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Parashat Bo – A contradição de celebrar a liberdade, tendo

escravos
No livro “Destination Torah” (Ktav, 2001), páginas 62 a 64, o Dr Rabino Hacham Issac S.D.
Sassoon, nota que, se a escravidão é para ser considerado algo inerentemente perverso,
por qual motivo lemos que, na partida dos Israelitas de um Egito que os escravizava, eles
recebem instruções sobre como tratar seus escravos, inclusive, na celebração do
Pessach? A promulgação de tais instruções, justo naquele momento, certamente quebra o
encanto de se construir uma nação utópica, perfeita e contrária a escravização de outros
seres humanos. De fato, estas “leis de escravos” não deixam dúvida sobre a prática ser
normal e aceitável. Mas, então, por qual motivo os Egípcios são retratados como “maus”
por escravizarem os Israelitas? Só por uma questão de “meu time” versus o “time” do
outro? Neste caso, não se trata de ser “imoral” escravizar, mas apenas, não escravizar
certos grupos (o nosso, no caso)?

A Lei do Pessach que menciona escravos


O verso complicado é de Shemot 12: 43:
‫מד ְוכָל ֶ ֥עבֶ ד ִ ֖איׁש ִמ ְקנַת ּכָ ֑סֶ ף‬:‫ יב‬:‫ֹׁשה וְאַ הֲ ֹ֔רן ֖ז ֹאת חֻ ַ ּ֣קת הַ ָ ּ֑פסַ ח ּכָל ּבֶ ן נֵכָ ֖ר ל ֹא ֥ י ֹאכַל ּֽבֹו‬
֣ ֶ ‫הֹ וָה֙ אֶ ל מ‬-ְ‫אמר י‬
ֶ ֹ ‫֤וַּי‬
‫ְׂש ִ ֖כיר ל ֹא ֽ י ֹאכַל ּֽבֹו‬
ָ ‫ּתֹוׁשב ו‬
ָ֥ ‫מה‬:‫ יב‬:‫ּומ ְל ָ ּ֣תה אֹ ֔תֹו ָ ֖אז ֥ י ֹאכַל ּֽבֹו‬:
ַ
HaShem disse a Moshe e a Aharon: Este é o estatuto do Pessach! Nenhum estrangeiro
comerá dele! E qualquer escravo, comprado com prata, que vocês tiverem circuncidado,
poderá comer. Mas, nenhum cativo ou trabalhador contratado poderá comer!
-
Daí a porção continua, com outras leis relacionadas a Oferta de Pessach, terminando em
Shemot 12: 50:
‫ֹׁשה ו ֶ ְֽאת אַ הֲ ֹ֖רן ּכֵ ֥ן עָ ֽׂשּו‬
֥ ֶ ‫הֹ וָ ֛ה אֶ ת מ‬-ְ‫ֲׂשּו ּכָל ְּבנֵ ֣י י ְִׂש ָר ֵ ֑אל ּכַאֲ ֶׁ֨שר צִ ּוָ ֧ה י‬
֖ ‫וַֽ ַּיע‬
Todos os filhos de Israel fizeram, como o HaShem havia ordenado a Moshe e a Aharon.
Isso é o que fizeram.
-
Então, de acordo com esta porção, os Israelitas não eram permitidos de sair de seu local,
antes de consentir que a escravidão continuaria. E se o verso 50 for lido literalmente – já
que o Dr Rabino Sassoon observou que, ao lermos a Torá de modo sincronístico,
notamos que os Mandamentos que o verso 50 reportam aos Israelitas, deve se referir aos
indicados nos versos 43 a 49, e o que eles observaram antes, foram relatados no verso
28 -, eles então nem poderiam sair antes de adquirir escravos e os circuncidar.
Doutro modo, não haveria nem sentido em mencionar tais instruções logo durante a saída
do Egito! Se ninguém iria adquirir escravos, tais regras simplesmente não serviriam para
nada.
Então, o problema dos Egípcios não eram a escravização em si, mas só o fato de que
israelitas foram escravizados? Ou seja, com outros povos, estaria tudo bem?
As noções religiosas sobre a Torá fazem o problema persistir
É facil constatar que, estas conclusões são consistentes com premissas sobre a Torá que,
são consideradas sem questionamentos:
- A Torá, como um texto homogêneo, em vez de, uma composição de variadas tradições
de tempos e locais distintos.
- Um texto “ditado” pela Divindade
- Um documento dado a “Israel” e apresentado por um Moshe “histórico”, cerca de 40
anos após o êxodo.
Porém, conforme a educação melhora, o conhecimento da História, da Arqueologia e,
análise crítica da Torá permitem a mais e mais pessoas perceber que, tais doutrinas
religiosas são contraintuitivas. Por acaso a Torá realmente desvalorizaria o ser e a
dignidade humana, apenas por causa de interesses políticos? Ou seja, que permitiria a
escravização, se fosse de outros povos, enquanto proibiria a de israelitas? Um livro
assim, seria mesmo “divino”?

A elucidação acadêmica
Para aqueles que descobriram que a análise crítica apenas “fere” as noções, doutrinas e
regras religiosas que, por si só, já ofendem a inteligência e o bom senso cultivado no
século XXI; Sem com isso diminuir a importância da Torá ou dos antigos textos
tradicionais da Tradição Judaica, a análise acadêmica, como a Hipótese Documental e a
Hipótese Complementar, não apenas aliviam certas contradições, como conseguem em
muitos casos, resolver de modo inteligente e satisfatório, os conflitos morais.
Uma das fontes tradicionais mais antigas – chamada de “não-P” - traz uma narrativa do
êxodo, que não menciona, nem uma única vez, que os israelitas tivessem “licença” para
escravizar – bastando seguir certas regras – e, não receberam instrução alguma de fazer
isso, na ocasião de sua própria libertação.
Isso contrasta com Shemot 12: 43 – 51, que exibe sinais linguísticos e substantivos de
que, fazem parte exclusivamente, de um material sacerdotal, muito posterior ao período
indicado na narrativa. A tradição P – Sacerdotal.

Os Sinais Sacerdotais
Estes sinais, incluem a “proeminência estereotipada”, exemplificada em frases como:
“HaShem falou a Moshe/a Moshe e Aharon, dizendo” e, em seguida, trazendo insistência
em rituais como o da circuncisão, ritual de elevação do status e da ideia de pacto,
característico e próprio, apenas na Tradição P.
De fato, o verso 47, que ordena que “toda a congregação” - e não apenas os “anciãos”
iniciem os rituais de Pessach, parece estar polemizando com versões mais antigas do
processo, encontradas em Shemot 12: 21:

Texto Não-P – verso 21


‫ְׁשחֲ ֥טּו הַ ָ ּֽפסַ ח‬
ַ ‫ּוק ֨חּו לָ כֶ ֥ם ֛צ ֹאן ְל ִמ ְׁש ְּפחֹ ֵתיכֶ ֖ם ו‬
ְ ‫אמר אֲ לֵ ֶ ֑הם ִ ֽמ ְׁשכ֗ ּו‬
ֶ ֹ ‫ֹׁשה ְלכָל־זִ ְקנֵ ֥י י ְִׂש ָר ֵ ֖אל ֣וַּי‬
֛ ֶ ‫וַּיִ ְק ָ ֥רא מ‬
Moshe chamou todos os anciãos de Israel e disse a eles, para irem e tomarem o carneiro
para a família de vocês, e que o abatessem para o Pessach

Texto Sacerdotal – P - verso 47


‫ֲׂשּו אֹ ֽתֹו‬
֥ ‫ּכָל־ע ַ ֲ֥דת י ְִׂש ָר ֵ ֖אל ַיע‬
Toda a congregação de Israel fará isso [o Pessach]
-
Então, de acordo com a fonte Não-P, eram apenas os Anciãos, que deveriam realizar o
ritual do Pessach – uma versão bem mais realista, dado que era uma população
escravizada.
A “massa” de israelitas, provavelmente não estava vivendo entre vizinhos queridos neste
período, então a versão da história da tradição Não-P, se encaixa muito melhor na
narrativa. Claro que alguns “apologistas” propõem traduzir <adat> da frase <kol adat
Israel> como se fosse simplesmente, “líderes” - com base na ideia de que, <edah> em
Bamidbar15: 24, 26: 10 e 35: 24 teriam tal sentido. No entanto, mesmo que concedamos
o sentido de 'liderança' nessas ocorrências de <edah>, isso não afetaria o sentido da
frase <kol adat Israel>, que invariavelmente conota “todo o povo”, não apenas os líderes.
Além disso, Shemot 12: 3 e especialmente 12: 6, que também pertencem a tradição P,
não deixam dúvidas de que, se refere a toda comunidade. Portanto, a “apologética” é
fraca.

A atitude característica da tradição P sobre a escravatura


Agora que, consideramos a mais provável origem do texto de nossa Torá que, sem
rodeios, estaria apoiando a escravatura, estamos prontos para nos profundar nesta
questão, sobre a atitude da tradição P sobre a escravidão. Esta atitude da tradição
Sacerdotal se encaixa num padrão, na verdade. Vejamos:

Razões para o Shabat – duas tradições, dois motivos


O motivo pelo qual o Shabat é observado, não é o mesmo no Sefer Devarim e no Sefer
Shemot
Em Shemot 20: 8 a 11:
‫הֹ וָה‬-‫יעי ַׁשּבָ ת לַ י‬ ִ ‫י וְיֹום הַ ְּׁש ִב‬:‫ כ‬:‫ית ּכָל ְמלַ אכְ ֶּתָך‬ ָ ‫ט ֵׁש ֶׁשת י ִָמים ַ ּֽת ֲעבֹד וְעָ ִׂש‬:‫ כ‬:‫ח זָכֹור אֶ ת יֹום הַ ַּׁשּבָ ת ְל ַק ְּדׁשֹו‬:‫כ‬
‫יא ּכִ י ֵׁש ֶׁשת‬:‫כ‬:‫ּובהֶ ְמ ֶּתָך ְוג ְֵרָך אֲ ֶׁשר ִּב ְׁשעָ ֶריָך‬ ְ ‫ּוב ֶּתָך עַ ְב ְּדָך וַאֲ ָ ֽמ ְתָך‬
ִ ‫ּובנְ ָך‬
ִ ‫ֲׂשה כָל ְמלָ אכָה אַ ָּתה‬ ֶ ‫ֹלהֶ יָך ל ֹא ַתע‬- ֱ‫א‬
‫הֹ וָה אֶ ת‬-ְ‫יעי עַ ל ּכֵן ּבֵ ַרְך י‬ ִ ‫י ִָמים עָ ָׂשה יְ–הֹ וָה אֶ ת הַ ָּׁש ַמיִם וְאֶ ת הָ אָ ֶרץ אֶ ת הַ ּיָם וְאֶ ת ּכָל אֲ ֶׁשר ּבָ ם וַּינַח ּבַ ּיֹום הַ ְּׁש ִב‬
‫יֹום הַ ַּׁשּבָ ת ַוי ְַק ְּד ֵׁשהּו‬
Lembra-te do dia de Shabat, para santificá-lo. Seis dias você fará toda tua obra, mas o
sétimo dia é um Shabat para o HaShem, teu Elohim: Não fará nele, nenhuma obra – nem
você, teu filho ou filha, teu escravo ou escrava, nem teu gado ou, o estrangeiro que
estiver dentro de seus assentamentos.
Pois, em seis dias, HaShem fez os céus, a terra e o mar e tudo o que há neles. E Ele
cessou no sétimo dia e, portanto, HaShem abençoou o Shabat e o santificou.
Em Devarim 5: 12 a 15:
:‫ ה‬:֒‫֖ית ּכָל ְמלַ אכְ ֶ ּֽתָך‬ ָ ‫ׁ֤שת י ִ ָ֣מים֙ ַ ּֽת ֲע ֹ֔ב ֘ד וְעָ ִ ׂ֣ש‬ ֶ ‫יגׁש‬:‫ה‬
ֵ֣ :‫ֹלהיָך‬-
ֶֽ֗ ֱ‫הֹ וָ ֣ ֥ה א‬-ְ‫יב ָׁש ֛ ֣מֹור אֶ ת ֥ יֹו ֩ם הַ ַּׁש ָ ּ֖֨בת ְל ַק ְּד ֑ ׁ֜שֹו ּכַאֲ ֶ ׁ֥שר צִ ּוְ ָך׀ י‬:‫ה‬
‫מ ְר ָ֜ך‬
ֹ ֽ ֲ‫ְׁשֹור ָ֨ך וַח‬
ְ ‫ּוב ֶ ּ֣תָך וְעַ ְב ְּדָךֽ ֠ ַואֲ ָמ ֶתָך ו‬ ִ ֽ‫ּובנְ ָך‬ ִ ‫ֲׂשה כָל ְמלָ א ָ֡כה אַ ָ ּ֣תה‬ ֣ ֶ ‫ֹלהיָך ֣ל ֹא ַתע‬- ֑֗ ֶ ֱ‫הֹ וָ ֣ה א‬-‫יעי ַׁש ָ ּ֣ב֖ת׀ לַ י‬ ֜ ִ֔ ‫יד וְי֙ ֹום֙ הַ ְּׁש ִב‬
‫ית׀ ְּב ֶ ֣א ֶרץ ִמצְ ֗ ַ ֔ריִם‬ָ ֣ ֨ ִ‫טו ְו ָזכ ְַר ֗ ָּ֞ת ִ ּ֣כי ֶ ֥ע ֤בֶ ד הָ י‬:‫ ה‬:‫ָמֹוָך‬ ֽ֑ ‫ְגֵֽרָך֙ אֲ ֶ ׁ֣שר ִּב ְׁשעָ ֶ ֔ריָך ְל ֗ ַמעַ ן יָ ֛נּוחַ עַ ְב ְּדָך֥ וַאֲ ָמ ְתָך֖ ּכ‬ ְ ‫ְוכָל ְּבהֶ ְמ ֗ ֶּתָך ו‬
‫ֲׂשֹות אֶ ת ֥ יֹום הַ ַּׁש ָ ּֽבת‬ ֖ ‫ֹלהיָך לַ ע‬- ֶ ֔ ֱ‫הֹ וָ ֣ה א‬-ְ‫ּובזְ ֹ֣רעַ נְ טּויָ ֑ה עַ ל ֵּ֗כן צִ ּוְ ָך֙ י‬ ִ ֙‫–ֹלהיָך֙ ִמ ָּׁ֔שם֙ ְּביָ ֥ ֤ד חֲ ז ָ ָ֖קה‬ ֤ ֶ֨ ֱ‫וַּיֹ ֨ ִצאֲ ֬ ָ֜ך יְ–הֹ ֤֨וָ ה א‬:
Observe o dia de Shabat e o mantenha consagrado, como HaShem, teu Elohim te
ordenou. Seis dias trabalhará e fará toda tua obra. Mas, o sétimo dia é um Shabat para o
HaShem, teu Elohim, você não fará obra alguma – nem você, nem seu filho ou filha, nem
seu escravo ou escrava, nem teu boi ou asno, nenhum dos teus rebanhos, ou o
estrangeiro que estiver em teus assentamentos – de tal modo que teu escravo e escrava,
possam descansar como você! Lembre-se que vocês eram escravos na Terra do Egito e o
HaShem, teu Elohim, os libertou de lá, com sua mão poderosa e braço estendido;
portanto, o HaShem, teu Elohim, ordenou a você que observasse o dia de Shabat.
-
Como se vê, a declaração de Devarim contém a frase “para que teu escravo e tua
escrava, possam descansar como você”, e explica a origem do ritual, na memória de que
os Israelitas foram escravos no Egito.
A declaração de Shemot não diz nada disso. Ela fala sobre o Shabat ser uma lembrança
semanal, da concepção de que a Divindade criou o mundo.
Comentaristas Medievais todos correram para explicar estas inconsistências, que não
deveriam existir num texto tão fundamental, como o Decálogo – ou seja, o texto resultante
da única Revelação Pública da Divindade.
Mas, o estudo acadêmico pós-moderno, aprecia tais características. Elas indicam com
bastante clareza, que estas versões representam expansões de um “Decálogo Original”,
cujos “mandamentos” devem ser sido muito mais breves e apodíticos (ou seja, curtos), de
meados do século 6 a 9 antes da era comum. Dizer que o texto da Torá não foi alterado,
com o passar do tempo chega a ser infantil hoje em dia, pois, até fontes tradicionais como
Ibn Ezra, tinham noções disso. Então, é só uma questão de ir fundo no tema ou não, para
definir as fontes e a linguagem de cada tradição. E este é um dos temas do estudo
acadêmico.
A versão “expandida” do Decálogo de Devarim, seria a mais “antiga” por assim dizer,
sendo o precursor do texto de Shemot.
[Frank-Lothar Hossfeld, Der Dekalog (Gőttingen 1982 esp. pp. 39-42, 57).]
O paralelo da fonte de Shemot, com os finais épicos, típicos da fonte tradicional P
(Bereshit 2: 2 – 3) sugere que, esta versão do Decálogo, pelo menos na forma em que
está agora, é mesmo de origem Sacerdotal. Assim, notamos que a tradição P foi a
responsável, por substituir o motivo de dar ao escravo descanso, com o motivo da
“lembrança da criação” (já que a tradição P poderia ter mantido os dois temas no texto,
mas não manteve).
Não se pode saber o exato motivo pelo qual, os editores da tradição P rejeitaram a
premissa mantida pelo Sefer Devarim. De qualquer modo, é provável que a tradição P
fosse menos preocupada com a situação de escravos, do que os editores da tradição D
eram.

A Lei Sacerdotal sobre Escravos


Existe uma insensibilidade evidente, com relação a escravos não israelitas, no texto de
Vaicrá 25: 44 a 46. A lei que segue a obrigação de se libertar todos os escravos israelitas,
no ano do Iovel, diz:
‫ּתֹוׁש ִ֜בים הַ ּג ִ ָ֤רים‬
ָ ַ‫ ְ֠וגַם ִמ ְּב ֵ֨ני ה‬:‫וְעַ ְב ְּדָך֥ וַאֲ ָמ ְתָך֖ אֲ ֶ ׁ֣שר י ְִהיּו ָלְ֑ך ֵמ ֵ ֣את הַ ּגֹו ֗ ִים אֲ ֶׁשר֙ ְס ִבי ֣ ֹב ֵתי ֶ֔כם ֵמ ֶ ֥הם ִּת ְק ֖נּו ֶ ֥עבֶ ד וְאָ ָ ֽמה‬
‫ ו ְִה ְתנַחַ ְל ֨ ֶּתם אֹ ָ֜תם ִל ְבנֵיכֶ ֤ם‬:‫הֹולידּו ְּבאַ ְרצְ כֶ ֑ם וְהָ֥ יּו לָ כֶ ֖ם ַ ֽלאֲ חֻ ָ ּֽזה‬
֖ ִ ‫ּומ ִּמ ְׁשּפַ ְח ָּתם֙ אֲ ֶ ׁ֣שר ִע ָּמ ֶ֔כם אֲ ֶ ׁ֥שר‬
ִ ‫ִע ָּמכֶם֙ ֵמ ֶ ֣הם ִּת ְקנ֔ ּו‬
‫ּובאַ֨ חֵ יכֶ ֤ם ְּב ֵנֽי י ְִׂש ָראֵ ֙ל ִ ֣איׁש ְּבאָ ֔ ִחיו ל ֹא ִת ְר ֶ ּ֥דה ֖בֹו ְּב ָ ֽפ ֶרְך‬
ְ ‫אַ חֲ ֵריכֶם֙ לָ ֶ ֣ר ֶׁשת אֲ חֻ ּזָ֔ ה ְלעֹ ָל֖ם ּבָ ֶ ֣הם ַּת ֲע ֑ ֹבדּו‬:
Com respeito aos homens e às mulheres que vocês tiverem por escravos; comprem
escravos e escravas das nações vizinhas. Comprem também filhos de estrangeiros que
vivem com vocês e membros das famílias deles, nascidos em sua terra; eles pertencerão
a vocês. Vocês poderão também legá-los a seus filhos; desses grupos, vocês poderão
comprar escravos para sempre. Entretanto, no que concerne a seus irmãos, o povo de
Israel, não tratem um ao outro de modo rude.
-

Por que o autor Sacerdotal está tão interessado em escravizar os não-


israelitas?
Embora certa quantidade de preconceito, ou de “pensamento de manada” estabelecendo
quem era de “dentro / fora” do grupo, não possa ser descartada numa análise dessas (em
vez de atribuir à Divindade a ideia de ter “tribos e grupos”), acredita-se que a chave, para
entender a atitude dos redatores da tradição P, pode ser encontrada na frase "tais ...
Vocês poderão também legá-los a seus filhos; desses grupos".
Quer dizer, essa legislação de tradição P, pressupõe que os israelitas estivessem
escravizando uns aos outros e, estava tentando parar a prática que, pelo visto, era
generalizada.
As palavras no início, soam como uma resposta - muito provavelmente aos proprietários
de terras, protestando que os escravos eram indispensáveis para a agricultura sobreviver
e etc.
Em outras palavras, o provável pano de fundo desta “licença” dada pela tradição P, de se
escravizar não-israelitas, pode ser visto como uma tentativa de negociar com os
proprietários de terras influentes da região, a fim de obter a garantia de que, pelo menos
os israelitas não seriam mais escravizados na região, permanentemente.
Talvez então, a tradição P estivesse enfrentando uma situação semelhante à descrita no
Sefer Nehemiah 5: 1 a 5 - outro texto pós-exílico antigo - em que as pessoas comuns,
levantam “um grande clamor” - um protesto - contra seus irmãos judeus, dizendo que
estavam “dando” seus filhos e filhas, como promessas de dívidas, enquanto outros eram
levados até a literalmente, vender seus filhos como escravos – por causa da opressão de
“irmãos Judeus”:
‫ֹתינּו אֲ נַ ְ֣חנּו ַר ִ ּ֑בים וְנִ ְק ָ ֥חה‬ ֖ ֵ ‫ּובנ‬
ְ ‫ב ְויֵׁש֙ אֲ ֶ ׁ֣שר אֹ ְמ ִ ֔רים ּבָ נֵ ֥ינּו‬:‫ ה‬:‫הּודים‬ ֽ ִ ְ‫יהם הַ ּי‬
֖ ֶ ֵ‫דֹול֑ה אֶ ל אֲ ח‬ ָ ְ‫יהם ּג‬ ֖ ֶ ‫ו ְַּת ֨ ִהי צַ ע ַ ֲ֥קת הָ ָ ֛עם ּונְ ֵׁש‬
֙‫ד ְויֵׁש‬:‫ ה‬:‫ג ְויֵׁש֙ אֲ ֶ ׁ֣שר אֹ ְמ ִ ֔רים ְׂשד ֵ ֹ֛תינּו ּוכְ ָר ֵ ֥מינּו ּובָ ֵ ּ֖תינּו אֲ נַ ְ֣חנּו עֹ ְר ִ ֑בים וְנִ ְק ָ ֥חה ָדגָ ֖ן ּבָ ָר ָ ֽעב‬:‫ ה‬:‫ָדגָ ֖ן וְנ ֹאכְ ָל֥ה וְנִ ְח ֶיֽה‬
‫ֵיהם ּבָ נֵ ֑ינּו ו ְִהּנֵ ֣ה‬
֖ ֶ ‫ה וְעַ ֗ ָּתה ּכִ ְב ַ ׂ֤שר אַ ֵ֙חינּו֙ ְּב ָׂש ֵ ֔רנּו ּכִ ְבנ‬:‫ ה‬:‫אֲ ֶ ׁ֣שר אֹ ְמ ִ ֔רים לָ וִ ֥ינּו כֶ ֖סֶ ף ְל ִמ ַ ּ֣דת הַ ֶ ּ֑מלֶ ְך ְׂשד ֵ ֹ֖תינּו ּוכְ ָר ֵ ֽמנּו‬
‫ּוׂשד ֵ ֹ֥תינּו ּוכְ ָר ֵ ֖מינּו לַ אֲ חֵ ִ ֽרים‬
ְ ‫ֹתינּו לַ עֲבָ ִ ֗דים ְו ֵ֨יׁש ִמ ְּבנ ֵ ֹ֤תינּו נִ כְ ּבָ ׁשֹות֙ ו ֵ ְ֣אין ְל ֵ ֣אל י ֵָ֔דנּו‬ֵ ֜ ‫אֲ נַ ְ֣חנּו ֠ ֹכ ְב ִׁשים אֶ ת ּבָ ֵ֨נינּו וְאֶ ת ְּבנ‬
Então, surgiu um grande clamor do povo comum e de suas mulheres contra seus irmãos,
os habitantes de Iehudá (i.e. os Judeus). Alguns deles disseram: “contem nosso filhos de
filhas, somos muitos! Deixem-nos conseguir trigo para eles, para que comamos e
permaneçamos vivos”. Havia também alguns que disseram, “demos como garantia, nosso
campos, nossas vinhas e casas, a fim de comprar trigo, por causa da fome”. Ainda outros
disseram: “Tomamos dinheiro emprestado para o pagamento das taxas reais sobre
nossos campos e vinhas. Nossa carne não é diferente da carne de nossos parentes, e
nossos filhos são iguais aos filhos deles; entretanto, estamos trazendo nossos filhos e
filhas para a escravidão. Algumas de nossas filhas já se tornaram escravas, e está além
de nosso poder fazer qualquer coisa a respeito disso, pois outros homens possuem
nossos campos e vinhas.
-
Não resta dúvida de que, a reação da tradição P e Nehemiah são parecidas, dado que o
texto não está condenando “a escravidão em si” mas, apenas a escravidão dentro das
comunidades israelitas. Escravizar não israelitas era tolerado.

Um final esperançoso?
Esta aprovação da tradição P sobre escravizar não israelitas, parece ter sido uma
tentativa de solucionar uma crise social, que parecia ameaçar até a comunidade pós
exílica. E a menção da tradição P de tal escravização, como um elemento de sua versão
da história do êxodo, provavelmente, deve ser entendida como parte dessa circunstância
histórica.
Mas, como deu para perceber, esta não é uma visão adotada de outras fontes tradicionais
da Torá, como vimos no exemplo da tradição do Sefer Devarim, que tentou “melhorar” a
questão, por dizer que se deveria dar aos escravos o descanso, sendo este o motivo do
Shabat ter sido estabelecido.
Mas, melhores do que isto, foram as palavras de um profeta anônimo, cujo ensino foi
perpetuado no manuscrito de Ieshaiahu, capítulo 58: 6, exigindo da parte dos israelitas,
completa abolição da escravatura:
‫מֹוטה ְּתנ ֵ ַּֽתקּו‬
֖ ָ ‫ְׁש ַ ּ֤לח ְרצּוצִ ים֙ חָ ְפ ֔ ִׁשים ְוכָל־‬
ַ ‫ו‬
Libertem todos aqueles que foram esmagados, e quebrem todo o jugo.

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