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SR.

CARVALHO

Quando eu tive o meu melhor amigo


Era tão jovem e ele já homem
Nós tivemos tudo um do outro
Eu o tive
E ele me teve

Entre livros, discos de vinil e aulas de física


De mim ele cuidou e instruiu
A mim ele protegeu, se expos e se entregou
De corpo e alma
Meu cheiro em seu travesseiro
Ele venerava

E de sua janela
Ele podia enxergar
Eu sentada tomando a fresca
A olhar a lua e a janela iluminada
Sabia que de lá, ele também olhava
E em silêncio não confessava
Que por mim suspirava

E aquele quarto trancado


Em meio aos amassos
Sua mãe vigiava
E ás vezes batia
Porque pressentia
Que o amor inocente acontecia

As frescas pela serra


Cujo cheiro da floresta não tem mais o mesmo sabor avo vento
Nem o áudio tape escutado em silêncio
Nem as visões de seres de olhos vermelhos
Surgindo do negrume

Nosso lugar secreto era um lago


Num mundo onde ainda não havia o perigo
Ou o perigo não existia em nós
O desejo contido dele
Que a cautela e o orgulho impediam de confessar
Que era grande o seu amar

E nós nos sentamos sobre o lago


A velha cabana e a lua sorrindo pálida
Como dois monges mudos
A incerteza era maior que o sentimento

Time rodava com o típico som


Mais que perfeito para o momento
Rindo, poemando, amando
E bebendo vinho

O tempo passa tão rápido


Para que eu tivesse a esperteza de perceber
Que, num fim de noite, prestes o sol nascer
Já não era possível mais naquela porta bater
Mesmo assim, joguei pedras na janela
A moça que atendeu
Mostrou-me, sem sequer notar ou saber
Que havia um antes, que chegarão fim
Uma história que passou
Que da noite pro dia acabou

Não haveria mais conversas


Não haveria mais vinhos e portas trancadas
Não haveria mais uma amizade que era amor
A vergonha foi feita para se passar somente uma vez
Era tarde demais
Era hora de dormir

Era tarde demais


Quando ele disse que me amava
Era tarde demais
Quando eu percebi que não sabia que eu o amava

E quando acordei
Depois de muitos anos
Eu percebi que sempre estive sozinha
O amor havia se perdido
Em meio a tantas diferentes experiências
Sem pureza, sem inocência
Então acendi um cigarro
Muleta do vício da solidão
Então eu abracei um outro corpo
Por medo, carência e desespero
Então eu tentei de novo, de novo e de novo

Hoje, após tantos anos


Eu sou tanto além do que eu era
Que os cigarros foram sepultados
As muletas e os vícios desprezados
Os corpos não são mais desejados
Nem o meu, nem o seu
Por prudência, por completude, pela conquista da paz e da serenidade

Mas eu ainda continuo tentando o novo, de novo e de novo.


Até o fim, pela vida e pelo viver
Pelo futuro, este desconhecido.

Simoni
Santos, 24 de abril de 2017

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