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ROSA MARIA

FISCHER
é professora titular
da FEA-USP e autora
de, entre outros,
Responsabilidade
Social: O Desafio de
Colaborar (Gente).

Lições a
Rosa Maria Fischer

aprender:
a crise e os
investimentos
sociais
RESUMO

Este artigo coloca as reflexões preliminares acerca de como a crise econômico-


financeira de 2008 e 2009 repercutiu sobre as políticas de sustentabilidade em-
presarial, principalmente no vértice da responsabilidade social. Para alimentar
essas análises,foram realizados levantamentos de opiniões e expectativas junto
a gestores de empresas e de organizações da sociedade civil. Verificou-se que
as medidas tomadas pelas empresas procuraram assegurar a sustentabilidade
econômico-financeira do negócio e as estratégias focadas no meio ambiente.
Já as ações sociais propriamente ditas, como as parcerias com organizações da
sociedade civil, tiveram seus investimentos reduzidos e/ou temporariamente
suspensos. Os empreendimentos sociais não estavam preparados para enfren-
tar a crise e ficaram vulnerabilizados em suas capacidades de captar recursos.
Entretanto, ambos os levantamentos indicaram perspectivas otimistas para
a retomada dos investimentos socioambientais, apoiadas em uma visão de
rápida superação da crise no Brasil.

Palavras-chave: crise econômico-financeira, investimento social privado,


terceiro setor.

ABSTRACT

We present in this article some preliminary reflection on how the 2008-2009 econo-
mic crisis echoed on enterprise sustainability policies,mainly concerning actions of
social responsibility. To feed this analysis, we surveyed opinions and expectations
from both business enterprises and civil society actors. We observed that the me-
asures taken by business enterprises aimed at securing financial and economic
sustainability of their business and environment-focused strategies. Investments
in social actions, arising from partnerships with civil society organizations, were
reduced or temporarily suspended. Unprepared to confront the crisis, social ven-
tures were hindered in their capacity to capture resources. However, both surveys
showed a positive outlook for potential new social and environmental investments,
supported by a perspective of quick recovery from the crisis in Brazil.

Keywords: financial and economic crisis, social private investment, third sector.

96 REVISTA USP, São Paulo, n.85, p. 94-109, março/maio 2010


Para enfrentar o desafio de promover
esse modelo de desenvolvimento, há que
se encontrar soluções para os problemas
sociais e ambientais que caracterizam o
cenário brasileiro. Esses problemas não
são recentes e, tampouco, são desconhe-
cidos os indicadores que evidenciam sua
ocorrência: desigualdade de distribuição de
renda; baixos índices de desenvolvimento
humano, destruição de ativos florestais e
contribuição às mudanças climáticas. Por
Este artigo foi elaborado com
o apoio da mestranda Anita isso, desde as últimas décadas do século XX,
Maria de Moura. tornaram-se convergentes as opiniões de que
não bastava diagnosticá-los, mas de que era
preciso elaborar soluções abrangentes, que
dessem conta de sua complexidade e de sua
INTRODUÇÃO interação sistêmica.
Tais soluções implicavam uma ampla

A
diversidade de atores, desde os mais sim-
ples cidadãos, passando pelas empresas,
crise econômico-financeira de organizações da sociedade civil, órgãos
2008-2009 afetou o comércio públicos. Significa dizer que elas tornam
internacional, provocou de- essencial que decisões e ações se pautem
semprego, gerou turbulências pelo paradigma de colaboração estratégica
geopolíticas. Esses fatos e intersetorial. Foi dessas constatações,
são conhecidos. Discute- muitas oriundas da prática de gestão so-
se, agora, as causas e os efeitos; se é um cial, outras do debate público e algumas
fenômeno que já entra em recesso ou se das sistematizações teóricas, que despon-
ainda se expandirá; se apresentará resulta- taram movimentos sociais, proposições
dos mais desastrosos em um, ou em outro políticas, estratégias e ações focadas no
país. Questiona-se se mudará radicalmente tríduo responsabilidade, sustentabilidade,
o curso histórico do capitalismo ou se, logo empreendedorismo.
que retomado algum equilíbrio econômico, É de estranhar, portanto, que a eferves-
voltará a empregar os instrumentos financei- cência da crise mundial não tenha atingido o
ros e as operações de risco considerados os chamado investimento social. E, se atingiu,
desencadeadores dessa situação de pânico por que não foi objeto de análises e pros-
e insegurança. pecções? Se não atingiu, como explicar
Em meio a tantas dúvidas e reflexões essa imunidade? Seria porque o volume
quase nada se produziu relacionando os de recursos empregados em ações socio-
efeitos da crise com alguns temas que ambientais não é significativo no cenário
ocuparam a pauta nos últimos vinte anos: financeiro das empresas? Ou porque o valor
responsabilidade corporativa, sustentabi- da responsabilidade social está tão forte-
lidade organizacional, empreendedorismo mente consolidado nas estratégias e culturas
social. Temas estes que estão no cerne de organizacionais que já não se deixa abalar
um dos maiores desafios enfrentados pela pela turbulência do contexto externo? Seria
humanidade: a necessidade de promover porque as organizações da sociedade civil
o desenvolvimento socioeconômico am- conseguiram finalmente atingir um patamar
biental sustentável. Aquele que equilibra sólido de sustentabilidade financeira? Ou
o crescimento econômico com a equidade porque os modelos de gestão adotados pelos
social, com o progresso tecnológico e com empreendimentos sociais são ainda tão pre-
a renovação dos recursos naturais. cários que não sinalizaram a vulnerabilidade

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a que estão expostos em virtude da eclosão Entretanto, apesar de não constituírem
desse fenômeno econômico? a prioridade do interesse social, essas ques-
Procurando elaborar algumas possibili- tões, quando agudizadas pelos fenômenos
dades de respostas a tais questionamentos de crises que as tornam mais evidentes,
foram realizadas duas sondagens, sendo emergem como desconfortáveis indicadores
uma junto a empresas, focando como a crise de que “algo não vai bem”. Esse mal-estar
influenciava as estratégias de sustentabilida- provoca questionamentos sobre a respon-
de; e outra junto a empreendimentos sociais sabilidade das instituições, como o poder
focando o impacto da crise na captação de público das sociedades democráticas; o
recursos financeiros. Embora limitados, em papel das organizações como a função so-
termos empíricos e metodológicos, esses cial das empresas no sistema capitalista; a
levantamentos oferecem insumos para um essência da cidadania, como no que consiste
debate mais amplo: aquele que questiona o direito e o dever da participação social. Em
se e como os atores econômicos estão as- qualquer dessas indagações e em todas elas
sumindo a responsabilidade de enfrentar os reside um fundamento básico: o princípio
desafios sociais e ambientais que afetam o ético que sustenta a relação de cada pessoa
conjunto da sociedade. com o outro, seja quem for esse outro.
Este artigo, para desenvolver essa refle- Provavelmente em virtude dessa raiz
xão, é composto das seguintes partes, além filosófica do tema, o tratamento das questões
desta introdução: sociais foi, no passado recente da civilização
ocidental, delegado a reflexão e ação das
• Da filantropia à sustentabilidade: a evo- instituições religiosas. Associado à idéia
lução de conceitos e práticas. de caridade, o conceito de filantropia dava
• Contextualização e problematização: da conta de explicar a virtude do doador e a so-
relação entre a crise e o investimento em lução do problema do beneficiário, mas não
práticas sociais e ambientais. alcançava as dimensões sociais, econômicas
• Impacto da crise: perspectivas de empre- e políticas afetadas por essas questões. O
sas e empreendimentos sociais através das protagonismo do Estado, por sua vez, que,
sondagens realizadas. aparentemente oferecia uma distribuição
lógica da responsabilidade por prover bens e
serviços sociais, não se mostrou eficiente e
suficiente para eliminar as causas e evitar a
DA FILANTROPIA expansão desses problemas. Surgem, então,
proposições, questionamentos e polêmicas
À SUSTENTABILIDADE acerca do papel das empresas privadas neste
cenário, inaugurando-se uma enxurrada de
A erradicação dos problemas socioam- termos para designá-los: responsabilidade
bientais como a miséria, a fome, a exclusão corporativa, responsabilidade social, ci-
social, a degradação ambiental é um desafio dadania empresarial (Fischer, 2001) com
que se coloca para a humanidade ao longo significados semelhantes ou diversos.
de séculos e nos mais diferentes rincões do Uma das primeiras referências sobre o
planeta. A modernidade industrial e tecno- tema de responsabilidade social surgiu de
lógica da sociedade contemporânea não deu um estudo iniciado em 1949 pelo Conselho
conta de solucioná-los, mesmo nos países de Federal das Igrejas de Cristo da América,
economia avançada. A complexidade dos no qual Bower (1957, pp. 14-5) traduziu o
múltiplos fatores que os originam, associada conceito como sendo “as obrigações dos
à confrontação com interesses de grupos e homens de negócios de adotar orientações,
classes sociais e fortalecida por uma cultura tomar decisões e seguir linhas de ação, que
individualista, coloca as questões sociais na sejam compatíveis com os fins e valores
marginalidade das ações e decisões das pes- de nossa sociedade”. No Brasil, pioneiros
soas, das organizações e dos governos. do empreendedorismo industrial como

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Roberto Simonsen, Jorge Street e Leon estratégico das empresas e do conceito de
Feffer (Marcovitch, 2003; 2005) adotavam sustentabilidade à cultura organizacional.
práticas de investimentos sociais em virtude Esse conceito é mais robusto por ser integra-
de convicções próprias e da visão realista tivo das dimensões econômica, ambiental
que tinham acerca de como as carências e social. Além disso, ele elimina a divisão
sociais prejudicavam seus negócios. Mas, entre a responsabilidade do negócio e a
na virada do século XIX e primórdios do responsabilidade social evitando contradi-
século XX, essas iniciativas eram pontuais ções, como a distância entre o discurso e a
e não se constituíram em um movimento prática da responsabilidade empresarial ou
do empresariado que propiciasse o engaja- ainda de casos no qual o investimento social
mento efetivo em causas sociais. privado limita-se a doações filantrópicas e
Já com a redemocratização do país nos projetos assistencialistas.
anos 80 e, principalmente, com o recrudes- As organizações empresariais dedicadas
cimento dos problemas sociais na década a investir em projetos e ações socioambien-
de 90, observa-se uma tendência de colocar tais geralmente o fazem através de parcerias
na pauta do discurso empresarial o tema ou alianças estratégicas com as organizações
da responsabilidade social. Dessa feita do chamado terceiro setor (Sekn, 2005).
a criação de entidades como o Grupo de Esses investimentos diferenciam-se das
Institutos Fundações e Empresas (Gife), a simples doações porque envolvem pla-
Fundação Abrinq, o Instituto Ethos indica nejamento e monitoramento conjunto e
que, além da manifestação de desconforto, sistemático dos projetos e focam resultados
existe uma intenção deliberada de agir de passíveis de avaliação (Gife, 2008). Desse
forma estruturada junto ao espaço público, modo, eles exigem o comprometimento
na relação com stakeholders e no processo efetivo das organizações parceiras e objeti-
de desenvolvimento das comunidades. vam provocar reais transformações em vez
Evidentemente, tanto no Brasil quanto de soluções paliativas para os problemas
em outros países, essa tendência não foi sociais.
homogênea nem majoritária. Economis- As organizações do terceiro setor são
tas, juristas, legisladores colocaram-se eleitas como parceiros preferenciais das
contrários ao investimento de recursos e empresas para operar os projetos socio-
da energia empresarial para promover be- ambientais porque detêm as competências
nefícios sociais sustentando o argumento técnicas para lidar com os problemas sociais
de que gerando lucros, empregos e salários e a legitimidade política para relacionar-se
a empresa já estaria cumprindo sua função com as comunidades e os segmentos popula-
social. As opiniões mais radicais alegavam cionais que são o alvo dessas iniciativas.
até mesmo a ilegalidade do investimento Segundo a definição estrutural-operacio-
social privado, considerando que ele seria nal proposta por Salamon e Anheier (1992),
realizado com recursos financeiros que o terceiro setor é composto por organizações
deveriam ser distribuídos aos acionistas ou privadas, formais, autônomas, que não
para melhor remunerar seus funcionários e distribuem lucros aos seus dirigentes e que
para desenvolver o próprio negócio. envolvem algum tipo de participação vo-
Ao largo dessa polêmica, porém, os luntária. Apesar de essas organizações não
conceitos e práticas continuaram evoluindo obedecerem a um padrão uniforme e linear
em iniciativas transnacionais como o Pacto e, muitas vezes, serem confundidas com a
Global da Organização das Nações Unidas, própria sociedade civil, excluem indivíduos
nas quais a noção de responsabilidade social e grupos informais que se envolvem em
amplia-se para além das empresas incorpo- atividades cívicas ou públicas.
rando também órgãos públicos e organiza- Assim sendo, as instituições são clas-
ções do terceiro setor. Surgem diferenciais sificadas em três tipos distintos, podendo
significativos, tais como a incorporação das ter alguma relação de interdependência: as
ações socioambientais ao direcionamento entidades governamentais que fazem parte

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do Estado ou primeiro setor, as empresas pri- dos bancos que modelaram essa arquitetura
vadas com finalidade de lucro, integrantes de operações cuja liquidez era uma fantasia.
do chamado mercado ou segundo setor e as Estabeleceu-se um clima de insegurança
organizações privadas sem fins lucrativos, e desconfiança, que contaminou os mais
participantes do terceiro setor. diversos mercados do globo nos quais os
Um desdobramento mais recente da investidores de capital resguardaram seus
busca de soluções para questões sociais, recursos, gerando a escassez que paralisou
aliando as experiências do investimento as atividades econômicas.
social empresarial com o ativismo da Embora outras crises nos últimos vinte
sociedade civil organizado, tem sido a anos já tivessem anunciado essa fragilidade,
emergência do empreendedorismo social foi na atual que se vivenciou um dos efeitos
e dos chamados negócios sustentáveis. catastróficos da chamada globalização, que
Indo além da atuação das organizações consiste na interdependência dos mercados
sem fins lucrativos mais tradicionais, tem (Stiglitz, 2003). A fuga de capitais e a des-
o objetivo específico explícito de promover valorização das ações atingiram amplos
o desenvolvimento sustentável mediante setores da economia gerando impactos
a produção e comercialização de bens e negativos, mesmo em países que não par-
serviços que assumem o desafio de gerar, ticipavam diretamente das “cirandas de
simultaneamente, valor econômico e valor subprime e derivativos”. Setores como a
social (Fischer & Comini, 2007). São ini- produção automotiva, agroindustrial e de
ciativas que promovem melhorias sociais bens de capital reduziram abruptamente
e ambientais convivendo com os desafios seu ritmo em face da perspectiva de queda
da sobrevivência econômica e financeira, das exportações e retração do consumo.
criando oportunidade de trabalho e renda Imediatamente despontaram os indicadores
e enfrentando os riscos da exposição ao de que a turbulência econômica atingia as
mercado. condições da vida social: o aumento da
Prosseguindo nessa evolução, os em- taxa de desemprego, a escassez de crédito
preendimentos sociais são um modelo em para consumo, a perda de bens duráveis que
construção que contém as características vinham sendo adquiridos.
organizacionais e administrativas das em- A diminuição de recursos financeiros
presas e das organizações de terceiro setor. afetou os investimentos sociais e ambien-
Os empreendimentos sociais assumem van- tais, que perderam espaço para a própria
tagens e desvantagens de ambos os setores, necessidade de sobrevivência econômico-
mas tendo o aspecto inovador através do financeira das empresas e organizações da
qual se pode cogitar da possibilidade de sociedade civil. Segundo Anheier (2009),
uma possível transformação significativa para as organizações sem fins lucrativos,
no tratamento das questões sociais. a crise atual significa menos recursos em
termos de despesas correntes para os pro-
gramas em andamento e para os previstos.
Isso levou a uma inesperada instabilidade
CONTEXTUALIZAÇÃO E financeira, a maiores incertezas para ges-
tores e agentes (financiadores e público
PROBLEMATIZAÇÃO atendido), ao cancelamento de contratos,
convênios e parcerias e ao não cumprimento
Os analistas descrevem a origem da crise de obrigações, configurando o risco maior
global de 2008-09 como o momento em que da impossibilidade de se atender à deman-
a inadimplência dos tomadores de hipotecas da em uma situação na qual ela tende a se
nos EUA desmascarou a artificialidade de tornar crescente.
uma economia construída sem fundamentos O autor ressalta que, para fundações e
reais, que provocou a “quebra” financeira entidades dedicadas a questões sociais em
de grandes empresas do setor imobiliário e geral, a crise significa equilibrar, de um

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lado, o aumento da demanda por auxílio
e, do outro, grandes desembolsos de ativo
com redução das disponibilidades. O que
significa dizer que há uma expectativa de
que façam mais em um momento em que
só é possível fazer muito menos.
Esse crescimento da demanda por
serviços sociais é oriundo dos impactos
negativos já claramente visíveis em alguns
países. Nos EUA, por exemplo, a taxa de
desemprego é a maior desde 1983, 10,2%,
com 15,7 milhões de desempregados em
outubro de 2009. Segundo dados da Pes-
quisa Populacional do U.S. Census Bureau,
houve um aumento da pobreza nesse país
de 12,5% em 2007 para 13,2% em 2008,
maior nível em onze anos.
Segundo dados da Comissão Econômica
para América Latina e Caribe (Cepal, 2009)
a tendência de queda das taxas de pobreza
na América Latina inverteu devido aos efei-
tos da crise. A pobreza aumentou em 1,1%
em 2009 e a indigência em 0,8%, com 189
milhões de pessoas em condições de renda
abaixo do custo da cesta básica de produtos
e serviços. Nessa pesquisa, a situação do
Brasil, do Peru e do Chile diferencia-se
substantivamente dos demais países.
No Brasil a crise global provocou a
desaceleração do crescimento econômico,
mas não atingiu as proporções observadas
nos países de economia mais desenvolvida,
como os EUA e a Inglaterra. O sistema finan-
ceiro brasileiro não estava profundamente
envolvido com papéis e operações de alto
risco, as contas externas estavam razoavel-
mente equilibradas e a solidez da moeda,
assegurada há mais de dez anos, garantiram
um cenário de proporções menos dramáti-
cas. Ainda assim, os setores exportadores
e as atividades econômicas transnacionais
se ressentiram de perdas. Na expectativa
de forte desaceleração econômica, muitos
dirigentes empresariais anteciparam-se em
implementar medidas de redução dos custos
de produção e despesas administrativas, em
interromper projetos de expansão e inovação
e em eliminar postos de trabalho. Nesse
sentido, é possível supor que as políticas
de sustentabilidade empresarial, ainda
muito imaturas, assim como as práticas de

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investimento social tenham sofrido, nessas E, principalmente, se as práticas de investi-
empresas, algum tipo de interrupção e/ou mento social privado, que se consolidavam
postergação. progressivamente em alianças e parcerias in-
Segundo dados do Instituto de Pesquisa tersetoriais, continuarão sendo exercitadas,
Econômica Aplicada (Ipea), apesar da pre- expressando a efetiva vontade política de
sença da crise financeira internacional, 316 superar os problemas socioambientais que
mil brasileiros saíram da linha de pobreza obstruem o caminho do desenvolvimento
entre outubro de 2008 e março de 2009 sustentável do país.
nas seis maiores regiões metropolitanas do
país. Além disso, intervenções do governo
na economia, como o reajuste do salário
mínimo em fevereiro de 2009, a redução IMPACTO DA CRISE:
da taxa básica de juros e o aumento dos
gastos do governo com o objetivo de PERSPECTIVAS DE EMPRESAS E
manter a economia aquecida propiciaram
que o nível de consumo não se reduzisse EMPREENDIMENTOS SOCIAIS
drasticamente.
Singer (2009), economista pioneiro das Em busca de conhecer, ainda que su-
teorias de economia solidária no Brasil, perficialmente, os sintomas provocados
esclareceu os objetivos dessas intervenções pela crise econômico-financeira sobre o
do governo: investimento social, procedeu-se ao levanta-
mento de informações e opiniões junto aos
“O consumo discricionário das famílias dirigentes de empresas e de organizações
pode ser estimulado mediante redução da sociedade civil. Sabia-se, de antemão,
temporária de impostos sobre bens duráveis que não se poderia contar com a precisão
e redistribuição da renda aos mais pobres desses dados, principalmente aqueles de
mediante aumento de subsídios como a Bol- natureza quantitativa, porque, sendo um
sa Família, de pensões, do salário mínimo, fenômeno muito recente, a crise ainda não
de vagas gratuitas nas escolas e hospitais fora avaliada pelos gestores nos aspectos
públicos e semelhantes. O investimento que diziam respeito às iniciativas de respon-
privado é estimulado por meio da redução sabilidade corporativa e sustentabilidade
dos juros de longo prazo e dos tributos que organizacional. Nas empresas, voltadas
oneram a venda de máquinas, veículos, para os desafios econômico-financeiros,
computadores e semelhantes”. provavelmente os gestores estiveram mais
focados em evitar a vulnerabilidade do
Aparentemente, os fundamentos ma- negócio do que em questionar os aspectos
croestruturais da economia brasileira referentes às suas políticas e práticas socio-
protegeram-na de impactos mais devas- ambientais. Nos empreendimentos sociais
tadores da crise global e a intervenção do pairava um clima de apreensão, mas que
governo reduziu a possível expansão dos ainda não se materializava em fatos con-
problemas sociais que poderia ser decor- cretos e perdas mensuráveis. Seus gestores
rente da turbulência econômico-financeira. apresentavam uma postura de expectativa
Ainda é cedo para saber se e quanto as quase paralisante, ao invés de comporta-
iniciativas do empreendedorismo social mento proativo na busca de medidas para
e das organizações da sociedade civil proteger as organizações.
foram afetadas pela repentina escassez de Ainda que consideradas essas limita-
recursos. É preciso verificar se a busca da ções, as sondagens foram realizadas porque,
sustentabilidade organizacional, presente no mínimo, poderiam oferecer um cenário
no discurso das empresas nos últimos anos, preliminar de como a turbulência estava
sobreviveu às perspectivas negativas que afetando a gestão em ambos os tipos de
toldaram seus horizontes em 2008 e 2009. organizações. As abordagens empregadas

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procuravam adequar-se à especificidade de municiadas de ferramentas de gestão para
cada uma delas; junto às empresas foram monitorar seu desempenho econômico-
coletadas informações acerca das estratégias financeiro? Tanto nas empresas, cuja
de sustentabilidade adotadas nas esferas administração é mais estruturada, quanto
econômica, ambiental e social, consideradas nos empreendimentos sociais, que, muitas
em três momentos: no período imediatamen- vezes, não contam com sistemas e controles
te anterior à crise, durante a crise (2008-09) gerenciais mais sofisticados, parece existir
e prospectadas para o futuro próximo, ainda uma escassez de dados que clarifiquem
que neste não estivesse superada a escassez metas, resultados e os possíveis impactos
de recursos. Junto aos empreendimentos de que estes poderiam ser objeto.
sociais, as questões focaram-se na captação Apesar dessas restrições empíricas e
de recursos financeiros, visto que a quase metodológicas, os resultados dos levanta-
totalidade dessas organizações depende de mentos sugerem algumas pistas sobre como
doações, financiamentos e transferências as organizações respondentes se situavam
oriundos de fontes privadas e públicas. no interior da crise. É possível identificar
O universo de empresas contatadas foi que, embora empreguem o modelo do tri-
composto por mais de 900 organizações que ple bottom line, as empresas concretizam
fazem parte do banco de dados da publicação com maior assertividade as estratégias
anual Maiores e Melhores da revista Exame que dizem respeito à esfera econômica,
da Editora Abril (36a edição). O universo das enquanto a ambiental e a social são menos
organizações da sociedade civil contatadas resilientes ao impacto da crise. Assim,
foi composto por 400 entidades resultantes os empreendimentos cujos orçamentos
da somatória dos participantes das redes recebiam contribuições significativas de
da Associação Brasileira de Organizações organizações internacionais foram mais
Não Governamentais (Abong) e da Ashoka, rapidamente atingidos pela redução de
associação que identifica e investe em investimentos do que aqueles que captam
empreendedores sociais. Em ambos os em fontes diversas localizadas no próprio
levantamentos o contato foi estabelecido país. Se indícios como esses não oferecem,
por meio eletrônico, com remessa de ques- neste momento, respostas assertivas sobre
tionário autopreenchível, passível de ser como a crise afetou o investimento social,
respondido em 10 a 20 minutos. eles contribuem para se prospectar acerca
Embora não surpreendente, o baixo de como essa temática ocupará o espaço
número de respostas foi forte indicador de dos gestores a partir da crise vivenciada em
que o tema não estava entre as prioridades 2008-09. E isso já é suficiente para justificar
das organizações contatadas. Apenas 81 uma análise mais detalhada dos resultados
empresas e 18 empreendimentos sociais de cada levantamento.
deram retorno à solicitação de pesquisa.
Pode-se elencar uma série de dificuldades
próprias dos aspectos metodológicos desse
tipo de estudo como: falta de confiança Sobre as empresas
em oferecer informações internas, pouca
familiaridade com instrumentos eletrônicos As empresas respondentes vinham
para captação dos dados, hábito de recusar mantendo investimentos crescentes em
a participação em pesquisas. Contudo, além ações de pesquisas e desenvolvimento,
desses motivos corriqueiros para justificar o programas de qualidade e medidas de
baixo retorno, há que se aventar hipóteses incremento da produtividade, os quais se
no âmbito do tema do levantamento. Tais configuram como eixos significativos de
como: estarão as empresas suficientemente asseguramento da obtenção de graus mais
municiadas de dados sobre suas estratégias elevados de competitividade. Em 53% da
de sustentabilidade? Estarão as organiza- amostra, os investimentos em pesquisa e
ções da sociedade civil suficientemente desenvolvimento mantiveram-se estáveis,

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indicando que parcela significativa optou
por reluzi-los seguindo uma tendência já
observada em outras situações de crise,
que é a de postergar essa estratégia de sus-
tentabilidade para o horizonte da bonança
financeira. Já os investimentos em qualidade
de produtos e de processos mantiveram-se
estáveis em 64% das respondentes, configu-
rando uma visão realista de curto e médio
prazo, haja vista que a perda de qualidade
pode redundar em imediata redução do
posicionamento de mercado. No mesmo
sentido, 48% das empresas mantiveram os
investimentos em ações e projetos visando
o aumento da produtividade, manifestando
clara expectativa de que a crise, pelo menos
no âmbito brasileiro, teria uma duração
relativamente pequena e não reduziria de
forma drástica seu mercado. Evidentemente
esses comportamentos podem ter varia-
ções significativas quando em estudos de
abrangência setorial com diferentes recortes
mercadológicos.
Como seria de esperar, 54,5% das res-
pondentes aumentaram os investimentos
aplicados em medidas de redução de custos
e apenas 26% do total manteve esses valores
estáveis em relação ao período anterior à
crise. A redução do contingente de mão-
de-obra empregada direta e indiretamente,
bem como das despesas administrativas e
dos processos de ampliação dos quadros de
recursos humanos, foram alguns indicativos
mais frequentes dessas medidas.
De acordo com os respondentes, os
investimentos na promoção da sustentabi-
lidade econômica das empresas voltarão a
crescer após a superação dessa fase, che-
gando a patamares muitos próximos dos
apresentados no período anterior à crise.
Espera-se que os investimentos em pesquisa
e desenvolvimento voltem a crescer em 70%
das empresas; que os investimentos em
qualidade voltem a crescer em 66% delas;
e que os investimentos em produtividade
voltem a crescer em 80% delas. Já os in-
vestimentos orientados para a redução de
custos serão reforçados em 56% dos casos,
mas serão reduzidos em 14% das empresas
pesquisadas, sinalizando que uma futura
estabilidade pode representar a volta do foco

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das empresas no incremento de atividades Esses resultados sinalizam que os in-
produtivas. vestimentos em gestão ambiental estão se
Na esfera ambiental, tanto os inves- consolidando e que os impactos negativos
timentos orientados para a redução de da crise serão rapidamente revertidos, co-
emissões e/ou tratamento de resíduos locando o vértice do meio ambiente como o
quanto aqueles orientados para o uso ra- que parece ocupar o segundo lugar em um
cional de recursos naturais, preservação ranqueamento das prioridades, em empresas
e/ou regeneração de ecossistemas eram que objetivam desenvolver um modelo de
crescentes, respectivamente, em 43% e sustentabilidade.
47% das empresas pesquisadas, e estáveis Para a maior parte das empresas pesqui-
em 45% delas. sadas, os investimentos em projetos sociais e
Com a crise financeira mundial, apenas em ações voltadas para a comunidade eram
14,5% das empresas pesquisadas conti- crescentes ou estáveis no período anterior à
nuaram a investir crescentemente nessas crise. Projetos socioambientais realizados
áreas de gestão ambiental. Mas a efetiva tinham investimentos crescentes em 42%
redução de investimentos nessa esfera dessas empresas, quando realizados em par-
foi superior em apenas 2% das empresas. ceria com organizações da sociedade civil,
Mantiveram-se estáveis os investimentos na e em 51% quando realizados diretamente
redução de emissões e/ou no tratamento de pela empresa ou pela fundação ou institu-
resíduos em 71% das empresas pesquisa- to a ela ligado. Esses investimentos eram
das, assim como os investimentos em uso estáveis em, respectivamente, 56% e 48%
racional de recursos naturais, preservação das empresas pesquisadas. Os programas
e/ou regeneração de ecossistemas em 78% em prol da qualidade de vida de comuni-
das empresas pesquisadas. Esse quadro de dades do entorno das empresas pesquisadas
maior resiliência dos investimentos na área tinham investimentos crescentes em 48%
ambiental sugere que essa é uma esfera que dos casos e investimentos estáveis em 50%
adquiriu muita importância no contexto dos casos. A criação de oportunidades de
da sustentabilidade empresarial e que sua trabalho para a população de baixa renda
redução traria problemas de reputação e era alvo de investimentos crescentes em
imagem, os quais afetariam as condições 52% das empresas pesquisadas, e tinham
de competitividade. A sustentabilidade am- investimentos estáveis em 44% delas.
biental também pressupõe ações de longo Os projetos sociais ou socioambientais
prazo, emprego de tecnologias inovadoras e realizados diretamente pelas empresas ou
mudanças em processos de trabalho, o que por seus institutos e fundações foram os
significa dizer que, para reduzi-la, podem que menos sofreram impacto da crise eco-
ser necessárias intervenções de alto custo nômica. Apenas 5% das empresas pesqui-
e complexidade, que não compensariam sadas reduziram o aporte desses recursos.
as eventuais economias financeiras. Por Esse investimento se manteve estável em
se tratar também de uma área submetida à 65% dos casos e cresceram em 30% deles.
legislação específica e, em vários setores da Os projetos realizados em parceria com
economia, à fiscalização e controle por ór- organizações da sociedade civil tiveram
gãos do Estado, é provável que se configure seus recursos reduzidos em 8% dos casos,
um espaço no qual o investimento realizado e essa redução foi superior a 21% em
não pode ser facilmente reduzido. apenas 4% deles. Ainda assim, 73% das
Com a superação da crise, os respon- empresas pesquisadas mantiveram estáveis
dentes acreditam que os investimentos os recursos aportados nos projetos sociais
orientados para a gestão ambiental também e socioambientais realizados em parcerias
voltarão aos patamares anteriores, com in- com organizações do terceiro setor.
vestimentos crescentes em 40% a 45,5% dos Programas voltados para a qualidade
casos e manutenção dos investimentos em de vida das comunidades do entorno das
45,5% a 48% das empresas pesquisadas. empresas pesquisadas tiveram seus recur-

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sos mantidos em 71% dos casos e tiveram ambientais e permitiria a manutenção dos
investimento crescente em 23%. Apenas investimentos em projetos sociais e comuni-
5% das empresas pesquisadas reduziram tários, sem afetar o desempenho financeiro
seus investimentos nesses programas. In- do negócio e evitando correr o risco de
vestimentos na criação de oportunidades de perder o capital reputacional adquirido com
trabalho para a população de baixa renda a implementação de investimentos sociais
foram reduzidos em 13% das empresas, mas stricto sensu.
mantiveram-se estáveis em 71,5% e foram Essa explicação é particularmente apli-
aumentados em 23,5% delas. cável no caso das empresas que mantêm
Segundo os respondentes, os inves- programas comunitários, que dependem
timentos das empresas na esfera social de uma forte relação de confiança, e esta
tendem a alcançar patamares superiores demanda persistência na ação, excelente
àqueles que precederam a crise financeira, comunicação e provas expressas de com-
após a sua superação. Os investimentos prometimento (Fischer, 2005). Uma redução
serão direcionados de maneira crescente de investimento nesse tipo de projeto pode
por 48% deles para projetos sociais ou so- provocar um retrocesso no desenvolvimento
cioambientais em parcerias com o terceiro desse relacionamento, dificilmente contor-
setor; por 56%, para projetos realizados nável com medidas ulteriores.
diretamente pelas empresas ou por suas O pouco que a mídia repercutiu sobre
fundações ou institutos; por 57% delas, para o assunto indicava que algumas empresas
programas em prol da qualidade de vida de estavam redefinindo suas prioridades de
comunidades do entorno; e por 60%, para aplicação em projetos sociais, enquanto
oportunidades de trabalho para a população outras reduziam o ritmo dos repasses já
de baixa renda. comprometidos com entidades do terceiro
Esses resultados podem indicar que setor alegando escassez de recursos e a pers-
o papel social das empresas que operam pectiva de redução dos ganhos financeiros
no Brasil tem se consolidado como uma do negócio. Essas ameaças, mesmo quando
dimensão estratégica de atuação, a qual se não se realizaram na prática, provocaram um
caracteriza por certa blindagem frente aos ambiente de apreensão nas organizações da
momentos de crise e pela perspectiva de sociedade civil que já vinham participando
fortalecimento ao longo do tempo. Contudo, de editais e processos seletivos para obter
alguns questionamentos devem ser feitos apoio financeiro aos seus projetos sociais.
a esse quadro aparentemente otimista.
Embora este dado não tenha sido coletado
nesse levantamento, sabe-se que os recur-
sos dotados pelas empresas aos projetos Sobre as organizações da
sociais, seja sob a forma de ações diretas,
parcerias com organizações do terceiro sociedade civil
setor, ou através de fundações e institutos
próprios (Mindlin, 2009), são relativamente O baixo retorno das organizações pes-
modestos, principalmente quando compa- quisadas e os contatos feitos para orientar o
rados aos investimentos feitos nos outros preenchimento dos questionários permitem
dois vértices do modelo de sustentabilidade. afirmar que seus gestores não estavam
Portanto, mantê-los e prospectar sobre a procedendo a um monitoramento dos
possibilidade de seu crescimento pós-crise efeitos da crise mas, preponderantemente,
não representa uma postura propriamente estavam procurando fazer com que seus
audaciosa dos respondentes. empreendimentos sobrevivessem a eles. Os
Há também uma visão no Brasil de que respondentes administravam organizações
a crise seria um fenômeno de curta duração, cujo orçamentos anuais estavam acima de
o que justificaria a permanência de inves- 250 mil reais. A maior parte dos recursos que
timentos de longo prazo em estratégias compõem esses orçamentos (42%) é obtida

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da iniciativa privada, com forte concentra- Se em tempos de tranquilidade econômica
ção dos investimentos sociais de empresas e política essa informalidade propicia uma
que apoiam os projetos diretamente, ou relação flexível, baseada na confiança e
através de fundações ou institutos. Cerca de identidade de valores, em tempos turbu-
34% dos recursos orçamentários são obtidos lentos, sente-se a carência das garantias
com receitas próprias e 24% mediante o es- preestabelecidas.
tabelecimento de convênios e/ou contratos Uma das organizações participantes do
de gestão com órgãos públicos, que implica levantamento, que atuava junto a pequenos
a prestação de serviços sociais. agricultores, com o objetivo de aperfeiçoar a
A heterogeneidade das fontes de cap- produção familiar e estimular o desenvolvi-
tação de recursos financeiros mostrou ser mento local, teve que interromper suas múl-
uma estratégia que, até certo ponto, asse- tiplas ações, que abrangiam o incremento da
gurou alguma proteção do empreendimento geração de renda, absorção de tecnologias
em relação à crise, pois as organizações sustentáveis e o provimento da segurança
dependentes de fontes de mesma origem alimentar. Cancelados os recursos financei-
foram submetidas a uma escassez mais ros provenientes dos investimentos sociais
drástica e repentina do que aquelas que já empresariais, a organização não tinha
tinham construído uma rede de captação como manter a operação dos projetos, sem
diversificada e equilibrada. que houvesse uma perspectiva de quando
Embora isso não pareça tão evidente poderia retomá-los. Não é preciso maior
no levantamento realizado com os gestores profundidade de análise para estimar o
das empresas, o fato é que, logo que foram prejuízo advindo dessa interrupção intem-
atingidas pelas oscilações da crise, elas pestiva: como manter a implementação das
reduziram os investimentos em projetos inovações? Como assegurar a continuidade
sociais, seja através do cancelamento de da renda familiar? Como resgatar a crença
doações e financiamentos, seja postergando das pessoas nos projetos que lhes prome-
repasses. As formas menos impactantes tiam a possibilidade de inclusão social e
foram as adotadas por empresas que man- econômica?
tiveram o compromisso assumido, embora Outro caso que exemplifica a fragi-
reduzindo a frequência dos aportes. Desse lidade dos empreendimentos sociais é o
modo, a organização parceira enfrentou das associações formadas por coletadores
dificuldades de fluxo de caixa, teve que de materiais recicláveis. Não se trata aqui
diminuir despesas, renegociar pagamen- de dependência em relação a doações e
tos e demitir profissionais, mas conseguiu investimentos de empresas, mas de estarem
manter sua atuação. Já impactos mais posicionadas nos elos mais vulneráveis da
desastrosos afetaram empreendimentos cadeia produtiva (Fischer et alii, 2008).
cujos principais investidores eram empresas Compostas geralmente por trabalhadores
que cancelaram completamente sua oferta, sem qualificação profissional oriundos, qua-
suspendendo o apoio financeiro por tempo se sempre, da população de moradores de
indeterminado. rua dos centros urbanos, essas associações
Esse cenário coloca em evidência uma agregam catadores de papéis, plásticos e
das mais frequentes fragilidades das alianças metais que se dedicam ao penoso trabalho
estratégicas intersetoriais (Fischer, 2002). da coleta, mas devem também fazer a
Via de regra elas são constituídas sem que triagem e a comercialização dos materiais.
haja qualquer tipo de contrato ou documento Ameaçados por comerciantes “atraves-
similar que formalize a formação e conte sadores” e pressionados pela indústria
com apoio jurídico-legal. Desse modo, as recicladora, esses trabalhadores não detêm
atribuições e responsabilidades de cada condições para obter os melhores preços.
parceiro não estão explicitadas, assim como As associações geralmente não possuem
não são previstas penalizações advindas do espaço adequado para estocagem, nem
não atendimento do acordo estabelecido. caminhões para transporte, o que as obriga

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a vender rapidamente o material coletado, da população, ressentiram-se de redução
submetendo-se às oscilações de preço im- de cerca de 20% dos recursos necessários
postas pelos demais componentes da cadeia. no período de outubro de 2008 a outubro
Os associados, por sua vez, dependem da de 2009.
receita, que pode ser diária ou semanal, Apesar de ser visível que as organizações
mas que nunca pode estender-se por prazos da sociedade civil no Brasil ainda estão
mais longos, para aguardar a elevação dos muito atreladas e dependentes dos recur-
preços de comercialização, visto que são sos financeiros privados, seja por meio da
pessoas e famílias que vivem em situação compra de seus produtos, seja por meio de
limite de sobrevivência. investimentos, um grupo das respondentes
Os respondentes envolvidos com em- afirmou que não foi possível perceber ne-
preendimentos desse tipo declararam que nhum impacto da crise em suas ações. Esse
os preços praticados na comercialização dos fato pode ser real, mas levanta a hipótese
recicláveis, principalmente o papelão, tive- de que a crise ainda não fora avaliada pelos
ram quedas que chegaram a 75% dos valores seus gestores. A dificuldade de avaliação
anteriores à crise. Isso significa dizer que o e mensuração de resultados é uma com-
empreendimento social, ainda quando gera- plexidade real da gestão das organizações
dor de receita própria, teve sua sobrevivência da sociedade civil, advinda da carência
ameaçada pela crise, não porque a dinâmica de instrumentos gerenciais adequados à
do setor tenha arrefecido, mas porque não sua especificidade e da permanência de
consegue exercer um papel competitivo no padrões culturais que rejeitam os modelos
âmbito da cadeia produtiva. e conceitos de administração cunhados para
Outra organização de terceiro setor par- gestão empresarial.
ticipante do levantamento cujo orçamento
também é predominantemente proveniente
de receita própria foi abalada pela crise.
Trata-se de uma entidade que atende LIÇÕES PARA REFLETIR
pessoas de baixa renda com ações sociais
voltadas para profissionalização, cidadania, Ainda é cedo para elaborar conclusões,
educação e saúde. Para mantê-las produz e mas os levantamentos realizados dão indí-
comercializa brindes vendidos no atacado cios de que a crise global atingiu a dispo-
para empresas e, no varejo, em quiosques nibilidade de investimentos das empresas
de shoppings, lojas e bazares. A principal para as organizações da sociedade civil e
redução de receita ocorreu no cancelamento os projetos socioambientais. Não é possível
de contratos de compras de brindes insti- quantificar esse recuo, mas pode-se consta-
tucionais, corroborando que as empresas tar a apreensão que afetou os gestores dos
realizaram cortes de itens considerados empreendimentos sociais.
supérfluos ou não diretamente ligados ao Há uma relativa contradição entre as
negócio como forma de reduzirem os cus- respostas dos gestores empresariais, que
tos, ainda que fosse de forma preventiva minimizavam a redução dos investimentos
às possíveis perdas advindas da crise que sociais, e as dos gestores do terceiro setor.
se anunciava. É provável que o otimismo empresarial
As organizações que dependiam prepon- seja reflexo da expectativa de recuperação
derantemente das relações com entidades em curto prazo, pois, provavelmente, as
internacionais, seja como recipientes de empresas respondentes estão entre aquelas
doações e apoio financeiro, seja sob a forma cujas estratégias de sustentabilidade foram
de comercialização de produtos e serviços, menos vulneráveis. É importante, contudo,
sofreram maiores dificuldades para captar ressaltar que do trinômio econômico-
recursos. Entidades participantes de redes ambiental-social foi este último o mais
internacionais, principalmente dedicadas à fragilizado enquanto objeto do investimento
assistência social às camadas mais pobres das empresas.

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Essas observações reforçam a reco- análise do contexto externo e a previsão de
mendação para que os gestores dos empre- alternativas de estratégias. Indicam também
endimentos sociais não só diversifiquem que, apesar dos avanços das políticas em-
suas fontes de captação de recursos, como presariais de sustentabilidade, o caminho a
também internalizem práticas de planeja- percorrer para consolidá-las ainda é longo e
mento que ampliem suas possibilidades de sujeito aos percalços de todas as crises.

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