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Rio Grande
2018
AYANA CELINA GONZATTI
Rio Grande
2018
AYANA CELINA GONZATTI
BANCA EXAMINADORA
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Gostaria de agradecer à minha mãe, pelo apoio constante e incansável e por não me
permitir desistir. Agradeço a ela também por me ensinar o quão importante é a fé, mesmo que
eu não direcione esta fé para onde ela gostaria. Agradeço-a por me ensinar a não baixar a cabeça
para as dificuldades e sempre enxergar um outro jeito quando tudo parece perdido.
Agradeço aos meus avós, pela dedicação, pelo amor incondicional e por me ensinar que
um pouco de tempo dedicado a algo que você ama vale mais do que qualquer coisa no mundo.
Agradeço a eles também pela costura e pela apreciação de uma boa história.
Ao meu irmão, sou grata por ele ver em mim muito mais do que eu acredito que um dia
poderei ser e por ser a primeira martelada que começou a ruir o muro que eu havia construído
em torno de meus sentimentos.
Aos meus professores, obrigada pelo conhecimento, pelas trocas, pelas discussões e pela
parceria e, principalmente, obrigada pela ótima influência e direcionamento à sua profissão.
E por último, obrigada a pessoa que saiu recentemente de minha vida. Sem isso eu não
teria tido forças para concluir este trabalho e não teria, em primeiro lugar, me inquietado com as
questões relacionadas à subjetividade.
Não é tudo autobiográfico?
Nós vemos o mundo através de nossa pequena fechadura, certo?
This research has the purpose to relate the representation of self, the red and the memories
to the production of subjectivities of the individuals for a poetical construction in visual arts. To do
this, it uses Joel Candau's (2018) texts that link memory to self-awareness, the theory of effects
from Baruch Espinosa (2014) to talk about the influence of an artwork in the viewer and
consequently of the viewer in the artwork, and other theorics who discuss the subjectivity and its
constitution as Michel Foucault (2016). In addition, it seeks to highlight, through reports of
experiences in the classroom, the importance of developing content related to the subjective
development of individuals.
INTRODUÇÃO 9
1. PONTO DE PARTIDA 13
2.1. O trabalho 28
3. MEMOIR 46
3.1. O estágio 52
CONSIDERAÇÕES FINAIS 58
BIBLIOGRAFIA 61
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INTRODUÇÃO
Este texto é o resultado da pesquisa, que apresento para o processo de formação em Artes
Visuais – Licenciatura, como pré-requisito para a conclusão do curso na Universidade Federal
do Rio Grande – FURG.
Escrevo esta pesquisa pois descubro e redescubro a mim mesma todos os dias. Demorei
20 anos para despertar uma parte emocional e afetiva que antes eu acreditava não possuir, e,
ao lidar com as decorrências desse despertar, me descobri muito ligada a memórias de lugares,
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pessoas e acontecimentos, de uma maneira que nunca fizera antes. Compartilharei neste texto
um pouco desta descoberta afetiva e espero que ela desperte algo novo em cada leitor.
O texto é escrito em primeira pessoa já que o trabalho envolve o sujeito (eu) e me coloco
em posse da fala. O principal motivo para escolher uma abordagem em forma de escrita de si é
porque acredito que as experiências pessoais são de grande importância na arte e, por conta da
subjetividade envolvida elas apresentam maior sinceridade e impacto no trabalho, tornando-o
mais potente. Como dito pela artista norte-americana Nan Goldin (1986), “Eu acredito que uma
pessoa deva criar sobre aquilo que conhece e falar sobre a sua própria tribo… Você só pode
falar com verdadeiro entendimento e empatia sobre a sua experiência” (GOLDIN, 1986, n.p.). E
esse entendimento e empatia se refletem no resultado, tornando mais fácil a aproximação do
trabalho de arte com o receptor/espectador/observador.
O terceiro e último capítulo mostra-se como uma mescla entre diário de memórias, relatório
de experiências em sala de aula e costura, como um nó dos temas da pesquisa. Após a
realização do estágio supervisionado em espaço formal de educação, foram analisadas as
experiências vividas com o intuito de identificar a importância da elaboração de atividades que
provoquem o autoconhecimento e a compreensão dos conceitos de identidade, subjetividades e
memória, além da auto-representação como componentes fomentadores do desenvolvimento
dos indivíduos, contemplando assim a habilitação em licenciatura que corresponde ao curso que
estou concluindo.
1. PONTO DE PARTIDA
Figura 1. Ayana Celina Gonzatti, Memórias Coletadas, 2018. Fonte: arquivo pessoal.
Por uma questão de ordem, apresento o começo de meus questionamentos sobre quem
sou ou, pelo menos, o primeiro de que me lembro. Na Figura 2, que se localiza abaixo, há a
representação de um retrato feminino sem identidade específica, com cabelos pretos ondulados,
pele clara e laços, lábios e um pedaço de roupa vermelhos.
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Figura 2. Elisa Franken Gonzatti, Retrato de uma menina, sd. Fonte: arquivo pessoal.
Junto da pintura, no canto superior esquerdo do tecido, está escrito com caneta
esferográfica roxa o nome “Ayana” em caligrafia infantil (Figura 3). Não tenho recordações da
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minha idade no momento em que escrevi meu nome ali, mas creio que fosse muito jovem, por
volta dos cinco anos.
Figura 3. Elisa Franken Gonzatti, Retrato de uma menina, sd. Fonte: arquivo pessoal.
A pintura está fixada no lado de dentro de uma das portas de um armário de madeira antigo,
localizado na despensa-lavanderia na casa dos meus pais. Ela estava neste mesmo lugar
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quando escrevi meu nome, embora na época fosse outra casa e outra despensa-lavanderia, era
o mesmo armário. Em minha memória, esta foi a primeira vez que olhei para uma imagem e me
projetei nela, esta imagem sendo algo que não foi feito por mim, nem para mim, nem de mim, e
muito menos tinha a intenção de remeter a mim em momento algum. A pintura representa a
imagem de uma menina sem identidade, feita em tinta sobre tecido por minha mãe, Elisa, em
alguma aula da disciplina de “Iniciação Para o Trabalho” quando ela cursava, segundo ela
recorda, a sexta série do ensino fundamental, hoje em dia o equivalente ao sétimo ano.
Relato a história desse pequeno retrato para ilustrar o que pode ter sido o começo de meus
questionamentos, que são os geradores desta pesquisa e, portanto, o início desta possível
infinita jornada em busca do eu. Além de mostrar que, por mais que minhas inquietações tenham
surgido a partir de uma preocupação juvenil com minha imagem e da relação desta com minha
personalidade, elas não se encerram nela.
Quero deixar claro que falo aqui de representação de si e não de autorretrato, embora o
início das minhas produções poéticas relacionadas a esse tema tenham partido de uma produção
de autorretratos ou a projeção da minha pessoa nos retratos de outras, não é nesse conceito
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que embaso minha escrita e nem é ele que rege minha atual produção, como mostrado
brevemente na Figura 1.
Helena Gomes dos Reis Pessoa (2006), em sua dissertação de mestrado, se refere ao
autorretrato como sendo “um retrato feito por um indivíduo de si próprio” e que “no autorretrato,
faço do meu corpo um corpo objeto. (...) dessa forma, posso afirmar que sou um sujeito real que
se constrói como objeto ideal, pleno em sua autoconsciência, num movimento de pôr-se a si
mesmo” (PESSOA, 2006, p. 04). Quando me auto represento em meu trabalho, não há uma
imagem minha, não há ali meu corpo ou qualquer vestígio meu se não a produção e a seleção
dos arquivos coletados. Por isso não poderia dizer que produzo autorretratos e sim
representações de si, já que este segundo conceito abarca não só o eu objeto, mas toda a
composição do eu indivíduo, o que inclui as experiências, as memórias, as emoções e os afetos.
O filósofo Michel Foucault, em seus estudos sobre o sujeito, diz que estudar a subjetivação
consiste em:
estudar a constituição do sujeito como objeto para si mesmo: a formação de
procedimentos pelos quais o sujeito é induzido a observar-se a si mesmo, analisar-se,
decifrar-se, reconhecer-se como um domínio de saber possível. Trata-se, em suma, da
história da “subjetividade”, se entendermos essa palavra como o modo no qual o sujeito
faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade no qual está em relação consigo
mesmo. (FOUCAULT apud. LARROSA, 1994, P.55)
Meu trabalho não tem relação com minha imagem exterior, mas com minhas dúvidas e
questionamentos sobre um eu indefinido, um eu que é atravessado por imagens de memórias,
algumas vezes sem cunho fatual ─ não que a ausência de fatos tenha alguma relevância quando
se trata da pungência com a qual estas memórias aparecem. Proponho em meu trabalho a
representação das minhas reminiscências, pois não me interessa o ato de ser vista como sou
em carne e hábitos. Eu convido as pessoas a entrarem em minha maneira de enxergar as coisas,
em meus pensamentos, memórias e inquietações, convido-as a lembrar comigo.
lugar, uma imagem, uma história que alguém lhe contou, todas fazem parte da memória e todas
podem ser significantes na formação do sujeito. As memórias podem inclusive mentir, ou sugerir
coisas que nunca aconteceram de verdade, ou serem influenciadas pelo modo como o indivíduo
que as vivencia interpreta os eventos. Assim define o filósofo Walter Benjamim, afirmando que
“um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o
acontecimento rememorado é sem limites, pois é apenas uma chave para o que veio antes e
depois” (BENJAMIN, 2012, p.38).
capacidades conceituais e cognitivas.” (CANDAU, 2018, p. 59) e que um sujeito que não se
lembra, não é, pois produz apenas pensamentos sem duração, já que não sofre as influências
das vivências, do conhecimento obtido, não reconhece sua gênese e, portanto, não têm
consciência e conhecimento de si.
Sendo o sujeito uma construção e a subjetividade um caminho a ser percorrido. Quem sou?
O que quero? O que sinto? O que me move? Esse caminho e a possível inexistência de uma
chegada são a força motriz deste texto.
O fato de a subjetividade referir-se àquilo que é único e singular do sujeito não significa
que sua gênese esteja no interior do indivíduo. A gênese dessa parcialidade está
justamente nas relações sociais do indivíduo, quando ele se apropria (ou subjetiva) de tais
relações de forma única. Ou seja, o desenvolvimento da subjetividade ocorre pelo
intercâmbio contínuo entre o interno e o externo. (SILVA, 2009, p.172)
Quando crio em meu trabalho um ambiente banhado pela luz vermelha, com textos,
costura, rabiscos e desenhos; quando crio uma narrativa através de memórias coletadas e
convido o espectador a entrar; quando exponho minha inquietação e exteriorizo minha
subjetividade, procuro uma interação do dentro com o fora, do meu vermelho com os outros
vermelhos, do eu com o outro e do outro com ele mesmo. Procuro assim estabelecer uma relação
de afetos.
No primeiro postulado do terceiro livro da Ética (2014), Espinosa afirma que afetos são
“modos que aumentam ou diminuem” a potência de um corpo, quer dizer, afetos são as
próprias modificações da substância, e o corpo humano é capaz de experimentar um
grande número de modificações e “reter [...] as impressões ou vestígios dos objetos e,
consequentemente, as mesmas imagens das coisas”. (2014, p. 198). Ou seja, sempre que
um corpo é implicado em outro (afetado), o primeiro deixa no segundo vestígios, sejam
eles extensivos – mudanças na matéria – sejam mentais, segundo seu atributo. (CONTER;
TELLES; SILVA, 2017, p.38)
Assim como acredito que sem memórias não posso ser, sei que as pessoas e as relações
estabelecidas entre eu e elas são de grande importância na criação destas memórias e, assim,
também de grande importância em minha constituição. Mas essas relações de afeto não se
referem só a indivíduos, a relação do corpo-objeto e do corpo-lugar também tem importância na
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Como a subjetividade pode se desenvolver com base nas experiências vividas pelos
indivíduos, busco produzir uma instalação na qual haja uma interação, seja de pensamentos, de
vivências, de memórias ou de experiências. Para que as mesmas marcas que as memórias
deixaram em meu subjetivo, que o vermelho cutuca e que a transparência revela e ao mesmo
tempo mascara, possam ser repassadas e, talvez, causar no outro o mesmo desconforto com
seu eu que causa em mim. Ou que seja um conjunto de objetos no espaço banhados pela cor e
luz, em interação com o vazio.
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Este capítulo versa sobre a cor vermelha. O vermelho do laço no desenho de minha mãe,
o vermelho que usei no cabelo, no batom, na unha, o vermelho da janela que inunda o meu
trabalho quando atravessado pela luz, o vermelho das hemácias que são bombeadas e que dão
cor a toda a carne, vísceras e ao coração. O vermelho da lava cuja beleza é destrutiva, da terra
da minha cidade natal e do pigmento extraído da árvore pela qual o povo originário do meu país
morreu. O vermelho que se sente, que se cheira, que escorre, que tempera. O vermelho que
aparece inconscientemente, que é simbólico, que é metafórico, que é forte, que punge, que
incomoda e que acolhe.
Assim como o que fui e o que não tenho certeza de ser atualmente, este capítulo poderá
apresentar uma estrutura de construção textual não linear. Ele é, portanto, um experimento,
assim como a construção do meu indivíduo.
Há algo sobre a minha memória, nesse caso a capacidade de lembrar, que eu nunca
consegui compreender: sempre tive dificuldades com nomes. Chamo as pessoas por 20 nomes
diferentes até acertar ou simplesmente não consigo lembrar o original de jeito algum. Todos eles
são iguais, sejam de autores, conhecidos, músicos, cineastas ou lugares. Porém, sempre tive
uma memória visual incrível e nunca esqueço um rosto. Por ter essa memória imagética,
concentrada no que vejo e olho, o desenho é uma ferramenta tanto artística quanto prática em
minha vida. Desenho mapas para explicar localização às pessoas, desenho ideias, desenho o
que imagino, mas não consigo colocar em palavras. Todas as vezes que me mudei, levei caixas
e mais caixas de papéis: anotações, rabiscos, textos impressos, pensamentos mortos. Esse
sempre foi meu suporte de produção, o papel e coisas para marca-lo. Além de minhas mãos, é
claro. Com o tempo foram aparecendo palavras, fui usando suportes maiores, papéis maiores,
até que saí do papel para o plástico transparente e do plástico transparente para o vidro e a
parede.
E assim eu pensei que havia surgido o vermelho: em uma memória. Porém, como o primeiro
parágrafo deste capítulo ilustra, o vermelho esteve sempre presente, mas eu só o vi realmente e
quis significar minha poética com a presença dele depois de lembrar de meu avô me mostrando
as estrelas (aprofundarei esta memória no terceiro capítulo). Sentar com ele quando criança no
silêncio da noite me marcou tão fortemente que a única memória que poderia se equiparar em
igual força foi a de um dos piores momentos que já vivenciei, ironicamente um momento de
inconsciência e de falta de memória.
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2.1. O trabalho
A produção poética que alimentou esta pesquisa, cujas imagens mostrei brevemente no
primeiro capítulo, foi a instalação denominada “Memórias coletadas”. Esta instalação foi
realizada na exposição Mixórdia4 em agosto de 2018 e consistiu na coleta de textos, imagens e
trechos de livros com os quais tive algum tipo de identificação, fossem eles relacionados a
momentos que vivi ou a pensamentos que me inquietam. Estes textos e imagens foram copiados
e duplicados e aplicados de maneira organizada sobre uma parede branca utilizando a técnica
do lambe-lambe5. Essa parede se localiza num corredor do prédio no qual a parede opositora é
constituída majoritariamente por janelas de vidro, as quais foram pintadas com verniz vitral de
cor vermelho-sangue. Por sobre esses textos e imagens colados na parede, realizei
interferências com pincéis atômicos, marcadores, nanquim, linha vermelha e agulha, bem como
papel celofane vermelho, destaquei frases dos textos ou as suprimi com o uso de marcadores
permanentes, interliguei as dobras do papel com a costura e escrevi frases à mão.
4 Exposição realizada no Prédio de Artes da Universidade Federal do Rio Grande na qual os formandos dos cursos
de Artes Visuais expuseram seus processos de pesquisa poética referentes ao Trabalho de Conclusão de Curso.
5 Técnica de panfletagem apropriada pela arte urbana que consiste em aplicar uma camada de cola em uma
superfície, esticar o papel sobre essa cola e aplicar uma nova camada de cola sobre o papel com a ajuda de um
pincel ou rolo.
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pertence e não há representações que possam ser facilmente ligadas a qualquer acontecimento
vivido por mim. A intenção é que minhas experiências influenciem na criação de maneira direta,
porém invisível, apresentando-se apenas como influências e não como objeto de trabalho.
natural, que vem do ambiente exterior e, ao entrar em contato com o vidro colorido, se espalha
pelo corredor tomando para si o tom de vermelho-sangue (nome da cor).
Quanto mais luz, mais vermelho. Conforme a direção da luz, diferente é a projeção da cor.
Assim, embora o trabalho seja fixo, ele é também mutável.
Figura 5. Ayana Celina Gonzatti, Memórias Coletadas, 2018. Fonte: arquivo pessoal.
Celofane, nanquim, papel, cópias em preto e branco de livros e imagens, linha de costura,
fita de cetim, marcador permanente, caneta, grampos de metal, cola e água. Textos colhidos em
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livros que me inspiram, que me inquietam e com os quais me identifico de alguma forma.
Memórias coletadas e de certa forma inventadas pela criação de uma narrativa única influenciada
pela disposição que foram coladas na parede e pela aglomeração de elementos que,
aparentemente, não possuem relação, mas que, nessa instalação, se transformam em uma
pequena história, como uma confissão, um diário de memórias. Uma amostra de minha
subjetividade.
O preto e branco dos textos e imagens, cores neutras, contrastam-se entre si e com o
vermelho que os banha. Por fim se misturam um ao outro frente ao olhar incomodado pelo
excesso de luz. O vermelho não proporciona facilidade para quem tenta ler sob ele. O
desconforto ao olhar é latente no espaço.
A janela não tem pintura uniforme, tem textura, escorre, borra, rasga. Mas projeta uma luz
uniforme. Sai do bruto para o suave. O vermelho turvo, borrado e machucado, cria espectros se
olhado de dentro para fora, revela ilusões e distorções do real, trazendo para dentro um fulgor
em luz e transformando o fora em etéreo. É como colocar um filtro sobre o agora. Uma pintura
de um jardim vermelho.
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Figura 6. Ayana Celina Gonzatti, Memórias Coletadas, 2018. Fonte: arquivo pessoal.
A edição é manual, a colagem é manual, a pintura, a costura, os rabiscos, tudo isso coloca
a pessoa no trabalho, tanto a pessoa que produziu, pois ela aparece ali através de seu fazer,
quanto o espectador, por meio da aproximação com esse fazer rústico que lembra o conforto de
casa. Minha intenção é mostrar a mão que fez, mostrar a imperfeição humana, a graça do acaso,
da decisão impulsiva, do defeito da carne, dos limites das capacidades do corpo que não é
máquina. O trabalho é analógico, é gente, é cru, grosseiro, xinga e cospe, mas ao mesmo tempo
se escancara, mostra a alma e chama pra entrar na confusão. Cutuca, coça, questiona e mexe.
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O texto é de fonte 12, o espectador tem que se aproximar pra ler. O acúmulo deste talvez
o torne insignificante pela quantidade de outras informações ao redor, mas esse “disfarce” da
escrita entre o múltiplo é o que a torna tão interessante.
Os destaques feitos em caneta e pincel atômico chamam o olhar para trechos específicos
dos textos, rasurados ou sublinhados, circulados e marcados. Uma seleção particular, supressão
escolhida, coisas que selecionei para que chamassem mais atenção que outras, mas não
necessariamente estas são de maior importância que o restante do conjunto.
pessoas que fazem, que constroem, que consertam, cujas maiores ferramentas são as mãos,
por isso não poderia desenvolver Memórias Coletadas de maneira diferente. Já que busco a
construção de subjetividades e relações de afeto, não poderia deixar de rememorar essa
influência manual durante o processo de criação. Tocar, sentir as texturas, rabiscar e espalhar a
tinta e a cola acabaram por ser momentos de conexão com o passado, com a memória, com as
pessoas e comigo.
Em Memoir, a segunda instalação que realizei no mesmo espaço, esta montada após a
entrega oficial desta pesquisa, me dediquei à montagem por 5 dias consecutivos, do início da
manhã ao fim da tarde, indo até o início da noite em 3 dos 5 dias. Ela levou mais tempo para ser
desenvolvida e montada do que Memórias Coletadas, em decorrência de eu ter mais a mostrar
e mais a dizer. Ou simplesmente pelo fato de eu me sentir mais a vontade e mais segura para
“falar” coisas que antes eu escondia.
É muito difícil registrar fotograficamente a instalação por completo no espaço onde ela se
encontra. O corredor não é muito largo e a parede oposta às janelas é espaçosa. E desta vez,
ela foi completamente preenchida, tornando ainda mais difícil um registro não fragmentado.
Assim, as imagens que mostrarei, ou são parciais, ou não apresentam fidelidade espacial. A
Figura 7, por exemplo, é a junção de duas fotografias e foi capturada através da janela aberta,
interrompendo desta maneira a totalidade da luz vermelha que preenchia o ambiente e
manchando-o com faixas de luz branca.
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Figura 7. Ayana Celina Gonzatti, Memoir, 2018. Fonte: Ana Claudia Lisboa (2018).
Há mais camadas em Memoir, mais texturas, mais diversidade de materiais, mais preto,
mais escrita manual, mais expressividade e maior acúmulo. A parede parece estar “vazando”.
Dela escorrem um emaranhado de linhas vermelhas, tinta preta, cola, plástico e palavras. Nela
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eu transbordo e mostro um pouco mais desse eu que tento desvendar, porém ainda utilizando
os mesmos textos e imagens impressos que utilizei em Memórias Coletadas.
Usei também a moldura de um espelho que quebrei, o plástico que deu início a minha
produção com luz e transparência, a tela de plástico pintada de vermelho que instigou o uso do
vermelho em meu trabalho, cortada do bastidor que a emoldurava e o próprio bastidor em si,
pintado e transformado em “janela”.
Figura 8. Ayana Celina Gonzatti, Memoir, 2018. Fonte: Ana Claudia Lisboa (2018).
Me preocupei mais com os detalhes nesta segunda instalação. Também dei mais atenção
ao caminho de produções percorrido até ela e busquei trazer elementos que fizessem parte
efetivamente deste caminho ou que o representassem de alguma forma. Assim como as
memórias são acontecimentos e registros de acontecimentos que nos compõem e formam assim
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uma trama de vestígios, tramei os elementos e objetos que fizeram parte de toda o processo de
produção que levou à Memoir.
Há, como comentado anteriormente, mais camadas, o que permitiu que eu “escondesse”
alguns elementos e informações, como também ressignificasse outros. A Figura 9 apresenta
exemplos dessas camadas.
Figura 9. Ayana Celina Gonzatti, Memoir, 2018. Fonte: Ana Claudia Lisboa (2018).
6
Instalação do artista brasileiro Cildo Meireles, concebida em 1967 e montada em diferentes versões desde 1984.
Atualmente encontra-se em uma versão permanente no museu do Inhotim – MG.
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No livro de suspense policial Meu nome é Vermelho, de Orham Pamuk, está presente em
um dos capítulos ─ que inclusive leva o mesmo nome do livro ─ o depoimento da cor vermelha
sobre o crime de assassinato investigado no qual ela é uma das suspeitas. A própria cor fala
sobre si:
Que prazer tenho ao pegar uma superfície oferecida ao meu ardente triunfo: eu a encho,
expando-me nela; os corações se embalam, o desejo aumenta, os olhos se arregalam e
todos os olhares brilham! (...) Podem me ver em toda parte, creiam: a vida começa e se
acaba sempre comigo. (PAMUK, 2004, p.247)
Assim saliento o domínio do vermelho quando colocado em uma superfície, seja ela qual
for. Independente do conceito ou significado atribuído ao trabalho, ao usar a cor vermelha, deve-
se ter consciência de que ela em si já traz seus significados e sozinha carrega sentidos.
Arthur Danto (2009, p. 10) pensou em uma exposição na qual haviam apenas obras
vermelhas, com títulos diferentes, modos de fazer diferentes e autores diferentes, porém de
aparência muito similar. Ele as colocou num mesmo ambiente, uma ao lado da outra. Embora
todas fossem de certa forma entediantes ao olhar pela repetição e acúmulo, cada uma falava de
um vermelho diferente, pois remetia a uma situação de vermelho única, fosse ela a morte, o
sangue, a paixão, a túnica de um rei em movimento ou o transporte de toneladas de pimenta.
Após ser questionado sobre o porquê de considerar cada um daqueles objetos uma obra
de arte, quando eram aparentemente todos iguais, ele propôs, após refletir sobre, uma definição:
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algo é uma obra da arte se incorpora sentido. Ou seja, embora aparentassem ser apenas várias
telas e objetos pintados de vermelho, cada um possuía uma narrativa particular, várias
representações de vários vermelhos específicos, além de modos de fazer diferentes.
O vermelho, então, possui potência estética como cor em si, mas a partir do momento que
essa potência da cor é ligada a algum conceito ou a um dos elementos que o vermelho colore
na história e no mundo, ou até a técnica através da qual ele foi aplicado à superfície onde se
encontra, surge toda uma nova gama de significação a ser explorada.
A saber, alguns dos elementos que o vermelho pode representar ou através dos quais pode
se apresentar:
embelezo os tapetes indianos, a ornamentação das paredes, as túnicas das moças que
se debruçam em suas sacadas sobre o espetáculo da rua, a crista dos galos bravios, as
romãs e as frutas de países fabulosos, a boca de Satanás, os finos galões em torno das
miniaturas, os motivos entrelaçados dos panos bordados das tendas, o emaranhado de
flores minúsculas, apenas visíveis, em que o iluminador se deleitou, os olhos de cereja
confeitada dos passarinhos de açúcar; e as perneiras dos pastores, as auroras narradas
nas lendas, os ferimentos e os milhares, as dezenas de milhares de corpos de guerreiros,
de namorados e de soberanos. (PAMUK, 2004, p.246-247)
Seja pelo sangue, pelo amor, pelo alimento (carne e frutos), pelas flores, animais ou pelo
calor da lava e do fogo, o vermelho sempre é facilmente relacionado as sensações que causa
nas pessoas. Ele lembra o amor, a dor, a beleza, o sexo, a morte, o nascimento, dentre outras
coisas. De uma maneira ou de outra, ele é emoção e também é afeto.
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Em seu Desvio para o vermelho, Meireles cria um percurso cujo título é inspirado pela
descoberta de um astrônomo sobre frequências de ondas de luz. A obra foi concebida no período
de ditadura militar no Brasil, mas o artista nega a relação de seus componentes com a violência
da época, mesmo que seja impossível para qualquer um com essa informação não fazer alguma
associação. E por quê? Por causa do uso do vermelho.
Imagine então estar neste período, vivenciar os acontecimentos de uma ditadura e visitar
esta instalação, na qual, inicialmente, há um ambiente de certa forma acolhedor e organizado,
onde todos os componentes possuem a cor vermelha, em seguida encontrar uma garrafa caída
da qual se esvai uma poça de vermelho que aparenta “escorrer” até um outro ambiente escuro,
no qual, por fim, se apresenta uma pia inclinada com a torneira aberta da qual jorra líquido
vermelho. É muito fácil associar uma coisa à outra, por uma simples questão de momento. O
vermelho permite esse tipo de relação. Assim como uma pré-adolescente, que pouco ou nada
sabe sobre a ditadura e acabou de ter seu primeiro sangramento menstrual pode ver esta
instalação de outra maneira. E nesses momentos pouco importa a intenção inicial do artista.
FERNANDES apud. BORGES (2014, p.73) comenta que “há obras de Cildo que só existem
se o espectador se decidir a agir, fazendo-as acontecer, tornando-se ele mesmo o agente da
própria obra.” Ou seja, apesar de muitas vezes haver um direcionamento, a apropriação e a
interpretação são particulares de cada um. Sendo assim o sujeito parte da obra a partir do
momento em que entra em contato com ela e cria assim, algum afeto. Logo, “a obra é um veículo
para que o sujeito se enxergue e se reconheça” (BORGES, 2014, p.75).
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Um vermelho que sangra, queima e ferve, que arde. Ele seduz e prende,
convida e expulsa. Acaricia, beija, morde, lambe e corta. Um vermelho
que ama e anseia. Mas a quem?
A artista japonesa Chiharu Shiota, por sua vez, se utiliza do vermelho em seus trabalhos
de outra forma. Em The key in the hand, na Figura 11, ela apresenta uma trama de fios
entrelaçados entre si e cujo emaranhado serve de estrutura para objetos que pendem deles,
nesse caso chaves coletadas de pessoas nas viagens da artista pelo mundo. A trama se estende
por toda a extensão do teto da sala onde está instalada, e decai em alguns pontos por sobre
barcos velhos marcados pelo tempo e uso da mesma forma que as chaves. Em seus trabalhos,
Shiota comumente usa, junto dos fios que são seu principal material, objetos do dia-a-dia, como
janelas, cadeiras e sapatos, para explorar as relações entre morte e vida e para acessar as
memórias encontradas nesses objetos. Seus emaranhados simétricos fisgam o espectador,
criando sensações que variam entre segurança e medo, fascínio e terror, enquanto despertam
lembranças, e questões filosóficas relacionadas a ausência e existência.
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Figura 11. Chiharu Shiota, The key in the hand, 2015. Fonte: <http://www.chiharu-shiota.com/en/>
O que me interessa, porém, nos trabalhos de Shiota é, além do uso de objetos de memória,
a presença e a ausência do corpo dela nas obras. O trabalho se apresenta de uma maneira que
permite ver o processo de construção, o fazer manual permanece, o que faz a artista continuar
no ambiente de certa forma. Ao mesmo tempo, ela não está ali. Esse tipo de interação subjetiva
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é o que busco em meu trabalho. Criar relações com o público sem a necessidade de estar de
corpo presente, e paradoxalmente nunca realmente sair.
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3. MEMOIR
Decidi iniciar este capítulo com uma imagem (Figura 12) pois esta fotografia contém
vestígios ou remete ao que será tratado e desenvolvido nele: memória, costura, sangue e
incertezas.
Figura 12. Ayana Celina Gonzatti, sem título, 2018. Fonte: Arquivo Pessoal.
Esta fotografia foi tirada num momento de produção para um vídeo, no qual eu esmurrei
um espelho que repousava no chão repetidamente até quebra-lo. Contudo, após a quebra,
quando fui retirar a mão do vidro estilhaçado, um dos cacos cravou-se em minha mão e fez jorrar
sangue. Confesso que foi um sangramento deveras escandaloso em relação ao tamanho do
corte, talvez pela profundidade alcançada. Foi um corte “limpo”, então eu apenas prossegui com
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a finalização das captações de imagem sem sentir desconforto algum. Quando terminei, parei
por alguns segundos para avaliar o estrago e o que me interessou mais, no fim, foi a maneira
que o sangue havia se espalhado e delimitado as ranhuras da minha palma, como se houvesse
se transformado em uma linha, que costurava entre a pele.
Desde criança eu interpretava papéis. Era mulheres que eu gostaria de me tornar um dia:
mulheres fortes, destemidas, heroínas incríveis e bem resolvidas. Usava roupas velhas que
minha avó guardava: desde vestidos lindos, longos e saias rodadas, a camisas, chapéus e botas
de couro. Como exemplificado no capítulo anterior com a pintura do armário feita por minha mãe
na qual escrevi meu nome e a tomei como um retrato de um eu que não existia, minha infância
foi marcada por aventuras nas quais eu fugia do meu eu real, ou simplesmente o ignorava.
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Todos nós contamos histórias que são versões da história – memorizadas, encapsuladas,
repetidas, e seguras. A memória real, que estas imagens detonam, é uma invocação da
cor, do cheiro, do som e da presença física, da densidade e do sabor da vida. A memória
permite um fluxo sem fim de conexões. (GOLDIN, 1986, p. 06.)
Quando decidi que ia usar memórias em meu trabalho, durante as primeiras leituras, decidi
que deveria relatar alguma memória minha como base, algo que fosse importante para mim e
que eu considerasse de grande influência no meu desenvolvimento. No fim, acabei decidindo
que não iria centrar a poética em memórias minhas, mas relatarei a memória que mais me
significa por uma questão de equilíbrio.
Quando eu era criança, meu pai viajava pelo país levando cargas de caminhão para uma
empresa da cidade e minha mãe trabalhava doze horas no setor de compras e vendas de um
supermercado, assim eu passava muito tempo sendo cuidada por amigos e familiares. Meus
avós moram em um sítio (recentemente meus pais construíram uma casa se mudaram pra lá
também) e eu adorava estar lá, brincar com os animais, ajudar eles com o trabalho e imaginar
ser outras mulheres como comentei acima. Quando eu dormia lá, as vezes ficava inquieta e meu
avô, que sempre foi uma pessoa calma e compreensiva, me levava para o pátio para ver as
estrelas e ouvir histórias. Levávamos duas cadeiras conosco, mas eu sempre acabava sentada
em seu colo, talvez por medo do escuro ou por simples conforto. Havia algo de interessante
naquele céu, longe da cidade, sem luz elétrica para interromper a noite. É a memória mais forte
que tenho com meu avô e, por incrível que pareça, levando em conta minha personalidade
falante e agitada, é uma memória de silêncio. Sentávamos no pátio da casa e olhávamos as
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estrelas e ouvíamos os sons noturnos. Vez ou outra eu perguntava alguma coisa, mas foram os
momentos silenciosos que me ensinaram mais.
Eles ainda têm as mesmas cadeiras de madeira. Recentemente meu avô as reformou,
dando-lhes uma nova pintura e, para minha surpresa, substituiu as cordas do assento por um
cabo de plástico vermelho transparente.
Nunca me senti tão conectada ao meu avô como me sinto atualmente, mesmo com o
distanciamento causado pela graduação, descobri que temos algo em comum que eu nunca
poderia imaginar. Talvez por herança genética, talvez por influência identitária, vivemos nas
mesmas condições de infelicidade. Mas sempre que penso em nossa relação me lembro da
cadeira, das noites estreladas e do silêncio confortável. Duas pessoas falantes que juntas dizem
pouco, pois não há necessidade de palavras, trocamos afetos de maneira profunda sem precisar
exteriorizar nada.
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3.1. O estágio
Uma das coisas que mais me surpreendeu quando comecei a levantar questionamentos
sobre minhas subjetividades e sobre a constituição do eu, foi que o primeiro lugar onde procurei
respostas foi em memórias de minhas origens. Na infância, na família, nos instintos.
Pude observar esse mesmo comportamento em grande parte dos estudantes das quatro
turmas de 2º ano do ensino médio para as quais dei aula no segundo semestre deste ano.
Realizei o estágio formal obrigatório no IFRS (Instituto Federal do Rio Grande do Sul)
em colaboração com minha colega de curso Gabriela Duarte Fraga. O estágio tinha como
tema principal as questões relacionadas ao desenvolvimento do eu nos indivíduos. Buscamos
trabalhar estas questões para fomentar a auto crítica e o autoconhecimento dos estudantes,
acreditando que a busca por conhecer a si mesmo é o centro de uma rede de desenvolvimento
crítico, que se abre não só para a Arte, mas para qualquer área do conhecimento. Assim, por
meio de aulas teórico-práticas, discutimos elementos relacionados à identidade,
representação de si, subjetividade e memória, utilizando-nos de referenciais teóricos e
artísticos para dar aporte a estas discussões.
Aqui os sujeitos não são posicionados como objetos silenciosos, mas como sujeitos
falantes; não como objetos examinados, mas como sujeitos confessantes; não em relação
a uma verdade sobre si mesmos que lhes é imposta de fora, mas em relação a uma
verdade sobre si mesmos que eles mesmos devem contribuir ativamente para produzir.
(LARROSA, 1994, p. 54)
Na produção do texto de memória, onde deveria ser relatada uma memória significativa a
cada um dos estudantes, o estudante X. 8 fez um relato sobre uma época na qual seu pai
trabalhava em uma localidade distante e aparecia só aos finais de semana e descreveu com
emoção como eram maravilhosos os momentos de espera quando recompensados com a
presença e o tempo dedicado do pai à ele.
8
Manterei as identidades dos estudantes em sigilo pelo fato de os mesmos serem menores de idade e eu não
possuir autorização escrita para tal.
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Ao escreverem o texto sobre “quem sou eu?”, que propomos na aula seguinte à aula sobre
memórias, eles se mostraram inquietos e duvidosos sobre o que escrever, perguntaram muito,
rasgaram folhas, morderam tampas de caneta e sacudiram os pés por debaixo das mesas em
frustração. Encontrar uma resposta para algo que deveria ser fácil os fez esboçar expressões de
questionamento por quase todo o período da atividade. V. comentou que nunca havia parado
pra refletir sobre o assunto, e que considerava-o uma das coisas mais difíceis sobre as quais já
tivera que escrever, alegando não haver referências para se embasar ou um local para pesquisar
ideias. Eu lhe respondi que havia onde ele procurar pela resposta, em si mesmo, mas que não
tinha certeza se a encontraria, já que eu mesma não podia responder esta pergunta. Tanto não
consigo responde-la que ela se tornou a base de minha inquietação para a realização desta
pesquisa.
Jorge Larrosa (1994), em seus estudos dos escritos de Michel Foucault (1968 - 1999) sobre
a subjetivação, descreve o papel da educação em relação a discussão e construção de sujeitos,
onde esta, “além de construir e transmitir uma experiência ‘objetiva’ do mundo exterior, constitui
e transmite também a experiência que as pessoas têm de si mesmas e dos outros como ‘sujeitos’.
Ou, em outras palavras, tanto o que é ser pessoa em geral como o que para cada uma é ser ela
mesma em particular.” (LARROSA, 1994, p.45)
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Cecília Almeida Salles (2009) fala do processo de criação em desenho, mas algumas de
suas reflexões se aplicam efetivamente em relação ao processo de criação de subjetividades.
Trata-se de uma visão, portanto, que põe em questão o conceito de obra acabada, isto é,
a obra como forma final e definitiva. Estamos sempre diante de uma realidade em
mobilidade. Isto nos permite falar, sob o ponto de vista do artista, em uma estética de
criação. (...) De uma maneira mais ampla, falaríamos em estética do movimento criador.
(SALLES, 2009, p.29)
A partir do momento que se chega a uma resposta, se acaba a busca e se acaba o sujeito.
Saber com certeza quem sou é limitar-me a ser o que conheço, negar-me o novo e o
desconhecido. Definir-se é encerrar-se e não mais se deixar afetar. Assim, a construção do
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sujeito seria como “um processo que fica sempre por se completar, um desejo que fica por ser
totalmente satisfeito” (SALLES, 2009, p. 34).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Minhas intenções ao iniciar esta pesquisa eram as de encontrar uma resposta para as
questões indefinidas da formação do eu como sujeito. A partir dessa pergunta inicial, desenvolvi
o problema de pesquisa que consiste em saber quais as relações entre a memória, a
representação de si e o vermelho na constituição das subjetividades do sujeito. Para isso, defini
os conceitos utilizados e os associei com minha produção poética e o estágio em sala de aula,
tentando assim estabelecer vínculos entre eles e a formação subjetiva.
Posso concluir que a memória está diretamente ligada a formação dos sujeitos e de suas
subjetividades, pois quem não se lembra do vivido, não pode se constituir a partir dele e sem
vivências, não há sujeito. Porém, a memória não necessariamente está ligada a fatos, já que ela
pode ser editada ou construída na mente do sujeito, assim estando liberta da verdade e
transformando o caminho de descobrir-se e definir-se um percurso denso e singular.
Em relação ao vermelho, esta cor representa muito do interior físico e emocional do ser
humano, portanto não se pode falar em vermelho sem remeter a elementos e acontecimentos
ligados a subjetividade. O sangue, a vida e morte, o amor, todos acabamos experienciando a cor
vermelha de uma forma ou de outra, seja de maneira mais intensa ou rasa, seja refletindo sobre
ou apenas sendo afetado por ela de maneira inconsciente.
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Como relatado na introdução desta pesquisa, sua realização busca questionar a formação
do eu e identificar possíveis influências dos conceitos de memória, subjetividade e afecção nessa
formação. Esta busca surgiu de inquietações minhas sobre minha própria formação como sujeito
e de elementos que surgiram de maneira sensorial em minha produção poética. O que pude
compreender por meio deste trabalho é o fato de que essa busca pelo conhecimento de si não
deve ser finita, que a construção deve prosseguir e que as mudanças, reflexões e retornos às
memórias devem ser recorrentes. Para que assim o interesse por si mesmo seja constante e
para que a transcendência de si mesmo não cesse.
Com o material textual e gráfico produzido pelos estudantes durante o período de estágio
obrigatório em modalidade formal e não-formal que realizei, percebi o potencial criativo e reflexivo
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que estes estudantes podem alcançar se instigados a tal. E decidi continuar com a produção de
instalações com o uso da cor, luz, transparência e vermelho, mas, diferentemente do trabalho
relatado em Memórias Coletadas, penso em talvez coletar as memórias e o material textual
diretamente das pessoas, como fiz com os estudantes. Como falo de afecção e de experiência,
acredito que um contato mais direto da subjetividade do outro com a minha própria pode gerar
resultados mais intensos em se tratando de pungência e sensações geradas pelo trabalho.
Minhas intenções daqui para a frente são de seguir com os autoquestionamentos, com o
uso do vermelho e suas variações de significância, e estender o uso da memória e da experiência
nas produções poéticas que virão.
9
KIERNAN, Caitlín R. A menina submersa: memórias. São Paulo: Darkside Books, 2014, p. 313.
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