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A Análise do desamparo de uma menina de 5 anos de Dadoorian, Oliveira e

Chan (2010) apresenta a metodologia de trabalho especializado no atendimento


psicanalítico de crianças, em um ambulatório público. Caso Clínico de Caroline, uma
menina de cinco anos, atendida no programa Psicanálise de criança, do Serviço de
Psiquiatria da Infância e da Adolescência (SPIA) do Instituto de Psiquiatria da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), onde ela e os seu pai são
atendidos pelo mesmo psicólogo, em horários diferentes.

De acordo com Vasconcelos, Rebouças e Albuquerque (2017) o atendimento


clínico às crianças implica certas especificidades, assim como a necessidade da
separação entre as demandas dos pais e a da criança, bem como o uso de recursos
que ultrapassam a comunicação verbal, como os jogos e o brincar.

Durante as entrevistas preliminares do programa Psicanálise de Criança,


desenvolvido no trabalho metodológico, nota-se a necessidade de um trabalho
paralelo com o pai de Caroline - Rodrigo, descrito pela psicanalista atuante no caso.

enquanto me fornecia os dados solicitados pela ficha de plantão, ele


também, ao lado dela, distraía-se fazendo um desenho em uma das
folhas brancas que eu oferecera a Caroline. Desenhou uma casa,
como o fazem espontaneamente tantas crianças – e evidenciando
este algo que há de infantil em nós, adultos –, mas uma espécie de
casa voadora, dispersa, sem chão e sem rumo, numa parte restrita do
papel ( DADOORIAN, OLIVEIRA E CHAN, 2010, p.397)

Sobre “algo que há de infantil em nós, adultos” (Dadoorian, Oliveira e Chan,


2010, p.397), os autores Vasconcelos, Rebouças e Albuquerque (2017, p. 52)
apontam que “o infantil diz respeito a constituição do sujeito no inconsciente, feita a
partir das relações simbólicas com as funções materna e paterna”. O infantil é
atemporal e permanece determinando a história de vida dos adultos.

Caroline por sua vez, não desenhou nada mais além de poucos traços não
figurativos. Souza (2011) aponta que o desenho se apresenta ao psicanalista como
uma espécie de linguagem cifrada, a ser decifrada por uma certa postura de
observação. E que as imagens são uma forma de comunicação de afetos, onde o
psicanalista tem, por vezes, a função de “acolher este código de linguagem e
comunicação e tentar encontrar um sentido” (Souza, 2010, p.209)
De acordo com o pai de Caroline, a queixa principal advinha da escola – de
onde estava afastada, caracterizado por seu “mau comportamento”, como por
exemplo, beliscar a professora e não obedecer. Mas que em casa demonstra um
comportamento normal.

ela [Caroline] se mostrou esperta e cooperativa, ajudando-me de bom grado a


guardar os lápis de cor e aproximando-se de mim para examinar meu rosto
de perto e me dar um carinhoso beijo na bochecha, por iniciativa própria.
Surpreendia-me, por um lado, a discrepância entre esta criança tão doce e
aquela criança agressiva e desobediente que o pai descrevia (DADOORIAN,
OLIVEIRA E CHAN, 2010, p.399)

Para Vasconcelos, Rebouças e Albuquerque (2017) as entrevistas


preliminares com a criança e seus pais permitem ao analista não conduzir a análise
em virtude de responder a demanda inicial dos pais – ou escola, deixando assim não
escapar a singularidade da criança, mas se endereçar a esta singularidade,
“apreender a posição subjetiva da criança que chega e endereça-nos uma
interrogação sobre seu sintoma. ” (Vasconcelos, Rebouças e Albuquerque, 2017,
p.50).

“... A rapidez com que se estabeleceu um laço transferencial entre nós: ela
parecia querer seduzir-me, dirigindo-me uma clara demanda de amor (ou de
tratamento) ” (Dadoorian, Oliveira e Chan, 2010, p.399). De acordo com
Vasconcelos, Rebouças e Albuquerque (2017) o que sustenta a análise, seja de
adulto ou infantil, é a transferência. Entendida enquanto uma relação que se
estabelece de forma espontânea e atual entre analisando e analista. Sendo a partir
dessa relação que o analista escuta o inconsciente do analisando. O que o
analisando endereça ao analista é a sua fantasia fundamental, construída a partir da
incógnita lançada pela posição ocupada no desejo dos pais (Chemama e
Vandermersch, 1995 apud Vasconcelos, Rebouças e Albuquerque, 2017, p.55).
Ainda de acordo com Vasconcelos, Rebouças e Albuquerque (2017) é somente
quando o sujeito está sob transferência, é que existe o sinal de entrada em análise,
pois há um desejo de suposto saber na demanda de análise, associado ao sintoma.
Entretanto, o psicanalista precisa distinguir o motivo pelo qual é procurado, uma vez
que a demanda trazida pelos pais é diferente daquela trazida pela criança.

“... entretanto, bastou que eu lhe perguntasse sobre a escola e suas feições
se modificaram instantaneamente. Apagou-se o sorriso, que deu lugar a uma
expressão, a um só tempo, triste e zangada, com a testa franzida e os lábios
cerrados” ” (Dadoorian, Oliveira e Chan, 2010, p.399). Para a psicanálise, a relação
entre o lugar que a criança é colocada por seus pais e o sintoma que ela apresenta
como resposta aos sintomas da família, representa a verdade do desejo parental. O
sintoma da criança é a forma de lidar com o tempo lógico da constituição subjetiva
que ela está atravessando. Ou seja, a criança não responde passivamente aos
modos de investimentos dos outros, é alguém que endereça a si ativamente, os
impasses familiares que lhe antecederam. (VASCONCELOS, REBOUÇAS E
ALBUQUERQUER, 2017, p.56).

passei a atender Caroline semanalmente, e a seu pai – quem costumava


trazê- -la –, em média, quinzenalmente. (DADOORIAN, OLIVEIRA E CHAN,
2010, p.400)

Kernberg et al. (2012) apud Oliveira, Gastaud e Ramires (2018) propõem o


desenvolvimento de uma aliança colaborativa com os pais, sendo uma fonte
importante de informações sobre a vida da criança, onde o terapeuta precisa manter
a neutralidade não se posicionando do lado dos pais contra a criança ou com a
criança contra os pais. Entretanto, de acordo com Dugmore (2009), Kernberg, Ritvo
e Keable (2012), Nevas e Farber (2001), e Sei, Souza e Arruda (2008) apud Oliveira,
Gastaud e Ramires (2018) o terapeuta deve ter o cuidado de não assumir a postura
de terapeuta individual tanto da criança quanto de um dos pais. Oliveira, Gastaud e
Ramires (2018) postulam que a diferente experiência de inclusão dos pais na
psicoterapia de crianças é contraditória ou não conclusiva.

desde o início da análise de Caroline, nossos encontros lhe davam a


oportunidade de repetir para elaborar, na transferência, situações traumáticas
vividas passivamente por ela, diante das quais ela passava a assumir, deste
modo, uma posição ativa. Freud (1920) já havia sinalizado que as crianças,
no brincar, tendem a tecer este movimento, repetitivo, na tentativa de dominar
o que um dia as dominou, no trauma (DADOORIAN, OLIVEIRA E CHAN,
2010, p.400)

Maranhão e Vieira (2017) postulam que o brincar na psicanálise é


considerado uma produção poética, que permite a ordenação do mundo através de
significantes do sujeito e dos outros.

Caroline manifestava sua dificuldade de suportar o término das sessões, sentido por
ela como um abandono de minha parte, invertendo nossas posições: era eu quem
anunciava que o tempo se esgotava; era ela, então, que me expulsava da sala e se
trancava lá dentro; ou escapava para outra sala e não permitia que eu entrasse [...]
quando eu pedia para entrar, ela não permitia. Eu aguardava então, do lado de fora, o
(inevitável) momento em que Caroline saía, para verificar se eu ainda estava à sua
espera. Toda esta atuação era vivida por ela com muita angústia, muito choro, muitos
gritos, apesar de minha fala repetidamente lhe assegurar que eu estaria ali para recebê-
la novamente na semana seguinte, para lhe garantir que esta separação não consistia
num sinônimo de abandono. Houve ocasiões em que ela chegou a me bater, deixando
clara a função defensiva de sua agressividade. (DADOORIAN, OLIVEIRA E CHAN,
2010, p.400-401)
Ainda de acordo com Maranhão e Vieira (2017) o brincar é efeito da
estruturação do aparelho psíquico, que pode revelar os sintomas da criança e suas
formas de sofrimento. E, embora brinquem espontaneamente, sua origem não é
espontânea. Pois o brincar só é possível a partir dos primeiros encontros e
desencontros do sujeito com o Outro no início da sua vida. Vidal (1992) apud
Maranhão e Vieira (2017) assinala que o que interessa ao psicanalista é o manuseio
que a criança faz do seu corpo e dos seus brinquedos durante as encenações
fantasmáticas, de forma que o corpo do analista também entra no circuito pulsional a
partir da vontade da criança. O analista assume a posição de alguém suficiente que
oferece à criança uma trajetória simbólica com a qual lida com sua insuficiência,
abrindo espaço e dando tempo para que as fantasias inconscientes apareçam e a
criança possa trabalhar sua fantasmática na brincadeira.

pentear os cabelos, apontar um lápis, ou mesmo urinar e lavar as mãos, estas são
obviamente atividades que requerem um certo olhar materno sobre a criança. Em
outras palavras, é preciso que uma mãe ofereça a seu filho alguns cuidados básicos,
relativos à higiene, passando pela aparência física, e chegando à educação
propriamente dita. No caso de Caroline, sua mãe demonstrava uma dificuldade
evidente de empreender esta tarefa, o que fazia com que a filha se engajasse numa
verdadeira “busca por uma mãe”, na qual obteve resultados parciais (transferenciais)
em análise. O medo do desamparo e de se desintegrar, expressos por Caroline,
apontavam esta falha da maternagem (DADOORIAN, OLIVEIRA E CHAN, 2010,
p.403)

A perda do objeto é supostamente dolorosa, a angústia ocupa um lugar no


corpo como sendo um meio de reagir a isso. Toda situação desperta aflição,
reproduzindo assim em suas brincadeiras. Perder a mãe [simbolicamente] é uma
das situações mais angustiantes vivenciadas pela criança, tomada como definitiva,
fazendo-se necessárias repetidas experiências consoladoras até que ela [a criança]
aprenda que após o desaparecimento exista um reaparecimento da mãe (FREUD,
1926[1925]/1996a, 1920/2010c apud MARANHÃO e VIEIRA, 2017, p.28-29). A
separação do corpo do outro requer que a criança seja capaz de representar essa
ausência. Desta forma, o brincar surge como um ato, onde a criança utiliza os
recursos psíquicos constituídos anteriormente, a fim de investir em outros objetos
que lhe possam satisfazer.

concluímos, portanto, que, após pouco mais de um ano de atendimento, os sintomas de


desamparo e desestruturação, atuados por Caroline, foram substituídos por outros,
menos radicais e mais indicadores de sua constituição como sujeito, inevitavelmente
dotado de conflitos psíquicos – um dos resultados esperados de uma análise, conforme
Freud(DADOORIAN, OLIVEIRA E CHAN, 2010, p.405)
Desta forma, como apontam Dadoorian, Oliveira e Chan (2010) faz-se
fundamental perceber a complexa rede de relações que transpassam o sintoma,
bem como, oportunizar um espaço para elaboração dos conflitos parentais, possa
liberar a “criança do ônus de dar forma, por via sintomática, às projeções parentais. ”
(DADOORIAN, OLIVEIRA E CHAN, 2010, p.408)

REFERÊNCIAS

DADOORIAN, Diana; OLIVEIRA, Fernanda Hamann de; CHAN, Viviane. Análise do


desamparo de uma menina de cinco anos. Rev. latinoam. psicopatol. fundam.,
São Paulo , v. 13, n. 3, p. 395-411, set. 2010 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-

MARANHÃO, J.H. VIEIRA, C.A.L. Revista de Psicologia. Brincar como linguagem


da criança: Contribuições Contemporâneas. Fortaleza, v.8 n.2, p. 27-33, jul./dez.
2017
47142010000300002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 03 jun. 2020

Oliveira, L. R. F., Gastaud, M. B., Ramires V. R. R. Psicologia: Ciência e Profissão


Jan/Mar. 2018 v. 38 n°1, 36-49. https://doi.org/10.1590/1982-3703000692017
Participação dos Pais na Psicoterapia da Criança: Práticas dos Psicoterapeutas

SOUZA, Audrey Setton Lopes de. O desenho como instrumento diagnóstico:


reflexões a partir da psicanálise. Bol. psicol, São Paulo , v. 61, n. 135, p. 207-215,
jul. 2011 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0006-59432011000200007&lng=pt&nrm=iso>. acessos em
03 jun. 2020

Vasconcelos, L. L., Rebouças, D., & Albuquerque, K. (2017). A função das


entrevistas preliminares na clínica psicanalítica com crianças. Revista InterScientia,
5(1), 47-63. Recuperado de
https://periodicos.unipe.br/index.php/interscientia/article/view/396

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