé
Tá tá tá no bongoió 11) é samba samba mirélé-ó
T á n o bongoió samba shé shériomá
Tá tá tá no bongoió samba shé shériomá
Tá tá tá no bongoió é mamba shé shébilá
Jora muketo jora mugangá m amba shé shériomá
Buré buré breketé diré e mane tata eua diré mamé
Buré buré breketé é mane tata euá diré mamé
Ayé kaimá ingangueuá afá é virá mane tata euá que banba diré lo
Kaimá ayé kaimá u banda mane tata euá diré mamé
ó aleuá iku diré... é mane tata euá diré mamé
ingangueuá afá é mane tata euá diré mamé

265
MANZOCHI, H.M. Axexe: um rito de passagem. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 261-266,1995.

12) Ya tileruô iku balélé


Banja banja kukurú iku iku ô lodò dan yê dan yê bê olô
oyá banja coxé iku iku ô lodò dan yê dan yê paraiê
Banja banja kukurú
Saudação aos Babas
oyá banjá coxé
Agô Agô babá-babá Petiberé
ê aê aê Vumbê-ê Vumbê pá kerukeru
Kê oayalabaomin Iku Balé Kan
13) Y á tiléruô Abiku Vioye
e oyá balélé-ô Airá... Abiku Airá
ô iku balelé Airá ú ú Airá
ô iku balélé-ô ê Iku ô ónixolorô
ô iku balélé à foforê oni xoroxê
balé balé kê ni xorolô iku ô onixolorô
iku balélé-ô à foforô oni xoroxê

MANZOCHI, H.M. Axexe: a rite o f passage. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 5: 261-266, 1995.

ABSTRACT: We describe the Axexê ceremony, observed at the terreiro de


Candomblé, “Ilê Olorum Warn Be”, in 1991, in São Paulo” . It is celebrated when an
important person o f the community dies. To the African people, death doesn’t mean
a total extintion, but a change of dimension and status, to reach the “ancestral con­
dition” .

UNITERMS: Death - Transformation - Life - Ancestors - Afro-Brasilian


Candomblé.

Referências bibliográficas

BRANDÃO, C.R. KABENGELE, M.


1989 A cultura na rua. Ed. Papirus, Campinas. 1977 Os Basanga de Shaba: um grupo étnico do Zaire.
CACCIATORE, O.G. Tese de doutoramento em Antroplogia. Depto.
1977 Dicionário de cultos afro-brasileiros. SEEC/ de Ciências Sociais, FFLCH/USP, São Paulo.
RJ, Rio de Janeiro. MARTINS, I. (Org.)
CARNEIRO, E. 1983 A morte e os mortos na sociedade brasileira.
1948 Candomblé da Bahia. 3a edição. Ed. Civilização Ed. Hucitec, São Paulo.
Brasileira, Rio de Janeiro. PEREIRA, J.B.
FERRETTI, S.F. 1986 A morte nos estudos sociológicos e antropológicos
1985 R elig iõ es de origem africana no Maranhão. sobre a imigração estrangeira no Brasil. Revista
A s sobrevivencias das tradições religiosas afri­ de Antropologia, FFLCH/USP, 29: 85-97.
canas nas Caraibas e América Latina. Unesco. SANTOS, J.E.
1985 Querebentan de Zomadonu: etnografía das Casas 1975 Os N agô e a morte. Tese de doutoramento em
das Minas. São Luiz, EDUFMA. Coleção Ciên­ Etnologia na Universidade de Sorbonne, Paris.
cias Sociais - Série Antropologia, 1.

Recebido p a ra publicação em 19 de novembro de 1995.

266

Você também pode gostar