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27/09/2021 22:44 Envio | Revista dos Tribunais

A desjudicialização da execução civil: projetos legislativos em andamento

A DESJUDICIALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO CIVIL: PROJETOS LEGISLATIVOS EM


ANDAMENTO
The desjudicialization of civil execution: pending bills in progress
Revista de Processo | vol. 313/2021 | p. 153 - 163 | Mar / 2021
DTR\2021\1912

Humberto Theodoro Júnior


Doutor em Direito pela UFMG. Professor Titular Aposentado da Faculdade de Direito da UFMG. Membro
da Academia Mineira de Letras Jurídicas, da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, do Instituto dos
Advogados de Minas Gerais, do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, do Instituto Brasileiro
de Direito Processual, do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual e da International Association
of Procedural Law. Desembargador Aposentado do TJMG. Advogado. aniger@htj.adv.br
 
Área do Direito: Civil; Processual; Tributário
Resumo: Com base em interessantes dados do direito estrangeiro e em uma visão lúcida do que já se
passa no nosso país, o autor propõe uma ampla desjudicialização da execução civil e fiscal. Conclui no
sentido de não haver inconstitucionalidade nesses regimes.
 
Palavras-chave:  Execução – Execução desjudicializada – Execução fiscal – Modelo francês – Modelo
português – Regras da UE
Abstract: Based on interesting data of comparative law the author defends that enforcements should
not take place before the Judiciary. Furthermore, there is, in this, no unconstitutionality.
 
Keywords:  Enforcement – Desjudicialized enforcement – Tax enforcement – French model –
Portuguese model – EU rules
Para citar este artigo: Theodoro Júnior, Humberto. A desjudicialização da execução civil: projetos
legislativos em andamento.Revista de Processo. vol. 313. ano 46. p. 153-163. São Paulo: Ed. RT, março
2021. Disponível em: inserir link consultado. Acesso em: DD.MM.AAAA.
Sumário:
 
1.Introdução - 2.Alguma coisa sobre o modelo francês - 3.Alguma coisa sobre o modelo português -
4.Diretivas da Comunidade Europeia - 5.A desjudicialização parcial da execução já presente no direito
brasileiro - 6.A resistência à ampla desjudicialização da execução civil e da execução fiscal -
7.Inocorrência de inconstitucionalidade na execução desjudicializada - 8.Conclusões
 
1.Introdução
Na preocupação de modernizar e compatibilizar as ações coletivas com a funcionalidade e eficiência que
o processo justo exige da prestação jurisdicional, o Anteprojeto preparado pelo CNJ contém, em seu
art.  29, §  2º, uma conclamação para o aprimoramento da sentença, que nas ações coletivas não só
será, em regra, líquida e minuciosa, mas também preparada para execução processada
preferencialmente de modo desjudicializado.
Não é novidade alguma que mundialmente se nota a tendência de desburocratizar o cumprimento das
sentenças judiciais, com especial destaque para a sua desjudicialização. Lembre-se, para registrar
apenas os mais recentes e relevantes exemplos da matéria, os novíssimos Código de Processo Civil de
Portugal, de 2013, e Código de Processo Civil de Execução da França, de 2011, além das diretivas da
Comissão Europeia de 2000 e 2003 (Regulamento CE 44/2001 e Recomendação 17/2003).
No Brasil, estão na ordem do dia os debates sobre os projetos legislativos de desjudicialização da
execução civil e da execução fiscal. O tema torna-se mais atual em razão do destaque que lhe deram as
duas recentes codificações editadas na França e em Portugal – o Code de Procedures Civiles d’exécution
francês, de 2011, e o novo Código de Processo Civil de Portugal, de 2013, além das diretivas da
Comissão Europeia de 2000 e 2003 (Reg. CE 44/2001 e Rec. 17/2003).
Entre nós, merecem registro os dois Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional, sobre a
matéria, que são o PL 4257/2019 e o PL 6.204/2019, o primeiro relacionado com a execução fiscal e o
segundo com a execução civil, ambos no Senado Federal. E mais recentemente, o PL 4.778/2020,
relacionado com as ações coletivas, em tramitação na Câmara dos Deputados.
A propósito, é bom ressaltar que essa desjudicialização da execução forçada, ora total, ora parcial, tem
sido uma tônica da evolução por qual vem passando o direito processual civil europeu.1 Lebre de

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Freitas2 descreve o seguinte panorama:


“Em alguns sistemas jurídicos, o tribunal só tem de intervir em caso de litígio, exercendo então uma
função de tutela. O exemplo extremo é dado pela Suécia, país em que é encarregue da execução o
Serviço Público de Cobrança Forçada, que constitui um organismo administrativo e não judicial [...].”
(Grifos do autor)
“Noutros países da União Europeia, há uma agente de execução (huissier em França, na Bélgica, no
Luxemburgo, na Holanda e na Grécia: sheriff officer na Escócia) que, embora seja um funcionário de
nomeação oficial e, como tal, tenha o dever de exercer o cargo quando solicitado, é contratado pelo
exequente e, em certos casos (penhora de bens móveis ou de créditos), actua extrajudicialmente...”,
podendo “desencadear a hasta pública, quando o executado não vende, dentro de um mês, os móveis
penhorados [...].”
“A Alemanha e a Áustria também têm a figura do agente de execução (Gerichtsvollzieher); mas este é
um funcionário judicial pago pelo erário público [...]; quando a execução é de sentença, o juiz só
intervém em caso de litígio [...]; quando a execução se baseia em outro título, o juiz exerce também
uma função de controlo prévio, emitindo a fórmula executiva, sem a qual não é desencadeado o
processo executivo.”3 (Grifo do autor)

Embora não mais se discuta a inclusão da atividade executiva no âmbito da jurisdição,4 certo é que a
doutrina e jurisprudência atuais reconhecem, aqui e alhures, hipóteses de execução extrajudicial, ou
seja, casos em que a ordem jurídica autoriza a terceiro não integrante do Poder Judiciário a promoção
de atos executivos.5
Na verdade, a desjudicialização não implica negar o caráter jurisdicional do processo de execução. O
procedimento executivo contém, de fato, atividade jurisdicional, inclusive cognitiva, sobre questões
procedimentais ou de mérito, que pode resultar até na formação de coisa julgada.6 Mas, quando se
cogita de desjudicializar a execução, o que, em regra, procura-se é apenas afastar do juiz a atividade
rotineira dos atos executivos, resguardando, porém, sua competência para decidir as questões que
eventualmente possam surgir durante o procedimento. Desse modo, a atividade do juiz deixa de ser
sistemática, passando a apenas eventual, a exemplo do que se dá no direito francês e no direito
português.7
Outrossim, diante do quadro esboçado por José Lebre de Freitas, fácil é concluir que o direito europeu
moderno, se não elimina, por completo, a judicialidade do cumprimento da sentença e da
exequibilidade dos títulos extrajudiciais, pelo menos reduz grandemente a intervenção judicial na
prática do procedimento da execução forçada. Tal intervenção, quase sempre, circunscreve-se às
hipóteses de litígios incidentais surgidos no curso do procedimento executivo.
2.Alguma coisa sobre o modelo francês
Segundo as disposições gerais do Código francês de execução civil, pode-se reconhecer que, com o
escopo de satisfazer exigências de economia processual, os procedimentos executivos são fortemente
orientados a uma desjudicialização que tem permitido valorizar o título executivo, evitando o recurso
sistemático à autoridade jurisdicional, sem prejuízo do respeito à situação do devedor, a quem se
assegura a possibilidade de participar do processo e se defender.8
Desse quadro decorre que, em regra, o desenvolvimento dos atos executivos, promovidos a
requerimento do credor exequente, cabe, basicamente, ao huissier de justice, enquanto a figura do juiz
da execução é mantida ao longe. A intervenção dele só acontece quando haja contestação9 a dirimir, ou
quando surja dificuldade a resolver no curso de execução.
O huissier de justice é um oficial público investido pela lei francesa de amplos e numerosos poderes,
desempenháveis no âmbito do procedimento expropriatório tendente a realizar a responsabilidade
patrimonial do devedor e a realizar a satisfação do direito do credor exequente.10
Entre os principais atos de competência do huissier de justice figuram a notificação dos atos do
procedimento executivo e a realização das operações de saisie.11 Essas medidas denominadas saisies
são numerosas no direito francês e compreendem vários tipos de penhora e constrição de bens
exequíveis dentro do patrimônio do executado, que vão desde a afetação de bens à execução forçada
até sua expropriação para obter os recursos necessários à satisfação do direito exequendo. Podem
compreender também medidas cautelares ou preventivas para resguardar a eficiência da execução
forçada. Compreendem, finalmente, os atos de alienação forçada dos bens constritos na execução por
quantia certa, e o pagamento do crédito do promovente.
3.Alguma coisa sobre o modelo português
Em Portugal, o Novo Código de Processo Civil (Lei 41, de 26.06.2013) conservou a sistemática
instituída anteriormente para a execução forçada. Mesmo mantendo a dualidade de ações para
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condenar e executar, procurou-se dar aos atos executivos uma ligeireza maior, colocando-os fora da
esfera judicial comum na qual o desenvolvimento do processo depende fundamentalmente de atos do
juiz. Na atual concepção do direito português, optou-se por deixar o juiz mais longe das atividades
executivas. Reservou-se-lhe uma tarefa tutelar desempenhada a distância. Sua intervenção não é
sistemática e permanente, mas apenas eventual. A atividade executiva propriamente dita é
desempenhada pelo agente de execução, a quem toca efetuar “citações, notificações, publicações,
consultas de bases de dados, penhoras e seus registros, liquidações e pagamentos” (art. 719º, 1).
Tal como o huissier francês, o agentede execução em Portugal “é um misto de profissional liberal e
funcionário público, cujo estatuto de auxiliar da justiça implica a detenção de poderes de autoridade no
processo executivo”.12 (Grifo do autor)
4.Diretivas da Comunidade Europeia
É fora de dúvida que vários países europeus adotam o sistema da execução civil desjudicializada, em
diferentes níveis e formas, confiando os atos executivos a agentes públicos ou privados, com maior ou
menor autonomia, com ou sem necessidade de prévia autorização do juiz. Isso decorria de tradição e,
mais recentemente, passou a ser objeto de regulamento da Comunidade Europeia.13
Essa tendência, reconhecida como tradicional, com toda certeza se reforçou a partir do posicionamento
da Comissão Europeia que, no Regulamento CE 44/2001, de 23.12.2000, exortou a simplificação e a
harmonização das medidas executivas na Europa, sugerindo a conveniência da utilização de agentes de
execução. Essa sugestão viria a ser formalizada em 2003, por meio da Recomendação Rec (2003)17,
em cujos termos se procedeu à conceituação do agente de execução como “pessoa autorizada pelo
Estado para realizar o processo de execução, independentemente do fato de essa pessoa ser
empregada ou não pelo Estado”.14
Já em 2010, a Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ) viria a publicar o relatório anual
sobre a eficiência e qualidade da justiça, reforçando, no capítulo 13, a Recomendação 17/2003, ao
mesmo tempo em que apresentava dados estatísticos para demonstrar que o status do agente de
execução era privado na maioria dos Estados membros da Comunidade15 (informes reafirmados nas
Recomendações do UIHJ no 4º Africa-Europe Meetings of the Judicial Officers, realizado em Dakar em
2016).
5.A desjudicialização parcial da execução já presente no direito brasileiro
O Brasil, em princípio, não tem um sistema processual civil organizado a partir de uma política de
desjudicialização da execução forçada. Pelo contrário, a tônica do procedimento de cumprimento das
sentenças e de execução dos títulos extrajudiciais é a da estrita judicialidade.
Não obstante esse critério fundamental, o próprio CPC (LGL\2015\1656) acena para a possibilidade de
leis especiais se afastarem do regime codificado, em caráter excepcional. Com efeito, o art.  782, ao
prever que a direção do procedimento executivo compete ao juiz, ressalva que a regra prevalecerá
salvo se a lei não dispuser de modo diverso. Logo, o próprio legislador está prevendo que o sistema
poderá ser, eventualmente, aberto para hipóteses de procedimento executivo não comandado, no todo
ou em parte, pelo juiz.
E vários são os casos em que, diante da necessidade de agilizar o cumprimento de certas obrigações de
interesse público ou social, a lei veio a instituir a execução forçada extrajudicial, sem que a
constitucionalidade de tal procedimento tivesse sido impugnada pelos tribunais. Ainda na vigência da
Constituição anterior, podem ser apontados os seguintes casos de execução extrajudicial em nosso
ordenamento jurídico positivo:
a) Lei 4.591/1964 (LGL\1964\12), que trata da incorporação imobiliária, prevê a possibilidade de leilão
extrajudicial da unidade do promissário comprador inadimplente, independentemente de procedimento
judicial e até mesmo de autorização do juiz (art. 63);
b) Dec.-Lei 70/1966 (LGL\1966\16), que cuida do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), instituiu uma
execução hipotecária, por meio de leilão extrajudicial a cargo de agente fiduciário, nomeado pelos
próprios contratantes, sem depender de procedimento em juízo ou de autorização judicial;
c) Lei 9.514/1997 (LGL\1997\95): no caso de alienação fiduciária de imóvel, em garantia, ocorrida a
inadimplência do fiduciante, a consolidação da propriedade do credor fiduciário ocorre em procedimento
administrativo perante o Registro de Imóveis, ficando o credor autorizado a leiloá-lo, sem depender de
procedimento judicial ou de autorização do juiz (art. 27);
d) Dec.-Lei 911/1969 (LGL\1969\31): nos contratos de alienação fiduciária de coisas móveis, em
garantia, o credor fiduciário fica autorizado, nos casos de inadimplemento do fiduciante, a vender o
bem onerado, para se pagar, independentemente de hasta pública ou de qualquer outra medida judicial
ou extrajudicial (art. 2º).

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6.A resistência à ampla desjudicialização da execução civil e da execução fiscal


O Projeto de Lei 6.204/2019, que tem o propósito de implantar no processo civil brasileiro a técnica da
execução civil desjudicializada, para as obrigações por quantia em geral, encontrou resistência radical
da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), que em Nota Técnica a qualificou como inadmissível,
na órbita constitucional. Funda-se a objeção ao argumento principal de que os atos expropriatórios
seriam reservados, com exclusividade, à jurisdição. Assim, a proposição legislativa de desjudicializar a
execução contrariaria o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição estatal.
Essa oposição, data venia, ignora a tendência universalmente estimulada à diversificação dos sistemas
e métodos de pacificação de conflitos jurídicos, técnica a que o direito positivo brasileiro tem sido
bastante sensível.
Tome-se, como primeiro exemplo, o juízo arbitral, que, à margem do aparelhamento do Poder
Judiciário, permite que a jurisdição civil, em determinados casos, seja afastada contratualmente pelos
particulares, dando ensejo a que as principais manifestações da jurisdição – sentença e coisa julgada –
possam ser alcançadas sem a presença e participação da justiça estatal. Nenhuma inconstitucionalidade
nisso foi detectada pelo Supremo Tribunal, numa evidente demonstração de que, nas modernas
democracias, a jurisdição estatal pode e deve ser dimensionada sem o absolutismo de outrora.
É certo que o acesso à tutela jurisdicional tem caráter de garantia fundamental. O que, entretanto, não
mais prevalece é que essa tutela seja prestada exclusivamente pelo Poder Judiciário. O Poder Público
não pode deixar de propiciá-la ao titular do direito lesado ou ameaçado, o que, entretanto, poderá ser
feito tanto pela justiça estatal como por outros organismos credenciados pela lei.
Nesse sentido, é norma fundamental do Código de Processo Civil brasileiro que – embora seja garantia
a não exclusão à apreciação jurisdicional da ameaça ou lesão a direito – “é permitida a arbitragem, na
forma da lei” (art. 3º, § 1º). Além disso, também é norma fundamental do mesmo Código o dever do
Estado de promover, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos (CPC (LGL\2015\1656),
art. 3º, § 2º), cabendo aos juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público a
missão de estimular “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos,
[...] inclusive no curso do processo judicial” (CPC (LGL\2015\1656), art. 3º, § 3º).
Observou-se que historicamente a execução extrajudicial e a solução arbitral sempre estiveram
presentes, de uma forma ou outra, no direito ocidental, desde as raízes romanísticas. Em Roma, na
legislação primitiva, a autoridade pública não se encarregava nem do julgamento, nem da execução
forçada. O pretor nomeava, caso a caso, um jurista, com a aquiescência das partes, para a função da
judex, cuja sentença os interessados se comprometiam a aceitar como solução definitiva de
controvérsia. Quanto à execução, não se dava nem pelo pretor, nem pelo judex, pois era tarefa do
próprio credor que a cumpria por suas próprias forças. Mesmo depois que se implantou a actio iudicati,
ela não tinha a função de realizar os atos executivos, mas apenas de autorizar que sua realização fosse
efetivada diretamente pelo credor.
Somente no estágio cristão do Império Romano foi que se eliminou a figura arbitral do judex e se
organizou a justiça com juiz estatal, escrivão e oficiais de justiça, nos moldes atuais.
Com a queda do Império Romano, a Europa conheceu o direito dos povos germânicos, no qual a
execução era obra do próprio credor que a praticava independentemente de intervenção judicial. A
atividade processual só acontecia posteriormente à execução privada, quando o devedor questionasse o
ato expropriatório levado a cabo pelo credor.
Sob o domínio germânico, a Idade Média procedeu ao remodelamento do processo romano, abolindo a
execução privada antes da execução. A actio iudicati, porém, desapareceu, e a execução forçada
passou a ser simples consequência da sentença, que se realizava sumária e imediatamente por ordem
do juiz, sem forma nem figura de juízo.
A execução como objeto de ação judicial só veio a ressuscitar nos tempos modernos, como exigência
do desenvolvimento do comércio e o aparecimento dos títulos de crédito, que exigiam método
processual mais enérgico e eficaz na respectiva cobrança.
Nos dois últimos séculos, a incrementação da atividade mercantil revelou a necessidade de modernizar
o sistema de solução de conflito e de realização forçada dos créditos, como exigência irrecusável da
atual sociedade de consumo. Generalizou-se, então, o apelo aos meios alternativos de solução de
conflitos e aos meios extrajudiciais de execução forçada das obrigações civis e comerciais,
principalmente na Europa e na América do Norte.
O Brasil, mesmo sem chegar à generalização dos procedimentos extrajudiciais satisfativos ocorrida na
Europa, não ficou fora do movimento de redução da intervenção judicial na cobrança executiva dos
créditos, principalmente os empresariais, conforme já se expôs.

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É importante registrar que, entre nós, o notável desenvolvimento da indústria de bens de consumo
duráveis e da construção civil de habitação, ocorrido no país a partir da segunda metade do século XX,
deveu-se, na maior parte, à liquidez dos financiamentos acobertados pelas modernas garantias
exequíveis extrajudicialmente, como a alienação fiduciária e a hipoteca da legislação do SFH.
Não se pode deixar de lembrar que o penhor de joias e outros objetos de valor desde o Código
Comercial do Império permite o leilão extrajudicial da garantia, dispensando o processo de Poder
Judiciário, regime que o Código Civil (LGL\2002\400) atual conserva para todos os bens móveis
submetidos a penhor cuja venda amigável pode ocorrer por ato extrajudicial do próprio credor
(art. 1.433, IV).
Em todos esses casos, e muitos outros, nosso direito positivo convive tranquilamente com a execução
civil desjudicializada sem que se possa pensar em quebra do monopólio da jurisdição estatal.
Enfim, o regime constitucional brasileiro não cria uma reserva absoluta da expropriação em favor da
jurisdição, nem a execução forçada de obrigações financeiras figura, por princípio constitucional, entre
os atos integrantes da jurisdição, nem tampouco o direito brasileiro nega a possibilidade de prática de
atos executivos fora dos processos judiciais. Pelo contrário, nosso sistema jurídico processual consagra
e estimula até a própria atividade jurisdicional cognitiva por meio da arbitragem fora do âmbito da
justiça estatal e, desde o século XIX, vem implantando e prestigiando vários mecanismos
procedimentais de execução de obrigações por quantia certa regulados por legislação especial, os quais
são manejáveis fora da jurisdição estatal.
Inadmitir a legitimidade do movimento em prol da ampliação do regime da execução desjudicializada
corresponde, data maxima venia, a um retrocesso histórico cultural, num posicionamento frontal à
evolução e às tendências irrefreáveis do direito comparado, capitaneado pelas experiências positivas
dos países do primeiro mundo mais evoluídos cultural e economicamente.
7.Inocorrência de inconstitucionalidade na execução desjudicializada
Nenhuma razão há para se ver na desjudicialização executiva uma negação da garantia de acesso ao
Poder Judiciário. É que tal acesso é amplo, mas é legalmente subordinado às condições de
procedibilidade, entre as quais, o interesse legítimo, que ocorre somente quando a tutela jurisdicional
pretendida é necessária e adequada. Ora, quando a lei põe à disposição do credor um serviço público
apto a tutelá-lo in concreto, faltar-lhe-á interesse para movimentar a máquina judiciária. Esse
interesse, portanto, somente se configurará quando no curso da execução extrajudicial surgir conflito
de interesses, cuja solução não se comporte nos poderes do agente executivo. Nessa conjuntura, o
sistema de execução desjudicializada não será empecilho ao acesso da parte à tutela jurisdicional, visto
que lhe restará assegurada a submissão do incidente contencioso ao juiz competente.
8.Conclusões
As vantagens mais evidentes da desjudicialização podem ser assim resumidas:
a) os processos judiciais acumulados aos milhões atualmente correspondem, em mais da metade, a
execuções, muitas das quais, em dificuldade ou impossibilidade de conclusão, por ausência de
localização de bens exequíveis;
b) as tarefas práticas de localização de bens a penhorar são de problemático exercício pelos juízos
cíveis, mas são mais facilmente praticáveis por um agente especializado na função executiva, sendo
remunerado exatamente pelo êxito em seu desempenho;
c) transferindo-se o encargo para o agente executivo (um notário especializado) os serviços a seu cargo
serão, naturalmente, mais eficientes, enquanto os encargos dos juízos do Poder Judiciário serão
aliviados de um enorme volume de processos, em benefício da maior disponibilidade de tempo e
condições para enfrentar os processos de cognição, que, na verdade, são os que reclamam a atividade
pacificadora contenciosa;
d) os participantes da execução extrajudicial não ficarão privados, quando necessária, da tutela
jurisdicional, mas ela será muito menos numerosa e não comprometeria os serviços das varas cíveis
comuns, já que poderá ser concentrada numa ou nalgumas varas especializadas (juízo de execução),
como hoje é comum nas comarcas de grande porte, onde existem varas especializadas em questões
oriundas dos Tabelionatos e Registros Públicos;
e) particularmente no caso de ações coletivas, que podem envolver problemas altamente complexos,
máxime no âmbito de soluções técnicas ligadas às peculiaridades do direito público e da engenharia
jurídica, a desjudicialização da execução pode ensejar importantes arranjos dentro da sistemática dos
processos estruturais, de modo a instituir organismos ad hoc diversos dos órgãos comuns do
aparelhamento judicial, capazes de operacionalizar a contento a execução, dentro do clima de
cooperação e eficiência tão caro aos anseios atuais de uma tutela jurisdicional justa e efetiva.

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A se levar em conta a experiência exitosa dos países europeus, muitas são as vantagens significativas
que a desjudicialização da execução civil oferece, tanto para os credores como para o próprio serviço
público a cargo do Poder Judiciário.
Enfim, reconhece-se que:
“a desjudicialização executiva, seguramente, não é, por si só, a solução definitiva e universal para a
morosidade do processo. Todavia, com a mesma segurança, deve ser encarada como remédio funcional
a alguns aspectos deste quadro [isto é, a crise de congestionamento e duração não razoável dos
processos], capaz de funcionar como importante agente do movimento de melhoria e aprimoramento
da tutela jurisdicional.”16
Dificuldades práticas de implantação do novo sistema executivo certamente ocorrerão, mas poderão ser
adequadamente superadas por uma vacatio legis maior, por regulamentação meticulosa a cargo do
CNJ, inclusive por definição de métodos eletrônicos obrigatórios e uniformes, e, mais ainda, por um
plano de implantação progressiva: poder-se-á, por exemplo, escolher-se, a critério do CNJ, as comarcas
de maior porte, onde os Registros de Protesto já contam com estrutura operacional maior, para a
instalação do serviço extrajudicial civil. Dessa experiência se extrairão dados úteis para aprimoramento
procedimental a fim de prosseguir na progressiva implantação do novo sistema executivo. É muito
importante que o CNJ estabeleça modelos padronizados para os principais atos do procedimento. Para
essa regulamentação, será muito útil o aproveitamento da experiência vivenciada pelos países
europeus que já consolidaram, com êxito, a execução civil por agentes executivos por meio de
procedimentos eletrônicos, a exemplo de Portugal. Poder-se-á, também, cogitar de credenciamento de
outros agentes executivos, além do Tabelião de Protesto, nos centros maiores, e da conservação da
execução judicial em pequenas comarcas, onde, a juízo do CNJ, o volume geral de processos não esteja
sofrendo impacto significativo das execuções. O caso não é, assim, de rejeitar os projetos legislativos
atuais e a ideia da desjudicialização, mas de aprimorá-los, naquilo que reclama adequação à realidade
das nossas instituições judiciárias.
Em tempos de economia globalizada, porém, o Brasil não deve e não pode ficar excluído do regime de
liquidez e realizabilidade forçada dos créditos seguido pelos países mais desenvolvidos e mais influentes
na dinâmica do mercado universal.
 
 
 
1 .THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 53. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2020. v. III. n. 2. p. 4-6.
 
2 .FREITAS, José Lebre de. Ação executiva depois da reforma. 4. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2004.
n. 16. p. 27-28.
 
3 .FREITAS, José Lebre de. Op. cit., loc. cit.
 
4 .Entre as normas fundamentais do Código de Processo Civil brasileiro, figura a enunciada no seu
art. 4º, segundo a qual “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do
mérito, incluída a atividade satisfativa” (g.n.).
 
5 .LAMÊGO, Guilherme. Execução extrajudicial e arbitragem: proposta para uma execução extrajudicial
arbitral no Brasil. Revista de Processo, São Paulo, v. 286, dez. 2018. p. 506.
 
6 .GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo:
Ed. RT, 2003. p. 19; DIDIER JÚNIOR, Fredie. Esboço de uma teoria de execução civil.Revista de
Processo, São Paulo, v. 118, nov.-dez. 2004. p. 17; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. In: WAMBIER,
Teresa Arruda Alvim; FUX, Luiz; NERY JÚNIOR, Nelson (Coord.). Cognição e decisões no processo
executivo: Processo e Constituição. Estudos em homenagem ao Prof. José Carlos Barbosa Moreira. São
Paulo: Ed. RT, 2006. p. 371; LAMÊGO, Guilherme. Execução extrajudicial e arbitragem, cit., p. 507.
 
7 .THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, cit., p. 5; LAMÊGO, Guilherme.
Op. cit., p. 507-508.
 
8 .NASCOSI, Alessandro. Il nuovo code des procédures civiles d’exécution in Francia tra esigenze di
rinnovamento e tradizione. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Anno LXVII, nº 3, p. 960,
set/2013.
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9 .A constestation de que fala a lei francesa corresponde aos nossos embargos à execução do título
extrajudicial, ou à impugnação ao cumprimento forçado da sentença (NASCOSI, Alessandro. Op. cit.,
p. 960, nota 19).
 
10 .PERROT, Roger. Institutions judiciaires. 14. ed. Paris: Montchrestien, 2011. p. 366 ss.
 
11 .CP (LGL\1940\2)CE, art. L.122-1.
 
12 .FREITAS, José Lebre de. A ação executiva depois da reforma. 4. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2004.
n. 1.6, p. 27-28.
 
13 .RIBEIRO, Flávia Pereira. Desjudicialização da execução civil. Tese (Doutorado em Direito) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012. p. 108. A autora pesquisou a execução
na França, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Hungria, Polônia, Finlândia, Eslováquia, República Checa,
Romênia, Lituânia, Letônia, Inglaterra e, particularmente, deteve-se, com mais detalhes, a analisar o
direito português.
 
14 .RIBEIRO, Flávia Pereira. Op. cit., p. 110.
 
15 .Idem.
 
16 .CILURZO, Luiz Fernando. A desjudicialização na execução por quantia. Dissertação de Mestrado.
Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo, p. 219. Disponível em: https://www.teses.usp.br/
teses/disponiveis/2/2137/tde-29082016-122503/publico/
LuizFernandoCilurzoADesjudicializacaoNaExecucaoIntegral.pdf. Acesso em: 20/11/2020.
     

https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document# 7/7

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