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CRITICA

OBRAS DE MACHADO DE ASSIS

Contos Fluminenses.
Critica,
Dom Casmurro.
Esau e Jacob.
Helena.
Historias da Meia Noite.
Historias Sem Data.
Máb e a Luva.
Memorial de Ayres.
Memorias de Braz Cubas
Outras Reliquias.
Paginas Recolhidas.
Papéis Avulsos.
Poesías Completas.
Quincas Borba.
Reliquias da Casa Velha.
Resurreicao.
Semana.
Theatro.
Varias Historias.
Yaya García.
COLLECCÁO DOS AUTORES CELEBRES
DA

LITTERATURA BRASILE1RA

CRITICA POR

MACHADO DE ASSIS
(Golegáo feíta por Mario de ALENCAR)
ÍNDICE

ADVERTENCIA *

Literatura braziteira. — Instinto de nacionalidad^ •


Gmlberme Malta . . « . . , . . . • . «
Castro Alves . • * * *
O Primo Bazilio •
Semana literaria * * . * * * . .
Fagundes Várela • • , .
A nova geracao* . * • * . *
Antonio Jozé
Üm iivro (Cenas do Amazonas, de Jozé Verissimo) .
Secretario cTEKRei
Horas Sagradas e Versos , . . . . * - , , , ;
Pensées détachées et éouvenirs> de Joaquim Nabuco
PREFACIOS
Névoas matutinas 4
Harmonías errantes
Meridionaes * * » . * .
Mirajens • . . • « *
ADVERTENCIA

Depois de 1er este livro, perguntará o leitor


naturalmente porque é que o autoi destesexce-
lentes trabalhos de critica, nao a fez com a as-
siduidade com que cuítivou outro genero de li-
teratura. As pajinas aquí recolhidas sao urna
mostra cabal de que elle era um critico eximio e
seria, querendo-o, um dos memores que já es-
creveram na lingua portugueza. Possuia para o
ser todas asqualidades : o conhecimento das li-
teraturas estrangeiras e da nacional, o conceito
esclarecido, a izengao do espirito, e a capaci-
dade rara de abstrair o proprio gosto para a
justa a precia gao de ideas e processos de autores
e de escolas.
Suponho que elle estreou a sua carreira ñas
letras, ao mesmo no jornal justamente pela cri-
tica. E talvez nao erro afirmando que era esta a
feicao principal do seu enjenho. Atestam-no as
i
t CRITICA

suas primeiras como as suas ultimas crónicas,


onde a fantazia a cade passo cede o logar que
ali é proprio della ás consideragóes do espirito
afeito á analizes de obras literarias. Essa feicao
nao exclue outros nem é incompativel com
as faculdades da imajina gao e creagao. 0 que
me parece é que era a principal e as outras I he
estavam subordinadas. Em um meio de maior
cultura e produgáo, Machado de Assis teria
achado materia bastante e farta para Ihe esti-
mular e ocupar a atengao e oestudo critico. No
Brazil, porém, eao tempo em que elle chegava á
madureza inteletual, a escassez das obras lite-
rarias de veri a dissuadil-o de perzistir nesse tra-
balho, acrecendoa razáode que o proprio atrazo
do meio social creava para o genero menos glo-
ria que dissabores.
E' o que já se depreendia de um trecho da sua
carta em resposta á apresentagao que Jozé de
Alencar Ihe fizera de Castro Alves.
« A tarefa da critica preciza destes parabens:
é tao ardua de praticar, já pelos estudos que
exije, já pelas lutas que impóe, que a palavra
eloquente de um chefe é muitas vezes necessaria
para reavivar as torgas exaustas e reerguer o
animo abatido.
Gonfesso francamente que encetando os meus
ensaios de critica, foi movido pela idea de con-
ADVERTENCIA $

tribuir com al guiña couza para a reforma do


gosto que se ia perdendo e eíetivamente se
perde. Meus limitadissimos esforgos nao podiam
impedir o tremendo dezastre... Si a magnitude
da tarefa era de assombrar espiritos mais ro-
bustos, outro risco havia ; e a este já nao era a
intelijencia que se expunha, era o carater.
Cpmpreende V. Exa que onde a critica nao é
instituida o formada e assentada, a analize lite-
raria tem de lutar contra esse entranhado amor
paternal que faz dos nossos fiihos as mais belas
criancas do mundo. Nao raro se orijinam odios
onde era na tura l travassem-seafetos, Desfiguram-
se os intentos da critica, atribue-se á inveja o
que vem da imparciaíidade; chama-se antipatía
o que é conciencia. »
E' a inteira verdade aínda hoje, e nao sei si
tambem nos outros paizes, mas estou que em
nenbum se manifestará tamanha acrimonia no
resentimento dos autores contra o critico, que
acertada ou erradamente, em todo caso con-
cienciozamente tem ocaziáo de Ibes fazer cen-
sura ou restrinjir o aplauzo. A profissáo de cri-
tico é por isso entre nos das mais penozas, das
mais ingratas, e das mais arriscadas. Que o diga
o meu amigo Sr. José Verissimo, cuja ilustra-
gao, enjenbo, honestidade eesforgo nao lbe tem
valido senao a malquerenca e a irritagaode muita
CRITICA

gente, á qua! aliáz elle só quiz fazer e fez bem


dizendo o quejulgava das suas produces. Tanto
mais meritorio e eficaz é o seu traba Ib o, pois
que o vai realizando com sacrificio das simpa-
tías e agrados que Ihe fóra fácil granjear em
troca de louvores deshonestos. Elle conña no
tempo que é o meíhor juiz e punidor de pra-
guentas; mas essa confianca inculca urna grande
corajem e espirito de luta. E' o que n5o tinha
Machado de Assis. Suscetivel, suspicaz, deli-
cado em extremo receiava magoar aínda que
dizendo a verdade: e quando sentiu os riscos da
proflssáo, já meio dissuadido da utilidade do tra-
balho pela escassez da materia, deixou a cri-
tica individualizada dos autores pela critica ge-
ral dos homens e das couzas, mais serena, mais
eficaz, e ao gosto do seu espirito. A essa especie
de obra prestava-se admiravelmente a feig&o hu-
morista, que elle cultivou estudando, e apropriou
porfime o realizou táo perfeita como se lhe fóra
injenita. De um modo concien te e deliberado,
elle veiu executar na purafig&oa obra para a
qual o qualificava excelentemente a íeÍQáo prin-
cipal do seu espirito a que estavam subordina-
das asfaculdades de imajinacáo e creado. Em
tudo elle ñcou sendo o critico dos outros e de
si proprio: e eis porque a sua obra foi sempre
medida e perfeita, Perdeu-se ó certo um grande
ADVERTENCIA

analizador de obras alheias, e por ventura um


notavel generalizador de doutrinas literarias ;
ganhou-se o contador o Limo e o romancista ad-
mira vel. A troca foi urna vantajem, nao obstante
o que prometíam as pajinas aquí reunidas.
Nao tenho a certeza de haver colijido todos
os trabalbos de critica, e nao seria fácil descu-
brir todos os escritos esparsos em jornaes e re-
vistas durante tao largo periodo de tempo. O
melhor, porém, parece que foi aproveitado e é
bastante. Tive idea dejuntar aquí os trechos das
crónicas A semana, em que ba apreciares e
juizos de autores e Obras; achei dificuldade em
destacal-os, ou por muito breves e sintéticos, ou
por muito enleiados a outros assuntos.
Si esta colegao nao abranjesse mais que os
estudos A nova geragüo, Literatura brazileira,
o Primo Bazilioyiá teria muito com quejustifi-
casse a sua edigao em livro. Os outros escritos
acrecentam-lhe o valor, e o volume que vem sa-
tisfazer um dezejo antigo dos admiradores de
Machado de Assis, será urna revelagáo e um
guia para os que nao tiveram ocaziáo de 1er es-
tes artigos quando primeiramente publicados.
Rio, 2 de Fevereiro de 1910.

MARIO DE ALENCAR.
CRITICA

LITERATURA BRAZILEIRA

INSTINTO DE NACIONALIDADE

Quem examina a atual literatura brazileira


reconhece-lhe logo, como primeiro trago, certo
instinto de nacionalidade. Poezia, romance,
todas as formas literarias do pensamento bus-
cam vestir-se com as cores do paiz, e nao ha
negar que semelhante preocupagao é sintoma de
vitalidade e abono de futuro. As tradigóes de
Gongalves Dias, Porto Alegre e Magalhaes sao
assim continuadas pela geragao já feita e pela
que aínda agora madruga, como aquelles conti-
nuaram as de José Bazilio da Gama e Santa
Rita Durao. Escuzado é dizer a vantajem d'este
universal acordó. Interrogando a vida brazileira
e a natureza americana, prozadores e poetas
h CRITICA

acharáo ali farto mañane ial de inspirado e irao


dando fizionomia propria ao pensarnento nacio-
nal. Esta outra independencia nao tem sete de
Sefcembro nem campo de Ypiranga ; nao se fará
n'um día, mas p a rizadamente, para sair mais
duradoura; nao será obra de urna gerac&o nem
duas; muilas trabalharSo para ella até perfazel-a
de todo.
Sente-se aquelle instinto até ñas manifesta-
cóes da opiniáo, aliáz mal formada aínda, res-
tríta em extremo, pouco solicita, e aínda menos
apaixonada n'estas questdes de poezia e litera-
tura. Ha n'ella um instinto que leva a aplaudir
principalmente as obras que trazem os toques
nacionaes. A juventude literaria, sobretudo, faz
d'este ponto urna questáo de iejitimo amor pro-
prio. Nem toda ella terá meditado os poemas de
Uruguay e Caramurü com aquella atengao que
taes obras estao pedindo; mas os nomes de Ba-
zilio da Gama e Durao sao citados e amados,
como precursores da poezia brazileira. A razáo
é que elles buscaram em roda de si os elementos
de urna poezia nova, e deram os primeiros tra-
aos de nossa fizionomia literaria, emquanto que
outros, Gonzaga por exemplo, respirando aliáz
os ares da patria, nao souberam desligar-se das
faixas da Arcadia nem dos preceitos do tempo.
Admira-se-lhes o talento, mas nao se Ibes per-
INSTINTO GE N\CIONALIDADE f

doa o cajado e a pastora, e n'isto ha mais erro


que aceito.
Dado que as condigoes d'este escrito o permi-
tissem, nao tomaría eu sobre mim a defeza do
máogosto dos poetas arcadicos nern o fatal es-
trago que essa escola produziu ñas literaturas
portuguesa é brazileira. Nao me parece, toda-
vía, justa a censura aosnossos poetas coloniaes,
¡scados daquelle mal; nem igualmente justa a
de nao haverem trabalhado para a independen-
cia literaria, quando a independencia política
jazia ainda no ventre do futuro, e mais que
tudo, quando entre a metropole e a colonia
creara a historia a homojeneidade das tradicóes,
dos costumes e da educagao. As mesmas obras
de Baziíio da Gama e Durao quizeram antes os-
tentar certa cor local do que tornar indepen-
den te a literatura brazileira, literatura que nSo
existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo
agora.
Reconhecido o instinto de nacionalidade que
semanifesta ñas obras d'estes últimos tempos,
conviria examinar si possuimos todas as condi-
coes e motivos históricos de urna nacionalidade
literaria; esta investigado, (ponto de diverjen-
cia entre literatos (além de superior ás minhas
forgas, daría em rezultado levar-me lonje dos
limites d'este escrito. Meu principal objeto é
10 cru riCA
atestar o fato atual, ora o fato é o instinto de
que falei, o geral dezejo de crear urna literatura
mais independente.
A aparicao de Gongalves Dias chamou a aten-
gao das muzas brazileiras para a historia e os
costumes indianos. Os Tymbiras, y-Juca-Py-
rama, Tabira e outros poemas do egrejio poeta
acenderam as imajinagóes; a vida das tribus,
vencidas ha muito pela civilizagao, foi estudada
ñas memorias que nos deixaram os cronistas, e
interrogadas dos poetas, tirando-lhes todos al-
guma couza, qual um idilio, qual um canto
épico.
Houve depois urna especie de reagao. Entrou
a prevalecer a opiniáo de que nao eslava toda a
poezia nos costumes semi-barbaros anteriores
á nossa civilizado, o que era verdade, — e nao
tardou o conceito de que nada tinha a poezia
com a existencia da raga extinta, táo diferente
da raga triunfante, — O que parece um erro.
E' certo que a civilizagao brazileira nao está
ligada ao elemento indiano, nem d'elle recebeu
influxo algum ; e isto basta para nao ir buscar
entre as tribus vencidas os títulos da nossa per-
sonalidade literaria. Mas si isto é verdade, nao
é menos certo que tudo é materia de poezia, urna
vez que traga ao condigOes do bello ou os ele-
mentos de que elle se compóe. Os que, como o
INSTINTO DE NACIONALIDADB U

Sr. Varnhagen, negam ludo aos primeiros po-


vos d'este paiz, esses podem lojicamente excluil-
os da poezia contemporánea. Parece-me, entre-
tanto, que, depois das memorias que a este res-
peito escreveram os Srs. Magalhaes e Gongalves
Días, nao é licito arredar o elemento indiano
da nossa aplicagao inteletual. Erro seria cons-
tituil-o um excluzivo patrimonio da literatura
brazileira; erro igual fóra certa mente a sua ab-
soluta excluzao. As tribus indijenas, cujos uzos
e costumes Joao Francisco Lisboa cotejava com
o livro de Tácito e os achava táo semelhantes
aos dos antigos germanos, desaparecerán^ é
certo, da rejiáo que por tanto tempo fóra sua ;
mas a raga minadora que as frequentou, colheu
informa (¿oes preciozas e no I-as transmitiu como
verdadeiros elementos poéticos. A piedade, a
minguarem outros argumentos de maior valia,
devéra ao menos inclinara imajinagao dos poe-
tas para os povos que primeiro beberam os ares
d1 estas rejióes, consorciando na literatura os
que a fatalidade da historia divorciou.
Esta é hoje a opiniao triunfante, Ou já nos
costumes puramente indianos, taes quaes os
vemos nos Tymbiras, de Goncalves Dias, ou já
na luta do elemento bárbaro com o civilizado,
tem a imajinacao literaria do nosso tempo ido
buscar algún s quadros de singular efeito, dos
12 CRITICA

quaes citarei, por exemplo, a Iracema^ do Sr.


J. de Alencar, urna das primeiras obras d'esse fe-
cundo e brilhante escritor.
Compreendendo que nao está na vida indiana
todo o patrimonio da literatura brazileira, mas
apenas ura legado, tao brazileiro como universal,
nao se limitara os nossos escritores a essa só
fonte de inspirag&o. Os costumes civilizados,
ou já do tempo colonial, ou já do tempo de
hoje, igualmente oferecem á imajinac&o boa e
larga materia de estudo. Nao menos que elles, os
convida a natureza americana, cuja magnificen-
cia e esplendor naturalmente dezafiam a poetas
e prozadores. O romance, sobretudo, apoderou-
se de todos esses elementos de invenc.ao, a que
devemos, entre outros, os livros dos Srs. Ber-
nardo Guimaráes, que brilhante e injenuamente
nos pinta os costumes da rejiao em que naceu,
J. de Alencar, Macedo, Silvio Diñarte (Escra-
gnolle Taunay), Franklin Tavora, e alguns mais.
Devo acrecentar que n'este ponto manifesta-se
ás vezes urna opiniáo, que tenho por errónea ; é
a que só reconhece espirito nacional ñas obras
que tratam de assunto local, doutrina que, a ser
exata, limitaría muitoos cabedaes da nossa lite-
ratura. Goncalves Dias, por exemplo, com
poezias proprias seria admitido no panteón na-
cional ; si excetuarmos os Tymbirasy os outros
INSTINTO BE NAGIONAUDADS 18

poemas americanos, e certo numero de compo-


zigoes, pertencem os seus versos pelo assunto a
toda a mais humanidade, cujas aspirares, en-
tuziasmo, fraquezas edores geralmente cantam;
e excluo d'aí as belas Sexiilhas de Freí Anláo,
queessas pertencem únicamente á literatura por-
tugueza, nao só pelo assunto que o poeta extraiu
dos historiadoros luzitanos, mas até pelo estilo
que elle hábilmente fez antiquado. O mesmo
acontece com os seus dramas, nenhum dos
quaes tem por teatro o Brazil. Iria lonje si tivesse
de citar outros exemplos de caza, e n&o acaba-
ría si fosse necessario recorrer a os estranhos.
Mas, pois que isto vai ser impresso em térra
americana e ingleza, perguntarei simpíesmente
si o autor do Song of Hiawatha, nao é o mesmo
autor da Golden Legenda que nada tem com a
térra que o viu nacer, e cujo cantor admiravel
é; e perguntarei mais si o Hamlet, o Otkello, o
Julio Cezar, a Julieta e Borneo tem aíguma
couza com a historia ingleza nem com o territo-
rio británico, e si entretanto, Shakespeare nao
é, além de um genio universal, um poeta essen-
cialmente inglez.
Nao ha duvida que urna literatura, sobretudo
urna literatura nacente, deve principalmente ali-
mentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua
rejiao; mas nao estabelecamos doutrinas táo
14 CRITICA

absolutas que a empobrecam. 0 que se deve exi-


jir do escritor antes de ludo, é certo sentimento
intimo, que o torne homem do seu tempo e do
seu paiz, ainda quando trate de assuntos remo-
tos no tempo e no espago. Um notavel critico
da Franca, analizando ha tempos um escritor
escossez, Masson, com muito acertó dizia que
do mesmo modo que se podía ser bretáo sem
falar sempre do tojo, assim Masson era bem es-
cossez, sem dizer palavra do cardo, e explicava
0 dito acrecentando que havia u'elle um scolíi-
cismo interior, diverso e melhor do que si fóra
apenas superficial.
Estes e outros pontos cumpna á critica esta-
belecel-os, si tivessemos urna critica doutrinaria,
ampia, elevada, correspondente ao que ella é em
outros paizes. Nao a temos. Ha etem havido es-
critos que tal nome merecem, mas raros, a es-
pagos, sem a influencia quotidiana e profunda
que deveram exercer. A falta de urna critica as-
sim é um dos raaiores males de que padece a
nossa literatura ; é mister que a analize corrija
ou anime a invencao, que os pontos de doutrina e
de historia se investiguem, que as belezas se es-
tudem, que os sinóes se apontem, que o gosto se
apure e eduque, para que a literatura saia mais
forte e vigoza, e se dezenvolva e caminhe aos al-
tos destinos que a esperam.
INSTINTO DE NACIONALIDADE 15

O ROMANCE

De todas as formas varias as maís cultivadas


afualmente no Brazil sao o romance e a poezia
lírica; a mais apreciada é o romance, como
aliáz acontece em toda a parte, creio eu. Sao fa-
céis de perceber as cauzas d'esta preferencia da
opiniao, e por isso nao me demoro em aponíal-
as. Nao se fazem aqui (falo sempre genérica-
mente) livros de filosofía, de lingüistica, de crí-
tica histórica, de alta politica, e outros assim,
que emalheios paizes achamfacilacolhimentoe
boa extracáo; raras sao aqui essas obras e es-
casso o mercado d'ellas. 0 romance póde-se
dizer que domina quasi excluzivamente. Nao ha
n'isto motivo de admira gao nem de censura, tra-
tan do-se de um paiz que apenas entra na pri-
meira mocidade, e esta nao ain la nutrida de
soiidosestudos. Isto nao é desmerecero romance,
obra d'arte como qualquer outra, e que exije da
parte do escritor quaHdades de boa nota.
Aqui o romance, como Uve ocaziao de dizer
busca sempre a cor local. A substancia, nao
menos que os acessorios, reproduzem geral-
mente a vida brazileira em seus diferentes as-
petos e situacoes. Naturalmente os costumes do
lí CRITICA

interior sao os que conservam melhor a tradi-


c&o nacional; os da capital do paiz, e em parte,
os de algumas cidades muito mais chegados á
influencia europea, trazem já urna feic,ao mixta e
ademans diferentes. Por outro lado, penetrando
no tempo colonial, vamos achar urna sociedade
diferente, e dos livros em que ella é tratada, al-
gún s ha de mérito real.
Nao faltam a alguns de nossos romancistas
qualidades de observagáo e de analize, e um
estranjeirc nao familiar com os nossos costumes
achara muita pajina instrutiva. Do romance pu-
ramente de analize, rarissimo exemplar temos,
ou porque a nossa Índole nao nos cliame para
ai, ou porque seja esta casta de obras ainda in-
compativel com a nossa adolecencia literaria.
0 romance brazileiro recomenda-se especial-
mente pelos toques do sentimento, quadros da
natureza e de costumes, e certa viveza de estilo
mui adequada ao espirito do nosso povo. Ha em
verdade ocazioes em queessas qualidades pare-
cem sair da sua medida natural, nías em regra
conservam-se extremes de censura, vindoa sair
muita couza interessante, muita realmente bela.
0 espetaculo da natureza, quando o assunto o
pede, ocupa notavel logar no romance, edá paji-
nas animadas e pitorescas, enao as cito por me
nao divertir do objeto excluzivo d'este escrito,
INSTINTO DE NAClONAUDADE tf

que é indicar as excelencias e os defeitos do con-


junto, sem me demorar em pormenores. Ha boas
pajinas, como digo, e creio até que um grande
amor a este recursoda descric&o, excelente, sem
duvida, mas (comodizem os mestres) de mediano
efeito, si nao avultam no escritor outras quali-
dades essenciaes.
Pelo que respeita á analize de paixdes e ca-
rateres sao muito menos comuns os exemplos
que podem satisfazerá critica, alguns ha, porém,
de mereei mentó incontestavel. Esta é, na ver-
dade, urna das partes mais dificeis do romance,
e ao mesmo tempo das mais superiores. Natu-
ralmente exije da parte do escritor dotes nao
vulgares da observac&o, que, aínda em literatu-
ras mais adiantadas nao andam a rodo nem sao
a parüíha do maior numero.
As tendencias moraes do romance brazileiro
sao geralmente boas. Nem todos elles se rao de
principio a finí irrepreensiveis; alguma couza
haverá que urna critica austera poderia apontar
e corrijir. Mas o tom geral é bom. Os Hvros de
certa escola franceza, aínda que muito lidos
entre nos, nao contaminaram a literatura brazi-
leira, nem sinto n'ella tendencias para adotar as
suas doutrinas, o que é já notavel mérito. As
obras de que falo,foram aquibem-vindas e fes-
tejadas, como hospedes, mas nao se aliaram á
18 CRITICA

familia nem tomaram o governo da caza Os


nomes que principalmente seduzem a nossa mo-
cidade sao os do periodo romántico; os escri-
tores que se váo buscar para fazer compara cóes
com os nos sos, — por que ha aqui muito amor
a essas comparacóes, — sao ainda aquelles com
que o nosso espirito se cducou, os Víctor Hugos,
os Gautiers, os Mussets, os Gozlans, os Ner-
val s.
Izento por esse lado o romance brazileiro, nao
menos o está de tendencias politicas, e geral-
mente de todas as questoes sociaes, — o que
nao digo por fazer elojio, nem ainda censura,
mas únicamente para atestar o fato. Esta casta
de obras conserva-se aqui no puro dominio de
imajinarüo, desinteressada dos problemas do dia
e do sfcüulo, alheia ás crizes sociaes e filozoPi-
cas. Scus principaes elementos sao, como disse,
a pintura dos costumes, a luta das paixóes, os
quadros da natureza, alguma vez o estudo dos
sentimentos e dos carateres ; com esses ele-
mentos, que sao fecundissimos, possuimos já
urna galería numeroza e a muitos respeitos no-
ta vei.
No genero dos contos, á maneira de Henri
Murger, ou á de Trueba, ou á de Ch. Dickens,
que táo diversos sao entre si, tém havido tenta-
tivas mais ou menos felizes, porém raras, cum-
INSTINTO DE NACIONAUDADE M

prindo citar, entre outros, o nome do Sr. Luiz


Guimaraes Júnior, igualmente folhetinista ele-
gante e jovial. E' genero difícil, a despeito da
sua aparente facilidade, e creio queessa mesma
aparencia lhe faz mal, afastando-se delle os es-
critores, e nao lhe dando, pensó eu, o publico
toda a atencjio de que elle é muitas vezes credor.
En rezumo, o romance, forma extremamente
apreciada e já cultivada com alguma extensáo é
um dos títulos da prezente geracáo literaria. Nem
todos os livros, repito, deixam de se prestar a
urna critica minucioza e severa, e si a houvesse-
mos em condigóes regulares, creio que os defei-
tos se correjiriam, e as boas qualidades adquiri-
riam maior realce. Ha geralmeute viva imajina-
gao, instinto do belo, injenua admiragáo da na-
tureza, amor ás couzas patrias, e além de tudo
isto agudeza e observagáo. Boa e fecunda térra,
já deu frutos excelentes eos ha de dar em muito
maior escala.

A POEZIA

A acáo da critica seria sobretudo eficaz em re-


lacáo á poezia. Dos poetas que apareceram no
decenio de 1800 a 1860, uns levou-os a morte
aínda na flor dos anos, como Alvares de Aze-
ÍO CRITICA

vedo, Junqueira Freiré, Cazimiro de Abreu,


cujos nomes excitamna nossa mocidade lejitimo
e sincero entusiasmo, e bem assim outros de
nao menor porte. Os que sobreviverara calarara
as liras; e si uns voltaram as suas atencóes
para outro genero literario, como Bernardo Gui-
maráes, outros vivem dos louros colhidos, si é
que n&opreparam obras demaior tomo, como se
diz de Varella, poeta queja pertence ao decenio
de 1860 a 1870. N'este ultimo prazo outras voca-
cOes aparecerám e numerosas, e basta citar ura
Crespo, um Serra, am Trajano, um Gentil-Ho-
mem de Almeida Braga, -im Castro Alves, um
Luiz Guimaráes, um Rozendo Moniz, um Carlos
Ferreira, um Lucio de Mendonga, e tantos
mais, para mostrar que a poezia contemporánea
pode dar muita couza; e si algum d'estes como
Castro Alves, pertence á eternidade, seus ver-
sos podem servir e servem de incentivo ás voca-
cCesnacentes.
Competindo-me dizer o que acho da atuai
poezia atenho-me sóaos poetas de recentissima
data, melhor direi a urna escola agora domi-
nante, cujos defeitos me parecem graves, cujos
dotes — valiozos, e que poderá dar muito de si,
no cazo de adotar a necessaria emenda.
Nao faltam á nossa atual poezia fogo uom es-
tro. Os versos publicados sao geralmente ar-
INSTINTO DB NACIONALIDA.DE SI

tientes e trazem o cunho da inspiragáo. Nao in-


sisto na cor local; como ácima dissc, todas as
formas a revelam com mais ou menos brilhante
re zulta do; bastando-me citárnoste cazo asoutras
duas recentes obras, as Miniaturas de Gon-
calves Crespo e os Quadros de J. Serra, versos
extremados dos defeitos quevouassinalar. Acre-
centara que tambem nao falta a poezia atual o
sentimento da harmonía exterior. Que preciza
ella entáo? Em que peca a gerac&o prezente?
Falta-lhe um pouco mais de correcáo e gosto;
peca na intrepidez ás vezes da éxpressáo, na im-
propriedade das imajens, na obscuridade do
pensamento. A imaginacáo, que a ba devéras,
nño raro desvairá e se per de, chegando á obscuri-
dade, á hipérbole, quando apenas buscava a no-
vidade e a grandeza. Isto na alta poezia lírica,
— na ode, diría eu, si aínda subsistisse a antiga
poética: na poezia intimae elejiaca encontram-
se os mesmos defeitos, e mais um amaneirado
no dizer e no sentir, o que tudo mostra na poe-
zia contemporánea grave doenca, que é forca
combater.
Bem sei que as cenas majestozas da natureza
americana exijem do poeta imajens e expressóes
adequadas. O cóndor que rompe dos Andes, o
pampeiro que varre os campos do sul, os
grandes ríos, a mata virjem com todas as su as
32 CRITICA

magnificencias de vejetagao, — n5o ha duvida


que sao paineis que dezafiam o estro, mas, por
isso mesmo que sao grandes, devem ser trazi-
dos com oportunidade, e expressos com simpíi-
cidade. Ambas essas condigóes faltam á poezia
contemporánea, e nao é que escasseiem mode-
los, que aí estáo para só citar trez nomes, os
versos de Bernardo Guimaráes, Varella e Al-
vares de Azevedo. Um único exemplo bastará
para mostrar que a oportunidade e a simplici-
dade sao cabaes para reproduzir urna grande
imajem ou exprimir urna grande idea. Nos Tym-
biras, ha urna passajem em que o velho Ogib
ouve censurarem-lhe o filho, por que se afasta
dos outros guerreiros e vive só. A fala do anciao
eomeca com estes primorozos versos:
< S5o torpes os anüns, que em bandos folgam,
SSo máus os caite tus que em varas pascem:
Sómente o sabia geme sozinho,
E sozinho o cóndor aos céus remonta. >
Nada mais oportuno nem maissinjelo do que
isto. A escola a que aludo nao exprimiría a
idea com tao simples meios, e faria mal, por que
o sublime é simples. Fóra para dezejarque ella
versasse e meditasse longamente estes e outros
modelos que a literatura brazileira lhe oferece.
Certo, nao lhe falta, como disse, imajina^ao";
mas esta tem suas regras, o estro leis, e si ha
INSTINTO DB NACIONALIDAD! 33

cazos em que el les rompem as leis e as regras,


é por que as fazem novas, é por que se cha mam
Shakespeare, Dante, Goethe, Cam&es.
Indiquei os tragos geraes. Ha alguns defeitos
peculiares a alguns livros, como por exemplo, a
antitese, creio que por imitac&o de Víctor Hugo.
Nem por isso acho menos condenavel o abuzo
de urna ñgura que, si nasm&os do grande poeta
produz grandes efeitos, nao pode constituir ob-
jeto de imitacao, nem sobretudo elemento de
escola.
Ha tambem urna parte da poezia, que, justa-
mente preocupada com a cor local, caí militas
vezes n'uma funesta iluzao. Um poeta n&o é na-
cional só porque insere nos seus versos muitos
nomes de ñores ou aves do paiz, o que pode dar
urna nacionalidade de vocabulario e nada mais.
Aprecia-se a cor local, mas é precizo que a ima-
jinagáo lhe dé os seus toques, e que estes sejam
naturaes, nao de acarreto. Os defeitos que rezu-
nudamente aponto nao os tenho por incorriji-
veis; a critica os emendaría; na falta d'ella, o
tempo se incumbirá de trazer ás vocagoes as
melhores leis. Com as boas qualidades que
cada um pode reconhecer na recente escola de
que falo, basta a agao do tempo, e si entretanto
aparecesse urna grande vocagao poética, que se
fizesse reformadora, é fóra de duvida que os
U CRITICA

bons elementos entrariarn em melhor caminho,e


á poezia nacional resiariam as traduces do pe-
riodo romántico,

TEATRO

Esta parte pode reduzir-se a urna linha de re-


ticencia. Nao ha atualmente teatro brazileiro,
nenhuma peca nacional se esereve, rarissima
pega nacional se reprezenta. As cenas teatraes
d'este paiz viveram sempre de tradicoes, o que
nao quer dizer que nao admitissem alguma obra
nacional q-uando aparecía. Hoje, que o gosto
publico tocou o ultimo gráu da decadencia e
perversao, nenhuma esperanga teria quem se
sentís se com vocagao para compor obras seve-
ras de arte. Quem lh'as recebe ría, si o que do-
mina éa cantiga burlesca ou obcena, o canean,
a majica aparatoza, tudo o quefalaaos sentidos
e aos instintos inferiores ?
E todavía a continuar o teatro, teriam as vo-
cagóes novas alguns exemplos nao remotos, que
muito as baviam de animar. Nao falo das come-
dias do Penna, talento sincero c orijinal, a quem
só faltou vi ver mais para aperfeigoar-se e era-
preender obras de maior vulto j nem tambem das
tragedias de Magalhaes e dos dramas de Gon-
INSTINTO DE NACIONALIDADE 2g

galves Dias, Porto Alegre e Agrario. Maisrecen-


temente, n'estes últimos doze ou quatorze anos,
houve tal ou qual movimento. Apareceram en-
táo os dramas e comedias do Sr. J. de Alencar,
que ocupou o primeiro logar na nossa escola
realista e cujas obras Demonio Familiar e Mae
sao de* notavel merecí mentó. Logo em seguida
apareceram varias outras compozicóes dignas
do aplauzo que tiveram, taes como os dramas
dos Srs. Pinheiro Guimaráes, Quintino Bo-
cayuva e alguns mais ; mas nada d'isso foi
adiante. Os autores cedo se enfastiaram da cena
que a pouco e pouco foi decaindo até chegar ao
que temos hoje, que é nada.
A provincia ainda nao foi de todo invadida
pelos espetaculos de feira; ainda lá se reprezenta
o drama e a comedia, — mas nao aparece, que
me conste, nenhuma obra nova e orzjinal. E com
estas poucas linhas ñca liquidado este ponto.

A LINGUA

Entre os mnitos méritos dos nossos livros


nem sempre figura o da pureza da linguajem.
Nao é raro ver intercalado embom estilo os so-
lecismos da linguajem comuna, defeito grave, a
que se junta o da excessiva influencia da lingua
36 CRITICA

franceza. Este ponto é objeto de diverjencía


entre os nossos escritores. Diverjencia digo,
porque, si alguns caem n'aquelles defeitos por
ignorancia ou preguica, outros ha que os adotam
por principio, ou antes por urna exajeragao de
principio.
Nao ha duvida que as linguas se aumentam e
alteram com o tempo e as necessidades dos uzos
e costumes. Querer que a nossa pare no seculo
de quinhentos, é nm erro igual ao de afirmar que
a sua transplanta<¡ao para a America nao Ihe in-
seriu riquezas novas. A este respeito a influen-
cia do povoédeciziva. Ha, portanto, certos mo-
dos de dizer locucdes novas, que de forca entram
no dominio do estilo e ganham direito de cidade.
Mas si isto é um falo incontestavel, e si é ver-
da deiro o principio que d*eHe se deduz, nao me
parece aceitavel a opiniáo que admite todas as
alteragóes da linguajem, ainda aquellas que des-
troem as leis da sintaxe e a essencial pureza do
idioma. A influencia popular tem um limite; e
O escritor n&o está obrigado a receber e dar curso
a tudo o que o abuzo, o capricho e a moda in-
ven tana e fazem correr. Pelo contrario, elle
exerce tambem urna grande parte de influencia
a este respeito, depurando a linguajem do povo
eaperfeicoando-lhe arazao
Feitas as excecóes devidas nao se lém muito
INSTINTO DE NAGIONALIDADE t?

os das si eos no Brazil, Entre as exce§5es pode-


rla eu citar até alguns escritores cuja opiniao é
diversa da minha n'este ponto, mas que sabem
perfeitamente os classicos. Em geral, porém,
nao se lém, o que é um mal, Escrever como
Azurara ou Fernao Mendes seria hoje um ana-
cronismo insuportavel. Cada tempo tero, o seu
estilo. Mas esludar-lhes as formas mais apura-
das da linguajem, dezentranhar d'elles mil ri-
quezas, que, á forca de velhas se fazem novas,
— nao me parece que se deva desprezar. Nem
tudo tinham os antigos, nem tudo lém os mo-
dernos ; com os haveres de uns e outros é que se
enriquece o peculio comum.
Outra couza de que eu quizera persuadir a mo*
cidade é que a precipitacáo nao lhe afianza
muita vidaaos seus escritos. Haum prurido de
escrever muito e depressa; tira-se d'isso gloria,
e nao posso negar que é caminho de aplauzos.
Ha intengao de igualar as creacoes do espirito
com as da materia, como si ellas nao fossem
n'este cazo inconciliaveis. Faga muito embora
um homem a volta do mundo em oitenta dias;
para urna obra prima do espirito sao precizos
alguns mais.
Aquí termino esta noticia. Viva imaginac,ao,
delicadeza e forga de sentimentos, gracas de es-
tilo, dotes de observacáo e analize, auzencia ás
?? CRITICA

vezes de gosfo, carencias ás vezes de refíexao e


pauza. lingua nem sempre pura, nena sempre
copioza rauita cor local, eisaqui peralto os de-
feilos e as excelencias da atual literatura brazi-
leira, que ha dado bastante e tem certissimo fu-
turo
1873 (0 Novo Mando — New-York).
GUILHERME MALTA

CARTA AO SR. CONSELHEIRO LOPES NETO

Confiou-me V. Ex. para julgar um dos mais


fecundos poetas da America latina, que o meu
ilustrado amigo Henrique Muzzio apreciarla ca-
balmente , a nao impedir-lh'o a doen^a que nos
priva de seus escritos. Entre a ouzadia de me
fazer juiz e odesprimorde lhe dezobedecer, con-
fesso que me acho perplexo e acanhado.
A idea, porém, de que sirvo neste cazo ao ele-
vado sentimento americano com que V. Ex. esfá
aliando a literatura de dois povos, me dá algum
animo de vir a publico. Claro está que nao virei
como juiz, e sim dizerempoucase sinjelas paía-
vras aimpressáoque mecauza, e nao dehoje, o
eminente poeta chileno.
Nao de hoje, digo eu, por que os seus versos
nao me eram desconhecidos. Os primeiros que
li d'elíe mostrou-m'os o seu compatriota Gui
SO CRITICA

IhermeBlest Gana, maviozissimo poeta e um dos


mais notaveis e polidos talentos do Chile. Vi-
nham impressos n'um jornal de Santiago. Era
um canto ao México, por ocasiáo da catástrofe
que destruio o trono de Maximiliano.
Haviaali muito fogo lírico, ideas arrojadas, e
aínda que a compozic,áo era extensa, o ~poela
soubera conservar-se sempre na mesraa altura.
Hipérbole tambem havia, mas era defeito esse
menos do poeta que da lingua e da raga, natu-
ralmente exajerada na expressao. A leitura do
canto logo medespertou odesejo de leras obras
do autor. Obtive-as posteriormente e li-as com
a atencao que exijia um talento de táo boa tem-
pera.
Nao sao mui recentes, como V. Ex. sabe, os
seus dois vokimes de versos. A única edigáo
que conhecjo, a 2*f traz a data de i858, e com-
preende os escritos de 1847 a i853, tempo da
primeira juventude do poeta. Naoquer istodizer
que se arrufasse com as muzas, e o canto a que
me reíeri ácima prova que tambem ellas lbe nao
perderam a afeita o dos primeiros dias.
Estou que o poeta terá publicado nos jornaes
muitas compozigoes novas, e é de crer que al-
gumas conserve inéditas. De qualquer modo que
seja, os seus dois volumes, como qualidade,
justificam a nomeada de que goza o poeta em
GÜILHERME MALTA 31

toda a Americahespanhola ; e, como quantídade


poderiam encher urna vida inteira.
A poezia e a literatura das repúblicas deste
continente que falam a lingua de Cervantes e
Calderón conta já pajinas dignas de apreso e
credoras de admiracao. O idioma graciozo e
enerjico que herdáram de seus pais adapta-se
maravilhozamente ao sentimento poético dessas
rejióes. Falta certamente muita couza, mas nao
era possivel que tudo houvessem alcanzado na-
gSes recem-nacidas e mal assentes em suas
bazes políticas.
Além disso, parece que a cauza publica tem
roubado muito talento ás tarefas literarias; e
sem falar no poeta arjentino que nao ha muito
empunhava o bastáo de primeiro majistrado do
seu paiz, ahí está Blest Gana, que a diplomacia
prendeu em suas teias interminaveis. Penelope
defraudou Circe, o que é urna inversao da fábula
de Homero. Maltaeradeputadoha um ano, e nao
sei si o é aínda hoje ; nao admirará que o parla-
mento o haja totalmente ratado ás letras. A mes-
ma couza seda na nossa patria; masjá os enfeiti-
cados da política váo compreendendo que nao ha
incompatibilidade entre ella e as muzas, e sem de
todo langarem o habito ás ervas, o que nao é
fácil, é certo que voltam de quando em quando
a retemperar-se na imortal juvenga da poezia.
82 CRITICA

A anarquía moral e material é tambem em al-


guns de seus paizes elemento adverso aos pro-
gressos literarios ; mas a doloroza liga o do
tempo e das rebelioes meramente pessoaes que
tanta vez lhes perturbam a existencia, nao tar-
dará que lhes aponte o caminho da liberdade,
arrancando-os ásditadnras periódicas e esteréis.
Gauzas históricas e constantes tem perpetuado
o estado convulso d'aquellas sociedades, cuja
emancipagáo foi urna escassa aurora entre duas
noites de despotismo. Tal enfcrmidade, si apro-
veita ao egoísmo incuravel dos ditadores de um
dia, nao escapa á sagacidade dos estadistas pa-
triotas e sinceros. Um delles, ministro de estado
na Columbia, ha cerca de um ano, francamente
dizia, em documento oficial, que, na situacáo
do seu paiz, era urna aparencia a república, e
encontrava na ignorancia do povo a cauza fu-
nesta da inanidade das instituigocs. « Nossas re-
vohicfies, dizia o Sr. Camacho Roldan, nacem
expontaneamente e se alimcntam e crecem
neste estado doentio do corpo social, em quet
sob urna tenuissima crosta de populacáo edu-
cada, se estende urna massa enorme de popula-
cho ignorante, joguete de todas as ambic,6es,
materia inerte que se presta indiferentemente ao
bem e ao mal, elemento sem vida propria,que o
furacáo levanta e agita em todas as diregOes,
GUILHERME MALTA 3g

Concluía o sagaz estadista propondo que se ac^t-


disse « á constituicao interior da sociedade. »
Álgum progresso tem já havido, o Perú, e
nao ionje de nos a Confederagao Arjentina, pa-
recera ir fechando a era lutuosa da caudilhajem.
De todos, porém, é o Chile a mais adiantada
república. O mecanismo constitucional nao está
ali enferrujado pelo sangue das discordias ci
vis, que poucas foram e de limitada influencia.
Em frente da autoridade consolidada vive a
liberdade vijilante e pacifica. O que um ministro
da Columbia propunha como necessidade do
seu paiz, vai sendo desde muito urna realidade
na República Chilena, onde a educagao da in-
fancia merece do poder publico aquella desve-
lada atengáo, que um antigo diria ser a mai> bela
obra do legislador*
Muitos patricios nossos, a intancias de V.
Ex., tém revelado numerozos documentos dos
progressos do Chile. E' de bom agoiro esta so-
licitude. Valemos alguma couza; mas nao é
razáo para que desdenhemos os títulos que
possa ter urna nagao, juvenil como a nossa, e no
seu tanto operaría da civilizado. Nao imitemos
o Pariziense de Montesquieu, que se admirav8
de que houvesse Persas. Entre a admiracao su-
persticiosa e o desdem absoluto, ha um ponto,
que é a justiga.
14 CRITICA

A justica reconhece em Gilherme Malta usn


poeta notavel. Os livros que temos delle, como
disse, sao obras da primeirajuventude,equando
» nao dissessem as datas, diria-o claramente o
carater de seus versos. Geralmente reveiam
sentimento juvenil, seiva de primeira m&o, ver-»
dad eirá pompa da primavera, com suas flores e
folhajens caprixozamente nacidas, e ainda mais
caprixozamenie entrelazadas.
Ha tambem seus tons de melancolía, seus en-
fados e abatimentos, arrufas entre o homem e a
vida, que o primeiro raio de sol apaga. Mas nao
é esse o tom geral do livro, nem revela nada ar-
tificial ; seria talvez influxo do tempo, mas in-
fluxo que parece cazar-se com a Índole do poeta.
E' justo dizer que urna ou outra vez, mas so-
bretudo nos dois poemas e nos fragmentos de
poema que ocupáo o primeiro volume, ha mani-
festa influencia de Espronceda e Musset. Influen-
cia digo, e nao servil imitacto, por que o poeta
o adeveras, ea feigaopropria, nao só se Ihe nao
demudou ao bafejo dos ventos de além mar,
mas até se pode dizer que adquirió realee e vi-
gor. O imitador servil copiaría os contornos da
modelo; nao passaria da i, como fazem os maca-
queadores de Víctor Hugo, que julga-m ter en-
rado na familia do poeta, só com lhe reproduzir
a antiteze e a pompa da versificas ao, O dici-
GUILHEftME MALTA 35

pulo é outra cotiza ; embebe-se na ligao do


mestre, assimila ao seu espirito o espirito do
modelo. Tal se pode dizer de Guilherme Malta
nos seus dois poemas Un Cuenta endemoniado,
La Mujer misteriosa e nos fragmentos.
Ha nessas corapozigóes mu i tas pajinas como-
ventes, outras joviaes, outras filozoficas, e des-
cribes variadas, algumas dellas belissimas,
imajens e ideas, ás vezes discutiveis, mas
sempre nobremente expressas, tambem as
achara o leitorem grande copia. 0 defeito desses
poemas, ou contos, que é a designado do autor
— me parece ser a prolixidade. 0 proprio poeta
o reconhece, no Cuento endemoniado, e contrito
pede ao leitor que lhe perdóe :
c las digresiones
Algo estensas que abundan en mi obra. >
A poezia chamada pessoal ocupa grande parte
doü°votume, talvez a maior. Os versos do poeta
sao em geral urna contemplado interior, cou-
zas do coracjio, e mu i la vez couzas de filozofia.
Quando elle volve os olhos em redor de si é para
achar na realidade das couzas um eco ao seu
pensamento, um contraste ou urna harmonía
entre o mundo externo e o seu mundo interior-
A muza de Malta é tambem viajante e cosmopo-
lita.
86 CRITICA.

Onde quer que se lhe depare assunto á mao,


nao o rejeita, colhe-o para enfeita-Io com ou-
tros, e oferece-las á sua patria. Ora canta urna
balada da idade media, ora os últimos instantes
de Sapho. Vasco Nunes recebe um louro,
Pizarro um estigma, Quevedo e Cervantes, Lope
de Vega e Platen, Aristophaphes e Grethe, Es-
proncada e V. Hugo, e aínda outros tém cada
um o seu baixo-relevo na obra do poeta. Ophelia
tem urna pajina, Lelia duas. A muza vóa dos
Andes aos Tyrenios, do presente ao passado,
tocada sempre de inspirado e sequioza de can-
tar. Mas o principal assunto do poeta é elle
mesmo. Essa poezia pessoal, que os trovadores
de má morte deslaváram em versos piños e cho-
rees, encanta-nos ainda hoje ñas pajinas do
poeta chileno.
Escreveu Malta no periodo em que o sol do
romantismo, nado ñas térras da Europa, alu-
miava amplamente os dois hemisferios, e em
que cada poeta acredita va na elevada missáo a
que viera ao mundo. Aquella fé perdeu-se, ou
amorteceu muito, como outras couzas boas que
vao baixando nesta crize do seculo, O canto
do poeta, ode dedicada a Blest Gana, exprime a
serena e profunda confianza do cantor, nao só
na imortalidade da inspira gao, mas tambem na
superioridade da poezia sobre todas as manifes-
GUILHERME MALTA t7

tagOes do enjenho humano. A poezia é o verbo


divino, el verbo de Dios, e o poeta, que é o or-
gáo do verbo divino, domina por isso mesmo
os demais homens: el poeta es el único. Com
este sen timen lo quazi relijiozo, exclama o au-
tor do Canto:

Satmo del orbe, cántico infinito.


Verbo eterne que inflamas
Él alma, y como un fulgido aereolito
Rasgas tenieblas y esplendor derramas
Verbo eterno, aparece,
El bien redime, el bien rejuvenece.
> • • * • . . . . . • • . • • • • • • • . . • • » • • • • • • . • * • • • • •

Alza la frente! de la imagem bella


La forma allí circula;
Perfumes pisa su graciosa huella
I creación de luz, en luz ondula.
Poeta, alza la frente 1
La eterna idea es hija de tu mente t

A muza queassim canta os destinos da poezia


encara fríamente a morte,e fita osolhos na vida
de além-tumulo. Entre outras pajinas em que
este sentimento se manifesta, namoram-me as
que elle chamou para siempre, e que s5o um
sinónimo de amor, animado e vivoy e verdadei-
ramente do cora gao. Nem todas as estro fes se-
rá o irrepreensiveis como pensamento; mas ha
delias que o cantor de Thereza nao recuzaria
¿g CRITICA

assinar. Como o poeta de Elvira, afianza elle a


ímortalidade á sua amada :
Los dos lo hemos jurado para siempre 1
Nada puede en el mundo separarnos;
Consolarnos los dos, los dos amarnos.
Debemos en el mundo, caro bien,
Apezar de las criticas vulgares
Los cantos de mi lira serán bellos»
Immortales quizá.,, yo haré con ellos
Diadema de armonías á tu sien*
Eses cantos son tuyos ; son las flores
Del jardín de tu alma. En ella nacen,
Crecen, aroman, mueran y renacen,
Que es un germen eterne cada flor
Yo recojo el perfume, y transvasado
Del alma mia en el crisol intenso,
En estrofa sublime lo condenso
0 lo esparzo en un cántico de amor.
Mi amante corazón es una selva
En sombras rica, en armonías grata;
1 el eco anuda y á su vez dilata
Con la canción que acaba otra canción*
Lira viviente, cada nota alada
Vibra en sus cuerdas, su emoción espresa ;
Ave incansable de cantar no cesa,
Tan poco el labio de imitar el son.
Oh l si pudieses asomar tus ojos
Dentro en mi alma ! Si leer pudiera*.„
Cuantas odas belíissimas leerás,
Cuantos fragmentos que sin copia están
Todo un poema, enfin, todo un poema
Transfigurado, armónico, infinito,
GÜILHEBME MALTA 89

En caracteres gráficos escrito


Que tu ojos no mas traducirán.

Geralmente é sobrio de descrig&es, e quando


as faz sabe envolver a realidade em boas cores
poéticas. A imajinagáo é viva, o estro caudal, o
verso correntio e eloquente. Nao direi que todas
as pajinas sejam igualmente belas: algumas de
inferior valia; mas táo ampia é a obra, que
ainda fíca muita couza de compensacao.
Quizera transerever urna de tantas compozi-
§5es, como Panteísmo, Canción, Crepúsculo,
Lastimas, La Noche, e muitas mais; o publico,
porém, ante cujos oíhos v&o estas linhas, tem
já nos trechos apontados urna amostra do que
vale a inspira gao do poeta quando abre Iivre-
mente as azas.
Livremente, porque ha ocaziOes em que elle
a si mesmo impOe o dever de ser breve e con-
ceituozo, ganhando na substancia o que perde
na extensáo. Vé-se que conbece o segredo de
condensar urna idea n'uma forma líjeira e cont
ciza que surprenda agradavelmente o leitor. A
prolixidade que éu achei nos poemas, e sobre-
tudo, Cuento endemoniado, nao era defeito do
poeta, mas uní rezultado da exajeragáo dos mo-
delos que seguio.
Assim é que, para conter os impetos de sua
10 CRITICA

alma, e juntamente aconselharaos debéis a pru-


dencia , imaginara a galante alegoría da
pomba:
Tus blancas alas agitas
Paloma, en rando volar,
Y en tus vueltas infinitas
A una blanca vela imitas
Que se aleja adentro el mar.

Allí tus débiles plumas


AI air se esparcirán...
Ah I no de águila presumas!
No abandones ay 1 tus brumas
Por el sol del huracán !
Nemsempre se atém a estas generalidades. 0
problema da vida e da morte amiudo Ihe ocupa
o pensamento. Nao é já o poeta que anuncia a
durac&o dos seus versos; é o homem que per-
ser uta o seu destino, A concluzáo nao é sempre
igual; ás vezes crét ás vezes duvida; ora afirma,
ora interroga apenas; mas esta mesma perplexi-
dade é a expressao sincera do seu espirito.
O filosofo segué as alternativas da alma do
poeta. O que a semelhante respeito encontró no
Iivro é singularmente rápido e lacónico, como si
o autor temesse encarar por muito tempo o pro-
blema terrivel. Que serat poi exemplo, é o sin-
jelo titulo destes sinjelissimes versos:
GUILHEHME MALTA. 41

Hay mas allá ? La tumba es un abismo


O en trono de luces se transforma ?
Queda en la tierra parte de mi mismo.
O de una idea agena soi la forma ?
Me ha creado ei amor ó el egoísmo ?

Noutra pajina — Preguntas sin respuestas :

Santas visiones que jamás hallamos,


Mas que siempre sepeimos y que vemos
Y con ansia del alma dezeamos,
Decidme : és realidad cuanto creemos?
Decidme : és ilusión cuanto esperamos?
Y en la tumba morimos ó nacemos ?

A taes interrogares, muitas vezes repetidas,


responde o mesmo poeta em mais de urna pa-
jina, Linha recta é a denominag&o desta con-
ceituosa quintilha:

La muerte és una fez mas luminosa;


La muerte és una vida mas perfecta*
El espirito humano no reposa;
Contiene un nuevo espirito la fora,
Como en la linea curva está la recta,

N&o se propoz elle a dar-nos um sistema fllo-


zofico ; nSo escreveu siquer um livro de versos*
Escreveu versos, conforme lh'os foi ditando o
sentimento da ocazi&o, e quando os colecionou
L

nao se deteve a compara-los e concilia-los, que


isso seña tirar o carater lejitimo da obra, a va*
CRITICA

riedade do sentii e do pensar. Esse é geral mente


o encanto desta casta de livros. Junqueira
Freiré seria completo sem a contradicho dos
Claustros com o Alongel
Conviriatalvez dizer aíguma couza a respeito
da linguajem e da versiílcagáo do poeta. Urna e
oatra meparecem boas; mas a um estranjeiro,
e sobretudo estranjeiro nao versado na lingua
do autor, fácilmente escapam segredos so fami-
liares aos naturaes. Nem a lingua, nem a poé-
tica da lingua conhego eu de maneira que possa
aventurar juizo seguro. Os escritores europeos
dizem que o idioma castelhano se modificou
muito ou antes que se corrompen passando ao
novo continente.
Ñas mesmas repúblicas da America parece que
ha diferengas notaveis. Dizia-me um escritor do
Pacifico que o castelhano que geralmente se es-
creve na rejiao platina é por extremo corruto;
ealimesmo,ha couza de poucos anos, bradava
um ¡ornalista em favor da sua lingua, que dizia
inga da de escuzados luzitanismos, gragas á vi-
zinhanca do Brazil.
Assim será, nao sei. Mas, a ser exato o que se
lé n'uma memoria da academia hespanhola de
Madrid, Hda e publicada em Novembro do ano
passado, a corrugao da íingua nos paizes his-
pano-americanos, lonje de aumentar, tem-se
GUILHERME MALTA. 43

corrijido c melhorado muito, nao só por meio


de obras de enjenho e ímajinac&o, como por ü-
vros didaticos especiaes. Um poeta da ordem de
Malla tem natural direito aquella honroza men-
guo, e pela pozic&o literaria que ocupa ea popu-
laridade do seu nome i afluirá largamente no mo-
vimento geral.
Estou que nao conhecemos aínda todo o
poeta. O que domina nos dois volumes publi-
cados é o tom suave e brando, a nota festiva ou
melancólica, mas pouco, muito pouco d'aquella
corda do Canto ao México, que o poeta tfio ar-
dentemente sabe vibrar. Guardará elle consigo
siguas trabalhos da nova tase era que entrou,
como o seu compatriota Blest Gana, que teima
em esconder das vistas publicas nada menos
que um poema ? Um e outro, como Barra Las-
tarria, como Errazuriz, como Arteaga, devem
muitas pajinas maisás letras americanas, a que
deram tanto lustre Arboleda e Bazilio da Gama,
Heredia e Goncalves Dias.
1 da Juiho de 1912.
CASTRO AtVES

CARTA A JOSÉ DE A LENCA R

Rio de Janeiro, 29 de Fevereiro de 1868


Exm. Sr. — É boa e grande fortuna conhecer
um poeta; melhor e maior fortuna é recebel-o
das maos de V. Ex., com urna carta que vale
um diploma, com urna recomendado que é urna
sagrado. A muza do Sr. Castro Alves nao po-
día ter mais feliz introito na vida literaria. Abre
os olhos em pleno Capitolio. Os seus primeiros
cantos obtém o aplauzo de um mestre.
Mas se isto me entuziasma, outra couza ha
que me comove e confunde, é a extrema con-
ñanga de V. Ex. nos meus prestimos literarios,
confianza que é ao mesmo tempo um motivo de
orgulho para mim. De orgulho, repito, e táo
inútil fOra dissimular esta impressao, quao ar-
rojado seria ver ñas palavras de V. Ex. mais do
que urna animagao generoza
CASTRO ALTES 45

A tarefa da critica preciza destes parabens; é


tao ardua depraticar, já pelos estudosqueexije,
já pelas lutas que impóe, que a palavra clo-
queóte de um chefe é muitas vezes necessaria
para reavivar as foreas exaustas e reerguer o
animo abatido. •

Confesso francamente, que encetando osmeus


ensaios de critica, fui movido pela idea de con-
tribuir com alguma couza para a reforma do
gosto que se ia perdendo e efetivameote se
perde. Meuslimitadissimos esforcos n&opodiam
impedir o tremendo dezastre. Gomo impedil-o,
si, por influencia irrezistivel, o mal vinha de
fóra, e se impunha ao espirito literario do paiz,
ainda mal formado equazi sem conciencia de si?
Era difícil plantar as leis do gosto, onde se ha-
vía estabelecido urna sombra de literatura, sem
alentó nem ideal, falseada e frivola, mal imitada
e mal copiada* Nem os esforcos dos que, como
V. Ex., sabem exprimir sentimentos e ideas na
lingua que nos legaram os mestres classicos,
nem esses puderam oporum dique á torrente in-
vazora. Si a sabedoria popular nao mente, a
universalidade da doenga podia dar-nos alguma
consolagao, quando nao se antolha remedio ao
mal.
Si a magnitude da tarefa era de assombrar
espiritos mais robustos, outro risco havia ; e a
46 CRITICA

este já nao era a intelijencia que se expunha, era


o carater. Gompreende V. Ex. que, onde a cri-
tica nao é instituida o formada e assentada, a
analize literaria tem de lutar contra esse entra-
nhado amor paternal que faz dosnossosfilhos as
maisbelas crianzas do mundo. Nao raro se oriji-
nanv odios onde era natural travarem-se afetos.
Desfiguram-se os intentos da critica, atribue-se
áinveja o que vem da imparcialidade; chama-se
antipatía oqueé conciencia. Fosse esse, porém,
o único obstáculo, estou convencido que elle
nao pezaria no animo de quem póe ácima do in-
teresse pessoal o interesse perpetuo da socie-
dade, porque a boa fama das muzas o é tam-
bem.
Candados de ouvir chamar bela á poezia, os
novos atenienses rezolveram baml-a da repú-
blica. O elemento poético é hoje um tropero ao
sucesso de urna obra. Apozentaram a imajina-
{¿&o. As muzas, que já estavam apeadas dos tem-
plos, foram tambem apeadas dos livros. A poezia
dos sentidos veiu sentar-se no santuario, e as-
sim generalizou-se urna crize funesta ás letras.
Que enorme Alpheu nao seria precizo desviar
do seu curso para limpar este prezepe de Au-
giíis?
Eu bem sei que no Brazil, como fóra delle, se-
beros espiritos protestam com o trabalho e a li-
CASTRO AL VES 47

<¿So contra esse estado de couzas; tal é, porém, a


feicjio geral da situagao, ao comecar a tarde do
seculo. Mas sempre ha de triunfar a vida inteli-
jente. Basta que se trabalhe sem tregoa. Pela
minha parte, estava e está ácima das minhas
posses semelhante papel; comtudo, entendía e
entendo — adotando a bela definigao do poeta
que V. Ex. dá em sua carta — que ha para o
cidadáo da arte e do belo deveres imprescriti-
veis, e que, quando urna tendencia do espirito
o impele para certa ordem de atividade, é sua
obrigagao prestar esse servico ás letras.
Em todo o cazo nao tive imitadores. Tive um
antecessor ilustre, apto para este arduo mister,
erudito e profundo, que teria proseguido no ca-
minho das suas estréas, si a imaginagáo pos-
sante e vivaz nao lhe estivesse exijindo as crea-
Q6es que depois nos deu. Será precizo acrecen-
tar que aludo a V. Ex. ?
Escolhendo-me para Virgilio do joven Dante
que nos vem da patria de Moema, impoe-me um
dever, cuja responsabiíidade seria grande si a
propria carta de V. Ex. nao houvesse aberto a o
neófito as portas da mais vasta publicidade. A
analize pode agora esmeril ha r nos escritos do
poeta belezas e descuidos. O principal trabalho
está feito.
Procurei o poeta cujo nome ha vía sido Ligado
«8 CRITICA

ao meu, e cora a natural anciedade que nos pro-


duz a noticia de um talento robusto, pedi-Ihe
que me lesse o seu drama e os seus versos.
Nao tive, como V. Ex., a fortuna de os ouvir
diante de um magnifico panorama. Nao se ras-
ga vam horizontes di ante de mim: nao tinba os
pés nessa formoza Tijuca, que V. Ex, chama
um escabelo entre a nuvem e o pantano. Eu es-
ta va no pantano. Em torno de nos ajitava-se a
vida tumultuoza da cidade. Nao era o ruido das
paixoes nem dos interesses; os interesses e as
paixóes tinham passado a vara á loucura: esta-
vamos no carnaval.
No meio desse tumulto abrimos um oazis de
solidáo.
Ouvi o Gonzaga e algumas poezias.
V. Ex. já sabe o que é o drama e o que s5o os
versos, já os aprecioucomsigo,já rezumiu a sua
opiniao. Esta carta, destinada a ser lida pelo
publico, contera as impressoes que recebi com a
leitura dos escritos do poeta.
Nao podiara ser melbores as impressdes.
Achei urna vocac&o literaria, cheia de vida e ro-
bustez deixando antever ñas magnificencias do
prez ente as promessas do futuro. Achei um
poeta orijinal. 0 mal da nossa poezia contempo-
ránea é ser copista — no dizer, ñas ideas e ñas
imajens. — Qopial-as é anular-se. A muza do
CASTRO ALVK& 48

Sr. Castro Alves tem feicáo propria. Si se adi-


vinha que a sua escola éa de Víctor Hugo, nao
é porque o copie servilmente, mas porque urna
índole irmá levou-a a preferir o poeta das
Orieníaes ao poeta das Afeditagdes. Nao lhe
aprazemeertamente as tintas brandas e desmaia-
das da elejia; quer antes as cores vivas e os
traaos vigorosos da ode.
Gomo o poeta que tomou por mestre, o Sr.
Castro Alves canta simultáneamente o que é
grandiozo e o que é deíicado, mas com igual
inspiragao e meto/lo idéntico: a pompa das figu-
ras, a sonoridade do vocabulo, urna forma es-
culpida com arte, sentindo-se por baixo desseg
lavoresoestro, a espontaneidade, o impeto. Nao
é raro andarem separadas estas duasqualidades
da poezia: a forma e o estro. Os verdadeiros
poetas sao os que as tém ambas. Vé-se que o
Sr. Castro Alves as possue; veste as suas ideas
com roupas finas e trabalhadas, O receio de cair
em um defeito nao o levará a cair no defeito
contrario ? Nao me parece que lhe baja aconte-
cido isso; mas indico-lhe o mal, para que fuja
d'elle. E possivel que urna segunda leitura dos
seus versos me mostrasse alguns sin&es facéis
de remediar; confesso que os nao percebi no
xneio de tantas belezas.
0 drama, esseli-o atentamente; depois deou*
00 CRITICA

vil-o, li-o e reli-o, e nao sei bem si era a necessi-


dade de o apreciar, si o encanto da obra, queme
demora va os olhos em cada pajina do volume.
O poeta explica o dramaturgo. Reaparecem
no drama as qualidades do verso; as metáforas
enchem o periodo; sente-se de quando em
quando o arrojo da ode. Sophocles pede as azas
a Pindaro. Parece ao poeta que o tablado é pe-
queño ; rompe o céude lona e arroja-se a o espaco
livre e azul.
Esta exuberancia, que V. Ex. com justa razao
atribue á idade, concordo que o poeta ha de re-
primil-a com os anos. Entáo conseguirá separar
completamente a lingua lírica da lingua drama-
tica; e do muito que devemos esperar temos
prova e nanga no que nos dá hoje.
Estreando no teatro com um assunto histó-
rico, e assunto de urna revolugáo infeliz, o Sr.
Castro Alves consultou a Índole do seu genio
poético. Precizava de figuras que o tempo hou-
vesse consagrado ; as da Inconfidencia tinhara
além disso a aureola do martirio. Que melhor
assunto para excitar a piedade? A tentativa
abortada de urna revoluto, que tinha por fim
consagrar a nossa independencia, merece do
Brazil de hoje aquella veneragáo que as ragas
iivres devem aos seus Spartacus. O insucesso
íel-os criminozos; a vitoria tel-os-ia feito Wa-
CASTRO ALTOS ti

shingtons. Condenou-os a Justina legal; reabi-


lita-os a Justina histórica.
Condensar estas ideas em urna obra dramá-
tica, transportar para a cena a trajedia política
dos Inconfidentes, tal foi o objeto do Sr. Castro
Alves, e nao se pode esquecer que, si o intuito
era nobre, o comeümentó era grave. O talento do
poeta superou a dificuldade; com urna sagaci-
dade, que eu admiro era tao verdes anos, tratou
a historia e a arte por modo que, nem aquella o
pode acuzar de infiel, nem esta de copista. Os
que, como V. Ex., conhecem esta alianca, h5o de
avaliar esse primeiro merecimento do drama do
Sr. Castro Alves.
A escolha de Gonzaga para protogonista foi
cenhuesee inspirada ao poeta pela circunstan-
cia dos seus lejendarios amores, de que é histo-
ria aquella famoza Marilia de Dirceu* Mas nao
creio que fosse so essa circunstancia. Do pro-
cesso rezulta que o cantor de Marilia era ttdo
por chefe da conspirado, em atencSo aos seus
talentos e letras. A prudencia com que se houve
desviou da sua cabera a pena capital. Tiradentes,
esse era o ajitador; serviu á conjurac&o com
urna atividade rara; era mais um conspirador do
dia que da noite. A Justina o escolheu para a
forca. Por tudo isso ficouo seu nome ligado ao
da tentativa de Minas.
CRITICA

Os amores de Gonzaga traziam naturalmente


ao teatro o elemento feminino, e de um lance
cazavam-se em cena a tradig&o política e a tra-
dic&o poética, o corac&o do homem e a alma do
cidad&o. A circunstancia foi bem aproveitada
pelo autor; o protogonista atravessa o drama
sem desmentir a sua dupla qualidade de amante
e de patriota; caza no mesmo ideal os seus
dois sentimentos. Quando Maria Ihe propOe a
fuga, no terceiro ato, o poeta nao hezita em
repelir esse recurso, apezar de ser iminente a
sua perda. Já entáo a revolugáo expira; para as
ambicies, si elle as houvesse, a esperanza era
nenhuma; mas ainda era tempo de cumprir o
dever. Gonzaga preferiu seguir a licjío do velho
Horacio corneiliano; entre o coracjio e o dever
a alternativa é doloroza. Gonzaga satisfaz o de-
ver e consola o coracáo. Nem a patria nem a
amante podem lancar-lhe nada em rosto.
0 Sr. Castro Alves houve-se cora a mesma
arte em relacjio aos outros conjurados. Para
avaliar um drama histórico nao se pode deixar
de recorrer á historia; suprimir esta condic,ao
é expor-se a critica a nao entender o poeta.
Quem vé o Tiradentes do drama nao reco-
nhece logo aquelle conjurador impaciente j
ativo, nobremente estouvado, que tudo arrisca e
empreende, que confia mais que todos no su-
CASTRO ALTES 93

cesso da cauza, e paga enfim as demazias do


seu carater com a morte na forca e a profana-
gao do cadáver? E Claudio, o doce poeta, nao
o vemos todo ali, galhofeiro e generozo, fazendo
da conspiracao urna festa e da liberdade urna
dama, gamenho no perigo, caminhando para a
morte com o rizo nos labios, como aquelles emi-
grados do Terror? Nao lhe rola já na cabega a
idea do suicidio, que praticou mais tarde, quando
a espetativa do patibulo lhe despertou a fibra
de Catáo, cazando-se com a morte, já que se
nao podía cazar com a liberdade? Naoé aquelte
o denunciante Silverio, aquelle o Alvarenga,
aquelle o padre Carlos ? Em tudo isso é de lou-
var a conciencia literaria do autor, A historia
ñas suas maos nao foi um pretexto; nao quiz
profanar as figuras do passado, dando-lhes
feígoes caprixozas. Apenas empregou aquella
exajeragáo artística, necessaria ao teatro, onde
os carateres precizam de relevo, onde é mister
concentrar em pequeño espado todos os tragos
de urna individualidade, todos os carateres es-
senciaesdeuma época ou de um acontecí mentó.
Concordo que a aQáo parece ás vezes dezen-
•olver-se pelo acídente material. Mas esses ra-
rissimos cazos sao compensados pela influencia
do principio contrario em toda a peca.
0 vigor dos carateres pedia o vigor da
H CRITICA

acSo; ella é vigoroza e interessante em todo o


livro; patética no ultimo ato. Os derradeiros
adeuzes de Gonzaga e María excitam natural-
mente a piedade, e uns belos versos fecham
este drama, que pode conter as incertezas de
um talento juvenil, mas que é com certeza urna
invejavel estréa.
Nesta rápida expozigao das minhas impres-
sóes, vfi V. Ex. que alguma couza me escapou.
Eu nao podía, por exemplo, deixarde mencionar
aquí afigurado preto Luiz. Em urna conspira*
cSo para a liberdade, era justo aventar a idea
da abolicáo. Luiz reprezenta o elemento escravo.
Comtudo o Sr. Castro Alves nao lhe deu exclu-
zivamente a paixao da liberdade. Achou mais
dramático pftr n'aquelle coracáo os dezesperos
do amor paterno. Quiz tornar mais odioza a si-
tuacao do escravo pela luta entre a natureza e o
íato social, entre a leí e o coragao. Luiz espera
da revoluc&o, antes da liberdade, a restituic&o
da filha; é a primeira afirraacao da personaíi-
á*ade humana; o cidadáo vira depois. Por isso,
quando no terceiro ato Luiz encontra afilhajá
cadáver, e prorompeem exclamagóese solucos,
o coracáo chora com elle, e a memoria, si a
memoria pode dominar taes comocoes, nos
traz aos olhos a bel a cena do rei Lear, carre-
jando nos bracos Cordelia morta. Quem os com-
CASTRO ALTES 55

para nao vé nem o rei nem o escravo; vé o ho-


mem.
Cumpre mencionar oulras situagCes igualmente
belas. Entra nesse numero a cena da prisáo
dos conjurados no terceiro ato. As cenas entre
María e o governador tambem sao dignas de
mengao, posto que prevalece no espirito o re-
paro a que V. Ex.¡ aludiu na sua carta. 0 oo-
ragao exijiria menos valor e astucia da parte de
María; mas nao é verdade que o amor vence as
repugnancias para vencer os obstáculos? Em
todo o cazo urna lijeira sombra nao empana o
ulgor da figura.
As cenas amorozas sao escritas com paixáo:
as palavras saem naturalmente de urna alma
para outra, prorompem de um para outro cora-
gao. E que contraste melancólico nao é aquelle
idilio ás portas do desterro, quando já a justiga
está prestes a vir separar os dois amantes ?!
Dir-se-ha que eu só recomendó belezas e
nao encontró sinoes? Já apontei os que cuidei
ver. Acho mais — duas ou tres imajens que me
nao parecem felizes; e urna ou outra locugáo
suscetivel de emenda. Mas que é isto no meio
das louganias da forma? Que as demazias do
estilo, a exuberancia das metáforas, o excesso
das figuras devem obter a atengao do autor, é
couza táo segura que eu me limito a mencional-
M CRITICA

as; mas como nao aceitar agradecido esta pro-


digalidade de hoje, que pode ser a sabia econo-
mía de amanhá?
Resta-me dizer que, pintando nos seus perso-
nagens a exaltagao patriótica, o poeta nao íoi
so fiel á ligáo do fato, misturou talvez com
essa exaltagáo um pouco do seu proprio sentir.
É a homenajera do poeta ao cidad&o. Mas,
consorciando os sentimentos pessoaes aos dos
seus personagens, é inútil distinguir o carater
diverso dos tempos e das situacoes. Os suces-
sos que em 1822 nos deram urna patria e urna
dinastía apagarara antipatías históricas que a
arte deve reproduzir quando evoca o passado.
Taes forara as impressóes que me deixou este
drama viril, estudado e meditado, escrito com
calor e com alma. A mao é inexperiente, mas a
sagacidade do autor supre a inexperiencia. Es-
tudoueestuda;é umpenhorque nos dá. Quando
voltar aos arquivos históricos ou revolver as
paix&es contemporáneas, estou certo que o fará
com a máo na conciencia. Está mogo; tem um
belo futuro diante de si. Venha desde já alistar-
se ñas íileiras dos que devem trabalhar para
restaurar o imperio das muzas.
0 fim é nobre, a necessidade é evidente. Mas
o sucesso coróará a obra? E um ponto de in-
terrogado que ha de ter surjido no espirito de
CASTRO ALVSS 57

V. Ex. Contra estes intuitos, tao santos quanto


indispensaveis, eu sei que ha um obstáculo, e
V. Ex. o sabe tambem: é a conspirado da in-
diferenga. Mas a perseveranca nao pode vence-
la ? Devenios esperar que sim.
Quanto a V. Ex., respirando nos degráus da
nossa Tijuca o austo puro e vivificante da natu-
reza, vai meditando, sem duvida, em outras
obras primas com que nos ha de vir sorprender
cá em baixo. Deve faze-lo sem temor. Contra a
conspirag&o da indiferenca, tem V. Ex. um
aliado invencivel : é a conspiracáo da poste-
ridade.
O « PRIMO BAZILIO »

Um dos bons e vivazes talentos da atual


geragao portugueza, o Sr. Ec,a de Queiroz, acaba
de publicar o seu segundo romance, o Primo
Bazilto* O primeiro, O Crime do Padre Amaro ¡
nao foide certo a sua estréa literaria. De ambos
os lados do Atlántico, apreciavamos ha niuito o
estilo vigoroso e brilhante do colaborador do
Sr. Ramalho Ortig&o, n'aquellas agudas Farpas,,
em que aliáz os dois notaveis escritores forma-
ram um so. Foi a eslréa no romance, e táo rui-
dosa estréa, que a critica e o publico, de maos
dadas, puzeram desde logo o nome do autor na
primeira galeria dos contemporáneos. Eslava
obrigado a proseguir na carreira encelada; di-
gamos melhor a colher a palma do triunfo.
Que é, e completo, e incontestavel.
Mas esse triunfo é sómente devido ao tra-
balho real do autor? 0 Crime do Padre Amaro
*
O PRIMO BÁZILIO 19

revelou desde logo as tendencias literarias do


Sr. E$a de Queiroz e a escola a que abertamente
se filiava. O Sr. E§a de Queiroz é ura fiel e as-
perrimo dicipulo do realismo propagado pelo
autor do Assomoir. Si fóra simples copista, o
de ver da critica era deixal-o, sem defeza, ñas
maos do entusiasmo cegó, que acabaría por
matal-o; mas é bomem de talento, transpoz
aínda ha pouco as portas da oficina literaria;
e eu, que lhe nao negó a mínha admira gao,
tomo a peito dizer-lbe francamente o que pensó,
já da obra em si, já das doutrinas e praticas,
cujo iniciador é, na patria de Alexandre Hercu-
lano e no idioma de Gon§alves Dias.
Que o Sr. Eca de Queiroz é dicipulo do au-
tor do Assomoir, ninguem ha que o nao co-
nhega. O proprio Crime do Padre Amaro é imi-
tac.áo do romance de Zola, La faute de Vabbé
Moureí. Situacao análoga; iguaes tendencias;
diferenca do meio; diferenca do desenlace;
idéntico estilo; algumas reminicencias, como
no capitulo da missa, e outras; enfim, o
mesmo titulo. Quem os leu a ambos, nao con-
testo u de certo a orijinaíidade do Sr. Eca de
Queiroz, porque elle a tinha, e tem, e a mani-
festa de modo afirmativo ; creio até que essa
mesraa orijinaíidade deu motivo ao maior
defeito na concec&o do Crime ao Padre Amaro,
60 CRITICA

O Sr. E<ja de Queiroz alterou naturalmente a»


circunstancias que rodeavam o padre Mouret,
administrador espiritual de urna paroquia rus-
tica, flanqueado de um padre austero e rispido;
o padre Amaro vive n'uma cidade de provincia,
no meio de muíheres, ao lado de outros que
do sacerdocio so tém a batina e as propinas;
vé-os concüpicentes e maritalmente estabe-
lecidos, sem perderem um só átomo de influen-
cia e considerado. Sendo assim, nao si com-
preende o terror do padre Amaro, no dia em que
do seu erro lhe nace um íilho, e muito menos
se compreende que o mate. Das duas forgas
que lutamna alma do padre Amaro, urna é real
e efetiva, — o sentimento da paternidade; a
outra é chimenea e irhpossivel, — o terror da
opiniáo, que elle tem visto tolerante e cumplice
no desvio dos seus confrades; e nao obstante, é
esta a forga que triunfa. Ha verá ai alguma ver-
dade moral ?
Ora bem, compreende-se a ruidosa aceitagao
do Crime do Padre Amaro. Era realismo impla-
cavel, consequente, lógico, levado á puerilidade
e á obscuridade. Víamos aparecer na nossa
lingua um realista sem rebufo, sem aienuagftes,
sem melindres, resoluto a vibrar o camartelo
no marmore da outra escola, que aos olbos do
Sr. E$a de Queiroz parecia urna simples ruina,
O PRIMO B AZI LIO (]

urna tradigao acabada. Nao se conhecia no nosso


idioma aquella reproducáo fotográfica e ser-
vi] das couzas mínimas e ignobeis. Pela pri*
meira vez, aparecía um livro em que o escuzo c
o — digamos o proprio termo, pois tratamos
de repelir a douírina, nao o talento, e menos
o homem, — em que o escuzo e o torpe eram
tratados com um carinho minuciozo e relaciona-
dos com urna exacto de inventario. A gente
de goslo leu com prazer alguhs quadros, exce-
lentemente acabados, em que o Sr. Eca de
Queiroz esquecia por minutos as preocupa-
Cues da escola; e, ainda nos quadros que lhe
destoavam, achou mais de um rasgo feliz, mais
de urna expressao verdadeira; a maioria, porém,
atirou-se ao inventario. Pois que havia de fazer
a maioria, sinao admirar a fklelidade de um
autor, que nao esquece nada, e nao oculta
nada ? Porque a nova poética é isto, e so che-
gara á perfeigao no dia em que nos disser o nu-
mero exato dos nos de que se compoe um
lenco de cambraia ou um esfregáo de cozinha.
Quanto á agáo em si, e os episodios que a es-
maltam, foram um dos atralivos do Crime do
Padre Amaro^ e o maior delles; tinham o mé-
rito do pomo defezo. E tudo isso, saindo das
máos de um homem de talento* Droduziu o su-
cesso da obra.
61 CRITICA

Certo da vitoria, o Sr. Ega de Queiroz rein-


cidiu no genero, e trouxe-nos o Primo Bazilio¡
cujo éxito é evidentemente maior que o do pri-
meiro romance, sem que, aliáz, a agao seja
mais intensa, mais interessante ou vivaz, nem
mais perfeito o estilo. A que atribuir a maior
aceitado deste livro ? Ao proprio falo da rein-
cidencia, e, outro sim, ao requinte de certos
lances, que nao destoaram do paladar publico.
Talvez o autor se enganou em um ponto. Urna
das passajens que maior impressao fízeram,
no Crime do Padro Amaro, foi a palavra de
calculado cinismo, dita pelo héroe. O heróe
do Primo Bazilio remata o livro com um dito
análogo; e, se no primeiro romance é elle cara-
teristico e novo, no segundo é já rebuscado,
tem um ar de cliché ; enfastia. Excluido esse
logar, a reprodujo dos lances e do estilo é
feita com o artificio necessario, para lhes dar
novo aspeto e igual impressao.
Vejamos o que é o Primo Bazilio, e comece-
mos por urna palavra que ha nelle. Um dos
personagens, Sebastiao, conta a outro o cazo
de Baziíio, que, tendo namorado Luiza em sol-
teira, estivera para cazar com ella; mas íalindo
o pai, veio para o Brazil, donde escreveu des-
fajen do o cazamento. — Mas é a Eugenia
Grandel I exclama o outro. 0 Sr. Ec,a de jjuei-
O PRIMO BAZIHO «S

roz incumbiu-se de nos dar o fio da sua conce-


d o . Disse talvez comsigo : — Balzac separa
os dois primos, depois de um beijo (aliáz, o
mais casto dos beijos). Carlos vai para a Ame-
rica; a outra fica, e fica solteira. Si a cazasse-
mos com outro, qual seria o rezultado do en-
contró dos dois na Europa ? — Si tal foi a re-
flex&o do autor, devo dizer, desde já, que de
nenhum modo plajiou os personagens de Bal-
zac. A Eugenia deste, a provinciana sinjela e
boa, cujo corpo, aliáz robusto, e-ncerra urna
alma apaixonada e sublime, nada tem com a
Luiza do Sr. Ega de Queiroz. Na Eugenia, ha
urna personalidade acentuada, urna figura mo-
ral, que por isso mesmo nos interessa e prende; a
Luiza,— forga é dizel-o, — a Luiza é um cara-
ter negativo, e no meio da ac&o ideada pelo au-
tor, é antes um títere do que urna pessoa moral.
Repito, é um títere; nao quero dizer que nao
tenha ñervos e músculos; nao tem mesmo outra
couza; nao Ihe pec,am paixóes nem remorsos;
menos aínda conciencia.
Cazada com Jorge, faz este urna viajem ao
Alemtejo, ficando ella sozinha em Lisboa; apa-
rece-lhe o Primo Baziíio,que aamouem solteira.
Ella já o n&o ama; quando leu a noticia da chega-
da delle,dozedias antes, ficou muito« admirada»;
depois foi cuidar dos colé tes do marido. Agora,
6* CRITICA

que o vé, cometa por ficar nervoza; elle Ihe


fala das viajens, do patriarca de Jeruzalem,
do papa, das luvas de oito botóes, de um roza-
rio e dos namoros de outro tempo; diz-lhe que
estimara ter vindo justamente na ocasiao de
estar o marido auzente. Era urna injuria; Luiza
fez-se escaríate; mas, á despedida dá-lhe a máo
a beijar, dá-lhe até a entender que o espera no
dia seguíate. Elle sae; Luiza sente-se « afoguea-
da, cansada », vai despir-se diante de um es-
pelho, « olhando-se muito, gostando de se ver
branca ». A tarde e a noite gasta-as a pensar
pra no primo, ora no marido. Tal é o introito
d'uma queda, que nenhuma razao moral explica,
nenhuma paixao, sublime ou subalterna, nenhum
amor, nenhum despeito, nenbuma perversáo si-
quer. Luiza resvala no lodo, sem vontade, sem re-
pulsa, sem conciencia; Bazilionáofazmais do que
enipuxal-a, como materia inerte, que é. Urna vez
rolada ao erro, como nenhuma flama espiritual
a alenta, nao acha ali a saciedade das grandes
paixOes criminozas: rebolca-se simplesmente.
Assim, essa ligacjio de algumas semanas, que
é o fato inicial e essencial da a^áo, nao passa
deum incidente erótico, sem relevo, repugnante,
vulgar. Que tem o leitor do livro com essas
duas creaturas sem ocupacáo nem sentimentos?
Pozitivamente nada.
O PRIMO BAZILIO 6*

E aquí chegamos ao defeito capital da con-


cegáo do Sr. Eca de Queiroz. A situagao tende
a acabar, por que o marido está prestes a voltar
do Alemtejo, e Bazilio cometa a enfastiar-se, e,
já por isso, já por que o instiga um companheiro
seu, nao tardará a trasladar-se a Paris. Inter-
veio, neste ponto, urna criada, Juliana, o cara*
ter mais completo e verdadeiro do livro; Juliana
está enfadada de servir; espreita um meio de
enriquecer depressa; logra apoderar-se de
quatro cartas; é o triunfo, é a opulencia. Um
diaemquea ama lheralha com aspereza, Juliana
denuncia as armas que possue. Luiza rezolve
fugir com o primo; prepara um saco de viagem,
mete dentro alguns objetos, entre elles um re-
trato do marido. Ignoro inteiramente a razáo
fiziolojica ou psicolojica desta precaucáo de
ternura conjugal : deve haver alguma; em todo
cazo, nao é aparente. Nao se efetua a fuga,
porque o primo rejeita essa complicado; limita-
se a oferecer o dinheiro para rehaver as car-
tas, — dinheiro que a prima recuza — des*
pede-se e retira-se de Lisboa. D'ai em diante o
cordel que move a alma inerte de Luiza passa
das máos de Bazilio para as da criada. Juliana,
com a amcaga ñas maos, obtem de Luiza tudo,
que Ihe dé roupa, que lhe troque a alcova, que
lh'a forre de palhinha, que a dispense de traba-
^f CRITICA

Ihar. Faz mais : obriga-a a varrer, a engomar,


a dezempenhar outroa misteres imundos. Uro
día Luiza nao se coniem; confía ludo a ura
amigo de caza, que ameaga a criada com a
policía e a prizáo, e obtem assim as fataes
letras. Juliana sucumbe a um aneurisma; Luiza,
que já padecia com a longa ameaga e perpetua
humilhagao, expira alguns dias depois.
Um leitor perspicaz terá já visto a incongruen-
cia da concecao do Sr. Ega de Queiroz, e a in-
anidade do carater da heroína. Suponhamos
que taes cartas nao eram descobertas, ou que
Juliana nao tinha a malicia de as procurar, ou
enfim que nao havia semelhante fámula em
caza, nem outra da mesma índole. Eslava aca-
bado o romance, por que o primo enfastiado se-
guiría para Franga, e Jorje seguiría do Alemtejo;
os dois espozos voltavam á vida exterior. Para
obviar a esse inconveniente o autor inventou a
criada e o epizodio das cartas, as ameagas, as
humilhagóes, as angustias e logo a doenga e a
morte da heroína. Gomo é que um espirito táo
esclarecido, como o do autor, nao viu que
semelhante concegáo era a couza menos con-
gruente e interessante do mundo? Que temos
nos com essa luta intestina entre a ama e a
criada, e em que nos pode interessar a doenga
de urna e a morte de ambas? Cá fóra, urna se-
O PRIMO BAZIUO «7

nhora quesucumbisse ás hostilidades de pessoa


de seu servigo, em consequencia de cartas extra-
viadas» despertaría certamen le grande interesse,
e iraensa curiozidade; e, ou a condenassemos,
ou Ihe perdoassemos, era sempre um cazo dig-
no de lastima. No livro é outra couza. Para
que Luíza me atraia e me prendra, é precizo
que as tribulagoes que a aflijem Venham deila
mesma; seja urna rebelde ou urna arrepen-
dida; tenlia remorsos ou imprecacóes; mas, por
Deus! dé-me a sua pessoa moral. Gastar o ago
da paciencia a fazer tapar a boca de urna
cobica subalterna, a substituil-a nos misteres
íntimos, a defendel-a dos ralhos do marido, é
cortar todo o vinculo moral entre ella e nos. Já
nenbura ha, quando Luiza adoece e morre. Por-
qué ? por que sabemos que a catástrofe é o re-
zultado de urna circunstancia fortuita, e nada
mais; e consequentemente por esta razao capí-
tal : Luiza nao tem remorsos, tem medo.
Si o autor, visto que o realismo tambem in-
culca vocagao social e apostólica, intentou dar
no seu romance algum ensinamento ou demons-
trar com elle aíguma teze, forca é confessar
que o nao conseguiu, a menos de supor que a
teze ou ensinamento seja isto : — A boa es-
colha dos fámulos é urna condigao de paz no
adulterio. A um escritor esclarecido e de boa
M CIÚTICA.

é, como o Sr. Ega de Queiroz, nao seria licito


ontestar que, por mais singular, que parega a-
concluzao nao ba outra no seu livro. Mas o au
tor poderia retorquir: — Nao, nao quiz formular
nenhuma lic&o social ou moral; quiz sómente
escrever urna hipoteze ; adoto o realismo,
porque é a verdadeira forma da arte e a única
propria do nosso tempo e adiantamento mental;
mas nao me proponho a lecíonar ou curar;
exerco a patolojia, nao a terapéutica, A isso
respondería eu com ventajero : — Se escreveis
urna hipoteze dai-me a hipoteze lojica, hu-
mana , verdadeira. Sabemos todos que é aflitivc
o espetaculo de urna grande dór fizica; e, nao
obstante, é máxima corren te em arte, que seme-»
lhante espetaculo no teatro, nao comove a nin-
guem; ali vale sómente a dór moral. Ora bem;
aplicai esta máxima ao vosso realismo, e sobre
tudo proporcional o efeito á cauza, e nao exijáis
a minha comocáo a troco de um equivoco.
E passemos agora ao mais grave, ao gravis
simo.
Parece que o Sr. Ega de (Win» 2 quiz dar-nos
na heroína um produto da educacáo frivola e
da vida ocioza; nao obstante, ha ai tragos que
fazemsupor, áprimeira vista, urna vocagáo sen-
sual. A razao disso é a fatalidade das obras do
Sr. Eca de Queiroz, — ou, noutros termos, do
O PRIMO BAZILIO 69

seu realismo sem condecendencia : é a sen-


s a t o fizica. Os exemplos acumuiam-se de
pajina a pajina; aponta-los, seria reuni-los e
agravar o que ha nelles desvendado e crú. Os
que de boa fé supóem defender o livro, dizendo
que podia ser expurgado de algumas cenas,
para so ficar o pensamento moral ou social que
oenjendrou, esquecem ou nao reparam que isso
é justamente a medula da compozic,ao. Ha epi-
zodios mais crús do que outros. Que importa
elimina-los ? Nao poderiamos «eliminar o tom
do livro. Ora, o tom, é o espeta culo dos ar-
dores, exijencias e perversóes fizicas. guando" o
fato lhe nao parece bastante caraterizado com
o termo proprio, o autor acrecenta-lhe outro
improprio. De urna carvoeira, á porta da Ioja,
diz elle que aprezentava a sua « gravidez bes-
tial ». Bestial porqué? Naturalmente, porque o
adjetivo avoluma o substantivo; e o autor nao
vé ali o sinal da maternidade humana; vé um
fenómeno animal, nada mais.
Com taes preocupagóes de escola, nao ad-
mira que a pena do autor chegue ao extremo
de correr o reposteiro conjugal; que nos talhe
as suas mulheres pelos aspetos e trejeitos da
concupicencia ; que escreva riminicencias e
aluzOesdeum erotismo, que Proudhon chama-
ría omnisexual e omnímodo; que no meio da$
70 CRITIC4

tribuíales que assaltam a heroína, nao Ibe in-


funda no coragao, em relacáo ao espozo, as es-
perangas de um sentimento superior, mas so-
mente os cálculos da sensualidade e os « impe-
tos de concubina » ; que nos dé as cenas repu-
gnantes do Paraizo; que nao esquega siquer os
dezenhos torpes de um corredor de teatro. Nao
admira; é fatal; táo fatal como a outra preocu-
pa gao correlativa. Ruim molestia é o catarro;
mas porque hao de padecer dellaos personagens
do Sr. Ega de Queiroz? No Crime do Padre
Amaro ha bastantes afetados de tal achaque;
no Primo Bazilio fala-se apenas de um cazo;
um individuo que morreu de catarro na bexiga.
Em compensagao ha infinitos « jatos escuros
de saliva ». Quanto a preocupac&o constante
do acessorio, bastará citar as confidencias de
Sebasíiao a Juli&o, feitas cazualmente á porta e
dentro de urna confeitaria, para termos ocaziao
de ver reproduzidos o mostrador e as suas pi-
rámides de doces, os bancos, as mezas, um su-
jeito que lé um jornal e cospe a miudo, o choque
das bolas de bilhar, urna rixa interior, e outro
sujeito que sáe a vociferar contra o parceiro;
bastará citar o longo jantar do conselbeiro Aca-
cio (transcrig&o do personagem de Henri Mon-
nier); finalmente, o capitulo do teatro de S,
Carlos, quazi no fim do livro. Quando todo o
O PRIMO BA.ZILIO 71

interesse se concentra em caza de Luiza, onde


Sebastiao trata de rehaver as carias subtraidas
pela criada, descreve-nos o autor urna noite
inteira de espectáculo, a platea, os camarotes,
a cena, urna altercacáo de espetadores.
Que os trez quadros estáo acabados com muita
arte, sobretudo o primeiro, é couza que a critica
imparcial deve reconhecer; mas, por que avoiu-
mar taez acessorios até o ponto de abafar o
principal ?
Talvez estez reparos sejam menos atendiveis,
desde que o nosso ponto de vista é diferente.
0 Sr. Ega deQueiroznáo quer ser realista miti-
gado, mas intenso e completo; e d'ai vem que o
tom carregado das tintas, que nosassusta, para
elleé simplesmente o tom proprio. Dado, porém,
que a doutrina do Sr. Ega de Queirozfosse ver-
dadeira, aínda assim cumpria nao acumular
tanto as cores, nem acentuar tanto as linhas; e
quem o dizéo propriochefe da escola, de quem
li, ha pouco, e nao sem pasmo, que o perigo do
movimento realista é baver quem suponha que
o traco grosso é o traco exato. Digo isto no in-
teresse do talento do Sr. Eca de Queiroztn5o no
da douirina que Ihe é adversa; porque a esta o
que mais importa é que o Sr. Ega de Queiroz es-
creva outros livros como o Primo Bazilio. Si
tal suceder, o realismo na nossa lingua seré
73 CRITICA

estrangulado no bergo ; e a arte pura, apro-


priando-se do que elle contiver aproveítavel
(porque o ha, quando se nao despenha no exces-
sivo, no tediozo, no obceno, e até no ridiculo),
a arte pura, digo eu, voltará a beber aquellas
aguas sadias do Monge de Cister, do Arco de
y
Sant Anna e do Gaarang.
A atual literatura portugueza é assaz rica
üe forca e talento para pódennos afianzar que
este rezultado será certo, e que a heranga de
Garrett se trasmitirá intata ás maos da gera^ao
vindoura.

Ha quinzedias, escrevi nestas colunas urna


apreciac&o critica do segundo romance do Sr,
Ega de Queiroz, O Primo Bazilio, e d'ai para
cá apareceram dois artigos em resposta ao
meu, e porventura algum mais em defeza do
romance. Parece que a certa porgáo de leitores
dezagradou aseveridadeda critica. Nao admira;
nem a severidade está muito nos hábitos da
ttrra; nem a doutrina realista é tao nova que
nao conté já, entre nos, mais de um férvido reli-
jionario. Criticar o livro, era muito; refutar a
doutrina, era demais. Urjia, portanto, destruir
as objecóes e aquietar os ánimos assustados;
O PRIMO BAZILIO y%

foi o que se pretendeu fazer e foi o que se n&o fez.


Pela minha parte, podía dispensarme de vol-
tar ao assunto. Volto (e pela ultima vez) por-
que assim o merece a cortezia dos meus conten-
dores ; e outrosim, porque nao fui entendido em
urna das minhas objegOes.
E antes de ir adiante, convem retiíicar um
ponto. Um dos meus contendores acuza-me de
nada achar bom no Primo Bazilío, Nao adver-
tid que, alem de proclamar o talento do autor
(seria pueril negar-lh'o) e de lhe reconhecer o
dom da obserragao, notei o esmero de algumas
pajinas e a perfeicáo de um dos seus cara teres.
Nao me parece que isto seja negar tudo a um
livro, e a um segundo livro. Disse comigo: —
Este homem tem faculdades de artista, dispóe
de um estilo de boa tempera, tem observacáo;
mas o seu livro traz defeitos que me parecem
graves, uns de concegao, outros de escola em
que o autor é aluno, e onde aspira a tornar
semestre; digamos-lhe isto mesmo, com a cla-
reza e franqueza a que tém jús os espiritos de
certa esfera. — E foi o que fiz, preferindo ás
generalidades do diletantismo literario, a ana-
lize sincera e a reflexao paciente e longa. Cen-
sure! e louvei, crendo haver assim provado duas
couzas : a lea Ida de da minha critica e a sinceri-
dade da minha admiragao.
74 CWICA

Venbamos agora á concecjio do Sr. Ec^a de


Queiroz, e tomemos a liberdade demostrar aos
seus defensores como sedeve 1er e entender urna
objecjio. Tendo eu dito que, si nao houvesse o
estravio das cartas, ou si Juliana fosse mulher
de outra índole, acabava o romance em meio,
porque Bazilio, enfastiado, segué para a Franca,
Jorje volta do Alemtejo, e os dois espozos tor-
nariam á vida antiga, replicam-me os|meus con-
tendores de um modo, na verdade, singular. Um
achou a objecjío fútil e até cómica; outro evo-
cou os manes de Judas Macabeu, de Antioco,
e do elefante de Antioco. Sobre o elefante
foi construida urna serie de hipotezes destina-
das a provar a futilidade do meu argumento.
Por que Herculano fez Eúrico um presbítero ? Si
Hermengarda tem cazado com o gardingo logo
no cometo, haveria romance ? Si o Sr. Eca de
Queiroz nao houvesse escrito o Primo Bazilio,
estañamos agora a analizal-o ? Taes s5o as hi 7
potezes, as perguntas, as deduces do meu
argumento; e foi-me preciza toda a confianza
que tenho na boa fé dos defensores do livro,
para nao supor que estavam a mofar de mim e
do publico.
Que n5o entendessem, vá; nao era um de-
zastre irreparavel. Mas urna vez que nüo enten-
dían!, podiam langar nrno de um destes dois
ú PRIMO BA2IUO 1i

meios: reler-me ou calar. Preferíram atribuir-


me um argumento de simplorio; involuntaria-
mente, creio; mas, em suma, nao me atribuí-
ram outra couza. Releiam-me; lá veráo que, de-
poisde analizar o carater de Luiza, de mostrar
que ella cae sem repulsa nem vontade, que ne-
nhum amor nem odio a abala, que o adulterio é
ali urna simples aventura passageira, chego á
concluzao de que, com taes carateres como
Luiza e Bazilio, urna vez separados os dois, e
regressandoo marido, nao ha meiode continuar
o romance, porque os héroes e a a gao nao dao
mais nada de si, e o erro de Luiza seria um
simples parentezis no periodo conjugal. Volta-
riam todos ao primeiro capitulo: Luiza tornava
a pegar no Diario de Noticias, naquella sala de
jantar tao bem descrita pelo autor; Jorje ia
escrever os seus relatorios, os frequentadores
da caza continuarían! a ir ali encher os serfíes.
Que acóntecimentó, lojicamente deduzido da
situagáo moral dos personagens, podia vir conti-
nuar urna acáo extinta ? Evidentemente ne-
nhum. Remorsos? Nao ha probabilidades delles;
porque, ao anunciar-se a volta do marido,
Luiza, nao obstante o estravio das cartas, es-
quece todas as inquietacóea, « sob urna sensato
e dezejo, que a inunda ». Tirai o estravio das
cartas, a caza de Jorje passa a ser urna nesga
76 CRITICA

do paraizo; sem essa circunstancia, inteira-


mentecazual, acabaría o romance. Ora, a subs-
tituigáo do principal pelo acessorio, a agáo
trasplantada dos carateres e dos sentimentos
para o incidente, para o fortuito, eis a que me
pareceu incongruente e contrario ás leis da arte.
Tal foi a minha objegao. Si algum dos meus
contendores chegar a demonstrar que a obje-
gao nao é seria, terá cometido urna a gao ex-
traordinaria. Até lá, ser-me-ha licito conservar
urna pontazinha de ceticismo.
Que o Sr. Ega de Queiroz podía langar mao
do estravio das cartas, nao serei euque o con-
teste ; era seu direito. No modo de exercer é que
a critica Ihe toma contas, O lengo de Desdemona
tem larga parte na sua morte; mas a alma cioza
e ardente de Othello, a perfidia de lago e a
inocencia de Desdemona, eis os elementos prin-
cipaes da agao. O drama existe, porque está
nos carateres, ñas paixóes, na situagao moral
dos personagens : o acessorio nao domina o
absoluto ; é como a rima de Boileau: il ne doii
qu'obéir. Estraviem-se as cartas, faga uzo del-
las Juliana; é umepizodio comoqualqueroutro.
Mas o que, a meu ver, constitue o defeito da
concegao do Sr. Ega de Queiroz, é que a agao,
já despida de todo o interesse moral, adquire
um interesse anedotico, um interesse de curio-
O PRIMO BAZIUO n

zidade. Luiza resgatará as cartas ? Eis o pro-


blema que o leitor tetn diante de si. A vida, os
cuidados, os pensamentos da heroína nao tém
ouiro obieto, sináo esse. Ha urna ocasiáo em
que, nao sabendo onde ir buscar o dinheiro ne-
cessario ao resgate, Luiza compra urnas caute-
las de lotería ; sáe branco. Suponhamos (aínda
urna supozigáo)! que o numero saia premiado;
as cartas eram entregues; e, visto que Luiza
nao tem mais do que medo, se lhe restabeiecia
a paz do espirito, e com ella a paz domestica.
Indicar a possibilidade desta concluzao é pa-
tentearo valor da minha critica.
Nem seria para admirar o dezenlace pela lote-
ría, porque a lotería tem influencia deciziva em
certo momento da aventura. Um día, arrufada
com o amante, Luiza fíca incerta si irá vel-o ou
nao; atira ao ar urna moeda de cinco tostóes;
era cunho: devia ir e foi. Esses tragos de cara-
ter é que me levaram a dizer, quando a comparei
com a Eugenia, de Balzac, que nenhuma se-
melhanga havia entre as duas, porque esta tinha
urna forte acentuagáo moral, e aquella nao pas-
sava de um títere. Parece que a dezignagao des-
toou no espirito dos meus contendores, e houve
esforgo comum para demonstrar que a dezi-
gnagáo era urna calunia ou urna superfluidade.
Disseram-me que, si Luiza era um títere, nao
78 CRITICA

podía tér músculos e ñervos, como nao podía ter


medo, por que os Hieres nao tém medo.
Supondo que esle trocadilho de ideas veio
sómente para dezenfadar o estilo, me abstenbo
de o considerar mais tempo; mas nao irei
adiante sem convidar os defensores a todo
transe a que releía m, com pauza, o Iivro do Sr.
Eca de Queiroz: é o melhor método quando se
procura penetrar a verdade de urna concec,ao.
Nao direi, cóm Buffon, que o genio é a pacien-
cia: mas creio poder afirmar que a paciencia é
a metade da sagacidade : ao menos, na critica.
Nem basta Ier; é precizo comparar, deduzir,
aferir a verdade do autor. Assim é que, es-
tando Jorje de regresso e extinta a aventura
do primo, Luiza cerca o marido de lodos os cui-
dados, — « cuidados de máe e impetos de con-
cubina ». Que nos diz o autor nessa pajina?
Que Luiza se envergonhava um pouco da ma-
neira « por que ama va o marido; sentia vaga-
mente que naquella violencia amoroza bavia
pouca dignidade conjugal. Parecia-lbe que tinha
apenas um caprixo.
Que horror! Um caprixo por um marido!
Que lhe importada de resto? « Aquillo fazia-a
feliz ». Nao ha absolutamente nenhummeio de
atribuir a Luiza esse escrúpulo de dignidade
conjugal; está ali porque o autor nol-o diz;
O PRIMO BAZILIO Jf

mas nao basta ; toda a compozigao do carater


de Luiza é antinómica com semeíhante sentí-
mentó. A mesma conza diría dos remorsos que
o autor Ihe atribue, si elle nao tivesse o cui-
dado de os definir (pag. 44°)• Os remorsos de
Luiza, permita-me dizel-o, nao é a vergonha da
conciencia, é a vergonha dos sentidos; ou,
como diz o autor : « um gosto infeliz era cada
beijo.» Medo, si m; o que ella tem é medo; disse-o
eu, e dil-o ella propria : « Que feliz seria, se nao
fosse a infame! »
Sobre a linguajem, aluzoes, epizodios, e ou-
tras partes do livro, notadas por mim, como
menos proprias do decoro literario, um dos
contendores confessa que os acha excessivos, e
podiam ser eliminados, ao passo que outro os
aceita e justifica, citando em defeza o exemplo
de Salomao na poezia do Canuco dos Cánticos^
On ne s*atiendaií guere
A votr la Bible en eette affaire;
e menosainda se podía esperar o que nos diz do
livro bíblico. Ou recebéis o livro, como deve
fazer um católico, isto é, em seu sentido mis-
tico e superior, e em tal cazo nao podéis cha-
mar-lhe erótico; ou só o recebéis no sentido li-
terario, e en táo neme poezia, neme de Salomao;
é drama e de autor anónimo. Aínda, porém,
00 CRITICA

que o aceitéis como um simple produto litera-


rio, o exemplonao serve de nada.
Nem era precizo ir á Palestina. Tinheis a Li-
zistrata ; e si a Lizistrata parecesse obcena de
mais, podéis argumentar com algumas frazes
de Shakespeare e certas iocugóes de Gil Vicente
e Camoes. Mas o argumento, se tivesse dife-
rente origen, nao teria diferente valor. Em rela-
gáo a Shakespeare, que importam algumas
frazes obcenas, em urna ou outra pajina, si a
explicagao de militas dellas, está no tempo, e si
a respeito de todas nada ha sistemático ? Elimi-
nai-as ou modificai-as, nada tirareis ao creador
das mais castas figuras do teatro, ao pai de
Imogene, de Miranda, de Viola, de Ophelia,
eternas figuras, sobre as quaes háo de repouzar
eternamente os olhos dos homens. Demais, se-
ria mal cabido invocar o patrao do romantismo
para defender os excessos do realismo.
Gil Vicente uza locugoes que ninguem hoje
escreveria, e menos ainda faria repetir no tea-
tro ; e nao obstante as comedias desse grande
enjenho eram reprezentadas na corte de D. Ma*
noel e D. Joáo III. Camóes, em suas comedias,
tambem deixou palavras hoje condenadas.
Qualquer dos velhos cronistas portuguezes
emprega, porexemplo, o verbo proprio, quando
trata do ato, que hoje dezignamos com a ex-
O PlíIMO BAZILIO 81

pressao dar á luz; o verbo era entao polido;


tempo vira emque dar á lazse\a substituida por
outra expressao; e nenhum jornal, nenhum teatro
a imprimirá ou declamará como fazemos hoje.
A razáo disto, si nao fosse obvia, podíamos
apadrinhal-a com Macaulay: é que ha termos
delicados num secuto e grosseiros no seculo se-
guinte. Acrecentarei que noutros cazos a
razáo pode ser simplemente tolerancia do
gosto.
Que ha, pois, eomum entre exemplos dessa
ordem, e a escola de que tratamos? Em que
pode um drama de Israel, urna comedia de
Alhenas, urna locuelo de Shakespeare ou de
Gil Vicente justificar a obcenidade sistema-
tica do realismo? Diferente couza é a indecencia
relativa de urna locucáo, e a constancia de um
sistema que, uzando aliáz de relativa decencia
ñas palavras, acumula e mésela toda a sorte de
ideas e sensacóes lascivas; que, no dezenho e
colorido de urna mulher, por exempio, vai di-
reito ás indicagóes sensuaes.
Nao peco, de certo, os estafados retratos do
rom antis mo decadente; pelo contrario, algnma
couza ha no realismo que pode ser colhido em
proveito da imajina<¿ao e da arte. Mas sair de
um excesso para cair em outro, nao é rejenerar
nada: é trocar o ájente da corroe,So.
88 CRITICA.

Um dos meus contendores persuade-se que o


livro podía ser expurgado de alguns tragos maís
grossos; persuazao, que no primeiro artigo
disse eu que era ilusoria, e porqué. Ha quem
vá adiante e creía que, nao obstante as partes
condenadas, o livro tem um grande efeito
moral. Essa persuazao nao é menos iluzoria
que a primeira; a impressSo moral de um livro
nao se faz por silojismo, e si assim fosse, já
ficou dito tambem no outro artigo qual a con-
cluzáo deste. Si eu tivesse de julgar o livro
pelo lado da influencia moral, diria que, qual-
quer que seja o ensinamento, si algum tem,
qualquer que seja a extensáo da catástrofe,
urna e outra couza sao inteiramente destruidas
pela viva pintura dos fatos viciozos : essa pin-
tura, esse aroma de alcova, essa descrigao mi-
nucioza, quasi técnica, das relagOes adulteras,
eis o mal. A castidade inadvertida que 1er o
livro chegará á ultima pajina, sem fechal-o, e
tornará atraz para reler outras.
Mas nao trato disso agora; nao posso siquer
tratar mais nada; foje-me o espago. Resta-me
concluir, e concluir aconselhando aos jovens
talentos de ambas as térras danossa lingua, que
n&o se deixem seduzirpor urna doutrina caduca,
embora no verdor dos anos. Este messianismo
literario nao tem a forga da universalidade nem
O PRIMO BAZILIO 69

da vitalidade; traz comsigo a decrepitude. In-


flue, de certo, em bom sentido e até certo ponto,
n&o para substituir as doutrinas aceitas, mas
corrijir o excesso de sua aplicado. Nada mais.
Voltemosos olhospara a realidade, mas exclua-
mos o realismo; assim nao sacrificassemos a
verdade estética.
Um dos meus contendores louva o livro do
Sr. E^a deQueiroz, por dizer a verdade, e atri-
bue a algum hipócrita a máxima de que nem to-
das as verdades se dizem. Vejo que confunde a
arte com a moral; vejo mais que se combate a
si proprio. Si todas as verdades se dizem, por-
que excluir algumas ?
Ora, o realismo do Srs. Zola e Eca de Quei-
roz, apezar de tudo, ainda nao esgotou todos
osaspétos da realidade. Ha atos Íntimos e ínfi-
mos, vicios ocultos, secregoes sociaes que nao
podem ser preteridas nessa expozigao de todas
as couzas. Si sao naturaes para que escónde-
los? Ocorre-meque a Voltaire, cuja eterna mofa
é a consolado do bom senso (quando nao tran-
cende o humano limite), a Voltaire se atribue
urna resposta, da qual apenas citarei metade:
Tres natarel aassiy mais je porte des caloítes.
Quanto ao Sr. Eca de Queiroz e aos seua
amigos desle lado do Atlántico, repetirei que o
autor do Primo B azilio tem em mim um adoii-
84 CRITICA

rador de seus talentos, adversario de suas dou-


trinas, dezejozo de o ver aplicar, por modo dife-
rente, as fortes qualidades que possue; que, se
admiro tambem muitos dotes do seu estilo, faco
restriñes á linguajem; que o seu dom de ob-
serva gao, aliaz pujante, é complacen te em de-
mazia ; sobretudo, é exterior é superficial. 0
fervor dos amigos pode estrannar este modo de
sentir e a franqueza de o dizer. Mas entáo o aue
seria a critica?
SEMANA LITERARIA

A reabilitagao da mulher perdida, tal foi


durante muito tempo a questáo formulada e deba-
tida no romance e no teatro. Negavamuns, afir-
m&vam outros, dividiam-se os ánimos, traca-
vam-se campos opostos; e durante urna larga
porgáo de tempo a heroína do dia oscilou entre
as gemonias e o capitolio. Nao tern conta a
soma de talento empregado nesse debate, e é
realmente de invejar o esplendor de muitos
nomes que figuraram nelle. Mas, quaesquer que
fossem os prodijios de invencao da parte dos
poetas, nao era possivel fujir ao menor dos in-
convenientes do assunto, que era a monoto-
nía. Era o menor, por que o maior estava na
couza em si, na propria escolha do assunto,
na pintura da sociedade que se trasladara para
a cena. Que a concluzao fosse afirmativa ou ne-
gativa, pouco importa em materia de arte. O
W CRITICA

certoé que muitos espiritos delicados nao pode-


ram fujir á tentagáo; e para atestar que a ten-
tac&o era grande, basta lembrar dois nomes, um
nosso, outro estranho, o autor do Cazamento de
Olimpia e o autor das A zas de am anjo. Ne-
nhum dellesconcluiopela afirmativa; assuas in-
tenc,oes moraes eram boas, as suas ideas sas;
mas os costumes e os carateres escolhidos
como elementos das suas pegas eram os mes-
mos que estavam em voga, e de qualquermodo,
aplaudindo ou condenando, eram sempre os
mesmos héroes que figuravam na cena. Só ha-
via de mais o lustre de dois nomes estimados.
Depois de escrever o Demonio familiar^ co-
media excelente, como estudo de costumes e de
carateres, quiz o Sr. Conselheiro J. de Alen-
car dizer a sua palavra no debate do dia. Nisto,
o autor das Azas de um anjo n&o cedía sómente
á sedugao do momento, formuíava tambem urna
opiniáo; é arriscado estar em dezacordo com
urna intelijencia tao esclarecida, por que é arris-
carse a estar em erro ; nao foi, porém, sem
detido exame que adotamos urna opiniáo con-
traria á do ilustre escritor. A nossa diverjencía
é de ponto de vista; pode a verdade nao estar da
nossa parte; pode nao estar da parte delie; mas,
qualquer que seja a man eirá por que encaremos
a arte, ha só urna de encarar o talento do autor.
SEMANA LITERARIA S7

E' evidente que a comedia das Azas de um


anjo nao conclue pela afirmativa da teze táo
celebrada; e foi o que muita gente nao quiz ver.
A idea da pega está contida em algumas pala-
vras do personagem Menezes; Carolina exprime
a punigáo dos pais, que descuraram a sua edu-
cagáo moral; do sedutor que a arrancou do
seio da familia, do segundo amante que a acá*
bou de perder. O epilogo da pega é o caza-
mentó de Carolina ; mas quem vé ai a sua rea-
é

bi lita gao moral? Caza mentó quazi clandestino,


celebrado para protejer urna menina filhado erro
de uniáo sem as doguras de amor nem a digni-
dade de familiat é isso acazo um ato de reje-
neragao? Nao, o autor das Azas de umanjo nao
quiz restituir a Carolina os direitos moraes que
ella perderá. Mas isto, que é o dezenlace de urna
situagáo dada, n&o nos parece que justifique
essa mesma situagáo. 0 que achamos reparavel
na comedia das Azas de um anjo nao é o dezen-
lace, que nos parece lojico; é a situagáo de que
nace o dezenlace; é o assunto em si. 0 que
nos parece menos aceitavel é o que constitue o
fundo e o quadro da comedia ; nao ha duvida
aíguma de que a pega é cheia de interesse e de
lances drama lieos; a invengáo é orijinal, apezar
do cansago do assunto; mas o que sentimos é
precizamente isso ; é urna soma táo avultada
88 CRITICA

de talento e de pericia empregada em um as»


sunto, que, segundo a nossa opiniao, devia ser
escluido da cena.
A. teoría aceita, e que prezidio antes de tudo
ao genero de pee,as de que tratamos, é que, pin-
tando os costumes de urna classe parazita e es-
pecial, conseguir-se-ia melhora-Ia e influir-lhe
o sentimiento do dever; pondo de parte esta
questao da correcjio dos costumes por meio do
teatro, couza duvidoza para muita gente, per-
guntaremos simplesmente si ha quem acredite
que as Mulkeres de marmore, o Mando eqai-
vocOy o Cazamenio de Olimpia e as Azas de um
anjo, chegassem a corrijir urna única dos Mar-
cos e das Paulinas da atualidade, A nossa res-
posta é negativa; e si as obras nao serviam ao
fim proposto, serveriam acazo de avizo á socie-
dade honesta? Tambemnáo, pela razao simples
de que a pintura do vicio nessas pecas (exceQáo
feita das Azas de um anjo) e feita com todas as
cores brilhantes, que seduzem, que atenuam,
que fazem quazi do vicio um resvalamento re-
paravel.Isto, no ponto de vista dos chefes da es-
cola, si ha escola; mas que diremos nos, pre-
valecen do a doutrina contraria, a doutrina da
arte pura, que izóla o dominio da imajinagao, e
tira do poeta o carater de tribuno?
Viudo depois do Demonio familiar, as Azas
SEMANA LITERARIA 89

de um arijo encerram muitas das qualidades do


autor, revelando sobretudo as tendencias dra-
máticas, tao pronunciadas como as tendencias
cómicas do Demonio familiar e do Verso e re-
verso. No empenho de nao poupar nenhuma
das angustias que devem acometer a mulher
perdida da sua pega, o autor nao hezitou em
produzir a ultima cena do 4° acto. 0 efeito é
terrivel, o contraste medonho ; mas, consinta-
mos o ilustre poeta urna declarado franca, a
cena é demaziado violenta, sem satisfazer os
seus intuitos; aquelle encontró do pai e da filha
nao altera emnada a situac&o desta, nao Ihe au-
menta o horror, nao lbe cava maior ¡abismo ; e
comtudo o coragao do espetador sente-se aba-
lado, nao pelo efeito que o autor teve em vista,
mas por outro que rezulta da inconveniencia do
lance, e dos sentimentos que elle inspira.
Faremos aínda um reparo, e será o ultimo.
Carolina que, segundo a fraze de Menezes, ex-
prime a punigáo dos pais e dos seus corrup-
tores, se pune a estes com justica, aplica aos
pais urna punigao demaziado severa. Diz Me-
nezes que elles nao cuidaram da educagáo moral
da filha; mas desta circunstancia nao existe ves-
tijio algum na pega, a nao ser a as ser cao de
Menezes; o primeiro ato aprezenta um aspeto
«Je paz domestica, de felicidade, de pureza, que
•O CRITICA

contrasta vivamente com a fuga da moga, sem


que apareja o menor indicio dessa atenuante,
si pode haver atenuante para o ato de Carolina.
O Sr. Conselheiro José de Alencar, logo de-
pois dos acontecimentos que ocorreram por oca.
zíáo das Azas de um anjo, declarou que que-
brava a pena e fazia dos pedamos urna cruz.
Declaracjio de poeta, que um carinho da muza
fez esquecer mais tarde. A's A zas de um anjo
sucedeuum drama, a que o autor intitulou Mái,
O contraste nao podía ser maior; saiamos de
urna comedia que contrariava os nossos senti-
mentos e as nossas ideas, e assistiamos ao me-
ihor de todos os dramas nacionaes até hoje re-
prezentados; estavamos diante de urna obra ver-
daderamente dramática, profundamenle hu-
mana, bem concebida, bem executada, bem con-
cluida. Para quem estava acostumado a ver ao
Sr. J, de Alencar o chefe da nossa Iiteratupa
dramática, a nova pega resgatava todas as di-
vergencias anteriores.
Si aínda fosse precizo inspirar ao povo o hor-
ror pela instituigáo do cativeiro, eremos que a
reprezentacáo do novo drama do Sr. J. de Alen-
car faria mais do que todos os discursos que se
podessem proferir no recinto do corpo legisla-
tivo; e isso sem que a Mái seja um drama de-
monstrativo e argumentador, mas pela simples
SEMANA LITERARIA M

impress&o que produz no espirito do espetador,


como convém a urna obra de arte. A materni-
dade na mulher escrava, a mai cativa do pro-
prio filho, eis a situacáo da pega. Achada a si-
tuacáo, era precizo saber aprezenta-la, dezen-
volve-la, conclui-la; tornava-se precizo tirar
della todos os efeitos, todas as consequencias,
todos os lances possiveís; do contrario, seria
desvirjinal-a sem fecundal-a. O autor, nao só o
compreendeu, como o executou com urna con-
ciencia e urna inspirac&o que nao nos cangamos
de louvar.
Vejamos o que é essa mái. Joana estando
aínda com o seu primeiro senhor, Leve um filho
que foi perfilhado por um homem que a com-
prou, apenas nacido o menino. Morreu esse,
inslituindo o rapaz como seu herdeiro ; nada
mais fácil a Joana do que descobrir ao mogo
Jorje o misterio do seu nacimento. Mas entSo
onde estava a heroina? Joana guarda reiijio-
zamente o segredo e encerra-se toda na obscu-
ridade da sua abnegado, com receio de que
Jorje venha a desmerecer diante da sociedade,
quando se conhecer a condigao e a raga de sua
"l

mai. Ella nao indaga, nem discute a justiga de


semelhante preconceito; aceita-o calada e resi-
gnada, mais do que isso, feliz; porque o silen-
cio assegura-íbe mais que tudo a estima e a
92 CRITICA.

ventura de Jorje. Até aqui já o sacrificio era


grande; mas cumpria que fosse imenso. Quando
Jorje, para salvar o pai da noiva, preciza de urna
certa soma de dinheiro, Joana rasga a carta
de liberdade dada anteriormente por Jorje, e o-
ferece-se em holocausto ánecessidade do mo<;o;
é hipotecada. Mas os acontecimentos precepi-
tam-se; o Dr. Lima, único que sabia do naci-
mento de Jorje, sabe da hipoteca de Joana,
feita por um titulo de venda simulada, eprofere
essa fraze tremenda, que faz estremecer todos os
espetadores : Desgranado, tu vendeste tua mái!
Descoberto o segredo, Joana nao hezita sobre
o que deve fazer; teme pelo filho, e nao quer
langa r a menor sombra na sua felicidade: escrú-
pulo tocante, de que rezulta o suicidio. Tal é a
peripecia deste drama, onde o patético nace
de urna situacSo punjentee verdadeira.
Nao diremos, urna por urna, todas as belas
cenas deste drama tao superior; demais, seria
inútil, pois que elle anda ñas maos de todos.
Urna dessas cenas é aquella em que Joana,
para salvar o futuro sogro do filho, e portanto a
felicidade delle, procura convencer ao uzurario
Peixoto de que deve socorrer o moQO, sobre
a sua hipoteca pessoal. Nada mais punjente ;
sob aquelle dialogo familiar, palpita o drama,
aperta-se o coracáo, arrazam-se os olhos de la-
SEMANA LITERARIA 93

grimas. Si Joana é a personagem mais impor-


tante da pega, nem por isso as outras deixam de
inspirar verdadeiro interesse, sobretudo Jorje
e Eliza, crea tura frajil e delicada, que produz
inocentemente urna situacao, como cauza indi-
reta do holocausto a que se oferece Joana.
Nao pode ha ver duvida de que é esta a pega
capital do Sr. J. de Alinear ; paixáo, interesse,
orijinalidade, ura estado profundo do corac&o
humano, mais do que isso, do coragao materno,
tudo se reúne nesses quatro a tos, tudo faz
desta pega urna verdadeira creac&o. Desde en-
tao os louros de poeta dramático floreceram na
fronte do autor entrelazados aos louros de poeta
cómico. Villemain observa que a reuniao dessas
duas faces da arte teatral nos mesmos indivi-
duos é um síntoma das épocas decadentes; se
estaregra é verdadeira, nao pode deixar de ser
confirmada pela excegao ; e a excecáo é de
certo de nossa época, no Brazil, época que mal
comeca, mas que já se ilustra com algumas
obras de mérito e de futuro.
Resta-nos pouco para completar o estudo das
obras teatraes do Sr. J.de Alencar, cujo logar ñas
letras dramáticas, estaria difinido, mesmo que
nao nos houvesse dado o Demonio familiar, isto é,
a alta expressao dos costumes domésticos; e a
Mái, isto é, a imaiem augusta da maternidade.
FAGUNDES VÁRELA

Carta a J. Thomaz da Porciuncula

MEU PREZADO COLEGA.

Aínda nao é tarde para falar de Várela. Nao


o é nunca para as homenagens postumas, si
aquelle a quem sao feitas as merecem por seus
talentos e agóes. Várela nao é desses morios
comuns cuja memoria está sujeita á condigáo
da oportunidade; nao passou pela vida, como
a ave no ar, seni dcixar vestijio; talhou para si
urna larga pajina nos anaes literarios do Bra-
zil.
E' vulgar a queixa de que a plena justiga só
comeca depois da morte; de que haja muita vez
um abismo entre o desdem dos contemporáneos
e a admiracáo da posteridade. A enxerga de
Camóes é sedica na proza e no verso do nosso
FAGUNDES TÁRELA %

lempo; c por via de regra a gerac&o prezente


condena as injurias do passado para com os
talentos, que ella admira e lastima. A conde-
nado é justa, a lastima é descabida, porquanto,
digno de inveja é aquelle aue transpondo o
limite da vida, deixa alguma couza de si na me-
moria e no coracao dos homens, fujindo assim
ao comum olvido das geracjües humanas.
Várela é desses bema ven turados postumos.
Sua vidafoi atribulada; seusdias nao correram
serenos, retos e felizes. Mas a morte, que lhe
levou a forma perecivel, nao apagou dos livros
a parte substancial do seu ser; e esta admiracüo
que lhe votamos é certamen te premio, e do
melhor.
Poeta de larga inspiragáo, orijinal e vigosa,
modulando seus versos pela toada do senti-
mento nacional, foi elle o querido da mocidade
do seu tempo. Gonheci-o em 1860, quando a sua
reputagáo, feita nos bancos académicos, ia pas-
sando d'ali aos outros circuios literarios do
paiz. Seus companheiros de estudo pareciam
adora-lo; tinham-lhe de cor os magníficos ver-
sos com que elle traduzia os sonhos de sua
imajinag&o vivaz e fecunda. Havia mais fervor
naquelle tempo, ou eu falo com as impressóes
de urna idade que passou? Parece-me que a
primeira hipoteze é a verdadeira. Vivia-se da
96 CRITICA

imaginado e poezia; cada produc&o literaria


era um acontecimento. Ninguem mais do que
Várela gozou essa exuberancia juvenil; o que
elle cantava imprimia-se no coragáo dos mogos.
Si fizesse agora a analize dos escritos que
nos deixou o poeta das Vozes da America, mos-
traría as belezas de que estáo cheios, apontaria
os sinoes que porventura Ihe escaparam. Mas
que adiantaria isto á compreensao publica? A
critica seria um intermediario superfluo. O
Cántico do Calvario, por exemplo, e a Mimoza,
nao precizam comentarios nem analizes; lém-se,
sentem-se, admiram-se, independente de obser-
vagoes criticas.
Mimoza% que acabo de citar, traz o cunho e
revela perfeitamente as tendencias da inspiragáo
do nosso poeta. E' um contó da roga, cuja vida
elle estudou sem esforgo nem preparagao, por que
a viveu e amou. A uatureza e a vida do interior
eram em geral as melhores fontes da inspiragáo
de Várela; elle sabia pinta-Ios com fidelidade
e viveza raras, com urna injemiidade de exprés*
sao toda sua. Tinba para esse efeito a poezia
de primeira mao, a genuina, tirada de si mesmo
e diretamente aplicada ás cenas que o cercavam
e á vida que vivia.
Adiantando-se o tempo, e dadas as primeiras
flores do talento em livros aue todos conhece-
FAGUKDES TÁRELA 97

mos, planeou o poeta um poema, que deixou


pronto, embora sem as intimas corregóes, segun-
do se diz. Ouvi um canto do Evanjelho ñas Se/-
vaSy e imajino por elle o que seráo os outros.
0 assunto era vasto, elevado, poético; tinha
muito por onde seduzir a imajinagáo do autor
das Vozes da America. A figura de Anchieta,
a Paixao de Jezus, a vida selvajem e a natu-
reza brazileira, taes eram os elementos com
que elle tinha de lutar e que devia forzosamente
vencer, porque iam todos com a feigáo do seu
talento; com a poética ternura de seu coracao.
Elle soube escolher o assunto, ou antes o as-
sunto impoz-se-lhe com todos os seus atrativos.
0 Evanjelho ñas Selvas será certamente a
obra capital de Várela; vira colocar-se entre
outros filhos da mesma familia,0 Uruguvye os
Tymbiras, entre os lamoyos e o Caramuru.
A literatura brazileira éuma realidadee os ta-
lentos como do nosso poeLa o irao mostrando á
cada gerac&o nova, servindo ao mesmo tempo
4

de estimulo e exemplo. A mocidade atual, táo


cheia de talento e lejitima ambicSo de ve por os
olhos nos modelos que nos va o deixando os eleitos
da gloria, como aquelle era, — da gloria e do in-
fortunio, tanta vez unidos na mesma cabera. A
heranca que Ibe cabe é grande, e grave a res-
ponsabilidade. Acrece que a poezia brazileira
98 CIÚTICA

parece dormitar prezentemente; uns raergulha-


ram na noite perpetua; outros emudeceram, ao
menos por instantes; outros enfim como Maga-
lháes, Porto Alegre, prestam á patria servigos
de diferente natureza. A poezia dorme, e é mis-
ter acorda-Ia; cumpre cinji-la das nossas flores
rusticas e proprias, qual as colheram Días, Aze-
vedo e Várela, para só falar dos mortos.
{A Crenga, — 20 de Agosto de 1875).
A NOVA GERAfAO

fía entre nos urna nova geracSo poética, gera-


QSO vicoza e gaíharda, cheia de fervor e convi-
cio. Mas haverá tatnbem urna poezia nova, urna
tentativa, ao menos? Fóra absurdo negal-o; ha
urna tentativa de poezia nova, — urna expressao
incompleta, difuza, tranzitiva, alguma couza
que, se aínda nao é o futuro, nao é já o passado.
Nem tudo é ouro nessa produgáo recente; e o
mesmo ouro ñera sempre se revela de bom qui-
late; nao ba umfolego igual e constante; mas o
essencial é que um espirito novo parece animar
a geracjáo que alvorece, o essencial é que esta
gerag&o nao se quer dar ao trabalho de prolon-
gar o ocazo de um dia que verdadeiramente
acabou.
Já é alguma couza. Esse dia, que foi o román-
l i sino, teve as suas horas de arrebatamento, de
100 CRITICA

cansado e por fim de sonalencia, até que sobre-


veio a lardee negrejou a noite. A nova geragáo
chasques ás vezes do roraantismo. Nao se pode
exijir da extrema juventude a exata ponderag&o
das ccuzas; nao ha impor a reflexao ao entu-
ziasmo. De outro sorte, essa geragao teria ad-
vertid© que a extingao de um grande movimento
literario nao importa a condenagao formal e ab-
soluta de tudo o que elle aOrmou ; alguma
couza entra efica no peculio do espirito humano.
Maisdo que ninguem,eslava ella obrigada a nao
ver no romantismo um simples interregno, um
brilhante pezadelo, um eíeito sem cauza, mas
alguma couza mais que, si nao deu ludo o que
prometía, deixa quanto basta para lejitimal-o.
Morre porque é mortal. « As teorías passam,
mas as verdades necessarias devem subsistir. »
Isto que Renán dizia ha poucos mezes da reli-
jiao e da ciencia podemos aplical-o á poezia e
á arte. A poezia nao é, n5o pode ser eterna re-
petigáo; está dito e rédito que ao periodo espon-
taneo e orijinal sucede a faze da convengáo e
do processo técnico, e é entáo que a poezia,
necessidade virtual do homem, forceja por que-
brar o molde e substituíl-o. Tal é o destino da
muza romántica. Mas nao ha só inadvertencia
naquelle desdem dos magos; vejo ai tambem um
pouco de ingratidao. A algum delles, si é a
A NOVA GEftACRO 101

muza nova que as amamenta, foi aquella grande


moribunda que os gerou; e até os ha que aínda
cheiram ao puro leito romántico.
Gomtudo acho lejitima explicac&o ao desdem
dos novos poetas. Elles abriram os alhos ao
som de um lirismo pessoal, que salvas as exce-
c,5es, era a mais enervadora muzica possivel, a
mais trivial e chocha. A poezia subjetiva che-
gara efeti vamente aos derradeiros limites da con-
venció, decéra ao brinco pueril, a urna enfíada
de couzas piegas e vulgares; os grandes dias de
Outróra tinham poziti va mente acabado; e se de
lonje era lonje, algum raio de luz vinha aquecer
a poezia tranzida e debilitada, era talvez urna
estrela, nao era o sol. De envolta com isto,
ocorreu urna circunstancia grave, o dezenvolvi-
mento das ciencias modernas, que despovoaram
o céu dos rapazes, que lhes deram diferente
noQáo das couzas, e um sentimento que de ne-
nhuma maneira podia ser o da geragao que os
precedeu. Os naturalistas, refazeudo a historia
das couzas, vinham chamar para o mundo
externo todas as atenúes de urna juventude,
que já nao podia entender as imprecares do
varao de Hus; ao contrario, parece que um dos
cara teres de nova direcao inteletual terá de
ser um olimismo, nao so tranquilo, mas triun-
fante. Já o é ás vezes; a nossa mocidade maní-
103 CRITICA

festa certamente o dezejo de ver algnma couza


por térra, urna instituigáo, um credo, algum
uzo, algum abuzo; mas a ordem geral do uni-
verso parece-lhe a perfeic&o mesma. A huma-
nidade que ella canta em seus versos está bem
lonje de ser aquelle monde avorté de Vigny, —
é mais sublime, é um deus, como lhe chama um
poeta ultramarino, o Sr. Teixeira Bastos. A Jus-
tina, cu jo advento nao é anunciado em versos
subidos de enluziasmo, a justiga quazi nao
chega a ser um complemento, mas um suple-
mento; e assim como a teoría da selecao natural
dá a vitoria aos mais aptos, assim outra leí, a
que se poderá chamar selecüo social, entregará
a palma aos mais puros. E' o inverso da tradi-
cáo bíblica; é o paraizo no íira. De quando em
quando aparece a nota aflitiva ou melancólica,
a nota pessimista, a nota de Hartmann; masé
rara, e tende a diminuir; o sentimento geral in-
clina-se á apoteoze; e isto nao sómente é natu-
ral, mas até necessario; a vida nao pode ser
um dezespero perpetuo, e fica bem á mocidade
um poueo de orgulho.
Qual é, entretanto, a teoría e o ideal da poezia
nova? Esta pergunta é tanto mais cabida quanto
que urna das preocupares da recenta gera<¿5o é
achar urna definic&o e um titulo. Ai, porém, fiu-
tuam as opinioes, afírmam-se as diverjencias,
A NOVA GBRAQAO 103

domina a contradigao e o vago; nao ha, enfim,


um verdadeiro prefacio de CvomwelL Por
exemplo, um escritor, e nao pouco competente,
tratando de um opúsculo, urna poezia do Dr.
Fontoura Xavier (prefacio do Regio Sallimbanco)
afirma que este poeta « tem as caraterizagóes
acentuadas da nova escola, Iojica fuzao do rea-
lismo e do romantismo, porque reúne a fiel ob-
servagao de Baudelaire e as sorprendentes de-
dugoes do velho mestre Víctor Hugo ». Aquí
temos urna definicáo assaz afirmativa e clara, e
si inexata em parte, admiravelmente justa, como
objegáo. Digo que em parte é inexata por que os
termos Baudelaire e realismo nao se correspon-
dem táo inteiramente como ao escritor Ihe
parece. Ao proprio Baudelaire repugnava a cías-
si fícagáo de realista, — cetle grossiére épithbte,
escreveu elle em urna nota. Gomo objegao, e
aliaz nao foi esse o intuito do autor, a definigSo
é excelente, o que veremos mais abaixo.
Nao falta quem conjugue o ideal poético e o
ideal político, e faga de ambos um so intuito, a
saber, a nova muza terá de cantar o Estado re-
publicano. Nao é isto, porém urna definigáo,
nem implica um corpo de doutrina literaria. De
teorías ou preocupagoes filozoficas haverá al-
gum vestijio, mas nada bem claramente exposto,
e um dos poetas, o Sr. Mariano de Oliveira, coni-
104 CRITICA

quanto confesse estar no terceiro periodo de


Comte, todavía pondera que um livro de versos
nao é compendio de filozofia nem de propa-
ganda, é meramente livro de versos; opiniáo
que me nao parece geral. Outro poeta — creio
que o mais recente, — o Sr. Vaíentim Magalháes,
descreve-nos (Canios e Lutas, pag. 12) um
quadro deliciozo : a escola e a oficina canta m
alegremente; o genio enterra o mal; Deushabita
a conciencia; o coracño abre-se aos ósculos do
bem; aproxima-se a liberdade, e conclue que é
isto a idea nova. Isto qué? pergunta-lhe um
crítico (Economista Brazileiro, de 11 de Outubro
de 1879); e protesta contra a definigao, acha O
quadro inexato; a idea nova nao é isso; — o
que ella é e pretende ser está dez pajinas adiante;
e cita uns versos em que o poeta clama impera-
tivamente que se esmaguem os broqueis, que
se partam as langas, que dos canhóes se facam
estatuas, dos templos escolas, que se cale a voi
das metralhas, que se erga a voz do direito; e
remata com um presentimento da ventura uni-
versal.

Quando pairar por sobre a Humanidade


A bencao sacrosanta da Justina

A diferenca, como se vé, é puramente crono-


lojica ou sintatica; dá-se n'um ponto como rea-
A NOVA GEfU.£AO 105

lidade acabada o que noutro ponto parece ser


apenas um prenuncio; queslao de indicativo e
imperativo; e esta simples diferenga, que nada
entende cora o ideal poético, divide o autor e o
critico. A justiga anunciada pelo Sr. V. Maga-
lhaes, achal-a-emos em outros, por exemplo,no
Sr. Theophilo Dias [Cantos Tropicaes, pag. i3g);
é idea coraum aos nossos e aos modernos
poetas portuguezes. Um destes, chefede escola,
o Dr. Guerra Junqueiro, nao acha melhor defi-
ní cao para sua muza : Reta como a justiga, diz
elle em uns belos versos da Muza em ferias.
Outro, o Sr. Guilherme de Azevedo, um de seus
melhores companheiros, escreveu a'uma carta
com que abre o livro da Alma nooa : sorrindo
ou combatendo fala (o livro) da humanidade e
da Justiga. » Outro, o Sr. Teixeira Bastos, nos
Rumores valcanicos, diz que os seus versos
cantam um deus sagrado, — a Humanidade, —
e o « coruscante vulto da Justiga ». Mas essa
aspiragao ao reinado da Justiga (que é afinal
urna simples transcrigao de Proudhon) nao pode
ser urna doutrina literaria; é urna aspiragáo e
nada mais. Pode ser tambem urna cruzada, enáo
me dezagradam as cruzadas em verso. Garrett.
injenuo ás vezes, como um grande poeta que
era, atribue aos versos urna porgao de grandes
couzas sociaes que elles nao fizeram, os pobres
106 CBItICA

versos; mas em suma, venham elles e cantem


alguma couza nova, — essa justiga, porexemplo,
que oxalá desmiuta algum día o conceito de
Pascal. Mas entre urna aspirac&o social e um
conceito estético vai diferenga; o que se preciza
é urna definigáo estética.
Achal-a-emos no prefacio que o Sr. Sylvio
Romero poz aos seus Cantos do Fim do Seculol
ti Os que tém procurado dar nova directo á
arte, — diz elle, — nao se acham de acordó. A
bandeira de uns é a Revolucao, deoutros o pozi-
tivisrno; o socialismo e o romantismo transfor-
mado tem tambem os seus adetos. Sao doútri-
nas que se exajeram, ao lado da metafizica idea-
lista. Nada disto é verdade. » Nao se conten-
tando em apontar a diverjencia, o Sr. Sylvio
Romero examina urna por urna as bandei-
ras asteadas, e prontamente as derraba; ne-
nhuma pode satisfazer as aspiragoes novas. A
Revolugáo foi parca de ideas, o pozitivismo
está acabado como sistema, o socialismo nao
tem siquer o sentido altamente fllozoíico do
pozitivismo, o romantismo transformado é urna
formula va, finalmente o idealismo metafizico
equivale aos sonhos de um histérico; eis ai o
extrato de trez pajinas. Convem acrecentar que
este autor, ao en vez dos outros, resalva com
boas palavras o lirismo, confundido geralmente
4 NOVA GERAQiO 107

com a « melancolía romántica ». Perfeilamente


dito e integralmente aceito. Entretanto o lirismo
nao pode satisfazer as necessidades modernas
da poezia, ou como diz o autor, — « nao pode
por si só encher todo o ambiente literario; ha
mister urna nova intuic.áo mais vasta e mais se-
gura. » Qual? Nao é outro o ponto controverso,
e depois de ter refutado todas as teorías, o Sr.
Sylvio Romero conclue que a nova intuí gao
literaria nada contera dogmático; — será um
rezultado do espirito geral de critica contempo-
ránea. Esta definicáo, que tem a desvantajem
de nao ser urna definigao estética, traz era si urna
idea compreensivel, assaz vasta, flexivel, e ada-
tavel a um tempo em que o espirito recua os
seus horizontes. Mas nao basta á poezia ser o
rezultado geral da critica do tempo; e sem cair
no dogmatismo, era justo afirmar alguma couza
mais. Dizer que a poezia ha de corresponder ao
tempo em que se dezenvolve é sómente afirmar
urna verdade comum a todos os fenómenos artís-
ticos. Ao demais, ha um perigo na definicáo
deste autor, o de cair na poezia científica, e,
por dedugao, na poezia didatica, aliaz inventada
desde Lucrecio.
Ia-me esquecendo urna bandeira asteada por
aiguns, o realismo, a mais frajil de todas,
porque é a negagao mesma do principio da arte.
108 CRITICA

Importa dizer que tal doutrina é aqui defendida t


menos como a doutrina que é, do que como ex-
pressao de certa nota violenta, porexemplo, os
sonetos do Sr. Garvaího Júnior. Todavía, creio
que de todas as que possam atrair a nossa moci-
dade, esta é a que menos subsistirá, e com
razao; nao ha nella nada que possa seduzir ton-
gamente urna vocac,áo poética. Neste ponto todas
as escolas se congra^am ; e o sentimento de
Hacine será o mesuio de Sophocles. Um poeta,
V. Hugo, dirá que ha um limite intranccndivel
entre a realidade, segundo a arte, e a realidade,
segundo a natureza. Um critico, Taine, escreverá
que se a exata copia das couzas íosse o fhn da
arte, o meíhor romance ou o melhor drama
seria a reprodugáo taquigraBca de um processo
Judicial. Creio que aquelle nao é classico, nem
este romántico. Tal é o principio sao, superior
ás contendas e teorías particulares de todos os
lempos.
Do que fica dito rezulta que ha urna inclina-
gao nova nos espirites, um sentimento diverso
uo dos primeiros e segundos románticos, mas
nao ha ainda urna feigao assaz carateristica e
definitiva do movimento poético. Esta conclu-
zdo nao chega a ser agravo á nossa mocidade;
e asei que ella nos pode por si mesma crear o
movimento e caraterizal-o, mas sim receberá o
A NOVA GERAC&0 109

impulso estrenuo, como aconteceu ás geracóes


precedentes. A de 1840, por exemplo, so urna
couza nao recebeu direlamente do movimento
europeo de i83o, foi a tentativa de poezia ame-
ricana ou indiatica, tentativa excelente, si tinha
de dar alguns produtos literarios apenas, mas
precaria, e sem nenhum fundamento, si havia
de converter-se em escola, o que foi demons-
trado pelos fatos. A atual gerac&o quaesquer
que sejara os seus talentos, nao pode esquivar-
se ás condicOes do meio; aíirmar-se-ha pela ins-
piracao pessoal, pela caraterizacao do produto,
mas o influxo externo é que determina a direQ&o
do movimento; nao ha por ora, no nosso am-
biente, a forca necessaria á invencáo de doutri-
nas novas. Creio que isto chega a ser urna ver-
dade de La Palisse.
E aquí toco eu o ponto em que a definigao do
escritor, que prefaciou o opúsculo do Sr. Fon-
toura Xavier, é urna verdadeira objegao. Reina
em certa rejiáo da poezia nova um reflexo mui
direto de V. Hugo e Baudelaire; é verdade.
V. Hugo produziu já entre nos, principalmente
no norte, certo movimento de imitacao, que
comecpu em Pernambuco, a escola hugoista,
como dizem alguns, ou a escola cóndoreirá, ex-
pressáo que li ha algumas semanas n'um artigo
bibliográfico do Sr. Capistrano de Abreu, um dos
110 CRITICA

nossos bons talentos modernos. D'ai vieram os


versos dos Srs, Castro Alves, Tobías Barreto,
Castro Rebelo Júnior, Vitoriano Palhares, e
outros enjenhos mais ou menos vividos. Esse
movimiento, porém, creio ter acabado com o
poeta das Vozes d'A frica. Distinguia-o certa
pompa, ás vezes excessiva, certo entumecimento
de idea e de fraze, um grande arrojo de metá-
foras, couzas todas que nunca jamáis poderiam
constituir virtudes de urna escola; por isso
mesmo é que o movimento acabou. Agora, a
imitagao de V. Hugo é antes da forma concei-
tuoza que da forma exploziva; o geito axioma-
tico, a expressáo antitética, a imajem viva e re-
buscada, o ar olímpico do adjetivo, enfim o
contorno da metriíicaíjáo, sao muita vez repro-
duzidos, e nao sem felicidade. Contribuiram lar-
gamente para isto o Sr. Guerra Junqueiro e
seus dicipulos da moderna escola portugueza.
Quanto a Baudeíaire, nao sei si diga que a imi-
tagao é mais intencional do que feliz. O tom dos
imitadores é demaziado crú; e aliaz nao é outra
a tradigao de Baudeíaire entre nos. Tradigao er-
rónea. Satánico, vá; mas realista o autor de
D Juan aax enfers e da Tristesse de la lañe I
Ora, essa reproduc&o, quazi excluziva, essa as-
similac&o. do sentir e da maneira de dois enje-
nhos, tao oriiinaes, tao soberanamente proprios.
A NOVA GERACAÜ 111

nao diminuirá a pujan5a do talento, nao será


obstáculo a uní dezenvolvimento maior, nao traz
principalmente o perigo de reproduzir os ade-
manes, nao o espirito, — a cara, nao a fiziono-
mia ? Mais: nao chegará tambem a tenta§ao de
só reproduzir os defeitos, e reproduzil-os exaje-
rando-os, que é a tendencia de todo o dicipulo
intranzij ente ?
A influencia franceza é aínda vizivel na parte
métrica, na excluzáo ou decadencia do verso
soltó, e no uzo frequente ou constante do alexan-
drino. E' excelente este metro; e para empregar
um simile muzical, nao será táo melódico, como
outros mais genuinamente nossos, mas é har-
moniozo como poucos. Nao é novo na nossa
lingua, nem ainda entre nos; desde Bocage al-
gumas tentativas houve para aclimal-o; Castilho
o trabalhou com muita perfeigáo. A objecáo
que se possa fazer á orijem estranjeira do al ex an-
drino é frouxa e sem valor; nao sómente as
teorías literarias cangam, mas tambem as for-
mas literarias precizam ser renovadas. Que fize-
ram nessa parte os románticos de i83o e i84o,
sináo ir buscar e rejuvenecer algumas formas
arcaicas ?
Quanto á decadencia do verso soltó, nao ha
duvida que é tambem um fato, e na nossa lin-
gua um fato importante. 0 verso soltó, tao Ion*
11S CRITICA

gamente uzado entre nos, tao vigorozo Das paji-


nas de una Junqueira Freiré e de um Goncalves
Días, entra em evidente decadencia Nao ha
negal-o. Estamos bem lonje do tempo em que
Filinto proclamava galhardamente a sua a dora-
gáo ao verso soltó, adorac&o latina e arcadica.
Alguem já disse que o verso soltó ou branco era
feifco só para os olhos. Blank verse seems to be
verse onlg to ihe eye ; e Johnson, que menciona
esse conceito, para condenar a escolha feita por
Mil ton, pondera que dos escritores italianos por
este citados, e que baniram a rima de seus ver-
sos, nenhum é popular : observagao que me le-
vou a ajuizar de nossas proprias couzas. Sem
diminuir o alto merecimento de Gonzaga, o
nosso grande lírico, é evidente que José Bazilio
da Gama era ainda maior poeta. Gonzaga tinha
de certo a graga, a sensibilidade, a melodía do
verso, a perfeigao de estilo; mas ainda nos
punha em Minas Geraes as pastorinhas do Tejo
e as ovelhas académicas. Bem diversa é a obra
capital de Bazilio da Gama. Nao Ihe falta, tam-
bem a elle, nem sensibilidade, nem estilo, que
em alto gráu possue ; a imajina gao é grande-
mente superior á de Gonzaga, e quanto á versifi-
cado nenhum outro, em nossa lingua, a pos-
suiu mais harmonioza e pura. Si Johnson o
pudesse ter lido, emendan» cert^^ente o con-
k NOVA. GERANIO 113

ceito de seu tngenotts critic, Pois bem, nao obs-


tante taes méritos, a popularidade de Bazilio da
Gama é muito inferior á de Gonzaga; ou antes,
Bazilio da Gama nao é absolutamente popular.
Ninguem, desde o que se preza de literato até
ao que mais alheio fór ás couzas de poezia, nin-
guem deixa de ter lido, ao menos urna vez, o
Hvro do Inconfidente; muitos de seus versos
correm de cor. A reputacao de Bazilio da Gama,
entretanto, é quazi excluzivamente literaria. A
raza o principal deste fenómeno é de certo mais
elevada que o da simples forma métrica, mas o
reparo do critico inglez tem aqui muita cabida.
Nao será tambem certo que a popularidade de
Gongalves Días acha raizes mais profundas ñas
suas belas estancias rimadas do que ñas que o
nao sao, e que é raaior o numero dos que co-
nhecem a Cancaodo exilio e o Gigante depedra,
do que os que lém os quatro cantos das Tim-
biras ?
Mas é tempo de irmos diretamente aos poetas:
Vimos que ha urna tendencia nova, oriunda do
fastio deixado pelo abuzo do subjetivismo e do
dezenvolvimento das modernas teorías científi-
cas ; vimos tambem que essa tendencia nao está
aínda perfeitamente caraterizada, e que os pro-
prios escritores novos tentam achar-lhe juma
defínicao e um credo; vimos enfim que esse
m CRITICA

movimenlo é determinado por influencia de


literaturas ultra-marinas. Vejamos agora suma-
ria e individualmente os novos poetas,nao todos,
por que os nao pude colijir a todos, mas certo
numero delles, — os que bastam pelo talento e
pela Índole do talento para dar urna idea dos
elementos que compoema atual geragao. Vamos
lel-os com afeigSo, com serenidade, e cora esta
diciplina de espirito que convem exemplificar
aos rapazes.

n
Nao formam os novos poetas um grupo com-
pato : ha delles aínda fiéis ás tradigóes ultimas
do romantismo, — mas de urna fidelidade miti-
gada, já rebelde, como o Sr. Lucio de Men-
donga, por exemplo, ou como o Sr. Theofilo
Dias, em algumas pajinas dos Cantos Tropi-
caes. 0 Sr. Affonso Celso Júnior, que balbuciou
naquella lingua as suas primeiras compozigoes,
faia agora outro idioma: é já notavel a dife-
renga entre os Devaneios e as Telas Sonantes :
o proprio titulo o indica. Outros ha que nao
tiveraniessagradagao, ou nao coligi documento
que poziti va mente a manifesté. Nao faltará tam-
bem, ás vezes, algum raro vestijio de Castro
A NOVA GERAClO 115

Alves. Tudo isso, como eu já disse, indica um


mo vi mentó de tranzicáo,dezigualmente expresso,
movimento que vai das estrofes ultimas do
Sr. Theofilo Dias aos sonetos do Sr. Carvalho
Júnior.
De ten hamo-nos em frente do ultimo, que é
finado. Poucos versos nos deixou elle, urna vin-
. tena de sonetos, que um piedozo e talentozo
amigo, o Sr. Arthur Barreiros, coligiu com
outros trabalhos e deu ha pouco n'um volume,
como obsequio postumo. O Sr. Carvalho Jú-
nior era literalmente o oposto do Sr. Theo-
filo Dias, era o reprezentante genuino de urna
poezia sensual, a que, por inavertencia, se
chamou e ainda se chama realismo. Nunca, em
nenhum outro poeta nosso, apareceu essa nota
violenta, táo excluzivamente carnal. Nem elle
proprio o dissimula; confessa-se desde a pri-
meira estrofe da colegao.
Odeio as virgens pálidas, cloro tica*,
Bellezas de missaJU.
e no fira do soneto :
Prefiro a exuberancia dos contornos,
As belezas da forma, seus adornos,
A saude, a materia, a vida «nfim.
Ai teinos o poeta ai o temos inteiro; e
franco. Nao lhe dezagradam as virgens pálidas;
Uf CRITICA

o dezagrado é urna sensac&o tibia; tem-lhes odio,


que é o sentimiento dos fortes. Ao mesmo tempo
dá-nos ali o seu credo, e fal-o sem rebugo, —
sem excluzáo do nome idóneo, sem excluzáo da
materia, si a materia é necessaria. Haverá nisso
um sentimento sincero, ou o poeta carrega a
mao, para efeitos puramente literarios? Inclina-
se a esta ultima hipoteze o Sr. Arthur Bar-
reíros. « Neste descompassado amor á carne
(diz elle) certo de ve de ha ver o seu tanto ou
quanto de artificial. » Quem lea compozicao que
tem por titulo Antropofajia fica propenso a
supór que é assim mesmo. Nao conheco em
nossa lingua urna pajina daquelle tom; é a
sensualidad^ levada efetivamente á antropo-
fajia. Os dezejos do poeta sao instintos ca-
mbaes, que elle mesmo compara a jumentas lu-
bricas:
Como um bando voraz de lubricas jumentas;
e isso, que parece muito, nao é aínda tudo; a
imajem nao chegou aínda ao ponto máximo, que
é simplemente a besta féra :
Como a besta feroz a dilatar as ventas
Mede a preza infeliz por dar-lhe o bote a geito,
De meu fulgido olhar ás chispas odíenlas
Envolvo-te, e, convulso, ao seio meu t'estreito.
Lá estao, naquella mesma pajina, as fomes
besliaes, os vermes sensuaes, as carnes febris.
k NOVA GBRAQAO 117

Noutra parte os dezejos sao « urubús em torno


de carniga ». Nao conhecia o Sr. Carvalho Jú-
nioras atenuagDes da forma, as surdinas do estilo;
aborrecía os tons medios. Das tintas todas da
paiheta a que o seduzia era o escaríate. Entre os
vinte sonetos que deixou raro é o que nao co-
memore um lance, um quadro, urna recordagao
de alcova ; e eu compreendo a fidelidade do
Sr. A. Barreiros, que, tratando de coíigir os
escritos esparsos do amigo, nao quiz excluir
nada, nenhum elemento que podesse servir ao
estudo do espirito literario de nosso tempo.
Vai em trinta anos que Alvares de Azevedo
nos dava naquelle soneto, Pálida á luz da lam-
pada sombría, urna mistura táo delicada da
nudez das formas com a ungáo do sentimento.
Trinta anos bastaram á evolugáo que excluiu o
sentimento para só deixar as formas; que digo?
para só deixar as carnes. Formas parece queim-
plicam certa ideaüdade, que o Sr. Garvaiho Jú-
nior inteiramente bania de seus versos. E com-
tudo era poeta esse mogo, era poeta e de raga.
Grús em demazia sao os seus quadros; mas nao
é comum aquelle vigor* nao é vulgar aquelle
colorido. O Sr. A, Barreiros faia dos sonetos
como escritos ao geito de Baudelaire, modifi-
cados ao mesmo tempo pelo temperamento do
poeta. Para compreender o acertó desta obser-
US CRITICA

vagáo do Sr. Barreiros, basta comparar a Pro-


fissáo de Fé do Sr. Carvalho Júnior, com urna
pajina das Flores do Mal. E pozilivo que o
nosso poeta inspirou-se do outro. « Belezas de
missal » diz aquelle; « Beautés de vignettes, »
escreve este; e si Baudelaire nao fala de « vir-
jens cloroLicas » é porque se exprime de outra
maneira : deixa-as a Gavarni^ « poete de chlo-
roses. » Agora, onde o temperamento dos dois
se manifesta, n&o é só em que o nosso poeta
odeia aquellas virjens, ao passo que o outro se
contenta em dizer que ellas lhe nao podem sa-
tisfazero coracSo. Posto que isso baste a díferen-
cal-os, nada nos dá táo pozitivamente a medida
do contraste como os tercetos com que elles
fecham a respetiva compozicao. O Sr. Carvalho
Júnior, segundo já vimos, prefere a exuberan-
cia de contornos, a saude, a materia. Vede Bau-
delaire :

Ce qu'il faut á ce cceur profond comme un ablme,


C'est vous, lady Macbeth, ame puissante au crime,
Réve d'Eschyle éclos au elimat des autants.

Ou bien toiy grande Nuit, filie de Michel Ange,


Qui tors paisiblement dans une pose étrange
Tes appas faconnés aux bouches des Titans I

Assim pois, o Sr. Carvalho Júnior, cedendo


a si mesmo e carregando a máo descauteloza,
A NOVA GERAgÁO 1IÍ

faz urna profissao de fé exclusivamente carnal;


nao podia seguir o seu modelo, aícunhado rea-
lista, que confessa um rouge ideal, e que o en-
contra em lady Macbeth, para Ihe satisfazer o
corac&o, profond comme un abíme. Já Acarnos
multo lonje da alcova. Entretanto, convenho
que Baudelaire facinasse o Sr. Carvalho Jú-
nior, e lhe inspirasse algumas das compozicdes;
convenho que este buscasse seguil-o na viveza
da pintura, na sonoridade do vocabulo; mas a
individualidade propria do Sr. Carvalho Júnior
lá transparece nolivro, ecomo tempo, acabaría
por dominar de todo. Era poeta, de urna poezia
sempre violenta, ás vezes repulsiva, priapesca,
sem interesse; mas em suma era poeta; nao
sao de amador estes versos de Nesmesis :

Ha nesse olhar translúcido e magnético


A majica atraca o de um precipicio,
Bem como no teu rir nervozo, célico.
As arj entinas vibracóes do vicio.
No andar, no gesto mórbido, sp lene tico,
Tens nao sei que de nobre e de patricio.
E um som de voz metálico, frenético,
Como o tinir dos ferros de um suplicio.
Queréis ver o oposto do Sr. Carvalho Júnior?
Léde o Sr. Theofilo Días. Os Cantos Tropi-
caes deste poeta datam d'um anno : sao o seu ul-
timo livro. A Lira dos verdes anos, que íoi a
130 CRITICA

estréa, revelou desde logo as qualidades do Sr.


Theofilo Dias, mas nao podia revelal-o todo,
porque só mais tarde é que o espirito do poeta
comecou a manifestar vagamente urna tendencia
nova. O autor dos Cantos Tropicaes é sobrinho
de Gongalves Dias, circunstancia quenáo tem só
interesse biográfico, mas tambem literario; a
poezia delíe, a dogura, o torneio do verso lem-
bram muita vez a maneira do cantor dos Tim-
biras, sem aliaz nada perder de sua orijinali-
dade ; é como se dissessemos um ar de familia.
Quem percorre os versos de ambos reconhece,
entretanto, o que pozitivamente os separa; a
Gongalves Dias sobra va cerlo vigor, e, por
vezes, tal ou qual tumulto de sentimentos, que
nao sao o carateristico dos versos do sobrinho.
O tom principal do Sr. TheofUo Dias é a ter-
nura melancólica. Nao é que lhe falte, quando
necessaria, a nota viril; basta ler o Batismo
do FogOy o Cántico dos Bardos e mais duas ou
trez compozÍQóes; sente-se, porém que ai, o
poeta é intencional mente assim, que o pode ser
tanto, que o poderia ser aínda mais, se quizesse,
mas que a corda principal da sua lira nao é
essa. Por outro lado, ha no Sr. Theofilo Dias
certas audacias de estilo, que nao se acham no
autor do Y-Juca-Pirama, e sao por assim dizer
a marca do tempo. Gitarei, por exemplo, este
A NOVA GEÍiAvAd 141

principio de um soneto, que é rtas melhores


compozigóesdos Cantos Tropicaes
Na luz que o teu olhar azul transpira,
Ha sons espirituaes;

estes « sons espirituaes, » — aquelle « olhar


azul, » — aquelle « olhar que transpira, » sao
atrevimentos poéticos ainda mais desta geracjáo
que da outra ; e si alguna dos meus leitores, —
dos velhos leitores, — circunflexar as sobran-
celhas, como fizeram os guardas do antigo Par-
nazo ao surjir a lúa do travesso Musset, nao
Ihes citarei de certo este verso de um recente
compatriota de Racine,

Quelque chose comme une odeur qui serait blondo,

por que elle poderá averbal-o de suspeigao ; vou


á boa e velha prata de caza, vou ao Porto
Alegre:
E derrama no ar canoro lume.

Si a Lira dos Verdes anos nao o revelou


todo, deu comtudo algumasde suas qualidades,
e é um documento valiozo do talento do Sr.
Theofilo Dias. Varias compozicóes desse
livro, — Cismas á be ira mar¡ por exemplo,
podiam estar na segunda coIe<;ao do poeta,
í'aivez o estilo dessa compozigao seja um pouco
122 CRITICA

convencional ; nota-selhe, porém, sentimento


poético, e, a espacos, muita felicidade de ex-
pressSo. Os Cantos Tropicaes pagaram a pro-
messa da Lira dos Verdes anos, o progresso é
evidente ; e, como disse, o espirito do autor
parece manifestar urna tendencia nova. Coni-
tudo, nao é tal o contraste, que justifique a de-
clarado feita pelo poeta no primeiro livro, a sa-
ber, que quando compoz aquelles versos pensava
diferentemente do que na data da publicac&o.
Acredito que sim; masé o que se nao deduz do
livro. O poeta apura as suas boas qualidades,
forceja por variar o tom, langa os olhosem redor
e ao lonje; mas a corda que domina é a das
suas estréas.
Poetas ha cuja tristeza é como um goivo co-
Ihido de intenc&o, e posto á guiza de ornamento.
A estrofe do Sr. Theofilo Dias, quando triste,
sente-se que corresponde ao sentimento do ho-
raera, e que n&o vem ali simplesmente para en-
feital-o. O Sr. Theofilo Dias nao é um dezespe-
rado, mas nao estou lonje de crer que seja um
dezencantado ; e quando nao achassemos docu-
mento em seus proprios versos, achal-o-iamos
nos de alheia e peregrina compozic&o, transfe-
ridas por elle ao nosso idioma. Abro mao da
Harpa de Moore; mas os Morios de coragáo,
domesmo poeta, nao parece que o Sr. Theofilo
A NOVA GEBAgÍO 123

Dias os foi buscar por que lhe falavam mais di-


retamente a elle? Melhor do que isso, porém,
vejo eu ná escolha de urna pajina das Flores do
Mal. O albatros, essa aguia dos mares, que,
apanhada no convez do navio, perde o uzo das
azas e fica sujeita ao escarneo da maruja, esse
albatros que Baudelaire compara a o poeta, ex-
posto á mofa da turba e tolhido pelas proprias
azas, estou que seduziu o Sr. Theofilo Dias,
menos por espirito de classe de que por um sen-
timento pessoal; esse albatros é elle proprio.
Nao veja o poeta, no que ai fica, um elojio;
nao é elojio nem censura ; é simples observado
da critica. Queréis a prova do reparo? Léde o»
versos que tém por titulo Anatema, curiozahis-
toria de um amor de poeta, amor casto e puro,
cuja iluzáo se desfaz logo que o objeto amado
lhe fala cruamente a Iinguagem dos sentidos.
Essa compozigao, que termina por urna lonjin-
qua riminicencia do padre Vieira, — « Perdóo-
vos... e vingo-me! », essa compozicao é o co-
rolario do Albatros, e explica o tom geral do
livro. O poeta indignase, nao tanto em nome
da moral, como no de seus proprios sentimentos,
é o egoismoda iluzáo que soluta, brada, e por
fim condena, e por íim sobrevive nestes quatro
versos:
194 CRITICA

... Ao pé de vos, quando em delicias


As miuhas iluzóes sem dó quebraveis,
Revéstia-se um arijo cornos andrajos
Dos sonhos que rompieis.
Nao é precizo mais para conhecer o poeta,
com a melindroza sensibilidade, cora a sinjeleza
da puericia, com a iluzáo que forceja por arran-
car o vóo do chao; essa é a nota principal do
livro, é a do Getsemani e a do Preseniimento.
Pouco difere a da Poeira e lama na qual parece
haver um laivo de pessimismo; e si, como na
Andaluza, o poeta sonha cora « bacanaes » e
« pulsagóes lacivas », créde que nao é sonho,
mas peza délo e pezadelo curto; elle é outracouza.
Já ácima o disse; ha nos Cantos Tropicaes al-
gumas pajinas em que o poeta parece querer
despiras vestesprimeiras;poucas sao, e nessas
a nota é mais enerjica, intencionalmente ener-
jica; o verso sáe-lhe cheio e viril, como na
Poezia Moderna, e o pensamento tena a eleva-
cao do assunto. Ai nos aparece a justica de que
falei na primeira parte deste estudo; ai vemos a
muza moderna, irmá da liberdade, tomando ñas
cnaos a langa da justica e o escudo da razao. Certo,
ha alguma couza singular neste evocar a muza da
razao pela boca de um poeta de sentimento; nao
menos parecem destoar do autor do Soliloquio
as preocupadoes políticas da Poezia Moderna,
A NOVA GERAQAO 126

NSo é que eu exclúa os poetas de minha repú-


blica; sou mais tolerante qua Platáo; mas al-
guma couza me diz que esses toques políticos
do Sr. Theofilo Dias sao de puro empres-
timo; talvez um refiexo do circulo de seus ami-
gos. Nao obstante, ha em taes versos um esforzó
para fujir á escluziva sentimentalidade dos pri-
meiros tempos, esforco que nao será baldado,
por que entre as confidencias pessoaes e as as-
piragoes de renovagáo politica, alarga-se um
campo infinito em que se pode exercer a inven-
g o do poeta. Elle lera a inspiragáo, o calor, e
o gosto; seu estilo é de certo assaz flexiveí para
se acomodar a diferentes assuntos, para os tra-
tar com o apuro a que nos acostumou. A reali-
dade ha de fecundar-lhe o enjenho; seu verso
tao melódico e puro, saberá cantar outros aspe-
tos da vida* « Tenho vinte anos e desprezo a
vida, » diz o Sr. Theofilo Dias em urna das
melhores pajinas dos seus Cantos Tropieces. Ao
que ihe respondo com esta palavra de um mo-
ralista : Aimez la u/e, la uie voas aimera.
Si o poeta querum exemplo, tem-no completo
no Sr. Affonso Celso Júnior, O autor dos De-
vánelos é-o tambem das Telas Sonantes. Nao sei
precizamente a suaidade; creio, porém, que nao
conta ainda vinte anos. Poisbem,em 1876 a sua
poética, estilo e linguajem eram ainda as de um
136 CRITICA

lirismo extremamente pessoal, com aestrutura


e os ademanes proprios do genero. Nunca colé-
gao de sonetos, em que ' o verso aliaz corre
fluente e nao sem elegancia, ligados todos por
um único titulo, Maiy falava o poeta de sua
alma, « mais triste do que Job », ñas tribuí a cóes
da vida e no acerbo das lutas. Quantos ha ai, ro-
mánticos provétos, que nao empregaraní tam-
bem este mesmo estilo, nos seus anos juvenis?
Naquelle mesmo livro dos Devánelos, antes bal-
buciado do que escrito, aindaincorreto em partes,
ali mesmo avulta alguma couza menos pessoal,
sente-se que o poeta quer fujir a si mesmo; mas
sao apenas tentativas, como tentativa é a obra.
Ñas Telas Sonantes temos a primeira afirmagao
definitiva do poeta.
Um trago ha que destingue o Sr. Affonso
Celso Júnior de muitos colegas da novageragáo;
a sua poezia nao impreca, nao exorta, n&o inve-
tiva. E* um livro de quadros o seu, sinjelos ou
tocantes, graciozos ou dramáticos, mas verda-
deramente quadros, certa impessoalidade ca-
ra teristica. Todos se lembram ainda agora do
efeito produzido, ha oito anos, pelas Miniaturas
do Sr. Crespo, um talentozo patricio nosso,
cujo livro nos veiu de Coimbra, quando menos
esperavamos. Nos quadros do Sr. Crespo, que
aliaz nao eram a maior parte do livro, tambem
K NOVA GERAQlO 187

achamos aquella eliminado do poeta, com a di-


ferencia que eram obras de puro artista, ao passo
que nos do Sr. Affonso Celso Júnior entra
semprealgumacouza, que n5o é aprezenga, mas
a inteng&o do poeta. Entender-se-ha isto mais
claramente, comparando o A bordo do Sr. Crespo
com o Esbogo do Sr. Affonso Celso Júnior. Ali
é urna descricao gracioza, e creio que perfeita,
de um áspelo de bordo, durante urna calmaría;
vemos os marinheiros « recostados em rolos de M

cordame » o papagaio, urna ingleza, um cSozinho


da ingleza, o fazendeiro que passeia, os trez ve-
lhos quejogam o voltarete, e outros tragos assim
carateristicos ; depois refresca o vento elá vai a
galera. 0 Esbogo do Sr. Affonso Celso Júnior é
urna volia de teatro; tinha-se reprezentado um
drama patético; urna joven senhora, violenta-
mente comovida, trémula, nervoza,sáe d'ali,en-
tra no carro e tornaá caza; acha á porta o criado,
anciozo e trémulo, porque lhe adoecera um ñlho
com febre, e para cumprir a sua obrigag&o ser-
vil, ali ficara toda a noite a esperal-a. Adama, diz
o poeta,
A dama, que do palco ao drama imajinario,
Havia arfado tanto,
Soube reter o pranto
Perante o drama vivo, honrado e solitario.
128 CRITICA

SoHou um ah I de gelo, e como a olhasse o velho,


Pedindo-lhe talvez no trance algum conselho,
Disse com abandono,
De indiferencia cheia,
Que podia ir velar dofilhoo extremo sonó;
Mas que fosse primeiro á meza p6r a ceia.

Esse contraste de efeitos entre a realidad© e a


ficáo poética explica a idea do Sr. Affonso Celso
Júnior. Notei a diferenca entre elle e o Sr. Crespo;
notarei agora que o poeta das Miniaturas de al-
guna modo influiu no dos Devánelos. Digo ex-
pressamente no dos Deoaneios, por que neste li-
vro e nao no outro, é que o olhar exercitado do
leitor poderá descobrir algum vestijio, — um
quadro como o do soneto Na fazenda, — ou a
eleicáo de certas fórmase dispozicóes métricas;
mas para conhecer que a influencia de um nao
diminuiua orijinalidade de outro, basta lerduas
compozigóes de titulo quazi idéntico, — duas
historias, — a de urna mulJier que ría sempre,
e a de outra que nao ria nunca. Aquella gerou
talvez esta, mas a filiacáo, se a ha, nao passa de
um contraste no titulo; no resto os dois poetas
separam-se iuteiramente. Nao obstante, os Devá-
nelos nao tém o mesmo valor das Telas So-
nantes ; eram urna promessa, nao precizamente
um livro.
Neste é que está a fei$ao dominante do Sr.
A NOVA GERAgiO 129

Affonso Celso Júnior; a como gao e a graga. Vi-


mos o Esbogo ; a Flaula nao é menos sinifica-
tiva. Ve rda de ira mente nao cabe a esta eompozi-
gáo o nome de quadro, mas de poema, — poema,
á moderna; ha ali mais do que um momento e
urna perspetiva; ha urna historia, urna agáo. Um
operario viuvo possuia urna flauta, que lhe ser-
via a esquecer os males da vida e adormecer a
filha que lhe ficara do matrimonio. Escasseia,
entretanto, o trabalho, entra em caza a penuria
e a tome ; o operario vai empenhando, ás ocul-
tas tudo o que possue, e o dinheiro que pode
apurar entrega-o á filha, como se fosse salario;
a flauta era a confidente única de suas privagóes.
Mas o mal crece; tudo está empenhado ; até que
um día, sem nenhum outro recurso, sáe o ope-
rario evolta comumjantar. A filha, que a fome
abatéra, recebe-o alegre e satisfaz a natureza
depois pede aopai que lhe toqueaflauta, segundo
costumava; o pai confessa -lhe solugando que a
venderá para lhe conservar a vida. Tal é esse
poema sinjelo e dramático, em que ha boa e ver-
dadeira poezia. Nenhum outro é mais feliz do
que esse, Assim como o Esbogo tem por assunto
um amor de pai, a Cena Vulgar consagra a ddr
materna; e seria tao acabado como o outro, si
fóra mais curto. A idea é demaziado tenue, e de-
masiado breve a agao, para as trez pajinas que
130 CRITICA

o poeta Ihe deu; outrosiin, o desfecho, aquelle


tocador de realejo, que exije a paga, emquanto
a mái convulsa abraga o filho defunto, esse des-
fecho teria mais foreja, si fóra mais sobrio, mais
simples, si nao tivera nenhum qualiíicativo, nem
a « rudez grosseira », nem « os i D so lentes bra-
dos » ; o simples contraste d* aquel le homem e
da que lia mái era suficientemente crú.
Fiz um reparo; por que nao farei ainda ou-
tro ? A Joia, aliaz táo sobria, táo conciza, pa-
rece-me um pouco artificial. Ao filhinho, que
dianle de um mostrador de joalheiro, lhe pede
um camafeu, responde a mai com um beijo, e
acrecenta que esta joia émelhor do que a outra ;
o filho eniende-a, e diz-lhe que, se está assim
1
táo rica de joias lhe dé um colar. E graciozo!
mas nao é a crianga que fala, é o poeta. Nao é
provavel que a crianca entendesse a figura ; dado
que a entendesse, é improvavel que a aceitasse.
A crianca insistiría na prímeirajoia; cel ágeest
sans piiié. Entretanto, ha ali mais de urna ex-
pressáo feliz, como, por exemplo, a mái e o filho
que « lambe m com o olhar » as pedrarias do
mostrador, O dialogo tem toda a sinjeleza da
realidade. Podía citar ainda outras pajinas as-
sim graciozas, taescomo No Intimo, que se com-
pre apenas de dez versos : umasenhora, que de-
pois de servir o jantar aos filhos, serve tambem
A NOVA GER AgiO lf]

a um c5o ; simples epizodio cazeiro, narrado


com umita propriedade. Podía citar aínda a
Filha da Paz, poema de outras dimensoes e ou-
tro sentido, bem imajinado e bem exposto; po-
día citar alguns mais; seria, porém, derramar a
critica.
Vejo queoSr. Affonso Celso Júnior procura a
inspiracao na realidade exterior, e acha-a fe-
cunda e nova. Tem o senso poético, tem os ele-
mentos do gosto e do estilo. A lingua é vigo-
roza, com quanto nao perfeita; o verso efluente,
si nem sempre castigado. Alguma vez a fantazia
parece ornar a realidade mais do que convem á
ficao poética, como na pintura dos sentimentos
do soldado, na Filha da Paz; mas ali mesmo
achamos a realidade transcrita com muita pers-
picacia e correcto, como na pintura da caza,
com o seu tamborete manco, a meza carun-
choza, o rejisto e o espelho pregados na parede.
Os defeitos do poeta provena, creio eu, de al-
guma impaciencia juvenil. Quem pode o mais
pode o menos. Um poeta verdadeiro, como o
Sr. Affonso Celso Júnior, tem obrigacáo de o
ser acabado; depende de si mesmo,
Sinto que nao possa dizer mu i lo do Sr. Fon-
toura Xavier, um dos mais vividos talentos da
geracjio nova. Salvo um opúsculo, este poeta
nao tem nenhuma colecáo publicada ; os versos
1S2 CRITICA.

andam-lhe espalhados por jornaes, c os que


pude colijir nao sao muitos ; achei-os n'uma
folha académica de S. Paulo, redijida em 1877,
por urna pleiade de rapazes de talento, folha
republicana, como o é o Sr. Fontoura Xavier.
Republicano é talvez pouco. O Sr. Fontoura
Xavier ha de tomar á boa parte urna confissáo
que lhe fago: creio que seus versos avermelham-
se de um tal ou qual jacobinismo ; nao éimpos-
sivel que a Convenció lhe desse logar entre Hé-
bert e Billaut. O citado opúsculo, que se deno-
mina ofíejio Saltimbanco, confirma o que digo;
acróbata, truao, frascario, Benoiton equestre,
deus de trampolín, taes sao os epítetos usados
nessa compozicjto. Nao sao mais moderados os
versos avulsos. Si fossem sómente verduras da
idade, podíamos aguardar que o tempo as ama-
durecesse; si houvesse ai apenas urna interpre-
tacáo errónea dos males públicos e do nosso es-
tado social, era licito esperar que a experiencia
retiíicasse os conceitos da precipitado. Mas ha
mais do que tudo isso; para o Sr. Fontoura Xa-
vier ha urna questáo literaria: trata-se de sua
propria qualidade de poeta.
Nao creio que o Sr. Fontoura Xavier, por
mais aferró que tenha ás ideas políticas que
professa, nao creio que as anteponha acética-
mente ás suas ambicóes literarias. Elle pede a
A NOTA GEBAglO 1SS

elimina gao de todas as cordas, rejias ou sacer-


dotaes, mas é implícito que excetua a de poeta,
e está disposto a cinjil-a. Ora, é justamente
desta que se trata. O Sr. Fontoura Xavier,
mogo de vivo talento, que dispóe de um verso
cheio, vigorozo, e expontaneo, está arriscando
as suas qualidades nativas, com um estilo, que
é já a poida ornamenta<¿áo de certa ordem de dis-
cursos do velho mundo. Sem abrir máo das opi-
nióes políticas, era mais propicio ao seu futuro
poético exprimí 1-as em estilo diferente, — táo
enerjico, se ihe parecesse, mais diferente. 0
distinto escritor que lhe prefaciou o opúsculo
cita Juvenal, para justificar o tom da sátira, e o
proprio poeta nos fala de Roma; mas, franca-
mente, é abuzar dos termos. Onde está Roma,
isto é, o declinio de um mundo, nesta escassa
na cao de hontem, sem fizionomia acabada, sem
nenhuma influencia no seculo, apenas com um
prologo de historia? Para que reproduzir essas
velharías enfáticas? Inversamente, cae o Sr. Fon-
toura Xavier no defeito daquella escola que, em
estrofes inflamadas, nos proclamava táo grandes
como os Andes, — a mais fatua e funesta das
rimas. Ni cet excés d'honneur, ni celie indi-
gniié.
Nao digo ao Sr. Fontoura Xavier que rejeite
as suas opinóes políticas, por menos arraigadas
134 CRITICA

1
que lh as julgue, respeito-as. Digo-lhe que nao
deixe abafar as qualidades poéticas, que exer§a
a imajinagao, alieie e aprimore o estilo, e nao
empregue o seu belo verso em dar vida nova a
metáforas caducas; fique isso aos que nao tive-
rem outro meio de convocar a atencao dos
leitores.
Nao está nesse caso o Sr. Fontoura Xavier.
Entre os modernos é elle um dos que melhor-
mente trabalham o alexandrino; creio que ás
vezes sacriñca a prespicuidade á harmonía,
mas nao é único nesse defeito, e aliaz nao é de-
feito comum nos seus versos, nos poneos versos
que me foi dado ler.
Isso que ai fica acerca do Sr. Fontoura Xa-
vier, bem o posso aplicar, em parte, ao Sr. Va-
lentim Magalhaes, poeta ainda assim menos ex-
cluzivo que o outro. Os Cantos e Lufas, im-
presso ha dois ou trez mezes, creio serem o seu
primeiro livro. No comeco deste estudo citei o
nome do Sr. Valentina Magalhaes ; sabemos já
que na opiniáo delle, a idea nova é o céu dezerto,
a oficina e a escola cantando alegres, o mal se-
pultado, Deus na conciencia, o bem no coracao,
e próximas a Iiberdade e a justiga. Nao é só na
primeirapajina que o poeta nos diz isto; repete-o
no Prenuncio da aurora, No futuro, Mais um
soldado; é seinpre a mesma idea, diferente-
A NOTA GERAQXO 18S

mente redijida, com igual vocabulario. Póde-se


imajinar o tom e as promessas de todas essas
compozigóes. Numa deltas o poeta afianga alivio
ás almas que padecem, pao aos operarios, liber-
dade aos escravos, por que o reinado da justica
está próximo.
Noutra parte, anunciando que pegou da es-
pada e vem juntar-se aos combatentes, diz que
as lejifies do passado est&o sendo dizimadas, e
que o dogma, o previlejio, o despotismo, a dór
vacilam á voz da Justina. Vemos que, nao é só
o pao que o operario ha de ter, a liberdade que
ha de ter o escravo, é a propria dór que tem de
ceder á justiga. Ao mesmo tempo, quando o
poeta nos diz que fala do futuro e nao do pas-
sado, ouvimo-lo definir o héroe medieval, con-
traposto e sobreposto ao heróe moderno, que é
um rapaz pálido, « comhorror á arma branca. »
Nessa contradicho, que o poeta busca dissimular
e explicar, ha umvestijio da incerteza que, a es-
pagos, encontramos na geragaonova, — alguma
couza que parece remota da consistencia e niti-
dez de um sentimento excluzivo. E' a feigao desta
quadra tranzitoria.
Nao é vulgar a comogao nos versos do Sr,
VaíentimMagalhaes; creio até que seria impos-
sivel achal-a fóra da pajina dedicada « a um
morto obscuro». Nessa pajina ha na verdade urna
1*6 CRITICA

nota do coráceo ; a morte de um companheiro


ensinou-lhe a linguajem injenuamente cordial,
sem artificio nem inteng&ovistoza. Ha pequeños
quadros como o contraste, em que o poeta nos
descreve um mendigo, ao domingo, nomeiode
urna populacho que descanca e ri; — como oso-
neto em que nos dá urna pobre velha esperando
até de madrugada a volta do filho crapulozo;
como o Mizeravel, o outros; badesses quadros,
digo, que me parecem preferí veis á Velha Histo-
ria, nSo obstante ser o assunto desta perfeita-
menteverozimile verdadeiro; o que ai me agrada
menos é a execugao* 0 Sr. Vaíentim Magalhaes
deve atentar um pouco mais para a maneira de
reprezentar os objetos e de exprimir as sen-
sacóes; ha urna certa unidade e equilibrio de
estilo, que por vezes Ihe falta. No Deas Men-
digo, por exemplo, o velho que pede esmela á
porto da Sé é excelente ; os olhos melancólicos
do mendigo, dos quaes diz o poeta :

Ha nelles o rancor sííenciozo,


A raÍTOza humildade da desgrasa
Que blasfema e que esmola;

esses olhos esfóo reproduzidos com muita feli-


cidade; entretanto, pela compozigüo adiante
achamos uns sobresaltos de estilo e de ideas,
que destoam e diminuem o mérito da compo-
k NOVA GERAgXO 137

zic&o. Por que nao ha de o poeta empregar


sempre a mesma arte de que nos dá exemplo na
descric&o dos ferreiros trabalhando ípaj. 34),
com o « luar sanguíneo dos carvOes a esbater-
se-lhes no rosto bronzeado » ?
Para conhecer bem a orijem das ideas dest#
livro, melhor direi a atmosfera inteletual do au-
tor, basta Ier os Dois edificios. E' quazi melo-
día; encostado ao gradil de urna caGeia está
um velho assassino, a olhar para fóra ; ha urna
escola defronte. Ao bater a sineta da escola
as criangas alegres e saltando confusamente ; o
velho assassino contempla-as e murmura com
vozamargurada : «Eununcasoube 1er ! v Quer o
Sr. Valentina Magalháes que Ihe diga? Essa
idea, a que emprestou alguns belos versos, n&o
tem por si nem averdade nem a verozimilhanga ;
é um logar comum, que já a escola hugoista
nos metrifica va ha muitos anos. Hoje está bas-
tante dezacreditada. Nao a aceita Littré, como
panacea infalivel e universal; Spencerreconhece
na instrugáo um papel concomitante na mora-
lidade, e nada mais. Si nao é rigorozamente
verdadeira, é de todo o ponto inverozimil a
idea do poeta ; a expressáo final, a moralidade
do contó, nao é do assassino, mas urna reflexao
que o poeta lhe empresta. Quanto á forma, ne-
nhuma outra pajina deste livro manifesta melhor
138 CRITICA

a influencia direta de V.Hugo ; lá está a antiteze


constante, — « a luz em frente á sombra »; —
« a forae em frente á esmola » ; — « o deus da
iiberdade em frente ao deus do mal »; e esta
outra figura para exprimir de vez o contraste da
escola e da cadeia
Víctor HugofilandoIgnacio de Loyola.
Tem o Sr. Valentim Magalháes o verso fácil
eflexivel; o estilo mostra por vezes certo vigor,
mas carece aínda de urna corregao, que o poeta
acabará por lhe dar/Creio que cede, em excesso,
a admiracóes excluzivas. Nao é propriamente
um livro este dos Cantos e luías. As ideas del le
sao geraímente de emprestimo ; e o poeta nao
as realca por um modo de ver proprio e novo.
Critica severa, mas necessaria, porque o Sr. Va-
lentim Magelháes é dos que tém direito e obri-
gacao de a exijir.
N&o ilude a ninguem o Sr. Alberto de Oli-
veira. Ao seu livro de versos poz francamente
um titulo condenado entre muitos de seus cole-
gas ; chamou-Ihe Cangdes románticas. Na ver-
dade, é audaciozo. Agora, o que se nao com-
preende bem é que, nao obstante o titulo, nao
obstante o livro, o poeta nos dé a Toilette lírica
á paj. 43) uns versos em que fala do lirismo
condenado e dos trovadores. Dir-se-ha aue ha ai
A NOVA GERA£AO 139

alguma ironía oculta? Nao; eu creio que o


Sr. Alberto de Oliveira chega a um periodo tran-
sitivo, como outros colegas seus; tem o lirismo
pessoal, e busca urna alma nova. Elle mesmo
nos diz, á paj. o,3, n'una soneto ao Sr. Fontoura
Xavier, que nao lé sómente a historia dos aman-
tes, os temos madrigaes; nao vive só de olhar
-

para o céu.

Tarabemsei me enlevar; si, em sacrosanta ira,


O Bem calca com os pés os Vicios arrogantes,
E, como tu, folheio a lenda dos gigantes,
E sei lhes dar tambem urna cancao na lira.

E' precioza a confissao; e todavía apenas


temos a confissao; o livro nao traz nenhuma
prova da veracidade do poeta, A razao é que o
livro eslava feito ; e nao é só essa; ha outra e
principal. O Sr. Alberto de Oliveira pode fo-
lhear a lenda dos gigantes; mas nao lhes dé
um canto, urna estrofe, um verso; é o conselho
da critica. Nem todos cantara tudo; e o erro tai-
vez da geracjáo nova será querer modelar-se por
um só padrüo. 0 verso do Sr. Alberto de Oli-
veira tem a estatura media, o tom brando, o co-
lorido azul, enfim um ar graciozo e nao épico.
Os gigantes querem o tom masculo. 0 autor da
Luz Nova e do Primeiro Beijo tem muito onde
ir buscar materia a seus versos. Que lhe im-
140 CRITICA

porta o guerreiro que lá vai á Palestina? Deixe-


se ficar no castelo, com a filha delle, nao digo
para dedilharem ambos um bandolim dezafi-
nado, mas para lerem juntos alguma pajina da
historia domestica. Nao é diminuir-seo poeta;
é ser o que íhe pede a natureza, Homero ou
Mosckos.
Por exemplo, o Interior é urna das mais bo-
nitas compozicóes do livro. Pouco mais de urna
hora da madrugada, acorda un menino e assus-
tado, com o escuro, chora pela mai; a mai con-
chega-o ao peito e dá-Ihe de mamar. Isto só,
nada mais do que isto; mas contado com sin-
jeleza e comogao. Pois bem, eis ai alguma
couza que nao é a ajitacao pessoal do autor,
nem a solucáo de arduos problemas, nem a
historia de grandes acó es; é um campo inter-
medio e vasto. Que elle é poeta o Sr. Alberto
de Oliveira; ídolo, Vaporoza, Na Alameda,
Torturas do idtal¡ sao compozicóes de poeta.
A fluencia e melodía de seu verso sao dignas
de nota; farei todavía alguma restricáo quanto
ao estilo. Creio que o estilo preciza obter da
parte do autor um pouco mais de cuidado; nao
Ihe falta movimento, faíta-lhe certa precizáo
indispensavel, ha nelle um que de flutuante, de
indecizo e ás vezes de obscuro. Para que o re-
paro seja completo devo dizer que esse defeíto
A NOVA. GERA£AO 141

rezulta, talvez, de que a propria concegao do


poeta tem os seus tons indecizos e ñutuantes;
as ideas nao se Ihe formulam ás vezes de um
modo pozitivo e lojico; sao como os sonhos,
que se interrompem e se reatam, com as formas
incoerciveis dos sonhos.
Si o Sr. Alberto de Oíiveira nao canta os
gigantes, recebe todavía alguma influencia
externa, e de lonje em lonje busca fujir a si
mesmo. Já o disse: urje agora explicar que,
por em quanto esse esforgo transparece só-
mente, e ao leve, na forma. Nao é outra couza
o final do Interior, aquelles caes magros que
« uívam tristemente trotando o lama gal ». Entre
esse incidente e a acao interior nao ha nenhuma
relacáo de perspetiva; o incidente vem ali por
urna preocupado de realismo; tanto valera
contar igualmente que a chuva desgrudava um
cartaz ou que o vento baloigava urna corda de
andaime. 0 realismo nao conhece relaces ne-
cessarias,nem acessorias, suaestética é o inven-
tario. Dir-se-ha, entretanto, que o Sr. Alberto de
Oliveira tende ao realismo? De nenhuma ma-
neira; dobra-se-lhe o espirito momentáneamente,
a urna ou outra briza, mas retoma logo a ati-
tude anterior. Assim, nao basta 1er estes versos:
Ver o azul, — esse infinito,
Sobre essa migalha, — a térra ;
H8 CRITICA

feitos pelo processo destes do Sr. Guerra Jun


queiro :
Diogenes, — essa lesma,
Na pipa, — esse caracol,

que é aliaz o mesmo de V. Hugo; nao basta 1er


taes versos, digo, para crér que o estilo do Sr.
Alberto de Oliveira se modifique ao ponto de
adquirir excluzi va mente as qualidades que des-
tiaguem o d'aquelle poeta. Sao vestijios de leí-
tura esquecida; a natureza poética do Sr. Al-
berto de Oliveira parece-me justamente rebelde
á simetría do estilo do Sr. Guerra Junqueiro.
Nem é propicia á simetría, nem dada a medir a
estatura dos gigantes; é um poeta domestico,
delicado, fino; apure as suas qualidades, ad-
quira-as novas, se puder, mas nao opostas á in
dolé de seu talento; n'uma palavra, afirme-se.
Dizem-me que é irmao deste poeta o Sr. Ma
nano de Oliveira, autor de um livrinho de cem
pajinas, Versos, dados a o prélo em 1876. Sao
irmáos apenas pelo sangue; na poezia sao
estranbos um ao outro. Pouco direi do Sr. Ma-
riano de Oliveira; é escasso o livro, e nao pude
coligir outras compozigOes posteriores, que me
afirmam andar em jornaes. E' um livro incorreto
aquel le; o Sr. Mariano de Oliveira nao possue
ainda o verso alexandrino, ou nao o possuia
A NOVA GERA£AO 148

quando deu ao prelo aquellas pajinas; fato tanto


mais lastimozo, quanto que o verso lhe sáe com
muita expon tan eidade e vida, e bastaría corriji-
los, — e bem assim o estilo» — para os fazer
completos.
Queréis urna prova de que ha certa forga poe
tica no Sr. Mariano de Oliveira? Léde, por
exemplo, Na tenda do operario. O poeta ia pas-
sando e viu aberta urna porta, urna caza de ope-
rario ; era de noite.
A noite» a sombra funda, o ermo grande e mudo;
Tudo dentro era negro e negro em torno tu do ;

pareceu-lhe que Iá dentro da caza houvera al-


guna atentado, e entao sentou-se á porta, á
espera que voltasse o dono. O dono vólta ; é
um operario, o poeta adverte-o do descuido que
cometerá: ao que o operario responde que nin-
guem lhe iria roubar o que nao tem. 0 poeta
despede-se, segué, para a distancia, e parecen-
lhe entáo que efetivamente se detivera sem
necessidade, porque ali vela va urna sentinela
firme:
O anjo da mizeria a vijiar a porta.
Nessa pajina que nao é única, — e eu poderia
citar outras como a Nao e ó homem e Müiy —
e nessa pajina sente-se que palpita um poeta,
144 CRITICA

mas as incorregoes vém sobremodo afeial-a. Já


me nao refiro ás de forma métrica; o poeta é
geralmente descurado. Poderia citar passajens
obscuras, locugóes ambiguas, outras emprega-
das em sentido espurio, e até rimas que o nao
sao ; mas teria de fazer urna crilica miuda,
totalmente sem interesse para o leitor, e só rela-
tivamente interessante para o poeta- Prefiro dar
a este um conselho ; lembre-se da delicioza
anedota que nos conta, á paj. 91, com o titulo
Cangáo. Na mesma praga em que mora va o
poeta, morava urna certa Laura, que todos os
dias o esperara ajánela; elle, porém,naoouzava
nunca cumprimenta-la, pormaisque lh'o pedisse
o coracao ; assim decorreram mezes. Um dia
Laura mudou-se ; e foi sóentáo,ao vé-la partir
que o poeta chegou a sauda-la. Era tarde. Pois
a poezia é a Laura d'aquella pajina; quando
vem de si mesma esperar á janela, ha grande
inavertencia em lhe dar apenas um olhar furtivo,
em ir depressa, como quem foje. Ella quer ser,
nao somonte saudada, mas tambem conversada,
interrogada e adivinhada ; é-lhe preciza a con-
fabulagáo diurna e noturna. Nao vá o poeta
atentar na vizinha quando ella estiver a partir ;
muí difícil é que atine depois com o numero da
caza nova. Por outro lado, nao con ver ta os
mimos em enfados, por que ha tambem outra
NOVA GERAglO 141

maneira de se fazer dezadorar da poezia : é mata-


la com o contrario excesso, — observado tao
intuitiva que já um nosso classico dizía que o
muito mimo lolhe o dezenvol vintenio da planta.
Nem descuido nem artificio : arte.
Nao direi a mesma couza ao Sr, Silvio Ro-
mero, e por especial motivo. O autor dos Cantos
do fim do secuto é um dos mais estudiozos
reprezentantes da geragao nova ; é laboriozo e
hábil. Os leitores desta Revista acompanbam
certamente com interesse asapreciagoes criticas
espalhadas no estudo que, acerca da poezia popu-
lar no Brázil, está publicando o Sr. Silvio
Romero. Os artigos de critica parlamentar,
dados ha mezes no Repórter, e atribuidos a este
escritor, nao eram todos justos, nem todos nem
sempre variavam no mérito, mas continhatn
algumas observacóesenjenhozase exatas. Falta-
va-lhes estilo, que é urna grande lacuna nos
escritos do Sr. Silvio Romero; nao me refiro
ás flores de ornamentacSo, á ginastica de pala-
vras ; refiro-me ao estilo, condi^áo indispensa-
vel do escritor, indispensavel á propria ciencia
— o estilo que ilumina as pajinas de Renán e
de Spencer, e que Wallace admira como urna
das qualidades de Darwin. Nao obstante essa
lacuna, que o Sr. Romero preencberá com o
lempo, nao obstante outros pontos acessivei A
146 CRITICA

critica, os trabalhos citados sao documentos


louvaveis de estudo e aplica gao.
Os Cantos do fim do sécalo podem ser tambem
documento de aplicagáo, mas nao dáo a contiecer
um poeta; e para tudo dizer n'uma só palavra,
o Sr. Romero nao possue a forma poética. Greio
que o leilor nao será t&o in a vertid o que
supon ha referir-me a urna certa terminolojia
convencional; tambem nao aludo especialmente
á metrificagáo. Falo da forma poética, em seu
genuino sentido. Um homem pode ter as mais
elevadas ideas, as comogoes mais fortes, e realca-
las todas por urna imajinagao viva ; dará com
isso urna excelente pajina de proza, se souber
escreve-la; um trecho de grande ou mavioza
poezia, si for poeta. O que é indispensavel é
que possúa a forma em que se exprimir. Que o Sr,
Romero tenha algumas ideas de poeta nao lh'o *
negará a critica ; mas logo que a expressáo nao
traduz as ideas, tanto importa nao as ter abso-
lutamente. Estou que muitas decegóes literarias
orijinam-se nesse contraste da conce^ao e da
forma; o espirito, que formulou a idea, a seu
modo, sup5e have-la transmitido nítidamente
ao papel, e d'aí um equivoco- No livro do Sr.
Romero achamos essa luta entre o pensamento
que busca romper do cerebro, e a forma que
nao lhe acode ou só lhe acode reversa e obscura :
A NOVA GERAQAO 347

o que dá a impressao de um estranjeiro que


apenas balbucía a lingua nacional.
Pertenceu o Sr. Romero ao movimento hu-
goista, iniciado no norte e propagado ao su!,
ha alguns anos ; movimento a que este escritor
atribue urna importancia infinitamente superior
árealidade. Entretanto, nao se lhe destinguem os
versos pelos carateristicos da escola, si escola
lhe pudessemos chamar ; pertenceu a ella antes
pela pessoa do que pelo estilo. Talvez o Sr. Ro-
mero, colij indo agora os versos,entendeu cercear-
lhes os tropos e as demazias, — vestijios do
tempe Na verdade, urna de suas compozigóes,
a RevolugáOy incluida em 1878, nos Cantos do
fim do secuto, nao traz algumas imajens singu-
larmente arrojadas, que aliaz continha, quando
eu a li, em 1871, no Diario de Pernambaco de
domingo 23 de Julho desse mesmo ano. Outras
ficaram, outras se bao de encontrar no decorrer
do livro, mas nao sao tao graves que o definam
e classifiquem entre os diciputos de Castro
Alves e do Sr. Tobías Bárrelo ; couza que eu
meihor poderia demonstrar, si tivesse á mao
todos os documentos necessarios ao estudo
d'aquelle movimento poético, em que aiiaz houve
bons versos e ajitadores entuziastas.
Qualquer que seja, entretanto, minha opiniáo
acerca dos versos do Sr. Romero, lizamente
148 CRITICA

confesso que nao estáo no cazo de merecer as


criticas acerbissimas, menos aínda as pajinas
insultuozas que o autor nos conta, em urna nota,
haverem sido escritas contra alguns del les. «In-
juriavam ao poeta (diz o Sr. Romero) por cauza
de algumas duras verdades de critico. » Pode
ser que assimfosse; mas, porisso mesmo, o au-
tor nem devería inserir aquella nota. Realmente,
criticados que se desforcam de criticas literarias
com improperios dáo logo idea de urna imensa
mediocridade, — ou de urna fatuidade sem
freio, — ou de ambas as couzas; e para lances
taes é que o talento, quando verdadeiro e mo-
lesto, deve rezervar o silencio do desdem: Non
ragionar de lor, ma guarda, e passa.
Nao é comum suportar a analize literaria ; e
rarissimo suporta-la com gentileza. Daí vem a
satisfa§áo da critica quando encontra essa qua-
lidade em talentos que apenas estréam. A cri-
tica sáe entáo da turba-multa das vaidades irri-
tadlas, das vocagóes do anfiteatro, e entra na
rejiáo em que o puro amor da arte é anteposto
ás ovacóes da galería. Dois nomes me estáo
agora no espirito, — o Sr. Lucio de Mendon^a
e o Sr. Francisco de Castro, — poetas, que me
deram o gosto de os aprezentar ao publico, por
meio de prefacio em obras suas. Nao lhes oc^ 1*
tei nem a um, nem a outro, nem ao publico os
k NOVA GERAg&O l&

smoes e lacunas, que havia em taes o/>ras; e


tanto o autor das Neooas Matutinas, como o
das Estrelas errantes aceitaram francamente,
graciosamente, os reparos que lhes fiz. Nao era
já isso dar prova de talento ?
Um d'aquelles poetas, o Sr. Francisco de Cas-
tro, estreou ha um ano, com um tivro de pajinas
juvenis, muita vez incertas, é verdade, como de
estreante que eram. « Nao se envergonhe de
imperfeiQóes (dizia eu ao Sr. Francisco de Cas-
tro) nem se vexe de as ver apontadas ; agradeca o
antes... Ha nos seus versos urna expontanei-
dade de bom agouro, urna natural sinjeleza, que
a arte guiará melhor e a acáo do tempo aperfei-
Qoará. » Depois notava-lhe que a poezia pessoal
cultivada por elle, estava exausta, e, visto
que outras pajinas havia, em que a inspira cao
era mais dezinteressada, aconselhava-o a poe-
tar fóra d'aqueíle campo. Dizia-lhe isso em 4 de
Agosto de i878, Poueo mais de um ano se ha
passado; nao é tempo aínda de dezesperar do
conselho. Póde-se, entretanto, julgar do que
fará o Sr. Francisco de Castro, si se aplicar de-
véras ápoezia, pelo queja nos deu ñas Estre-
las errantes.
Neste volume de 200 pajinas, em que alguma
couza ha frouxa e sotnenos, sente-se o bafejo
poético, o verso expontaneo, a expressáo feliz;
160 CRÍTICA

ha tambem por vezes comog&o sincera, como


nestes lindos versos ao Ao pé do bergo:
Deas perfuma-te a face cora um beijo,
E em sonhos te aparece,
Quando, ao calor de urna aza que nao Tejo
O corag&o te aquece.

A» vezes, quando dormes, eu me incline


Sobre teu berco, e busco do destino
Ler a pajina em flor que nelle existe;
De tua fronte santa e curioza
Docemente aproximo, temeroza,
A miaba fronte pensativa e triste.

Como um raio de luz do paraizo,


Teu labio esmalta virjinal sorrizo..*
Ao ver-te assim, extático me alegro.
Bebo em teu seio o balito das flores,
Oazis no dezerto dos amores,
Pajina branca do meu livro negro.

A paternidade inspirou taes estroíes. Ü amor


¡nspira-ihe outras; outras sao puras obras de
imajinac&o inquieta, e dezejaza de fujir á reali-
dade. Talvez esse dezejo se mostré por demais
imperiozo; a realidade é boa, o realismo é que
nao presta para nada. Que o Sr. Francisco de
Castro pode e de ve fecundar a su a inspiracao,
alargando-lbe os horizontes, couza é para mim
evidente. Tiradenies, Askaveras, Spartacoys&Q
pajinas em que o poeta revela possuir a nota
pujante e saberemprega-la. Nena todos os versos
A NOTA GERACAO 101

dessas compozicOes sao irrepreeensiveis; mas


ha ali vida, fluencia, anima (¿ao; e quando ou-
vimos o poeta falar aos héroes, nestes helos
versos :
Vos que dobraes do tempo o promontorio;
E, barra dentro, a eternidade entraes;
mal podemos lembrar que é o mesmo poeta que,
algumas pajinas antes, inclinara a fronte pensa-
tiva sobre um bergo de crianca, Quem possue a
faculdade de cantar táo opostas couzas, tem
diante de si um campo largo e fértil. Certas de-
mazias ha de perde-las com o tempo; a melhor
lic&o critica é a experiencia propria. Confesso,
entretanto, um receio. A ciencia é má vizinha; e
a ciencia tem no Sr. Francisco de Castro um
cultor assiduo e valente. Lembre-se todavía o
poeta que os antigos arranjaram perfeitamente
estas couzas; fizeramde Apollo odeus da poezia
e da medecina. Goethe escreveu o Fausto e
descohriu um osso no homem; — o que tudo
i ••

persuade que a ciencia e a poezia nao sao in-


conciliaveis, O autor das Estrelas errantes pode
mostrar que sao amigas.
0 que eu dizia em 1878 a este poeta, dizia-o
em 1872 a o autor das Neuoas Matutinas. Nao
dissimulei que ha vía na sua primavera mais
folhas pálidas que verdes; fóram as minhas
isa CRITICA

proprias expressOes; e arguia-o dessa melan-


colía prematura e excluziva. Já lá vao sete anos.
Ha quatro, em 1876, o poeta publicou outra co-
lecto, as Alooradas; explicando o titulo, no
prologo, diz queseus versos nao tém a luz nem
as harmonías do amanhecer. Serao, acrecenta,
como as madrugadas chuvozas: desconsoladas,
mudas e monótonas. Nao se iluda o leitor; nao
se rufujie em caza com medo das intemperies
que o Sr. Lucio de Mendonga Ihe anuncia; sao
requebros de poeta. A manháé clara ; choveu tai-
vez durante a noite, porque as flores est&o ainda
húmidas de lagrimas; mas a manha é clara.
A comparado entre os dois livros é vanta-
joza para o poeta; certas incertezas do primeiro,
certos tons mais vulgares que ali se notam, no
segundo. Mas o espirito geral é ainda o me sin o.
Ha, como ñas Neooas Matutinas, urna corrente
pessoal e urna corrente política. A parte política
tem as mesmas aspiragOes partidarias da gera-
cáo recente; e aliaz vinham já de 1872 a 1871.
Para conhecer bem o talento deste poeta, ha
mais de urna pajina de lindos versos, como estes,
Lengo Braneo:

Lerabras-te, Aninha, perola roceira


Hoje engastada no ouro da cidade,
Lembras-te ainda, oh bela companheira,
Dos velhos lempos da primeira idade?
A NOVA GERAgXO li&

Looje dessa botina azul-celeste,


Folgava-te o pézinho no tamanco,..
Eras roceira assim quando me des te,
Na hora de partir , leu lengo branco;

ou como as deliciosas estrofes, Alieey que sfio


das melhores compozi§6es que temos em tal
genero; mas eu prefiro mostrar outra obra me-
nos pessoal; prefiro citar A familia. Tratase
de um mogo, celibatario e prodigo, que sáe a
matar-se, urna noite, em direg&o do mar; do re-
pente, para, olhando atravez dos vidros de urna
janela :

Era elegante a sala, e quente e confortada*


1
A meza, junto á luz, esta va a müi sentada*
Cozia. Mais alem, um cazal de crianzas,
Rizonhase gentis como urnas esperangas»
Olhavam juntamente um livrode gravuras,
Inclinando sobre elle as cabecinhas puras.
Num gabinete, alem, que entreaberto se via,
Um homem — eraopai, — calmoegrave, escrevia,
Eníim urna velhinha, Estava agora só
Porque estava rezando. Era, de certo, a avó.
E em tudo aquillo havia urna paz, um conforto...
Oh I a familia 1 o lar! o bonangozo porto
No tormén tozo mar» Abrigo, amor, carinho,
0 mogo esteve a olhar, E voltou do camiuho.

Nada mais simples do que a idea desta com*


pozig&o; mas a simplicidade da idea, a sobrie-
dade dos toa ues e a verdade da deseric&o. s&o
151 CRITICA

aquí os elementos doefeito poético, e produzem


aada menos que urna excelente pajina. O Sr.
Lucio de Mendonca produz o segredo da arte.
Si ñas Ahoradas nao haoutro quadro d'aquelle
genero, pode have-los n'um terceiro livro, por
que o poeta tem dado recente mente na i m prensa
algumas compozicOes em que a inspirac&o é
menos exciuziva, mais imbuida da realidade
exterior. Li-as, á proporgao que ellas iam apa-
recendo; mas nao as coliji tao completamente
que possa analiza-las com al gura a munioiozi-
dade, Sei que taes versos formam segunda íaze
do Sr. Lucio de Mendonca ; e é por ella que o
poeta se prende mais intimamente á nova di-
recto dos espiritos. O autor das Ahoradas tem
a vantajem de entrar nesse terreno novo com a
forma játrabalhada e lucida.

A poezia do Sr. Ezequiel Freiré nao tem so


o lirismo pessoal, — traz urna nota de humo-
rismo e de sátira ; e é por essa ultima parte que o
podemos ligar ao Sr. Arthur Azevedo. As Fió-
res do Campot volume de versos dadoem 1874»
Uveram a boa fortuna de trazer um prefacio de-
vido é pena delicada efinade D. Narciza Amalia
essa joven e bela poetiza, que ha anos agucoa
a nossa curiozidade, com um livro de versos, e
recoíheu-se depois á furris ebúrnea da vida do-
k NOVA GERA$&0 155

mestica. Rezfríde é a patria de ambos; alem


dessa aíinidade, temos a da poezia, que em suas
partes mais intimas e do coragao, é a mesma.
Naturalmente, a simpatía da escritora vai de
preferencia ás compozicóes que mais lhe qua-
dram á propria Índole, e, no nosso cazo, basta
conhecer a que lhe arranca maior aplauzo para
adivinhar todasasdelicadezasda mulher.D. Nar-
ciza Amalia aprova sem reserva os Escravos no
eito, pajina da roga, quadro em que o poeta
lan<ja a piedade de seus versos sobre o pade-
cimento dos cativos. Nao se limita a aplaudi-lo,
subscreve a compozic&o. Eu, pela minha parte,
subscrevoo louvor; creio tambem que essa com-
pozic&o rezume o quadro. A pintura é viva e
crúa; o verso cheio e enerjico. A invetiva que
forma a segunda parte seria, porém, mais ener-
jica, seo poeta no-la désse menos extensa ; mas
ha ali um sentimento real de comizeragao.
Notam-se no livro do Sr. Ezequiel Freiré ou-
tros quadros da roga. Na roga é proprio titulo
de urna das pajinas mais interessantes; é urna
descricSo da caza do poeta á beira do terreiro,
entre moitas de pita, com seu teto de sapé;
fóra, o tico-tico remexe no farelo, e o gurundi
salta na grumixama; nada falta, nem o mujir
do gado nem os jogos dos moleques.
les CRITICA

O gado muje no curral extenso;


Um grupo de moleques doutra banda,
Brinca o Tempo será; vem viudo as aves
Do parapeito rente da varanda.
No carreador de alem que atalha a mata
Ouvem-se notas de cancho maguada.
Ai i sorrizos do céu — das roceirinhas!
Ai 1 cantigas de amor — do camarada !

Nada falta; ou falto so urna couza, que é tudo;


falta certa moga, que um dia se foi para a corte.
Essa auzencia completa táo bem o quadro que
mais parece inventada para o efeito poético. E
creio que sim. Nao se combinam tao tristes sau-
dades, com o pico final:

O'gentes que moraes ai na corte,


Sabei que vivo aquí como um lagarto.
0' ventos que passaes, conta á moca
Que ha duas camas no meu pobre quarto,..

Lucia, que se faz Lucióla, é tambem um


quadro da roga, em que ha toques menos felizes;
é urna simples historia narrada pelo poeta. Mais
ainda que na outra, ha nessa compozic&o a nota
viva e gaiata, que nem sempre serve a temperar
a melancolía do assunto. Já disse que o Sr. Eze-
quiel Freiré tem a corda humorística; a ter-
ceira parte é toda urna colecáo de poezias em
que o humorismo traz a ponta agucada pela sá-
tira. Gosto menos desta ultima parte que das
A NOVA fJERAQX.0 167

duas primeiras; nem os assuntos sao interes-


santes, nem ás vezes claros, o que de algum
modo é explicado por ess'a fraze da poetiza re-
zendence : « A sátira, sendo quazi sempre alu-
ziva, faz-se obscura para os que nao gozam a
intimidado do poeta. » Em tal cazo, devia o
poeta elimina-la. Tambem o estilo está lonje de
competir com o do resto do volume, que aliaz
naoéperfeito. Certamenteé correntio ebemtraba-
Ihado, o José de Arimatéa, por exemplo, anun-
cio de um gato fujido; mas que diferenca entre
essa pajina e a do Nevoeiro ! Nao é que nao
haja logar para o rizo, mormente em livro táo
pessoal ás vezes; mas o melhor que ha no rizo
é a expontaneidade.
Nao sei se escreveu mais versos oSr. Ezequiel
Freiré; é de supor que sim, e é de lastimar que
nao. Ignoro tambem que influencia terá tido
nelle o espirito que parece animar a ge raga o a
que pertence; mas nao ha temeridade em crér
que o autor das Flores do Campo siga o ca-
minho dos Sis. Affbnso Celso Júnior, Lucio de
Mendonga e Theofilo Dias, que tambem de-
ram as suas primeiras Adres.
Si no Sr. Ezequiel Freiré nao ba vestijio de
tendencia nova, menos a iremos achar no Sr.
Arthur Azevedo, que é puramente satírico. Co-
nhego deste autor o U¡a de finados, A Baa do
158 CRITICA

Oavidor c Sonetos; trez opúsculos. Nao darei


nenburaa novidade ao autor, dizendo-lhe que o
estilo de taes opúsculos é incorreto, que a ver-
sifícagáo nao tem o apuro necessario, e aliaz
cabido em suas foreas. Sente-se n'aquellas pa-
jinas o descuido voluntario do poeta; respira-
se a arajem do improvizo, descobre-se o inaca-
bado do amador. Alem deste reparo, que (ara
relevar muita couza, ocorre-me outro igualmente
grave. Nao so o dezenho é incorreto, mas tam-
bem a cor das tintas é demaziado crúa, e os ob-
jetos nem sempre poéticos. Digo poéticos, sem
esquecer que se trata de um satirico; sátira ou
epopéa, importa que o assunto preencha certas
condiQoes da arte. 0 Dia de finados, por exem-
plo,contem epizodios de tal natureza, que deve
cobrir por forca alguma realidade. A absoluta
invengao d'aquillo seria, na verdade,inoportuna.
Pois aínda assim, cabe o reparo; nem todos
esses epizodios ali deviam estar, e assim juntos
destroem o efeito do todo, por que uns aos
outros fazem perder a verozimilkanga. Diz-se
que efetivamente a vizita de um dos nossos ce-
miterios, no dia em que se comemoram os de-
fun tos, éumquadro pouco edificante. Come-seno
cemiterio em tal dia ? Mas a refeigáo que o poeta
nos descreve é urna verdadeira patuscada de ar-
rabalde, em que nada falta, nem a embriaguez;
A NOVA GERAgi-O ISt

e tanto menos se compreende isso, quanto a dor


nao parece excluida daocazi3o,o que o poeta nos
indica bem, aludindo a urna das convivas :
Um camarita a atrae;
Vae a comel-o, e nelle a lagrima lhe cae.

A viuva que repreende em altos brados o


escravo, o credor que vai cobrar urna divida, o
rendez-vous dos na mora dos, as chacotas, os
rizos, tudo isso nao parece que excede a reali-
dade ? Mas dado que seja a realidade pura, a
figáo poética nao podía admiti-la sem restricto.
No fim, o poeta sobe até a vala, que fica ácima
da planicie, e dá-nos alguns versos tocantes;
lastima a caridade periódica, a dór que nao doe
e o pranto que nao queima.
Na Rúa do Ouvidor e nos Sonetos nao ha
a impressáo do Día de finados, naturalmente
por que o contraste da sátira é menor. 0 primeiro
d'aquelles opúsculos é urna revista da nossa rúa
magna, urna revista alegre emqueasqualidades
boas e más do Sr. Azevedo claramente apare-
cem. O maior defeito de tal sátira é a extensáo.
Revistas dessas n&o comportam dimensoes
muito maiores que as do Passeio, de Tolentino.
Os sonetos sao a melhor parte da obra poética do
Sr. A. Azevedo. Nem todos sao perfeitos ; e
alguns ha em que o assunto excede o limite poe-
.66 CRITICA

tico, como a Metamorfoze ; mas ha outros em


que a idea é gracioza, e menos soltó o estilo ;
tal, por exemplo, o que lhe mereceu urna
vizinha ralhadora, — soneto cujo fecho dará
idea da versificagáo do poeta quando elle a quer
apurar :

Tu, que és o c5o tinhozo era forma de Senhora,


Oh ! ralha, ralha e ralha, e ralha mais e ralha...
Mas deixa-me primeiro ir para sempre erabora.

A obrado Sr. Mucio Teixeiraé já consideravel:


trez volumes de versos, e, segundo vejo anun-
ciado, um quarto volume, os Novos Ideáis.
Neste ultimo livro, já pelo titulo, já por algu-
mas amostras que vi na imprensa diaria, é que
estáo definidas mais intimamente as relacoes do
poeta COIII o grosso do novo exercito ; mas nada
posso adiantar sobre elle. Nos outros, princi-
palmente ñas Sombras e Claroes, podemos
ver as qualidades do poeta, as boas e as más.
Creio que até agora o Sr. Mucio Teixeira cedeu
principalmente ao influxo da chamada escola
hugoista. O Trono e a Igreja, Gutlemberg, á
Posleridade, e outras compozicóes dáo idea
cabal dessa poezia, que buscava os efeitos em
certos meios puramente mecánicos. Vemos ai o
cóndor, aquelle cóndor que á for^a de voar em
tantas estrofes, ha doze anos, acabou por cair
4

k NOVA G Eli AgÍO MI

DO chao, onde foi apanhado e empalhado; vemos


as epopéas, os Prometeus, os gigantes, as
Babeis, todo esse vocabulario de palavras gran-
des destinadas a preencher o vacuo das ideas
justas. O Sr. Mucio Teixeira cedeu á torrente,
como tantos outros ; nao ha que censura-lo; mas
reziste afínal e o seu novo livro será outro.
Tal vez seja o Sr. Mucio Teixeira o poeta de
mais pronta inspiracjáo, entre os novos ; sente-
se que os versos Ihe brotam facéis e rápidos. A
qualidade é boa, mas o uzo deve ser discreto ;
e eu creio que o Sr. Mucio Teixeira nao reziste
a si mesmo. Ha movimento em suas estrofes,
mas ha tambem demazias ; o poeta nao é correto;
falta-lhe limpidez e propriedade. Quando a
comoQÉo verdadeira domina o poeta, taes defeitos
dezaparecein, oudiminuem; masé rara a como-
Sao nos versos do Sr. Mucio Teixeira. Nao
é impossivel que o autor das Sombras e Clardes
prefira os assuntos que exijem certa altiloquia,
ha outros que se contentam do vocabulario
medio e do tom brando; e, comtudo, creio que
a muza delíe se exercerá nestes com ¡imito mais
proveito. Os outros iludem muito. Si me nao
escasseasse tanto o espaco, mostraría, com
exemplos, a diferenca dos rezultados obtidos
pelo Sr. Mucio Teixeira em urna e outra ordena
de compozicOes ; mostraría a superiorídade da
162 CRITICA.

Noüe de oeráo, Dezalenlo, e Eu, sobre a Voz


Profeíica e os Fantasmas do porvir. Pode ser
que haja um que de artificial no Dezalento ;
mas o verso sáe mais natural, a expressao é mais
idónea : é elle outro. E porque será artificial
aquella pajina ? 0 Sr. Mucio Teixeira tem ás
vezes a expressao da sinceridade; devem ser
sinceros estes versos, aliaz um pouco vulgares,
com que fecha a dedicatoria das Sombras e Cía-
roes :

Si aínda nao descri de tudo neste mundo


Eu—que o calix do fel sorvi até o fundo,
Chorando no silencio, e rindo á multidáo;

É que encontrei era vos as ben§áos e os carinhos


Que a infancia tem no lar, e as aves tém nos ni-
[nhos...]
Amigo de meus pais ! eu beijo a vossa mao.

Nao custa muito fazer versos assim, naturaes,


verdadeiros, em que a expressao corresponde á
idea, e a idea é limpida. Estou certo de que as
qualidades boas do poeta dominaráo muito no
novo livro ; creio tambera que elle empregará
melhor a facilidade, que é um dos seas dotes, e
corresponderá cabalmente ás esperanzas que
suas estréas lejitimamenív despertam. Si algum
conselho Ibe pode insinuar a critica é que dé
costas ao passado.
A NOVA GERACAO J6S

III

Qualquer que seja o gráu 'la impressáo do


Ieitor, fio que nao .a terá excluzivamente beni-
gna nem excluzivamente severa, mas ambas as
couzas a um tempo, que é o que convem á nova
geracao. Viu que ha talentos, e talentos bons.
Falta unidade ao movimento, mas sobram con-
fianza ebrilho ; e si as ideas trazemás vezesum
cunho de vulgaridade uniforme, outras um aspéto
de incoercivel fantazia, revela-se todavía esforzó
para fazer alguma couza que nao seja continuar
literalmente o passado. Esta intengáo é já um
penhor de vitoria. Aborrecer o passado ou
idolatra-Io vem a dar no mesmo vicio; o vicio
de unsque nao descobrem a filiagao dos tempos,
e datam de si mesmos a aurora humana, e de
outros que imajinam que o espirito do homem
deixou as azasno caminhoe entra a pé n'umchar-
co. Da primeira opiniáo tem desculpa os moQos,
por que estáo na idade em que a irref Iexao é con-
dicao de bravura ; em que um pouco de injus-
tica para com o passado é essencial á conquista
do futuro. Nem os novos poetas aborrecem o que
foi; limitam-se a procurar Moruma couza dife-
rente.
164 CRITICA

Nao é possivel determinar a extensao nem a


persistencia do atual movimento poético. Cir-
cunstancias externas pódem acelera-lo e defini-
lo ; elle pode tambem acabar ou transformar-se.
Creio, aínda assim, que alguns poetas sairáo
deste movimento e continuaráo pelo tempo
adiante a obra dos primeiros dias. Grande parte
delles háo de absorver-se em outras aplicagóes
mais concretas. Entre esses haverá até alguns
que nao sejam poetas, sináo porque a idade o
pede; extinta a muza ,extinguir-se-lhes-haa poezia,
Isto que uns aceitam de boa mente, outros de
má cara, costuma, ás vezes, ser cauza secreta
de resentimentos ; os que calaram nao chegam
a compreender que o idioma nao acabasse com
elles. Si tal fato se der, entre os mocos atuaes,
aprenderao os que proseguírem na obra, qual a
soma e natureza de esforco s que ella custa;
veráo juntar-se as dificuldades moraes ás lite-
rarias.
A nova geragáo frequenta os escritores da
ciencia ; nao ha ai poeta digno desse nome que
nao converse um pouco, ao menos, com os
naturalistas e filozofos modernos. Devem, toda-
vía, acautelar-se de um mal : o pedantismo.
Geralmente, a mocidade, sobretudo a mocidade
de um tempo derenovac&o científica e literaria,
nao tein outra preocupagao mais do que mostrar
A NOTA GERANIO 168

ás outras gentes que hi urna porcao de couzas


que estas ignoram; e d'aí vem que os nomes aínda
frescos na memoria, a terminolojia a pan liada
pela rama, sao logo transferidos ao papel, e
quanto mais crespos forem os nomes e as pala-
vras, tanto melhor. Digo aos mogos que a ver-
dadeira ciencia nao é a que se incrusta para
ornato, mas a que se assimila para nutricio ; e
que o modo eficaz de mostrar que se possue um
processo científico, nao é proclama-lo a todos
os instantes, mas aplica-lo oportunamente. Nisto
o melhor exemplo sao os luminares da ciencia :
releiam os mogos o seu Spencer e seu Darwin.
Fujam tambem a outro perigo, o espirito de seita,
mais proprio das geracóes feitas e das institui-
goes petrificadas. O espirito de seita tem fatal
marcha do odiozo a o ridiculo ; e nao será para
urna geracáo que langa os olhos ao largo e ao
Ionje, que se compoz este verso verdadeiramente
galante:
Nul n'aura de l'esprit, hors nous et nos amis.
Finalmente, a geragáo atual tem ñas mao o
futuro, com tanto que Ihe nao afróxe o entuzias-
mo. Pode adquirir o que lhe falta, e perder o que
a deslustra ; pode afirmar-se e seguir avante. Si
nao tem por ora urna expressao clara e defini-
tiva, ha de alcanca-la com o tempo ; hao de
166 CRITICA

alcanca-la os idóneos. Um escritor de ultra-mar,


Saínte-Beuve disse um dia, que o talento pode
embrenhar-se n'ura máu sistema, mas si for ver-
dadeiro e original, de pressa se emancipará e
achara a verdadeira poética. Estas palavras de
um critico que tambem foi poeta, repete-as
agora alguem que, na critica e na^ poezia, des-
penden alguns anos de trabalho, nao fecundo
nem grande mas assiduo e sincero ; alguem que
para os receinchegatJos ha de ter sempre a
advertencia amiga e o aplauzo oportuno.
ANTONIO JOZÉ

(Jm dia destes, relembrando urna passajem


da trajedia que Magalháes consagrou á me-
moria de Antonio Jozé, advertí na resposta dada
pelo judeu ao conde de Ericeira, quando esse
íhe recomenda que imite Moliere; o judeu res-
ponde que Moliere escrevia para francezes e
elle nao. Será essa resposta a rigoroza expres-
sao da verdade? Antonio Jozé nao se modelou,
certamen te, pelas obras do grande cómico, nao
cojitou jamáis da simples pintura dos vicióse
dos cara teres. Moliere caminhou do Medico
Volante e dos Zelos de Barbouillé á Escola das
Mulheres e ao Tartufo; Antonio Jozé nao pas-
sou das Guerras do Alecrim e Mangerona, e,
dado que tentasse fazel-o, é certo que nao pode-
ría ir muilo além. Nao tinha centro apropriado,
nem largas vistas; falta va m-lhe outros meios,
outros intuitos; e, si porventura entrou em seu
168 CRITICA

espirito reatar a tradigáo de Gil Vicente, levan-


tando sobre os alicerces lanzados por esse ope-
rario do seculo XVI as paredes de um teatro
regular, convinha justamente nao imitar nada,
nem ninguem, nao se fazer Moliére^nem P lauto,
ficar Antonio Jozé; é a condigao das obras vi-
vas.
Interpretada desse modo, é exata e verda-
deira a resposta que Magalhaes póe na boca
do judeu; mas só desse modo. O Anfiiriüo
pro va que o nosso poeta alguma couza imitou
e transplantou de Moliere, a tal ponto que for-
gozamente o tinha diante de si, ou na banca de
trabalho ou na memoria; e, por que esta obser-
vado nao baja sido feita, cuido que interessará
quando menos, a titulo de curiozidade literaria.
Ao mesmo tempo, direi o que me parece do es-
critor e da sua obra.
E, antes de mais nada, ocorre ponderar que
Antonio Jozé goza de urna reputagáo sobre pa-
Iavra. A fogueira de 18 de Outubro de 1789 ilu-
minou-lhe a figura de maneira que o puderam
ver todos os olbos; a trajedia do Sr. Maga-
lhaes vulgarizou-o entre as nossas plateas de
ha 40 annos; mas só os estudiozos o terao lido,
e nem todos, porque a tarefa exije constancia e
esforgo, embora de certo modo os pague. Póde-
se dizer, sem erro, que elle pertence á familia
ANTONIO J024 169

dos poetas cómicos, qualquer que seja o grau


de parentesco, — com a circunstancia que era
um desperdigado, — trocava a boa moeda do
cómico pelo cobre vulgar do burlesco. Mas,
poeta cómico era-o, e de boa veia ; — mais de
certo que Nicolau Luiz, que Ihe sucedeu na
estima das plateas de Lisboa, mais aínda que
Manuel de Figueiredo, cujas intenses literarias
abafaram, talvez, a livre expansao do enjenho,
e que aliaz escrevia de si mesmo que — « ha-
vendo-se engañado comsigo em infinitas couzas,
nunca se preocupou de que tinha gra<¿a. » A-
crece que o fina trajico do judeu comunica ás
suas pajinas alegres e juvenis um reflexo de
simpática melancolía, que aínda mais nos con-
vida a percorrel-as e estudal-as, A piedade nao
é de certo raz&o determinativa em pontos de
critica, e tal poetastro ha verá que, sucum-
bindo a urna grande injustiga social, sómente
inspire compaixáo sem desafiar analize. Nao é
o cazo de Antonio Jozé; este mercería por si só
que o estudassemos, aínda despido das ocor-
rencias trajicas que lhe circundam o nome.
Nenhuma das comedias do judeu se pode
dizer excelente e perfeita ; ha, porém, gráns en-
tre ellas, e a todas sobreleva a das Guerras do
Alecrim e Mangerona. Nesta, como ñas demais
nota-se de certo muita espontaneidade, viveza
170 CRITICA

de dialogo, graga de estilo, variedade de sitúa-


góes, e certo conhecimento de cena; mas a
alma de todas ellas nao é grande; vive-se ali
de enredo e de aparato. Si a o poeta foi es-
tranha a invengáo dos carateres e a pintura
dos vicios, nao menos o foi a transcrigáo dos
costumes locaes. Salvo o Alecrim e Mangerona
todas as suas pegas sao inteiramente alheias á
sociedade e ao tempo ; a Esopaida tem por
baze um assunto antigo;a Vida de D. Quixote
póe em cena o personagem de Cervantes; as
outras pegas sao todas mitolojicas. Podiam es-
tas, nao obstante o rotulo, conter a pintura dos
costumes e da sociedade cujo produto erain;
mas, comquanto em taes compozigóes influa
muitoo moderno, nao se decobre nellas nenhuma
intengáo d'aquella natureza.
Ao contrario, a intengáo quazi excluziva do
poeta era a galhofa, e tal galhofa que trancen-
dia muita vez as raias da conveniencia publica.
Nenhuma de suas pegas, — operas é o nome
classíco, — nenhuma é izenta de expressóes
baixas e até obcenas, com que elle, segundo
lhe arguia um prelado, « chafurdou na imun-
dicie. » Tinha razáo o prelado, mas nao basta
terrazáo; cumpre saber tel-a. Ora, a baixeza e
a obceuidade das locugóes nao eram novidade
na cena portugueza, nem na de outros paizes ;
ANTONIO JOZÉ 171

e, deixando de ir agora a exemplos estranhos á


nossa lingua, basta lembrar que o Cioso, de
Ferreira, do culto autor da Castro, foi dado por
Figueiredo com a declaragáo de ter sido « expur-
gado segundo o melindre dos ouvidos do nosso
secuto. » Gil Vicente, sem embargo de se re-
prezentarem suas pegas na corte de D. Joao III
e D. Manuel, adubava-as ás vezes de especies
que nos parecem hoje bem pouco esquizitas. As
operas do judeu eram dadas n'um teatro po-
pular ; nao as ouvia a corte de D. Joáo V, mas
o povo e os burguezes de Lisboa, cujas orelbas
n5o teriam ainda os melindres que mais tarde
lhes atribuiu Figueiredo- A diferenga entre
Antonio Jozé e os outros era afinal urna questao
de quantidade; mas, si o tempo lh'o permitía
e, com o tempo, a censura, que muito é que o
poeta reincidisse ? Nao é isto escuzal-o, mas
explical-o. Deixemos os trocados e equívocos,
que sao um chiste de máu gosto, mácula de es-
tilo, que o poeta exagerou até á puerilidade,
cedendo a si mesmo e ao rizo das plateas. Ou-
tro defeito que se lhe argüe, é o tom guindado
e os arrebiques de conceito, que se notam em
muitas falas de certos personagens, os deuses,
principes e héroes. Um de seus biógrafos,
comparando o estilo de taes personagens com
o dos criados e pessoas Ínfimas, que sao sim-
171 CRITICA

pies e naturaes, supóe que houve no poeta in-


tengao satírica, opiniao que me parece carecer
de fundamento, entre outras razoes por que nao
ha sempre aquella diferenga de estilo, e nao
é raro falarem os principaes personagens do
mesmo modo natural e reto, que os de condi-
gao inferior. Guindam-se muita vez, mas era
achaque do tempo e exageragáo na man eirá de
empregar o estilo nobre, por que havia en-
tao um estilo nobre; e, si o judeu teve al-
guna a vez i n tengao satírica, arrebicando ou
empelando a expressao, tal intengao foi sómente
literaria e nenhuma outra. Que diremos dos
anacronismos de linguajem? Esses sao cons-
tantes e excessivos. Os dobróes de Alcmena, a
alcunha de alfacinka dada a Anñtriáo, Juno
crismada em Felizarda, um criado antigo « de
corpo á ingleza, *» outro com « reloj i o de pen-
durucalhos, » deviam promover a gargalhada
franca do povo. Esse fujir do meio e da agao
para a realidade prezente vai algumas vezes
além, como na Ezopaiday em que o heróe, fa-
lando de sua vida, diz cfue anda em livros pelo
mundo — « e agora me dizem que se está repre-
zentando no Bairro-Alto« » Já na Vida de D.
Quixote havia o poeta posto a mesma couza na
boca de Sancho, quando o cavaleiro, vendo um
barco amarrado, pergunta ao escudeirp : ^-
ANTONIO JOZÉ 17S

« Sabes onde estamos ? — Sei bem.«— Aonde ?


— No Bairro-Alto. » 0 judeu podía responder
que tal séstro foi o de Regnard e o de Bour-
sault, por exemplo, que poz o seu Ezopo a to-
mar café e meteu com elle espozas de tabeliaes;
podia citar muí tos outros exemplos anteriores
e contemporáneos, e a critica se incumbiría de
apontar os que vieram depois delle; mas nao
vale a pena.
Venhamos ao Anfitriáo. Um erudito es-
critor , o Sr. Theofilo Braga, supóe que a
intengao do poeta, nessa comedia, foi pintar
em Júpiter a pessoa de D. Joao V, supozigao
que deti da mente examinei e me parece inteira-
mente gratuita. Cuido que o critico faz de urna
coincidencia um propozito, e fundamenta a sua
suspeita na possivel analojia das aventuras do
deus pagao e do rei cristáo. A analojia podia
ser um elemento de pro va, mas dezacompa-
nhada de outras nao faz chegar a nenhum re-
zultado definitivo. Ora, basta 1er o Anfitriáo,
basta comparar a situacao do poeta e o tempo para
varrer do espirito semelhante hipoteze. Certo,
nao faltava audacia ao poeta; ai está, como
exemplo, a definigao da justica, feita por San*
cho, na Vida de D. Quixote; mas entre a gene-
ralidade desse trecho e a sátira pessoal do An-
fitriáo vai um abismo. Ocore-me que do ¿a-
174 CRITICA

fitri&o de Moliere tambem se disse ser aluzáo


a Luiz XIV, com a diferenga que em Franga
nao se atribuiu a Moliere a intengáo de ferir,
mas de ser agradavel ao rei, que lhe havia en-
comendado aquella apoteoze de suas pro-
prias aventuras, opiniáo esta que foi de todo
condenada. Nao, nao ha motivo para atribuir
a Antonio Jozé a inten<¿áo que lhe supóe o Sr.
Theoíilo Braga; e, si tal intencjío existisse,
o dezenlace da comedia, quando Júpiter se de-
clara ácima da lei, viria a ser de um sarcasmo
táo crú, que nao alcanzaríamos compreendel-o
naquelle seculo.
Evidentemente, o judeu achou na aventura
paga o mesmo que lhe acharam Plauto, Moliere
e Gamoes, — um assunto prestadlo as combi-
nacOes cenicas, e, demais, singularmente pro-
prio para as chufas do Bairro-Alto. Desnecessa-
rio édizer os tramites dessa travessura de Júpiter
que, namorado de Aicmena, toma a figura do
marido e vai á caza della, acompanhado de
Mercurio, que copia as feigóes de Sozias, criado
de Aníitrino. O nosso poeta seguiu no prin-
cipal a fábula que encontrou nos antecessores,
fazendo-lhe todavía as alteragoes sucitadas pelo
gosto proprio e das plateas. Assim, o Sozias de
Plauto, de Moliere e de Camóes é na pe(¿a de
Antonio Jozé um Saramago. Nao lhe mudou elle
ANTONIO JOZfi 176

oessencial; trocando-lhe o nome, obedecen ao


sistema de dar aos criados nomes burlescos. O de
Jazon, nos Encantos de Medéa, chama-se Sa-
catrapos ; ha ñas outras operas nm Carangueijo,
um Esfuziote, um Chichisbéu. Sao nomes, nao
valem mais que nomes.Nem Moliere chamou Dan-
din ao principal personagem de urna de suas co-
medias sináo para o caraterizar desde logo de
um modo jovial; nao pretendeu outra couza.
Comtudo, a observag&o em relajan a Antonio
Jozé tem o valor de um rasgo sinificativo.
Cotejando o Anfitriao de Antonio Jozé com
os de seus antecessores, vé-seo que elle imitou
dos modelos, e o que de sua caza introduziu. Já
disse que no principal os seguiu a todos; mas
nem sempre soube escolher, a darei disso um
exemplo claro. Camóes, que nao sendo poeta
cómico, era todavía homem de tato e gosto,
corrigiu, antes de Moliere, o dezenlace do An-
fitriao de Plauto. Na comedia deste, logo de-
pois de explicar Júpiter os equivocosda situagáo
e de anunciar ao marido de Alcmena que o
filho desta é seu, mostra-se Anfitriao inteira-
mente satisfeito e gloriozo com o dezenlace. Ga-
móes suprimiu tao singular contentamente, e
o mesmo fez Moliere; em ambos os poetas An-
fitriao ouve silenciozo as declaragóes do pai
do deuses, sem que Alcmena assista a ellas. An-
174 CRITICA

tonio Jozé nao só nao seguíu nessa parte os mo-


délos recentes, mas até carregou a mao sobre o
que imitou de Plauto. A alegría do seu Anfi-
triáo e da sua Alcmena é táo franca, tamanho é
o alvorogo dos dois espozos, que realmente
chega a ofender as leis da verozimilhanca,
aínda tratándose de um cazo divino. Neste
ponto Antonio Jozé foi antes inavertido do que
obrigado do gosto publico. Outro cazo. Ñas co-
medias anteriores nao ha nenhum logar era que
Alcmena veja ao mesmo tempo os dois Anfi-
trides, e isto nao só era necessario para prolon-
gar e justificar os equivocos, mas até o exijia a
verozimilhanca, por que, desde que Alcmena
chegasse a ver juntos os dois exempiares exa-
tos do marido, saia da boa fé que serve de fun-
damento á sua iluzao, para cair no maravilhozo
e no inextricavel. Eéjustamente o que acontece
na comedia do judeu.
Vamos agora ao que o judeu imitou direta-
mente de Moliere. Ha na comedia d'aquelle um
carater, o de Cornucopia, mulher de Saramago,
que nao tem equivalente na de Plauto, nem na
de Camóes, e que só na de Moliere existe. « Mo- w

liére (é observagáo de La Harpe), fazendo de


Cleanüs mulher de Sozias, inventou urna si-
tuacao paralela á de Anfitriao e Alcmena,
dando-lhe, porém, diferente aspeto; Gleantis
ANTONIO JOZÉ 177

pertence ao numero das espozas que, por sererp


honestas, cuidam ter o direito de ser insupor-
taveis. « Ora bem, a situagáo e o cara ter de
Cleantis transportou-os o judeu para o seu
Anfiíriáo7 e nao se pode dizer encontró for-
tuito, sinao deliberado proposito- Basta cotéjal-
os com espirito advertido;a diferenga é de tom,
de estilo; substancialmente, a invengáo é a
mesma; as proprias ideas reproduzem-se ás
vezes na obra do judeu. Assim, logo na cena
em que Mercurio transformado em Saramago
(Sozias) encontra a mulher deste, achamos o
trago comum aos dois poetas
Na comedia de Moliere:
CLEANTHIS

Regarde, traítre Amphytrion;


Vois commepour Alcméne il éLale de flamme;
Et rougis lá-dessus du peu de passion
Que tu témoignes pour ta femme*
MERCURIO

Hé! mon Dieu! Cléanthis, ils sont encoré amants.


II est certain age oü tout passe;
Et ce qai leur sied bien dans ees commeneements,
En nous, vieux mariés, aurait mauvaíse gráce.
II nous forait beau voir, attachés face á face,
A pousser les beaux sentiments l
CLEANTH1S

Mérites-tu, pendard, cet insigne bonheur


De te voir pour ép^use une íemme d'hoimeurT
\7t CRITICA

MERCURIO

Moa Diea! tu n'es que trop honnéte;


Ce grand honneur ne me vaut ríen*
Ne sois point si femme de bien,
Et me romps un peu moins látete*

Agora Antonio Jozé ;

CORNUCOPIA

Tarnbem nosso amo trazia bastante tome, e comtudo


está dizendo á nossa ama tanta couza galantinha que
faria derreter urna pedra.
MERCURIO

Com que é o mesmo nossos amos do que nos ? Elles


cazadinhos de um ano, e nos ha um seculo? Elles
senhores e rapazes, e nos velhos e mocos (4)? Elles
dois jasmins e nos dois lagartos? E finalmente elles
com amor, e nos, ou pelo menos eu, sem nenhum?

CORNUCOPIA

Ora o certo é que peor é fazer festa a villOes ruins;


por estas, que se tu conheceras a mulherque tens, que
outra couza fóra; talvez que si eu fóra alguma deesas
bonecrinhas enfeitadas que me quizeras mais ; porém
a culpa tenho eu em nao aceitar o que me davam ñas
tuas costas.
MERCURIO

Pois ainda estás em lempo.,.

Trata-se, como se vé, de uní carater e de unía


(1) Criados,
ANTONIO JOZÉ 179

situado, integralmente transcritos, embora de


outro geito, cedendo o poeta aos seus hábitos
literarios, á sua índole e ao seu meio. Nem é
sómente na introducto do carater de Cornu-
copia, ena situacjío dos dois personagens, que
Antonio Jozé releva ter dianle de si ou na me-
moria a pe<¿a de Moliere, ha ainda outro vesti-
jio ; ha urna idea na cena em que Júpiter se
despede de Alcmena, — idea que o judeu
expressa deste modo :
ALCMENA

Este amor nace da obriga£5o.

JÚPITER

Poís quizera que esta fineza nacerá maís do teu amor


que da tua obrigagSo.

ALCMENA

A obrigac3o de amar a o espozo supera toda a obn-


gacao.
JÚPITER

Pois mais devera que me quizeras como a amante


que como a espozo,
ALCMENA

N5o sei fazer esta diferenga, pois nSo posso amar-te


como a espoza, sem que te ame como a arrmnte.

Na comedia de Moliere :
180 CRITICA

JÚPITER

En moi, belle et charmante Alcraéne,


Vous voyez un mari, vous voyez un amant;
Mais l'amant seul me touche, a parler franchement
Et je sens prés de vous que le mari me gene.
Cet amant, de vos voeux jaloux au dernier point,
Souhaite qu'á luí seul votre amour s'abandonne.
. . . . . . . . . . . • • . . • • «

ALCMF-.NA

Je ne separe point ce qu'unissent les dieux;


Et l'époux et l'amant me sont fort précieux.
Si, neste ponto, já se n&o trata de urna si-
tuarlo, de um carater novo, mas de urna idea
entrelazada no dialogo, importa repetir que,
aínda imitando ou recordando, o judeu se con-
serva fiel á sua fisionomía literaria; pode ir
buscar a especiaría alheia, mas ha de ser para
temperal-a com o molho da sua fabrica. Dessa
inclinacao ao baixo-comico achamos outro
exemplo na Ezopaida, cujo assunto íóra tra-
tado, antes deíle, por Boursault. O carater
tradicional de Ezopo era pouco apropriado á
comedia : é um moralista, um autor de apó-
logos, mas Boursault trouxe-o assim mesmo
para a cena, único modo de lhe conservar acor
original. O Ezopo de Antonio Jozé parece antes
um exemplar apurado d'aquelles lacaios argutos
e atrevidos da comedia classica; salvo dois ou
trez logares, é outro genero de Sacatrapos ou
ANTONIO JOZfi 181

Chichisbéu; figura ali com agudezas e troca-


dilhos. Ha destes extremamente bufóes, como
o da bacía das almas, e disso e de pouco mais
se compóe a filozofia de Ezopo. Nao obstante
essa cor geral., notam-se ali toques de bom có-
mico! embora leves e a espagos. Ha tambem,
e principalmente, a veia satírica, na cena que
quazi todos os seus biógrafos transcrevem, —
a das tezes dos filozofos, cena extremamente
chis toza, e que o proprio Diniz, com toda a
sua veia do Hissope e do Falso Herokmo> nao
sei si chegaria a fazer mais acabada. Com-
pare-se essa cena com a da invazáo do Parnazo
pelos máus poetas, na Vida de D. Quixote, e
ver-se-ha que havia no talento de Antonio Jozé
urna forte dóze de sátira, — o que, de certa
maneira, lhe diminuía a forga cómica. Nessas
duas pegas é, aíiaz, sensivel a habilidade tea-
tral do poeta, que nao tinha propriamente urna
agao em nenhuma dellas, e, nao obstante, lo-
grou condensar a vida dos epizodios, manter a
unidade do interesse e angariar o aplauzo pu-
blico. Acrece que o seu D. Quixote nao tem
o defeito capital do seu Ezopo; o poeta soube
dar-lhe alguns toques da injenuidade sublime,
que carateriza o tipo de Cervantes: é o que
se vé logo, na expozigáo, quando D. Quixote
responde ao barbeiro acerca da armada que se
182 RITICA

prepara para concibater o turco : — « Para que


secancam com lautas maquinas? diz elle. Eu
Ibes déra una bom arbitrio com que, era menos
de urna hora,vencam quantas armadas e arma-
dilhas o turco tiver. » E' ociozo dizer que o ar-
bitrio seria a cava la ría andante.
De todas as comedias, porém, a que goza as
honras dapnmazia, é a das Guerras do Aleerim
e Mangeronay e com razao; é a mais acabada
e a mais cómica. Tem o gosto do tempo, e até
um rezaibo da maneira de Calderón, que de si
mesmo escrevia :
Es comedia de Don Pedro
Calderón, d'onae hade haber,
Por fuerza, amante escondido
Y rebozada mujer.
Ha ali com efeito mulheres rebufadas e aman-
tes escondidos, e tanta vida como ñas pegas de
Calderón.
Nao trato aqui do fato que poderia ter dado
logar á obra do judeu, nem das duvidas de
Costa fi Silva sobre si os dois ranchos do ale-
crim e da mangerona existí ara antes da come-
dia, ou si esta os fez nacer; é investigacáo
que nao vale a pena de um minuto, e aliaz o
texto do poeta é* claro. Em tudo se avantaja o
Alecrim e mangerona, até na linguajem, que
é ai muito menos obcena que ñas outras, dife-
ANTONIO JOZÉ 1M

renga que se pode atribuir ao progresso do ta


lento, porquanto ja no Labirinlo de Creía se
dá o mesmo fenómeno. Nao direi como Garrett,
que essa pega teria hoje todo o valor de urna
comedia histórica; mas assim mesmo, quem
lhe vé as figuras, a secuto e meio de distancia,
parece contemplar urna gravura em que eÜas
conservam as feigóes e o vestuario do tempo,
— os namorados pobres, o velho avarento que
arde por se ver livre das sobrinhas, e que, ao
anunciarem-Uie a chegada do pretendente pro-
vinciano, manda deitar « mais um ovo nos es-
pinafres, » D. Tiburcio, as duas damas, o Semi-
cupio e a vetha Fagundes, todo o pessoal da
anliga farga.
Superior ás outras compozicOes, como estilo
e orijinalidade, nao menos o é como viveza,
graga e mo vi mentó : e, se a farca domina, nao
é tanto que nao apareca a comedia. Basta apon-
tar, por exempto, a cena da consulta medica,
por ocasiáo de dezastre de D. Tiburcio, que é
urna das melhores do teatro do judeu, e nao
ficaria vexada si a puzessemos ao lado das de
Moliere e Gil Vicente. Para nao faltar nada, ha
tambem aforismos latinos, e até urna copla la-
tina, digna de Moliere. Podemos considerar o
Alecrim e Mangerona como urna das melhores
comedias do seculo XVIII.
184 CRITICA

Ler o Alecrim e Mangeronay o Anfitriáo, a


Ezopaida e o D. Quixote, é a valia r todo o
poets, ccm suas qualidades boas e más, com o
geilc do scu espirito e influencia do seu lempo.
Nicolau Luí? Figueiredo, Diniz e Garcjío, no
me&Eio seculo, tiveram tal vez mais intengáo có-
mica do que Antonio Jozé, mas os meios deste
erais maiores, possuiam outra virtualidade, ou-
trñ espontaneidade, outra abundancia. Dir-se-ha
que se a Inquizigáo o deixára vi ver, Antonio
Jozé produziria alguma obra de esfera supe-
rior? Repito: nao creio que elle subisse muito
ácima do Alecrim e Mangerona; iria tal vez a o
poeto de fazer alguma couza parecida com o
Avaroy mas nao faria todo o Avaro.
Agora, a seculo e meio de distancia, podemos
afirmar que Antonio Jozé foi um deslino deca-
pitado. Qualquer que fosse a natureza do seu
enjenho, é fóra de duvida que o auto da fé em
que elle pereceu, devorou com a mesma flama
assaz de pajinas alegres e vivazes. A prova de
que o teatro poderia a inda esperar muito de
Antonio Jozé, está na com para gao das obras
delle com a vida delle. Era um cristáo novo,
como tal suspeitado e perseguido; aos vinte e
um anospadeceu um primeiro processo, e sábe-
se que terriveis eram os processos inquizitoriaea.;
basta dizer que o delinquente revelou todos os
ANTONIO JOZÉ 185

seus cómplices em judaismo, com a maior fran-


queza e minuciozidade, o que se pode explicar
pela tenra idade do poeta, mas tambem pelo
terror que o tribunal infundía, nao menos que
pela exortacjío mansa com que os inquisidores
extorquiam a confissáo de todos os erros e a
denuncia de todos os cómplices, — sem prejuizo
aliaz, do carcere e da polé. Pois bem, nao obs-
tante os vestijios e as lembrangas desse pri-
meiro ato da Inquizigáo, nao obstante o espe-
taculo do que padeciam os seus, as operas de
Antonio Jozé trazem o sabor de unía mocidade
imperturbavelmente feliz, a facecia grossa e pe-
tulante, tal como lh'a pedia o paladar das pla-
teas, nenhumvislumbredo epizodio trajico, salvo
uns versos do Anfitriao que se crém, (e, quanto
a mim, sem outro fundamento além da conje-
tura) como aplicaveis a elle mesmo. Mas ainda
supondo que a conjetura tenha razáo, admitindo
mais que a alegoría da justiga na Vida de D. Qui-
xole seja o rezumo das queixas pessoaes do poeta
(supozigáo tao frágil como aquella), a verdade é
que os sucessos da vida delle nao influiram,
nao diminuiram a forga nativa do talento, nem
lhe torceram a natureza, que eslava muitolonje
da hipocondría. Moliere, que, si nem sempre
teve flores no caminho, nao conheceu o ínfimo
dos padecimientos de Antonio Jozé, foi o crea-
186 CRITICA

dor de Alceste; o nosso judeu, dado quetivesse


a mesma intensidade de talento, nao escolheria
nunca o assunto do Mizanlropo.
Nisto, menos que era nenhuma outra couza,
imitaria elle o grande mestre. Nao lhe fossem
propór graves problemas, nem máximas pro-
fundas, nem os carateres, nem as altas obser-
vagoes que forraam o argumento das comedias
de outra esfera, nem sobretudo as melancolías
de Moliere e Shakespeare. 0 nosso judeu era a
farca, a genuina farga, sem outras pretengóes,
sem mais remotas vistas que os limites do seu
bairro e do seu tempo. Certo, eu posso hoje, á
fina torga, arrancar alguma idea inicial das ope-
ras do judeu; por exemplo, aG ver nos Encan-
tos de Medéa a dedica gao da feiticeira de Col-
chos, que trae os deveres filiaes e póe todas as
suas artes ao servigo de Jazon, ao ponto de lhe
entregar o velocino e ao ver que, apezar de tudo
isto, o principe foje com Greuza, posso, digo
eu, atribuir ao poeta a intengáo de que o reco-
nhecimento náoéo caminho do amor e que um
coragao pode ser legítimamente ingrato. Seria
lojico, seria bem deduzido da agáo, mas nao
passaria de obra da critica, inteiramente alheia
á intengáo do poeta, que achou no assunto
urna farga de tramoias e nada mais. Esta é a ul-
tima concluz&o que rigorozamente se pode tirra
ANTONIO JOZÉ 187

do poeta. Elle nao imitou, nao chegaria a imitar


Moliere, aínda que repetisse as transcrigdes
que fez no Anfiírido; tinha originalidade, em-
bora a influencia das operas italianas. Conve-
nhamos que era um enjenho sem diciplina, nem
gosto, mas carateristico *» pessoal.
UM LIVRO

Aquí está um livro que ha de ser relido com


apreso, com interesse, nao raro com admiracáo.
O autor que ocupa logar eminente na critica
Jbrazileira, tambem enveredou um dia pela no-
vela, como Sainte-Beuve, que escreveu Vo-
lapié, antes de atingir o sumo gráu na critica
franceza. Tambem ha aqui um narrador e um
observador, e ha mais aquilo que nao achare-
mos em Volapié, um paizajista e um minia-
turista. Já era tempo de dar ás Cenas da vida
amazónica outra e melhor edigáo. Eu, que as
reH, achei-Ihes o mesmo sabor de outrora. Os
que as lerem, pela primeiravez, dirao si o meu
falar desmente as su as proprias impressóes.
Talvez achem comigo que o titulo é exato,
sem dizer tudo. Sao efetivamente cenas d'a-
quella vida e d'aquelle meio; sente-se que nao
podem ser de outra parte, que foram vistas e
UM I.1VRO 189

recolhidas direta mente. Mas nao diz tudo o ti-


tulo. Trez, ao menos, das quairo novelas em
que se divideo livro, sao pequeños dramas com-
pletos. Taes o Boto, o Crime do Tapuio e a
Sorte de Vicentina. O proprio Voluntario da
patria temo drama na alma de tia Zeferina, desde
a quietagao na palhoga até aquel le adeus que
ella tica acenando na margem, nao já ao filho,
que a nao pode ver, nem ella a elle, mas ao fumo
do vaporque se perde ao lonje no rio, como urna
sombra.
Em todos elles, os costumes locaes e a natu-
reza grande e rica, quando nao é só áspera e
dura, servem de quadro a sentimentos injenuos,
simples e alguma vez fortes. O Sr. Jozé Veris-
simo possue o dom da simpatia e da piedade.
As suas principaes figuras sao as vitimas de
um meiorude,como Benedita, Rozinha e Vicen-
tina, ou aindaaquelle Jozé Tapuio, que confessa
um crime nao existente, como único fimde salvar
urna menina, ou de < faxé bemp'raeüa »,como diz
o texto. Nao se irritem os amigosda lingua culta
com a prozodia e a sintaxe de Jozé Tapuio. lia
dessas frases no livro, postas com arte c ca-
bimento, a espagos, onde é precizo carateri-
zar melhoras pessoas. Ha locugóes da térra. Ha
a tecnolojia dos uzos e costumes. Ninguem
esquece que está diante da vida amazónica, nao
190 CRITICA

toda, mas aquella que o Sr. Jozé Verissimo es-


colbeu naturalmente para dar-nos a vizáo do
contraste entre o meio e o homem.
O contraste é grande. A floresta e a agua en-
volvem e acabrunham a alma. A magnificencia
d'aquellas reji5es chega a ser excessiva. Tudo
é inumeravel e imensuravel. Sao milhoes, mi-
mares e centenas os seres que váo pelos rios
e igarapés, que espiam entre a agua e a térra,
ou bramam e cantam na mata, em meio de um
concertó de rumores, coleras, delicias e miste-
rios. 0 Sr. Jozé Verissimo dá-nos a sensagáo
d'aquella realidade. A descricao do caminho
que leva ao povoado do Ereré, atravez do « co-
bérto », do « lavrado » e de uncí espago sem
nome, é das mais belas e acabadas do livro.
Assim tambem a do Parú, ou antes a bistoria
do ¡rio ñas duas partes do ano, de verao e de
invernó, um só lago intermino ou muitos lagos
grandes, as ilbas que nacem e dezaparecem,
com os áspelos varios do tempo e da marjem.
Nao sao descricOes trazidas de acarreto. As
pessoas das narrativas váo para ali continuar a
acáo comecada. No Parú, como o tempo é de
« salga », a agua é sulcada de canoas, a mar-
jem alastrada de barracas, o sussurro do tra-
balho humano espalha-se e crece. Ai assisti-
mos á mor te trágica do pelintra de Obi dos, re-
UM LIVRO 191

gatao de alguDs días, deixando urna triste moga


defunta, amarela e magra. Adiante, por meio
do « coberto » e do « lavrado », vemos correr
Vicentina, com a filha de alguns mezes « escar-
ranchada nos quadris », fujindo á caza do ma-
rido, depois ás oncas, depois á solidao, que pa-
rece maior ali que em nenhuma parte; e ambas
as cenas sao das mais vivas do livro.
Ao pé do trajico, o mesquinho, o comum,
o quotidiano da existencia e dos costumes, que
o autor pinta breve ou minuciozamente. Os pe-
queños quadros sucedem-se, como o da rúa
Bacuri, na cidade de Obidos, á hora da sésta,
ou no fim del la, quando « a natureza estira os
bracos num hocejo preguicozo de quem deixa
a rede ». A rede é o movel principal das cazas ;
elle serve ao sonó, ao descanco, á palestra, á
indolencia. Si a caza é pobre, pouco mais ha
que ella; mas, pouco ou muito, podemos fiar-nos
da veracidade do autor, que nao perde o que
seja um rasgo de costumes ou possa avivara
cor da realidade. Vimos o regatáo; veremos a
benzedeira,a pintadeira de cuias, a mameluca,
sem exclusáo do jurado, do promotor, no presi-
dente de provincia.
Nem falta aqui a observacao fina e aguda.
Urna senhora, a quem a tia Zeferina, que a
criou, recorre chorando para que faqa soltar o
192 CRITICA

íilho, prezo para voluntario (como diziam aqui


no sul), ouve a mái tapuia, tem sincera pena
della, promete que sim, fala do prez i den te da
provincia, que é bom mogo, do baile do dia 7
de Setembro, era palacio, a que ella foi: « urna
festa de estrondo; as senhoras estavam todas
vestidas de verde e amarelo ; muitas tinham
mandado vir o vestido do Para, mas foi tolice,
porque em Manáus arranjava-se um vestido tao
bem como no Para ; o della, por exemplo, foi
muitogabado... » Já a tia Zeferina ouvira couza
análoga ao major Rabelo, seu compadre, quando
lhe foi contar a prizao do filho, e elle rompeu
furiozo contra os adversarios políticos. Todos
os negocios pessoaes se vao cogando assim na-
quela agonía errante. No Boto, é o proprio pai
de Rozinha, que nao excava muito as razóes do
a batimento mortal da íilha, « por andar atare-
fado com as eleicóes ».
Que elle tambem ha eleigóes no Amazonas;
é o tempo da salga política, a quadra das bar-
racas e dos regatóes. Nao nos dá um capitulo
desses o Sr. Jozé Verissimo, naturalmente por
lhe nao sernecessario, mas a rivalidade da viia
e do porto de Monte Alegre é um quadro vivo
do que sao raivas locaes, os motivos que as a-
cendem, a guerra que fazem e os odios que
íicam. Aqui basta a questao de saber si o cor-
UM LIVRO Wi

reio morará no porto, em baixo, ou na vila em


cima. E por que n&o ha vitoria sem foguetes,
os foguetes vao contar ás nuvens o despacho
prezidencial. A sessáo do juri, no Crimedo Ta-
paiOy é outro quadro finamente acabado. Tudo
sem sombra de caricatura. 0 embarque dos vo-
luntarios é oulro, mas ai a emocáo discreta
acompanha os movimentos mal ordenados dos
homens. Nos os vimos dezembarcar aqui, esses
e outros, tropegos e obedientes, marchando mal,
mas enfim marchando seguros para a guerra
queja lá vai.
Em táo varias cenas e lances, o estilo do
Sr. Jozé Verissimo (salvo nos Esbócelos, cuja
estrutura é diferente) é já o estilo correntio e
vernáculo dos seus escritos posteriores. Já en-
táo vemos o homem feito, de mao as sentada,
dominando a materia. Ha, a mais, urna nota de
poezia, a graca e o vigor das imajens, que outra
sorte de traba 1 hos nem sempre con^entem. Aqui
está a frente da caza do sitio em que Rozinha
naceu : » A palha da cobertura, nao aparada,
dava-lhe o aspeto alvar das crianzas que trazem
os cábelos caídos na testa. » No tempo da
pesca emigram, nao só os homens, mas tambera
os caes e os urubús. Os caes sao magros e fa-
raintos : « Caes magros, com as eos telas sa-
lientes, como si houvessem engolido arcos de
194 CRITICA

barrís... » Os urubús pouzam ñas arvores, al-


guma vez baixam ao solo, andando « com o seu
passo ritmado de anjos de procissáo ». A
urnas arvores que ha na grande charneca do
« coberío »7 basta va mostral-as por urna ima-
jem curta e viva, « em pozigóes retorcidas de
entrevados ». Mas nao se contenta o nosso au-
tor de a? dizer assim : em térra tal, tudo ha de
vibrar ao calor do sol : « Dir-se-ia que o sol,
que abraza aquellas parajens, obriga-as a taes
contorgCes violentas e paraliza-as depois... »
Ha muitas dessas imajens orijinaes e exprés-
sivas; melhor é lel-as ou relel-as intercaladas
na narrac&o e na descrigáo. Chateaubriand,
escrevendo em i834 a Sainte-Beuve, justamente
a propozito de Volapié^ que acaba va de sahir
do prélo, pergunta-lhe admirado com é que elle
Rene, nao achara tantas outras. « Comment
n'ai-je pas trouvé ees áeux vieillards el ees
deux enfanis entre lesquels ane révolution. a
passé... » etc. Deculpe a pontinha de vaidade, é
de Chateaubriand, e alguma couza se ha de
perdoar ao genio. Mas, em verdade, mais de
um de nos outros poderiamos dizer com since-
ridade e modestia como é que nos nao acudiram
taes e taes imajens do nosso autor, pois que el-
las trazem a feicáo de colizas antes saidas do tin-
teiro que compostas no papel.
UM LIVRO 195

Tambem é dado perguntar porque é que o Sr.


Jozé Verissimo deixou logo um terreno que
soube arrotear com fruto. Elle dirá, (era urna
nota, falando dos Esbócelos, que o fruto era
da primeira mocidade. Vá que sim; mas as
Cenas trazem outra experiencia, e boa térra
nao é esquecida, si se lhe encomenda alguma
couza com amor.
Até lá, íiquem-nos estas Cenas da vida ama-
zónica. Mais tarde, algum critico da escola do
autor compulsará as suas pajinas para resti-
tuir costumes extintos. Muito estará mudado.
Onde Jozé Tapuio lutou com a sicurijú até ma-
tal-a, outro homem estudará alguma nova forga
da natureza até reduzil-a ao domestico. Coberto
e lavrado darSo melhor caminho ás pessoas. Já
agora, como disse nhá Mi loca á mai tapuia, os
vestidos fazem-se tao bons era Manáus como
era Belém. A política irá peías tezouras da cos-
tureira, e a natureza agazalhará todas as artes,
suas hospedas. Tal critico, si ti ver o mesmo
dom de analize do Sr. Jozé Verrissimo, achara
que um testemunho esclarecido é mais cabal
que oulro, e regalará os seus leitores dando-íhe
este depoi mentó feito com emogáo, com exacao
e com estilo.
SECRETARIO D'EL-REI

O Sr. Dr. Oliveira Lima, entre um e outro


livro de historia, dá-nos agora urna comedia.
Que vos nao assuste este nome, vos que nao
amáis as formas facéis de literatura; nem esta
é táo fácil, como podéis crér, nem deixa de en-
volver um cazo psicolojico inleressante. Acre-
centai-lhe o quadro e a lingua, e tereis um
volume de Ier, reler e guardar.
Com razáo chama o autor ao seu Secretario
(VEl-Rei urna pega nacional, embora a a§áo se
passe na nossa antiga metropole, por aqueles
anos de D. Joáo V. E' duas vezcs nacional,
etn relagao á sociedade de Lisboa.
A aventura que constiLue a agáo é do logar
e do tempo; as pessoas e os atos que figuram
nella caraterizam bem a capital dos reinos,
com as mascaras dos namorados noturnos, a
gelozie de sua dama, o encontró de vadios, ca-
SECRETARIO D ' K L - R E I 197

pas enroladas, espadas núas, morios, feridos, a


ronda, todo o ceremonial de urna aventura da-
quelas. Meteu-lhes o autor o proprio irmáo
do rei, infante D. Francisco, aínda que o nao
traga á cena, e a propria amada do secretario,
que entra a pedir a absolvicáo do outro amado
por ella, e com esta complicacáo política e pes~
soal dividiu o interesse da a§áo,
0 centro della é naturalmente Dom Alexandre
de Gusmáo, em quem o autor quiz por o nosso
proprio interesse nacional. Naceu-lhe a afei-
cjáo já em anos maduros, nao foi aceita, nao
foi reiterada, sem por isso esquecer nem acabar.
Solicitado a servir a dama por outra maneira e
para outro fim, Gusmáo nao o faz menos leal-
mente que em seu mesmo favor, si a tivesse de
haver para si. A ultima palavra da comedia re-
zume o carater do secretario, livrando e ca-
zando o preferido de D Luz, mandando-os
para o seu Brazil, e acabando por lhes ensinar
o segredo da vida, que é « levaras couzas... a
rir, mesmo quando ellas háo de fazer-nos cho-
rar. »
Aqui senté o Ieitor o que Gusmáo quizera
ocultar já de todos, e admira a forca da alma de
um homem talhado para grandes dezinios.
Gusmáo, D. Luz, D. Fernando formam assim
as trez principaes pessoas da comedia ; masA"
m CIÚTICA

impossivel urna historia d'aquela gente sem fra-


des. Assim o quería Garrett, que nao via em
Portugal couza publica ou particular sem elles
e uzou delles. Aquí ha um, nem podía deixarde
havel-o em pleno D, Joáo V; ha tamhem um
embaixador,—o inglez naturalmente, — e final-
mente urna ama, e ama de todas as pegas,ainda
trajicas, como a da Castro : « Ama, na criagao
ama, no amor mai. » Esta, a Assungáo, parece
ser igualmente ambas as couzas. Ponde-lhe o
convento a que se acolbe o namorado ferido, o
Laus-perenne, as touradas, o santo oficio, as
contendas, as namoradas do rei, e reconhece-
reis, como íicou dito, que o quadro serve bem
de fundo ao enredo inventado pelo autor.
Quanto ao dialogo, tem as qualidades que po-
deriaraos exigir da compozigao e das pessoas,
Dizem-se por elle, — desde aquele escudeiro
JoSo Braz, — todas as minucias e circunstan-
cias precizas para a noticia dos carateres e da
acjio. Ha facilidade e naturalidade, vida e in-
teresse, a reflexáo que nao peza e a graga que
nao enfastia. Vé-se bem a lealdade do escrivao
da puridade, ouve-se o sonho imperial de Gus-
mSo, sem que a linguajem enfie a pompa inútil
ou dispa a compostura que lhe dá unidade.
A consagra gao cenica diz o Sr. Oliveira Lima
que merece como pon cas» a figura de Dom
«ZCTíPTARIO D ' E T - R E Í 1W

Alexandre de Gusmáo; elle acaba de lh*a dar,


com a conciencia do personagem e do as-
sunto. Sabemos que os estudos históricos e
de observacáo social e política sao prediietos
do nosso ilustre patricio. 0 talento brilhante
e solido, a instrugáo paciente e funda, o amor
da verdade, tudo islo que o Sr. Oliveira Lima
nos teñí dado em muitas outras pajinas, acha
aquí, ainda urna vez, aquelle lago de espirito
nacional que lhe assegura logar eminente na li-
teratura histórica e política da nossa térra. Col-
garnos de o dizer agora, e esperamos repetil-o
em breve.
1904 (Gazeia de Noliñas)*
HORAS SAGRADAS E VERSOS

Com o titulo Horas Sagradas, acaba de pu-


blicar Magalháes de Azeredo um livro de ver-
sos, que nao só nao desmentem dos versos an-
teriores, mas ainda se pode dizer que os vencem
e raostram no talento do poeta um gráu de per-
feicao crecente. Folgamos de o noticiar, ao
mesmotempo que oulrolivro, de Mario de Alen-
car, seu amigo, seu irmao de espirito e de ten-
dencia, de cultura e de ideal. Chama-se este ou-
tro simplemente Versos.
Quizeramos fazer de ambos um demorado es-
tudo. Nao o podendo agora, lembramos só o
que os nossos leitores sabem, isto é, que Ma-
galháes de Azeredo, mais copiozo e vasto* tem
um nome feito, em quanto que Mario de Alen-
car, para honrar o de seu ilustre pai> cometa a
escrever o seu no livro das letras brazileiras,
nao ás pressas, masvagarozo, com a mao firme
HORAS SAGRADAS B VERSOS ft)l

e pensativo para nao errar nem confundir.


Um ponto, além de outras afinidades, mos-
tra o parentesco dos dois espiritos. Nao é o
amor da gloria, que o primeiro canta, confessa
e define, por tantas faces e orijens, na ultima
compozicáo do livro, e o segundo nSo ouza dizer
nem definir. Mas aí mesmo se unem. Por-
quanto, se Mario de Al en car confessa : « o
autor é um incontentado do que faz » — e,
aliaz, já Voltaire dissera a mesma couza de s i :
« Je ne sais jamáis contení de mes vers». Maga-
lhaes de Azeredo ñas varias definieres da glo-
ria, chega indiretamente a igual confuzao,
quando póe na perfeigao a gloria mais augusta,
e cita os anónimos da Venus de Milo e da Im
iacao, até exclamar como Fausto :
E exclamar como Fausto em extaze exclamara :
Átomo fujitivo, és belo, és belo, para !
Isto, que está no fim do livro de Magalháes
de Azeredo, está tambem no principio, quando
elle abre m&o das Horas Sagradas. Confessa
que as guardou por largo tempo :
Por lago tempo, neste érmo oculto
Guardei-vos. I de para o tumulto
Das gentes. Quer-vos a sorte al i.
Colhereis louros? Mas ah I que louros
Valem, por fortes e duradouros.
Os vossos gozos, que eu conheci ?
209 CRITICA

E cá vieram as Horas .Sagradas, titulo qift


tSo bem assenta no livro. Ellas sao sagradas
pelo sentimento e pela inspiragáo, pelo amor
pela arte, pela comemoragáo dos grandes
morios, pela nobreza do cidadáo, da virtude e
da historia. A relijiáo tem aqui tambera o seu
logar, como no coráceo do poeta. Tudo é puro.
No Bozal de amor, primeira parte do livro, nao
ha flores apanhadas na rúa ou abafadas na sala.
Todas respirara o ar livre e lirapo, e por vezes
agreste. Um soneto, Ad purtssimam, mostra a
castidadeda muza, — urna das muzas,devemos
dizer, porque aqui está ñas estrofes Mamai, aou-
tra das suas muzas domesticas. E' um basto rozal
este, a que nao faltará porventura alguma flor
triste, mas tao rara e t&o gracioza ainda na tris-
teza, que mal nos dá esta sensagáo. Amuzica dos
versos faz esquecer a melancolía do sentido. Mati-
nal, Ao sol, Crepuscular dáo o tom da vida uni-
versal e do amor, a térra fresca e o céu aberto.
Os Bromes florentinos é urna bela colegáo
de grandes nomes de Florenga, e do mundo,
pajinas que (nao importa a distancia nem o
desconhecimento da cidade para os que lá nao
foram), produzem na alma do leitor cá de Ion je
urna vibraQ&o de arte nova cantiga a um tempo,
ao lado do poeta, a acompanhal-o
Atravez do Gentil e do Sublime
HORAS SAGRADAS E VERSOS 103

Nao quizeramos citar mais nada; seria pre-


cizo citar omito, transportar para Í6ra do livro
estrofes que dassjara \k fiear, salre as que o
poeta ligou na menina e liada sa-ídalka. Mas
como deixarde repetir sste fecho de brome de
Dante :
Quera, ite^íd i3 *9$rc ? adío profundo
Da p&Ur£«, **« * *&&5?SÍ», ^ chorou tanto,
Já n3o 4 c?*ifcífc ¿«rí* srondo
e muitos outros daildd?99 aoaetos, fazendo
passar ante os olhos Pabaroa, GioUo, Leonardo
da Viaci, Miguel Angelo, Boceado, Donatelio»
Frei Angélico, e tantos cujos nomes lá estáo
na igreja de Santa Cruz, onde o poeta entrou
em íi*a.3 caros ás muzas brazileiras. Cada figura
traz a sua expresólo nativa e histórica, aquí
está Ledo X, acabando na rizada pontificia;
aquí Gellini, desalando o punhal cora que é
capaz de ferir ; aqui Savonarola, a morrer quei-
mado e sem gemer, por esta razao de apostólo:
« Ardía mais que as chamas a tua alma! »
Nao poderia transcrever uns sem outros, mas
o ultimo bronze dará conta dos primeiros : é
Galileo Galilei:
Lá na Torre do Galo, esguia e mu.la,
Entre arvores vetustas escondida,
No en tardecer da trabalhada vida
O p o tentó anci5o medita e es tu da.
201 CRITICA

János olhos extinta é'a luz aguda,


Que os céus sondava em incessante Iida;
Mas inda a fronte curva e encanecida
Pensamentos intrépidos escuda.
Sorrindo agora das nequicias feras,
Que, por amor do ideal sofrido tiaha,
Elle a sentenQa das vindouras eras
Invoca, e os seus triunfos adivinha,
Ouvindo, entre a harmonia das esferas,
O compasso da Terra, que caminha.

Nem só Florenca ocupa o nosso poeta, amigo


de sua patria. As odes cívicas dizem de nos ou
da nossa lingua. Magaiháes de Azeredo é o pri-
meiro que noí-o recorda, nos versos Ao Brazil,
por ocasiáo do centenario da descoberta. O
centenario das Indias achou nelle um cantor
animado e alto. A o de A Garrei exprime urna
dessas adoragóes que a figura nobre e elegante
do grande homem inspira a quem o leuereleu
por anos. Enfim, com o titulo Alma errante
vem a ultima parte do livro. Aqui variam os as-
suntos, desde a ode As Aguias, em que tudo
é movimento e grandeza, até quadros e pensa-
mentos menores, outros tristes, urna saudade,
um infortunio social, um sonho, ou este deli-
ciozo soneto Sobre amqaadroaníigo.
HORAS SAGRADAS £ VERSOS SOS

Os seculos em bruma lenta e escura


Te ocultam, vaga iraajem feminina
E cada ano, ao passar, trédo elimina
Mais um resto de tua formozura*
Apenas, no esbatido da pintura»
Algum tom claro, alguma linha fina,
Revelando-te a graca frminina,
Dizem quem foste, ó frajií creatura...
Ah ! como és — és mais beia do que outrora,
Seduz-me esse ar distante, esse indecizo
Crepúsculo em que vives, me anamora.
O tempo um gozo intensamente doce
Poz-te no exangüe, pálido sorrizo;
E o teu humano olhar divinizou-se.,

Em rezumo escasso, apenas indicares de


passajens, tal é o livro de Magaíháes de Aze-
redo, um dos primeiros escritores da nova ge-
ratjáo, A perfei^ao e a inspiragao crecem agora
mais, repetimos. Elle, como os seus pares con-
jugam dois seculos, um que lá vai táo cheio e
táo forte, outro que ora chega tao nutrido de
esperanzas, por mais que os problemas se
agravem nelíc ; mas, si nao somos dos quecrém
no fim do mal, nao desceremos da nobreza do
esforgo, e sobretudo das consolares da arte*
Aqui está um espirito forte e hábil para nol-as
dar na nossa lingua.
Faga o mesmo o seu amigo e irm&o, Mario de
Alencar, cujo livro, pequeño e leve, contém o
2o; CRITICA

qnf deixgmo* dito no principio desta noticia


E ouH? c}m figurará entre os (te geracao que
C 0L16 VV 1 li*. U-UÍHE© deccp.ic. Particularmente
entre Mafií d£ Ateocfcr e Magdha&s de Azarado
aíém das afínid&dv?s iadic&das h& c encentro
de duas muz&s que os cossolaxa c animara. 0
acertó da inspirarlo; e a gemeidade da tenden-
cia levou-os a cantar a Grecia como se fazia
nos lempos de Byion e de Hugo. A sobriedade
é lambem um dos talentos de Mario de Alencar.
Quando nao ha. idea, a sobriedade é apenas a
falta de um recurso, e assim dois males juntos,
por que a abundancia, e alguma vez o excesso
suprem o resto Mas nao sao ideas que lhe
faltam; nena ideas, nem sensagóes, ñera vizóes,
como aquella Marinha, que assim comega :

Sopra o terral. A ncite é calma. Faz luar,


Intercadente
Sóa na praia molemente
A voz do mar.

As couzas dormem ; dorme a térra, e no ar sereno


Nenhum ruido
Perturba o encanto recolhido
Do luar pleno.

Ampia mudez. Alúa grande pelo céu


Sera nuvens vaga
E cobre o mar, vaga por vaga,
De um branco véu.
HORAS SAGRADAS E VERSOS 207

Lonje, á mercé da branda aragem, vai passando


Parda falúa.
Ñas pandas velas bate a lúa
De quando em quando...

Lédeo resto no livro, onde acharéis outras pa-


jinas a que voltareis, e que vos faráo esperar
melhores, pedimos que em breve. Que elle sa-
cuda de si esse entorpecimenlo, salvo si é ape-
nas respeito ao seu grande nome; mas aínda
assim o melhor respeito é a imitagao. Tenha a
confianza que deve em si mesmo. Sabe cantar
os sentimentos doces sem banalidade, e os gran-
des motivos nao o deixam frió nem rezistente.
Aínda hontem livémos de 1er o que Magalháes
de Azeredo disse de Mario de Alencar, e dias
antes1 dissera deste J. Verissimo; nos assina-
mos as opinóos de um e de outro.
i90% (Gazeta de Noticias).
PENSÉES DÉTACHÉES ET SOÜVENffiS

MEU QUERIDO NA BUCO,

Quero agradecer-Ihe a impressao que me


deixaram estas suas pajinas de pensamentos e
recordares. Vao aparecer justamente quando
V. cuida de tarefas praticas de ordem política.
Um professor de Douai, referindo-se á influencia
relativa do pensador e do homem publico, per-
guntava urna vez (assim o conta Dietrich) si
haveria grande progresso em colocar Aristides
ácima de Platao, e Pitt ácima de Locke. Con-
cluía pela negativa. V. nos dá juntos o homem
publico e o pensador. Esta obra, nao feita agora
mas agora publicada, vem mostrar que em meio
dos graves trabalhos que o Estado lhe confiou,
nao repudia as faculdades de artista que primeiro
exerceu e tao brilhantemente lhe crearam a car-
reira literaria.
PENSÉES DÉTACHÉBS BT SOÜVEMRS ttKt

Erro é dizer, como V. diz em urna destas pa-


jinas, que « nada ha mais canga tivo que ler
pensamentos >». So o tedio canga, meu amigo, e
este mal nao enlrou aquí, oadetambem nao teve
acolbida a vulgaridade. Ambos, aliaz, sao seus
naturaes iriimigos. Tambem nao é acertado crer
que, « si alguns espiritas os tem, é só por dis-
tragáo, e sao raros ». Quando fosse verdade,
eu seria desses raros. Desde cedo, li muito
Pascal, para nao citar ¿aaisque este, e afirmo-
Ihe que nao foi por diátragao. Ainda hoje
quando torno a bes lecturas, e me consolo no
desconsoló do Ecleziastes, acho-lhes o mesmo
sabor de outrora. Si alguma */ez me sucede
discordar do que leio, sempre agradego a ma-
neira porque acho expresso o dezacórdo.
Pensamentos valem e vivem pela observagáo
exata ounova. pela reflexao aguda ou profunda;
nao menos querem a orijinalidade, a simplici-
dade e a graga do dizer. Tal é o cazo deste seu
livro. Todos viráo a elle, atraídos pela sub-
stancia, que é aguda e muita vez profunda, e
encantados da forma, que é sempre bela. Ha
nestas pajinas a historia alternada da influencia
relijioza e fitozoíica, da observa gao moral e
estética, e da experiencia pessoai, já agora
longa. O seu interior está aquí -aberto as vistas
por aquella forma lapidaría que a memoria reteñí
210 CRITICA

melhor. Ideas de infinito e de absoluto, V. as


inscreve de modo direto ou sujestivo, e a
nota espiritual é aínda a carateristica das suas
pajinas. Que em todas resplandece um oti-
mismo sereno e forte, nao é precizo dizer-lh'o;
melhor o sabe, porque o senté devéras. Aqui o
vejo confessado e claro, até nos logares de al-
guma tristeza ou dezanimo, pois a tristeza é fá-
cilmente consolada, e o dezanimo,acha depressa
um surto.
Nao destacarei algumas destas ideas e re-
flexóes para nao parecer que trago toda a flor;
por numerozas que fossem, muita mais ñor (ica-
ria íá. Ao cabo, para mostrar que sinto a be-
leza e a verdade particular deltas, bastaría
apontar trez ou quatro. Esta do livro I : « Mui
raramente as belas vidas sao interiormente fe-
lizes; sempre é precizo sacrificar muita couza
á unidade, » é das que evocam recordares his-
tóricas, ou observares diretas, e ñas ruaos de
alguem, narrador e psicólogo, podía dar um
livro. O mesmo digo d'aquela outra, que é tam-
bem urna ligáo política : « Muita vez se perde
urna vida, porque no logar em que cabia ponto
final se langa um ponto de interrogado ». Sábe-
se o que era a vida dos anacoretas, mas dizer
como V., que « elles só conheceram dois esta-
dos, o de oracao e o de sonó, e provavelmente
PENSÉES DÉTACHÉEB ET SOÜVENIRS 211

ainda dormindo estavara rezando », é pórnesta


ultima frase a intensidade e a continuidade do
motivo espiritual do recolhimento, e dar do
anacoreta imajem mais viva que todo um capi-
tulo.
Nada mais natural que esta forma de conceito
inspire imitagóes, e provavelmente naufrajios.
As faculdades que exije sao especiaes e raras;
e é mais difícil vingarnella que em compozigao
narrativa e seguida. Exemplo da arte particu-
lar deste genero é aqueüe seu pensamento
CVII do livro III, Certamente, o povo já havia
dito, por modo direto e chao, que ninguem
está contente com a sua sorte; mas este outro
figurado e alegórico é só da imajinacSo e do
estilo della : « Si houvesse um escritorio de
permuta para as felicidades que uns invejam
aos outros, todos iriam lá trocar a sua ». Assim
militas outras, assim esta imajem de contrastes
e imperfeigóes relativas : « A borboleta acha-
nos pesados, o paváo mal vestidos, o rouxinol
roucos, e a aguia rasteiros. »
Em meio de todo este pensado e lapidado, as
reminiciencias que V. aqui poz fallana pela
voz da saudade e do misterio, como esse quadro
no cemiterio das cidades. V. exprime magnífi-
camente aquela fusáo da morte e da natureza,
por extenso e em rezumo, e atribue aos pro*
212 CRITICA

prios enterrados ali a noticia de que « a morte


é o desíolhar da alma era vista da eternd prima-
vera ». Todos gostaráo essa forma de dizer,
que para alguns será apenas poética, e a poezia
é um dos tons do Iivro. Igualmente sujestivo
é o quadro do dia de chuva e o do día de no-
voeiro, ambos em Petropolis tambem, como este
da « estrada caiada de luar », e este outro das
arvores de altos galhos e folhas finas.
Confessando e deíindo a influencia de Renán
em seu espirito, confessa V. ao mesmo que « o
dilettantismo delle o transviou. » Toda essa
expozicao é sincera, e no introito exata. Efe-
tivamente, ainda me lembra o tempo em que um
gesto seu, de pura facinagáo, me mostróu todo
o alcance da influencia que Chateaubriand exer-
cia entao em seu espirito. O estudo do contraste
destes dois homens é altamente fino e cheio de
interesse. Um e outro lá vao, e a prova melhor
da veracidade da confissáo aquí feita é a equi-
dade do juizo, a franqueza da critica, o modo
porque afirma que, apezar da relijiozidade do
exejeta, nao se pode contentar com a filozofia
delle.
Reli Massangana. Essa pajina da infancia, já
narrada em nossa lingua, e agora transposta á
franceza, que V. cultiva tambem com amor, dá
imajem da vida e do enjenho do norte, ainda
PENSÉES DÉTACHÉES BT S0UVEN1R6 31S

para quem os conheca de outiva ou de ieilura;


de ve ser verdadeira
Nao ha aquí só o komem de pensamento ou
apenas temperado por elle; ha aínda o sentí»
mentó evocado esaudozo, a obediencia viva que
se compraz em acudir ao impulso da vontade.
Tudo ahi, desde o sino do Irabaiho até a pa-
ciencia do trabalhador, a velha madrinha, se-
nhora de enjenho, e a joven mucama, ludo res-
pira esse passado que nao torna, nem com as
doguras ao coracáo do moc.o antigo, nem com as
armarguras ao cerebro do atual pensador.
Tudo lá va i com os primeiros educadores emi-
nentes do seu espirito,ficandoV. neste trabalho
de historia e de política, que ora faz em bene-
ficio de um no me grande e comum a todos nos;
mas o pensamento vive e vivera. Adeus, meu
caro Nabuco, ainda urna vez agradeco a im-
pressao que me deu ; e oxalá nao esquega este
velho amigo em quem a admiracáo reforca a
afeicao, que é grande.
19 de Agoslo áv 1901.
PREFACIOS

NÉVOAS MATUTINAS DE LUCIO DE MENDOZA

MEU CARO POETA,

fístou que quer fazer destas linhas o introito


de seu livro. Gumpre-me ser breve para nao to-
mar tempo ao leitor. O louvor, a censura fazem-
se com poucas palavras. E todavía o ensejo era
bom para urna longa dissertac&o que comegasse
ñas orijens da poezia helénica e acabasse nos
destinos provaveis da hu manida de. Ao poeta
daría de coracao um away, com duas ou trez
citagoes mais, que um estilista deve trazer sem-
pre na aljibeira, como o medico o seu estojo,
para estes cazos de forea maior.
216 CRITICA

Oensejo era bom, porque um livro de versos,


e versos de amores, todo cheio de confidencias
intimas e pessoaes, quando todos vivemos e
sentimos era proza, é cazo para reflexoes de
largo folego.
Eu sou mais razoavel.
Aperto-lhe primeiramente a mao. Conhecia já
ha tempo o seu nome ainda agora nacente, e
duas ou trez compozigóes avulsas ; nada mais.
Este seu livro, que daqui a pouco será do pu-
blico, vem mostrar-me mais amplamente o seu
talento, que o tem, bem como os seus defeitos,
que nSo podía deixar de os ter. Defeitos nao
fazem mal, quando ha vontade e poder de os
corrijir. A sua idade os explica, e nao sei até
se os pede; sao por assim dizer extranhezas de
menina, quazi moga : a compostura de mulher
vira com o tempo.
E para liquidar de urna vez este ponto dos
sinoes, permita-me dizer-lhe que o principal
delles é realizar o livro a idea do titulo. Chamou-
Ihe acertadamente Néuoas matutinas. Mas porque
néooas ? Nao as tem a sua idade, que é antes de
céu limpo e azul, de entuziasmo, de arrebata-
mento e de fé. E' isso geralmente o que se es-
pera ver num livro de rapaz. Imajina o leitor e
com razáo, que de envolta com algumas perpe-
tuas, vi rao muitas rozas de boa cor, e acha que
PREFACIOS S17

estas sao raras. Ha aquí mais saudades que es-


pe rangas, e aínda mais dezesperancas que sau-
dades.
K plena primavera, diz o senhor na dedica-
toria dos seus livros; e comtudo, o que é que
envía á dileta de sua alma ? Jde, pálidas flores
peregrinas, exclama logo adiante com suavi-
dade e graga. Nao o diz por necessidade de
compor o verso; mas por que efetivamente é
assim; por que nesta sua primavera ha mais
folhas pálidas que verdes.
A razáo, meu caro poeta, nao a procure tanto
em si, como no lempo; é do tempo esta poezia
prematuramente melancólica. Nao lhe negarei
que ha na sua lira urna corda sensivelmente ele-
jiaca, e desde que a ha, cumpria tanjel-a. O
defeito está em tornal-a excluziva. Nisto cede
á tendencia comum, e quem sabe tambem si a
alguma intimidade inteletual ? O estudo con-
stante de alguns poetas tal vez influisse na feigao
geral do seu livro.
Quando o senhor suspira estes belos versos;

A* térra morta num invernó mteiro


Voltam a primavera e as andorinhas»..
£ nunca mais viréis, ó érenlas minhas,
Nunca mais vollarás, amor primeiro!

nenhuma objegao Ibes faco, creio na dór que


S18 CRITICA

elles exprimen*, acho que s8o um eco sincero do


corac&o» Mas quando o senhor chama á sua
alma urna ruina, já me achara mais incrédulo.
Isto lhe digo eu com conhecimentó de cauza,
porque tambem eu cediemminhas estréas a esse
pendor do tempo.
Sentimentó, versos cadentes e naturaes, ideas
poéticas, aínda que pouco variadas sao quali-
dades que a critica lhe acharé neste livro* Si
ella lhe disser, e deve dizer-lh'o, que a forma
nem sempre é correta, e que a linguajem nao
tem aínda o conveniente alinho, pode respon-
der-Ihe que taes sinóes o estudo se incumbirá de
os apagar.
O publico vai examinar por si mesmo o livro.
Reconhecerá o talento do poeta, a brandura do
seu verso (que por isso mesmo se nao adapta
aos assuntos politicos, de que ha algumas es-
tancias neste livro), e saberá escolher entre es-
tas flores as mais belas, das quaes algumas
mencionarei, como sejam : Ta, Campezina A
volta, Galope infernal.
Si, como eu suponho, fór o seu livro recebido
com as simpatías e a ni mago es que merece, nao
durma sobre as louros. Nao se contente com
urna ruidozanomeada; reaja contra as sujestóes
complacentes do seu proprio espirito : aplique
o seu talento a um estudo rontinuado e severo;
PREFACIOS 21S

seja enfim o mais austero critico de si mesmo.


Deste modo conquistará certamente o logar a
que tem pleno direito. Assim o dezeja e espera
o seu colega.
Rio, 24 de Janeiro de 1872.

HARMONÍAS ERRANTES DE FRANCISCO DE CASTRO

MEU CARO POETA,

Pede-me a mais fácil e a mais inútil das ta-


refas literarias : aprezentar um poeta ao pu-
blico. Gusta pouco dizer em algumas linhas ou
em algumas pajinas, de um modo simpático e
benévolo, — porque a benevolencia é necessa-r
ría aos talentos sinceros, como o seu, — custa
pouco dizer que impressóes nos deixaram os
primeiros produtos de urna vocacao juvenil. Mas
nao é7 ao mesmo tempo, urna tarefa inútil? Um
livro é um livro; vale o que efetivamente ó. O
leiíor quer jugal-o por si mesmo; e, si nao
acha no escrito que o precede, — ou a autori-
dade do nome, — ou a perfeicao do estilo e a
justeza das ideas, — mal se pode furtar a um
tal ou qual sentimento de enfado, O estilo e as
sao CRITICA

ideas dar-lhe-iam a 1er urna boa pajina, — um


regalo de sobra; a autoridade do no me enchel-
o-ia de orgulho, si a impressao da critica coinci
dirá com a delle. Suponho ter ideas justas;
mas onde estao asoutras duas vantajens? Seu
Hvro vai ter urna pajina inútil.
Sei que o senhor supóe o contrario; iluz&o de
poeta e de mogo, filha de urna afeicao antes ins-
tintiva que experimentada, e, em todo cazo, re-
cente e generoza; seu coragao de poeta leu
tal vez, atravez de algumas estrofes que aí me
ficaram no caminho, este amor de poezia, esta
fé viva em alguma couza superior ás nossas la-
butag6es sem fruto, prímeiro sonho da moci-
dade e ultima saudade da vida. Leu isso;
compreendeu que ha Ídolos que se nao que-
bram e cultos que nao morrem, e veiu ter co-
migo, de seu proprio movimento, cheio daquela
candida confianga de sacerdote novo, rezoluto
e pió. Veiu bem e mal; bem para a minha sim-
patía, mal para o seu interesse; mas, segundo
já disse, nem bem nem mal para o publico,
diante de quem esta pajina é de mais.
E comtudo, meu caro poeta, é difícil esqui-
varse um homem que ama as muzas a nao falar
de um poeta novo, em um tempo que preciza
delles, quando ha necessidade de animar todas
as vocacOes, as mais arrojadas e as mais mo-
PREFACIOS IU

destas, para que se nao quebré a cadeia da


nossa poezia nacional.
Creioque o senhor pertence a essa juventude
laborioza e ambicioza, que hezita entre o ideal
de hontem e urna nova aspiracáo, que busca
sinceramente urna forma substitutiva do que
lhe deixou a geragSo passada. Nesse tatear,
nesse hezitar entre duas couzas, — urna bela,
mas pro ventura fatigada, outra confuza, mas
nova, — nao ha aínda o que se possa chamar
moví mentó definido. Basta, porém, que haja ta-
lento, boa vontade e diciplina; o movimento se
fará por si, e a poezia brazileira nao perderá o
verdor nativo, nem desmentirá a tradigáo que
nos deixaram o autor do Uruguay e o autor dos
Pymbiros,
Citei dois mestres; poderia citar mais de um
talento orijinal e cedo extinto, aíim de lembrar
& recente geraQáo, que qualquer que seja o ca-
minho da nova poezia, convem nao perder de
vista o que ha essencial e eterno nessa expressao
da alma humana. Que a evolugáo natural das
couzas modifique as feiQfies, a parte externa,
ninguem jamáis o negará; mas ha alguma couza
que liga, atravez dos seculas, Homero e Lord
Byron, alguma couza inalteravel, universal e
comum, que fala a todos os homens e a todos
os lempos. Ninguem o desconhece, de certo,
212 CRITICA

entre as novas vocagóes; o esforco empregado


em achar e aperfeicoar a forma, nao prejudica,
nem poderia alterar a parle substancial da poe-
zia, — ou esta nao seria o que é e deve ser.
Venhamos depressa as seu iivro, que o leitor
tem ancia de folhear e conhecer. Estou que si o
ler com animo repouzado, com vista simpática,
justa, reconhecerá que é um livro de estréa, in-
certo em partes, com as imperfeigoes naturaes
de urna primeira producto. Nao se envergonhe
de imperfeigOes, nem se vexe de as ver aponta-
das; agradega-o antes. A modestia é um mere-
cimento. Podería lastimar-se si nao sentisse em
si a forga necessaria para emendar os sinóes
inherentes aos trabalhos de primeira máo. Mas
será esse o seu cazo ? Ha nos seus versos urna
espoutaneidade de bom agouro, urna natural
simpleza, que a arte guiará melhor e a agáo do
tempo aperfeigoará.
Alguns pedirao á sua poezia maior orijinaíi-
dade ; tambem eu lh'a pego. Este seu primeiro
livro nao pode dar ainda todos os tragoes de sua
fízioaomía poética. A poezia pessoal, cultivada
nelle, está, paraassim dizer, exausta ; e d'aí vem
a dificuldade decantar couzas novas. Ha pajinas
que nao provém della; e, visto que ai o seu verso
é espontaneo, cuido que deve buscar urna fonte
de inspiracao fóra de um genero, em que houve
PREFACIOS !3S

tanto triunfo a par de tanta queda. Para que a


poozia pessoal renaga um dia, é precizo que Ihe
dém cutra roupajera e diferentes cores ; é pre-
ciza outrs evoluc&o literaria.
0 perigo destes prefacios, meu caro poeta, é
dizer demais; é ocupar maior espado do que o
leitorpéde razoavelmente conceder a urna lauda
inútil Ei? creio haver dito o bastante para um
homem sem autoridade. Viu que nao o louvei
com excesso, nem o censurei com insistencia;
aponto-lhe o melhor dos mestres-, o estudo; e a
melhor das díciplinas, o trabalho. Estudo, tra-
balho e talento sao a tríplice arma com que se
conouista o triunfo.
Rio de Janeiro, 4 de Agosto de 1878.

MERIDIONAES DE ALBERTO DE OLIVEIRA

Quando em 1879, na Revista Brazileira, tra-


tei da nova geragao de poetas, falei naturalmente
do Sr. Alberto de Oliveira. Vinha de 1er o seu
primeiro livro, Cangdes Románticas, de lhe dizer
que havia ali inspiracao e forma, emboras aca-
nhadas pela a gao de influencias exteriores. Acba-
va-lhe no estilo alguma couza flutuante e inde-
ciza; e quanto á materia dos versos, como o
334 CRITICA

poeta dissesse a outros, que tambem sabia folhear


a lenda dos gigantes, dei-Ihe este conselho:
« Que lhe importa o guerreiro que Iá vai á Pa-
lestina? Deixe-se fixar no castelo com a filha
delle... Nao é diminuir-se o poeta ; é ser o que
lhe pede a n ahí reza, Homero ou Mosckos. » Con-
cluia dizendo-ihe que se afírmasse.
Nao trago essa reminicencia critica (e deixo de
transcrever as expressóes de merecido louvor),
sinao para explicar, em primeiro logar, a escoiha
que o poeta fez da minha pessoa para abrir este
outro livro ; e, em segundo logar, para dizer
que a exortagáo final da minha critica tem aquí
urna brilhante resposta, e que o conselho nao
foi desprezado, porque o poeta deixou-se estar
efetivamente no castelo, nao com a filha, mas
com as filhas do castelao, o que é aínda mais
do que eu lhe pedia naquele tempo.
Que ha de elle fazer no castelo, sináo amar as
castelans? Ama-as, contempla-as, sae a cagar
com ellas, fita bem os olhos de urna para ver o
que ha dentro dos olhos azues, vai com outra
contar as estrelas do céu, ou entao pega do
leque de urna terceira para descrevel-o minucio-
zamente. Esse Leque, que é urna das pajinas
carateristicas do livro, chega a coincidir com
o meu conselho de 1879, como si o poeta abrindo
mao dos héroes, quizesse dar ás reminicencias
PREFACIOS 325

épicas urna transcrigáo moderna e de camarina:


esse Leqae, éuma redug&o do escudo de Achu-
les. Homero, pelo mao de Vulcano, poznaquelle
escudo urna profuzáo de couza, a térra, o céu,
o mar, o sol, a luz, e as estrelas, cidades e bo-
das, pórticos e debates, exercitos e rebanhos.
O nosso poeta aplicou o mesmo processo a um
simples leque de senhora, com tanta opulencia
de imajinagáo no estilo, e tao grego no proprio
assunto dos quadros pintados, que fez daquillo
urna parelha de broguel homérico. Mas nao é
isso que me dá o carateristico da pajina; é o
rezumo que ali acho, nao de todo, mas de qnazi
todo o poeta ; imajinozo, vibrante, muzical,
despreocupado dos problemos da alma humana,
fino cultor das formas bel as, amando por ven-
tura as lagrimas, contanto que ellas caiam de
uns olhos bonitos.
Conclua o leitor, e concluirá bem, que a
emogao deste poeta está sempre sujeita a o in-
fluxo das grasas externas. Nao achara aquí o
dezespero, nemo fastio, nem a ironía do seculo.
Si ha alguma gota amarga no fundo da taca de
ouro em que elle bebe a poezia, é a saudade do
passado ou do futuro, alguma couza remota no
tempo ou no espago, que nao seja a vulgari-
dade prezente. Daí essa volta frequente das
reminicencías helénicas ou medievaes, os helos
CRITICA 326

sonetos em que nos conta onacimento de Venus,


e tantos outros quadros antigos, ou aluzoes es*
palhados por versos e estro fes. Daí tambem
urna feigáo peculiar do poeta, o amor da natu-
reza. Nao quero fazer extratos, porque o leitor
vai 1er o livro inteiro; mas o soneto Majia
selvajem lhe dará urna expressao enerjica dessa
paixáo dos espetaculos naturaes, ante os quaes
o poeta exclama:
Tudo, ajoelbado e trémulo, me abisma
Cegó de assombro e estático de gozo

Cegueira e extazis : o limite da adorado. As-


sim tambem o Con$elho> pajina em que elle re-
ceita para urna dór moral o contato da floresta;
e ainda mais a anterior, Falando ao sol, emque
carateriza a intensidade de um grande pezar,
que entáo o oprime, afirmando que para esse,
nem mesmo a natureza — « a grande na tureza »
— pode servir de remedio.
A maior parte das compozigóes sao quadros
feitos sem outra intencáo mais do que fixar um
momento ou um aspeto. Geralmente sao cur-
tos, em grande parte sonetos, forma que os
modernos restauraran!, e luzidamente cultivam,
pode ser até que com excessiva assiduidade.
Os versos do nosso poeta sao trabalhados com
perfeigáo. Os defeitas, que os ha, nao Sao obra
Í>HEFAC1Ó3 Í2Í

de descuido; elle pertence a urna gerac&o que nao


peca por esse lado. Nacem, — ora de um mo-
mento nao propicio, — ora do requinte raesmo
do lavor; couza esta que já um velho poeta
da nossa lingua denunciava, a nao era o pri-
meiro, com esta compara gao : « o muito mimo
empece a planta ». Mas, em todo cazo, si isto é
culpa, felixculpa; a troco de algumas partes la-
boriozas, acabadas de mais, ficam as que o fo-
ram a ponto, e fica principalmente o eos tu me,
o respeito da arte, o culto do estilo.
Manha de caga. A volia da galera. Con-
traste, Em caminho. A janela de Julieta, e nao
cito mais para nao parecer que excluo as res-
tantes, daráo ao Ieitor essa feicáo do nosso poeta,
o amor voluptuoza da forma.
Nao lhe pergunteis, por exemplo, tía Manhá
de caga, ondo é que estáo as aves que elle ma-
tou. O poeta saiu principalmente á caga de belos
versos, e trouxe-os, arjentinos e sonoros, um
trofeo de sonetos. Assim tambem noutras par-
tes. Nada obsta que os versos bonitos tragam
felizes pensamentos, como pintam quadros
graciozos. Unse outrosaí estao. Si alguma vez,
e rara, a agáo descrita parecer que desmente da
strita verdade, ou nao trouxer toda a nitidez
preeiza, podéis descontar essa lacuna na impres-
sao geral do livro, que ainda vos fica muito;
3£8 CftITICA

fica-vos um largo saldo de artista e de poeta, —


poeta e artista dos meíhores da atual ge ra cao.
14 de Janeiro de 1884.

MIRAJENS DE ENEAS GALTXO.

MEU CARO POETA,

Este seu livro, com as 1 acunas proprias de


um livro de estréa, tem as qualidades corres-
pondentes, aquellas que sao, acertó respeito, as
meíhores de toda a obra de um escritor. Com os
anos adquire-se a firmeza, domina-se a arte,
multipíicam-se os recursos, busca-se a perfeigáo
que é a ambicáo e o dever de todos os que to-
mam da pena para traduzir no papel as suas
ideas e sensacQes. Mas ha um aroma primitivo
que se perde; ha urna expansáo injenua, quazi
infantil, que o tempo limita e retrae. Compreen-
del-o-ha mais tarde, meu caro poeta, quando essa
hora bemdita houver passado, e com ella urna
multidao de couzas que nao voltam, posto désse
logar a outros que as compensam.
Por emquante fíquemos na hora prezente. E'
a das confidencias pessoaes, dos quadros inLi-
PREFACIOS 429

mos,é a deste Kvro. Aos que lh'o arguirem, pode


responder que sempre ha verá lempo de alargar
a vista a outroa horizontes. Pode tambem ad-
vertir que é um pequeño livro, escolhido, que
nao cansa, e eu acrecentare!, por minha conta,
que se pode 1er com prazer, e fecher com lou-
vor.
Que ha nelle alguns leves descuidos, urna ou
outra impropriedade, é certo; comtudo vé-se
que a compozicjío do verso acha da sua parte a
atengáo que é hoje indispensavel na poezia, e
urna vez que enriqueca o vocabulario, elle Ihe
sairá perfeito. Vé-se tambem que é sincero, que
exprime os senümentos proprios, que estes sSo
bons, que ha no poeta um homem, e no homem
um corará o.
Ou eu me engaño, ou tem ai com que tentar
outros livros. Nao restrinja entáo a materia,
lance os olhos alem de si mesmo, sem prejuizo,
comtudo, do talento. Constrangil-o é o maior
pecado em arte. Anacreonte, se quizesse trocar
aflautapelo tubo, fícaria sem tubo nem flauta;
assim tambem Homero, se tentasse fazer de
Anacreonte, nao chegaria a dar-nos, a troco das
suas imortaes batalhas, urna das cantigas do
poeta de Teos.
Desculpe a vulgaridade do conceito; elle é
indispensavel aos que comegam. Outroquetam-
230 CRITICA

bem me parece cabido é que, no esmero do verso


nao váao ponto de cercear a inspiragáo. Esta é
a alma da poezia, e como toda a alma preciza
de um corpo, forga é dar-lh'o, e quanto mais i

belo, melhor; mas nem tudo deve ser corpo. A


perfeigao, neste cazo, é a harmonía das partes.
Adeus, meu caro Poeta. Crer ñas muzas é
aínda urna das couzas melhores da vida. Creía
nellas e ame-as.
90 de Julho de 1885.
ÍNDICE

ADVERTENCIA *

Literatura braziteira. — Instinto de nacionalidad^ •


Gmlberme Malta . . « . . , . . . • . «
Castro Alves . • * * *
O Primo Bazilio •
Semana literaria * * . * * * . .
Fagundes Várela • • , .
A nova geracao* . * • * . *
Antonio Jozé
Üm iivro (Cenas do Amazonas, de Jozé Verissimo) .
Secretario cTEKRei
Horas Sagradas e Versos , . . . . * - , , , ;
Pensées détachées et éouvenirs> de Joaquim Nabuco
PREFACIOS
Névoas matutinas 4
Harmonías errantes
Meridionaes * * » . * .
Mirajens • . . • « *

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