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António Covas

Professor da Universidade do Algarve

O pós-pandemia, uma nova fronteira


civilizacional
Passámos do risco localizado para o risco globalizado, do risco concreto para o
difuso, do risco conhecido para o desconhecido, do risco circunscrito para o
sistémico, do risco visível para o invisível

26 abr 2020, 00:071

Num artigo publicado no Observador (OBS, 2018-04-08) perguntei se


estaríamos perante uma Grande Transformação, um “Novo Momento
Polanyi”, uma vez que as próximas décadas até 2050 nos reservam
grandes incógnitas e grandes alterações estruturais. A transição
ecológica e a incógnita das alterações climáticas (o advento de uma nova
era geoclimática, o Antropoceno). A transição digital e a incógnita da
inteligência artificial (o advento do transumanismo). A transição
energética e produtiva e a incógnita das migrações (de pessoas, bens,
serviços e capitais, o advento de uma nova geopolítica).

O Momento Polanyi (Karl Polanyi, A Grande Transformação, 1944)


anuncia uma transformação civilizacional e cultural das sociedades
quando se constata que as instituições, na sua generalidade, deixaram
de acompanhar as mudanças introduzidas pelas forças produtivas e
sociais dominantes. Se as três transições que enunciámos convergirem
na mesma direção, poderemos estar a anunciar a próxima Grande
Transformação.

A economia mundo, com uma malha cada vez mais apertada, atingiu um
grau tal de interdependência e interação que qualquer vetor desencadeia
de imediato efeitos de ricochete por todo o lado. O covid 19 é a
demonstração disso mesmo. O risco global e o efeito sistémico são, pois,
as duas propriedades emergentes mais virulentas da economia mundo
em que vivemos.

É preciso afirmá-lo com toda a clareza, estas propriedades emergentes


têm um forte nexo de causalidade com as agressões humanas ao
ambiente e a desigualdade social (pobreza) do capitalismo atual, que são
as duas causas maiores do presente mau estar civilizacional, ao mesmo
tempo, um grave problema de justiça ambiental e justiça social. Acresce
que tanto as agressões como a desigualdade e a pobreza, pela sua
amplitude, nos colocam a todos, cidadãos do mundo, praticamente face
a face e à mercê de outras tantas mutações de vírus ainda mais
agressivas. Estamos, assim, no limiar de uma nova fronteira
civilizacional que o covid 19 apenas veio revelar em toda a sua extensão.
Vejamos alguns dos traços mais relevantes desta transição civilizacional.

1A des-globalização, uma correção de intensidade e trajetória


Nos próximos anos iremos assistir a um abrandamento do processo de
globalização e a uma relocalização de alguns segmentos das cadeias de
valor. Por paradoxal que pareça, a transformação digital irá promover
um duplo movimento nas trocas internacionais. De um lado, estarão as
cadeias que intensificam a sua globalização, do outro, as cadeias que
promovem a sua relocalização e reindustrialização, pois a automatização
industrial e a inteligência artificial permitem recuperar custos de
produção muito significativos que anteriormente justificaram a sua
deslocalização para o sudeste asiático. Desse abrandamento fará parte,
também, a regulação e mesmo a contingentação da liberdade de
circulação dos migrantes económicos.

2O respeito pelo ambiente e o combate efetivo contra as


alterações climáticas
O combate às alterações climáticas, a descarbonização da economia, a
parcela crescente das energias renováveis, a biodiversidade e os serviços
de ecossistema, irão aproximar a justiça ambiental e a justiça social. Esta
aproximação, conjuntamente com a transição energética, irá estimular a
formação de sistemas produtivos localizados (SPL), tendo em vista uma
gestão racional dos recursos endógenos, que criem emprego local,
protejam o ambiente e os grupos sociais mais desfavorecidos. As duas
justiças funcionarão como os barómetros fundamentais da economia
social de mercado.

3A crise dos hiper-lugares, as grandes metrópoles em ebulição


A pandemia do covid 19 e todos os grandes riscos globais põem em
causa o modo de estar, de ser e de viver no interior das grandes
metrópoles. A iminência de uma ocorrência multirrisco obrigará os
hiper-lugares a uma revisão profunda do seu modo de vida. As grandes
metrópoles correm, assim, o risco de se transformarem rapidamente em
não-lugares portadores de um vírus especial, o vírus de “uma cruel
desigualdade social”. Acresce que, rapidamente, a sociedade digital irá
obrigar os hiper-lugares a repensar o seu gigantismo, a sua arquitetura
e as suas funcionalidades em direção a uma cidade mais policêntrica e
menos vertical do que a atual.

4As comunidades de risco, uma estratégia específica para o


risco global
Basta ver a tipologia World Economic Forum (WEF) dos riscos globais
para percebermos quão perto estamos da ocorrência de graves
acontecimentos multirrisco. Nessa altura, nenhum Estado-nação estará
em condições de enfrentar sozinho as consequências de uma ocorrência
multirrisco. Não podemos ser apanhados desprevenidos, por isso,
doravante, os Estados nacionais terão de se organizar em comunidades
de risco e em redes de conhecimento e ataque de primeira linha que nos
poupem a surpresas muito desagradáveis.

5A sociedade digital, uma maior virtualização e digitalização


da sociedade
O covid 19 mostrou, à evidência, que as primeiras respostas à pandemia
tiveram o contributo das tecnologias digitais, por exemplo: a biometria,
a telemedicina, o teletrabalho, o ensino à distância, o comércio online,
os serviços públicos online, as plataformas colaborativas, etc. À nossa
frente está a desenhar-se, progressivamente, uma outra sociedade
contemporânea, uma outra cultura social e, quase seguramente, um
outro padrão de vigilância individual e cidadania. Uma sociedade com
conta, peso e medida é o que se pede.

6O novo modelo de economia social de mercado


A pandemia do covid 19 mostrou, também, que será preciso, muito
rapidamente, redesenhar o formato do mercado de trabalho em direção
a fórmulas muito diversificadas de pluriatividade e plurirrendimento
que podem, perfeitamente, coabitar. Nesse sentido, irão emergir muitas
plataformas locais tendo em vista regular os sistemas produtivos locais
(SPL), as redes de energia de microgeração (Smart Grides), os circuitos
curtos de comercialização (CCC), as redes digitais distribuídas (RDD)
para a economia solidária, os cursos de formação online (CFO), etc. E,
no final, teremos, ainda, o “rendimento básico garantido” como
elemento complementar inovador no quadro de instrumentos da
economia social de mercado.
7Melhor Estado-Providência e reforço das funções soberanas
do Estado
A pandemia do covid 19 mostrou à evidência como há funções de
soberania que não podem ser aligeiradas. É o caso da saúde pública nas
suas várias dimensões, em especial no apoio à sociedade sénior, mas é,
também, o caso da segurança pública no combate ao crime informático
e ao terrorismo cibernético, que crescerão exponencialmente à medida
que prossegue a transformação digital das sociedades. Por último, e não
menos importante, a organização do poder judicial e da justiça em plena
sociedade digital sofrerá profundas alterações perante uma nova vaga de
problemas de contencioso e responsabilidade cujo alcance não é, ainda,
possível imaginar nesta altura.

8Uma outra abordagem aos equilíbrios geopolíticos mundiais


O covid 19 provocou uma verdadeira convulsão na geopolítica mundial.
E o que dizer, então, do estado atual do mundo anglo-saxónico, da casa
mãe do neoliberalismo redentor e do seu contrato social e político no
momento presente? A trumpolitics, o brexit, a falta de confiança política
no projeto europeu e agora o covid 19, a que se seguirá mais uma grave
recessão económica, são fatores reveladores de uma crescente perda de
hegemonia do mundo ocidental, o que, em conjunto com a crise do
multilateralismo e do internacionalismo liberal, coloca a geopolítica
mundial num ponto de viragem sem precedentes. Aprofunda-se a
desigualdade social, aumenta a vigilância digital, aperta-se o cerco às
democracias políticas liberais e há uma certa psicologia das multidões
que parece conformar-se com o espírito populista e decadente das
chamadas democracias políticas iliberais.

9Em direção a um novo paradigma de ordenamento do


território
O covid 19 vai obrigar-nos a refletir sobre o impacto que as grandes
transições em curso – climática, energética, digital, demográfica,
migratória, socio-laboral e agora, também, a emergência sanitária e os
efeitos sistémicos do covid19 – terão sobre as políticas urbanas, a saúde
pública e o ordenamento do território. Estou a pensar na nova
inteligência coletiva dos territórios, em três versões principais: a cidade-
região nas áreas metropolitanas, a região-cidade nas áreas de baixa
densidade e os territórios-rede nas áreas naturais e rurais (a 2ª
ruralidade). Em cada um destes casos, é perfeitamente possível
melhorar substancialmente a qualidade de vida dos cidadãos.

Imagine-se, por exemplo, a inteligência coletiva que habita as redes de


investigação e desenvolvimento, as redes de cooperação empresarial, as
redes de inovação social, as redes de saúde pública, as redes amigas do
ambiente e, num país tão pequeno como o nosso, o potencial
colaborativo que elas podem estabelecer com as cidades-região (áreas
metropolitanas), as regiões-cidade (redes de cidades em áreas de baixa
densidade) e, ainda, os territórios-rede da 2ª ruralidade.

10Uma outra atitude para as políticas de cidadania ao


quotidiano
Nas cidades do século XXI, onde viverá a maior parte da população
mundial, a vida ao quotidiano será verdadeiramente um grande desafio.
Esta é a razão pela qual o espírito do lugar nos remete para a reinvenção
do quotidiano como uma necessidade urgente da saúde pública nas
grandes cidades. E é aqui que uma certa conceção de Smart City,
entendida como uma máquina digital absorvente, uma cidade
essencialmente codificada, pode colidir com a liberdade, a irreverência
e a criatividade da comunidade humana que a habita. Sublinho a
dialética e o paradoxo que preside à vida ao quotidiano, da banalidade e
alienação até à liberdade e invenção do quotidiano. E para lá do tédio e
da monotonia do quotidiano, há, também, os gestos de nobreza e as
micro liberdades do dia a dia que nos surpreendem amiúde, já para não
falar dos eventos frequentes que nos aliviam a dor da melancolia e
solidão. É isso a política de cidadania ao quotidiano.

Notas Finais: uma nova fronteira


civilizacional
No plano da teoria do risco, a globalização alterou o padrão de risco que
pode ser expresso do seguinte modo: passámos do risco localizado para
o risco globalizado, do risco concreto para o risco difuso, do risco
conhecido para o risco desconhecido, do risco circunscrito para o risco
sistémico, do risco visível para o risco invisível, do risco divisível para o
risco indivisível, do risco particular para o risco coletivo, do risco
privado para o risco socializado e do risco determinístico para o risco
aleatório.

Esta nova equação do risco global e do multirrisco coloca-nos no limite


de uma nova fronteira civilizacional cujos traços mais relevantes aqui
alinhamos, sempre sob o lema da dupla justiça, ambiental e social.

− É fundamental, mais do que nunca, um novo multilateralismo, para


uma globalização regulada e uma governação multiníveis reforçada,
que nos prepare para as grandes transições do “Momento Polanyi”;
− É fundamental, muito em especial, uma organização mundial com
poderes reforçados para o combate às alterações climáticas (acordo
de Paris), a transição energética e a formação das comunidades
multirrisco, de acordo com os princípios mais elementares da justiça
ambiental;
− É fundamental estabelecer uma nova ordem jurídico-política para a
economia digital e uma proteção adicional para os trabalhadores em
consequência das profundas alterações introduzidas nos mercados
de trabalho, de acordo com os princípios mais elementares da justiça
social;
− É fundamental um outro contrato social, uma outra sociabilidade
para as relações interpessoais entre as gerações mais jovens, as
gerações dos que trabalham e as gerações dos mais idosos,
independentemente da sua condição de vida;
− É fundamental estar atento aos continentes menos desenvolvidos e à
condição humana irrecusável dos seus cidadãos, pois é um
imperativo de humanidade salvaguardar os seus direitos
fundamentais, sob pena de eles nos devolveram todos os seus males
em forma muita mais agravada;
− É fundamental que a Smart City seja uma genuína cidade inteligente
e criativa e não uma simples máquina digital ao serviço de uma certa
ideia “sobremoderna” de cidade, ou seja, um verdadeiro hiper-lugar
onde se cruzam o génio do lugar e a reinvenção do mundo;
− É fundamental que, em todos os casos, possamos salvaguardar o
projeto europeu, a sua legitimidade política mais consubstancial, pois
é o único ator da comunidade internacional que pode, ainda, jogar
nos vários tabuleiros que acabámos de enunciar.
A terminar, ainda duas referências. A primeira para referir o “paradoxo
multilateralista”, pois nunca a sua crise foi tão séria e nunca a sua
necessidade foi tão urgente. A segunda para referir o “paradoxo
balcânico”, pois ao mesmo tempo que se anunciam as negociações de
alargamento dos países balcânicos espreita, também, a balcanização da
União Europeia. Por último, não tenho dúvidas de que o fim do projeto
europeu será a linha vermelha, a última fronteira civilizacional do
mundo ocidental. Estaremos, de novo, mergulhados na escuridão
sombria de um neomedievalismo político e à beira de perdermos as
democracias para as ditaduras, mesmo que eufemisticamente
apelidadas de democracias iliberais.

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