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Sobre Senhores & Escravos

Partindo da definição da palavra “escravo” do dicionário, temos:


es.cra.vo adj. e s.m. 1. Que ou aquele que está sujeito a um senhor, como propriedade
dele. 2. Que ou aquele que está inteiramente sujeito a outrem, ou a alguma coisa.
Dicionário Aurélio, 4ª Edição, 2003.
Analisando o significado literal da palavra, fica clara a idéia de que a condição
de escravidão pressupõe a existência de um escravizador, uma força que subjugue o
indivíduo a ponto de não lhe restar opção, a não ser, submeter-se à sua vontade.
Sociedades em que a escravidão era a base de sustentação da classe mais
privilegiada são quase regra geral na história da humanidade em todas as épocas e em
todos os continentes, sendo que nas sociedades mais primitivas, os escravos eram em
sua maior parte, prisioneiros de guerra. Foram usados ainda argumentos de diversas
ordens para justificar a escravidão, como origem étnica, diferença cultural, casta, etc.
Na Europa, no início da Idade Média, a economia feudal modificou as relações
entre servos e senhores para um tipo de “escravidão não-declarada”, onde o servo,
apesar de ter certa autonomia, tinha total dependência para com o senhor feudal, a
quem devia a maior parte da sua produção por utilizar-se da terra, tendo para sustento
de sua família uma porcentagem desprezível, o que explica as condições de miséria
extrema dos camponeses medievais (qualquer semelhança com o mundo de hoje não
é mera coincidência).
A escravidão propriamente dita surgiu de novo nos países ditos civilizados com a
expansão européia, no fim do século XV, quando teve início o período das grandes
navegações e descobertas. O Brasil foi último país “civilizado” a abolir a escravidão
oficialmente, o que ocorreu em 1888.
No entanto, a escravidão não foi abolida totalmente. Apenas criou-se uma nova
modalidade de escravidão, com uma face mais humanista e ao mesmo tempo, mais
cruel e tão criminosa quanto a outra, além de mais universal, uma vez que não faz
distinção de raça, cor, etnia, casta ou cultura. Estamos nos referindo à sociedade
capitalista.
À partir da expansão do mercantilismo mundo afora, surgiu a necessidade de
produção em massa dos bens mais procurados e valorizados, principalmente nas
grandes metrópoles. A produção em massa criou a necessidade de mão-de-obra, que,
de preferência, se ocupasse exclusivamente desse trabalho, recebendo em troca um
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pagamento que, teoricamente, fosse garantir a sua sobrevivência, bem como a de sua
família.
Até aí, a decisão de um camponês de abandonar sua terra e se tornar
empregado de um dos grandes latifúndios rurais ou tentar a vida nas cidades, onde
poderia trabalhar no comércio, na prestação de serviços ou na manufatura, cabia
somente a ele próprio. No campo, em sua própria terra, ele tinha a liberdade de decidir
o que plantar e o sistema de trabalho para sua produção, mas tinha também o risco de
eventualmente, produzir aquém do necessário para a subsistência. Nas cidades e nos
latifúndios tinha o conforto de um salário garantido. Fosse uma troca justa, o trabalho
assalariado até seria uma boa saída para quem quisesse fugir dos rigores e incertezas
da vida de camponês. Infelizmente, isso nunca foi verdade. Nas grandes propriedades
rurais ou nas cidades, o ex-camponês tinha que se submeter à vontade das poderosas
elites agrária, mercantil e posteriormente, a dos grandes industriais. Isso representava,
regra geral, uma jornada de trabalho exaustiva, de até dez horas diárias (inclusive para
mulheres e crianças) e uma remuneração muito abaixo do necessário para uma vida
digna. Essa situação foi um pouco amenizada com uma série de conquistas de direitos
trabalhistas ao longo dos séculos XIX e XX. Direitos esses que agora são postos em
cheque pelo sistema de globalização dos mercados mundiais, pois segundo seus
articuladores, a produção moderna, por ser mais ágil, exige uma legislação trabalhista
mais flexível.
O sistema econômico neoliberal, que tem como base a economia de mercado e
a livre inciativa, ou seja, a redução do papel do Estado e da legislação nas questões
econômicas, praticamente dita as regras das relações trabalhistas em nossa
sociedade. Seus especialistas e teóricos justificam dizendo que é “o mercado de
trabalho”, sem explicar que cada tendência desse mercado é matematicamente
planejada pelos magos da economia mundial. Há muito menos fatores naturais nisso
do que se alega.
Analisando as condições atuais de vida da parcela mais carente de nossa
população, que representa 85,45% dos brasileiros (sendo que 27,15% estão entre
aqueles que apresentam “muita dificuldade para chegar ao fim do mês com o
rendimento monetário familiar”, enquanto apenas 14,54% estão entre os que têm
“alguma facilidade”, com 0,72% representando os mais ricos1), notamos que o abismo
social entre as classes é assustador e materializa-se sob a forma dos mais diversos

1 Fonte: IBGE: Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002-2003 - http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/orcfam/default.asp?z=t&o=19&i=P


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problemas enfrentados por nossa sociedade, entre eles, déficit habitacional,


desemprego, mortalidade infantil, altas taxas de violência, populações marginalizadas,
etc.
Quase todos os que justificam esses problemas como sendo culpa das
diferenças sociais nem sabem do que estão falando, mas têm razão. É preciso portanto
compreender os mecanismos sutis utilizados para perpetuar esses contrastes sociais e
fazer com que pareçam fatos “naturais”.
Até que ponto nós, cidadãos brasileiros, somos escravizados?
Voltando à definição de escravo, o dicionário coloca também: “que ou aquele
que está inteiramente sujeito a outrem, ou a alguma coisa.” Podemos dizer, então,
que somos escravos porque estamos todos sujeitos a alguma coisa. Quer queira, quer
não, todos estão de alguma forma sujeitos ao sistema econômico, inconscientemente
obedecendo suas regras.
Quando consumidores, estamos sujeitos à estimulação artificial e psicológica
das necessidades de consumo. Campanhas publicitárias, direcionadas às parcelas
específicas da população, chegam ao limites da coerção. Afinal, a produção em massa
visa o consumo em massa. Quando trabalhadores, estamos sujeitos à flexibilização da
legislação trabalhista, que sempre tem como objetivo a revogação de garantias e
vantagens do trabalhador em benefício dos grandes capitalistas, que aliás, são os
maiores financiadores das campanhas políticas. Ou seja, o cidadão comum é utilizado
como massa de manobra em quase todas as esferas de sua vida social: quando
consome de acordo com os interesses do grande capital; quando elege, influenciado
por campanhas milionárias, políticos que vão na verdade, defender os interesses do
grande capital; e ainda quando busca a sobrevivência através do seu trabalho, já que a
legislação trabalhista, proposta e aprovada por esses mesmos políticos, tem como
base os interesses do grande capital.
Enfim, acaba ficando fácil entender porque o abismo social é interessante para
quem está no topo, pois o que seria dos senhores sem seus escravos?

Undergroundson
Junho de 2007

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