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Há mais de 1 bilhão e 400 milhões de pessoas vivendo na China nesse exato instante - o
que significa dizer que as leis do país determinam a vida de uma em cada cinco pessoas no
mundo.
A população da China é tão grande que equivale à soma dos habitantes da América do
Norte, da América do Sul, da Austrália, da Nova Zelândia e de toda a Europa Ocidental.
Existem mais de 160 cidades na China com uma população superior a um milhão de
habitantes. Nos Estados Unidos, são apenas nove.
Só tem um problema com todas essas pessoas: elas vivem numa distopia orwelliana.
Se você nunca ouviu falar, o escritor britânico Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo
pseudônimo George Orwell, foi um dos maiores autores de ficção do século vinte.
Sua obra máxima, 1984, publicada no final da década de quarenta, é um romance distópico
que retrata um futuro imaginado, o ano de 1984, um período em que grande parte do
mundo está presa a uma engrenagem totalitária. Ninguém escapa à vigilância do Grande
Irmão.
A China é governada por um único partido, a maior organização política do planeta. Há mais
pessoas filiadas ao Partido Comunista Chinês do que habitantes na Alemanha, no Reino
Unido, na Itália e na França. Ao todo, são mais de 90 milhões de membros, 7% da
população chinesa - o que significa dizer que a cada cem pessoas no mundo, uma é filiada
ao partido.
Desde o dia 1º de outubro de 1949 o país é governado pela mesma organização. Ou seja:
há mais de setenta anos o mesmo grupo político impede eleições livres e diretas na China.
O CECC, uma agência que monitora os direitos humanos no país, lista nominalmente 1.500
prisioneiros políticos espalhados pela China - incluindo dissidentes, ativistas de direitos
humanos, jornalistas, artistas, líderes religiosos e advogados.
A ONG de direitos humanos Dui Hua (对话, "diálogo" em chinês), que monitora a situação
do país há quatro décadas, relata um número bem maior: diz que a China tem mais de 7 mil
prisioneiros sob custódia.
E uma minoria sofre indiscutivelmente mais violência do que qualquer outro grupo: os
uigures.
Xinjiang é responsável por quase 40% das reservas de carvão na China, quase 20% das
reservas de gás e petróleo, além de perto de 20% do potencial chinês em energia eólica.
Quanto mais a China depende de recursos energéticos, mais Xinjiang é indispensável às
pretensões do país.
Para combater a predominância muçulmana na região, nos anos noventa, o governo chinês
passou a incentivar a migração para Xinjiang de trabalhadores chineses han, o maior grupo
étnico do país, dando a eles a maioria dos empregos de petróleo e gás.
O governo justifica a ação como contraterrorismo. Mas a preocupação vai muito além da
segurança nacional. O objetivo é remover qualquer devoção ao Islã.
Para atender ao desafio, muçulmanos são detidos pelos motivos mais estúpidos possíveis -
como recitar o Alcorão em funerais, deixar a barba crescer, usar véu, receber ligações do
exterior, tentar abruptamente parar de fumar ou beber, portar livros sobre religião e cultura
uigur, vestir camisetas com símbolos muçulmanos ou orar em casa na presença de visitas.
Mulheres também são detidas por causa das transgressões de seus maridos. Nos campos,
inúmeras são esterilizadas pelas autoridades chinesas. As que têm sorte de engravidar
longe das grades prisionais são proibidas de dar nomes muçulmanos para seus filhos.
Quando um marido de uma uigur é preso em Xinjiang tendo a sorte de não condenar sua
esposa, o que sobra de sua família passa a ser monitorado de perto pelo Estado policial
chinês, que não apenas instala câmeras de vídeo em sua residência, como literalmente
envia oficiais para acompanhar o dia a dia debaixo do seu teto e dividir a cama com a sua
esposa.
Nas sessões de tortura, muçulmanos são interrogados sobre suas práticas religiosas e o
motivo de suas viagens ao exterior, além de forçados a pedir desculpas pelas roupas que
vestem.
Abduwali Ayup, um lingüista que operava escolas de uigur em Xinjiang até bem pouco
tempo, diz a Al Jazeera que passou 15 meses em três instalações em campos de
concentração. No dia de sua prisão, Ayup conta que 20 policiais o levaram a uma cela e o
estupraram.
Além dos campos, os esforços de reengenharia social do estado chinês envolvem também
a separação sistemática de crianças uigures de seus pais.
Na região que a ONU apelida de "zona sem direitos", opera-se um estado totalitário na mais
completa acepção da palavra.
Até 2016, mais de 160 mil câmeras foram instaladas apenas na cidade de Urumqi, capital
de Xinjiang.
Para aniquilar qualquer traço cultural islâmico, numa espécie de Revolução Cultural étnica,
o governo chinês passou a promover o consumo de álcool e fumo, ofensivos aos
muçulmanos devotos, e proibiu os uigures de não enviar seus filhos para escolas estatais -
onde crianças diariamente sofrem lavagem cerebral nacionalista.
Cerca de 1,5% da população chinesa vive em Xinjiang. Mas a região é responsável por
mais de 20% das detenções em todo o país, de acordo com dados oficiais compilados pelo
Chinese Human Rights Defenders. Mais da metade dos 24 milhões de habitantes da região
pertence a grupos minoritários étnicos muçulmanos.
As estatísticas oficiais mostram que, entre 2015 e 2018, as taxas líquidas combinadas de
crescimento populacional de Hotan e Kashgar, duas das maiores cidades de Xinjiang,
caíram 84%. Centenas de milhares de uigures desapareceram nos últimos anos - o que
significa dizer que a China está realizando nesse momento o maior genocídio racial da
nossa geração.
Por toda a região, muçulmanos são forçados a trabalhar em um esquema lucrativo apenas
para as centenas de empresas chinesas que recebem próximo de 250 dólares por detento
que treinam e mais 700 dólares para cada detento que empregam.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, caracteriza-se trabalho forçado, abre
aspas, “todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer
penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”.
Identificar qual o tamanho dessa violência é um desafio. Muitas das ferramentas tradicionais
que as empresas utilizam, como auditorias trabalhistas, mascaram a realidade. ONGs e
jornalistas, por sua vez, também não podem realizar pesquisas aprofundadas de campo
devido ao controle estatal.
Embora pesquisas não tenham descoberto relação direta entre qualquer multinacional e os
campos de concentração, há relações indiretas com a exploração.
No topo da lista das empresas que merecem atenção está a alemã Siemens, que colabora
ativamente com a China Electronics Technology Group, uma empresa estatal militar que
desenvolveu o aplicativo de policiamento usado em Xinjiang.
Outra companhia que merece destaque é a espanhola Telefónica, que possui uma joint
venture com a China Unicom, que usa big data para rastrear pessoas em Xinjiang.
Há meses, o Congresso dos Estados Unidos discute uma legislação para condenar os
abusos humanitários na região. No final de 2019, a Casa Branca proibiu a importação de
produtos fabricados por uma empresa chinesa de Xinjiang por causa do uso de trabalho
forçado e criou uma lista negra com 28 entidades por seu papel na repressão aos uigures.
Após o processo, com medo de perder mercado nos Estados Unidos, duas empresas
australianas anunciaram que estão encerrando parceria com um fornecedor de algodão da
região.
Por todo o país, vigilância e violência são ameaças perturbadoramente presentes - inclusive
neste espaço em que você está agora: a internet.
Com 854 milhões de usuários conectados, a população virtual chinesa é duas vezes e meia
maior que toda a população dos Estados Unidos. Mas para a maioria dessas pessoas, os
sites mais populares do mundo não são facilmente acessíveis graças a um sofisticado
sistema, responsável pelo maior programa de censura da história da humanidade: o Grande
Firewall da China.
Facebook, Twitter, Instagram, Youtube, Snapchat, Tumblr, Pinterest e Reddit são proibidos.
Serviços como Gmail, Dropbox, Blogspot, Google Docs, Twitch, Medium, SoundCloud,
Goodreads e Flickr estão bloqueados. Assim como acesso aos domínios de organizações
de direitos humanos como o da Anistia Internacional, da Repórteres sem Fronteiras, da
Freedom House e da Human Rights Watch.
Dos veículos de informação, praticamente ninguém escapa: BBC, The New York Times, El
País, The Intercept, Reuters, The Guardian, HuffPost, Le Monde, The Economist,
Washington Post. Todos censurados.
Há um deserto virtual irreconhecível a qualquer figura com acesso à internet fora da China.
Como fazer para driblar o bloqueio? Se associando a uma Rede Privada Virtual -
popularmente conhecida como VPN, um software que permite a um usuário disfarçar o seu
endereço IP e contornar a censura. Por óbvio, apelar para essa estratégia é ilegal. E não
são muitos os chineses dispostos a correr o risco.
A ausência de aplicativos e sites internacionais incentivou o desenvolvimento e a adoção de
alternativas nacionais. O bloqueio do Facebook e do WhatsApp, por exemplo, permitiu o
crescimento do WeChat. A proibição da Wikipédia e do Google, por sua vez, levou à criação
do Baidu.
Depois que um meme comparando o Ursinho Pooh a Xi Jinping se tornou viral nas redes
sociais chinesas, as autoridades baniram imagens e menções ao desenho animado. Pelo
mesmo motivo, o filme Christopher Robin, produzido em 2018, teve o lançamento proibido
no país.
Segundo a Freedom House, a internet chinesa é, abre aspas, "a mais controlada, mais
opressiva e menos livre do mundo". Em 2018, apenas o Baidu, o maior motor de buscas do
país, relatou a exclusão do seu mecanismo de pesquisa de mais de 50 bilhões de itens de
informações consideradas prejudiciais na visão do partido.
Também há censura sistemática de conteúdo que viola tabus de longa data, como a
Revolução Cultural, a independência de Taiwan, os campos de concentração em Xinjiang, o
domínio sobre o Tibet ou o grupo espiritual proibido Falun Gong.
Os censores virtuais ganham entre US$ 350 a US$ 500 por mês. Cada contratado tem a
missão de revisar entre mil a duas mil páginas durante um turno, e cada página deve ser
aprovada ou rejeitada dentro de uma hora. Diferentemente dos empregados das fábricas de
suor, os censores não têm longas horas de trabalho exatamente porque o cansaço pode
prejudicar a precisão das decisões.
Quando uma página está cheia de palavras com códigos de cores, geralmente exige uma
análise mais detalhada dos censores. Em geral, palavras politicamente sensíveis compõem
um terço do total das expressões proibidas, seguidas por palavras relacionadas à
pornografia, prostituição e jogos de azar.
A alcunha faz referência a uma reportagem do Global Times, um veículo estatal chinês, de
que os comentaristas recebem cinquenta centavos de renminbi por post.
No país, sites e contas nas redes sociais que não sejam operados por agências de notícias
oficiais não têm permissão legal para relatar notícias. Para o partido, a informação é um
instrumento de poder e o "jornalismo" é abertamente uma arma da revolução.
Há cerca de 1.900 jornais no país. Cada cidade tem seu próprio título, mas as páginas são
geralmente publicadas pelos próprios governos regionais.
O controle é absoluto.
Desde 2013, todos os jornalistas chineses devem ser filiados ao Partido Comunista.
Quem desobedece as orientações do partido pode sofrer duras punições. Nesse momento,
mais de 120 jornalistas e blogueiros estão detidos em condições desumanas nas prisões
chinesas. Nenhum governo aprisiona tantos jornalistas no mundo.
Coerentemente, muitas obras de arte também sofrem censura pelo partido: livros, músicas,
filmes, quadros. De Lady Gaga a Andy Warhol.
E ela não é uma exceção para o partido. A China detém o recorde das cinco cidades mais
monitoradas do planeta. São 628 milhões de câmeras espalhadas de Beijing a Xinjiang. Até
2022, a previsão é ter uma câmera para cada dois habitantes.
Em 2018, a China gastou mais de US$ 20 bilhões apenas com a compra de câmeras e
equipamentos de vigilância - o equivalente à metade do tamanho do mercado global.
Mao Tsé Tung, o Grande Timoneiro, inventou o mecanismo com o objetivo de fortalecer o
poder de seu partido.
Nas primeiras décadas, sem tecnologia disponível, a vigilância era aplicada através da
disseminação de informações boca a boca. Cada cidadão chinês era responsável por
monitorar outro cidadão chinês, condenando comportamentos inapropriados aos ideais
socialistas.
Como diz a Human Rights Watch, o que estamos vendo nesse momento é uma corrida
contra "a privacidade entre os departamentos policiais da China, com cada um deles
reivindicando ser o melhor e mais inovador na realização de vigilância em massa e controle
social".
Outra iniciativa, conhecida como "Pássaro Espião", utiliza drones semelhantes a pássaros
para monitorar multidões do céu. As aves robóticas são equipadas com câmeras de alta
resolução para espionar secretamente dezenas de milhares de pessoas.
Desde a década de 1950, pouco depois da ascensão de Mao ao poder, o sistema dang'an
(档案) compilou dossiês de informações pessoais, permitindo que, por décadas, o governo
mantivesse ativamente registros de seus cidadãos para estabelecer controle social.
A evolução do modelo veio novamente com a tecnologia.
A China criou o sistema como um programa piloto em 2010, mas passou a implementar a
construção de um sistema nacional de crédito social apenas em 2014.
"Se as pessoas mantiverem suas promessas, poderão ir a qualquer lugar do mundo", diz
um documento do governo. "Se as pessoas quebrarem suas promessas, não serão capazes
de se mexer nem um centímetro".
Em vias gerais, nesse jogo distópico, uma pontuação alta de crédito social oferece aos
chineses uma série de pequenas vantagens. Os indivíduos-modelo - ou seja, aqueles que
melhor se comportam dentro dos padrões estabelecidos pelo partido - recebem benefícios
como descontos em contas de energia, melhores ofertas de passagens aéreas, tratamento
VIP em aeroportos, melhor posição em filas de emprego e maior visibilidade em sites de
namoro.
Ao comprar fraldas para um bebê, por exemplo - algo que sugere responsabilidade sua com
as crianças - os seus pontos aumentam. Mas ao comprar álcool em excesso, eles derretem.
Joga online? Se você não trapaceia ganhará alguns pontos por isso, mas se passar mais de
10 horas por dia na frente de um computador, sua classificação diminuirá. E com uma
pontuação baixa, o governo terá autonomia para diminuir a velocidade da sua internet.
Pais com bom score tem maiores probabilidades de ingressar seus filhos em escolas de
referência, que por sua vez estão indisponíveis para pais com baixa pontuação.
Até o final de 2018, num curto espaço de tempo, os tribunais chineses proibiram mais de 17
milhões de pessoas de adquirirem passagens aéreas e outras mais de 5 milhões de
comprarem bilhetes de trem. Essas pessoas literalmente entraram numa lista negra.
Como conta a revista Time, em certas áreas da China, ao ligar para um desses pobres
indivíduos condenados pelo sistema social, um chinês pode ouvir uma sirene tocando e
uma mensagem gravada dizendo: “Atenção, essa pessoa está na lista negra. Tenha
cuidado e peça-lhe que pague suas dívidas”.