Você está na página 1de 6

A TRANSFERÊNCIA COMO DIREÇÃO DO TRATAMENTO

ANALÍTICO

MARCELO AUGUSTO RESENDE


Capitão Psicólogo e Psicanalista da PMMG

Resumo: A transferência é um fenômeno que ocorre dentro e fora


de uma análise, mas o uso que se faz dela diferencia a psicanálise
de outras terapias. Este trabalho vem elucidar o conceito de
transferência e possibilitar uma reflexão teórica e prática, através
da contribuição de alguns psicanalistas sobre sua relevância no
processo e direção do tratamento.

Palavras-chave: transferência, inconsciente, objeto da pulsão, falo


imaginário, sujeito suposto-saber, semblante, sintoma.

No filme Confissões muito Íntimas , do diretor Patrice


Leconte, uma moça ao procurar um analista, bate à porta de um
advogado, que tem um escritório no mesmo andar do psicanalista,
acreditando ser ele. Ao recebê-la, ela começa a falar de sua vida e
de seus problemas, confiando a este homem os seus segredos. O
advogado autoriza a sua fala e atentamente a escuta. As visitas se
sucedem até que o equívoco foi percebido pelo advogado, mas o
processo transferencial já estava instalado e a paciente resolve continuar
falando ao advogado analista sobre sua vida.

Násio (1999), fazendo alusão ao artigo freudiano sobre a


dinâmica da transferência, dizia que: todo indivíduo a quem a realidade
não oferece inteira satisfação de sua necessidade de amor, todo
indivíduo insatisfeito se volta, inevitavelmente, com uma certa esperança
libidinal, para todo novo personagem que entra na sua vida. Assim, é
completamente normal e compreensível ver o investimento libidinal em
estado de espera e pronto para dirigir-se para a pessoa do médico.
(NÁSIO, 1999, p. 60).
Rev. Psicologia: S. Mental e Segurança Pública, B Hte., 5, 77-82, jan./dez. 2008 77

psico 5.pmd 77 21/08/2017, 13:27


A transferência como direção do tratamento analítico

A característica principal da transferência é a vivência de


sentimentos em relação a uma pessoa, mas que na verdade estaria
endereçada a outra. As pessoas que são as fontes originais das reações
transferenciais foram pessoas importantes e significativas da infância.
Houve um deslocamento de desejos, impulsos, medos, fantasias,
atitudes e ideias visando a uma pessoa no passado, para alguém da
atualidade, Greenson (1981), completa dizendo ser um fenômeno
inconsciente e a pessoa que reage com sentimentos transferenciais está
quase que totalmente inconsciente desta distorção.
A transferência não é uma exclusividade da psicanálise, mas se
origina da estrutura da neurose, ressalta Birman (1982). Pode ser
observada com frequência na relação professor-aluno, médico-paciente
e padres-fiéis. É um fenômeno universal e não um produto criado
unicamente no espaço analítico. Muitas vezes, a própria escolha do
analista já está marcada por uma transferência, como pode ser
constatado no discurso desta cliente: escolhi você porque tem o
mesmo nome do meu irmão, aquele a quem confio os meus segredos
e com quem tenho liberdade para falar . A partir do telefonema do
paciente para marcar uma consulta, a transferência em direção ao
analista já está bem estruturada, afirma Násio (1999).
Quando alguém procura uma análise, tende a repetir na relação
com o analista os seus modelos e a transferir para ele imagos
introjetadas. Cada indivíduo tem uma placa estereotipada da qual tira
exemplares, indefinidamente no decorrer de sua existência. Assim, a
transferência é o momento em que o analista é captado nesses
estereótipos, podendo ser identificado à imago materna, paterna e/ou
fraterna, entre outros Freud, (1969).
Segundo Miller (1994), a transferência em sentido psicanalítico
se produz quando o desejo se aferra a um elemento muito particular
que é a pessoa do terapeuta. Não exatamente à pessoa, mas ao
significante analista. A transferência é, sobretudo, um fenômeno ilusório,
imaginário. Na perspectiva freudiana, é o momento em que o desejo
do paciente se apodera do terapeuta, em que o psicanalista não a
sua pessoa imanta as cargas liberadas pelo recalque. O analista, a

78 Rev. Psicologia: S. Mental e Segurança Pública, B Hte., 5, 77-82, jan./dez. 2008

psico 5.pmd 78 21/08/2017, 13:27


Marcelo Augusto Resende

partir do momento que opera com a cura psicanalítica, não é exterior


ao inconsciente do paciente. Há um lugar na economia psíquica que o
analista vem ocupar. O analista torna-se uma formação do inconsciente.
Nesse sentido, a transferência é a atualização da realidade do
inconsciente. Ela permite ver o funcionamento de um mecanismo
inconsciente na própria atualidade da sessão, criando uma nova
patologia, uma doença artificial própria da análise, que Freud (1969)
reconhece como inevitável, pois o desejo inconsciente é mobilizado
pela cura. É a neurose de transferência.
Um cliente de 28 anos ficou irritado por esperar na sala de
espera cinco minutos além do seu horário, acreditando que o analista
gostava mais do cliente anterior do que dele. Na sessão, acaba
relembrando a sua relação com o pai, que dava mais atenção ao irmão
mais novo. Com isso, sentia-se rejeitado e preterido, causando intensa
raiva. Sua vivência anterior acabou sendo atualizada na relação com o
analista.
Lacan adverte que a história é o passado historizado no
presente porque foi vivido no passado, nos lembra Miller (1994). O
caminho da restituição da história do sujeito adquire a forma de uma
busca de restituição do passado. A repetição é efeito da atemporalidade
do inconsciente e se opõe à recordação. A neurose é uma doença da
memória. Somente a revivescência no presente, acompanhada por uma
interpretação das determinações inconscientes, produz uma
ressignificação, que permite ao paciente situar-se de forma diferenciada
em relação à sua história, complementa Hornstein (1990).
A transferência é o primum movens da análise, afirma Násio
(1999). O cliente ao procurar um analista crê que ele irá curá-lo de
seus sofrimentos, de seus sintomas. O sintoma é um elemento que tem
uma significação que se dirige ao outro. O psicanalista situa-se no
lugar aonde se dirige o sintoma, é o receptor essencial do sintoma e,
por isso, o lugar que deve à transferência lhe permite operar sobre o
sintoma. Na relação analítica, a transferência começa paulatinamente
a instaurar-se, a estabelecer-se uma conexão de natureza transferencial

Rev. Psicologia: S. Mental e Segurança Pública, B Hte., 5, 77-82, jan./dez. 2008 79

psico 5.pmd 79 21/08/2017, 13:27


A transferência como direção do tratamento analítico

entre esses sintomas e nós, analistas, até que façamos parte do sintoma.
Esse gênero de conexão é o índice maior da transferência e, segundo
Násio (1999), temos que nos introduzir no sofrimento do outro e só
podemos fazê-lo se entramos na cena, no roteiro, nos detalhes, na
pontuação do discurso. É o que Lacan chama de semblante, o que
significa fazer uma tábula rasa de qualquer ideia, sentimento, até se
tornar uma superfície virgem de inscrições. O analista deve ser o vazio
em si e fingir esquecimento . Trata-se, portanto, de uma atitude
subjetiva, interna do analista, que desencadeia, abre, institui e inaugura,
verdadeiramente, o discurso analítico. Cesarotto (1987) contribui
dizendo que o semblante consiste em suportar o que não se conhece,
sem demonstrá-lo e que esta é a função do analista e condição de
escuta.
O analista garante, que tudo o que o analisando faz serve para
alguma coisa, mesmo que não se saiba o quê. O sujeito suposto-saber
não é o analista que sabe tudo, mas aquele em que o paciente confia,
que o que é dito não é feito em vão, não se fala à toa.
Quinet (1991) adverte que o cliente pode se apresentar ao
analista para se queixar de seu sintoma e até pedir para ele se
desvencilhar, mas isso não basta. É preciso que essa queixa se
transforme em uma demanda endereçada àquele analista e que o sintoma
passe do estatuto de resposta ao estatuto de questão, para que o cliente
seja instigado a decifrá-lo. Nesse trabalho preliminar, o sintoma será
questionado pelo analista que procurará saber a que esse sintoma está
respondendo, que gozo esse sintoma vem delimitar. Em termos
freudianos: o que fez fracassar o recalque e surgir o retorno do
recalcado para que fosse constituído o sintoma.
A constituição do sintoma analítico é correlata ao
estabelecimento da transferência que faz emergir o sujeito suposto-
saber, pivô da transferência. O sintoma, ao ser transformado em
questão, ele aparece como a própria divisão do sujeito e, ao encontrar
o endereço certo que é o analista, se torna o sintoma propriamente
analítico. Lacan chama isso de: o analista completa o sintoma. Com
esse sintoma, o sujeito se dirige ao analista com uma pergunta: o que
isso quer dizer? O que significa isso? Tal posição inclui um saber, pois

80 Rev. Psicologia: S. Mental e Segurança Pública, B Hte., 5, 77-82, jan./dez. 2008

psico 5.pmd 80 21/08/2017, 13:27


Marcelo Augusto Resende

supõe que o analista detém a verdade de seu sintoma. O enigma é


dirigido ao analista que é suposto deter o saber: o analista é assim
incluído nesse sintoma completando-o. O analista será convocado a
ocupar na transferência o lugar do Outro do sujeito a quem são dirigidas
suas demandas.
O analista empresta a sua pessoa para encarnar esse sujeito
suposto-saber, embora sua posição muito mais do que a posição de
saber é de fato uma posição de ignorância, de não ter um saber absoluto.
Segundo Násio (1999), é preciso que o analista ocupe, se aproxime o
mais possível da expressão imaginária do objeto da pulsão, ou seja, que
encarne o falo imaginário, um grande Outro, interlocutor das mensagens
que lhe são dirigidas. É o lugar do objeto recoberto pelo véu de um
falo imaginário, opaco e enigmático (NÁSIO, 1999, p. 46).
O estabelecimento da transferência é necessário para que uma
análise se inicie, mas ela não é condicionada ou motivada pelo analista.
Ela está presente desde o início. Não é portanto uma função do analista,
mas do analisante. A função do analista é saber utilizá-la na direção do
tratamento. No filme Confissões muito Íntimas , o advogado analista
silencia a si mesmo para dar voz a sua cliente e com isso promove que
ela possa fazê-lo seu analista, através da transferência.

Abstract: Transference is a phenomenon which occurs inside or


outside the boundaries of the analytical process. However, the use
of transference by psychoanalysis differentiates such process from
other therapy methods. Using the contributions of some
psychoanalysts about the importance of transference in the process
and in the direction of the treatment, this work intends to clarify
the concept of transference and to allow a practical and theoretical
reflection upon such.

Key-words: transference, unconscious, pulsion object, phallus,


subject supposed-knowledge, semblance, symptom.

Rev. Psicologia: S. Mental e Segurança Pública, B Hte., 5, 77-82, jan./dez. 2008 81

psico 5.pmd 81 21/08/2017, 13:27


A transferência como direção do tratamento analítico

REFERÊNCIAS

ALAIN MILLER, Jacques. Percurso de Lacan uma introdução. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

BIRMAN, Joel et al. Transferência e interpretação. Rio de Janeiro:


Campus, 1982.

CESAROTTO, Oscar et al. O que é psicanálise. São Paulo: Ed.


Brasiliense, 1987.

FÉDIDA, Pierre. Clínica psicanalítica estudos. São Paulo: Escuta,


1988.

FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência. ESB. Rio de Janeiro:


Imago. 1969, vol XII, p. 133-143.

_________ Observações sobre o amor transferencial. ESB. Rio de


Janeiro: Imago. 1969, vol XII, p. 207-223.

GREENSON, Ralph. A técnica e a prática da psicanálise. Rio de


Janeiro: Imago, 1981.

HORNSTEIN, Luis. Cura psicanalítica e sublimação. Porto Alegre:


Artes Médicas, 1990.

NASIO, J.D. Como trabalha um psicanalista? Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed.,1999.

_________. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Rio de


Janeiro: J. Zahar Ed.,1993.

QUINET, Antônio. As 4 +1 condições de análise. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed.,1991.

82 Rev. Psicologia: S. Mental e Segurança Pública, B Hte., 5, 77-82, jan./dez. 2008

psico 5.pmd 82 21/08/2017, 13:27

Você também pode gostar