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FUNDAMENTOS E

METODOLOGIAS DA
LÍNGUA PORTUGUESA

Roberta Spessato
Letramento como
prática social
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Refletir a respeito da história dos estudos sobre letramento.


 Analisar o conceito de letramento na área dos novos estudos sobre
letramento.
 Relacionar letramento e alfabetização.

Introdução
Letramento e alfabetização, embora mantenham uma relação bastante
íntima, são dois conceitos distintos. Enquanto o letramento é complexo
e abrangente, a alfabetização representa um processo mais mecânico.
Neste capítulo, inicialmente, você vai conhecer a história dos estudos
sobre letramento. Em seguida, vai ver como o conceito de letramento é
utilizado em diferentes áreas. Por fim, vai verificar quais são as distinções
entre letramento e alfabetização.

1 A educação e o letramento no Brasil


Desde o início da sua colonização, o Brasil passou por diferentes fases edu-
cacionais. No entanto, segundo Ramos (2001), a educação, em todos os seus
níveis, foi e continua sendo caracterizada por certo elitismo e pela exclusão de
crianças e jovens oriundos de classes populares. Paiva (1983) afirma que, ainda
na época da colonização, quando a educação era dominada pelos jesuítas, o
ensino direcionava-se aos filhos de colonos brancos e de caciques indígenas.
Ou seja, à população negra, aos escravos, não se permitia o estudo.
2 Letramento como prática social

A aprendizagem daqueles que eram vistos como inferiores acontecia por


meio de sermões, com o objetivo de ensiná-los a praticar a moral cristã. Para
Ribeiro (1982), esse sistema garantia o domínio social, cultural e econômico de
uma minoria letrada, o que atendia aos interesses tanto da elite colonizadora
quanto do Império Português.

Do descobrimento ao conceito de letramento


O Brasil foi descoberto no século XV, no ano de 1500, por Pedro Álvares
Cabral, e a estrutura educacional brasileira não sofreu grandes modificações
entre os séculos XV e XVIII. De acordo com Ramos (2001), a primeira ten-
tativa de mudança no quadro educacional ocorreu devido à ascensão do ciclo
econômico da mineração e ao surgimento da classe média e de um mercado
interno brasileiro.
Essas transformações, como pontua Ribeiro (1982), provocaram a expulsão
dos jesuítas, em 1759, e inauguraram o ensino público primário. No entanto,
somente após 1808, com a vinda da família real ao Brasil, surgiu a ideia de
instaurar um sistema nacional de educação completo, composto de escolas
primárias (gratuitas), de ginásios (equivalentes ao ensino médio) e de uni-
versidades. Embora aparentemente tenha existido um avanço educacional no
País, a educação era para poucos. Apenas tinham acesso a ela pessoas ligadas
à coroa portuguesa ou que faziam parte da elite intelectual e social branca.
Décadas se passaram, e a educação continuou a ser para poucos. Apenas
indivíduos brancos e socialmente superiores tinham a possibilidade de estu-
dar no Brasil. Desse modo, mesmo com as inúmeras reformas educacionais
realizadas após 1808, não houve nenhum resultado significativo, como afirma
Ramos (2001, p. 5): “Em 1890, o percentual de analfabetos no Brasil era de
85%, baixando para 75% na década seguinte. Em 1929, mais da metade (65%)
da população brasileira de 15 anos ou mais havia sido excluída da escola”.
A necessidade de proteger a ordem social era um dos principais motivos
de não viabilizar o acesso educacional à população menos favorecida. No
entanto, com o desenvolvimento da sociedade urbana, comercial e industrial,
o analfabetismo passou a ser um grande problema.
No início do século XX, o crescimento populacional nos grandes cen-
tros urbanos, unido à violência, acentuou a necessidade de controle social e
acarretou um “novo” modelo educacional, o qual se baseava em um discurso
filantrópico sobre acabar com a pobreza. A educação como forma de progresso,
para Ramos (2001), não teve como objetivo melhorar a situação social do povo
brasileiro, e sim preparar mão de obra qualificada para servir à elite. Dessa
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maneira, a educação das crianças de classes populares continuou a limitar-se


a uma preparação para o trabalho e ao adestramento em ofícios manuais, em
substituição à educação formal.
Em 1937, segundo Ramos (2001), instituiu-se o ensino profissional, des-
tinado às classes mais populares e direcionado à formação de mão de obra
para a indústria e para o comércio. Inclusive, nessa mesma época, surgiram
as escolas técnicas federais, os cursos do Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (Senai) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac),
etc. Realmente, é inquestionável que houve um avanço e uma nova perspectiva
para a classe trabalhadora urbana, contudo sempre dentro dos seus limites
de classe.
Entre 1945 e 1964, o Estado e a educação brasileira foram marcados pelo
ideário político populista. Segundo Ramos (2001), essa fase se caracterizou
por uma significativa queda no percentual de analfabetos, pela expansão da
escolaridade básica e por campanhas de alfabetização de adolescentes e adultos.
Além disso, o método de Paulo Freire começou a emergir na alfabetização de
adultos. Pela primeira vez na história da alfabetização, começou-se a analisar o
ensino a partir do universo vocabular do aluno, e não da imposição de palavras
alheias ao seu vocabulário. A ideia era utilizar uma visão antropológica de
cultura unida à alfabetização.
No entanto, durante a ditadura militar, de 1964 a 1985, ocorreu um processo
paradoxal na educação brasileira. Investiu-se no ensino técnico (para formar
mais mão de obra) e na educação de jovens e adultos, já que a taxa de anal-
fabetismo ainda era muito significativa. Contudo, não se buscava indivíduos
pensantes, mas apenas reprodutores de conhecimento.
Portanto, com a expansão da alfabetização, as práticas escolares de leitura
e de escrita enfatizavam o processo de “decodificação”, baseando-se em
cartilhas. As cartilhas ensinavam os alunos a desmontar palavras em sílabas
e sílabas em letras, para depois montar outras palavras, e assim por diante. Na
verdade, acreditava-se que as pessoas apenas precisavam aprender a ler e a
escrever; não era necessário que elas refletissem sobre o que liam ou escreviam.
Cagliari (1999) define o processo de decodificação como uma forma de
adestramento, o que acarreta defasagens na aprendizagem. Além disso, afirma
que o uso de cartilhas é ineficaz para o ensino e a aprendizagem. Veja:

A maneira como as cartilhas lidam com a fala e a escrita confunde as crianças


uma vez que passa a ideia de que a linguagem é uma “soma de tijolinhos”
representados pelas sílabas e unidades geradoras. Ora, as crianças aprende-
ram a falar de outra maneira e, portanto, para elas a linguagem apresenta-se
4 Letramento como prática social

como um todo organizado de maneira muito diversa daquela que a escola lhes
mostra. No fundo, as cartilhas deixam de lado toda a trama da linguagem,
ficando apenas com o que há de mais superficial (CAGLIARI, 1999, p. 82).

Somente com o fim da ditadura e com a redemocratização brasileira é que


a alfabetização passou a ser estudada com um viés mais crítico e analítico.
Assim, em meados da década de 1980, a palavra “letramento” aparece pela
primeira vez no livro de Mary Kato intitulado No mundo da escrita: uma
perspectiva psicolinguística, de 1986. A noção de letramento surgiu por uma
necessidade educacional e social, pois a partir dela a metamorfose educacional
e social teve início. É o que afirma Tfouni (2002, p. 23):

Em termos sociais mais amplos, o letramento é apontado como sendo produto


do desenvolvimento do comércio, da diversificação dos meios de produção e
da complexidade crescente da agricultura. Ao mesmo tempo, dentro de uma
visão dialética, torna-se uma causa de transformações históricas profundas,
como o aparecimento da máquina a vapor, da imprensa, do telescópio e da
sociedade industrial como um todo.

A inclusão desse novo conceito ao vocabulário educacional-científico


foi o grande indicador de uma transformação educacional. Na óptica de
Soares (2004), o nascimento dessa terminologia foi um dos reflexos das
mudanças nas práticas sociais da educação brasileira: as novas demandas
sociais de uso da leitura e da escrita careciam de uma nova palavra para
denominá-las.

O letramento e o seu papel de transformação social


As transformações nas políticas públicas se refletiram também na análise do
nível educacional que o Brasil possuía. Portanto, em 1990, criou-se o Sistema
de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e, pela primeira vez na história da
educação brasileira, houve um exame avaliativo para se verificar como estava
o nível de leitura e de escrita dos alunos do ensino básico.
Os resultados desse exame apontaram para um nível muito abaixo do
esperado. Os indivíduos alfabetizados, embora soubessem ler e escrever, não
tinham necessariamente domínio da leitura e da escrita; ou seja, verificou-se
que ser alfabetizado não era sinônimo de ser letrado. Para Soares (2004),
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alguém que saiba escrever ou ler qualquer palavra sem a noção do seu signi-
ficado não é um ser crítico. De acordo com a autora, “O indivíduo letrado,
o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler
e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a
leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e
de escrita” (SOARES, 2004, p. 40).
Nesse contexto, surgiram discussões e reflexões teórico-metodológicas
acerca do conceito de letramento. A distinção entre letramento e alfabetiza-
ção começou a ser estudada e enaltecida, pois a noção de que a leitura é a
principal ferramenta para a criticidade social passou a fazer parte do sistema
educacional brasileiro.
Mendonça (2011), baseando-se em Araújo (1996), divide a história da
alfabetização em três períodos, que você pode relacionar com tudo o que já
leu até aqui. Veja a seguir.

1. Antiguidade e Idade Média: predomínio do método da soletração.


2. Do século XVI até a década de 1980: reação contra o método da
soletração. Criação de novos métodos sintéticos e analíticos. Nesse
segundo período, houve a criação de cartilhas, as quais foram utilizadas
para a alfabetização de crianças, jovens e adultos.
3. A partir de meados da década de 1980: questionamento e refutação
da necessidade de associar os sinais gráficos da escrita aos sons da
fala para aprender a ler. O início dessa fase está ligado ao surgimento
do letramento.

A partir do letramento, questionamentos sobre a função social da leitura


e da escrita surgiram e se conjugaram em uma nova fase educacional bra-
sileira. Mendonça (2011) afirma que o letramento baseia-se num trabalho
que parte da realidade do aluno e que valoriza a sua oralidade por meio
do diálogo. Dessa forma, para atingir o letramento, é necessário abordar
conteúdos específicos da alfabetização e utilizar estratégias adequadas às
hipóteses dos níveis descritos na psicogênese da língua escrita. Como apoio,
a autora recomenda a leitura de textos de qualidade, de diferentes gêneros,
assim como a interpretação e a produção textual. Com essas estratégias, é
possível desenvolver a alfabetização aliada à função social da língua materna,
atingindo o letramento.
6 Letramento como prática social

O desenvolvimento do pensamento para a investigação, a compreensão de fenômenos


e a resolução de problemas caracteriza o letramento científico. A prova do Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem), por exemplo, contempla cinco eixos cognitivos
(BRASIL, [2020]):
1. dominar linguagens;
2. compreender fenômenos;
3. enfrentar situações-problema;
4. construir argumentação;
5. elaborar propostas.
Cada eixo corresponde à capacidade do aluno e ao seu conhecimento científico
para resolver as questões da avaliação. Ou seja, não há uma relação de “decoreba”, mas
de assimilação de conhecimento para determinados contextos. Afinal, as questões
envolvem a necessidade de compreender e de tomar decisões sobre o mundo natural
e as mudanças nele ocorridas.

2 As diferentes manifestações do letramento


Ler não significa apenas decodificar algo que está escrito. O ato da leitura
pode ocorrer em diferentes situações e contextos sociais, sejam eles orais ou
escritos. Perceber a leitura e a escrita como práticas de consciência social é
uma das representações do letramento. Ou seja, o indivíduo se apropria da
escrita a fim de ser um cidadão crítico capaz de interagir em diferentes con-
textos sociocomunicativos, e não apenas na escola. Saber ler e escrever não
significa ser letrado, apenas ser alfabetizado. Segundo Cagliari (1999, p. 104),
“[...] alfabetizar é ensinar a ler e a escrever [...] O segredo da alfabetização é a
leitura”. O autor ainda enfatiza que, no processo de alfabetização, é essencial
que o aluno, após aprender a decifrar aquilo que está escrito, consiga escrever
para significar o conhecimento adquirido.
Para Soares (2004) e Rojo (2009), o termo “letrado” designa um domínio,
uma apropriação da leitura e da escrita. Ou seja, com o letramento, o usuário
da língua ultrapassa o conceito de alfabetização e usa o idioma como objeto
de ampliação de práticas sociais. Dessa forma, as autoras acreditam que,
embora haja um contínuo entre alfabetização e letramento, é fundamental que
a alfabetização não aconteça individualmente, sem o letramento.
Letramento como prática social 7

Letramento autônomo e letramento ideológico


O letramento tem como objetivo preparar o sujeito para usar a leitura e a escrita
como práticas sociais. Ou seja, por meio do letramento, o usuário da língua
se capacita para ocupar o seu espaço na sociedade. Os estudos de Marcuschi
(2001) abordam duas concepções de letramento: o letramento autônomo e o
letramento ideológico.
O letramento autônomo relaciona-se, principalmente, a questões técni-
cas, já o letramento ideológico se vincula a tópicos sociais. O letramento
autônomo ignora os aspectos contextuais das práticas e enaltece os aspectos
formais da língua. Ou seja, ele não acredita que a leitura contextual oral se
classifique como uma forma de letramento. Para Street (1993), esse modelo
é mais praticado na literatura acadêmica e aparece, de maneira implícita,
em programas de práticas de letramento. Além disso, para o autor, esse
tipo de letramento não depende de qualquer contexto social, pois depende
apenas do indivíduo.
O letramento autônomo é composto por características bastante específicas.
A seguir, veja algumas delas.

 A ausência de letramento está relacionada com o atraso, a incivilidade.


 O letramento está relacionado com a modernidade e o progresso.
 Nesse modelo, mesmo com o reconhecimento de formas não padrão,
há uma valorização da norma culta.
 O letramento é algo que o indivíduo tem ou não tem, pois não é uma
prática social, mas algo inerente ao usuário da língua.
 No letramento autônomo, há um enaltecimento da língua escrita, pois
se acredita que por meio da leitura e da escrita é possível transformar
as estruturas mentais.
 Nessa visão, letramento e oralidade são fundamentalmente diferentes,
sendo que o letramento é superior à oralidade; enquanto o letramento
dá poder, a oralidade limita.

Por outro lado, segundo Kleiman (1995), o letramento ideológico entende


que o falante letrado usa a leitura e a escrita não apenas com o intuito de
decodificar signos linguísticos, e sim para compreender diferentes esferas
sociais, ressignificar-se como indivíduo e atuar como agente ativo na sociedade
em que se insere.
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O letramento ideológico apresenta diferentes manifestações, associadas


com diferentes domínios da vida. As práticas de letramento variam de acordo
com o contexto de uso. Ou seja, as práticas de linguagem baseiam-se em
estruturas sociais e têm diferentes propósitos, os quais refletem práticas
sociais mais amplas.
As práticas de letramento não são homogêneas e muito menos estáticas,
pois elas mudam. Novas práticas são frequentemente adquiridas por meio de
processos de aprendizagem informal e da construção de sentido. O letramento
ideológico é composto por características bastante específicas. A seguir, veja
algumas delas.

 Esse tipo de letramento compreende que a sociedade faz parte da sig-


nificação do indivíduo.
 As práticas particulares e as concepções de leitura e escrita dependem
do contexto situacional, portanto não podem ser desvinculadas ou
tratadas como neutras ou meramente técnicas.
 A natureza do letramento define-se em função da maneira como, em
dado contexto social, as atividades de leitura e escrita são concebidas
e praticadas.
 Os usos da escrita em um contexto específico têm relação estreita
com processos sociais mais amplos que procuram transmitir valores,
crenças e tradições.

No letramento autônomo, há uma concepção conhecida como “a grande divisão”.


Nessa perspectiva, a oralidade e o letramento são fundamentalmente diferentes: o
letramento é encarado como sinal de progresso e de modernidade, o que não acontece
com a oralidade. Ou seja, a ausência de letramento está relacionada com atraso e
incivilidade. Portanto, nessa visão, o letramento é superior à oralidade. Além disso, o
letramento confere poderes cognitivos aos usuários; já a oralidade, não.

Eventos e práticas de letramento


Há um contraste entre eventos e práticas de letramento. Os eventos de letra-
mento englobam os elementos mais analíticos de atividades que envolvem a
leitura e a escrita em determinado momento. Já a acepção de práticas de letra-
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mento não se relaciona à situação imediata, mas busca analisar o significado


que os indivíduos atribuem à escrita e à leitura nos eventos em que atuam.
Lopes (2004, p. 46), baseando-se em Heath (1982), afirma que o evento de
letramento é definido como “[...] qualquer ocasião em que uma peça escrita
integra a natureza das interações dos participantes e seus processos interpre-
tativos”. Ou seja, os eventos de letramento processam-se conforme as regras
tacitamente estabelecidas e podem se desenvolver numa sequência de ações,
envolvendo apenas uma pessoa ou um grupo delas para elaborar uma peça
escrita ou para ler alguma previamente produzida. Lopes (2004) ainda ressalta
que as formas como os eventos acontecem nem sempre são idênticas, já que
cada evento tem as suas características próprias.
A noção de práticas de letramento refere-se à maneira culturalmente
absorvida por um grupo social para fazer uso da língua escrita. Para Lopes
(2004, p. 47), “[...] o comportamento adotado mediante esses usos é que
vai revelar as concepções, valores e crenças constituídas em uma cultura,
frente à escrita e, assim, os sentidos que faz esse recurso comunicativo num
dado contexto”. Portanto, a prática de letramento organiza-se por meio da
análise das unidades abstratas que possibilitam a interpretação daquilo que
é observável no evento.

Os novos estudos do letramento


A sociedade está em constante mudança, assim como a língua. Se a sociedade
e a língua mudam, além de aprofundar os estudos sobre a concepção de le-
tramento, é necessário compreender que novos gêneros e discursos também
surgem.
Com a evolução da tecnologia e com o avanço da comunicação, para Rojo
(2012) e Baptista (2016), duas novas visões teóricas entram em cena: letramentos
múltiplos e multiletramentos. Embora as nomenclaturas se pareçam, trata-se
de duas diferentes concepções.
A noção de letramentos múltiplos compreende a manifestação da multi-
plicidade de práticas de letramento envolvendo a leitura e a escrita. Tal noção
recupera abordagens de gêneros do discurso e interroga o nascimento desses
gêneros nos espaços digitais. Por outro lado, a concepção de multiletramentos
refere-se à multiplicidade de linguagens, não de gêneros. Isso ocorre porque
os usuários da língua, hoje, leem por meio de várias modalidades além das
tradicionais, usando desde imagens até emojis.
Mesmo que se trate de duas novas perspectivas, elas não se anulam; pelo
contrário. Enquanto na primeira perspectiva é possível perceber o papel dos
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diferentes gêneros textuais e o seu uso social, na segunda, “multi” representa


as diferentes manifestações linguísticas que uma língua pode desenvolver.
Como você pode notar, há muitos fatores que participam do processo
de ensino e aprendizagem de uma língua. Ou seja, quando o indivíduo se
apropria das diferentes manifestações linguísticas e as utiliza socialmente,
ele já pode ser considerado um indivíduo letrado, não apenas alfabetizado. É
papel do professor e da escola prepará-lo para situações tanto formais quanto
informais com o uso da língua. O docente deve ter como principal objetivo
fazer com que os alunos sejam seres ativos e críticos na sociedade, usufruindo
da linguagem em diferentes contextos sociointeracionais.

3 Letramento e alfabetização
A leitura sempre é feita no sentido de decodificar e compreender um texto,
certo? Dessa forma, o ato de ler ultrapassa as letras e a escrita, porque um
texto, além de manifestar-se de maneira oral ou escrita, pode ser verbal, não
verbal ou misto. Ou seja, um texto é, simplesmente, a concretização de uma
mensagem.
Para que qualquer ato comunicativo atinja o seu objetivo, é necessária uma
leitura textual. A leitura não obtém sucesso se a sintonia entre os interlocutores
não for estabelecida, já que o ato da leitura prevê que um autor/enunciador, ao
falar/escrever, constrói seu discurso em função de um ouvinte/leitor.
Portanto, a leitura representa uma atividade dialógica interacional depen-
dente de um contexto social. De acordo com Bakhtin (2003, p. 323), “[...] as
relações dialógicas são relações (semânticas) entre toda espécie de enuncia-
dos na comunicação discursiva. Dois enunciados, quaisquer que sejam, se
confrontados em um plano de sentido, acabam em relação dialógica”. Desse
modo, o ato de ler não simboliza somente a decodificação de palavras, mas a
assimilação do sentido e do valor que essas palavras carregam num contexto
social e comunicativo.
Por meio da leitura, as pessoas desenvolvem a sua capacidade reflexiva
em distintas esferas sociais. No entanto, saber decodificar signos linguísticos
ou sentenças não assegura que a pessoa seja letrada, apenas atesta que ela é
alfabetizada. O ato de ler não é diretamente proporcional ao ato de decodificar,
já que representa um movimento que proporciona a compreensão do indivíduo
como elemento principal da sua existência numa determinada situação. Na
visão de Freire (2009, p. 11), o ato de ler “[...] não se esgota na decodificação
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pura da palavra escrita ou da linguagem escrita”, pois “[...] a leitura do mundo


precede a leitura da palavra”.
Ser letrado não é sinônimo de ser alfabetizado ou escolarizado. O exame do
Saeb é prova disso. Todos os alunos que fizeram a avaliação eram escolarizados
e alfabetizados, mas não necessariamente eram letrados. Na óptica de Mortatti
(2004), o sujeito alfabetizado e escolarizado não será necessariamente letrado;
no entanto, ninguém atinge o letramento sem ser alfabetizado e escolarizado.
Para a autora, “[...] a alfabetização e a escolarização, bem como a disponibi-
lidade de uma diversidade de material escrito e impresso, em nosso contexto
atual, são condições necessárias, mas não suficientes, para o letramento”;
além disso, “[...] somente o fato de ser alfabetizada não garante que a pessoa
seja letrada” (MORTATTI, 2004, p. 107-108).
Embora a escolarização seja o principal meio de se obter o letramento, nem
sempre é possível viabilizá-lo. Enquanto países mais pobres seguem lutando
pela educação e por uma comunidade mais letrada e crítica, há países ricos
que podem não ter o problema do analfabetismo, mas carregam consigo uma
quantidade de pessoas que não usam a leitura como forma de significação
social. De acordo com Ferreiro (2002), quando a pessoa é alfabetizada mas
não é letrada, ela é conhecida como “iletrada”. O iletrismo está presente em
todos os tipos de sociedade, como você pode ver a seguir:

Os países pobres não superaram o analfabetismo, os ricos descobriram o


iletrismo. [...] Iletrismo é o novo nome dado a uma realidade muito simples:
a escolaridade básica universal não assegura a prática cotidiana da leitura,
nem o gosto de ler, muito menos o prazer da leitura. Ou seja, há países que
têm analfabetos (porque não asseguram um mínimo de escolaridade básica
a todos seus habitantes) e países que têm iletrados (porque, apesar de terem
assegurado esse mínimo de escolaridade básica, não produziram leitores em
sentido pleno) (FERREIRO, 2002, p. 16).

A conceituação de letramento é muito mais profunda e analítica do que a


de alfabetização. Na alfabetização, o objetivo revela-se na decodificação de
signos linguísticos; por outro lado, no letramento, há uma visão minuciosa em
relação ao uso social da língua. A leitura e a escrita atingem a compreensão
ao fazerem parte do processo de significação do indivíduo. Caso a leitura
e a escrita façam sentido para o sujeito, ele é letrado; senão, ele é apenas
alfabetizado.
Como destaca Kleiman (1995, p. 20), o “[...] fenômeno do letramento, então,
extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se
encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita”. Ser
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letrado representa poder transitar com a linguagem em inúmeros contextos


sociais e ser capaz de produzir textos de diferentes níveis segundo a necessidade
contextual. Como afirma Ferreiro (2002, p. 16), ser letrado é:

[...] poder transitar com eficiência e sem temor numa intrincada trama de
práticas sociais ligadas à escrita. Ou seja, trata-se de produzir textos nos
suportes que a cultura define como adequados para as diferentes práticas,
interpretar textos de variados graus de dificuldade em virtude de propósitos
igualmente variados, buscar e obter diversos tipos de dados em papel ou tela
e também, não se pode esquecer, apreciar a beleza e a inteligência de um
certo modo de composição, de um certo ordenamento peculiar das palavras
que encerra a beleza da obra literária.

Na óptica de Tfouni (2002, p. 20), “[...] enquanto a alfabetização se ocupa


da aprendizagem da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o
letramento focaliza os aspectos socio-históricos da aquisição de um sistema
escrito por uma sociedade”. Ou seja, o sujeito utiliza o conhecimento auto-
matizado da leitura e da escrita com o objetivo de apropriar-se da linguagem
como mecanismo de assimilação e interação a fim de participar de diferentes
contextos comunicativos ativamente.
Na visão de Lopes (2004), a alfabetização e o letramento relacionam-se
ao domínio da escrita. Contudo, a interpretação do vocábulo “domínio” é o
que diferencia esses conceitos: a alfabetização refere-se à aquisição formal da
escrita; já o letramento diz respeito à habilidade de proceder diante de con-
textos situacionais que envolvem e têm como referência a escrita. Em síntese,
como você viu, há uma linha tênue entre a alfabetização e o letramento, pois
não existe letramento sem alfabetização. Ou seja, por mais que se busque o
letramento, a alfabetização integra esse processo.

Leia o artigo de Katlen Böhm Grando “O letramento a partir de uma perspectiva


teórica: origem do termo, conceituação e relações com a escolarização”, disponível
no link a seguir.

https://qrgo.page.link/iDUVF
Letramento como prática social 13

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SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2004.
STREET, B. V. Cross-cultural approaches to literacy. Cambridge: Cambridge University, 1993.
TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2002.

Leituras recomendadas
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Le-
tramento científico. Brasília, DF, 2010. Disponível em: http://download.inep.gov.br/
download/internacional/pisa/2010/letramento_cientifico.pdf. Acesso em: 26 fev. 2020.
SOARES, M. B. Alfabetização e letramento. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2003.

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