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Trabalho com leitura na educação básica: uma aplicação da semiótica

greimasiana na análise da notícia jornalística

Kelli da Rosa Ribeiro (Doutoranda em Letras/PUCRS)

Resumo:
Este trabalho pretende mostrar reflexões sobre os processos de leitura de alunos que têm a
Educação Básica completa, levando em consideração a teoria semiótica greimasiana, a Lei de
Diretrizes e Base e as questões norteadoras dos PCNs. Para tanto, realizamos um trabalho
investigativo sobre as leituras dos alunos, referente a uma notícia do Jornal Folha Universal,
em que, o cantor Michael Jackson, após sua morte, tem a imagem denegrida e posta sob
suspeita. Desse processo participou um grupo de alunos integrantes de um curso pré-
universitário. Verificamos, então, como os alunos se posicionam em relação aos elementos
fóricos do texto e como articulam seus argumentos para defenderem seus pontos de vista.
Observamos ainda como, nessa atividade de leitura, acontece a relação enunciador e
enunciatário, com ênfase no contrato de veridicção que se estabelece entre estes dois
elementos do discurso. Por fim, pretendemos proporcionar ao professor de língua portuguesa
uma alternativa de trabalho com diferentes gêneros, por meio da semiótica.

Palavras-chave: leitura; educação básica; semiótica greimasiana; contrato de veridicção.

1. Introdução

O presente trabalho é um desdobramento da aplicação de uma pesquisa monográfica


de conclusão do curso de especialização Lato Sensu em Linguística e Ensino de português da
Universidade Federal de Rio Grande (FURG). Tal trabalho teve como objetivo principal
levantar reflexões a respeito de leitura e ensino de textos em aulas de língua portuguesa na
Educação Básica, levando em consideração a perspectiva teórica da semiótica
greimasiana, compreendendo os estudos que desenvolve sobre Enunciação.
Nessa visão, o produtor do texto e o leitor, enunciador e enunciatário, são sujeitos da
enunciação. São os efeitos pretendidos que determinam qual plano de expressão é mais
adequado para que, produzindo o enunciado, o enunciador atue sobre o enunciatário. Ambos
produzem sentido: o que coloca sentidos no enunciado e o que atribui sentidos, quando lê. O
texto é, então, o elemento básico com que se deve trabalhar no processo de ensino de qualquer
disciplina. É por meio do texto que o usuário da língua desenvolve a sua capacidade de
organizar o pensamento/conhecimento e de transmitir ideias, informações, opiniões, em
situações concretas de interação verbal.
É o texto, e não a palavra ou frase solta, o objeto principal da semiótica, e esta
perspectiva teórica procura explicar os sentidos do texto, ou seja, o que ele diz e, sobretudo,
os mecanismos que são utilizados para construir seus sentidos. Segundo Barros (2005), esses
mecanismos são de dois tipos: “a organização linguística e discursiva do texto e as relações
com a sociedade e a história”. Por isso, é possível dizer que o texto é um objeto histórico de
significação e de comunicação. Um texto pode combinar planos de expressão visual e verbal.
No caso deste trabalho, o objeto de leitura escolhido para compor as análises foi o gênero
notícia que pode se estruturar com os dois planos, concomitantemente.
Conforme a semiótica greimasiana, um texto se estrutura em três níveis crescentes de
abstração, o superficial – em que o leitor depreende significados mais concretos e
diversificados da estrutura discursiva –; o intermediário – onde se definem basicamente os
valores da estrutura narrativa, lugar em que o leitor percebe a ação de diferentes sujeitos em
acordo ou desacordo, considerada a narratividade presente em qualquer texto –; e o profundo
– onde se podem postular dois significados abstratos que se opõem entre si, na estrutura
fundamental, e garantem a unidade do texto.
A investigação foi feita com o grupo de alunos do Curso Acreditar, curso pré-
universitário oferecido por acadêmicos da FURG. Escolhemos este público por entender que
esses alunos já possuem a Educação Básica – Ensino Fundamental e Médio – ou estão
cursando o último ano do Ensino Médio. Assim, é pressuposto que o indivíduo, ao terminar
todos os níveis da Educação Básica, esteja apto a ler, compreender e produzir sentido, por
meio da leitura de um texto.
Assim, buscamos refletir sobre os processos de leitura de alunos que têm a educação
básica completa, levando em consideração a Lei de Diretrizes e Base (LDB), as questões
norteadoras dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e a teoria semiótica greimasiana.
Procuramos abordar questões de ensino de leitura e sua importância nas aulas de língua
portuguesa.
Além disso, atentamos para a relação enunciador e enunciatário, na leitura de um
texto, com ênfase no contrato de veridicção que se estabelece entre estes dois elementos do
discurso. Por fim, observamos como o aluno se posiciona em relação aos elementos fóricos do
texto e como articula seus argumentos, para defender seu ponto de vista.
Para tanto, este artigo se divide em três seções seguidas das considerações finais. A
primeira seção aborda os pressupostos teóricos que sustentam nossas reflexões, a segunda
seção mostra os procedimentos metodológicos de análise da notícia, segundo os elementos da
teoria da semiótica e os procedimentos de análise dos textos escritos pelos alunos que foram o
“resultado” de suas leituras. A terceira seção se divide em duas subseções: a primeira mostra a
análise da notícia e a segunda apresenta a análise das leituras (textos escritos) feitas pelos
estudantes. Por fim, nas considerações finais, discutimos os resultados e retomamos as
reflexões sobre leitura e ensino de textos nas aulas de língua portuguesa.

2. Pressupostos teóricos
Conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394/96), a LDB, todo
estudante, ao concluir o Ensino Fundamental (em qualquer modalidade), deve ter
desenvolvido a capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura
e da escrita (Artigo 32 – inciso I). Além disso, é previsto como finalidade para os alunos que
concluem o Ensino Médio (etapa final da Educação Básica), a consolidação e o
aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental (Artigo 35 – inciso I).
Isto é, espera-se que o estudante, após ter passado por estas etapas de estudo, leia um texto
com eficiência e atinja o seu nível mais profundo de leitura.
Em vista disso, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa
do terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental trazem uma proposta de tratamento
didático a vários conteúdos dessa disciplina. Nesse sentido, os PCNs direcionam que

a leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e


interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o
assunto, sobre o autor, de tudo que sabe sobre a linguagem. (PCNs, p. 69).

Dessa forma, não podemos conceber uma ideia de leitura como mera e simples
decodificação de letra por letra, palavra por palavra, a fim de extrair as informações do texto.
Mais do que isso, “trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação,
inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. 1” Assim, podemos entender
que muitos alunos não leem de forma competente, porque não lhes são dados os instrumentos
necessários para o ato da leitura.
Pensando nestes instrumentos que, muitas vezes, faltam aos alunos, buscaamos
respaldo teórico para este trabalho na semiótica em sua vertente francesa, representada por
Algirdas Julien Greimas. Segundo essa teoria, duas formas se complementam na definição de
texto. De um lado, entendemos o texto pela sua organização ou estruturação que faz dele um
todo de sentido, e de outro lado, levamos em consideração a comunicação que se estabelece
entre um enunciador/destinador, o produtor do texto, e um enunciatário/destinatário, o leitor
do texto.

1 Grifo nosso. O trecho citado se encontra na página 69 dos PCNs.


Barros (2005) mostra que o texto pode ser entendido de duas formas: a primeira como
objeto de significação, encaminhando seu estudo para a análise dos mecanismos que o
estruturam, ou seja, que tecem2 um todo de sentido. A segunda concebe o texto como objeto
de comunicação entre dois sujeitos, e a análise, nessa concepção, coloca o texto em relação ao
contexto sócio-histórico que o envolve.
É preciso considerar, no momento da análise do texto, as duas concepções
apresentadas, já que a construção de seu(s) sentido(s) depende tanto de mecanismos internos,
quanto de fatores contextuais da enunciação. Por isso, dizemos que a semiótica examina dois
fatores ao mesmo tempo: os procedimentos da organização textual e os mecanismos de
produção e recepção do texto.
A semiótica de Greimas, pela influência de Hjelmslev, defende que todo texto
manifesta um plano de conteúdo – a parte inteligível, conceitos, impressões, valores afetivos e
sociais, negativos ou positivos que um signo-texto evoca – e um plano de expressão, a parte
perceptível, a materialidade constituída de concretudes. Barros (2005) salienta que o(s)
sentido(s) do texto podem ser examinados, através do plano de conteúdo sob a forma de um
percurso gerativo, isto é, o leitor/ enunciatário, passa por um processo de entendimento a
partir do seu contato com a superfície do texto que pode ser constituído por material verbal
e/ou não-verbal.
Em outros termos, o processo gerativo refere-se à produção do texto. Na análise, tenta-
se recuperar, por meio da leitura, esse percurso que teria dado origem ao texto. É importante
ressaltar que esse percurso não é uma forma à qual que os textos são submetidos, mas como
mostra Fiorin (1997), “é um simulacro metodológico que nos permite ler, com mais eficácia,
um texto.” Segundo o autor:

Esse modelo mostra aquilo que sabemos de forma intuitiva, que o sentido do texto
não é redutível à soma dos sentidos das palavras que o compõem nem dos
enunciados em que os vocábulos se encadeiam, mas que decorrem de uma
articulação dos elementos que o formam: que existem uma sintaxe e uma semântica
do discurso. (FIORIN,1997, p. 31).

Então, o percurso gerativo de sentido, por conceber o texto como um processo de


produção de sentidos, analisa-o do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto,
enriquecendo-o semanticamente. Três patamares, contendo, cada um, uma sintaxe e uma

2 Fiorin (1995) lembra que a palavra texto provém do verbo latino texo, is, texui, textum,
texere, que quer dizer tecer.
semântica, constituem o percurso: estruturas fundamentais – base estrutural do texto;
estruturas narrativas – estados e transformações ligados a personagens e objetos; e estruturas
discursivas – lugar onde ocorrem as projeções da enunciação (pessoa, espaço e tempo), no
enunciado.
Na semântica da estrutura fundamental, nível mais profundo de um texto, a
significação se dá como uma oposição semântica mínima “a versus b”, como por exemplo,
liberdade versus submissão, vida versus morte, etc. Inscrita no texto está uma qualificação
semântica, isto é, uma categoria oposta é eufórica, porque recebe valoração positiva, já a outra
é disfórica, porque recebe valoração negativa. É importante notar que essa qualificação será
determinada no contexto discursivo e não pelo leitor – enunciatário do texto.
A sintaxe da estrutura fundamental trabalha com duas operações: a negação e a
asserção. Ao longo de um texto essas operações ocorrem, estabelecendo-se as seguintes
relações: afirmação de a, negação de a, afirmação de b; afirmação de b, negação de b,
afirmação de a. Para Fiorin (1993), é importante detectar a estrutura fundamental de um texto,
pois “ela permite dar uma unidade profunda aos elementos superficiais que, à primeira vista,
parecem dispersos e caóticos”.
O segundo patamar é o da estrutura narrativa, nível intermediário de um texto. Para a
semiótica, a sintaxe da estrutura narrativa simula a história do homem em busca de valores
para a vida e em busca de sentido para os contratos sociais geradores dos conflitos humanos.
Nessa perspectiva, entende-se por narrativa o percurso de mudança de estados operada por um
sujeito transformador que age no e sobre o mundo, em busca de valores que estão investidos
nos objetos. (Barros, 2005).
A sintaxe narrativa apresenta dois tipos de enunciados elementares: em primeiro lugar
têm-se os enunciados de estado que estabelecem, entre um sujeito e um objeto, uma relação
de junção (disjunção ou conjunção). Em segundo, tem-se os enunciados de fazer que mostram
as transformações, as passagens de um enunciado de estado inicial a um estado final.
Conforme Fiorin (1997), esses enunciados se articulam entre si e formam sequências
narrativas, agrupando-se em quatro fases distintas, tais como manipulação, competência,
performance e sanção. Vejamos cada uma das fases:
• Manipulação: um sujeito (papel narrativo) age sobre outro para induzi-lo a querer
ou dever fazer alguma coisa. Há quatro tipos de manipulação: tentação, intimidação,
sedução e provocação.
• Competência: o sujeito do fazer, aquele que vai realizar a transformação central da
narrativa, dotado de competência, define-se por quatro modalidades – dever-fazer e
querer-fazer, poder-fazer e saber-fazer – pois para que um sujeito possa executar uma
ação, é preciso que ele saiba e possa fazê-lo, isto é, seja competente para isso, e, ao
mesmo tempo, queira e/ou deva fazê-lo.
• Performance: o sujeito do fazer executa sua ação, ocorrendo a transformação,
mudança de um estado a outro; depois de fazê-la, o seu fazer é avaliado.
• Sanção: o sujeito do fazer recebe seu castigo ou recompensa, ou seja, ocorre a
constatação de que a performance se realizou e, por conseguinte, o reconhecimento do
sujeito que operou a transformação, conforme o contrato estabelecido na manipulação.
A semântica da estrutura narrativa trata dos valores (elementos semânticos)
inscritos nos objetos. Esses objetos podem ser de dois tipos. A semiótica greimasiana
distingue o objeto-valor do objeto-modal. Um objeto-valor (ou objeto de valor) é o
objeto principal da transformação. Um objeto-modal é um elemento da competência
necessária para realizar a perfomance, ou seja, para alcançar o objeto de valor (o querer,
o dever, o saber e o poder fazer), necessário para a aquisição do objeto-valor. Para casar
com a princesa (objeto de valor), o príncipe deve enfrentar o dragão (objeto-modal).
Antes de passar ao terceiro patamar, é importante salientar que, nesse nível, é na
linguística da enunciação, desenvolvida a partir de Émile Benveniste, que a semiótica
de Greimas se apoia. Benveniste3 (1989: 82) afirma que enunciar é “colocar a língua em
funcionamento por um ato individual de utilização” e que toda enunciação, implícita ou
explicitamente, pressupõe um eu/enunciador e um tu/enunciatário. E se, para o
linguista francês, “antes da enunciação, a língua não é senão possibilidade de língua”
(Benveniste, 1989: 83), esta teoria, no seu terceiro patamar, revela tamanha importância
nas reflexões sobre língua e leitura.
O terceiro patamar do percurso gerativo de sentido, então, é o da estrutura
discursiva. Segundo Barros (2005), esse é o patamar mais superficial do percurso, ou
seja, é o mais próximo da manifestação textual. O sujeito da enunciação converte as
estruturas narrativas em estruturas discursivas, quando faz escolhas de pessoa, de
tempo, de espaço, de figuras. Trata-se da instância do eu-aqui-agora, quando o

3 BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes, 1989, p. 82-84.
sujeito/enunciador é sempre um eu que opera no espaço do aqui e no tempo do agora,
deixando no discurso as marcas da enunciação.
A sintaxe discursiva apresenta dois aspectos importantes: as projeções da
enunciação no enunciado e as relações entre enunciador e enunciatário. Para a semiótica
greimasiana, em todo ato discursivo existirá sempre um manipulador e um manipulado,
em completa interação, sendo que o primeiro tenta persuadir o segundo acerca do que
está dito; o segundo, por sua vez, faz o discurso interpretativo, julgando o dizer do
enunciador, produtor do texto, conforme um contrato de fidúcia – o contrato de
veridicção – estabelecido entre esses dois pólos, o fazer e o crer, o que pode induzir o
enunciatário a crer ou não, no que foi dito.
As projeções da enunciação são justamente as marcas de actorialização,
espacialização, temporalização deixadas no enunciado. A actorialização reveste, através
da categoria de pessoa, os actantes narrativos. A espacialização instaura no enunciado o
espaço, que é determinado em função do aqui. Esse aqui pode estar implícito no
enunciado, ou pode ser explicitado, determinando o algures (em algum lugar) ou o
alhures (em outro lugar). Por fim, a temporalização instaura o tempo no enunciado e
tem a enunciação como momento de referência.
Esse mecanismo de projeção da pessoa, do tempo e do espaço no discurso ocorre
por embreagem ou por debreagem. Debreagem é a projeção, no texto, da pessoa, do
tempo e do espaço. Embreagem é a operação inversa de neutralização dessas categorias
e pressupõe uma debreagem anterior, produzindo um efeito de “retorno à enunciação”.
A debreagem pode ser subdivida em dois tipos. A primeira é a debreagem
enunciativa, que instaura no enunciado as pessoas da enunciação (eu-tu), o espaço
(aqui) e o tempo (agora) produzindo o efeito de sentido da subjetividade. Já o segundo
tipo de debreagem, a enunciva, instala no enunciado as pessoas (ele), o espaço (lá ou
alhures) e o tempo (então) criando, assim, o efeito da objetividade.
Todos esses mecanismos expressam as relações entre enunciador e enunciatário,
em que ocorre um jogo de persuasão, por meio de procedimentos argumentativos que
visam a levar o enunciatário a admitir como válido o que está sendo comunicado, pois,
como mostra Fiorin (1997), a finalidade de todo ato de comunicação não é informar,
mas convencer o outro a aceitar o que está sendo dito. Por isso, pode-se afirmar que
todos os discursos têm um componente argumentativo, já que todos têm o objetivo de
persuadir. Para isso, o enunciador usa procedimentos argumentativos, como a ilustração
e as figuras de pensamento.
Nessa perspectiva, é interessante ressaltar que o trabalho proposto na semiótica
visa a demonstrar a organização que existe no interior do texto. Por isso, consideramos
importante tomar textos reais – notícia veiculada na mídia e textos produzidos por
alunos – na análise. Frases soltas, inventadas pelo professor, nas aulas de língua
materna, não contemplam um verdadeiro trabalho com a língua viva e real.
Assim, a escola só cumprirá seu papel de formar sujeitos sociais leitores da
realidade em que se inserem, se criar verdadeiros ambientes de uso da língua,
subsidiando seus discentes com instrumentos que os capacitem, quando se depararem
com qualquer gênero de texto.

3. Procedimentos metodológicos
O trabalho de análise com o grupo de alunos do Curso Acreditar ocorreu dia 13 de
agosto de 2009. Nessa época o assunto mais latente na mídia era a polêmica que envolvia a
vida e a morte do cantor Michael Jackson. Utilizamos, portanto, uma notícia do Jornal Folha
Universal, em que ao longo do discurso do jornalista, o cantor tem sua imagem denegrida e
posta sob suspeita. O grupo leu o texto sem nenhuma intervenção no momento da leitura, já
que uma das intenções da pesquisa era investigar se o posicionamento do aluno-leitor é
influenciado pela visão de mundo do texto que o professor leva para a sala de aula.
Após a leitura dos textos, solicitamos aos alunos que escrevessem os posicionamentos
que assumiram sobre o assunto tratado no texto. É importante ressaltar, que antes de levar o
texto da notícia ao curso, realizamos a análise do mesmo, segundo os elementos eleitos, a
partir da teoria da semiótica greimasiana. Assim, a notícia foi analisada, baseando-se nos três
níveis propostos pela teoria: nível fundamental, narrativo e discursivo.
Salientamos que, a fim de facilitar a leitura das análises que serão posteriormente
feitas, adotamos as seguintes nomenclaturas: enunciador 1 será chamado o enunciador
(jornalista) da notícia; enunciatário 1, o aluno – leitor investigado – ; enunciador 2, o aluno,
ao escrever seu texto, posicionando-se; por fim, enunciatário 2, a pesquisadora, enquanto
leitora dos textos produzidos pelos alunos.
Com base nos pressupostos teóricos pelos quais embasamos este trabalho, e, a fim de
que não se realizassem análises repetitivas dos mesmos textos, foi feita uma seleção, a partir
dos seguintes aspectos que nortearam as análises das leituras dos alunos:
• Formas de debreagens pelas quais se constituem os enunciados que instauram,
principalmente, as pessoas do discurso;
• Manutenção ou não dos elementos fóricos do texto;

• Argumentação utilizada a partir da leitura do texto-base;

• Relação entre enunciador e enunciatário, com ênfase no contrato de veridicção


estabelecido entre esses dois elementos;
• Acréscimo de informações novas e capacidade de realizar intertextualidade.
Por fim, é importante destacar que do conjunto de trinta e dois textos coletados no
curso selecionamos para este artigo, apenas quatro textos, atentando para dois critérios de
seleção: em primeiro lugar pela falta de espaço para mostrar todos os textos e, em segundo
lugar, escolhemos os quatro textos que de alguma forma abarcam todos os aspectos elencados
para a análise.
4. Análise da notícia e das leituras
4.1. Analisando o discurso da notícia da Folha Universal: quais as imagens discursivas
criadas a respeito de Michael Jackson?
Segue abaixo a notícia retirada do Jornal Folha Universal:

DESEJO SUFOCADO4

Figura 1

Na semana em que o cantor Michael Jackson finalmente deverá ser enterrado,


depois de passar 6 semanas refrigerado, outra polêmica volta a assombrar a imagem do
cantor. O médico Alimorad Farshcian revelou ao jornal inglês “Mirror” que o rei do pop
tomava remédios para diminuir o apetite sexual por garotos. O médico não confirmou se o
cantor costumava ter relações sexuais com crianças, só disse que ele e seu paciente optaram

4 A imagem e o texto foram copiados conforme constava no jornal.


pelo tratamento, conhecido como “castração química” para diminuir - ou acabar – com o
desejo sexual. Segundo a matéria, o médico não acreditava que o cantor abusasse de
crianças, mas achava que tinha sentimentos inapropriados.
Michael Jackson levava crianças para a mansão dele, Neverland, na Califórnia,
Estados Unidos, e costumava dormir com elas – prática que declarou achar normal,
escandalizando o mundo. Até mesmo astros mirins, como o ator Macaulay Culkin,
freqüentaram a casa do cantor, que também sofreu alguns processos, sob acusação de abuso
sexual de menores. Sempre negando as acusações, em uma das vezes, ele fez um acordo
extrajudicial e, em outra ocasião, após ser preso e julgado, foi inocentado.
O remédio que Michael supostamente tomava é o Depo Provera, um
anticoncepcional injetável a base de hormônios femininos. O psiquiatra forense Sander
Friedmam explica que os hormônios masculinos são responsáveis pelo desejo sexual e o
hormônio feminino anula os masculinos. Segundo ele, o método é eficaz e pode mesmo
evitar que estupradores e pedófilos cometam crimes. “A inibição dos desejos por meios
químicos pode ser conveniente para a sociedade e para quem não consegue controlar
desejos. Entre tomar o medicamento e passar a vida na cadeia, muitos preferem os
remédios, apesar dos efeitos colaterais. Essa possibilidade ainda não existe no Brasil, mas
já está sendo discutida”, explica Friedmam.
Na República Tcheca, criminosos que cometem violência sexual são
submetidos à castração cirúrgica (extirpação dos testículos). O comitê antitortura da
Europa, entretanto, classificou o procedimento como invasivo, irreversível e mutilador. No
Brasil, embora considerada polêmica, a castração química já foi utilizada em alguns casos.
Além dos anticoncepcionais, há ainda o acetato de ciproterona, um medicamento que
também é usado para tratar o câncer de próstata e acaba com desejos sexuais. Especialistas
afirmam que, 1 mês depois da suspensão do remédio, a libido é restabelecida novamente.
(J.V.) (Jornal Folha Universal, domingo, 16 de agosto de 2009).

Podemos entender que a notícia do Jornal Folha Universal constrói-se, no nível


fundamental, baseando-se na categoria opositiva de base Admiração X Repulsa. Percebemos
que o termo valorado positivamente é a “Repulsa”, sendo o termo eufórico e a “Admiração” é
o termo disfórico, recebendo valoração negativa no discurso do jornalista. Isso evidencia a
tentativa do enunciador em convencer o enunciatário a aceitar como verdade que o cantor
Michael Jackson tinha desejos sexuais por crianças.
O programa narrativo do texto apresenta o sujeito Michael Jackson, que “...levava
crianças para sua mansão na Califórnia e costumava dormir com elas” buscando livrar-se de
seu desejo “inapropriado”, através do objeto de valor inibição do desejo sexual. Mas, tal como
o discurso deixa implícito, o fato de o sujeito narrativo tentar se ajustar à sociedade
conservadora que o repudia não é apresentado como algo positivo. O que é enfatizado é o
caráter anormal e repulsivo do comportamento de um indivíduo conhecido como o “rei do
pop”.
O fazer-crer do enunciador, mencionando a necessidade de o sujeito narrativo ter de
recorrer a um medicamento que provoca a inibição do apetite sexual, visa a instaurar o
descontínuo no enunciatário. Ao despertar no leitor sentimentos disfóricos, esse sancionará
negativamente aquele ser desprezível que chamam de rei.
A notícia, no seu nível discursivo, mostra uma suposta neutralidade e por meio da
debreagem enunciva tenta revelar objetividade no relato sobre o sujeito. Para construir a
“verdade” enunciada, o enunciador articula o texto, dando voz ao ex-médico do artista, uma
forma de criar efeito de realidade e ganhar a confiança e a adesão do leitor. Dessa maneira,
transfere a responsabilidade do fato que está sendo reportado para o médico.
No entanto, as palavras são carregadas de ideologia e observa-se claramente a posição
do enunciador, em vários momentos do texto. Em “o rei do pop levava crianças para sua
mansão na Califórnia e costumava dormir com elas”, nota-se a presença de dois verbos
conjugados no pretérito imperfeito que revelam a ideia de que o fato vinha ocorrera repetidas
vezes, sendo que o sentido de um desses verbos – o verbo costumar – já mostra uma ação
rotineira.
No texto do Jornal Folha Universal temos ainda a presença de temas e figuras. A figura
a ser tematizada é o próprio “rei do pop”, a qual ao longo do texto se tematiza de maneira
irônica, como a tratar-se de um título (o título de rei) sem mérito, o que instaura o descontínuo
no enunciatário, provocando sentimentos disfóricos já através da foto ilustrativa: a ficha
criminal do astro, quando acusado de pedofilia.

4.2. Lendo as leituras: o que entenderam os enunciatários?


Abaixo seguem os posicionamentos assumidos por quatro leitores do grupo do Custo
Acreditar:

L7:

Muitas são as suposições em torno das preferências sexuais do cantor Michael Jackson,
mas nada que comprove tais sugestões, pois, todas as vezes que o indiciaram, conseguiu
isentar-se das acusações. Além disso, a mídia manipula as informações antes de serem
publicadas, noticiando apenas o que lhe é conveniente. Entretanto, o ex-médico de
Michael, garante que o astro tomava remédios para inibir seu apetite sexual por garotos,
contudo, apresentou somente provas verbais quanto ao assunto. Cada ser humano é
responsável por seus atos e suas escolhas, não valendo a pena uma condenação sem
provas, pois, todos somos inocentes até que se prove do contrário.

L10:

Concordo com o texto porque esse cantor apesar do seu sucesso e muita riqueza não teve
uma boa infância, era mal-tratado pelo seus familiares sofreu muito quando era pobre.
Isso fez com que ele ficasse meio insano, fazendo-o cometer atos que repercutiam na mídia,
o caso de pedofilia como trata o texto.

L11:
Com base no texto mencionado Michael Jackson virou uma polêmica antes e depois de sua
morte, pois foi acusado de abusos sexual por menores. Devido a esses fatos acredito que
essas informações só para encher os olhos dos telespectadores, de fato ninguém sabe ao
certo o que realmente se esconde por trás desse ídolo. Acredito que Michael não chegaria
a cometer tal crime de abuso, já que sofreu toda sua infância com a tortura de seu pai,
Michael não iria querer que isso acontecesse com outras crianças.

L17:

Michael, não foi santo, pois apesar de ser um super star ele era um humano comum, mas
esta história de pedofilia que ronda a vida dele, não passa de mídia para denegrir a
imagem do rei do pop, pois reportagens sérias já foram feitas sobre isto, aonde deu pra ver
que muito dinheiro tiravam dele com essas acusações e na verdade o único desejo de
Michael pelas crianças era voltar a ser criança à uma infância que muito cedo perdida
com o sucesso.

Percebemos que em alguns posicionamentos os leitores trazem informações que não


estavam no texto da notícia, por isso, estabelecem uma relação intertextual. L10 demonstra
que tem conhecimento sobre a infância do cantor, menciona os maus-tratos e a pobreza em
que Michael vivia.
Apesar de apresentar essa informação, o enunciador 2, revela que, enquanto
enunciatário 1, aceitou o fazer persuasivo presente no discurso do enunciador 1, pois declara
que o sujeito cometeu atos de pedofilia que repercutiram na mídia e finaliza seu comentário
reforçando que retirou essa ideia do texto lido. Além disso, no início de seu posicionamento, o
leitor se pronuncia: “Concordo com o texto”.
Então, por meio da debreagem enunciativa, L10 mantém a categoria eufórica da
notícia do Jornal Folha Universal, a repulsa ao artista. Já L11, também usa debreagem
enunciativa e expõe uma informação nova, mas vai em direção à categoria disfórica do texto
do jornal.
Esse enunciador 2 mostra que não aceitou, enquanto enunciatário, o acordo proposto
pelo enunciador 1, pois usa, claramente, a informação a respeito da infância do rei do pop
para defender o sujeito das acusações que sofreu, dizendo que o cantor não cometeria o crime
de abuso sexual, porque sua infância foi sofrida. Assim, não gostaria que outras crianças
sofressem como ele.
Convém salientar que L11, demonstra que tem consciência das intenções da mídia,
pois declara que “essas informações só para encher os olhos dos telespectadores”. “Essa
informações” a que se refere o leitor é a própria notícia lida que só tem como objetivo,
segundo L11, atrair a atenção do público para a leitura do texto. Desse modo, as partes não
entram em acordo quanto aos valores em jogo e o contrato não tem êxito.
Vale dizer que celebridades constantemente são alvos de glória ou de destruição.
Michael, por muito tempo execrado, tão logo confirmada sua morte, os elogios ao talento, à
criatividade, à genialidade do artista passaram a ser a tônica de esmagadora dos comentários
midiáticos, o que pode ter influenciado muitos dos alunos leitores.
L17, em debreagem enunciva, expõe uma informação nova, citando a infância de
Jackson. Ainda ressalta que o sujeito tinha o desejo de voltar a ser criança. Além desse
argumento, o investigado faz uma crítica à informação veiculada pelo enunciador 1, dizendo
que reportagens sérias foram feitas sobre o assunto e que “esta história de pedofilia que ronda
a vida dele, não passa de mídia para denegrir a imagem do rei do pop”.
Fica evidente que L17 não adere ao contrato veridictório proposto pelo enunciador 1,
e, portanto, constrói seu comentário mantendo a admiração pelo cantor, termo disfórico da
notícia. Assim, esse leitor demonstra que tem conhecimentos prévios sobre o tema e tem
consciência de que o fazer-crer do texto do jornal é convencer o enunciatário a ter repulsa
pelo cantor pop.
L7 não apresenta nenhuma informação nova, mas faz uma crítica contundente à mídia,
declarando que acredita na manipulação das informações veiculadas pelos meios de
comunicação. O leitor salienta também que o ex-médico de Michael (mencionado na
reportagem), só apresentou provas verbais, ou seja, não aceita como verdade o discurso
produzido pelo enunciador 1.
Importante notar que L7 usa debragem enunciva no início de seu posicionamento,
denotando objetividade ao seu texto. No entanto, ao término de sua declaração, diz: “todos
somos inocentes até que se prove do contrário”. Usando debreagem enunciativa, demonstra
que suas convicções não foram abaladas, portanto, não mantém a euforia do texto.

5. Considerações finais
Assim, em meio a tantos entraves observados (argumentações linguisticamente
precárias), podemos afirmar que há saídas. Ousamos dizer, mesmo no universo limitado da
investigação realizada, que os problemas verificados devem-se a uma leitura escolar,
tradicionalmente, superficial e pouco explorada. É urgente uma mudança de postura didática e
metodológica dos professores brasileiros.
Nesse contexto, consideramos a teoria semiótica greimasiana uma boa alternativa de
instrumento para o trabalho com o texto, já que a semiótica, desde os primeiros estudos, se
dedica ao trabalho com os mais diversos gêneros, demonstrando a organização que existe no
interior de cada um deles. Mas é necessário deixar claro que a utilização dessa teoria não
representa a solução de todos os problemas com que alunos e professores se deparam para a
leitura de textos. Trata-se de uma ferramenta que pode contribuir para motivar e melhorar o
aproveitamento dos alunos.
Esse modelo teórico de grande potencial para a prática pedagógica, como outros
também eficazes, poderá ser um excelente suporte ao professor de língua materna na
formação de leitores ativos e críticos.
Enfim, o estudo que fizemos dos textos mostrou-se bastante proveitoso, oportunizou
um trabalho científico que pode vir a auxiliar alunos, professores e educadores das escolas de
ensino fundamental e médio a compreender e refletir sobre a importância do trabalho com a
leitura, pois ler para compreender os textos, participando criticamente da dinâmica do mundo
e posicionando-se frente à realidade é a finalidade básica que deve ser estabelecida para as
práticas de leitura na escola.

Referências

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso – Fundamentos semióticos. São Paulo:
Contexto, 2005.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2005.

BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes, 1989, p. 82-84.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e


quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental.
Brasília: MEC/SEF, 1998.

FIORIN,José Luiz e PLATÃO, Francisco S. Para entender o texto. Sãao Paulo: Saraiva,
1993.

FIORIN, José Luiz, Linguagem e Ideologia. 3. Ed., São Paulo: Ática, 1993.

FIORIN, José Luiz. As Astúcias da Enunciação – as categorias de pessoa, espaço e tempo.


São Paulo: Ática, 1996.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: CONTEXTO, 1997.

FIORIN, José Luiz. Sendas e Veredas da Semiótica Narrativa e Discursiva, 31 de agosto de


2008. Disponível em:
http://www.portaleducacao.com.br/pedagogia/artigos/6102/simbolismo-sendas-e-veredas-da-
semiotica-narrativa-e-discursiva. Acessado em 29/12/2010.

FIORIN, José Luiz (org.) Introdução à lingüística II: princípios de análise. Rio de Janeiro:
Editora 34, 2008.

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