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A MOTIVAÇÃO DAS PALAVRAS

SUA EVOLUÇÃO NA LÍNGUA PORTUGUESA

Regina Maria de Souza (UERJ)

Durante o processo de evolução, as palavras sofrem alterações que muitas vezes


fazem com que seu sentido se distancie daquele que originariamente as gerou.
Essas alterações semânticas podem ser observadas numa perspectiva diacrônica,
pela sucessão de mudanças lingüísticas que se vão atualizando ao longo do tempo.
Fatores socioculturais e até mesmo naturais determinam essas transformações,
cujo agente é o próprio homem enquanto sujeito falante. Algumas dessas palavras
são, pois, consideradas arbitrárias e opacas e não apresentam qualquer relação
entre som e sentido; outras apresentam essa relação, sendo consideradas
motivadas.

Conceitos apresentados por estudiosos da língua como Saussure, Ullman,


Herculano de Carvalho, dentre outros, foram utilizados para este breve estudo, no
qual nos propomos a examinar os aspectos principais das evoluções etimológicas
das palavras, considerando-as a partir de sua motivação fonética (onomatopéias),
morfológica (derivação e composição) e semântica (metáforas e metonímias),
observando sua variação no decurso do tempo e os processos de mudança pelos
quais tiveram de passar até chegarem à sua forma atual.

Para Herculano de Carvalho, é difícil provar que todas as línguas faladas atualmente
no mundo tenham origem única - teoria da monogênese, à qual se opõe a da
poligênese, mas sabemos que, apesar da grande diversidade existente, é possível
agrupá-las em famílias de acordo com semelhanças por elas apresentadas após um
processo de evolução e alteração ocorrido ao longo de milhares de anos. A língua
portuguesa pertence ao grupo das línguas românicas, que estão compreendidas na
grande família indo-européia.

A etimologia, ciência que estuda o sentido originário das palavras e os fatos


históricos e sociais que geraram transformações dentro de uma língua, é de grande
importância para o lingüista. Para o usuário normal, esse tipo de informação,
embora seja sempre instrutivo, pode acarretar certa confusão, caso ele deixe de
reconhecer que o importante no seu discurso é o sentido atual, que numa situação
comum lhe permitirá expressar seu pensamento de modo que seu interlocutor o
entenda. A par disso, para o entendimento de textos de autores antigos, o leitor
poderá consultar dicionários especializados, que apontam as variações semânticas
de palavras usadas com seu sentido etimológico original.

Podemos distinguir duas atitudes diferentes do sujeito falante em relação à língua.


Na primeira, ele utiliza o funcionamento do sistema lingüístico para se comunicar,
dentro das normas que o regulam. Dessa forma é um mero falante, que age sem
perceber a mudança contínua por que passa a linguagem. Na segunda, o agente
assume uma atitude de reflexão sobre a linguagem, sendo sua finalidade conhecer
a própria língua através da observação.

Numa perspectiva sincrônica importa observar a técnica lingüística em si mesma


dentro de uma determinada época, o funcionamento da linguagem em uma
determinada comunidade e dado momento histórico. A principal finalidade da
lingüística sincrônica é a de descrever o sistema lingüístico de um grupo social
definido. Porém, interessa a este nosso estudo a observação e reflexão da língua
dentro de uma perspectiva diacrônica, aquela que considera as mudanças
lingüísticas através dos vários momentos históricos, as alterações a que as técnicas
estão sujeitas de uma época para outra.

Perguntamos, então, de onde vêm as palavras?

As palavras são criadas de forma consciente para dar nome às coisas. Com o
passar do tempo sofrem modificações fonéticas, e seu sentido evolui
espontaneamente. A linguagem verbal é aquela através da qual o homem normal
exprime seus pensamentos e sentimentos numa comunicação interpessoal ou com
grupos, que constrói uma sociedade capaz de desenvolver sua cultura e um saber
que poderão ser transmitidos de geração a geração. Esse acúmulo de conhecimento
se faz principalmente através da língua escrita, que é a forma pela qual tentamos
garantir com que as palavras sejam comunicadas de modo mais duradouro.

Duas posições acerca do significado das palavras são divergentes. Uma considera o
significado intrínseco à palavra e se baseia na existência de uma relação entre som
e sentido, o que caracteriza aquilo que chamamos “signo motivado”. Outra acredita
na arbitrariedade do signo e diz que não existe relação alguma entre o som e o
significado, caracterizando o que chamamos “signo convencional”, criado por uma
espécie de acordo entre os usuários da língua.

Saussure explica que as línguas lexicológicas tendem mais ao convencionalismo do


que as línguas gramaticais, que tendem mais para a transparência. Sua teoria
prova que a proporção de palavras transparentes e opacas pode variar de uma
língua para outra e até de uma época para outra dentro do mesmo idioma.

Outro aspecto na observação dos fenômenos lingüísticos é a questão exposta por


Pierre Guiraud, que menciona dois fatos indiscutíveis. Primeiro, que o uso mais ou
menos consciente das palavras motivadas determina o seu emprego e sua
evolução. Segundo, que toda palavra é originalmente motivada, mas que o uso
convencional tende, com o passar do tempo, a apagar a motivação do signo, o qual
tende a tornar-se arbitrário, ainda que sem excluir a motivação.

Também Ullmann se refere a palavras arbitrárias e opacas, que não têm conexão
entre som e sentido, e a palavras motivadas e transparentes, nas quais se percebe
um certo grau de motivação. Há, segundo ele, três tipos de motivação: fonética
(onomatopéica), morfológica e semântica.

A onomatopéia envolve semelhança intrínseca entre nome e sentido, mas é


interessante notar que não necessariamente existe esta semelhança em todas as
línguas para a mesma palavra. Ullmann estabelece um paralelo em inglês, francês,
espanhol, italiano, romeno, latim, alemão, russo, húngaro e finlandês sobre a
palavra “cuco”, que é em cada uma dessas línguas, respectivamente: cuckoo,
coucou, cuclillo, cuculo, cucu, cuculus, kuckuck, kukushka, kakuk, käki. Diz haver
neste caso uma “afinidade elementar”, uma semelhança na percepção do mesmo
som, mas a isso não se deve dar muita importância, pois a imitação não é completa
e cada língua a convencionou de maneira própria. O mesmo não acontece para a
reprodução do cantar do galo, para o som de um tiro, ou para outros sons. As
onomatopéias são convencionais, mas é condição que exista um ajuste entre o som
e o significado e um contexto favorável à sua expressão. “Qualquer que seja a força
expressiva que exista em estado latente numa palavra, só tomará vida se ajustar
ao efeito geral da elocução.” (Ullmann, 1964, 183)
Cabe ainda considerar o grau de subjetivismo, pois uma palavra só será
onomatopéica se assim for sentida por quem fala, o que dependerá da sensibilidade
de cada um. Por isso, as onomatopéias são amplamente utilizadas como recurso
poético, não apenas pelo fato de reproduzirem sons, mas também para valorizar as
associações latentes entre a forma fônica e o sentido, entre sons, cores e
sentimentos, sendo assim mais produtivas no que diz respeito à reprodução de
sons do que na nomeação nocional.

A estrutura morfológica é outra categoria de motivação das palavras. Os morfemas


que as compõem deixam transparecer o seu significado intrínseco. Derivação e
composição são processos a partir dos quais se podem formar novas palavras, e o
falante, caso conheça o significado dos morfemas que compõem as palavras,
poderá deduzir o significado das mesmas.

Também a motivação semântica é um tipo de expressão figurativa em que se


nomeia um referente a partir de outro já existente, por meio de uma transferência
de sentido. Pode ocorrer pela semelhança de forma, de cor, de função: em “pé-de-
cabra” (uma ferramenta), e “folha” (um pedaço de papel) há motivação metafórica.
Será metonímica quando se fizer a transferência de sentido baseada em alguma
conexão externa, champanhe (para o vinho de champanhe), é uma associação por
contigüidade, pois se toma o todo pela parte, ou o produto pelo produtor.

Segundo Ullmann, algumas palavras podem ser motivadas tanto metonímica


quanto metaforicamente. Ele cita o exemplo em inglês de “blue-bell” (campainha
azul), nome de uma planta que é uma metáfora e ao mesmo tempo um composto
transparente. Mas estes dois tipos de motivação são relativos, pois não podem
explicar os elementos que formam as palavras, apesar de permitirem sua análise.
“Penknife” é transparente, mas “pen” e “knife” são opacas. A partir de determinado
ponto resta apenas a onomatopéia ou o puro convencionalismo.

“No desenvolvimento da língua operam continuamente duas tendências opostas:


muitas palavras perdem sua motivação, enquanto outras, que eram, ou se tinham
tornado opacas, se fazem transparentes no decurso da história.” (Ullmann, 1964,
196)

Em relação à perda da motivação, podemos destacar a perda da motivação


fonética, cujo principal fator é a mudança sonora. Ela pode ocorrer por acidentes
fonéticos como a assimilação (extensão de um fonema a outro contíguo devido à
sua dilatação) e a dissimilação (queda de um fonema por já existir outro
semelhante no vocábulo). Outros fatores também obscurecem os efeitos
onomatopéicos. Em alguns casos os sons são conservados ou modificados para
resguardar valores expressivos. Em outros ocorre uma substituição de sons
enfraquecidos por uma formação mais expressiva. Também pode acontecer
mudança fonética com a alteração sem anulação do efeito onomatopéico. Neste
caso, o significado se altera para se adequar ao novo modelo de som.

A perda da motivação morfológica e semântica está relacionada às mudanças


fonéticas, já que estas podem destruir a motivação originária. A palavra portuguesa
“você” ilustra bem o caso, pois origina-se de “vossa mercê”, um composto
transparente que, pela fusão dos dois elementos, se transformou num composto
indivisível.

Pode também haver um rompimento entre o derivado e a palavra-raiz em


conseqüência da mudança de sons. Ullmann exemplifica com a palavra latina
“directus” que formou no latim vulgar “directiare”, um verbo transparente. Mais
tarde, directus transformou-se em “droit”, reto, direito, em francês, e “directiare”
originou “dresser”, dirigir, treinar, cuja ligação com a forma culta “direct”
modernamente já não existe mais.

Outra referência em relação à perda da motivação ocorre quando um dos


elementos formadores de compostos cai em desuso, ou pelo seu desaparecimento,
ou quando há no significado uma grande distância entre eles e seus componentes.
Os dias da semana em inglês são opacos por terem desaparecido os nomes das
divindades pagãs que os motivaram. Na palavra “considerar”, o princípio “com +
siderar”, será notado apenas pelo etimologista, pois já se tornou completamente
opaca para o falante normal da língua pela distância do significado excessivamente
grande entre os elementos formadores.

Said Ali, em Meios de expressão e alterações semânticas, destaca alguns exemplos


interessantes de evolução semântica.

“Crânio” é hoje o nome dado à caixa óssea que protege o cérebro. Deriva do grego
“kránion” e tem como intermediário “cranium”, no latim medieval. É uma adaptação
do termo francês “crâne” e passou a ser usado depois que se começou a estudar
medicina e anatomia em livros franceses.

“Bugalho”, desconhecido no português atual, era como se designava o globo ocular,


que deixou sua marca na expressão olhos esbugalhados.

“Index”, demonstrador ou mostrador era o que chamamos hoje de dedo indicador.

Dedo “mindinho” como chamamos hoje vulgarmente o dedo mínimo, deriva do


nome que lhe davam de “meiminho” ou “meminho”.

“Caput”, do latim, deu origem a “cabo” e “cabeça”. Em italiano o termo atual para
cabeça é “capo”, alternando com “testa”, nome dado pelos romanos ao pote de
barro. Na França “chief”, “chef” também alternou com “test”, “tête”, fixando-se o
segundo pela semelhança com o pote de barro, duro e oco como a parte suprema
do corpo. Em português e em espanhol, “cabo” passou a designar a parte terminal,
a cauda, enquanto que, para “cabeça”, a palavra latina “capitium”, tomou seu
lugar.

Como vimos, as possibilidades de alterações semânticas por que passam as


palavras ao longo do tempo partem de sua motivação fonética, morfológica e
semântica. A explicação do que vem a ser a etimologia contribui para mostrar que
nos servimos da língua não como um meio, mas como um fim. Estudá-la do ponto
de vista diacrônico é uma forma de observar esses processos de mudança das
palavras até sua forma atual, contribuindo para enfim entendermos melhor como
expressamos verbalmente nossas idéias e construímos uma sociedade cultural e
intelectualmente desenvolvida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALI, Manuel Said. Meios de expressão e alterações semânticas Rio de Janeiro,


Fundação Getúlio Vargas, 1971.

CAMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. Petrópolis, 1986.


CARVALHO, José Heculano de. Teoria da linguagem. Coimbra, Atlântida, Tomo II,
1974.

GUIRAUD, Pierre. A semântica. São Paulo, Difusão européia do livro, 1972.

LAPA, M. Rodrigues. Estilística da língua portuguesa. São Paulo, Martins Fontes,


1991.

NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro,


Livraria Acadêmica, 1995.

ULLMANN, Stephen. Uma introdução à ciência do significado. Lisboa, Fundação


Calouste Gulbenkian, 1964.

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