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MINISTÉRIO DA SAÐDE
Caderno de Educação
Popular e Saúde
Brasília-DF
2007
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MINISTÉRIO DA SAÐDE
Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa
Departamento de Apoio à Gestão Participativa
Caderno de
Educação Popular e
Saúde
Brasília-DF
2007
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Equipe Editorial:
Abigail Reis
Ana América Paz
Eymard Mourão Vasconcelos
Gerson Flávio da Silva
João Monteiro
José Ivo dos Santos Pedrosa
Júlia S. N. F. Bucher-Maluschke
Maria Alice Pessanha de Carvalho
Maria Verônica Santa Cruz de Oliveira
Renata Pekelman (organizadora)
Ricardo Burg Ceccim
Ricardo Rodrigues Teixeira
Sonia Acioli
Equipe Técnica:
Antonio Sérgio de Freitas Ferreira
Esdras Daniel dos Santos Pereira
José Flávio Fernandino Maciel
Luciana Ratkiewicz Boeira
Osvaldo Peralta Bonetti
Ficha Catalográfica
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa.
Caderno de educação popular e saúde / Ministério da Saúde, Secretariade Gestão Estratégica e Participativa,
Departamento de Apoio à Gestão Participativa. - Brasília: Ministério da Saúde, 2007.
160 p. : il. color. - (Série B. Textos Básicos de Saúde)
ISBN 978-85-334-1413-6
NLM WA 590
Apresentação
Educação em Saúde é inerente a todas as práticas desenvolvidas no âmbito do SUS. Como prática
A transveral proporciona a articulação entre todos os níveis de gestão do sistema, representando dis-
positivo essencial tanto para formulação da política de saúde de forma compartilhada, como às
ações que acontecem na relação direta dos serviços com os usuários.
Nesse sentido tais práticas devem ser valorizadas e qualificadas a fim de que contribuam cada vez mais
para a afirmação do SUS como a política pública que tem proporcionado maior inclusão social, não
somente por promover a apropriação do significado de saúde enquanto direito por parte da população,
como também pela promoção da cidadania.
É preciso também repensar a Educação em Saúde na perspectiva da participação social, compreendendo
que as verdadeiras práticas educativas somente têm lugar entre sujeitos sociais e, desse modo, deve estar
presente nos processos de educação permanente para o controle social, de mobilização em defesa do SUS
e como tema relevante para os movimentos sociais que lutam em prol de uma vida digna.
O princípio da integralidade do SUS diz respeito tanto à atenção integral em todos os níveis do sistema,
como também à integralidade de saberes, práticas, vivências e espaços de cuidado.
Para tanto torna-se necessário o desenvolvimento de ações de educação em saúde numa perspectiva dialógica,
emancipadora, participativa, criativa e que contribua para a autonomia do usuário, no que diz respeito à
sua condição de sujeito de direitos e autor de sua trajetória de saúde e doença; e autonomia dos profis-
sionais diante da possibilidade de reinventar modos de cuidado mais humanizados, compartilhados e
integrais.
Nesse sentido apresenta-se a educação popular em saúde como portadora da coerência política da participação social
e das possibilidades teóricas e metodológicas para transformar as tradicionais práticas de educação em
saúde em práticas pedagógicas que levem à superação das situações que limitam o viver com o máximo
de qualidade de vida que todos nós merecemos.
O Caderno de Educação Popular e Saúde apresenta um rico material para reflexão, conhecimento e for-
mação, pondo em diálogo significativas experiências de educação popular em saúde vivenciadas por
múltiplos atores sociais.
Enfim, o Caderno representa estratégia fundamental para a qualificação de nossas práticas de educação
em saúde.
Ministério da Saúde
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O Ðnico de Saúde, promovido a criação de mecanismos e espaços para a gestão participativa e incentivado
a descentralização efetiva e solidária, no sentido de aproximar a saúde tal como é vivida e sentida pela
população, à maneira como se organizam os serviços e o conhecimento que orienta a ação dos profissionais que
compõem o SUS.
O que proporciona tal aproximação é a educação popular em saúde promovendo o diálogo
para a construção da autonomia e emancipação dos grupos populacionais que historicamente foram
excluídos em seu modo de entender a vida, em seus saberes e nas oportunidades de participar dos
rumos da sociedade brasileira.
Trazer a educação popular para um plano institucional significa muito para a construção do SUS que que-
remos em termos de universalidade, integralidade, eqüidade e participação social. Em outras palavras, queremos
que estes princípios orientadores de nossa Reforma Sanitária ganhem sentido no cotidiano da vida de milhões e
milhões de brasileiras e brasileiros.
Colocar a educação popular como uma estratégia política e metodológica na ação do Ministério da Saúde
permite que se trabalhe na perspectiva da integralidade de saberes e de práticas, pois proporciona o encontro com
outros espaços, com outros agentes e com tecnologias que se colocam a favor da vida, da dignidade e do respeito
ao outro. Trabalhar com a educação popular em saúde qualifica a relação entre os cidadãos, definidos constitucio-
nalmente como sujeitos do direito à saúde, pois pauta-se na subjetividade inerente aos seres humanos.
Esperamos que este Caderno de Educação Popular e Saúde seja o primeiro de uma série e que
possa contribuir para fortalecer a vontade política de estar continuamente construindo o SUS com a
participação ativa população e de profissionais comprometidos com a saúde e com a qualidade de
vida da população brasileira.
Novos saberes, novas práticas, novas vivências é o que esperamos proporcionar com esta publicação!
Disponibilizar textos que ajudem a reflexão, que permitem a troca de experiências singulares em sua meto-
dologia e em seus princípios é o que desejamos. Queremos que este Caderno seja um dispositivo para a constru-
ção de conhecimento vivo que possa gerar ações emancipatórias contribuindo para transformar os indivíduos em
atores que se movimentam em busca da alegria e da felicidade.
Apresentação 10
Nossas Fontes
O Paulo da Educação Popular - Eymard Mourão Vasconcelos 31
Pacientes Impacientes: Paulo Freire (apresentação Ricardo Burg Ceccim) 32
Reflexões e vivências
Estórias da educação popular - Ausonia Favorido Donato 103
Em Nazaré, cercada por água...um mergulho e muito aprendizado! - Wilma 106
Suely Batista Pereira
Educação emancipatória, o processo de constituição de sujeitos operativos: 114
alguns conceitos - Eliane Santos Souza
Pensando alto - Ana América Magalhães Ávila Paz 117
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Trocando do “era uma vez...” para o “eu conto” - Ana Guilhermina Reis 120
Você tem sede de quê? Cenas do viver, adoecer morrer, transcender numa favela 122
brasileira - Iracema de Almeida Benevides
Peripécias educativas na rua - Lia Haikal Frota 131
Outras Palavras
A Educação pela Pedra - João Cabral de Melo Neto 133
Projeto sorriso - Samuca, Fred Oliveira e Érico 134
Eduardo Galeano 135
Paulo Freire 136
Roda de conversa
Uma rede em prol de comunidades rurais e urbanas auto-sustentáveis - 142
Gerson Flávio da Silva
Roteiro de leitura
Roteiro de leitura - Eymard Mourão Vasconcelos 152
Pequena enciclopédia
Pequena enciclopédia - Maria Alice Pessanha de Carvalho 157
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Construindo Caminhos
Ilustração: Lin
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Para consolidar o diálogo com os movi- onde se realiza o Encontro entre governo e
mentos sociais o Ministério da Saúde, em parceria sociedade civil qualificando o controle social e
com a Rede de Educação Popular em Saúde, pro- ampliando a gestão participativa no SUS.
moveram encontros estaduais, nos quais foi pos- Os princípios político-pedagógicos da
sível identificar movimentos populares que se Educação Popular são tomados como ferramentas
articulavam na luta por saúde. No final de 2003, de agenciamento para participação em defesa da
realizou-se o Encontro Nacional desses movimen- vida e como estratégias para a mobilização social
tos resultando na criação da Articulação Nacional pelo direito à saúde. O papel agenciador da
de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Educação Popular se faz pelo pinçar e fomentar
Saúde (ANEPS) e desencadeando processos de atitudes de participação no sentido de sempre
articulação em cada estado. mudar realidades, tornando-as vivas, criativas e
A partir de julho de 2005, o Ministério correspondentes ao desejo de uma vida mais feliz.
passa por mudanças em sua gestão resultando na A Educação Popular em Saúde, ao mobi-
criação da Coordenação Geral de Apoio à lizar autonomias individuais e coletivas, abre a
Educação Popular e a Mobilização Social do alteridade entre indivíduos e movimentos na luta
Departamento de Apoio a Gestão Participativa por direitos, contribuindo para a ampliação do
(DAGEP) da Secretaria de Gestão Estratégica e significado dos direitos de cidadania e instituíndo
Participativa (SGEP), mantendo os propósitos e a o crescimento e a mudança na vida cotidiana das
equipe que trabalhava nas SGTES. pessoas.
As duas Secretarias, ambas inexistentes na Problematizando a realidade tomada como
estrutura anterior do Ministério da Saúde, apresen- referência, a Educação Popular mostra-se como
tam projetos políticos que afirma os princípios um dispositivo de crítica social e das situções
constitucionais do SUS, tendo por missão o desen- vivenciadas por indivíduos, grupos e movimentos,
volvimento de ações com potencialidades de permitindo a visão de fragmentos que estavam
provocar mudanças na formação de trabalhadores, invisíveis e ideologias naturalizadas como reali-
na gestão dos sistemas, na organização dos serviços dades favorecendo a liberação de pensamentos e de
, na qualidade da atenção e no controle social. atos ativos de mudança social.
Ao promover espaço institucional para as Permite a produção de sentidos para a vida
ações de Educação Popular e mobilização social, o e engendra a vontade de agir em direção às
Ministério da Saúde assume o compromisso de mudanças que se julgem necessárias. As ações
ampliar e fortalecer a participação da sociedade na pedagógicas constrõem cenários de comunicação
política de saúde desde sua formulação ao exercí- em linguagens diversas, transformando as infor-
cio do controle social. mações em dispositivos para o movimento de
E, neste sentindo, a Educação Popular em construção e criação.
Saúde, localizada na SGTES e atualmente na SGEP A Educação Popular na Saúde implica atos
, representa o lugar, na estrutura do Ministério da pedagógicos que fazem com que as informações
Saúde, que atua em estreita comunicação e diálogo sobre a saúde dos grupos sociais contribuam para
com os movimentos sociais que produzem ações e aumentar a visibilidade sobre sua inserção históri-
práticas populares de saúde; com as iniciativas dos ca, social e política, elevar suas enunciações e
serviços e dos movimentos que resgatam e recriam reivindicações, conhecer territórios de subjetivação
a cultura popular e afirmam suas identidades étni- e projetar caminhos inventivos, prazeirosos e
cas, raciais, de gênero; apoiando espaços públicos inclusivos.
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REFER¯NCIAS
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nham espaço significativo. A "tranqüilidade" social onde profissionais de saúde aprendem a se relacio-
imposta pela repressão política e militar possibili- nar com os grupos populares, começando a esboçar
tou que o regime voltasse suas atenções para a tentativas de organização de ações de saúde integra-
expansão da economia, diminuindo os gastos com das à dinâmica social local. Com o processo de
as políticas sociais. Com os partidos e sindicatos abertura política, movimentos populares, que já
esvaziados, a população vai aos poucos buscando tinham avançado na discussão das questões de
novas formas de resistência. A Igreja Católica, que saúde, passam a reivindicar serviços públicos locais
conseguira se preservar da repressão política, apóia e a exigir participação no controle de serviços já
este movimento, possibilitando o engajamento de estruturados. A experiência ocorrida na zona leste
intelectuais das mais diversas áreas. O método da da cidade de São Paulo é o exemplo mais conheci-
Educação Popular, sistematizado por Paulo Freire, do, mas o Movimento Popular de Saúde (MOPS)
se constitui como norteador da relação entre inte- chegou a aglutinar centenas de outras experiências
lectuais e classes populares. Muitos profissionais de nos diversos estados. Nelas, a educação em saúde
saúde, insatisfeitos com as práticas mercantilizadas busca ser uma assessoria técnica e política às
e rotinizadas dos serviços de saúde, se engajaram demandas e iniciativas populares, bem como um
nesse processo. Nos subterrâneos da vida política e instrumento de dinamização das trocas de conheci-
institucional foi se tecendo a estrutura de novas for- mento entre os atores envolvidos.
mas de organização da vida política. Essas experiên- Assim, a participação de profissionais de
cias possibilitaram (e ainda possibilitam) que inte- saúde nas experiências de Educação Popular, a par-
lectuais tenham acesso e comecem a conhecer a tir dos anos 70, trouxe para o setor Saúde uma cul-
dinâmica de luta e resistência das classes populares. tura de relação com as classes populares que repre-
No vazio do descaso do Estado com os problemas sentou uma ruptura com a tradição autoritária e
populares, vão se configurando iniciativas de busca normatizadora da educação em saúde.
de soluções técnicas construídas a partir do diálogo Com a conquista da democracia política e a
entre o saber popular e o saber acadêmico. construção do Sistema Ðnico de Saúde, na década
O setor Saúde é exemplar neste processo. de 80, estas experiências localizadas de trabalho
Nos anos 70, junto aos movimentos sociais emer- comunitário em saúde perderam sua importância.
gentes, começam a surgir experiências de serviços Os movimentos sociais passaram a lutar por
comunitários de saúde desvinculados do Estado, mudanças mais globais nas políticas sociais. Os téc-
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nicos que nelas estiveram engajados agora ocupam em saúde são organizadas por grandes empresas de
espaços institucionais amplos onde uma convivên- comunicação bem pouco articuladas com o cotidia-
cia direta tão intensa com a população não é mais no de relação entre os profissionais de saúde e a
possível. A experiência de integração vivida por tan- população.
tos intelectuais e líderes populares, o saber ali cons-
truído e os modelos institucionais que começaram Educação Popular, um jeito especial
a ser gestados continuam presentes. Em muitas ins-
de conduzir o processo educativo
tituições de saúde, grupos de profissionais têm bus-
cado enfrentar o desafio de incorporar ao serviço
No âmbito internacional, o Brasil teve um
público a metodologia da Educação Popular, adap-
papel pioneiro na constituição do método da
tando-a ao novo contexto de complexidade institu-
Educação Popular, o que explica em parte a sua
cional e da vida social nos grandes centros urbanos.
importância, aqui, na redefinição de práticas sociais
Enfrentam tanto a lógica hegemônica de funciona-
dos mais variados campos do saber. Ela começa a se
mento dos serviços de saúde, subordinados aos inte-
estruturar como corpo teórico e prática social no
resses de legitimação do poder político e econômi-
final da década de 50, quando intelectuais e educa-
co dominante, como a carência de recursos, oriun-
dores ligados à Igreja Católica e influenciados pelo
da do conflito distributivo no orçamento, numa
humanismo personalista que florescia na Europa
conjuntura de crise fiscal do Estado. Nesse sentido,
no pós-guerra, se voltam para as questões populares.
esses grupos estão engajados na luta pela democrati-
Paulo Freire foi o pioneiro no trabalho de sistema-
zação do Estado, na qual o método da Educação
tização teórica da Educação Popular. Seu livro
Popular passa a ser um instrumento para a constru-
Pedagogia do Oprimido (1966) ainda repercute em
ção e ampliação da participação popular no geren-
todo o mundo.
ciamento e na reorientação das políticas públicas.
Educação Popular não é o mesmo que "edu-
Atualmente, há duas grandes interfaces de
cação informal". Há muitas propostas educativas
relação educativa entre os serviços de saúde e a
que se dão fora da escola, mas que utilizam méto-
população: os grandes meios de comunicação de
dos verticais de relação educador-edu-
massa e a convivência cotidiana dos
cando. Segundo Carlos Brandão
profissionais com a população nos
(1982), a Educação Popular não visa a
serviços de saúde. A segunda interface,
criar sujeitos subalternos educados:
na medida em que permite um conta-
sujeitos limpos, polidos, alfabetizados,
to muito próximo entre os vários ato-
bebendo água fervida, comendo fari-
res envolvidos no processo educativo,
nha de soja e utilizando fossas sépticas.
permite um rico aprendizado dos
Visa participar do esforço que já faz
caminhos de uma educação em saúde
hoje as categorias de sujeitos subalter-
que respeite a autonomia e valorize a
nos - do índio ao operário do ABC
criatividade dos educandos. Nesse sen-
tido, os conhecimentos construídos nessas experiên-
cias mais localizadas são fundamentais para o nor-
teamento das práticas educativas nos grandes meios
de comunicação de massa, se o objetivo é uma
metodologia participativa. É preciso superar a atual
situação em que as grandes campanhas educativas
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Paulista - para que a organização do trabalho político, Enfatiza não o processo de transmissão de
passo-a-passo, abra caminho para a conquista de sua conhecimento, mas a ampliação dos espaços de
liberdade e de seus direitos. A Educação Popular é um interação cultural e negociação entre os diversos
modo de participação de agentes eruditos (professores, atores envolvidos em determinado problema social
padres, cientistas sociais, profissionais de saúde e para a construção compartilhada do conhecimen-
outros) e de agentes sociais do povo neste trabalho to e da organização política necessários à sua supe-
político. Ela busca trabalhar pedagogicamente o ração. Em vez de procurar difundir conceitos e
homem e os grupos envolvidos no processo de partici- comportamentos considerados corretos, procura
pação popular, fomentando formas coletivas de apren- problematizar, em uma discussão aberta, o que está
dizado e investigação de modo a promover o cresci- incomodando e oprimindo. Prioriza a relação com
mento da capacidade de análise crítica sobre a realida- os movimentos sociais por ser expressão mais ela-
de e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfren- borada dos interesses e da lógica dos setores subal-
tamento. É uma estratégia de construção da participa- ternos da sociedade cuja voz é usualmente desqua-
ção popular no redirecionamento da vida social. lificada nos diálogos e nas negociações. Apesar de,
Um elemento fundamental do seu método muitas vezes, partir da busca de soluções para pro-
é o fato de tomar, como ponto de partida do pro- blemas específicos e localizados, o faz a partir da
cesso pedagógico, o saber anterior do educando. perspectiva de que a atuação na microcapilaridade
No trabalho, na vida social e na luta pela sobrevi- da vida social é uma estratégia de desfazer os meca-
vência e pela transformação da realidade, as pes- nismos de cumplicidade, apoio e aliança, os micro-
soas vão adquirindo um entendimento sobre a sua poderes, que sustentam as grandes estruturas de
inserção na sociedade e na natureza. Esse conheci- dominação política e econômica da sociedade.
mento fragmentado e pouco elaborado é a matéria Está, pois, engajada na construção política da supe-
prima da Educação Popular. Essa valorização do ração da subordinação, exclusão e opressão que
saber e dos valores do educando permite que ele se marcam a vida nas sociedades desiguais. A
sinta "em casa" e mantenha suas iniciativas. Nesse Educação Popular é o saber que orienta nos difí-
sentido, não se reproduz a passividade usual dos ceis caminhos, cheios de armadilhas, da ação peda-
processos pedagógicos tradicionais. Na Educação gógica voltada para a apuração do sentir/pen-
Popular, não basta que o conteúdo discutido seja sar/agir dos setores subalternos, a como contribuir
revolucionário, mas que o processo de discussão com a construção de uma sociedade fundada na
não se coloque de cima para baixo. solidariedade, justiça e participação de todos.
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logo entre o saber popular e o saber científico. Para nologia ou de um novo sistema de conhecimento,
o setor Saúde, no Brasil, a participação histórica no como as chamadas medicinas alternativas preten-
movimento da Educação Popular foi marcante na dem ser, mas pela articulação de múltiplas, diferen-
criação de um movimento de profissionais que tes e até contraditórias iniciativas presentes em
busca romper com a tradição autoritária e norma- cada problema de saúde, em um processo que valo-
tizadora da relação entre os serviços de saúde e a riza principalmente os saberes e as práticas dos
população. Apesar de uma certa crise do conceito sujeitos usualmente desconsiderados devido à sua
da Educação Popular nos novos tempos, é ele que origem popular.
vem servindo para identificar e instrumentalizar a No atual contexto de fragmentação da
diversidade de práticas emergentes. Nessas expe- vida social, a recomposição de uma abordagem
riências, os vários aspectos metodológicos valoriza- mais globalizante da saúde não pode caber ape-
dos articulam-se de modo peculiar, diferenciando- nas às iniciativas ampliadas das instituições de
se do que ocorre em outros continentes. Há um saúde. Essa recomposição da integralidade nas
elemento inovador e pioneiro nas experiências bra- práticas de saúde cabe principalmente ao cresci-
sileiras e latino-americanas de Educação Popular mento da capacidade de doentes, famílias, movi-
em Saúde que vem sendo reconhecido internacio- mentos sociais e outros setores da sociedade civil
nalmente. em articularem, usufruírem e reorientarem os
Para muitos serviços de saúde, a Educação diversos serviços e saberes disponíveis, segundo
Popular tem significado um instrumento funda- suas necessidades e realidades concretas. Essa
mental na construção histórica de atenção integral perspectiva se diferencia do imaginário de gran-
à saúde, na medida em que se dedica à ampliação de parte do movimento sanitário brasileiro,
da inter-relação entre as diversas profissões, especia- ainda acreditando e empenhando-se na possibili-
lidades, serviços, doentes, familiares, vizinhos e dade de construção de um sistema estatal único
organizações sociais locais envolvidos num proble- de saúde capaz de, planejadamente, penetrar e
ma específico de saúde, fortalecendo e reorientan- ordenar as diversas instâncias da vida social
do suas práticas, saberes e lutas. Esta redefinição da implicadas no processo de adoecimento e de
prática médica se dá, não a partir de uma nova tec- cura (VASCONCELOS, 1997).
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Desde o início dos anos 90, profissionais de de, o modelo de atenção à saúde, buscado pelo
saúde envolvidos em práticas de Educação Popular Movimento Sanitário por intermédio do SUS, foi em
organizaram a Rede de Educação Popular em grande parte, inspirado em experiências pioneiras de
Saúde, com o intuito de fortalecer o debate sobre saúde comunitária desde a década de 70, nas quais os
as relações educativas nos serviços sanitários. Desde movimentos populares e técnicos aliados foram cons-
então, assistimos a uma importante organização truindo os caminhos para uma nova organização do
institucional do campo da Educação em Saúde. setor Saúde. Nestas experiências, a Educação Popular
Estruturaram-se encontros em vários estados, foi instrumento metodológico central.
vários congressos de âmbito nacional dedicaram A Rede de Educação Popular em Saúde,
significativos espaços ao tema, criaram-se grupos articulando e acompanhando centenas de expe-
acadêmicos e operativos, e aumentaram as publica- riências de aprofundamento da participação popu-
ções. Mas é ainda uma estruturação muito frágil, se lar nos serviços de saúde, acredita que a Educação
tivermos em vista o grande número de profissio- Popular continua sendo um instrumento metodo-
nais de saúde que vêm se preocupando e se dedi- lógico fundamental para uma reorganização mais
cando às relações educativas com a população. radical do SUS, no sentido da construção de uma
atenção à saúde integral em que as pessoas e os gru-
Educação Popular em Saúde no pos sociais assumam maior controle sobre sua
saúde e suas vidas e em que a racionalidade do
governo Lula (REDE DE EDUCA-
modelo biomédico dominante seja transformada
Ç‹O POPULAR EM SAÐDE, 2003).1 no cotidiano de suas práticas. Nesse sentido, a
Educação Popular não é mais uma atividade a ser
Um novo capítulo da história do Brasil implementada nos serviços, mas uma estratégia de
começou a ser escrito com as eleições de 2002. A reorientação da totalidade das práticas ali executa-
vitória consagradora de Lula e do PT expressou o das, na medida em que investe na ampliação da
desejo de mudança, de justiça social e de liberdade participação e que, dinamizada, passa a questionar
que pulsa na população brasileira. Expressou a e reorientar tudo.
importância que as classes populares, os intelec- O princípio da participação popular costu-
tuais e os movimentos sociais passaram a ter como ma ser aceito e defendido por todos, contudo
atores na construção de uma nova nação. tende-se a acreditar que ele se opera quase esponta-
Vislumbra-se o projeto de um novo jeito de gover- neamente, uma vez assegurados legalmente os espa-
nar, buscando alcançar o desenvolvimento social a ços formais de sua implementação, os Conselhos e
partir de um crescimento econômico voltado ao as Conferências de Saúde. Constata-se, no entanto,
atendimento das necessidades sociais. que essas instâncias, por estarem presas às questões
Os princípios que inspiraram o Movimento gerenciais do sistema, não dão conta de implemen-
Sanitário na construção do Sistema Ðnico de tar a participação dos usuários na redefinição da
Saúde encontram, no contexto político atual, a maioria das ações de saúde executadas no dia-a-dia
oportunidade para serem reafirmados e consolida- dos serviços. Há inúmeros mecanismos de boicote
dos. Dentre estes, verificamos a efetiva participação a uma participação mais efetiva dos moradores. E
popular: crítica e criativa na construção de políti- é no cotidiano das práticas de saúde que o cidadão
cas públicas saudáveis como caminho para a con- é desconsiderado pelo autoritarismo e pela prepo-
quista do direito humano à vida plena. Na verda- tência do modelo biomédico tradicional que, em
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1 Para contato, acesse os portais da Internet http://br.groups.yahoo.com/group/edpopsaude ou http://www.redepopsaude.com.br.
Comunique-se com a sua Secretaria Executiva na Av. Brasil 4036, sala 905, Rio de Janeiro, RJ, CEP 21040-360, telefone 021 2260 7453.
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vez de questionar, tem reforçado as estruturas gera- práticas extremamente criativas e produtivas que
doras de doença presentes na forma como a vida são, inclusive, reconhecidas internacionalmente. A
hoje se organiza. É preciso levar a democratização atuação de muitos profissionais e movimentos,
da assistência à microcapilaridade da operacionali- orientados pela Educação Popular, tem avançado
zação dos serviços de saúde. Sem a participação muito na desconstrução do autoritarismo de douto-
ativa dos usuários e seus movimentos na discussão res, do desprezo ao saber e à iniciativa dos doentes
de cada conduta ali implementada, os novos servi- e familiares, da imposição de soluções técnicas para
ços expandidos não conseguirão se tornar um espa- problemas sociais globais e da propaganda política
ço de redefinição da vida social e individual em embutida na forma como o modelo biomédico vem
direção a uma saúde integral. sendo implementado. No entanto, não basta alguns
O pioneirismo do Brasil no campo da saberem fazer, é preciso que este saber seja difundi-
Educação Popular e a já antiga tradição de aproxi- do e generalizado nas instituições de saúde. Temos
mação de vários profissionais de saúde junto aos condições de superar a fase em que estas práticas de
movimentos populares nos permite afirmar que esta saúde mais integradas à lógica de vida da população
tarefa é plenamente possível. Nesse sentido, defen- aconteciam apenas em experiências alternativas
demos que a implementação da Educação Popular pontuais e transitórias. É preciso encontrar os cami-
nos diferentes serviços de saúde é uma estratégia nhos administrativos e de formação profissional os
fundamental para tornar realmente efetiva a diretriz quais permitam que elas se generalizem institucio-
constitucional do SUS, a participação popular, tão nalmente. Várias iniciativas de governos municipais
cara ao Movimento Sanitário. petistas têm avançado neste sentido.
A Rede de Educação Popular em Saúde tem Como frisou Leonardo Boff, em mensagem
acompanhado centenas de experiências nas quais a aberta ao presidente Lula, após a sua eleição: "Chega
integração entre profissionais comprometidos e os de fazer para os empobrecidos. Chegou a hora de
movimentos sociais tem permitido a emergência de fazer a partir deles e com eles. Essa é a novidade que
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você traz na esteira de Paulo Freire e da Igreja da matizadoras e centradas apenas na inculcação de
libertação". hábitos individuais considerados saudáveis. Essa
Esta diretriz tem um grande impacto no forma de trabalho educativo boicota a participação
setor Saúde. No entanto, encontra resistências popular, pois faz calar os sujeitos e afasta as lideran-
mesmo em setores progressistas do Movimento ças locais do envolvimento, em conjunto com os
Sanitário, uma vez que o processo da Reforma Sani- serviços, do processo de transformação social por
tária, nos últimos 20 anos, ficou centrado principal- meio do diálogo dos saberes e da reflexão crítica de
mente nas questões da construção do arcabouço suas realidades de vida e saúde.
jurídico e institucional do sistema e no desejo de Quase todos os gestores enfatizam em seus
expandir rapidamente a cobertura dos serviços de discursos a importância da ação educativa e da pro-
saúde. Formou-se um amplo corpo técnico nas ins- moção da saúde. No entanto, com exceção de algu-
tâncias gestoras da burocracia federal, estadual, mas administrações municipais, entre as quais des-
municipal e distrital, muito competente em ativida- taco Recife e Camaragibe, pouco se tem investido
des de planejamento e com grande habilidade no em uma política consistente que busque a difusão
manejo do jogo de poder institucional, mas bastan- do saber da Educação Popular para a ampliação da
te intolerante a processos participativos nos quais a participação popular no cotidiano dos serviços. As
população e os profissionais de nível local se mani- experiências de Recife e Camaragibe têm demons-
festem de modo efetivo e autônomo. Assim, temos trado a importância do investimento tanto na for-
hoje um SUS com uma imensa rede de serviços bási- mação profissional para a transformação cultural e
cos de saúde, porém, um modelo de atenção ainda política dos padrões das práticas de saúde, como na
pouco questionado. criação de uma infra-estrutura institucional que
A expansão do Programa Saúde da Família garanta condições materiais e administrativas para a
levou a uma profunda inserção de milhares de tra- realização de atividades educativas.
balhadores de saúde no cotidiano da dinâmica de Até a gestão federal anterior ao governo Lula,
adoecimento e de cura na vida social. Nessa convi- a política adotada pelo Ministério da Saúde fez com
vência estreita, estes profissionais de saúde estão que a quase totalidade dos recursos pedagógicos fos-
sendo profundamente questionados sobre a eficácia sem gastos em propagandas nos grandes meios de
do modelo biomédico tradicional. Há uma intensa comunicação de massa e em material impresso pro-
busca de novos caminhos, a pouca ênfase da saúde duzido de forma centralizada, instrumentos mais
pública na discussão e no aperfeiçoamento das rela- adequados para uma conscientização autoritária da
ções culturais e políticas com os cidadãos e seus população dos bons caminhos de vida e saúde que
movimentos vem resultando em desperdício desta a suposta elite sanitária acredita serem adequados
oportunidade potencialmente transformadora do para suas condições de existência. As campanhas
sistema. Os cursos de formação na academia e nas educativas nos grandes meios de comunicação de
Secretarias de Saúde pouco têm priorizado a discus- massa têm sido entregues, na maioria das vezes, para
são dos difíceis caminhos, cheios de armadilhas, da empresas de comunicação sem um vínculo com o
ação pedagógica voltada para a apuração do sentir, cotidiano de dificuldades de relacionamento entre
pensar e agir dos atores envolvidos nos problemas os profissionais e a população.
de saúde de forma a se construir coletivamente as O Ministério da Saúde pouco vinha fazendo
novas soluções sanitárias necessárias. Nesse cenário, para apoiar, dinamizar e aperfeiçoar políticas con-
o que se tem assistido, na maioria dos serviços, é a sistentes nos estados e municípios que buscassem
reprodução de ações educativas extremamente nor- institucionalizar as trocas educativas como eixo reo-
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rientador das ações locais de saúde. Os poucos tralizada de materiais educativos, construídos de
recursos para ações educativas do Ministério eram forma participativa e de valorização e difusão das
canalizadas para o apoio de projetos pontuais, iniciativas educativas na lógica da problematização
desvirtuando-se, assim, a função da esfera federal coletiva, já existentes em quase todos os municípios.
que seria de implementar diretrizes e políticas que É preciso que as campanhas educativas de massa
expandam de forma descentralizada os princípios passem a ser planejadas de forma articulada com os
norteadores do SUS. No vazio de uma atuação do profissionais e as lideranças dos movimentos sociais
Ministério, no incentivo de ações educativas partici- que vivem as dificuldades e as potencialidades do
pativas em todo o sistema, o tradicional modelo trabalho educativo na rotina dos serviços de saúde.
autoritário de educação em saúde mantém-se domi- Devido à forte presença da Educação Popular no
nante, apesar de muitas vezes ser anunciado com Brasil, temos, em cada recanto da nação, profissionais de
discursos aparentemente progressistas. A maioria saúde e lideranças de movimentos sociais habilitados a
das coordenações de educação, comunicação e pro- colaborar nesta tarefa. É preciso mobilizá-los e valorizá-
moção da saúde das Secretarias Estaduais e Munici- los. Convocados, poderão colaborar com os técnicos do
pais de Saúde, em vez de investir na reorientação da Ministério da Saúde na definição dos caminhos institu-
relação cultural que acontece em cada serviço de cionais que tornem realmente efetiva a diretriz constitu-
saúde, têm se dedicado principalmente à organiza- cional do SUS, da participação popular na redefinição
ção de mobilizações da população para eventos e do modelo assistencial.
campanhas de massa ou ao desenvolvimento de A Educação Popular é um saber importante
ações educativas isoladas, desconectadas da rotina para a construção da participação, servindo não
da rede assistencial. Está mais a serviço do marke- apenas para a criação de uma nova consciência sani-
ting da instituição e de suas lideranças políticas. tária, como também para uma democratização mais
Diante disso, a Rede de Educação Popular radical das políticas públicas. Não é apenas um esti-
em Saúde tem proposto a adoção da Educação lo de comunicação e ensino, mas também um ins-
Popular como diretriz teórica e metodológica da trumento de gestão participada de ações sociais. É
Política de Educação em Saúde do Ministério da também o jeito latino-americano de fazer promoção
Saúde e que esta política se torne uma estratégia da saúde. É importante que deixe de ser uma práti-
prioritária de humanização do SUS e da adequação ca social que acontece de forma pontual no sistema
de suas práticas técnicas à lógica de vida da popula- de saúde, por intermédio da luta heróica de alguns
ção, mediante a valorização de formas participativas profissionais de saúde e de movimentos sociais, para
de relação entre os serviços de saúde e os usuários. ser generalizada amplamente nos diversos serviços
Para isso, é necessário desencadear uma ação políti- de saúde, em cada recanto da nação. Um dos gran-
ca que, bem estruturada, incentive, apóie e cobre des desafios, para isso, é a formação ampliada de
dos municípios e estados a formulação de iniciati- profissionais de saúde capazes de uma relação parti-
vas amplas desta valorização e a criação de espaços cipativa com a população e os seus movimentos.
de troca cultural, diálogo e negociação em cada ser-
viço de saúde. Chega de simpatias e discursos eno- Educação popular na formação
brecedores à educação e à promoção da saúde, sem dos profissionais de saúde
a destinação de recursos e implementação de políti-
cas bem traçadas! É urgente a criação de uma polí- Tem-se erroneamente associado o conceito de
tica nacional de formação profissional em Educação Popular à educação informal dirigida ao
Educação Popular, de incentivo à produção descen- público popular. O adjetivo "popular" presente no
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nome Educação Popular se refere não à característica de tância de outros grupos intelectuais. Muitos passam a
sua clientela, mas à perspectiva política desta concepção reorientar suas práticas buscando enfrentar de uma
de educação: a construção de uma sociedade em que as forma mais global os problemas de saúde encontrados,
classes populares deixem se ser atores subalternos e mas as atuais exigências políticas e institucionais não
explorados para serem sujeitos altivos e importantes na permitem ficar apenas aguardando esta formação
definição de suas diretrizes culturais, políticas e econô- espontânea e ocasional de profissionais abertos para as
micas. A experiência dos movimentos sociais tem mos- iniciativas populares na construção soluções sanitárias.
trado que este modo de conduzir o processo educativo É imensa a carência de profissionais capazes de uma
pode ser aplicado com sucesso na formação profissio- relação participativa com a população e seus movimen-
nal. Muitas iniciativas educacionais nas universidades tos. Ao mesmo tempo, a eleição de governos compro-
(principalmente em projetos de extensão), nos treina- metidos com os movimentos sociais em alguns muni-
mentos das Secretarias de Saúde de seus profissionais e cípios e estados, bem como a eleição de Lula para presi-
nas organizações não-governamentais vêm sendo orien- dente criaram condições institucionais para uma maior
tadas pela Educação Popular, descobrindo, aos poucos, incorporação da Educação Popular nas várias instâncias
os caminhos metodológicos de sua aplicação nesse novo de formação profissional.
contexto institucional. A educação dos trabalhadores de Hoje, um dos maiores desafios do movimen-
saúde nesta perspectiva é fundamental para a ampliação to de Educação Popular em Saúde é o delineamen-
de uma gestão participativa no SUS. to mais preciso das estratégias educativas de sua
A maioria dos atuais educadores populares se incorporação ampliada nos cursos de graduação de
formou a partir de circunstâncias bastante particulares todos os profissionais de saúde, na formação de
de sua vida pessoal que propiciaram contatos intensos agentes comunitários de saúde, na educação perma-
com movimentos sociais e experiências de Educação nente em saúde dos trabalhadores do SUS, nos cur-
Popular que os mobilizaram e os envolveram neste tipo sos de pós-graduação, etc. Por muito tempo, os edu-
de prática. Desde a década de 70, profissionais de saúde
insatisfeitos com as práticas mercantilizadas e rotiniza-
das dos serviços oficiais, desejosos de uma atuação mais
significativa para as classes populares vêm se dirigindo
às periferias dos grandes centros urbanos e das regiões
rurais em busca de formas alternativas de atuação.
Inicialmente ligaram-se às experiências informais de tra-
balho comunitário, principalmente junto à Igreja
Católica. Posteriormente, a multiplicação de serviços de
atenção primária à saúde, ocorrida no Brasil, a partir do
final dos anos 70, colaborou na criação de condições
institucionais para a inserção desses profissionais nos
locais de moradia das classes populares.
É interessante como este movimento de profis-
sionais de saúde vem se mantendo por tantos anos, con-
vivendo com a dinâmica do processo de adoecimento e
de cura no meio popular, interagindo com os movi-
mentos sociais locais e entrando em contato com a mili-
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REFER¯NCIAS
BRAND‹O, Carlos Rodrigues. Lutar com a REDE DE EDUCAÇ‹O POPULAR E SAÐDE. VASCONCELOS, Eymard Mourão. Educação
palavra: escritos sobre o trabalho do educador. Carta: a educação popular em saúde e o governo popular nos serviços de saúde. 3. ed. São
Rio de Janeiro: Graal, 1982. democrático do Partido dos Trabalhadores. Nós Paulo: Hucitec, 1997.
da Rede: Boletim da Rede de Educação Popular e
Saúde., Recife, n. 3, p. 6-8, 2003.
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Nossas Fontes
P
aulo Freire não foi o inventor da Educação Ficou, assim, mais fácil dizer o que é e o que não é
Popular. Ela foi sendo construída a partir de Educação Popular, ajudando a superar confusões.
um movimento de muitos intelectuais latino- A Educação Popular não é algo parado. Ela
americanos que, desde a década de 50, vinham se tem se modificado com a transformação da socieda-
aproximando do mundo popular na busca de uma de. Tem sido aplicada em novos e surpreendentes
metodologia de relação que superasse a forma auto- campos. Estamos sempre precisando de novos
ritária como as elites (até mesmo as lideranças de "Paulos Freires" que continuem o trabalho de elabo-
esquerda) abordavam a população. Foram descobrin- rar teoricamente essas mudanças e de sistematizar a
do que as classes populares, ao contrário de uma experiência que os movimentos sociais vão acumu-
massa de carentes passivos e resistentes a mudanças, lando em suas lutas. Este é um trabalho que tem se
eram habitadas por grandes movimentos de busca de mostrado difícil. Por isso, temos muita saudades de
enfrentamento de seus problemas e por muitas ini- Paulo Freire.
ciativas de solidariedade. Tinham um saber muito Muitas vezes, ficamos muito fascinados com
rico que as permitia viver até com alegria em meio a os avanços conseguidos por nosso grupo e esquece-
situações tão adversas. Esses intelectuais foram des- mos que fazemos parte de uma construção muito
cobrindo que, quando colocavam o seu saber e o seu antiga que envolveu a participação de muitas outras
trabalho a serviço dessas iniciativas populares, os pessoas. Desprezamos esta experiência acumulada,
resultados eram surpreendentes. correndo o risco de estarmos perdendo tempo na
O pernambucano Paulo Freire (1921-1997) foi busca de "inventar novamente a roda". Para os pro-
um desses intelectuais. Mas ele foi o primeiro a sis- fissionais de saúde que estão chegando agora no
tematizar teoricamente a experiência acumulada por desafio do trabalho comunitário, é importante
este movimento. E fez isto de uma forma muito ela- lembrar que tivemos um grande mestre: Paulo
borada, elegante e amorosa. Seu livro Pedagogia do Freire. Quantas coisas importantes os seus escritos
Oprimido, escrito em 1966, difundiu a Educação continuam a nos ensinar. E para homenageá-lo,
Popular por todo o mundo. Por isso, em muitos paí- nada melhor do que trazer um texto seu, com suas
ses, a Educação Popular costuma ser chamada de palavras originais. Para isso, nós da Rede de
pedagogia freiriana. A teorização da Educação Educação Popular e Saúde, escolhemos um texto
Popular permitiu não apenas a sua difusão, mas o bem simples, escrito há mais de 20 anos, logo
seu aperfeiçoamento, na medida em que apurou depois que ele voltou ao Brasil de seu exílio (teve
aquilo que lhe era mais fundamental e ajudou a de fugir do país, em 1964, por causa da persegui-
organizar os seus princípios de forma coerente. ção da ditadura militar).
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Paulo Freire
Ilustração: Ral
Apresentação:
Ricardo Burg Ceccim
A reflexão de
Paulo Freire nos leva
a compreender que só
iremos superar essa
postura de "querer libertar
dominando", quando entender-
mos que não estamos "sozinhos" no
mundo e que o processo de liberta-
ção não é obra de uma só pessoa ou
grupo, mas sim de todos nós.
o dia 23 de janeiro de 1982, Paulo Freire esteve com
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fundamental "saber mudar", isto é, "saber mudar ensina a gente a fazer as coisas é a prática da gente.
na direção que busca a igualdade de oportunida- Por isso Ânão faz mal nenhumÊ, que se leia um
des e de liberdade para todos e todas". O educador livro ou outro. Devemos ler e é importante ler-
lembrou que ocorrem momentos em que "nossas mos, mas o fundamental é o fazer, isto é, lançar-
ações se tornam difíceis de serem desenvolvidas e mo-nos numa prática e ir aprendendo-reaprenden-
nos perdemos no meio do caminho" e que, na do, criando-recriando com o povão. Lendo, ao
maioria das vezes, nem percebemos, pois "herda- mesmo tempo, as teorias adequadas aos temas.
mos de nossa história a tradição de não termos Isso é o que ensina a gente o necessário movimen-
tido, como povo, a chance de participar das deci- to prática-teoria-prática. Agora, se há possibilidade
sões da sociedade". Assim, ao tentarmos a partici- de se bater um papo com quem tem prática ou
pação, "acabamos por utilizar as mesmas ferra- com quem já teve prática ou, ainda, com quem
mentas das classes dominantes". tem uma fundamentação teórica a propósito da
Paulo Freire alertou a todos e a todas do experiência, isto é excelente. A prática refletida é a
grupo que só superaremos a postura "de querer práxis, e é a que indica o caminho certo a ser bus-
libertar o dominando", quando entendemos que cado‰.
"não estamos sozinhos no mundo" e que o proces- „Eu me comprometo, porque eu acho isso
so de libertação não é obra de uma só pessoa ou válido, a dar o meu assessoramento a vocês. Agora,
grupo, mas "de todos nós". Para isso, seria preciso o que é preciso é ÂfazerÊ. Assim, a gente vai tendo
"saber ler a nossa vida", isto é, procurar agir e refle- a sensação agradável de estar descobrindo as coisas
tir sobre nossas ações individuais e sobre as ações com o povo. Então, hoje, eu tenho a impressão de
sociais. A esse ato Paulo Freire chamava de "unir que não caberia uma palestra sobre um ÂMétodoÊ
teoria e prática", pois somente refletindo sobre de realizar a educação popular, não é para isso que
essas ações podemos dar validade a elas, nos reco- eu vim aqui. Eu tenho a impressão de que eu
nhecer nelas e, então, agirmos nos reconhecendo poderia colocar a nós - e não a vocês, porque eu
como „sujeitos da história‰, asumindo-nos como coloco a mim também - alguns elementos, chame-
autores e não reféns da história do mundo. mos, até, de princípios, que são válidos, não ape-
Paulo Freire chamou a atenção para o fato nas para quem está metido com alfabetização, mas
de que "os problemas sempre virão e serão solucio- para quem estiver participando de qualquer tipo
nados ou não, dependendo de nosso entendimen- de pastoral [ ou enfrentando as relações entre
to e de nossas ações", mas que o importante seria movimento e mudança]. Não importa se está
compreender que, "para lutar pela libertação ou fazendo alfabetização de adultos ou se está traba-
pela autonomia", para desenvolver nossa capacida- lhando na pastoral operária, na área da saúde ou
de autoria e autodeterminação, é preciso que qualquer outra que seja. Os princípios são válidos,
aprendamos, entre tantas outras virtudes, a de
"vivermos pacientemente impacientes".
No encontro com Paulo Freire, o debate foi
em torno das posições apresentadas pelos partici-
pantes e de uma discussão reflexiva orientada pelo
educador entre estas posições práticas e suas rela-
ções com a teoria.
Paulo Freire: „Em primeiro lugar, o moço
ali tem razão, quando afirmou que não se pode
ficar só na teoria, isso seria fazer teoricismo. O que
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também, por exemplo, para quem é médico e tra- conhece o que considera ou é mesmo verdade ou
balha com o povão‰. ciência‰.
„Isso tem uma implicação, no campo da
Paulo Freire então explanou sobre cinco Teologia, que eu acho muito importante, mas não
princípios - que considerava fundamentais - aos vamos discutir isso hoje. Eu gosto de falar dessas
educadores e às educadoras: saber ouvir; desmon- coisas, também porque, no fundo, eu sou um teó-
tar a visão mágica; aprender/estar com o outro; logo, porque sou um sujeito desperto, um homem
assumir a ingenuidade dos educandos(as) e viver em busca da preservação da sua fé, e, é inviável
pacientemente impaciente. procurar preservar a fé, sem fazer teologia, quer
dizer, sem se religar, sem ter um papo com Deus
[seria como dizer Âsem se implicarÊ]. A minha van-
Primeiro princípio: Saber ouvir
tagem é que eu nunca fiz um curso de teologia sis-
temática, aí, então, eu posso cometer heresias
Paulo Freire: „o primeiro princípio que eu
maravilhosas‰.
acho que seria interessante salientar é o de que,
como educadores/educadoras, devemos estar
muito convencidos de uma coisa que é óbvia: nin- A principal implicação de reco-
guém está só no mundo. Dá até para dizer: ÂMas, nhecer que ninguém está só é a de
Paulo, como é que você foi afirmar um negócio saber ouvir
tão besta desses?Ê Claro que todo mundo aqui está
sabendo que ninguém está só, mas vamos ver que „A primeira implicação profunda e rigoro-
implicações a gente tira dessa constatação, uma sa que surge quando eu encaro que não estou só,
vez que é mesmo uma constatação, que ninguém é exatamente o direito e o dever que eu tenho de
precisa pesquisar para, então, revelar isso‰. respeitar em ti o direito de você também Âdizer a
„Agora, o que é fundamental, portanto, sua palavraÊ. Isso significa dizer, então, que eu pre-
não é fazer a constatação. Fazer a constatação é ciso, também, saber ouvir. Na medida, porém, em
muito fácil. Basta estar aqui, estar vivo. O que é que eu parto do reconhecimento do teu direito de
importante é ÂencarnarÊ essa constatação, o que Âdizer a sua palavraÊ, quando eu te falo porque te
traz um bando de conseqüências, um bando de ouvi, eu faço mais do que falar Âa tiÊ, eu falo Âcon-
imp1icações‰. tigoÊ. Eu não sei se estou complicando, mas,
„A primeira delas, sobretudo no campo da vejam bem, eu não estou fazendo um jogo de
Educação, que é o nosso campo, é a de encarar palavras, estou usando palavras. Eu usei a prepo-
que ninguém está só e que os seres sição ÂaÊ, falar ÂaÊ ti, mas disse que
humanos estão ÂnoÊ mundo ÂcomÊ o Âfalar a tiÊ só se converte no Âfalar
outros seres. Estar ÂcomÊ os outros contigoÊ se eu te escuto. Vejam
significa respeitar nos outros o direi- como, no Brasil, está cheio de
to de Âdizer a sua palavraÊ. Aí já gente falando ÂpraÊ gente, mas não
começa a embananar para quem tem ÂcomÊ a gente. Faz mais de 480
uma posição nada humilde, uma anos que o povão brasileiro leva
posição de quem pensa que conhece porrete!‰
a verdade toda e, portanto, tem que „Então, vejam bem, o que
meter na cabeça de quem não a isso tem a ver com o trabalho do
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saúde, de saúde, de discussão do evangelho, de „Esta é uma realidade que existe. Eu não sei
religiosidade popular etc... Se eu me convenci como é que os jovens de esquerda não perceberam
desse falar ÂcomÊ, desse escutar, meu trabalho parte esse treco ainda. Então, não é possível chegar a uma
sempre das condições concretas em que o povo região como essa onde estamos hoje e fazer um dis-
está. O meu trabalho parte sempre dos níveis e das curso sobre a luta de classes. Não dá, mas não dá
maneiras como o outro entende a realidade e mesmo! É absoluta inconsciência teórica e científi-
nunca da maneira como eu a entendo. Está claro ca. É ignorância da ciência fazer um treco desses. É
assim?‰ claro que um dia vai se chegar a abordar o tema das
classes sociais, mas é impossível, enquanto não se
desmontar a visão mágica, isto é, a compreensão
Segundo princípio:
mágica da realidade. Porque, vejam bem, se houves-
Desmontar visão mágica se a possibilidade de uma participação ativa, de
uma prática política imediata, essa visão se acaba-
Paulo Freire: „um outro princípio eu regis- ria‰.
traria pra vocês refletirem. Vou dar um exemplo „É uma violência você querer esquecer que a
bem concreto. Quando eu tinha 7 anos de idade, população ainda não tem a possibilidade de um
eu já não acreditava que a miséria era punição de engajamento imediato. O que aconteceria é que
Deus para aqueles ou aquelas que tinham cometi- você falaria ÂàÊ comunidade e não ÂcomÊ a comuni-
do pecado. Então, vocês hão de convir comigo dade. Você faria um discurso brabo danado. E o
que já faz muito tempo que eu não acredito nisso, que é que você faria com esse discurso? Criaria mais
mas vamos admitir que eu chegue para trabalhar medo. Meteria mais medo na cabeça da população.
numa certa área, cujo nível de repressão e opres- Quero dizer que aquilo que a gente tem que fazer
são, de espoliação do povo é tal que, por necessi- é partir exatamente do nível em que essa massa está.
dade, inclusive de sobrevivência coletiva, essa Diante de um caso como esse, há duas possibilida-
população se afoga em toda uma Âvisão alienadaÊ des: a primeira, é a gente se acomodar ao nível da
do mundo. Nessa visão, Deus é o responsável por compreensão que a população tem e a gente passa
aquela miséria e não o sistema político-econômi- a dizer que, na verdade, é Deus mesmo que quer
co que aí está. Nesse nível de consciência, de per- dizer isso (essa é a primeira possibilidade de errar);
cepção da realidade, é preciso, às vezes, acreditar a segunda possibilidade de errar é arrebentar com
que é Deus mesmo, porque sendo Deus, o proble- Deus, é dizer que o culpado é o imperialismo.
ma passa a ter uma causa superior. É melhor acre- Vejam a falta de senso desse pessoal. Porque, no
ditar que é Deus porque, se não, se tem a necessi- fundo, isso é falta de compreensão do fenômeno
dade de brigar. É melhor acreditar que é Deus do humano, da espoliação e das suas raízes. É engra-
que sentir medo de morrer‰. çado: fala-se tanto em dialética e não se é dialéti-
co (dialética é o processo de conhecimento pelo
qual se acerta o caminho certo por meio de um
processo de reflexão em cima da realidade ou prá-
tica)‰ .
„Vamos ver o que acontece na cabeça das
pessoas se Deus é o responsável e Deus é um cabo-
clo danado de forte, o Criador desse treco todi-
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nho. O que é que não pode gerar na cabeça de um - Ah, porque os nossos eram camponeses.
cara desses se a gente chega e diz que não é Deus? Aí um deles disse:
A gente tem que brigar contra uma situação feita - O meu avô era camponês, o meu pai era
por um Ser tão poderoso como este e, ao mesmo camponês, eu sou camponês, meu filho é campo-
tempo, tão justo. Essa ambigüidade que está aí sig- nês e meu neto vai ser camponês!
nifica pecar. Então, a gente ainda mete mais sen- Temos aí uma concepção „fatalista‰ da his-
timento de culpa na cabeça da massa popular‰. tória, então podemos questionar e questionei:
„Se Deus é o culpado, o que a gente tem - O que é ser camponês?
que fazer num caso como este é aceitar. Eu me - Ah, camponês é não ter nada, é ser explo-
lembro, por exemplo - antes do Golpe de Estado, rado.
quando eu trabalhava no Nordeste - de um bate- - Mas o que é que explica isso tudo?
papo que eu tive com um grupo de camponeses - Ah, é Deus! É Deus que quis que o senhor
em que a coisa foi essa: dentro de poucos minutos tivesse e nóis não.
os camponeses se calaram e houve um silêncio - Eu concordo, Deus é um cara bacana! É
muito grande e, em certo momento, um deles um sujeito poderoso. Agora, eu queria fazer uma
disse‰: pergunta: quem aqui é pai?
- O senhor me desculpe, mas o senhor é que devia Todo mundo era. Olhei assim pra um e
falar e não nóis. disse:
- Por que? -eu disse. - Você, quantos filhos tem?
- Porque o senhor é que sabe e nóis não sabe - res- Ele respondeu:
pondeu. - Tenho seis.
- Ok, eu aceito que eu sei e que vocês não sabem. - Vem cá, você era capaz de botar 5 filhos
Mas por que é que eu sei e vocês não sabem? aqui no trabalho forçado e mandar 1 para Recife,
Vejam: eu aceitei a posição deles em lugar de me tendo tudo lá? Comida, local para morar e estu-
sobrepor à posição deles. Eu aceitei a posição dar e poder ser doutor? E os outros 5, aqui, mor-
deles, mas, ao mesmo tempo, indaguei sobre ela, rendo no porrete, no sol?
sobre a posição deles. Eles voltaram ao papo e aí - Eu não faria isso não.
me respondeu um camponês: - Então você acha que Deus, que é podero-
- O senhor sabe porque o senhor foi à esco- so e que é Pai, ia tirar essa oportunidade de vocês?
la e nóis não fomos. Será que pode?
- Eu aceito, eu fui à escola e vocês não Aí houve um silêncio e um deles disse:
foram. Mas por que, que eu fui à escola e vocês - É não, não é Deus nada, é o patrão.
não foram? Quer dizer, seria uma idiotice minha se eu
- Ah, o senhor foi porque os seus pais pude- dissesse que era o patrão imperialista „yanque‰ e
ram e os nossos, não! o cabra iria dizer:
- Muito bem, eu concordo, mas porque que - O que é, onde mora esse home?!
meus pais puderam e os seus não puderam? „Olhem, a transformação social se faz com
- Ah, o senhor pôde porque seu pai tinha ciência, com consciência, com bom senso, com
trabalho, tinha um emprego e os nossos, não. humildade, com criatividade e com coragem.
- Eu aceito, mas por que, que os meus ti- Como se pode ver, é trabalhoso, não é? Não se faz
nham e os de vocês, não? isso na marra, no peito. ÂO voluntarismo nunca
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formas de Ânão estar comÊ as classes populares: o tar uma verdade histórica, que é o meu limite his-
elitismo e o basismo‰. tórico, ou, então, eu me suicido! Eu não vou me
„O entendimento equivocado do conheci- suicidar porque é dentro dessa contradição que eu
mento intelectual como superior é o elitismo, me forjo como um novo tipo de intelectual.
mesmo que, em termos teóricos, o intelectual Então, eu entendo esse treco. E afirmo que eu
diga: Âa gente precisa é viver o conhecimentoÊ.A tenho uma contribuição a dar à massa popular.
gente precisa é viver o que se diz, essa é a minha Nós temos uma contribuição a dar, mesmo não
ênfase. Todo mundo aqui sabe que não está só no vivendo e morrendo no meio do povo‰!
mundo. Ok, mas é preciso viver a conseqüência „Agora, para mim, o que é fundamental é
disso, sobretudo se a opção é libertadora. O que é o seguinte: é que essa contribuição só é válida na
preciso é encarnar isso, sobretudo quando a gente medida em que eu sou capaz de partir do nível em
se aproxima da massa popular. Muitos de nós vão que a massa está e, portanto, de aprender com ela.
às massas populares arrogantemente, elitistamen- Se não for assim, então a minha contribuição não
te, para ÂsalvarÊ a massa inculta, incompetente, vale nada ou, pelo menos, vale muito pouco.
incapaz... Isso é um absurdo! Porque, inclusive, Então, esse é outro princípio independente de tec-
não é científico. Há uma sabedoria que se consti- nicazinha de ba-be-bi-bo-bu. Quer dizer, é esse
tui na massa popular pela prática‰. Âestar comÊ e não simplesmente ÂparaÊ e, jamais,
„Há, também, um outro equívoco, que é o ÂsobreÊ o outro. É isso o que caracteriza uma pos-
que também se chama de basismo. ÂOu vocês tura realmente libertadora. Bacana era se a gente
estão dentro da base o dia todo, a noite toda, tivesse tempo de ir mostrando essas afirmações à
moram lá, morrem lá ou não podem dar palpite luz da experiência para perceber o que signifi-
nunca!Ê Isso é conversa fiada! Esse treco também cam‰.
não está certo, não. Esse negócio de superestimar Paulo Meksenas e Nilda Lopes Penteado
a massa popular é um elitismo às avessas. Não há retomam novamente a reflexão. A reflexão é um
porque fazer isso, não senhor! Eu tenho a mão estabelecer contato com (estar com).Nesse caso,
fina. A sociedade burguesa em que eu me consti- com os leitores e também recupero, em parte suas
tuí como intelectual não poderia ter-me feito dife- questões:
rente. Eu devo ser humilde o suficiente para acei- - Revendo os questionamentos anteriores e
nossa ação social, há falhas? Por quê?
- Muitas vezes a gente fala que o
povo lá do bairro é ignorante, não sabe
das coisas. Como fica, então, essa afirma-
ção: ninguém sabe tudo e ninguém igno-
ra tudo?
- O que é ser culto?
- Por que as camadas populares conside-
ram que as pessoas que têm diploma sabem tudo?
Quais as conseqüências dessa atitude para as pes-
soas e para a sociedade?
- Como devem ser valorizadas as pessoas?
O que podemos fazer a partir dessa reflexão?
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Quarto princípio: assumir a inge- Quem sou eu? Então esse é outro treco que eu
considero absolutamente fundamental. Na medi-
nuidade dos educandos
da em que você assume a posição ingênua do edu-
cando, você supera essa posição ÂcomÊ ele / ÂcomÊ
Paulo Freire: „outro princípio que eu acho
ela e não ÂsobreÊ ele / ÂsobreÊela.
fundamental é a necessidade que a gente tem de
„Qual é a nossa opção? Desenvolver a cora-
assumir a ingenuidade do educando, seja ele ou
gem de correr risco ou desenvolver a marca do
ela universitário ou popular.Eu estou cansado de
autoritarismo? Talvez seja necessário começar a
me defrontar nas universidades onde eu trabalho
aprender tudo de novo, contar com outras expe-
com perguntas que às vezes eu não enetendo.Não
riências, porque se é fundamental assumir a
entendo a pergunta porque o cara que a está fazen-
ingenuidade do educando, é absolutamente indis-
do não sabe fazê-la.Agora vocês imaginem o
pensável assumir criticidade do educando diante
seguinte: que pedagogo seria eu se, ao ouvir uma
da nossa ingenuidade de educador. Esse é o outro
pergunta mal formulada, desorganizada e sem sen-
lado da medalha para o educador que se coloca
tido, respondesse com ironia? Que direito teria eu
como auto-suficiente, onde somente o educando
em dizer que sou um educador que penso em
nunca seria auto-suficiente. No fundo, esse edu-
liberdade e respeito se ironizo uma questão do
cador é que é ingênuo, porque a ingenuidade se
outro?‰
caracteriza pela alienação de sí mesmo ao outro,
„Não podemos fazer isso de maneira nen-
ou, ainda, pela transferência de sua ingenuidade
huma. ¤s vezes me sinto numa situação meio difí-
para outro: Âeu não sou ingênuo, o Patrício é que
cil porque um / uma estudante coloca a questão e
é ingênuoÊ. Eu transfiro para ele a minha
eu realmente não estou entendendo. Quando isso
ingenuidade. Acontece que eu sou crítico na
se dá nos Estados Unidos da América, eu até
medida em que reconheço que eu também sou
tenho a chance de dizer: Âeu não entendo bem o
ingênuo, porque não há nenhuma absolutização
inglês, poderia repetir?ÊAqui, eu não posso dizer:
da criticidade. O educador que não faz essa
Âolha eu não entendo bem o portuguêsÊ. Então eu
dinâmica, esse jogo de contrários, pra mim não
digo pro / pra estudante: Âolha eu vou repetir a
trabalha pela e para a libertação ( o desenvolvi-
sua pergunta e você presta atenção pra ver se eu
mento da autonomia)‰.
não distorço o espírito da sua questão; se eu dis-
torcer você me dizÊ. Então eu repito a pergunta
que ele / ela me fez, reformulando do modo mais A Educação é um ato político
claro a maneira como entendi. Ai o / a estudante „Para terminar essa série de conside
pode me dizer: Âera isso mesmo o que eu queria rações, eu diria a vocês o seguinte: tudo isso é
perguntar; só que eu não tava era sabendoÊ. Eu política, porque no fundo, a educação é um ato
digo: ÂAh! Então ótimo!Ê Mas se eu digo: Â Não, o político! Educação é tanto um ato político quan-
senhor / senhora é um idiotaÊ, com que autori- to um ato político-educativo. Não é possível negar
dade eu poderia dizer isso ao / a jovem estu- de um lado a politicidade da educação e de outro
dante? Que sabedoria teria eu pra dizer isso? a educabilidade do ato político.É nesse sentido
PS.: Registramos o agradecimento à APSP e ao Professor Eymard Mourão Vasconcelos, pelo repasse do material de base para esta organiza-
ção, ao Professor Nilton Bueno Fischer por incentivar essa divulgação e disseminação e por nos colocar em contato com a viúva do edu-
cador, a Dra. Ana Maria Araújo Freire (Nita), a quem agradecemos de maneira especial pela leitura e por seus comentários, e, principal-
mente, pelo acolhimento a nossa iniciativa de novo diálogo com o professor e pensador Paulo Freire.
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que todo partido é um educador sempre, mas Vieira, durante a guerra dos holandeses. Eu comecei
depende que educação é essa que esse partido faz. por aí porque não tive tempo de ir mais fundo. Eu
Depende de com quem ele está. A favor de quê está passei uns 10 minutos lendo um trechino de um
o educador ou a educadora? Então, se a educação é sermão maravilhoso em que o Padre Vieira falava ao
sempre um ato político, a questão fundamental que vice-rei do Brasil, Marquês de Montalvan, no
se coloca para mim é a seguinte: ÂQual é a nossa Hospital da Misericórdia na Bahia‰.
opção?ÊO educador, a educadora, somos todos „Ele dizia uma coisa muito bonita: em
políticos. O que é importante , entretanto, é saber a nenhum milagre Cristo gastou mais tempo, nem
favor de quem está a política que nós fazemos‰. mais trabalho teve do que em curar o endemoniado
„Clareada a nossa opção, a gente vai ter mudo. Esta tem sido a grande enfermidade deste
que ser coerente com ela: aí se fecha o cerco, país: o silêncio. Um silêncio a que tem sido, sempre,
porque não adianta que eu passe uma noite fazen- submetido o povo. O que Vieira não disse , inclu-
do esse curso aqui e, depois, vá para a área da sive porque ele não faria essa análise de classe tão
favela salvar os favelados com a minha ciência, em cedo, é que, sobretudo nesse país, quem tem ficado
lugar de aprender com os favelados a ciência deles. muda é a classe popular. Não quero dizer ficar
Na verdade, meus amigos, não é o discurso que muda no sentindo de não fazer nada, mas não
diz se a prática é válida, é a prática que diz se o terem a sua voz reinventando as coisas. Elas têm
discurso é válido ou não é. Quem ajuíza é a práti- feito rebelião constantemente, as lutas populares
ca. Sempre! Não o discurso. Não adianta uma pro- nesse país são coisas maravilhosas! Só que a histori-
posta revolucionária se no dia seguinte minha ografia oficial, em primeiro lugar, esconde as lutas
prática é de manutenção de privilégios. Isso eu populares; em segundo lugar, quando conta, conta
acho que é fundamental‰. distorcidamente e, em terceiro lugar, o poder
autoritário faz tudo pra gente esquecer. Essa é uma
marca de autoritarismo do nosso país‰.
Correr risco e reinventar as coisas
„Há uma série de outras coisas, mas eu
diria a vocês que o fundamental está na coerência Comece a reaprender de novo
com a opção de correr risco. Mudar é como uma „Se você pretende pra semana começar
aventura permanente ou não é ato criador. Não um trabalho com grupos populares, esqueça-se de
há criação sem risco. O que a gente tem que fazer tudo o que já lhe ensinaram, dispa-se, fique nú de
é reinventar as coisas. novo e comece a se vestir com as massas popu-
„Temos que combater em todos e todas nós lares. Esqueça-se da falsa sabedoria e comece a
uma marca trágica que nós carregamos, os reaprender de novo. É aí que vocês vão descobrir
brasileiros e brasileira, que é a do autoritarismo que a validade daquilo que vocês sabem, na medida
marcou os primórdios do nosso nascimento. O em que vocês trestam o que vocês sabem com o
Brasil foi inventado autoritariamente e é autoritari- que o povo está sabendo. Eu acho que isso é bási-
amente que ele continua. Não é de se espantar de co. Eu nunca escrevi nada que não tivesse feito.
maneira nenhuma que a abertura contra a repressão Nem carta eu posso fazer se eu não tiver algo
ou a opressão se faça autoritariamente. Eu fiz um importante sobre o que compartilhar‰ .
discurso em Goiânia, no Congresso Brasileiro de „Essa é uma das minhas boas limitações.
Professores, em que eu li uma série de textos Meus livros são sempre relatórios. São relatórios
começando por um sermão fantástico do Padre teóricos, mas feitos a partir da prática. Isso significa
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que aquele que pretende trabalhar com esses conversacom educador, retomando a relação entre
relatórios que são os meus livros, deve, sobretudo, movimento e mudança. Exatamente ao final da con-
estar disposto a recriar o que eu fiz, a refazer. Não versação, Feire formulou, como mais uma advertên-
copiar, mas reinventar as coisas‰. cia, que seria necessário, viver pacientemente a
„Assim que cheguei da Europa, no ano impaciência: „Uma coisa que eu sempre falo e que
passado, para morar de novo no país, eu trabalhei poria agora como um dos princípios que eu esque-
um semestre com um grupo de jovens que realizava ci‰. A advertência é recuperada como princípio, uma
uma experiência de educação numa favela.Durante vez que configura um desafio político relativo à
a construção de um barraco, eles realizaram uma própria existência: uma ética da afirmação da vida,
experiência de alfabetização muito interessante, como aparece na pedagogia de Paulo Freire.
depois sumiram. Mas tarde, eles apareceram de Paulo Freire: „a impaciência significa a rup-
novo e me disseram: ÂPaulo a coisa mais formidáv- tura com a paciência. Quando você rompe com um
el que a gente tem pra dizer é que por mais que a desses dois pólos, você rompe em favor de um deles.
gente tivesse lido você e conversado com você, a Esse é o princípio para aprender a trabalhar ÂcomÊ o
gente cometeu um erro tremendo. A gente tinha povo e para construir ÂcomÊ o povo o seu direito à
botado na cabeça da gente que o povo queria ser liberdade e à afirmação da vida com dignidade‰.
alfabetizado. Como a gente sugeriu ao povo que a „O educador e a educadora, no exercício da
alfabetização era importante, o povo passou 6 meses opção a que têm o direito de fazer, têm que viver
com a gente falando daquilo por causa da gente. pacientemente impaciente. Todo agente de lutas tem
depois que o povo ganhou intimidade com a gente de viver a relação entre impaciência e paciência. Não
eles falaram, dando risada: Ânóis nunca quis isso!Ê ‰. é possível ser só impaciente como muita gente é.
„Vocês vejam, olha era uma equipe bacana Querer fazer revolução daqui à quinta-feira. E meter
que tinha lido tudo meu, que tinha discutido comi- na cabeça da gente um desenho da realidade que
go 1 semestre. Eu também fui enrolado pela equipe. não existe, como esse por exemplo: ÂAs massas já
Essa equipe estava totalmente convencida do que o têm o poder no Brasil, só falta o governoÊ. Isso só
povo queria. na verdade, essa equipe tinha transferi- existe na cabeça de alguém, não na realidade
do ao povo a necessidade de alfabetização. Isso é econômica, política e social do Brasil. Se você
outra coisa importante. Num país que há 480 anos rompe em favor da paciência, você cai refém das
o povão leva porrete, é a coisa mais fácil do mundo vozes e dos poderes dominantes, não impondo sua
você chegar com pinta de intelectual e terminar palavra e seu poder de reinvenção.
insinuando / sugerindo que há uma necessidade Para Freire, viver a relação paciência e
que o povo deve atender a ela. O povo vai dizer: ÂÉ impaciência é não perder a crítica, assumir a
senhor, é o que eu queroÊ. Essa é uma advertência ingenuidade em si e do outro, recriar, reaprender de
que eu faço a vocês‰. novo e, afinal, fazer . Assim é que se teria o poder
de fazer com criticidade aquilo que se quer e que
precisa ser feito.
Quinto princípio:
Viver pacientemente impaciente Fechamento
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tante formulação para a qual deve estar atenta a ges- saúde, nos termos de Paulo Freire, seria a oferta de
tão do Sistema Ðnico de Saúde (SUS) e a partici- condições reais de participação e exercício do cont-
pação dos usuários (pacientes nas formulações rela- role social, segundo uma pedagogia do desenvolvi-
tivas ao cuidado e ao tratamento em saúde). O prin- mento da autonomia, co compartilhamento dos
cípio antropológico, político e do direito, tanto vários saberes e do esquecimento da Verdade, ciên-
quanto pedagógico, de que os pacientes (os cia para poder ouvir e estar com. Somente, então,
usuários, melhor dito) estejam, sempre, de fato, buscar naquilo que se aprendeu o que se pode ofer-
impacientes é para que o Sistema de Saúde a que tar, aprender em ato de ensinar e ensinar em ato de
têm acesso seja aquele que possa estar conosco em aprender. A conquisa desse direito somente se dará
nossas lutas pelo viver. Paulo Freire entendia que os se formos, na condição de pacientes, impacientes
trabalhadores e trabalhadoras de saúde deveriam ser com a falta de comunicação, com a conservacão de
desafiados a contribuir ativamente com os usuários preconceitos e exclusões, com a ausência de acolhida
de suas ações e serviços na lutapelo direito à saúde. aos nossos jeitos de ser e de estar e de demandar
Não entendendo tecnicamente o ba-be-bi-bo-bu das ajuda, impacienetes com um mundo e um sistema
ciências do cuidado e do tratamento, mas usando o de saúde que não corresponde à correlação entre
conhecimento técnico para a construção da autono- movimento e mudança para a reinvenção das ver-
mia dos usuários, de seu direito de apropriação do dades, das ciências, dos sensos comuns e das práticas.
sistema de saúde vigente no país e disputando por O SUS é o território onde estabelecemos
seu direito de satisfação com o mesmo. nossa luta pela saúde, sabendo que a própria luta é
A Lei Orgânica da Saúde assegurou, entre componente da conquista de mais saúde em nossa
seus princípios (art. 7À, Lei Federal nÀ 8.080/1990), experiência de viver (CECCIM, 2006), por isso a
a integralidade da atenção à saúde; a preservação da advertência de Paulo Freire é também nosso alívio e
autonomia das pessoas na defesa de sua integridade alegria (expressão de Emerson Merhy): os problemas
física e moral; o direito às pessoas sob assistência à sempre virão e serão solucionados ou não, depen-
informação sobre sua saúde; a divulgação de infor- dendo de nosso entendimento e de nossas ações, o
mações quanto ao potencial dos serviços de saúde e grande aprendizado , entretanto, sobrevem justa-
sua utilização pelo usuário; a participação popular mente de vivermos pacientimente impacientes.
eo exercício do controle da sociedade sobre as ações Registro o agradecimento à Associação
do Estado. Paulista de Saúde Pública (APSP) pelo repasse da
Não consta, entretanto, entre os princípios primeira publicação para ser aqui reorganizada; ao
do SUS, o direito à educação popular em saúde e o Professor Doutor José Ivo dos Santos Pedrosa pelo
dever de permeabilidade desse sistema ao "povo", cuidado com a releitura dessa organização; ao
segundo a eqüidade exigida pelas diversidades soci- Professor Doutor Nilton Bueno Fischer por incen-
ais. Para um sistema de saúde, pautado pela integra- tivar esta divulgação e disseminação, acrescer
lidade, precisaríamos, então, do cumprimento de opiniões e colocar-me em contato com a Professora
uma ação de educação popular, onde esse „direito Doutora Ana Maria Araújo Freire (Nita), viúva do
de todos e dever do Estado‰ se elevasse à condição educador, a quem agradeço de maneira muito espe-
de disponibilidade de trabalhadores capazes de estar cial a atenta leitura e as ressalvas para a maior prox-
com os usuários e a condição de aceitação dos imidade possível desse corpo textual com o acúmu-
usuários como capazes de se tornarem pacientes lo da produção de sentindos pedagógicos expressos
impacientes. Um direito à educação popular em por Paulo Freire em sua carreira. Também ao
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Professor Doutor Paulo Meksenas com quem tive a Este pequeno texto recriando um encontro e
satisfação de compartilhar o produto final desta falas de Paulo com uma comunidade popular de São
atual comunicação e ainda o estímulo à recirculação Paulo e com outros/as educadores/as, prova a minha
de idéias para as reflexões da educação popular em afirmativa: a possibilidade das contribuições de Paulo
saúde.Agradeço à Nita Freire principalmente pelo servirem para assegurar melhores condições de vida
acolhimento à nossa iniciativa de novo diálogo com para o povo brasileiro, para as suas camadas popula-
o professor e pensador Paulo Freire. res. Os que se preocupam com a área de saúde, com
o cuidado com a vida que todos e todas merecem
Ricardo Burg Ceccim.Porto Alegre, 26 de encontram em Paulo comunicação com o seu fazer.
maio de 2005. Um de seus expert, sentindo isso, vivendo isso, enten-
dendo isso resolveu que deveria procurar em meu
Comentários e conclusão, por Ana marido, através de uma de suas virtudes, dialetica-
Maria Araújo Freire (Nita Freire) mente posta em sua teoria, como uma tática pedagó-
gica dar voz e vida às camadas populares: viverem a
Por se tratar de uma composição que se apro- paciência, impacientemente. Colocada em sua com-
xima o mais possível do que dizia Paulo - e diria, preensão de educação por sua coerência entre o seu
depois, explicitamente na sua Pedagogia da Espe- sentir e o seu dizer, os que se engajam nas ciências do
rança - e não uma reprodução textual dos anos 1980 cuidado e do tratamento da saúde do povo, política
- porque assim sendo não seria de meu direito legal e eticamente, evocam esta virtude colocando-a como
aprovar uma republicação e nem seria também de um direito dos pacientes dos serviços públicos de
minha alçada comentá-la - aceitei como esposa e saúde, o de tornarem-se impacientes.
colaboradora de Paulo Freire, a solicitação de Orgulho-me de que Paulo, como pensador e
Ricardo Burg Ceccim para fazer uma leitura desse educador político possa, mesmo com seus pequenos
texto recomposto por ele (autorizado por Paulo e aparentemente simples bate-papos incentivar
Meksenas) e tecer alguns comentários. quepensares e quefazeres para a política de saúde na
Realmente, sinto e constato como a obra e a qual a sua pedagogia do oprimido ensina aos douto-
práxis de Paulo vem, cada dia mais - e mais profun- res da saúde e aos que fazem a burocracia do campo
damente -, contribuindo para aclarar temas e ques- sanitário que todos nós homens e mulheres devemos
tões em várias áreas do conhecimento científico e, ser Seres Mais.Orgulho-me que estes e aqueles estão
assim, influenciar e incentivar as transformações aliando-se a Paulo na busca de que os Seres Menos,
sociais necessárias. Valorizando o povo, o senso sem direito a comer, a estudar, a morar e a ter saúde
comum e sua prática - tanto quanto o conhecimen- ,devam e possam sonhar com a possibilidade de
to produzido por ele. Paulo deles partiu para mos- tornarem-se, conscientemente, pacientes impacientes.
trar as possibilidades de nos construirmos, em
comunhão, com tolerância e espírito de justiça, São Paulo, 1À de julho de 2005.
cidadãos solidários da sociedade brasileira, que Ana Maria Araújo Freire (Nita)
assim abriria a possibilidade fazer-se verdadeiramen- Organizador: Ricardo Burg Ceccim, maio de 2005.
te democrática.
REFER¯NCIAS
CECCIM, Ricardo Burg. Saúde e doença: FREIRE, Paulo. Pedagogia da esper- manicomial: alegria e alívio como disposi-
uma reflexão para a educação da saúde. ança.12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. tivos analisadores. 2004.18p.Disponível
In: MEYER, Dagmar E. Estermann (Org.). em:
Saúde e sexualidade na escola. 5. ed. Porto MERHY, Emerson Elias. Os CAPS e seus <http://paginas.terra.br/saude/merhy>.
Alegre: Mediação, 2006. p. 37-50. trabalhadores no olho do furacão anti-
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A
Educação e Saúde é, do ponto de vista do-
minante e tradicional, uma área de saber um ramo ou método da medicina preventiva.
técnico, ou seja, uma organização dos co- Em texto escrito no ano de 1990, afirma-
nhecimentos das ciências sociais e da saúde volta- mos (STOTZ, 1993, p. 14) que:
da para "instrumentalizar" o controle dos doentes
pelos serviços e a prevenção de doenças pelas pes- Embora nem todos possam concordar com essa afir-
soas. mação, parece caber razão ao autor quando observa
que a maioria dos educadores sanitários, em muitos
O aspecto principal dessa orientação reside
países, adota as bases filosóficas da medicina. Esse
na apropriação, pelos educadores profissionais e
domínio da medicina sobre a educação sanitária
técnicos em saúde do conhecimento técnico-cientí- expressa-se, segundo o mesmo autor, no conteúdo da
fico da biomedicina (ou medicina ocidental con- formação, posto que 'os problemas são definidos sob
temporânea) sobre os problemas de saúde que são, o ponto de vista médico e os diagnósticos proporcio-
a seguir, repassados como normas de conduta para nam o ponto de partida. As atividades de educação
as pessoas. sanitária são afins a esse padrão de problemas medi-
O modelo explicativo dos problemas de saú- camente definidos, que freqüentemente terminam
de vigente atualmente é o da multicausalidade do em programas e campanhas fragmentadas, focaliza-
processo de adoecer e morrer, mas as respostas das em um problema apenas.
encaminhadas assumem, em regra, o sentido da
causalidade linear. Assim, embora se saiba que as Vale dizer ainda que as bases filosóficas da
pessoas se tornam diabéticas em razão de proble- biomedicina compreendem, de acordo com o autor
mas que são tanto imunológicos, como emocionais citado, os seguintes princípios componentes:
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luções sociais que colocaram em questão o domí- lista. O que prevaleceu foi a biomedicina e a edu-
nio absoluto das leis do mercado capitalista. cação e saúde foi tributária dos pressupostos dessa
Uma corrente de esquerda surgiu no campo racionalidade médica.
da Saúde, emergindo com as primeiras manifesta-
ções revolucionárias da classe operária: Guérin, na Os sinais individuais e coletivos
França, Neumann e Virschow, na Alemanha, foram do sofrimento
os pensadores sociais da saúde, cujos nomes apare-
cem vinculados às jornadas revolucionárias que atin- Do ponto de vista das ciências da saúde
giram seu ponto culminante em 1848. Quase um anatomia, fisiopatologia, bacteriologia as definições
século depois, esse pensamento foi retomado por mais importantes são, sem dúvida, os de normal e
Henry Sigerist, durante as décadas de 30 e 40, nos de patológico. Para Canguilhem (1978), tais defini-
Estados Unidos, e por Juan César Garcia, durante as ções são de cunho operacional e não conceitual. A
décadas de 60 e de 70, na América Latina. Esta cor- distinção entre normal e patológico é o resultado da
rente de pensamento da esquerda socialista na área afirmação do saber científico sobre a experiência da
da Saúde tornou-se conhecida como medicina doença, da ciência sobre o senso comum, afirmação
social. Para esses pensadores, os fenômenos do adoe- possível graças a conceitos genéricos como os de
cimento e da mortalidade sempre foram biológicos meio interno, de homeostase e de metabolismo, vin-
e sociais e as intervenções para enfrentá-los deviam culados ao modo de funcionamento do organismo.
contemplar estes determinantes. O organismo, por sua vez, foi visto como um siste-
A medicina social foi, contudo, uma corrente ma de sistemas com funções próprias, como o siste-
de oposição minoritária dentro da sociedade capita- ma nervoso, o digestivo, etc., e disciplinas científicas
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foram se constituindo para analisar cada aspecto do tais representações é o de poder físico e mental, e de
funcionamento dos sistemas específicos, como a neu- dignidade ou, inversamente, de perda de poder e de
rologia, a gastroenterologia, etc. (CAMARGO JR, controle sobre si próprios.
1997).
A Educação e Saúde, na medida em que é, No texto, procura-se chamar atenção para o
como vimos, um saber técnico, incorpora em seu fato de que a doença, fenômeno intimamente ligado
arcabouço outros saberes disciplinares, contribuições à vida privada dos indivíduos, raramente é um caso
de outras ciências. Assim, veja-se a seguinte análise isolado, posto que processos semelhantes verificam-se
(TEIXEIRA, 1985) da contribuição da sociologia fun- em outras pessoas e são expressão de dificuldades
cionalista de Talcott Parsons para o controle dos sociais em suas vidas.
doentes e a prevenção das doenças: O problema é que as relações entre os proble-
mas percebidos no nível individual e os de sua rela-
Como elemento central no processo de definição da ção mais ampla e determinação ou condicionamento
doença e, por conseqüência, das formas de consumo de social não são facilmente percebidas e compreendidas
saúde, está a delimitação da normalidade, sendo espe- pelos indivíduos:
rado que os indivíduos desviantes adotem certas con-
dutas destinadas a restaurar o padrão normal. O doen- A própria percepção da doença é influenciada pela
te é um "desviante" que precisa assumir o seu papel de posição social e pela cultura do grupo social de referên-
paciente e que, ao seguir a prescrição médica, pode
retomar a sua condição normal.
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cia dos indivíduos. Há sinais que são identificados até aquelas outras, orientadas para a prevenção de
como doenças, vistos como expressão desviante de uma comportamentos "de risco", a exemplo da gravidez
normalidade biológica; outros não. E mesmo quando precoce, o consumo de drogas legais (álcool, tabaco)
identificados enquanto doenças, os sinais nem sempre e ilegais (maconha, cocaína), a falta de higiene corpo-
são reconhecidos nos indivíduos doentes e tampouco
ral, o sedentarismo e a falta de exercício físico.
seu caráter coletivo é assumido.
As condições e as razões que levam as pessoas
Se, como afirma ainda Berlinguer, os sinais podem ser
tanto ocultados como distorcidos, fica mais difícil esta- a adotar estes comportamentos ou atitudes ficam à
belecer espontaneamente os possíveis nexos entre os margem das preocupações da maioria dos profissio-
distúrbios vivenciados e as condições sociais nas quais nais dos serviços e dos técnicos com responsabilidade
vivem os indivíduos (STOTZ, 1993). gerencial. São dimensões que estão "fora" do setor
Saúde. Aplica-se simplesmente a norma: você tem
Daí a importância de se entender as dificulda- isso, deve fazer aquilo. A solução consiste em seguir
des que as pessoas têm de andar sua própria vida, vin- a norma, no caso, consumir medicamentos, cumprir
culando, por meio da escuta e do diálogo, as expe- prescrições.
riências com as formas de enfrentar o adoecimento a O raciocínio vale igualmente para situações
hipertensão arterial, o diabetes, os transtornos men- epidêmicas, como podemos observar a partir da pri-
tais leves em regra decorrentes da desorganização da meira epidemia de dengue ocorrida na cidade do Rio
vida em razão de desemprego, insuficiência de renda, de Janeiro, em 1987: o problema é o vizinho descui-
violência social, perda de ou rupturas na relação com dado (geralmente uma pessoa pobre), porque não
pessoas queridas. Sim, porque há itinerários percorri- tampa os reservatórios de água para evitar a entrada e
dos pelas pessoas em busca de solução para os seus deposição dos ovos do mosquito Aedes aegypti. A
problemas e que ajudam a formular diagnósticos pré- falta de água corrente não entra neste raciocínio, bem
vios, a incorporar terapêuticas e a afirmar valores de como não se consideram os grandes criadouros do
vida saudável. mosquito, a saber, os terrenos baldios, as piscinas sem
tratamento, os cemitérios, os depósitos de automó-
O papel dos serviços de saúde veis e ferros-velhos abandonados.
Compensar, no nível individual, problemas de
A medicina institucionalizada nos serviços de caráter social eis o papel fundamental a que os servi-
saúde foi organizada em práticas especializadas, ços de saúde são chamados a desempenhar. Os servi-
orientadas para atuar normativamente sobre proble- ços de saúde são como Singer, Campos e Oliveira
mas de saúde. (1988) denominaram, serviços de controle social, cuja
A educação em saúde, assim denominada por- finalidade consiste em prevenir, suprimir ou manipu-
que, na preposição "em" afirma-se o vínculo com os lar as contradições geradas pelo desenvolvimento
serviços de saúde, foi destinada a desempenhar um capitalista no âmbito da vida social, contradições que
importante papel em termos de controle social dos aparecem sob a forma de "problemas" de saúde. O sis-
doentes e/ou das populações "de risco". O âmbito da tema de atenção médica funciona, na sociedade capi-
educação em saúde é relativamente amplo. Inclui talista, como uma forma de compensar, no nível indi-
desde técnicas destinadas a assegurar a adesão às tera- vidual, problemas ou condições sociais que apontam
pêuticas lidar com o abandono do tratamento, com para situações socialmente injustas do ponto de vista
a "negociação" da prescrição médica pelos pacientes da saúde. O que acarreta, objetivamente, a legitima-
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valor da saúde é formal e institucionalmente defini- mas cujo conteúdo é extraído da clínica médica
do como um direito social. No Brasil, contudo, e/ou da epidemiologia.
vivemos a contradição do direito à saúde ser um A educação sanitária preventiva lida com
direito social, definido em termos do princípio da "fatores de risco" comportamentais, ou seja, com a
solidariedade social que, como diz o artigo 196 da etiologia das doenças modernas. A eficácia da edu-
Constituição, exige políticas sociais e econômicas cação expressa-se em comportamentos específicos
que visem a reduzir o risco de doenças e outros como: deixar de fumar, aceitar vacinação, desenvol-
agravos à saúde, mas historicamente estas políticas ver práticas higiênicas, usar os serviços para preven-
têm o sentido inverso, enquanto o sistema organi- ção do câncer, realizar exames de vista periódicos.
zado para garantir este direito responde (precaria- O repasse de informação, normalmente por meio
mente, com baixa resolutividade) à doença no da consulta ou em grupos, de palestra seguida ou
plano individual. não de perguntas e respostas, é o procedimento típi-
co do preventivismo.
Enfoques de educação e saúde O preventivismo fundamentado na clínica
serve para justificar métodos de controle que, além
Nessa seção, vamos examinar os enfoques de desconhecer os pacientes como sujeitos, inferio-
educativos, lançando mão da tipologia proposta rizam-nos com a generalização do método da admi-
por Tones, um autor usado no texto escrito em nistração supervisionada de dosagem (DOT), oriun-
1990, citado acima (STOTZ, 1993). do dos tratamentos psiquiátricos. Os programas de
O enfoque educativo predominante nos ser- controle da tuberculose passaram a adotar este pro-
viços de saúde durante décadas, praticamente exclu- cedimento estrito e, com apoio das instituições
sivo, é o preventivo. Os pressupostos básicos desse públicas internacionais, começa a se generalizar. É
enfoque são, de um lado, o de que o comportamen- o que acontece quando se percebe que o financia-
to dos indivíduos está implicado na etiologia das mento das ações de controle da hipertensão arterial
doenças modernas (crônico-degenerativas), compor- se baseia no número de grupos que ouvem pales-
tamento visto como fator de risco (dieta, falta de tras, têm consultas agendadas e recebem medica-
exercício, fumo etc.) e, de outro, o de que os gastos mentos.
com assistência médica têm alta relação em termos Com a instituição do Programa Saúde da
de custo-benefício. Ou seja, os gastos produzem Família (PSF), em 1994, o preventivismo deixou de
pequenos benefícios porque os problemas de saúde ser exclusivo. O PSF, além da proposta de ampliar
são de responsabilidade dos indivíduos. a cobertura de serviços, trouxe a perspectiva de
Nesse enfoque, não obstante a crítica de que mudar o modelo de atenção à saúde no Brasil.
a medicina curativa teria fracassado em lidar com Pode-se dizer que, ao lado do preventivismo ainda
os problemas de saúde comunitários, a educação dominante, um novo enfoque começou a ser desen-
orienta-se segundo o "modelo médico". De fato, volvido, o chamado enfoque da escolha informada
dada a associação estabelecida entre padrões com- que enfatiza o lugar do indivíduo, sua privacidade
portamentais e padrões de doença, cabe, nessa pers- e dignidade, propondo uma ação com base no prin-
pectiva, estimular ou persuadir as pessoas a modifi- cípio da eleição informada sobre os riscos à saúde.
car esses padrões, substituindo-os por estilos de Nos sistemas municipais onde houve a preocupa-
vida mais saudáveis. Elabora-se uma série de progra- ção em humanizar o atendimento, o profissional de
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saber, tão válido, no âmbito do diálogo, quanto o Por último, vale chamar atenção para o fato de
saber técnico-cientifico. que a saúde no nível dos indivíduos, das populações e
Como ressalta ainda Vasconcelos (2003), ambiental tem características de complexidade em termos
apesar do conhecimento fragmentado e pouco ela- de estudo, de incerteza quanto às soluções propostas e de
borado que as pessoas comuns têm sobre a saúde, elevado impacto sobre a vida. Em decorrência dessas
a valorização do saber popular permite a "supera- características, a saúde não pode mais ser vista como uma
ção do grande fosso cultural existente entre os ser- área restrita ao domínio dos cientistas e técnicos. Esta
viços de saúde e o saber dito científico, de um comunidade precisa ampliar-se pela inclusão de novos
lado, e a dinâmica de adoecimento e cura do pares, de diversos setores da sociedade. Esta é a proposta
mundo popular, de outro". para uma "ciência pós-normal" que já não pode desconhe-
Do que se está a falar? Das incompreensões e cer "as questões mais amplas de natureza metodológica,
mal-entendidos, dos preconceitos, das opiniões social e ética suscitadas pela atividade [da ciência] e seus
divergentes que caracterizam as relações entre pro- produtos" (FUNTOWICZ; RAVETZ, 1997, p. 222). A
fissionais de saúde e usuários, entre técnicos e ampliação da comunidade de cientistas e técnicos na área
população. Na raiz deste processo está o "biologicis- da Saúde, em parte, inclui, mas precisa formalizar esta
mo, o autoritarismo do doutor, o desprezo pelas inclusão, pacientes e seus familiares, organizações dos
iniciativas do doente e seus familiares e da imposi- portadores de patologias, movimentos que militam na
ção de soluções técnicas restritas para problemas área da Saúde e representantes dos usuários nos conselhos
sociais globais que dominam na medicina atual". de saúde.
É importante entender também que o pró- Em conseqüência desses compromissos, os partici-
prio conhecimento técnico-científico é limitado, pantes do movimento da educação popular e saúde pre-
seja porque desconhece as causas de boa parte das cisam aprender a desenvolver formas compartilhadas de
doenças crônico-degenerativas, seja porque os trata- conhecimento entre técnicos, profissionais, pesquisadores
mentos propugnados não acarretam cura e ainda e população (CARVALHO; ACIOLI; STOTZ, 2001).
provocam, em muitos casos, efeitos adversos. Várias técnicas podem ser usadas a serviço desse processo.
Daí a relevância da problematização que, no enfo- Porém, mais importante do que o uso das técnicas é o
que da educação popular, implica a identificação de ques- processo em si, a possibilidade das pessoas manifestarem-
tões de modo inseparável dos meios ou recursos de que se como sujeitos e de sentirem-se capazes de ajudar a
tanto os serviços como grupos populares envolvidos dis- encontrar novas soluções ali onde muitas vezes as certe-
põem para tentar respondê-las. Na medida em que estão zas absolutas tornam-se obstáculos para o desenvolvimen-
em interação, grupos sociais distintos, inclusive pela to das possibilidades da própria vida.
forma de conhecer, uma abordagem comum dos proble- Certamente, o alcance de iniciativas de educação
mas de saúde implica na elaboração de uma base concei- popular será tanto maior quanto mais estiverem articula-
tual comum para pensar estes problemas. A noção de cui- das em redes sociais. A interação social e, portanto, a
dado em saúde é um dos conceitos com maior poder de comunicação dialógica, tornam-se uma necessidade
integração, mas certamente são os movimentos e organi- imprescindível para lidar com a complexidade, a incerte-
zações não-governamentais que propõem pensar tais cui- za e o elevado impacto das ações de saúde.
dados em termos das relações das pessoas, dos pertenci- O resultado deste processo no âmbito dos serviços
mentos e identificações no meio das comunidades nas e do sistema de saúde será a produtividade social, porque
quais se incluem. os recursos públicos, orientados de modo a garantir ações
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de saúde integral, resultarão de fato nas melhores formas pessoas mais sabidas, quem tenta impor uma cultura pre-
de encaminhar os problemas de saúde e de garantir qua- tensamente superior. Mas também é muito conservador
lidade de vida à população. quem, desejando preservar um modo popular idealizado
Uma advertência final sobre os riscos de assumir de viver, deseja parar o mundo, privando as pessoas e gru-
uma defesa abstrata de qualquer enfoque de educação e pos do contato com outras pessoas e grupos portadores
saúde, inclusive da educação popular, aparece na seguin- de marcas biológicas e culturais diferentes e, por isso
te passagem do texto de Eymard Vasconcelos citado aqui: mesmo, enriquecedoras. Ao educador popular caberá o
"Educação Popular não é veneração da cultura investimento na criação de espaços de elaboração das per-
popular. Modos de sentir, pensar e agir interagem perma- plexidades e angústias advindas do contato intercultural,
nentemente com outros modos diferentes de sentir, pen- denunciando situações em que a diferença de poder entre
sar e agir. Na formação de pessoas mais sabidas, devem os grupos e pessoas envolvidas transforme as trocas cultu-
ser criadas oportunidades de intercâmbio de culturas. E rais em imposição".
as pessoas mudarão quando desejarem mudar e quando Eduardo Navarro Stotz Sociólogo e historiador, Doutor em
tiverem condições objetivas e subjetivas de optar por um Ciências da Saúde e Pesquisador Titular em Saúde Pública da
outro jeito de viver. Certamente, não pretende formar ENSP/Fiocruz.
REFER¯NCIAS
Construindo a resposta à
proposta de educação e saúde
Victor Vincent Valla
Maria Beatriz Guimarães
Alda Lacerda
Ilustração: Lin
A
partir da década de 80, um grupo de profis-
sionais de saúde do Núcleo de Educação,
Saúde e Cidadania da Escola Nacional de
Saúde Pública (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz, vem
debatendo a questão da educação e saúde. Para desen-
volver a argumentação desse artigo, propõe-se um
mosaico de trechos escolhidos dos trabalhos mais uti-
lizados, inclusive os que foram produzidos e publica-
dos pelo grupo. O que segue é um esforço de sistema-
tizar esse debate.
A discussão desenvolvida tem como ponto
de partida a definição de educação e saúde a partir de
uma perspectiva histórica. Tradicionalmente, educa-
ção e saúde é entendida como um conjunto de infor-
mações que as pessoas devem incorporar com a fina-
lidade de garantir que sua vida seja mantida em con-
dições saudáveis. Pode-se dizer que educação e saúde
é a atividade mais antiga desenvolvida no campo da
Saúde, e que foi uma espécie de "invenção" dos gru-
pos hegemônicos a ser implementada como forma de
controlar "os pobres" ou subalternos, ou seja, os escra-
vos durante o Império e as classes populares na
República. Como nos ensinou Marx e Engels, uma
das funções- chave das chamadas classes dominantes
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é fazer com que seu pensamento seja socializado eixos: água, higiene, habitação e escola.
numa sociedade, de tal forma que seja incorporado Educação e Saúde:
pelos subalternos como a principal explicação de
historicamente um movimento
como essa sociedade opera.
Em se tratando de educação e saúde, os gru- de cima para baixo.
pos hegemônicos têm como interesse convencer os
trabalhadores a seguirem certas regras com intuito de Devido à necessidade de controlar as classes
preservar sua força de trabalho em condições mini- populares por meio de recomendações e regras, a
mamente saudáveis, e garantir que o trabalho execu- proposta de educação e saúde tem obedecido a um
tado produza o lucro necessário no processo de acu- movimento vertical. As orientações partem das auto-
mulação de capital. É importante ressaltar que a ridades governamentais, professores, profissionais
extração de lucro no regime da escravatura e também de saúde, em particular médicos, e outras categorias
no capitalismo, surgido nos séculos XIX e XX, vem de mediadores para as classes populares. O conheci-
sendo exercida com tanta intensidade e continuidade mento e o saber popular não são levados em consi-
que as próprias condições de vida dos grupos subal- deração.
ternos podem representar uma ameaça, não somente Certas fases históricas e obras escritas exem-
à saúde deles, mas também a dos membros dos gru- plificam este movimento. Podemos citar a questão
pos hegemônicos. Desse modo, para garantir o lucro da habitação popular no início do século XX, evi-
dos grupos hegemônicos é preciso que todos desfru- denciada a partir do ocorrido durante as grandes
tem de boas condições de saúde. Eis, portanto, a endemias e epidemias. Costa (1987) adverte que
invenção de educação e saúde: dominar, explorar, cabia ao Estado exercer pressão sobre as classes
mas se proteger. populares, no sentido de exigir consentimento e
Historicamente tem sido necessária a cons- colaboração, que acabava por transformar a liberda-
trução de um "cordão sanitário", uma linha geográfi- de desses sujeitos em imposição e coerção, com obje-
ca, que mantenha os pobres afastados com a finalida- tivo de corresponder aos interesses das classes domi-
de de não "contaminar" os ricos. Do mesmo modo nantes.
que foi preciso construir a idéia de que a raça negra Nesse contexto, as endemias e epidemias que
é inferior à branca para justificar o regime escravocra- atingiram a Cidade do Rio de Janeiro, principal-
ta, a proposta de educação e saúde também criou mente a da febre amarela, resultaram em um proje-
uma outra lógica que identifica as classes subalternas, to de disciplinarização higiênica dos programas de
ou como diz Cecília Coimbra as "classes perigosas", habitação social, uma vez que tinham como ponto
como ignorantes e sujas para a sociedade. É nesse sen- de partida os bairros pobres e em seguida alcança-
tido que nas escolas públicas e particulares transpare- vam os bairros habitados pelas classes dominantes.
ce a noção de que as pessoas que não tiveram acesso A polícia sanitária combatia a febre amarela e a
à escolaridade são ignorantes, e como conseqüência, tuberculose, e a prática higiênica cumpria a tarefa de
pobres e desempregadas, e que em função dessa pre- normatização da arquitetura do espaço urbano
cariedade e falta de conhecimento vivem em condi- visando a acabar "com a perigosa proximidade dos
ções anti-higiênicas. Daí a necessidade de educação e bairros pobres do centro nervoso das atividades
saúde. Nessa perspectiva, poderíamos dizer que, em comerciais, e em alguns casos das moradias burgue-
grande parte, a educação e saúde passa por quatro sas" (COSTA, 1987, p. 6).
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deve ser encarada como uma questão social, coleti- saúde-doença da população. Ele ressalta que as socie-
va. dades providas de sistema médico de alto custo são
Um outro fator que contribui para a dificul- impotentes para aumentar a esperança de vida, exce-
dade em compreender o fracasso escolar é a tendên- to na fase perinatal; que o conjunto de atos médicos
cia em explicá-lo como uma questão de deficiência é insuficiente para reduzir a morbidade global; e que
de saúde. Assim sendo, ouve-se com freqüência jus- os programas de ação sanitária e os atos médicos
tificativas para o mau desempenho escolar, que podem resultar em fontes de novas doenças devido
incluem tanto o fato da criança ter algum problema à iatrogenia, ou seja, algumas intervenções dos pro-
de saúde física, tais como problemas de visão, audi- fissionais podem constituir uma "epidemia" mais
ção, desnutrição, distúrbios neurológicos, entre outros, importante do que qualquer outra, apesar de ser a
quanto ser portadora de problemas psicológicos ou menos reconhecida.
distúrbios de comportamento, como o excesso de Nesse contexto, diante da imposição dos
agressividade, apatia ou dificuldade de concentra- profissionais de saúde ao determinar condutas e
ção, que as impedem de aprender e limitam seu prescrições, e desqualificar o saber da população,
desenvolvimento escolar (VALLA; HOLLANDA, reduz-se necessariamente o nível global de saúde da
1994). sociedade inteira ao reduzir o que constitui justa-
No entanto, não nos parece casual a utiliza- mente a saúde de cada indivíduo: a sua autonomia
ção da saúde como forma de explicar o fracasso. pessoal (ILLICH, 1975).
Para grande parte da população brasileira, seja ela
composta de alunos, pais ou professores, explicar o Do vertical para o horizontal
fracasso pela deficiência de saúde seria uma forma
de lançar mão de um „escudo científico‰ que pou- A questão da educação em saúde representar
cos contestariam, já que os profissionais de saúde tradicional e historicamente um movimento verti-
ainda são vistos com certa mitificação por grandes cal, dos dominantes para os dominados, era o eixo
parcelas da população. Quase sempre o problema de central do debate travado nas décadas de 80 e 90
saúde é visto como "sem solução", porém, se nin- entre os membros do Núcleo de Educação, Saúde e
guém é responsável, quais são as implicações para as Cidadania da ENSP. A argumentação que contri-
crianças fracassadas? Se essas crianças são "doentes", buiu para a criação desse núcleo tinha como funda-
quais são suas possibilidades futuras para uma vida mento o fato da ENSP ser uma instituição federal e
útil, profissional e politicamente? pública, mantida pelos impostos que a sociedade
Como se pode apreender dos exemplos da paga. Seu objetivo principal consistia não somente
habitação popular e do fracasso escolar, a questão da em formar profissionais em saúde pública, mas tam-
educação e saúde permeia vários segmentos da socie- bém oferecer subsídios técnicos e assessoria a entida-
dade. Um outro segmento importante a ser conside- des populares da sociedade civil, como os sindicatos,
rado, que representa provavelmente um dos mais associações de servidores públicos e moradores.
perniciosos de todos, é a empresa médica. Tendo em vista a tendência da educação e saúde
Dentro dessa perspectiva, Illich (1975) chama expressar um movimento de cima para baixo, uma
atenção para o fato da empresa médica ter se torna- das principais preocupações desses profissionais era
do um grande perigo à saúde, contrariando o seu a de se precaver para não reproduzir o mesmo movi-
mito de contribuir para a solução dos problemas de mento nas suas relações com as entidades da socie-
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construindo assim um processo que produz um conheci- Assim, por um lado, a procura dessas terapias não
mento síntese, ou seja, a produção de um terceiro conheci- convencionais pelas classes médias no mundo todo pode
mento que é a combinação das duas contribuições. Desse ser compreendida como uma resposta à insatisfação com a
modo, o técnico que borrifa as casas populares é a propos- resolutividade das práticas biomédicas; por outro lado, o
ta; os moradores que "catam" os barbeiros são a resposta. A extraordinário crescimento da presença das classes popula-
síntese é a dedetização gratuita das casas. res em muitos países nas igrejas de todas as religiões, prin-
Por fim, como forma de concluir esse trabalho, cipalmente nas chamadas "evangélicas" e/ou "pentecostais"
procura-se compreender melhor a relação "proposta"/"res- pode estar significando uma contra-proposta, ou uma res-
posta" e "dominação"/"resistência". Na perspectiva de um posta das camadas populares à proposta da biomedicina.
período mais longo, pode-se encarar a empresa médica e a Tem-se o exemplo dos 500 centros espiritualistas e cinco
engrenagem de uma biomedicina mais complexa e sofisti- milhões de fiéis no México que evidencia o sucesso das
cada como uma proposta claramente vertical. Porém, curas espirituais com sofrimentos crônicos de uma forma
durante o século XX, principalmente a partir das décadas que a biomedicina não é capaz de igualar (VALLA, 2001).
de 50 e 60, é possível perceber o surgimento de uma res-
posta à hegemonia da biomedicina com o surgimento dos Victor Vincent Valla Pesquisador Titular do Departamento de
Endemias Samuel Pessoa, da Escola Nacional de Saúde Pública,
"beatniks" e dos "hippies" e com a vinda para o Ocidente Fundação Oswaldo Cruz, Professor da Faculdade de Educação da
das propostas filosóficas do Oriente. Universidade Federal Fluminense.
Com o tempo, as classes médias começaram a bus- E-mail: valla@ensp.fiocruz.br
Maria Beatriz Guimarães Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto
car alternativas no campo de Saúde por meio da homeo- de Medicina Social da UERJ, Pesquisadora Visitante do Convênio
patia, florais, acupuntura, shiatsu, meditação, tai-chi-chuan, FIOCRUZ/FAPERJ.
entre outras. No entanto, essa "contra proposta" é inacessí- E-mail: beatriz.guima@ensp.fiocruz.br
Alda Lacerda Médica Homeopata e Mestre em Saúde Pública pela
vel às classes populares devido ao custo financeiro, pois ENSP/FIOCRUZ e Professora do Curso de Autogestão em Saúde
muitas dessas práticas ainda não estão disponíveis nos ser- Educação à distância da ENSP/Fiocruz.
viços públicos de saúde. Email: alda@ensp.fiocruz.br
REFER¯NCIAS
Grupos de Mulheres e a
elaboração de material educativo
Margarita Silva Diercks
Renata Pekelman
Daniela Montano Wilhelms
Ilustração: Rodrigo Rosa
2 Elaborar uma cartilha adequada à realidade social, econômica e cultural (incluindo a linguagem) dessas
mulheres, com o objetivo de reproduzir nas comunidades as discussões dos grupos. Esta cartilha é caracterizada por
seguir uma pedagogia problematizadora sobre o tema.
3 Distribuir este material nos diversos espaços de convívio das pessoas que fazem parte dessas atividades
educativas, com o objetivo de formar redes de conhecimento crítico em relação a estes problemas.
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Escolaridade maioria com ensino fun- a maioria com ensino fundamental completo e
damental incompleto ensino médio incompleto.
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Os encontros ainda abordaram as DST/ têm para negociar, da necessidade de resgatar a auto-
HIV/aids apresentando aspectos objetivos de estima, da necessidade do diálogo entre os parceiros,
transmissão e características clínicas da maioria de romper o silêncio que é imposto culturalmente
das DST e a prática do uso da camisinha. para a maioria das mulheres. É fundamental con-
Todas as mulheres levaram camisinhas versar sobre a infidelidade, sobre o uso do preserva-
para tentarem utilizar com os seus parceiros. tivo nas relações, sobre o casal. Todo o grupo de
Algumas decidiram usar o preservativo já que trabalho se reuniu e montamos um roteiro que jun-
achavam que não haveria dificuldade na sua tou as falas das mulheres, tanto da cartilha como
negociação. Outras estavam temerosas da reação das reuniões, e também as falas dos técnicos, pois
dos seus parceiros. As que utilizaram tentavam um de nossos objetivos é compartilhar a construção
estimular as outras mulheres para seu uso. Cada do conhecimento.
mu-lher tentou negociar com o seu parceiro de Na Unidade Divina Providência, as mulhe-
acordo com a realidade afetiva do casal. res participaram ativamente na discussão do tipo
Temos certeza que as mulheres participantes de material educativo a ser elaborado, optando
foram „afetadas‰ nesse processo educativo, mas a por uma cartilha com desenhos mais realistas, ser
discussão sobre o uso do preservativo por parte das direto, palavras fáceis, que tenha intimidade.
mulheres com parceiro fixo deve ser continuamen- Definimos as principais idéias do roteiro: corpo e
te reforçada, esclarecida e discutida seja em grupos, sexualidade, gênero e negociação.
na consulta individual e especificamente, neste tra- As coordenadoras do grupo elaboraram
balho, quando acontece a distribuição por parte das um roteiro inicial e uma diagramação, para dar
mulheres do material educativo elaborado. concretude ao material educativo e assim discutir
novamente com o grupo .
O processo de elaboração Na Unidade Nossa Senhora Aparecida, a
discussão se deu de forma semelhante, a oficina foi
das cartilhas
intensa e houve uma boa participação na elabora-
As quatro unidades em questão desenvol- ção da cartilha. As pessoas do grupo como um
veram a elaboração dos roteiros de forma seme- todo definiram que tinha de ser uma cartilha, tam-
lhante nos aspectos técnicos do processo, embora bém com desenhos mais realistas. Decidimos fazer
as formas de participação tenham sido diferentes. uma cartilha com quatro histórias em quatro livri-
Na Unidade Jardim Leopoldina, as próprias nhos. No grupo discutimos quais os pontos que
mulheres participantes do grupo elaboraram uma havíamos abordado e que seria importante estarem
cartilha. Discutiram no grupo alguns aspectos gerais contemplados na cartilha, e os profissionais que
do roteiro e se reuniram fora do horário do grupo, ficariam encarregados de fazer os roteiros que
quando elaboraram um roteiro, desenhos e a diagra- seriam avaliados e modificados pelo grupo.
mação de uma cartilha e „surpreenderam‰ as coor- Na Unidade Jardim Itu, aprofundamos as
denadoras com uma cartilha pronta. A cartilha ela- questões de sexualidade, em especial sua descober-
borada por este grupo, começa com uma capa sim- ta quando ocorrem novos relacionamentos na
ples manuscrita com lápis de cor verde, com o terceira idade. A construção do material educati-
seguinte título: "APRENDENDO COM A VIDA". vo deu-se de forma conjunta e participativa, pois
Elas começam a discutir, por meio de histórias de cada uma das integrantes trouxe contribuições,
suas vidas, como vêem a problemática do HIV, do com textos e situações já desenhadas, inspiradas
uso da camisinha, das dificuldades que as mulheres em uma das mulheres do grupo que nesse perío-
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do redescobriu sua sexualidade, „ela com 70 sua metodologia e das mudanças que ocorreram
anos, há 20 anos viúva, encontra seu homão de com as mulheres que vivenciaram esse processo,
50 e se descobre como mulher‰. Apresenta-se a desde as trabalhadoras de saúde que foram tocadas
discussão do uso do preservativo com os homens por essa vivência levando-as a reverem suas vidas
de terceira idade e suas dificuldades. privadas, que como as usuárias encontraram um
Apresentamos a alternativa da camisinha femini- lugar para trocar experiências, falar sobre sua
na. Fazemos um cartaz colocando a situação: sexualidade, reverem aspectos de suas vidas.
pessoas de terceira idade, suas dúvidas e sugestão No Nossa Senhora Aparecida, criamos
do uso do preservativo feminino. camisetas com a capa da cartilha, que foi con-
feccionada pela cooperativa do bairro, fizemos
Lançamentos locais das uma sessão de autógrafos, numa sexta-feira à
tardinha, quando as pessoas voltam do traba-
cartilhas e cartaz
lho. Pensando na dinâmica do local, convida-
Após alguns meses de espera, o material mos no dia pelo de carro de som, cartazes e
educativo ficou pronto! Foi com grande ansiedade também colocamos um aviso em uma rádio
e alegria que recebemos o material em outubro de AM da cidade que tem alto índice de audiência
2001. Rapidamente os diferentes grupos se organi- no bairro. Fechamos a rua ao lado do super-
zaram para discutir o lançamento local, o lança- mercado a qual foi toda enfeitada com balões,
mento geral ou ato oficial e sua distribuição. vários varais de camisinhas e um painel colorido
Na Unidade Divina Providência, organi- com bexiguinhas criando um efeito estético bastan-
zamos o lançamento no final de tarde, em fren- te interessante. Houve então shows de talentos
te à casa de uma das participantes. Seriam
montadas barraquinhas no local com as carti-
lhas e também com bolos, salgados e refrige-
rantes que cada uma de nós traria. Também se
suge riu de pas sar nova men te o Vídeo
„Mulher‰, do Ministério da Saúde. As profis-
sionais da unidade colocaram uma faixa na rua
e conseguiram alguns CDs que tinham músicas
alusivas à prevenção de DST/HIV/aids. Todas
nós ficamos de convidar o máximo de mulhe-
res para este encontro. No dia, várias pessoas tra-
ziam as cadeiras de casa para poderem sentar e
conversar um pouco com as vizinhas. Muitas
delas levaram o material para ser distribuído
com suas conhecidas, vizinhas e parentes.
O grupo do Jardim Itu fez a montagem de
uma dramatização (com roteiro e direção coleti-
vas) baseada no cartaz elaborado, e foi apresentada
em duas ocasiões: para o grupo da terceira idade e
a associação de moradores. O teatro inicia com
uma narração que fala do processo da pesquisa,
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locais (música e dança), que eram interrompidos lhosas. Parceiros e amigas das mulheres comparece-
por „dicas de saúde‰, brincadeiras para as crianças ram ao local. Iniciamos a distribuição das cartilhas.
e uma barraquinha com camisinhas e cartilhas a As pessoas interagiram com bastante interesse,
serem autografadas. Grande número de pessoas par- fazendo perguntas sobre o grupo e discutindo o
ticipou do evento, que tinha um caráter bastante conteúdo da cartilha. Observamos que os homens
lúdico, que resultou em momentos divertidos, pra- demonstraram grande interesse sobre o assunto dis-
zeirosos e educativos onde brincar, aprender e cons- cutido, solicitando uma iniciativa como esta junto
truir novas formas e questionamentos em relação a eles, pois revelavam ter outras opiniões acerca do
ao problema das DST/HIV/aids. assunto. Chamou nossa atenção que após a „expla-
Na Unidade Jardim Leopoldina, marcamos nação‰, feita individualmente, todas as pessoas liam
a data (24/11/2001), um sábado à tarde, na praça ao a cartilha atentamente e queriam comentar o que
lado do Posto de Saúde, quando um maior núme- haviam lido, demonstrando identificação com as
ro de moradores utiliza a praça para lazer. situações ali retratadas e parabenizando as mulheres
Estávamos em clima de „estréia‰, todas muito orgu- pelo resultado do trabalho.
Principais resultados
Reconhecimento da vulnerabilidade ao Criação de várias estratégias de
1 HIV. 7 negociação para o sexo seguro; o
reconhecimento de que a infi delidade
A existência de construções culturais precisa ser discutida e os acordos
2 muito arraigadas sobre o corpo, a possíveis estabelecidos.
sexualidade e o prazer, torna o proble-
ma difícil e complexo de ser discutido. A melhora da auto-estima e da auto -
8 nomia resultantes da reflexão, do
sentimento de autoria e da possibili-
A relativa facilidade no “manejo” do dade subjetiva de mudan ça.
3 preservativo masculino contrasta com a
dificuldade do diálogo com o seu A construção de três cartilhas e um
companheiro. 9 cartaz que seguem uma peda gogia
construtivista e problematizadora,
4 A dificuldade variável das mulheres em
se apropriar da sua palavra e de se sen-
permitindo a ressignificação do pro-
blema.
tir sujeita de si.
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bém, e muito, com os múltiplos e complexos mos produzindo conhecimento e isso tem de ser cui-
aspectos da realidade que influenciam a compreen- dadosamente guardado para que nós e outras pessoas
são desse problema. aprendamos com a nossa experiência.
A educação em saúde tem um papel fun- Temos de ter domínio técnico sobre o assun-
damental nesse entendimento, visto que sua pre- to a ser discutido, mas ao mesmo tempo estar aber-
missa mais importante deve ser „ouvir o outro‰. to a questionamentos sobre o nosso saber por parte
As atividades educativas têm de ser planejadas e da população. Dominar o MÉTODO educativo.
isso significa que temos de cuidar de vários Temos de planejar sempre e novamente.
aspectos, resumidamente, aqui listados:
Precisamos de tempo: em geral, os profis- 2 O método educativo
sionais de saúde estão cheios de coisas para fazer.
Por esse motivo, é importante ter claro que a reali- „a camisinha, eu não vou usar, meu marido não gosta‰.
zação de um trabalho educativo demanda algumas „é difícil pedir pro marido usar a camisinha, ele
horas de trabalho. Precisamos planejar como vai ser vai achar que estou aprontando...‰
a reunião, como será o registro, qual será o papel „a camisinha... (risos) Não é seguro. Eu nem me
do coordenador e realizar a avaliação da atividade. mexo. Fico quietinha... Nem me mexo. Aí se eu
De forma geral, podemos dizer que para cada hora tomo o comprimido me mexo prá tudo quanto
de conversa com a comunidade precisamos do é lado. Agora a camisinha...‰
dobro de tempo para prepará-la e avaliá-la. Por isso, „eu confio nele, por isso nós não usamos a cami-
a atividade educativa tem de ser agendada. Sem um sinha...‰
tempo disponível adequado, ela provavelmente será „o problema é que ele brocha com camisinha.‰
feita com falhas metodológicas que reverterão em
um trabalho frustrante com a população. Essas conversas, oriundas de grupos de
Precisamos de um(a) parceiro(a) com a mulheres que têm como objetivo discutir a pre-
mesma disponibilidade de horário nossa, pois venção das DST/aids, levam-nos a refletir sobre
sempre é melhor trabalhar em dupla. É mais nossa prática educativa e, principalmente, sobre
fácil fazer o registro, é possível trocar idéias e como são difíceis e às vezes „insolúveis‰ as con-
avaliar melhor. Além disso, em dupla sempre é versas que temos com mulheres de classes popu-
possível „exercitar‰ o diálogo. lares. Para que essas conversas não sejam infrutí-
O registro tem de ser pensado antes da reu- feras e durante as quais técnicos e população
nião começar. Em geral, um dos profissionais parti- dêem sua opinião fazendo de conta que se enten-
cipantes da atividade educativa ficará encarregado do dem, achamos fundamental que os profissionais
registro. O registro é a base para a nossa avaliação e de saúde tenham domínio do método ou do
para a reflexão sobre o que estamos fazendo. Para „como fazer‰ das atividades educativas.
fazer o registro, precisamos de uma caneta, papel
(uma prancheta é uma boa idéia) e gravador. Se pos-
Mas, então, como fazer?
sível, uma filmadora e/ou máquina fotográfica.
Precisamos de uma pasta para guardar as nos-
Esta pergunta não tem uma resposta fácil,
sas anotações. Lembramos que podemos sair do
já que não se trata de fornecer uma „receita‰.
posto, que os grupos „acabam‰, que as idéias não
Nossa prática educativa varia conforme cada reali-
dão certo, enfim, que estamos fazendo história, esta-
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dade, seja individual ou de grupo, e de acordo de vida‰, ou seja, propiciar aos participantes dos
com cada situação-problema por nós vivenciada, grupos, inclusive aos profissionais, que relatem
mas alguns „ingredientes‰ são necessários. Então... suas vidas, seu dia-a-dia, como lidam com deter-
minado problema e qual sua visão sobre ele.
Quais são os ingredientes da Ao propiciar que o grupo se manifeste a
partir do seu cotidiano, da sua vida prática ou do
prática educativa?
seu mundo da vida, começaremos lentamente a
desvelar o entendimento e os significados que as
O primeiro deles é que temos de partir
pessoas têm sobre seu problema. Muitas vezes isso
sempre da realidade do grupo, das pessoas, do
pode parecer confuso e sem nexo e podemos per-
paciente.
der o fio da meada, devido à complexidade das
histórias que são apresentadas. Por isso, o coorde-
Mas o que significa isto? nador tem de ter um domínio metodológico para
não ficar só no desabafo ou no subjetivismo do
Significa tentar compreender o que as pes- grupo. Temos de ir além para conhecer a realida-
soas estão pensando e/ou fazendo; captar qual a de que está nos interrogando. O que fazer com as
visão que as pessoas têm sobre determinado pro- inúmeras questões que emergem a partir desses
blema; entender como elas vivenciam o problema depoimentos? O que fazer com as questões com
que está sendo discutido; perceber se elas enten- as quais não concordamos ou que nos surpreen-
dem o seu problema como individual ou como dem nestas falas? O que fazer com as críticas que
de uma coletividade; apreender qual é a „baga- são colocadas? Como ir adiante no entendimen-
gem‰ cultural das pessoas, seu significado subjeti- to entre o técnico e a população? Aí vem o segun-
vo e, principalmente, como elas interpretam os do ingrediente...
seus problemas. Então, partir da realidade não é
tão simples assim, principalmente porque, na
grande maioria das vezes, a nossa realidade como
A argumentação
profissional de saúde é completamente diferente o estranhamento a reflexão
da dos moradores da comunidade onde trabalha-
mos. Na verdade, num grupo vivenciamos no Essas palavras têm sido usadas como sinô-
mínimo dois horizontes culturais ou percepções nimos no campo da Educação em Saúde. O estra-
da realidade dos profissionais e da população e nhamento possibilita um „distanciamento„ da
estes entendimentos da realidade têm de ir se mis- realidade e do problema que estamos vivencian-
turando, se diluindo e adquirindo novas percepções do, além de permitir-nos ver a realidade com
que te-nham validade intersubjetiva, isto é, para maior profundidade e reconhecer os aspectos cul-
todo o grupo participante. turais, sociais, pessoais, econômicos e históricos
que caracterizam o grupo com o qual estamos tra-
balhando. O sentimento de dúvida e de surpresa
Mas como conhecer a realidade dos
diante de um cotidiano tão distante do nosso é o
participantes de um grupo? primeiro passo para alcançar o entendimento e a
compreensão daquilo que estamos vivenciando.
Para responder a esta pergunta, temos que Esse estranhamento é conseguido basicamente
lançar mão daquilo que é denominado „história por duas perguntas:
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Por quê? Como assim? filhos não era só botar o DIU ou tomar compri-
mido; tinha muitas outras coisas em jogo, como
Como coordenadores de um grupo cujas a relação com o marido, como a mulher foi cria-
falas nos remetem a dúvidas e conflitos, temos de da, enfim, muitas coisas que tinham que ser dis-
problematizar para conseguir dialogar, pois enten- cutidas...‰
der não é suficiente. Temos de questionar ao outro Estas falas, extremamente comuns no tra-
e a nós mesmos. Aceitar as diferenças sem tentar balho comunitário, mostram uma argumentação
a problematização é negar a possibilidade de cons- inicial do problema que permite ver de forma
truir um conhecimento em comum, conhecimen- mais aprofundada os aspectos que compõem o
to este sobre o qual o profissional de saúde tem a fenômeno de engravidar ou não. Se não tivésse-
sua contribuição a dar, mas que a população sem mos problematizado, provavelmente, essa discus-
dúvida tem muito a acrescentar. Vejamos um são iria acabar na responsabilidade puramente
exemplo: individual e preconceituosa, desconsiderando
„Há poucos minutos atrás, D. Eduvirges aspectos culturais, sociais e econômicos da ques-
tinha dito que era mãe de dez filhos e que ela era tão. Quando problematizamos, vemos o fenôme-
uma mulher muito feliz, por isso que ela gostava no de uma forma mais complexa e com outros
de todos eles e que o marido também, que eles se olhares. Mas a argumentação também possibilita
davam bem e que se ela pudesse teria mais filhos. a busca de um entendimento exitoso entre todos
Quando entrou a discussão de como fazer os participantes. Em outras palavras, quando
para que as mulheres tentassem planejar a sua questionamos estamos usando argumentos racio-
família, D. Eduvirges disse que quem tinha dez fi- nais para ter um entendimento intersubjetivo
lhos era maluca. Não sabia o que estava fazendo. entre os participantes. Procuramos que os argu-
Era um horror. Todo o grupo concordou, inclusi- mentos levantados por cada um dos participantes
ve eu, que estava coordenando o mesmo. Mas me permitam-nos chegar a um consenso, ou melhor,
lembrei dos comentários de alguns minutos atrás que o resultado dessa argumentação tenha valida-
e falei para D. Eduvirges: de subjetiva, cultural e social para todos os parti-
- Mas a senhora não disse que tinha gosta- cipantes.
do de ter dez filhos, que se achava feliz por isso? Aí já estamos entrando no terceiro ingre-
Ela respondeu: diente do método da educação em saúde, que é...
- Sim, sim, mas eu sou diferente...
- Por quê a senhora é diferente? Aprendendo com a vida:
- Porque eu gosto dos meus filhos... eu amo voltar ao problema inicial com
meu marido. outros olhos e ressignificados
- Mas e as outras mulheres? Como é com as
outras mulheres? O problema, que parecia simples, já não é
Ela pensou, o grupo pensou junto, e fala- tão simples assim. Transformou-se numa realida-
ram que sim, que realmente planejar o número de de complexa e cheia de contradições e significa-
dos. É importante destacar que esta etapa do méto- Quanto mais complexo o assunto, mais
do tem de ser resultado de um entendimento entre difícil é a problematização e a volta à realidade
todos os participantes e, muitas vezes, é precedido de para agir, cabendo ainda destacar que as pessoas,
conflitos profundos e dolorosos, já que para que esta de forma geral, dominam alguns assuntos mais
„nova realidade‰ tenha validade prática ou coletiva do que outros. Por exemplo, uma gestante pode
tem de ter também validade subjetiva. Assim, o pro- discutir de forma problematizadora sua gravidez,
cesso de idas e vindas entre a realidade, a problema- mas ter uma relação de submissão com o seu par-
tização e a volta à realidade varia de pessoa para pes- ceiro.
soa, de assunto para assunto, de grupo para grupo. Podemos concluir, então, que para desen-
Este processo, na maioria das vezes, é lento, poden- volver uma atividade educativa na qual os saberes
do levar a vários encontros, meses ou anos para ser dos técnicos e da população contribuam para a
concluído ou não, já que estamos „mexendo‰ em construção de conhecimento em saúde, é funda-
aspectos culturais profundamente arraigados dentro mental partir da realidade dos sujeitos envolvidos
de cada um de nós. e problematizá-la.
Determina o processo a partir do cotidiano vivenciado por cada uma das pessoas ali participantes.
Exige habilidade por parte da coordenação para não induzir respostas ou comportamentos.
Exige que a coordenação do trabalho tenha clareza sobre seus objetivos e domínio de grupo. Para
isso, deve:
- Ser dialógica e disciplinada.
- Propiciar as conversas e fazer síntese claras.
- Lidar com o afeto e com a objetividade.
Finalmente, é importante lembrar que a gente só aprende este método fazendo... Refletindo... e re-
fazendo...
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