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11/04/2014 - 05:00

Nós e eles
Por Luiz Costa Lima

Quem somos nós e eles? O intelectual latino-americano. O que já se tenha dito


sobre ele parece pouco. Em vésperas de eleições, o tema seria propício a
alguma piada "desenvolvimentista". Mas, não tendo essa vocação, prefiro
recorrer à frase de Jaguar, que um jornal carioca recolheu entre os ditos da
semana de Carnaval: "O Brasil continua uma merda". E continuava: "Graças a
Deus. Se não, que seria de mim e de meus colegas?"

O complemento adotado pelo humorista era uma capa irônica que encobria a
crua verdade. Se então a chamo de capa, não posso mantê-la. Para substituí-la, encaro a crua verdade por um ângulo
menos risonho. Esse tem um mote: nós e eles mutuamente nos ignoramos. Há as exceções de praxe. Não é aconselhável
ignorar Borges, talvez tampouco Octavio Paz e, desde há pouco tempo, que eles ignorem nosso Machado. Mas, desde que o
"realismo mágico" deixou de ser a bola da vez, que autores latino-americanos continuam a ser expostos? Se trocássemos de
lugar e pensássemos nos balcões das livrarias hispânicas, a ausência brasileira seria ainda mais certa.

Em vez de dar panos às queixas, é preferível aproveitar o espaço e discutir livro de um de nossos vizinhos. Refiro-me a "La
Creación de la Mirada", do mexicano Carlos Oliva (Verdehalago, México, D.F., 2004). Apenas indico seu subtítulo,
"Ensayos Sobre la Literatura"; do contrário, teria de percorrer seu precioso comentário sobre Borges, vindo daí a ensaio
como "Ciudad, Violencia y Ficción". Mas meu propósito é concentrar-me em um só tema: como nos vemos em relação ao
Ocidente? As considerações de vários autores se restringem a duas posições: ou nos vemos ocupando a rabeira do Ocidente
("o ocidente do ocidente") ou, em um relance de otimismo, em vésperas de ultrapassar uma inferioridade acachapante.
(Adaptando o título de Stefan Zweig, teríamos: "América Latina, Continente do Futuro".)

Para não permanecermos nessa dicotomia insossa, destaco uma afirmação tanto mais meritória porque nunca feita sobre o
estatuto da metáfora. Ao contrário do conceito, tanto mais perfeito, quando mais investido de um único sentido, a
metáfora "tem seu principal valor em inserir no rígido campo conceitual o elemento ambíguo e vital do mundo e da
linguagem".

Dito o quê, cabe considerar com Oliva como os pensadores latino-americanos têm refletido sobre ela. Seja um caso
concreto: as várias aproximações feitas entre os personagens de "A Tempestade", de Shakespeare, e o continente.
Conforme autores, mais difundidos ou menos, ora somos identificados com Caliban, o escravo explorado, ora com o
luminoso Ariel. Em ambos os casos, lemos a metáfora shakespeariana de acordo com um cânone, que sempre tem o
Ocidente (concretamente, o chamado Primeiro Mundo) como valor a ser seguido. Isso, continua Oliva, não se dá por acaso:
se o conceito é pleno em si, a metáfora traz "um silêncio no centro de (seu) sentido". Mesmo porque, nos termos de Borges,
ela é "a iminência de uma revelação que não se produz".

Revelação que não se concretiza, esse centro coberto por um vazio faz que seu leitor o relacione com um cânone, isto é, um
padrão. Idealmente, o vazio que traz a metáfora permitiria sua múltipla significação. Concretamente, porém, tal
preenchimento sofre uma pressão coletiva, de que deriva vir a ser lida de acordo com um cânone, imposto a um conjunto
humano espaço-temporalmente agrupado. Então, podemos nos identificar com Ariel ou com Caliban, permanecendo na
órbita do cânone ocidental.
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Seria falso daí deduzir-se que a parte dura da frase de Jaguar perderia seu sentido, e, com ela, a extensão que lhe damos, se
Nóso epropósito
eles fosse denunciar a submissão em que nos mantemos ao cânone privilegiador do Ocidente. Embora Oliva não
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entre por essa vereda, é fácil inferir-se que tal denúncia seria seguida pela proposta de um outro cânone - não é o que
alguns tentam a partir da antropofagia de Oswald de Andrade? Ou seja, a relação proposta entre metáfora e leitura de
acordo com um cânone seria tomada como solução ou para a inferioridade que sente o latino-americano ou para o
otimismo de que seu resgate estaria próximo.

Se eu propusesse esse entendimento, deveria ser considerado um péssimo leitor do ensaísta mexicano. Em lugar da
retórica barata, a vantagem que vejo em acentuar a articulação entre metáfora e cânone é bem outra: de nos dar condições
de verificar que, elegendo os valores do Ocidente como meta a alcançar, nos lamentamos de estar submetidos a ele, ao
mesmo tempo que agimos para aí nos manter. Como isso parece enigmático, procuro explicá-lo.

Conservamo-nos numa posição de inferioridade à medida que constatamos permanecer aquém do que internalizamos
como nosso metro. Como essa dupla operação se cumpre? À medida que privilegiamos certo padrão como base do cânone
grandioso do Ocidente. Que padrão seria esse senão o realce do tecnicizante, o qual na vivência dos que usufruem de tal
cânone suporia que valores de respaldo já teriam sido alcançados.

Chamo valores de respaldo aqueles que, sem se confundirem com o valor supremo, lhe dariam equilíbrio e sustentação.
Tais valores seriam a saúde, a educação, a cultura. Eles formariam um círculo no centro do qual a tecnicização surgiria
como a culminância. Ora, querendo nos aproximar do cânone ocidental, sem o sustento financeiro suficiente e o material
humano adequado, fazemos vista grossa à deficiência dos valores de respaldo e concentramos todo o esforço político e
orçamentário no alcance do valor supremo.

Em suma, embora a análise acima fique aquém das qualidades do livro de Oliva e tenha enveredado por uma explicação
que ele mesmo não contém, parece suficiente para verificarmos tanto o que perdemos ao ignorar o que fazem nossos
vizinhos quanto o que talvez também eles percam ao nos ignorar. Assim, nós e eles continuamos sob o jugo de algo que nos
guia, sem que nem sequer nos interessemos em sabê-lo.

Esteja certo o leitor: o fio dessa meada é longo.

Luiz Costa Lima crítico e teórico da literatura, é professor emérito da PUC (RJ). É autor dos livros "Lira e
Antilira", "Mímesis e Modernidade", "A Ficção e o Poema" e "Frestas. A Teorização em um País
Periférico", entre outros

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