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CÓDIGO DESCONHECIDO E A FRAGMENTAÇÃO COMO ENIGMA
.
Raiane Cláudia Feitosa Ferreira²* (IC), Daniel da Silva Araújo² (IC), Henrique Codato (PO).

1. Universidade de Fortaleza – Programa de Iniciação Científica PROBIC, PIBIC, etc


2. Universidade de Fortaleza – Iniciação Científica Voluntária
3. Universidade de Fortaleza – Professor do Curso de Direito
 
Palavras-chave: Cinema. Fragmentação. Código Desconhecido. Michael Haneke. Imagem.
 
 

Resumo
 
O presente trabalho busca analisar o modo como a fragmentação pode ser percebida a partir do
filme ​Código Desconhecido (​Code Inconnu, ​2000), de Michael Haneke. A partir do conceito de
narrativa fragmentada, presente sobretudo no cinema contemporâneo, investigamos como a ideia
do fragmento manifesta-se e modula o próprio longa-metragem em termos de forma e de sentido.
Isso nos leva à percepção de que os eventos inconclusos abordados pelo filme, sua estrutura
elíptica da obra e sua natureza sugestiva convocam o espectador a participar ativamente da
experiência fílmica, de um modo bastante singular, retirando-o do lugar de conforto que lhe é
habitual.  
​(máximo d 250 palavras)  
 
Introdução
 
Sabemos que é ​a natureza fragmentária do cinema, enquanto um dispositivo, que define a
estrutura física e tecnológica das imagens em movimento (HAYASHI, 2014). Em uma de suas
máximas sobre a sétima arte, Jean-Luc Godard sentencia: “o cinema é a verdade 24 vezes por
segundo”, uma vez que esta é a velocidade de registro da imagem pela câmera e de sua
projeção. Já que a impressão de movimento é constituída pela junção de cada unidade de
fotograma, ou seja, de cada fragmento que perfaz o conjunto fílmico, podemos dizer que a
fragmentação é elementar ao fazer cinematográfico em sua própria estrutura. Do mesmo modo, a
forma narrativa desenvolvida pela linguagem do cinema também possui características
fragmentárias, marcada por elipses, justaposições, cortes, e pelas ações da decupagem e da
montagem, por exemplo. Doug Aitken, (2006), ao refletir sobre a quebra da narrativa e a expansão
da imagem, defende que a fragmentação é uma experiência que faz parte do universo humano, e
que a forma mais natural de retratar a realidade é, justamente, por meio da fragmentação da
imagem.  
Reconhecido por trabalhar, de modo um tanto direto, com questões da natureza humana,
como a indiferença, a irresponsabilidade, a culpa e o desprezo, o cineasta austríaco Michael
Haneke (2001) acredita que um filme deve ser similar à vida real; ou seja, ele deve ser feito de
partes, de versões, de trechos, pois nunca se sabe a total verdade sobre tudo, podendo-se ter
sobre as coisas e sobre o mundo apenas uma percepção, diferente daquilo que propõe, por
exemplo, o cinema de distração, que entrega ao espectador o controle total da narrativa filmada.
Isso dito, a fim de investigarmos como a fragmentação se torna um gesto fundamental na escritura
fílmica de Haneke e como a forma de suas narrativas reflete algo da própria situação vivida pelos
personagens em cena, apresentamos a seguir uma análise de seu filme ​Código ​D​esconhecido
(2000).

 
Metodologia
 
O presente estudo adotou procedimentos metodológicos que incluem pesquisas bibliográficas e
filmográficas a fim de embasar os pontos de discussão por ele tratado. Todo o levantamento
bibliográfico foi realizado por meio de livros, artigos, ensaios e vídeos relacionados ao tema
exposto, seja o próprio filme Código Desconhecido, ou a fortuna crítica que a obra incita. Para
tanto, lançamos mão das ideias do próprio Michael Haneke, em um diálogo com teóricos como
Maria Thereza Azevedo, e Silvia Okumura Hayashi, que desenvolvem uma reflexão sobre a
característica da fragmentação no cinema contemporâneo, o que por sua vez nos ajudou
consideravelmente na construção das linhas mestras de nossa análise fílmica.

Análise e Discussão
 
Código Desconhecido é o sétimo filme de Haneke, produzido no intervalo entre dois ​filmes
de maior repercussão do diretor: ​Violência Gratuita ​(​Funny Games,​ 1997) e ​A Professora de Piano
​ 001). Porém, tanto em sua forma, quanto em sua temática, o filme se assimila muito
(​La pianiste, 2
mais a ​71 fragmentos de uma cronologia do acaso (​71 Fragmente einer Chronologie des Zufalls,
1994), terceiro filme de sua carreira. Os dois filmes são fragmentados em sua estrutura narrativa,
mas, comparado a ​71 fragmentos​, Código Desconhecido é, sem dúvida, mais episódico. ​Enquanto
filme altamente técnico, ​Código Desconhecido ​é formado por um conjunto de sequências mais
longas alocadas a outras de menor duração​. ​Sua estrutura lança mão de uma decupagem fílmica
realizada em tempo real. O corte nas cenas praticamente inexiste. Essa minúcia no trato com a
forma se potencializa pelo agenciamento que o realizador propõe no que diz respeito a sua
temática. Esta investigação temática, por sua vez, encontra-se visivelmente marcada pela
banalidade da violência em uma sociedade caracterizada por uma relação conflituosa como o
estrangeiro; o retrato de uma Europa Moderna que não sabe lidar – ou não quer lidar – com seu
passado colonizador, um sentimento mascarado, no caso da França, pelo lema da liberdade,
igualdade e fraternidade.  
​ á uma estruturação de episódios cotidianos, porém, eles
Em ​Código Desconhecido, h
surgem embaralhados, atravessados uns pelos outros. Um dos principais propósitos do diretor é,
justamente, instigar o espectador à reflexão sobre a violência como algo que não termina com o
filme, mas que, ao contrário, se inicia a partir dele. De acordo com Haneke, (​apud Zielinski, 2014),
seu objetivo "é um objetivo humanístico – estabelecer um diálogo com o espectador e fazê-lo
pensar. Nas artes dramáticas, você não conseguirá nada além disso. E, francamente, eu não sei o
que mais você deveria querer atingir”.  
Código Desconhecido possui em torno de quarenta sequências, a maioria delas sem
cortes. Esta escolha por parte do diretor tem o objetivo de levar a obra para mais perto de um
sentido de realidade. Por mais que as situações estejam separadas em episódios e as
informações não sejam desvendadas em nível narrativo, está bem definido para o espectador que
as situações se passam em um tempo real. Este efeito é bem exemplificado na cena da ​extradição
de Maria. ​Diante de um plano estático e sem cortes, vemos a porta de um avião antes da entrada
de personagens. Em um primeiro momento, alguns passageiros entram no avião carregando
bagagens, porém, ainda não há um entendimento completo da cena, do que irá acontecer, ou sua
importância. É apenas por meio da expressão de inquietude da aeromoça que entendemos que
esta longa espera tem um objetivo. Quando Maria, a imigrante romena, entra no espaço da cena,
escoltada por dois policiais, o espectador compreende, então, que a cena retrata sua deportação.
A sequência se desenvolve quase como um curta-metragem dentro do filme, apresentando um
início e um fim bem pontuados, e, por mais que faltem informações, em nenhum momento a
sequência soa incompleta. Ao longo de todo o seu desenvolvimento há uma micronarrativa em
curso. Ela revela um momento de passagem, de perda e frustração. Maria retornará para seu país
de origem, e com ela, vão-se as esperanças de uma vida que, não seria menos sofrida em
comparação à Romênia, e que, por alguma razão, só parece fazer sentido à própria personagem.  
De acordo com Catherine Wheatley (2009), o tempo da imagem leva ao entendimento da
cena, pois através da duração, o espectador é forçado a assumir uma posição autoconsciente da
imagem e de sua construção, passando assim a dar sentido ao que lhe é dado a ver. A violência
também pode ser traduzida, em termos de experiência estética cinematográfica, na materialidade
da imagem projetada. Haneke utiliza-se de cortes secos ao longo de praticamente todo o filme,
com o objetivo de retirar o espectador da mediação imaginária do cinema, interrompendo sua
fruição e causando certa estranheza. O diretor também alerta para o lado aparente da realidade, e
deixa as cenas em aberto, optando pela ​sugestão como um mecanismo para o exercício de olhar
para além do que é evidente, deixando que o espectador crie o próprio sentido de cada cena,
como já dissemos. O gesto de negar ao espectador a compreensão total do que se passa em
cena pode ser exemplificada pela sequência do bilhete recebido por Anne. Após um corte seco,
seguido por um plano vazio de poucos segundos, em que a tela fica totalmente escura, surge a
imagem da personagem entrando em seu apartamento. Ela nota um papel no chão, o recolhe,
abre e o lê enquanto entra no ambiente. A câmera a acompanha, mas o conteúdo do bilhete não é
revelado ao espectador.  
Haneke é um diretor que gosta que o espectador tenha a consciência de seu papel, para
ser capaz de dar sua contribuição sobre a sua obra. Para Catherine Wheatley (2009), o realizador
usa a narrativa fragmentada em ​Código ​De
​ sconhecido com o objetivo de fazer uma crítica à
combinação cinematográfica formal. Ele ​recria a realidade, abrindo um espaço para a interpelação
fílmica por parte do espectador, podendo este fazer uma análise sensível do que está vendo. ​Tal
reflexão pode ser confirmada em algumas sequências do longa, porém, há uma específica que se
destaca. Na cobertura de um prédio, vemos Anne tomar banho de piscina. Ela parece feliz junto
de um rapaz, personagem que até então não havia aparecido no filme. O momento do casal é
interrompido quando Anne vê seu filho apoiado na l​ateral da cob​ertura do prédio​, tentando
alcançar um balão. Nervosa, a mulher e seu companheiro correm para a​lcançar a criança, que se
encontrava na iminência de cair. Depois de um momento tenso, o menino é finalmente resgatado.
Vemos, então, um ​frame do filme congelado e ouvimos vozes em extracampo. Por meio de uma
transição entre cenas quase imperceptível, entendemos que aquele evento ocorria dentro de um
estúdio, onde Anne e um ator dublavam algumas falas de um filme. A mulher que estava na tela
era, portanto, uma personagem fictícia interpretada por Anne​. O espectador atento percebe logo
que há uma ruptura estilística nesta cena ​que a diferencia das demais. Nela, Haneke usa o
dispositivo do cinema comercial para envolver quem está diante do filme e distanciá-lo de uma
postura crítica. O próprio ​uso do zoom coloca ​o ponto de vista da criança que está caindo​, assim
como a escolha de cortes rápidos de um plano para outro causam tensão, somadas a uma
atuação melodramática em uma descarga catártica que se manifesta “ao contrário”, já que os pais
parecem punir o filho, em vez de acolhê-lo. Em seguida, ele rompe a forma, e revela ao
espectador outro cenário. A cena, assim, é ressignificada, substituindo ​a construção exagerada,
por uma variação tonal cômica​, em uma situação que se inicia com ​os risos da mulher por não
conseguir dizer ao parceiro de dublagem que o ama, como demanda o texto que ambos estão
gravando.

Conclusão
 
O cinema de Michael Haneke inaugura, ao lado da obra de diversos outros autores, uma
espécie de movimento de anatomia e experimentação nas vertentes da narrativa fílmica
contemporânea. Às portas de um novo século, ​Código Desconhecido parece surgir como um
profundo e complexo ensaio, tanto das marcas estilísticas do realizador, quanto dos índices que
moldam a cinematografia do século XXI. Parte dessa caracterização passa pela relação
estabelecida pelo diretor com o espectador do seu filme. Nessa experiência, aquele que se vê
diante da obra é forçado a tomar posição a partir das imagens com que ele interage. Ele é
conduzido a abandonar a noção perceptiva clássica, de um cinema que apresenta cada ação em
uma linha sucessiva e gradual, em função de uma construção narratológica “destroçada”,
fragmentada, inconclusa em forma e sentido. O jogo com aquele que olha para o filme passa a ser
algo na ordem do enigma. Conceitualmente falando, o longa-metragem parte da premissa
fragmentar para expor e refletir sobre problemáticas do mundo contemporâneo. A ideia de
trabalhar temas como a xenofobia, a desigualdade social, e a incomunicabilidade nas relações
cotidianas estão inseridas nessa prerrogativa e, mais que isso, modulam o filme a partir de uma
dinâmica de intenções muito próprias. Operam pelo desejo velado de Haneke em gerar reflexão
por meio da sua arte, em uma intenção de igualmente deslocar esse espectador do seu lugar de
passividade fazendo-o assumir uma posição de engajamento. Isso nos leva em direção ao
componente formal de Código Desconhecido.  
Essa fragmentação na sua forma, sobretudo pela sua estrutura capitular e recortada,
coloca esse mesmo espectador diante de uma posição de vigília, desafiado pela obra que o
encara. Em linhas gerais, esse agenciamento revela sobretudo, um profundo entendimento que
Haneke tem da importância da emancipação do olhar daqueles que, diante do filme, podem
ressignificar aquilo o que veem, questionando a gramática que o cinema impõe em suas mais
diferentes obras, assim como a sua própria percepção da realidade. Por que temos de aceitar os
modelos propostos pelo cinema sem antes repensarmos modelos alternativos de representação?
​ ivide conosco.
Esse é parte do enigma que ​Código Desconhecido d

Referências
 
AZEVEDO, Maria Thereza, ​Uma poética da sugestão no filme Código Desconhecido de
Michael Haneke. ​In: Bernadete Lyra, Wilton Garcia. (Org.). Corpo e Imagem. 1ed.São Paulo: Arte
e Ciência, 2005, v. 348, p. 49-54​. 
CÓDIGO Desconhecido. Direção: Michael Haneke. Produção: ​Arte France Cinéma, Bavaria Film,
Canal+, 2000. 1 filme (118 min.), som., color., 35mm.  
DEPES PORTAS, Danusa. ​Michael Haneke e a récita das sobrevivências. 11/2011 [online]
[acesso 04 Setembro 2018]. Disponível em: ​http://www.mostrahaneke.com/pdf/13depes.pdf 
FARACHE, Ana, ​Estética do fragmento no fotojornalismo contemporâneo: Corpo, morte e
temporalidade nas imagens de Luc Delahaye. ​2007. Programa de Pós-graduação em
Comunicação – PPGCOM Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007. 
HAYASHI, Silvia Okumura, ​A expansão da imagem e a fragmentação da narrativa.
Rebeca-Revista Brasileira de Cinema e Audiovisual, v.3, n 2. 2016 
TRINDADE, Denise; REZENDE, Luiz. ​A violência estética da interrupção em Código
Desconhecido. In CAPISTRANO, Tadeu (Org.). A imagem e o incômodo: o cinema de ​Michael
Haneke. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2011. 239-245 
WHEATLEY, Catherine, ​Michael Haneke's Cinema: The Ethic of the Image. 1.ed.
Southamptom, Berghahn Books, 2009. 216 p. 
nserir as referências bibliográficas segundo a norma da ABNT (ARIAL, 11) – Atenção para não
ultrapassar as margens laterais.  
 
Agradecimentos
 
Gostaríamos de agradecer à Universidade de Fortaleza pela oportunidade de fazermos parte do
Grupo de Pesquisa sobre a Imagem, por meio do qual esse trabalho foi viabilizado, bem como
agradecer especialmente ao professor Henrique Codato, pela disposição e solicitude junto a nós
ao longo do percurso onde essa pesquisa nos levou. Gostaríamos de agradecer também ao apoio
e colaboração dos colegas de estudo e investigações científicas pelas ideias partilhadas ao longo
do processo de feitura do artigo.

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