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JEAN-JACQUES ROUSSEAU

DO CONTRATO SOCIAL

ENSAIO SOBRE A
ORIGEM DAS LINGUAS
DISCURSO SOBRE AS
CIÉNCIAS E AS ARTES

DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS


FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS

Tradugäo de LOURDES SANTOS MACHADO


PAUL ARBOUSSE-BASTIDE e LOURIVAL GOMES
Introdugöes e notas de MACHADO

1200502914

EDITOR: VICTOR CIVITA

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LIVRO PRIMERO

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Quero indagar se pode existir, na
ordem civil 5, alguma regra de adminis- nessa procura, para unir o que o direi-
to permite ao que o interesse prescreve,
tragäo legitima e segura, tomando os
a fim de que näo fiquem separadas a
homens como säo e as leis como
justiga e a utilidade 7.
podem ser 6. Esforqar-me-ei sempre,
Entro na matéria sem demonstrar a
importåncia de meu assunto. Pergun-
5 Näo se de estudar as relaqöes de
trata tar-me-äo se sou prfncipe ou legisla-
homem a homem, como
faria supor a expres-
dor, para escrever sobre polftica. Res-
säo "ordem civil", täo pr6xima do que moder-
namente é regulado pelo direito civil. O obje-
pondo que näo, e que por isso escrevo
tivo em mira é a organizaqäo geral da sobre politica. Se fosse prfncipe ou
sociedade, os seus principios fundamentais e legislador, näo perderia meu tempo,
as regras institucionais do que hoje chamamos dizendo o que deve ser feito; haveria de
de "ordem püblica". (N. de L. G. M.) fazé-lo, ou calar-me8.
6 Aqui se encontram dois elementos substan-
ciais do pensamento de Rousseau:
Tendo nascido cidadäo de um Esta-
l.a)Separa-se, neste ponto, de Montesquieu,
do livre e membro do soberan09, embora
pois, se o Espirito das Leis procura com- fraca seja a influéncia que minha opi-
preender as leis tais como existem para expli- niäo possa ter nos neg6cios pfiblicos, o
cå-las segundo as situaqöes reais que as gera- direito de neles votar basta para impor
ram, o Contrato Social procura o que as leis
o dever de instruir-me a seu respeito,
Odem ser" e devem ser para corresponder ås
vicissitu es, In IVI uais e coletivas, dos "ho-
sentindo-me feliz todas as vezes que
mens como sao parte, pois, do
.

conhecimento profundo e genérico do homem 8 Se houve quém aproximasse de täo åcida


para estabelecer as regras da organizaqäo recriminaqäo os prop6sitos te6ricos de Frede-
consciente da sociedade: "E_preciso estudar. a riéo II, da Prüssia, em seu Anti-Maquiavel,
sociedade pelos homens e os homens4ßLa resta lembrar que a referéncia pode ser esten-
dida a todos os chamados "déspotas esclareci-
20) Os obJetivos ambiciosos de Rousseau näo dos", que, sempre dispostos ao convivio inte-
o levam a esquecer-se das consideraqöes pråti- lectual com os fi16sofos da liberdade e por
cas. Dos "principios de direito politico", anun- vezes teorizando, eles pr6prios, sobre o direito
ciados no subtftulo e que seräo abstratos e e o homem, diversa atitude assumiam quando
genéricos, deverå decorrer "uma regra de se tratava de exercer o poder de mando. (N. de
administraqäo legitima e segura", isto é, ade-
quada aos homens e posta ao alcance de sua Cidadäo de Genebra, Rousseau chegou a
aqäo imediata. (N. de L. G. M.) tomar parte numa reuniäo do Conselho Geral
7 Cf. nota anterior, 2.a parte. Nem puramente daquela repåblica, quando de sua viagem de
te6rico, nem exclusivamente utilitari0, Rous- 1754. Para tanto, tivera de voltar ao protestan-
seau deseja principio e agäo atendidos a um s6 tismo, mas sentira-se, entäo, "membro do

tempo. (N. de L. G. M.) soberano". (N. de L. G. M.)

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ROUSSEAU
medito sobre os governos, por sempre tivos para amar o governo do meu

encontrar, em minhas cogitaföes, mo- pafs!10


. para expor aqui o
10 da indiferenqa e, depois, da hostili- sistema econömico de um bom governo

dade de seus concidadäos, Rousseau sempre freqüentemente voltei os olhos para o desta
manteve Genebra gomo modelo de repåblica. repåblica" Agora, faz nova referéncia ao
Para tanto, deveu idealizar bastante a reali- caso modelar. E s6 se calarå depois de sua
dade genebrina, cuja estrutura constitucional, condenaqäo pelo Governo genebrino. (N. de L.
segundo certos comentaristas, näo conhecia

Discurso sobre a Desigualdade. Näo a esquece

CAPfrULO I

Objeto deste primeiro livro

O homem nasce livre 1 1 , e por toda a


t I-muda@qa? Ignoro-012 Que po_derå
legitimå-la? Creio poder resolver esta
arte encontra-se a ferros. O que se cré
uestäol
senhor dos demais, näo deixa de ser
Se considerasse somente a forga e o
mais escravo do que eles. Como adveio
efeito que dela resulta, diria: "Quando
um povo é obrigado a obedecer e o faz,
11 Por causa dessa expressäo, graves equivo-
cos tém prejudicado a interpretaqäo do pensa- age acertadamente; assim que pode
mento de Rousseau e, em particular, do Con-
sacudir esse jugo e o faz, age melhor
trato Social. De fato, aqui näo se trata apenas
da liberdade (melhor dirfamos: da irrestrigäo) ainda, porque, recuperando a liberdade
individual, da qual jå se cuidou no Discurso
pelo mesmo direito por que Iha arreba-
sobre a Desigualdade, com Claro e preciso sen-
tido. O objetivo primordial do Contrato Social taram, ou tem ele o direito de retomå-
estå em assentar as bases sobre as quais legiti- la ou näo o tinham de subtrai-la". A
mamente se possa efetuar a passagem da liber-
dade natural liberdade convencional, como ordem social, porém, é um direito
mais adiante se verå. Näo obstante, essa
sagradol 4 que serve de base a todos os
expressäo genérica, posta å entrada do texto e
antes de estabelecer-se o sentido dos termos outrosl 5. Tal direito, no entanto, näo
que a compöem, leva a pensar numa defesa do se origina da natureza 1 6: funda-se,
individualismo, quando em verdade se inicia
uma exposiGäo acerca da organizaqäo social.
1 4 "Sagrado", nesse ponto, näo constitui
12Näo o ignora. Tampouco o esqueceu, palavra vä ou mero reforw literårio da frase.
como alguns desejam supor. A interpretagäo Af figura para significar algo superior ao indi-
hist6rico-conjetural estabelecida no segundo vfduo e que, näo obstante, se processa no pr6-
Discurso estå presente ao espfrito de Rousseau prio homem: sua transfiguraqäo pelo social.
e o guiarå através de todo o Contrato Social. Na Economia Politica hå alusäo å "mais subli-
Acontece, porém, que agora deseja deixar de me de todas as instituiqöes humanas" que
lado as interpretagöes de fatos para langar-se capacita a criatura a "imitar cå embaixo os
ao problema politico no plano da moral racio- decretos imutåveis da Divindade" e impres-
de L. G. M.)
nal. (N.
säo que temos, em face de seus resultados, de
13 V. nota anterior. Se o segundo Discurso
uma "inspiraqäo celeste". Essa imagem aqui
registrara a passagem da liberdade natural å
reaparece. (N. de L. G. M.)
servidäo civil, o que era um "fato", e o mesmo
1 5 Aafirmaqäo ressurge, mais clara ainda, no
fato a que se refere a primeira frase deste capf-
capitulo IX, primeiro parågrafo.
tulo,agora se buscarå estabelecer em que con-
1 6 Isto é, näo se origina na natureza funda-
digöes a mesma transi$äo poderå fazer-se
mental do homem, no substrato fisico e mental
legitimamente, isto é, em favor da liberdade.
do indivfduo considerado em si mesmo. (N. de

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Do CONTRATO SOCIAL 1

portanto, em conven$esl 7. Trata-se, 29


pois, de saber que convenqöes säo adiantar18.
preciso deixar estabelecido o que

18

17 Isto é, na sociedade organizada de forma desenvolver-se-å o que, å maneira de proposi-

cional" e "natural" (v. nota anterior) 0Döem- POUCO precisa e demasiado condensadal. Entäo),

diferenga entre o que é obra da Vida em socie- far-se-å a refutaqäo das vårias doutrinasquese
propöem a Justificar a servidäo civil. No
dade e da consciéncia daf resultante parao diferenqa entre golernantes e governados se

rais do individuo que, supostamente, vivesse ou a autoridade é o resultado de cao•nven-

Gäo. (N. de L. G. M.)

CAPfrULO II

Das primeiras sociedades

A mais antiga de todas as socieda-


des, e a finica naturall 9 , é a da familia; Essa liberdade comum é uma conse-
ainda assim s6 se prendem os filhos ao qüéncia da natureza do homem20. Sua
pai enquanto dele necessitam para a
primeira lei consiste em zelar pela pr6-
pria conservaqäo, seus primeiros cui-
pr6pria conservaqäo. Desde que tal
dados säo aqueles que se deve a si
necessidade cessa, desfaz-se o liame
mesmo, e, assim que alcanqa a idade
natural. Os filhos, isentos da obe-
da razäo, sendo o ünico juiz dos meios
diéncia que devem ao pai, e este, isento
adequados para conservar-se, torna-se,
dos cuidados que deve aos filhos, vol- por isso, senhor de si.
tam todos a ser igualmente indepen-
A familia é, pois, se assim se qui-
dentes. Se continuam unidos, jå näo é ser21, o primeiro modelo das socieda-
natural, mas
voluntariamente, e a pr6- des polfticas: o chefe é a imagem do
pria familia s6 se mantém por convery
Gäo.
20 Em sua ediqäo do Contrato, Georges
Beaulavon anotou que, com essa referéncia å
19 Em Rousseau, o conceito de "natural" in- natureza humana, Rousseau näo apela para
clui o de "necessårio", como no caso da fami- qualquera10Gäo metafisica, baseando-se ape-
lia que é decorréncia irremissivel da necessi- nas nas condiqöes fisi016gicas e pstcologygas
dade instintiva. A Economia Politicä jå da Vida individual. Tanto bastou para que se
cuidara da familia e o Manuscrito de Genebra interpretasse esse comentårio como sendo uma
rejeita qualquer influéncia desse "modelo" na restriGäo (v. Jacques Maritain, em Trés Refor-
organizaqäo geral da sociedade: "É, pois, certo madores, e Franqois Bouchardy, em sua edi-
que o liame social da Cidade näo pöde, nem Gäo do Contrato), quando Beaulavon täo-s6
deveu formar-se por extensäo do da familia, desejou assinalar que os dados psicofisio-
nem pelo mesmo modelo". Aqui se admite 16gicos bastam para caracterizar o trånsito da

uma aproximaqäo, porém meramente ilustra- liberdade, originalmente preservada pelos ins-

tiva e sublinhando que mesmo o grupo fami- tintos e necessidades, å liberdade justificada,

lial, no concernente å sua continuidade, depen-


dirigida e, também, limitada pela razäo. (N. de
de da convenqäo. Repele-se, pois, a concepgäo
aristotélica —
"a associaqäo natural de todos 21 Rousseau desiste de sua oposi$äo ao "mo-

os momentos é a familia —
de que dessa delo" da familia, desde que jå demonstrou ser
esta, em seus aspectos eståveis, uma sociedade
sociedade primåria se derivam todas as de
convencional. (N. de L. G. M.)
mais. (N. de L. G. M.)

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ROUSSEAU
v 0, niäo de Hobbes2 5. vemos
nascido iguais e livres, s6 alienam sua espécie humana dividida Como

liberdade em proveito pr6prio. Assim como um pastor é de natu-


reanla toda estå em que, na familia, o
reza superior å de seu rebanho, os pas-
amor do pai pelos filhos o paga pelos tores de homens, que säo os chefes
cuidados que lhes dispensa, enquanto também possuem natureza superior å
no Estado o prazer de mandar substi- de seus povos. Desse modo --- segundo
tui tal amor, que o chefe näo dedica a raciocinava o imperador
Fi102 6

Caligula, chegando, por essa analogia,


Grotius22 nega que todo o poder hu- conclusäo de que os reis eram
fåcil

mano se esta em avor- aqueles deuses, ou os povos, animais.


que säo governados: cita, como exem- O raciocfnio de Caligula leva ao de
Hobbes e ao de Grotius. Arist6teles,
comum de raciocinar é sempre estabe-
que os homens em absoluto näo säo

recorrer a método mais conseqüente,


destinados å escravidäo e outros å
näo, porém, mais favoråvel aos tira-
dominagä02 7.
nos. Arist6teles tinha razäo, mas tomava
Resta, pois, em dåvida, segundo
o efeito pela causa. Todo homem nas-
Grotius, seo género humano pertence
cido na escravidäo, nasce para ela;
a uma centena de homens ou se esses
nada mais certo. Os escravos tudo per-
cem homens pertencem ao genéro
humano. No decorrer de todo o seu dem sob seus grilhöes, até o desejo de

livroparece inclinar-se pela primeira


suposigäo, sendo essa também a opi- 2 5 Hobbes tem importantes pontos de contato
com Rousseau, podendo mesmo ser tido como
seu direto inspirador no respeitante ao con-
22 0 Direito da Paz e da Guerra, de Grotius, ceito de uma natureza humana primåria e
mantinha inabalåvel seu prestigio jå secular. fundamental, considerada å margem das trans-
Combatendo-o frontalmente, Rousseau aqui
formagöes trazidas pela Vida em sociedade.
contradiz o capitulo Ill do livro I, onde se afir-
Näo obstante, como conclui afirmando que o
ma que o poder pode estabelecer-se em pro- poder se funda no medo e na forga, Rousseau
veito de quem o exerce. (N. de L. G. M.)
insiste em repudiar explicitamente sua concep-
23 Abandonando o "modelo" da familia, Gäo politica. (N. de L. G. M.)
Rousseau passa agora ao caso da escravidäo
que os tratadistas, como o mesmo Grotius, pu-
26 Filo de Alexandria, ou Filo, o Hebreu,
relata, no De interesse de Cali-
nham em paralelo com o poder politico. (N. de
gula por demonstrar possuir natureza superior
å de seus süditos, porquanto "nascido para um
24 "As perquiri$es eruditas sobre o direito
destino maiS alto e mais divino", para o que se
pübligo freqüentemente näo passam da hist6ria
serviu do paralelo com os pastores. (N. de L.
de antigos abusos, e tem-se porfiado intempes-
tivamente por sua causa quando se då o tra-
balho de estudå-las em demasia." (Traité des 27 "A natureza, para atender å conservagäo,
Intéréts de la France avec ses Voisins, pelo Sr. criou certos seres para comandar e outros para
obedecer. É que ela quis que o ser dotado de
Marqués d'Argenson, impresso por Rey, em
razäo e previsäo ordenasse como senhor, e que
Amsterdam.) Foi precisamente isso que se pas-
sou com Grotius*. (N. do A.) o ser capaz, por suas faculdades corp6reas, de
executar ordens, obedecesse como escravo;
* O livro de d'Argenson, que entäo circulava
assim se confundem o interesp do senhor e o
manuscrito, foi publicado pelo editor Rey, de do escravo." (Arist6teles, Politica, l. I, c. I.)
Amsterdam, em 1765. (N. de L. G. M.)
.31

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DO CONTRATO SOCIAL 1 31

escapar deles; amam o como


cativeiro verso, como o fizeram os filhos de
os companheiros de Ulisses amavam o Saturno, que muitos julgaram reconhe-
seu embruteciment028. Se hå, pois, cer neles. Espero que apreciem minha
escravos pela natureza, é porque houve moderaqäo, pois, descendendo direta-
escravos contra a natureza. A forga fez mente de um desses principes, e talvez
os primeiros escravos, sua covardia os do ramo mais velho, quem sabe se näo
perpetuou2 9. chegaria, depois da verificaqäo dos ti-
Nada do rei Adäo, nem do
disse tulos, å conclusäo de ser eu o legitimo
imperador Noé, pai dos trés grandes rei do genero humano? Seja como for,
monarcas que dividiram entre si o uni- näo se pode deixar de concordar quan-
to a ter Sido Adäo o sober.ano do

28 Ver um pequeno tratado de Plutarco intitu- mundo, como o foi Robinson em sua
lado Os Animais Usam a Razäo. (N. do A.) ilha30, por isso que era ünico habitante
29 Beaulavon anota como, nessa passagem, da terra, e o que havia de cÖmodo
Rousseau inova a teoria politica quando se re- nesse império era o monarca, firme em
cusa a reconhecer nas deficiéncias reais de cer- seu trono, näo temer rebeliöes, guerras
tos homens uma justificativa para a diminui-
ou conspiradores.
Gäo de seus direitos. Lembremos, apenas, que,
nesse tempo, Voltaire, o revolucionårio Voltai-
re, defendia Grotius das criticas desse capitulo, 30 Simples referéncia irönica, a alusäo a
dizendo que o direito do mais forte é uma infe- Robinson contudo vale como demonstragäo
licidade ligada å miseråvel natureza do ho- do antiindividualismo de Rousseau. (N. de L.
mem... (N. de L. G. M.)

CAPfrULO Ill

Do direito do mais forte

O mais forte nunca_é suficiente- aparentemente tomado com ironia e na


menFforte para sempre-o senhor,
ser realidade estabelecido como principio.
senäo transformando sua forga em Jamais alcanqaremos uma explicagäo
direito e a o ediéncia em dev r. Dai o dessa palavra? A forga é um poder fisi-
direito do—mais forte 1 direito co; näo imagino que moralidade possa
resultar de seus efeitos. Ceder å forga
31 Resumindo em duas frases as teorias de constitui ato de necessidade, näo
Hobbes, Rousseau aqui enfrentarå uma das vontade;_quando muito, ato de prudénz
mais fortes tendéncias do século XVIII, quen- Cia. Em que sentido poderå representar
do havia afirmaqöes te6ricas contra o direito um dever?
da forga como as de Burlamaqui, em seus
Princ(plos de Direito Natural, de 1747, que Suponhamos, por um momento, esse
Rousseau leu —mas, na pråtica, todos se dis- pretenso direito. Afirmo que ele s6
punbam a aceitar o fato consumado do poder redundarå em inexplicåvel galima-
do mais forte. Cinicamente, Grimm escrevia a tias32, pois, desde que a forga faz o
Diderot, em dezembro de 1765, referindo-se ao
direito, o efeito toma lugar da causa ——
Contrato: "Näo sejamos criangas e näo tenha-
mos medo das palavras. De fato, näo hå outro to a a forga que sobrepujar a prmeira,
direito no mundo além do direito do mais forte sucedé-la-å nesse direito. Desde que se
e, é preciso dizé-lo, esse direito é o ünico legiti- pode desobedecer impunemente, tor-
mo". Rousseau, a seguir, assinala o contraste
entre as ironias dos pretensos defensores da
liberdade e sua passividade real diante dos 32 Galimatias: discurso incompreensivel. (N.
poderosos. (N. de L. G. M.)

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ROUSSEAU
bido chamar o médico? Quando um
na-se legitimo
lais forte temfazé-lo visto
sempree, razäo, que o
basta bandido me ataca num recanto da
somente agir de modo a ser o mais resta, näo somente sou obrigado
rte. ora, que direito serå esse, que dar-lhe minha bolsa, mas, se

impöe obedecer pe a orga, nao se tem ciéncia a då-la, visto que, enfim, a pis_

'F necessidåde de obedecer por dever, e, tolado bandido também éum


jå nao se
se näo se for mais
estarå forgado
mats a obea faze-
obrigado ecer, näo faz o direito e que s6 se é

10. Vé-se, pois,_que a palavra direito a obedecer aos poderes legitimos.

passo, näo significa absolutamente pergunta inicia13 5.

nada33. 34 Referéncia quase textual ao infcio do versi-



Obedecei aos poderes. Se isso quer
cedei forga, o preceito é culo 13 da Epistola de Säo Paulo aos Roma_
nos, por intermédio de cuja critica Rousseau
bom, mas supérfluo; sustento que ja- deseja refutar todas as doutrinas que fundam o
mais serå violado. Reconhego que todo poder na vontade de Deus. Se os versados no
o poder vem de Deus3 4, mas assunto afirmam que a Epistola näo tern senti_
do desp6tico e, por isso, aparece mal interpre-
todas as doenqas. Por isso serå proi-
com isso apenas reforgam a
tada nesse trecho,
33 Direito, no vocabulårio de Rousseau, cor- oposiGäo de Rousseau äs teorias do "direito
divino" postas a serviqo do absolutismo. (N.
responde exatamente a um conceito moral fun-
dado na razäo. Um fato näo faz, nem desfaz
35 Isto é, que fundamento legitimo tém a obri-
um direito, pois o direito deriva da convicgäo
gagäo moral de obedecer e o direito da autori-
de serem ou näo legftimos determinados fatos.
dade a fazer-se obedecida? (N. de L. G. M.)

CAPfrULO IV

Da escravidäo

Visto que homem algum tem autori- vo de um senhor, por que näo o pode-
dade natural sobre seus semelhantes e ria fazer todoum povo e tornar-se st-
que a forga näo produz qualquer direi- dito de um rei?3 7 Nessa frase existem
to, s6 restam as convenqÖes como base muitas palavras equivocas a exigir
de toda a autoridade legitima existente
explicaqäo, mas prendamo-nos s6
entre os homens3 6.
palavra alienar. Alienar é dar ou ven-
Se um particular, diz Grotius, pode der. Ora, um homem, que se faz escra-
alienar sua liberdade e tornar-se escra-
vo de um outro, näo se då; quando
muito, vende-se pela subsisténcia. Mas
36 Voltamos ao tema central do Contrato, tal um povo, por que se venderia? O rei,
como se propös no capitulo inicial. Mas näo se
longe de prover subsisténcia de seus
refutaram todas as teorias desp6ticas. Se a
autoridade näo se justifica nem pela forga nem süditos, apenas dele tira a sua e, de
pela vontade de Deus, provirå de uma conven- acordo com Rabelais, um rei näo vive
€0, mas desde logo se impöe demonstrar que com pouco. Os süditos däo, pois, a sua
talconvenqäo näo importa na total renüncia å
liberdade. Assim pensava Grotius e, seguindo-
o, a maior parte dos adeptos da escola do 37 Resumo de idéias que se encontram no
Direito da Paz e da Guerra, l. I, c. Ill, e I. Ill,

c. VII. (N. de L. G. M.)

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DO CONTRATO SOCIAL 1 33

pessoa sob a condigäo de que se sua conservaqäo e scu bem-estar, mas


tomem tambérn seus bens? Näo vejo o näo pode då-los irrevogåvel e incondi-
que lhes resta. cionalmente, porque uma tal doaqäo é
Diräo que o déspota assegura aos contråria aos fins da natureza40 e
süditos a tranqüilidade civil. Seja, mas ultrapassa os direitos da paternidade.
qual a vantagem para eles, se as guer- Seria pois necessårio, para que um
ras em que säo langados pela ambiGäo governo arbitrårio fosse legitimo, que
do déspota, a sua insaciåvel avidez, as o povo, em cada geraqäo, fosse senhor
vexaqöes impostas pelo seu ministério de aceitå-lo ou rejeitå-lo, mas, entäo,
os arrufnam mais do que as pr6prias esse governo näo mais seria arbitrårio.
dissensöes? Que ganham com isso. se Renunciar å liberdade é renunciar
mesmo essa tranqüilidade é uma de qualidade de homem 41 , aos direltos da
suas misérias? Vive-se tranqüilo tam- humanidade, e até aos pr6prios deve-
bém nas masmorras e tanto bastarå res. Näo hå recompensa possivel para
para que nos sintamos bem nelas? Os quem a tudo renuncia. Tal renfincia
gregos, encerrados no antro do Ciclo- näo se compadece com a natureza do
pe, viviam tranqüilos, esperando a vez homem, e destituir-se voluntariamente
de ser devorados3 8. de toda e qualquer liberdade equivale a
Afirmar que um homem se då excluir a moralidade de suas aqöes
gratuitamente constitui uma afirmaqäo Enfim, é uma inütil e contradit6ri
absurda e inconcebfvel; tal ato é ilegf- convengäo a que, de um lado, estipula
timo e nulo, täo-s6 porque aquele que uma autoridade absoluta, e, de outro,
o pratica näo se encontra no completo uma obediéncia sem limites. Näo estå
dominio de seus sentidos. Afirmar a
Claro que näo se tem compromisso
mesma coisa de todo um povo, é supor algum com aqueles de quem se tem o
um povo de loucos: a loucura näo cria direito de tudo exigir? E essa condigäo
direito.
finica, sem equivalente, sem compensa-
Mesmo quando cada um pudesse $0, näo levarå nulidade do at00
alienar-se a si mesmo, näo poderia Pois que direito meu escravo terå con-
alienar seus filhos3 9, pois estes nascem tra mim, desde que tudo que possui me
homens e livres, sua liberdade perten- pertence e desde que, sendo meu o seu
ce-lhes e ninguém, senäo eles, goza do direito, esse direito meu contra mim
direito de dispor dela. Antes que che- mesmo passa a constituir uma palavra
guem å idade da razäo, o pai, em seu
sem•qualquer sentido?
nome, pode estipular condigöes para Grotius e outros autores encontram
na guerra outra origem do pretenso
38 Essa imagem de Ulisses e seus compa- direito de escravidäo. Tendo o vence-
nheiros na caverna de Polifemo é tomada a
dor, segundo eles, o direito de matar o
Locke, mas o ardor polémico de Rousseau jus-
tifica lembrar o raciocinio te6rico simboli- vencido, este pode resgatar a Vida pelo
zado: talvez a garantia de uma ordem perfeita- prep da sua liberdade, convengäo
mente pacifica valesse o sacrificio da
liberdade,porém essa mesma renüncia impedi-
40 Cabe, no caso, referir-se natureza antes e
ria qualquer reclamagäo contra o chefe que
acima do direito, porque, sendo natural a auto-
prometera a paz. (N. de L. G. M.)
39 Para Grotius, a alienagäo voluntåria da
ridade do pai, s6 nesse plano se legitima. (N.
liberdade obrigaria também aos descendentes
do contratante. Rousseau, prövavelmente
41 Como jå se viu no segundo Discurso e

apoiando-se em Montesquieu (Do Espirito das


como se verå no Emilio, o homem, mais ainda
do que pela sensibilidade e pela razäo, caracte-
Leis, l. X
V, c. I-I V), mais adiante protestarå
riza-se pela vontade livre. (N. de L. G. M.)
contra esse despautério. (N. de L. G. M.)

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rio aos princfpios do Direito Natural
tanto mais legitima quanto resulta em
proveito de ambas as partes A guerra näo representaupois, de
É Claro que esse pretenso direito de modo algum, uma relaqäo de homem
matar os vencidos de modo algum para homem, mas uma relaqäo de Es-
tado para Estado, na qual os particu-
resultado estado de guerra
porque, vivendo -em sua primitiva lares s6 acldentalmente se tornam ini-
independéncia, näo mantém entre si migos, näo o sendo nem como homens
nem como cidadäos4 5
uma relaGäo suficientemente constante , mas como sol-
para constituir quer o estado de paz dados, e näo como membros da påtria
quer 0 de guerra, os homens em abso- mas como seus defensores. Enfim
luto näo säo naturalmente inimigos.g cada Estado s6 pode ter como inimigos
a rela äo entre as coisas e näo a rela- outros Estados e näo homens, pois que
Gäo entre os homens que gera a guerra, näo se pode estabelecer qualquer rela-
e, näo podendo o es ao e guerra Gäo verdadeira entre coisas de natu-
originar-se de simples relagöes pes- reza diversa.
soais, mas unicamente das relaqöes Esse principio estå mesmo de acor-
näo pode existira uerra articu-
reais, do com as måximas estabelecidas em
ou de homem para homem, nem no
lar
estado de natureza, no qual näo ha
44 Rousseau serviu-se da transcriqäo francesa
propriedade constante, nem no estado
da "politeia" grega, grafando "politie"
literal

social, em que tudo se encontr O mesmo recurso, em portugués, daria ambi-


güidade com o vocåbulo "polfcia". Em conse-
autoridade das leis.
qüéncia, adotamos o latino "politia", de acep-
Os combates particulares, os duelos,
Gäo muito pr6xima å desejada por
os recontros säo atos que de maneira Rousseau. Numa carta ao editor Rey, Rous-
alguma constituem um estado; quanto seau recomenda que evite confusöes de "poli-
ås guerras privadas, autorizadas pelas tie" com "politique". (N. da T.)
ordena$es de Luis IX, rei de Franga, 45 Os romanos que, mais do que qualquer
e suspensas pela Paz de Deus, säo outra nagäo do mundo, compreenderam e
abusos do governo feudal, sistema respeitaram o direito da guerra, levavam täo
longe os escrüpulos a tal respeito, que näo se
absurdo, se jamais foi sistema, contrå-
permitia a um cidadäo servir como voluntårio
sem ter-se alistado expressamente contra o ini-
migo e nominalmente contra certo inimigo.
42 Assim raciocina Grotius no Direito da Paz Tendo sidÖ reformada a legiäo em que Catäo,
(l. Ill, c. VII), nisso seguido por Pufendorf, no o MOG09 sob o comando de Popflio, se iniciava
Dos Deveres do Homem e do Cidadäö (l. II, c. na guerra, Catäo, o Velho, escreveu a Popilio
I). Locke vai mais longe, acreditando encon- que, se desejasse a continuaqäo de serviqo de
trar fundamento para a escravidäo näo s6 no seu filho, se tornava•necessåria a prestagäo de
direito das gentes, mas também no direito novo juramento militar, visto que, estando o
natural. (N". de L. G. M.) primeiro anulado, näo podia mais voltar as
43 Aargumentaqäo, que reaparece em outros armas contra o inimigo. O mesmo Catäo
textos, tem sua forma mais explicita e convin- escreveu ao filho recomendando-lhe que se
cente no fragmento sobre O Estado de Guerra, abstivesse de entrar em combate, enquanto näo
no manuscrito de Neuchåtel. Assim pode ser tivesse prestado novo juramento. Sei que pode-
resumida: 1.0) a enquanto choque
guerra, räo contraditar-me com o sftio de Clusium e
entre duas forgas, näo cria direito porque näo outros fatos particulares, mas o que fap é
o cria a forga; 2.0) se houver um direito da
citar leis ecostumes. Os romanos säo aqueles
guerra, esta passarå a representar uma relagäo
que menos freqüentemente transgrediram suas
entre dois seres morais que näo alcanga aos leis e foram os ünicos a té-las täo belas*. (N.
individuos, sendo a disputa, ademais, referente
do A.)
a interesses reais e näo pessoais. (N. de L. G.
M.) * Essa nota s6 aparece nas ediGöes do Con-
trato a partir de 1782. (N. de L. G. M.)

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DO CONTRATO SOCIAL 1
35

todos os tempos e com a pråtica cons-


tante dos povos civilizados. As decla- direito de matå-lo, constituindo, pois,
troca infqua o fazé-lo comprar, pelo
ragöes de guerra säo avisos menos ås
prep da liberdade, sua Vida, sobre a
poténcias do que a seus vassalos. O
qual näo se tem qualquer direito. Näo
estrangeiro, seja particular ou é Claro que se cai num circulo vicioso
povo, que rouba, mata ou detém os sü-
fundando o direito de Vida e de morte
ditos,sem de infcio declarar guerra ao no de escravidäo, e o direito de escra-
principe, näo é um inimigo, é um ban- vidäo no de Vida e de morte?
dido. Um prfncipe justo, mesmo em
Supondo-se mesmo
a existéncia
plena guerra, apossa-se de tudo o que
desse terrfvel direito de tudo matar,
pertence ao püblico •em pafs inimigo,
afirmo que um escravo feito na guerra
mas respeita as pessoas e os bens dos
ou um povo dominado näo tem qual-
particulares; ele respeita os direitos
quer obrigagäo para com seu senhor,
sobre os quais os seus se fundam.
senäo obedecé-lo enquanto a isso é for-
Estando o fim da guerra na destruiGäo gado. O vencedor näo lhe concedeu
do Estado inimigo, tem-se o direito de graqa ao tomar um equivalente da sua
matar, no seu curso, os defensores Vida; em lugar de matå-lo sem provei-
enquanto estiverem de armas na mäo; to, matou-o utilmente. Longe, pois,• de
no momento, porém, em que as de- ter adquirido sobre ele qualquer autori-
pöem e se rendem, deixando de ser ini- dade além da forga, persiste entre eles,
migos ou seus instrumentos, tornam-se como anteriormente, o estado de guer-
simplesmente homens, näo mais se ra, sendo a pr6pria relaqäo entre eles
tendo direito å sua Vida. Algumas um efeito desse estado, e o gozo do
vezes, pode-se eliminar o Estado sem direito de guerra näo supöe qualquer
matar um ünico de seus membros; ora, tratado de paz. Firmaram uma conven-
e-nenhum direito gao —
seja47 mas essa convengäo,
que nao os necessårios å sua finali- longe de destruir o estado de guerra,
dade. Esses principios näo säo os de supöe sua continuidade 4 8.

Grotius, näo se fundamentam na auto- Assim, seja qual for o modo de


encarar as coisas, nulo é o direito de
ridade dos poetas 4 6, mas derivam da
natureza dag coisas e se fundam na escravidäo näo s6 por ser Ilegftimo,
mas por ser a sur o e nada significar.
razäo.
Relativamente ao direito de conquis- As palavras escravtdäo e direito säo
excluem-se mutua-
näo dispöe ele de outro fundamento
ta,
contradit6rias,
mente. Quer de um homem a outro,
ålém da lei do mais orte. e a guerra
quer de um homem a um povo, serå
näo confere jamais . ao vencedor o •

sempre igualmente insensato este dis-


direito de massacrar os povos venci- curso: "Estabelego contigo uma con-
dos, esse direito, que ele näo tem, näo vengäoficando tudo a teu cargo e tudo
poderå servir de base ao direito de
escravizå-los. S6 se tem o direito de
47 Uma convenqäo, contudo, que se fundou
matar o inimigo quando näo se pode na negagäo do elemento essencial das conven-
tornå-lo escravo; logo, o direito de Göes — partes — e que

transformå-lo em escravo näo vem do consagra essa mesma negaqäo. (N. de L. G.

M.)
48 Locke considera a escravidäo como "o es-

46 Como os eruditos de seu tempo, Grotius tado de guerra continuado entre o legftimo
valia-se de citaqöes da Bfblia, dos historia- conquistador e o prisioneiro". (Governo Civil,
dores e poetas antigos em suas argumentagöes. c. 11.) (N. de L. G. M.)

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em meu proveito, convengäo essa a e que tu observarås f
Or do
que obedecerei enquanto me aprouver meu

De como é sempre preciso remontar a uma


convenéo anterior

Ainda concordado com existe nem bem püblico, nem


tudo que até aqui refutei, näo se encon- politico 51. Mesmo que tal homem

trariam em melhor situaGäo os fautores um particular; seu interesse, isolado do


4 9. Haverå sempre gran- dos outros, serå sempre um interesse
de diferenga entre subjugar uma multi- privado. Se esse homem vem a perecer
däo e reger uma
sociedade. Sejam ho- seu ilhpério, depois dele, fica esparso e
mens quantos possam ser
isolados, sem ligaqäo, como um carvalho, de_
submetidos sucessivamente a um s6, e pois de consumido pelo fogo, se desfaz
näo verei nisso senäo um senhor e e transforma num monte de Cinzas.
escravos, de modo algum consideran- , pode dar-

do-os um povo e seu chefe. Trata-se,


se a um rei. Portanto, segundo Grotius
caso se queira, de uma agregagäo, mas um povo é povo antes de dar-se a um
50; nela näo rei.Essa doagäo mesma é um ato civil,
näo de uma associagäo
supöe uma deliberagäo püblica. Antes,
49 "Fautores do despotismo" säo Hobbes,
Grotius e os mais até aqui refutados. Convém mente. Entäo a relagäo puramente fisica que se
esclarecer que Rousseau a eles se opöe näo pode supor num simples agregado cederå lugar
porque afirmem que o poder politico é superior a valores e padröes de comportamento defini-
ao individuo, mas porque nessa superioridade dores de um verdadeiro grupo social. (N. de L.
de fato encontram razäo suficiente para im-
por-se o mando ao sÜdito. O Contrato busca 51 No contexto social, a que aludimos na
saber como tal imposiGäo do poder pode tor- nota anterior, o bem comum é nogäo coletiva,
nar-se legitima e, conseqüentemente, quando incluindo-se, por isso mesmo, na consciéncia
hå (ou näo) o direito de impor-se aos homens o de cada um, e todas as decisöes, visando a
poder do Estado. (N. de L. G. M.) atendé-lo, seräo decisöes de um "corpo politi-
50 Na oposiGäo de "agregaqäo'-'--a-±associa- co", isto é, de uma sociedade consciente de sua
#0", C. E. Vaughan encontra,em germe,-todo unidade, necessidades e aspiraqöes. (N. de L.
o pensamento antiindividualista de Rousseau.
De sua parte, Beau avon assma a que al se 52 Para bem entender a insistente refutaqäo
assenta, com toda a sua originalidade e pene- de Grotius, convém primeiramente lembrar
tragäo, uma inédita visäo do contrato social, que no capitulo Ill do I livro do Direito daPaz
pois agora s6 as relaqöes morais, implicando e da Guerra se pergunta "por que um povo
aqöes mütuas, säo consideradas capazes de livre näo poderia submeter-se a uma ou vårias
formar um povo por intermédio de uma con- pessoas, de tal sorte que lhe transferisse intei-
vengäo fundamental que lhe då feiGäo de corpo ramente o direito de governar sem dele reser-
No estado atual de desenvolvimento
politico.
var-se qualquer parcela", desde que "é permi-
da concepqäo de Rousseau adqui-
sociologia, a tido a cada homem livre tornar-se escravo de
re caråter de verdadeira antecipagäo do papel quem Essa ousada defesa do despo-
quiser".
essencial representado pelos liames sociais na tismo vem precedida de verdadeiro desafio
caracterizagäo da Vida coletiva: para termos "aos que pretendem pertencer, sempre c sem
uma sociedade, näo basta que se agrupem os excegäo, o poder soberano ao povo, de sorte
homens, sendo necessårio que os liames entre que este tem o direito de reprimir e punir os
eles estabelecidos se tornem deles indepen-
reis todas as vezes que abusem de sua autori-
.dentes e a eles venham a impor-se coercitiva-
dade". A duplicidade de Grotius, aliås seguida

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DO CONTRATO SOCIAL 1 37
pois, de examinar o ato pelo qual um
povo elege um rei, conviria examinar o fosse unånime, onde estaria a obriga-
Gäo de se submeterem os menos nume-
ato pelo qual um povo é povo, pois
rosos å escolha dos mais numerosos?
esse ato, sendo necessariamente ante-
rior ao outro, constitui o verdadeiro Donde sai o direito de cem, que que-
fundamento da sociedade 53. rem um senhor, votar em nome de dez,
Com efeito, caso näo haja conven- que näo o querem de modo algum? A
Gäo anterior, a menos que a eleiGäo lei da pluralidade dos sufrågios é, ela
pr6pria, a instituiqäo de uma conven-
por seus continuadores, era patente —
a sobe- Gäo e supöe, ao menos por uma vez, a
rania popular, admitida em principio, era dimi- unanimidade.
nuida pelas distinqöes te6ricas e anulada na
pråtica —
e Rousseau näo pode calar-se: ou o
cuidamos da "doaqäo" dos siditos ao podero-
principio é moralmente vålido e näo pode a ne-
nhum pretexto ser contrariado, ou simples- so, mas de uma organizaqäo politica que se

mente näo existe e s6 haverå a tirania. Assim enrafza direta e profundamente na organizagäo
social. Consideramos, pois, a sociedade una e
responde å verdadeira provocagäo contida na
mesma passagem do Direito da Guerra e da agindo como um todo, em lugar de basear nos-

Paz, num trecho que acusa como o principio


te-nos Rousseau no periodo seguinte, seria pre-
da soberania popular "causou tantos males, e
ciso sempre supor unanimidade nas
poderå ainda causå-los se de novo os espfritos
se deixarem persuadir". (N. de L. G. M.)
deliberaqöes, pois que a regra da maioria @
qual, no capitulo VIII do segundo Ensaio
53 Afirmada a conexäo substancial entre o
sobre o Governo, Locke atribuiu o papel de
social e o politico (v. notas n.os 50 e 5 1), trans- titular natural do poder) näo passa, também
figura-se o esquema do contrato social: jå näo ela, de uma convengäo. (N. de L. G. M.)

CAPfrULO VI

Do pacto social

Suponhamos 54 os homens chegando do de natureza sobrepujam, pela sua


åquele ponto em que os obståculos resisténcia, as forgas de que cada indi-
prejudiciais a sua conservagäo no esta- viduo dispöe para manter-se nesse
estado. Entäo, esse estado primitivo jå
54 0 no desenvolvi-
capftulo, fundamental näo pode subsistir 5 5, e o genero huma-
mento do Contrato, näo com uma
inicia-se, no, se näo mudasse de modo de Vida,
afirmaqäo, mas com uma suposiqäo. Daf pode- pereceria.
mos inferir, com seguranga, que a figura do Ora, como os homens näo podem
contrato, para Rousseau, näo constituia um
engendrar novas forgas, mas somente
fato hist6rico, mas simples hip6tese explica-
tiva, muito consentånea, aliås, com o método unir e orientar as jå existentes, näo tém
evolutivo-conjetural que conhecemos desde o eles outro meio de conservar-se senäo
segundo Discurso. Inicialmente, a passagem formando, por agregaqäo, um conjunto
do estado de natureza para o estado civil foi
de forgas, que possa sobrepujar a resis-
objeto de um longo desenvolvimento, pega
correspondente, sem düvida. ao plano ambi-
cioso das Instituigöes Politicas e que ainda 55 V. o Discurso sobre a Desigualdade: a
figura, no Manuscrito de Genebra, como capf- Vida em comum, näo provindo das necessi-
tulo II. Sua supressäo na versäo definitiva do dades naturais do individuo, explica-se por
Contrato corresponderå å firme resoluGäo de conjunturas exteriores e até eventualidades que
näo fazer desse livro uma discussäo de "princi- tangem os homens ao convfvio permanente
pios", de "filosofia". (N. de L. G. M.) com seus semelhantes. (N. de L. G. M.)

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ROUS
téncia, impelindo-as para um s6 m6vel, Essas clåusulas, quando be
preendidas, reduzem-se todas a
levando-as a operar em concerto a alienagäo total" de
Essa soma de forgas s6 pode nascer
ciado, com to os os Seus direitos
do concurso de muitos; sendo, porém,
a forga e a liberdade de cada indivfduo comunidade toda, porque, em primelro
lugar, cada um dando-se completa.
os instrumentos primordiais de sua
conservaGäo, como poderia ele empe- mente, a condigäo é igual para todos
e, sendo a condigäo igual para todos
nhå-los sem prejudicar e sem negligen-
Ciar os cuidados que a si mesmo deve? ninguém se interessa por tornå-la one
rosa para os demais.
Essa dificuldade, reconduzindo ao meu
assunto, poderå ser enunciada como Ademais, fazendo-se a alienaqäo
sem reservas, a uniäo é täo perfeita
segue:
"Encontrar uma forma de associa- quanto possa ser e a nenhum associado
Gäo que defenda e proteja a pessoa e os restarå algo mais a reclamar, pois, se
bens de cada associado com toda a restassem alguns direitos aos particu-
forga comum, e pela qual cada um, lares, como näo haveria nesse Caso um

unindo-se a todos, s6 obedece contudo superior comum que pudesse decidir


a mesmo, permanecendo assim täo
si
entre eles e o påblico, cada qual, sendo

livre quanto antes


"57. Esse, o pro- de certo modo
seu pr6prio juiz, logo
blema fundamental cuja solugäo o con- pretenderia sé-lo de todos; o estado de
trato social oferece. natureza subsistiria, e a associagäo se
As clåusulas desse contrato säo de
tal modo determinadas pela natureza 59 Insistindo em compreender o contrato so-
do que a menor modificaqäo as
ato, Cial como uma convengäo formal e concreta.

tornaria väs e de nenhum efeito, de mente institufda, muitos intérpretes encontram


dificuldade em compreender este e os dois
modo que, embora
jamais enun-
talvez
ciadas de maneira formal, säo as mes-
seguintes capftulos. O
texto torna-se, contudo,
Claro quando, ao invés de raciocinar como se
mas em toda a parte, e tacitamente aqui se descrevesse o que sucede "antes" e "de-
mantidas e reconhecidas em todos os pois" do contrato, se procura ler Rousseau
lugares 58 quando, violando-se o
até como se descrevesse nossa condiqäo "fora" e
"dentro" da sociedade. Para viver em sociedaa
pacto social, cada um volta a_seus_pri-
de, cada um de n6s "då-se completamente"
meiros direitos e retoma sualiberdade
isto é,submete aos padröes coletivos todos o
natural, perdendo a liberdade conven- impulsos naturais da criatura individual
cional pela qual renunciara åquela. porém, sendo tal submissäo uma "condigäo
igual para todos", a ninguém interessa agra-
vå-la. Se, porventura, alguém intentar reser-
56 Superadas as forgas individuais, s6 0 poder var-se algo de seus "direitos naturais", isto é,
da coletividade pode atender is solicitagöes da atender a seus impulsos como se vivera isola-
existéncia. (N. de L. G. M.)
57 do, estå se colocando margem da sociedade e
"täo livre quanto antes"... porque
assim deve ser tratado a menos que se queira
igualmente capacitado a suprir e dominar as
comprometer a pr6pria sociedade, em cujo
suas necessidades e, pois, a agir livremente.
seio, portanto, sempre se impöe uma igualdade
Trata-se, contudo, de uma liberdade diferente
da natural — é a liberdade convencional, de
båsica. Afinal, ainda quando o corpo social
éstaca certos elementos para o Governo, näo
que se fala a seguir. (N. de L. G. M.)
erå a eles, mas ao
corpo, que "nos damos",
58 Näo se procure encontrar um ato real de
com o que se compreenderå a Vida politica sem
institui$äo formal do contrato. Este passou a
ter valor simb61ico: suas "clåusulas" diferengas (além das funcionais) entre gover-
säo nantes e governados -z "cada um dando-se a
"determinadas pela natureza do ato", dispen-
todos, näo se då a ninguém". Entram em cone-
sam enunciado explicito, sendo "mantidas e
reconhecidas" de maneira tåcita. (N. de L. G.
16gica e a reivindicaqäo hist6rico-politica de
liberdade. (N. de L. G. M.)

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DO CONTRATO SOCIAL I
39
tornnrin necessarinmente tirinica ou
Essa pcssoa påblica, que se forma,
desse modo, pela uniäo de todas as
Enfirn, cada um dnndo•se {Hodos
outras, tomava antigamcnte o nome de
nio se a ninguém 00
nio existindo
e, cidade 0 4
e, hoje, o de replibllca ou de
um associado sobre o qual nao se corpo politico, o qual é chamado por
adquira o mesmo direito que se lhe scus membros de Estado quando passi-
cede sobre si mesmo, ganha•se o equi- vo, soberano quando ativo, c poténcla
valente de tudo que se perde, e maior quando comparado a scus semelhan
forga para conservar o que se tern. tes. Quanto aos associados, recebem

Se separar-se, pois, do pacto social elcs coletivamentc, o nome de povo e

aquilo que näo pertence sua esséncia se c amam, em particular, cidadäos,

ver-se-å que ele se reduz aos seguintes enquanto partfcipes da autoridade so-
termos: ' 'Cada um
de n6s pöe em
64 0 verdadciro sentido dessa palavra* quase
comum sua pessoa e todo o seu poder que perdeu inteiramente entre os modernos.
se
sob a direqäo suprema da vontade A maioria considera um burgo como sendo
geral, e recebemos, enquanto corpo, uma cidade e um burgués como um cidadäo.
cada membro como parte indivisfvel Näo sabem que as casas formam o burgo, mas
que säo os cidadäos que fazem a cidadc. Esse
mesmo erro custou caro, outrora, aos cartagi•
Imediatamente, esse ato dc associa- neses. Näo sei de jamais havcr-se dado o titulo
de cives ao sédito de qualquer principe, nem
Gäo produz, em lugar da pessoa parti-
mesmo antigamente entre os macedönios, nem
cular de cada contratante, um corpo atualmente entre os ingleses, se bem que cstcs
moral e Coletivo, composto dc tantos se encontrem muito mais pr6ximos da liber-
membros quantos säo os vot" da dadc do que todos os demais. Somente os fran-
assembléia 62 cescs tomam com familiaridade o titulo de
e que, por esse mesmo
cidadäos porque, como se pode ver nos seus
ato, ganha sua unidade, seu eu
dicionårios, näo dispöem da verdadeira nogäo
comum 63 sua Vida e sua vontade. do significado do termo, sem o que pratica-
riam, por usurpå-lo, o crime de lesa-majestade.
60 Contra essa afirmagäo sc levantou o libe- Essa palavra, para eles, exprime uma virtude e
ralismo individualista do século XIX que, näo näo um direito. Quando Bodin quis falar de
obstante, ainda hå quem julgue derivar de
nossos cidadäos e burgueses**, incorreu em sé-
rios erros, tomando uns pelos outros. O Sr.
Rousseau. Benjamin Constant, no Curso de
d'Alembert näo se enganou nesse particular e
Politica Constitucional, protesta que "n6s
distinguiu muito bem, em seu artigo intitulado
sempre nos damos aos que agem em nome de
"Genebra", as quatro ordens de homens (que
todos". Ora, Rousseau afirmava que mesmo os
podem ser Cinco, se nelas se inclufrem os sim-
governantes estäo submetidos vontade ge-
ples estrangeiros) que existem no nosso burgo
ral. .. (N. de L. G. M.)
... "parte indivisivel do todo"... cuja— e das quais somente duas compöem a repü-
blica. Nenhum outro autor francés, que eu
existéncia independente jå näo se admite, por-
saiba, compreendeu o sentido verdadeiro da
que näo podemos compreender, na realidade,
palavra cidadäo.
um individuo fora da sociedade. (N. de L. G.
* Dificilmente o vocåbulo portugués "cidade"
M.)
62 Como o contrato, essa "assemblera e recobrirå o significado especifico visado por
esses "votos" näo tém existéncia concreta, mas Rousseau, que sem divida se apoiou na diver-
apenas simbolizam a tomada de consciéncia sificaqäo, em francés, entre "cité" e "ville".
Mais pr6ximo do sentido do texto estaria o
de sua condiGäo pelos componentcs do corpo
social. (N. de L. G. M.)
grego polls , mas carregaria consigo inevitå-
veis implicaqöes histdricas. Mais abaixo (v.
63 Ao contrårio do que diz Georges Beaula•
von, esse "eu comum" muito se aproxima da nota ao Pé da pågina) contrastamos "cidade" e
"consciéncia coletiva" dos soci610gos moder- "burgo" para melhor evidenciar as intenqöes
nos. Basta ler Rousseau em seu sentido pro- do Autor. (N. da T.)

fundo e tendo em conta suas mesmas ressalvas ** Bodin tratou da questäo nos Seis Livros
e adverténcias interpretativas. (N. de L. G. M.) Repiblica, l. 1, c. VI. (N. de L. G. M.)

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ROUSSEAU
saber distingui-los quando säo
berana, e siditos enquanto submetidos
leis do Estado. Esses termos, no gados
entanto, confundem-se freqüentemente 65
e säo usados indistintamente; basta gatais termos no sentido exato.(N.

CAPfTULO VII
Do soberano
Cial 6 7. Tal näo significa näo poder esse
Vé-se, por essa f6rmula, que o ato de
associagäo compreende um compro- corpo comprometer-sescom outrem, no
que näo derrogar o contrato, pois, em
misso recfproco entre o påblico e os
relaGäo ao estrangeiro, torna-se um ser
particulares, e que cada individuo, singelo, um indivfduo.
contratando, por assim dizer, consigo
mesmo, secompromete numa dupla Mas o
corpo politico ou o soberano
relagao: como membro do soberano näo existindo senäo pela integridade68
CreiaGäo aos particulares, e como do contrato, näo pode obrigar-se,
membro do Estado em relaGäo ao mesmo com outrem, a nada que derro.
soberano. Näo se pode, porém, aplicar gue esse ato primitivo, como alienar
a essa situaGäo a måxima do Direito uma parte de si mesmo ou submeter-se
Civil que afirma ninguém estar obri- a um outro soberano. Violar o ato pelo
gado aos compromissos tomados con- qual existe seria destruir-se, e o que
Sigo mesmo 6 6, pois existe grande dife- nada é nada produz.
r-enga entre obrigarse $onslgo_mesmo
e—emerelaqäo a um tododo qual se faz 67 Agindo, em sua pr6pria esfera, como pes-
soa, o corpo social permanece livre mesmo em
parte.
Impöe-se notar ainda que a delibera- relagäo ao pacto fundamental. Com isso, ao
Gäo püblica, que pode obrigar todos os contrårio do que acreditaram certos individua-
listas (aos quais faz eco Paul Janet na Histdria
süditos em relaqäo ao soberano, devi-
da Ciéncia Politica), näo se reconhece ao Esta-
do ås duas relaqöes diferentes segundo
do um poder ilimitado e superior até å moral e
as quais cada um deles é encarado,näo ao direito, mas, sim, que a sociedade, matriz
pode, pela razäo contråria, obrigar o dessa moral e desse direito, pode a qualquer
soberano em relagäo a si mesmo, momento tomar novas direqöes que seus mem-
sendo conseqüentemente contra a na- bros, na medida de suas consciéncias, busca-
räo estabelecer de forma concreta. (N. de L. G.
tureza do corpo politico Impor-se o
M.)
soberano uma lei que näo possa infrin-
68 No original figura a expressäo "la sainteté
gir. Näo podendo considerar-se a näo du contrat", porém traduzi-la, literalmente, por
ser numa finica e mesma relagäo, "a santidade de contrato" importaria em per-
encontrar-se-å entäo no caso de um der-se o essencial do sentido da frase que esta-

contratando belece como s6 se mantém unido o corpo so-


particular consigo
Cial enquanto a integridade do contrato näo
mesmo, por onde se vé que näo hå nem Em que pese a real dificuldade da
sofrer abalo.
pode haver qualquer espécie de lei traduqäo, cabe registrar que a "sainteté" do
fundamental obrigat6ria para o corpo original é indicativa do caråter supra-humano,
do povo, nem sequer o contrato so- embora näo sobrenatural, do ente coletivo (e
em mais de um ponto Rousseau vale-se desse
simile com a esfera divina) que aqui jå surge
66 0 direito civil, regulando relagöes entre como a necessåria relaqäo entre o politico
individuos, näo pode alcangar uma situagäo (necessidade de cumprir o contrato) e o moral
em que age um "ser moral" de natureza (dever de obedecer a uma entidade superior ao
supra-individual. (N. de L. G. M.)
individuo). (N. da T.)

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DO CONTRATO SOCIAL 1
41
Desde o momento em que essa mul-
tidäo se encontra assim reunida em um O mesmo näo se då, porém, com os

corpo, näo se pode ofender um dos såditos em relaqäo ao •soberano, a


membros sem atacar o corpo, nem, quem, apesar do interesse comum, nin-

ainda menos, ofender o corpo sem que guém responderia por seus compromis-
os membros se ressintam. Eis como o sos, senäo encontrasse meios de asse-
dever e o interesse obrigam igualmente gurar-se a fidelidade dos süditos 71 .

as duas partes contratantes a se auxi- Cada individuo, com efeito, pode,


liarem mutuamente, e os ho- mesmos como homem, ter uma vontade parti-

mens devem procurar nessa reunir, cular, contråria ou diversa da vontade


geral que tem como cidadäo. Seu inte-
dupla relaqäo, todas as vantagens qüe
dela provém 69. resse particular pode ser muito dife-
Ora, o soberano, sendo formado rente do interesse comum. Sua existén-
cia, absoluta e
naturalmente
täo-s6 pelos particulares que o cqm-
pöem, näo visa nem pode visar a inte- independente, pode levå-lo a conside-
resse contrårio ao deles, e, conseqüen- rar o que deve å causa comum como
temente, o poder soberano näo uma contribuiGäo gratuita, cuja perda
necessita de qualquer garantia face em prejudicarå menos aos outros, do que
de seus süditos, por ser impossfvel ao serå oneroso o cumprimento a si pr6-
corpo desejar prejudicar a todos os prio. Considerando a pessoa moral que
seus membros, e veremos, logo a constitui o Estado como um ente de
seguir, que näo pode também prejudi- razäo 72
, porquanto näo é um homem,

car a nenhum deles em particular. O ele desfrutarå dos direitos do cidadäo


soberano, somentepor sé-lo, é sempre sem querer desempenhar os deveres de
aquilo que deve ser 70.

71 Se os liberais do século passado se preocu-


Entram em conexäo substancial o dever e
69 param com garantir o individuo contra o Esta-
o interesse. Em sua totalidade, o parågrafo do, fiel å sua pr6pria conjuntura hist6rica
exprime a antecipagäo, por Rousseau, da Rousseau cuida de garantir o Estado contra os
nogäo de "sintese social" que då base a toda a individuos, ou melhor, certos individuos, pois
sociologia moderna para a qual o individual e o que via era a usurpaqäo dos poderes do Esta-
o coletivo säo simples aspectos especiais de do pelo monarca ou por uma classe privile-
uma mesma realidade. (N. de L. G. M.) giada. A soluqäo do problema, que surge nos
70 0 poder soberano continua, pois, a ser parågrafos seguintes, é incutir no comporta-
In uperåvel, isto é, absoluto. A soberania abso- mento individual a consciéncia da vontade
luta. näo obstante, longe de representar uma geral, de sorte a dominar a vontade particular.
poténcia adversa å liberdade individual, como A teoria politica de Rousseau toca ao mais
afirmava, entre outros, Hobbes, passa a ser fundo dos principios gerais, confundindo-se
entendida como o resultado da associaqäo de com a ética e propondo o problema da educa-
todos os particulares e, por isso mesmo, como
uma forga incapaz de afetar a seus pr6prios 72 Em linguagem filos6fica, ente de razäo é
elementos constitutivos sem a si mesma afe- "objeto de pensamento artificialmente criado
tar-se. Entram, pois, em equaqäo dois velhos pelo espfrito para atender ås necessidades do
temas da teoria politica: s6 a soberania popu- discurso e sem existéncia, quer em sis quer na
lar é soberania absoluta, perfeita e legitima. representagäo concreta" (Lalande, Vocabu-
Como, na pråtica, em nome dessa soberania os laire, verb. "Raison"). No Contrato Social, a
governos exercem seu mando, freqüentemente expressäo assume diversa significaqäo, como
se tem confundido as garantias das liberdades anota Beaulavon: "Para Rousseau, como para
individuais contra os excessos da autoridade os soci610gos contemporåneos, o Estado é,
com limitaqöes da soberania. Assim pensavam pois, um ente real, e de modo algum uma enti-
os individualistas, como Benjamin Constant, dade abstrata; desconhecé-lo é recair no
mas ainda hoje percebemos ecos, discretos egofsmo individualista. Mas esse ente, para ele,
mas positivos, dessas restriqöes nos comentå- é moral no sentido pr6prio da palavra: s6 a
rios de um Vaughan, por exemplo. (N. de L. G. racional pode criå-lo". (N. de L. G.
M.)

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ROUSSEA
injustiga cujo progresso garante contra qualquer dependéncia

ficio e o jogo de toda a måquina politi-


determinaria a ruina do corpo politico.
ca, e é a finica a legitimar os compro-
A fim de que o pacto social näo
missos civis, os quais, sem isso
represente, pois, um formulårio väo,
compreende ele tacitamente este com- tornariam absurdos, tirånicos e sujei-

promisso,oünico maiores abusos.

aos outros: aquele que recusar obede- 73 Forgå-lo-äo a conservar a liberdade con.
cer vontade geral a tanto serå cons- encional, pois a liberdade natural tornou-se
trangido por todo um corpo, o que näo nula e inoperante, e qualquer tentativa de fugir
significa senäo que o forgaräo a ser ao dominio do corpo politico redundarå no
risco de cair na dependéncia de outrem. (N. de
73, pois é essa a condiGäo que,
entregando cada cidadäo påtria, o L. G. M.)

CAPfrULO VIII

Do estado civil

sem cessar bendizer o instante feliz que


A passagem do estado de natureza
para o estado civil 74 determina no dela o arrancou para sempre e fez, de
homem uma mudanga muito notåvel,
um animal estÜpido e limitado, um ser

substituindo na sua conduta o instinto


inteligente e um homem 7 5.
pela justiga e dando ås suas agöes a Reduzamos todo esse balanqo a ter-
moralidade que antes lhes faltava. É s6 mos de fåcil comparagäo. O que o
entäo que, tomando a voz do dever o homem perde pelo contrato social é a
lugar do impulso fisico, e o direito o liberdade natural e um direito ilimi-
lugar do apetite, o homem, até ai tado a tudo quanto aventura e pode
levando em consideragäo apenas sua alcanqar. O
que com ele ganha é a
peSsoa, vé-se forgado a agir baseando- liberdade civil e a propriedade de tudo
se em outros princfpios e a consultar a que possui. A fim de näo fazer um jul-
razäo antes de ouvir suas inclinagöes. gamento errado dessas compensaqöes,
Embora nesse estado se prive de Inui- impöe-se distinguir entre a liberdade
tas vantagens que frui da natureza, natural, que s6 conhece limites nas for-
ganha outras de iguat monta: suas gas do indivfduo, e a liberdade civil,
faculdades se exercem e se desenvol-
que se limita pela vontade geral, e
vem, suas idéias se alargam, seus senti*
mais, distinguir a posse, que nao e
mentos se enobrecem, toda a sua alma
senäo o efeito da forga ou o direito do
se eleva a tal ponto, que, se os abusos
dessa nova condigäo näo o degra-
dassem freqüentemente a uma
7 5 0 segundo Discurso estabelecera que a
condi-
moral também, a razäo
e, —esta, ao menos
Gäo inferior åquela donde saiu, deveria em seu completo desenvolvimento —repre-

sentam produtos da Vida em grupo. Os que


74 Este capitulo destina-se a comparar o "es- objetam lembrando que a moral precede e
tado ciyil", ou seja, a condiGäo social do sobreleva ao direito, esquecem-se de que Rous-
homem, com a existéncia do homem "natural", seau considera sempre a sociedade em sua pr6-
ou melhor, do homem em sua esséncia mental
e bi016gica de simples individuo. (N. de L. G. blema da maneira de estatuir-se o exercfcio do
poder que dela, naturalmente, resulta. (N. de L.

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DO CONTRATO SOCIAL 1 43

primeiro ocupante, da propriedade, mente senhor de si mesmo, porque o


que s6 pode fundar-se num titulo impulso do puro apetite é escravidäo, e
positivo 7 6
a obediéncia lei que se estatuiu a si
Poder-se-ia, a prop6sito do que mesma é liberdade. Mas jå disse muito
ficou acima, acrescentar å aquisiGä acerca desse principio e o sentido filo-
do estado civil a liberdade moral s6fico da palavra liberdade, neste
finica a tornar o homem verdadeira ponto, näo pertence a meu assunto.

76 Ao contrårio do que se tem dito, Rousseau Gäo, os homens se disponham a manter-se fiéis
näo ataca a sociedade. Nem a defende. Qual- a eles — para isso é escrito o Contrgto Social.
quer sociedade, para ele, permite ao homem os Tudo uma escolha: ser infinitamente
se reduz a
avangos morais e racionais responsåveis pela livre em
seus impulsos, mas sofrer todos os
sua condiGäo atual. Ao mesmo tempo, a Vida contrastes cerceadores e, mesmo, aniquila-
social enseja os progressos da desigualdade, dores da Vida natural, ou aceitar a liberdade
descritos no segundo Discurso. Tais desvios, nos limites e com as garantias da lei, na har-
contudo, podem ser evitados desde que, cons- —onia civil. V. parågrafo seguinte. (N. de L. G.
cientes do sentido normal dessa transforma- M.)

CAPfrULO IX

Do dominio real 7 7
Cada membro da comunidade då-se Cidade säo incomparavelmente maio-
a ela no momento de sua formagäo, tal res do que as de um particular, a posse
como se encontra naquele instante; ele püblica é também, na realidade, mais
e todas as suas forgas, das quais fazem forte e irrevogåvel, sem ser mais legiti-
parte os bens que possui. O_quecnäo ma, pelos menos para os estrangeiros.
significa que, por esse ato, a pos e Tal coisa se då porque o Estado,
mude de natureza ao mudar de mäo e perante seus membros, é senhor de
se torne propriedade nas do sobera- todos os seus bens pelo contrato social,
no 78, mas sim que, como as forgas da contrato esse que, no Estado, serve de
base a todos os direitos, mas näo é se-
77 "Real": "das coisas" ou "sobre as coisas", nhor daqueles bens perante as outras
como diz a linguagem juridica. É o que agora poténcias senäo pelo direito de pri-
se estudarå depois de examinadas as relagöes
meiro ocupante, que tomou dos parti-
pessoais. Quanto å expressäo "domrmo ,Insi-
nua a sugestäo de um direito de Estado, como culares.
anota Vaughan. No Contrato Social comple- O direito do primeiro ocupante, em-
ta-se a evolugäo do pensamentö de Rousseau bora mais real do que o do mais forte
relativamente ao direito de propriedade. Parte s6 se torna um verdadeiro direito 79 de
de um Claro individualismo que, no segundo
pois de estabelecido o de propriedade.
Discurso, via na preservagäo do patrimönio de
cada um o principal motivo da fundaqäo do Todo o homem tem naturalmente direi-
Estado e, na Economia Politica, ia talvez mais to a quanto lhe for necessårio, mas o
longe. Agora, toda propriedade é submetida ao ato positivo, que o torna proprietårio
Estado, ainda quando apenas para atribuf-la e de qualquer bem, o afasta de tudo
garanti-la aos particulares; fora do estado
mais. Tomada a sua parte, deve a ela
civil, näo hå mais do que a simples posse e,

pois, s6 hå propriedade na sociedade organi- limitar-se, näo gozando mais de direito


zada. Esse socialismo, täo nitidamente carac-
terizado, chegarå ao seu måximo no Projeto de
Constituigäopara a Cdrsega. (N. de L. G. M.) 79 A posse, como o mando, deve legitimar-se
para tornar-se direito. E a fonte do direito sem-
78 V. fim do capftulo precedente. (N. de L. G.
pre é a sangäo coletiya. (N. de L. G. M.)
M.)

Sca
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44
algum comunidade. Eis por que o em nome da coroa de castela,
direito de primeiro täo frågil bastaria para desapossar
habitantes e dai excluir todos os princi-
no estado de natureza, se torna respei-
tåvel para todos os homens civis. Por pes do mund02 corn tal razäo,
esse direito, respeita-se menos o que cerimönias se multiplicariam
pertence a que aquilo que mente e o rei cat61ico näo precisaria

Em geral, säo necessårias as seguin- te, posse de todo o universo, apenas


tes condiqöes para autorizar o direito posteriormente excluindo de Seu
de primeiro ocupante de qualquer pe- rio o que antes possuiam os outros

dago de chäo: primeiro, que esse terre- principes.


no näo esteja ainda habitado por nin-
Concebe-se como as terras dos
guém; segundo, que dele s6 se ocupe a particulares reunidas e contiguas se

porgäo de que se tem necessidade para tornam territ6rio pfiblico e Como o


subsistir; terceiro, que dele se tome direito de soberania, estendendo-se dos
posse näo por uma cerimönia vä, mas stditos ao terreno por eles ocupado, se
torna, ao mesmo tempo, real e pes-
pelo trabalho e pela cultura, finicos si-
nais de propriedade que devem ser colocando os possuidotes
soa182,
respeitados pelos outros, na auséncia numa dependéncia ainda maior e fa-
zendo de suas pr6prias forgas as
de titulos juridicos81
Com efeito, concedendo-se neces- garantias de sua fidelidade. Essa van-
sidade e ao trabalho o direito de pri- tagem näo parece haver Sido muito
meiro ocupante, näo se estarå levan- bem compreendida pelos antigos mo-
do-o o mais longe possive12 Poder-se-å narcas que, intitulando-se simples-
näo estabelecer limites para esse direi- mente rei dos persas, dos citas, dos
to? Bastarå Pör o Pé num terreno macedÖnios, pareciam considerar-se
comum para logo pretender ser o mais chefes dos homens do que senho-
senhor? Bastarå aforqa, capaz de afas- res do pais. Os de hoje chamam-se,
tar dele num momento os outros mais habilmente, reis de Franga, da
homens, para destitui-los do direito de Espanha e da Inglaterra, etc.; dom-
novamente voltar a ele? Como poderå nando assim o territ6rio, sentem-se
um homem ou um povo assenhorear-se bem seguros de ai dominar os habitan
de um territ6rio imenso e privar dele tes.
todo o genero humano, a nao ser por Osingular dessa alienagäo é que a
usurpagäo punivel, por isso que tira do comunidade, aceitando os bens dos
resto dos homens o abrigo e os alimen- particulares, longe de despojå-los, näo
tos que a natureza lhes deu em faz senäo assegurar a posse legitima,
comum? Quando Nuiez
Balboa cambiando a usurpaqäo por um direito
tomou, na costa, posse de todo o mar verdadeiro, e o gozo, pela propriedade.
do Sul e de toda a América meridional, Passando entäo os possuidores a serem
considerados depositårios do benvpü-

80 Comparar com a transformaqäo da liber-


dade, ou seja, dos direitos da pessoa. 82 0
direito real, isto é, sobre os bens, deve
81 Com esta ültima condigäo, o socialismo de reduzir-se aos limites da Liberdade pessoal —
Rousseau chega ao quase-comunismo (toman- justifica-se por constituir elemento de satisfa-
do-se a palavra em sentido lato). A proprie- qäo das necessidades individuais e, de outra
dade dos bens, que jå fora limitada esfera da parte, näo justifica qualquer nexo politico que
subsisténcia, ainda nesse plano restrito deve queira tomå-lo por base, como acontecia no re-
justificar-se pela utilizaqäo real. V. parågrafo gime monårquico-feudal de fundamento patri-
seguinte. (N. de L. G. M.)
monial. (N. de L. G. M.)

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DO CONTRATO SOCIAL 1 45

blico, estando respeitados seus direitos


Terminarei este capitulo e este livro
por todos os membros do Estado e por uma observaqäo que deverå servir
sustentados por todas as suas forgas de base a todo o sistema social: o
contra o estrangeiro, adquirem, por pacto fundamental, em lugar de des-
assim dizer, tudo o que deram por uma truir a igualdade natural, pelo contrå-
cessäo vantajosa ao püblico e mais rio substitui por uma igualdade moral
ainda a eles mesmos83. O
paradoxo e legitima aquilo que a natureza pode-
explica-se facilmente pela distingäo ria trazer de desigualdade fisica entre
entre os direitos de que o soberano e o os homens, que, podendo ser desiguais
proprietårio gozam sobre os mesmos na forga ou no génio, todos se tornam
bens, como se verå mais adiante8 4. iguais por convenqä08 6 e direit08 7.
Pode também acontecer que os ho-
mens comecem a unir-sé antes de pos- 86 Se a liberdade natural, no estado civil,
suir qualquer coisa e que, apossando- transmuta-se em liberdade convencional, é
se depois de um terreno bastante a bem de ver que a desigualdade natural (fisica e
todos, o fruam em comum ou dividam mental) näo pode transformar-se em desigual-
dade social, salvo numa perversäo do contrato,
entre em partes iguais, seja de
si, seja
ou melhor, da organizaqäo da sociedade. V.
acordo com
proporqöes estabelecidas nota de Rousseau sobre os maus governos. (N.
pelo soberano. De qualquer forma que
se realize tal aqyisiqäo, o direito que 87 Sob os maus governos*, essa igualdade é
somente aparente e ilus6ria; serve s6 para
cada particular tem sobre seus pr6-
manter o pobre na sua miséria e o rico na sua
prios bens estå sempre subordinado ao usurpaqäo. Na realidade, as leis säo sempre
direito que a comunidade tem sobre üteis aos que possuem e prejudiciais aos que
todos, sem o que näo teria solidez o nada tém, donde se segue que o estado social
liame social, nem forga verdadeira o s6 é vantajoso aos homens quando todos eles
exercfcio da soberania8 5 tem alguma coisa e nenhum tem demais. (N.
do A.)
* No Emüio torna-se explicito que "maus
83 Ä
semelhanga da passagem da liberdade governos" säo todos os que Rousseau conhe-
natural å convencional. (N. de L. G. M.) cia: "O espfrito universal das leis de todos os
84 No capftulo IV do II livro. (N. de L. G. pafses é de sempre favorecer o forte contra o
M.) fraco, e o que tem contra o que näo tem; tal
8 5 Aplicagäo ao "dominio real" do principio inconveniente é inevitåvel e sem exceqäo". O
geral do contrato: a ninguém é lfcito aceitar o socialismo de Rousseau näo se resume, pois,
pacto e buscar manter-se, por sua pessoa ou ao plano da condiqäo econömica, mas alcanqa
por seus bens, å margem do compromisso a condiqäo social resultante daquela. (N. de L.
total. (N. de L. G. M.)

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LIVRO SEGUNDO

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CAPfrULO I

A soberania é inalienåvel

A primeira e a mais importante nenhuma sociedade poderia existir.


conseqüéncia decorrente dos princi- Ora, somente com base nesse interesse
pios até aqui estabelecidos é que s6 a comum é que a sociedade deve ser
vontade gera188 pode dirigir as forgas governada90.
do Estado de acordo com a finalidade Afirmo, pois, que a soberania91 ,
de sua instituigäo, que é o bem comum, näo sendo senäo o exercfcio da vonta-
porque, se a oposiGäo dos interesses
particulares tornou necessårio o esta-
89 A maior dificuldade na exposiGäo do con-
belecimento das sociedades, foi o acor- ceito de vontade geral estå em demonstrar sua
do desses mesmos interesses que o relaqäo com as vontades particulares: nascida
possibilitou89. O que existe de comum destas, delas independe a vontade geral; prove-
niente de seu acordo båsico, muito raramente,
nesses vårios interesses forma o liame
quase que s6 casualmente, com elas, coincidi-
social e, se näo houvesse um
ponto em rå. Näo dispondo do instrumental vocabular e
que todos os interesses concordassem, expositivo exigido pelo novo elemento que tra-
Zia para a teoria politica, nem por isso Rous-
seau se desvia do sentido original que adotara
88 Aorigem convencional da ordem social e na explicagäo do nexo entre a autoridade e a
polftica, demonstrada no Livro I, repousa Vida em comum. (N. de L. G. M.)
numa nogäo båsica, objeto dos seis primeiros 90 0 objeto da vontade geral é, pois, o inte-
capitulos do Livro II, que é a vontade geral.
resse comum, porém basta que um interesse,
Muitas vezes considerada "mftica", "metafi-
por generalizado que seja, se mostre .menos
sica" e, mesmo, "inextrincåvel", a nogäo näo geral do que o da sociedade inteira, para dei-
passa, contudo, da expressäo te6rica do esfor- xar de ser o interesse comum (v. l. II, c. Ill, e l.
GO praticado por Rousseau para atingir o IV, c. I). Assim, o interesse comum näo é o
essencial duma realidade entrevista na anålise interesse de todos, no sentido de uma con-
da Vida humana.' a realidade coletiva. Hoje, fluéncia dos interesses particulares, mas o inte-
quando sobre o assunto jå possufmos mais am- resse de todos e de cada um enquanto compo-
plas indicagöes, avaliamos o quanto Rousseau nentes. do corpo coletivo e exclusivamente
avanqou na direqäo certa, na medida em que nesta qualidade. Dai o perigo de predominar o
sempre se recusou a reduzir a vontade geral å interesse da maioria, pois, se é sempre possivel
simples concordåncia (numérica, ou de maio- conseguir-se a concordåncia dos interesses pri-
ria; coincidente ou de opiniäo) das vontades vados de um grande nümero, nem por isso
particulares. Para ele, vontade geral s6 era assim se estarå atendendo ao interesse comum.
aquela que traduzisse o que hå de comum em (V. capitulo seguinte.) (N. de L. G. M.)
todas as vontades individuais, ou seja, o subs-
trato coletivo das consciéncias. (N. de L. G.
91 A autoridade do soberano, tal como se
definiu no Livro I. (N. de L. G. M.)
M.)

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de geral, jamais pode alienar:se, e que algo contrårio ao bem do
o soberano, que nada é senäo um ser ja. Se, pois, o povo promete que•dese
simples.

coletivo, s6 pode ser representado por mente obedecer,


ato, perde sua qualidade de povo
si mesmo. O poder pode transmitir-se; desde que hå um senhor, näo hå mais
soberano e, a partir de entäo, destr6i-se
Se näo é, com efeito, impossfvel que o corpo politicos 4
uma vontade particular concorde com Isso näo quer dizer que näo possam
a vontade geral em certo ponto, é pelo
as ordens dos chefes ser consideradas
menos impossfvel que tal acordo se
vontades gerais, desde que o soberano
estabelega duradouro e constante, pois
livre para tanto, näo se oponha9 5
a vontade particular tende pela sua
natureza is predile?öes e a vontade
tal caso, pelo siléncio universal deve-se

geral, å igualdade92. Menor possibili-


presumir o consentimento do povo. O
dade haverå ainda de alcanqar-se uma que se explicarå mais amplamente9 6
garantia desse acordo; ainda quando
devera sempre existir, näo seria um 94 A nogäo de soberania implica, forgosa-
produto da arte, mas do acas093. O mente, poder sem contraste. De outra parte,

soberano pode muito bem dizer: näo se concebe o ente moral, nascido do pacto,
"Quero, neste momento, aquilo que um sem vontade pr6pria. Eis por que um povo näo
pode entregar-se a um senhor sem deixar de ser
tal homem deseja, ou, pelo menos,
povo, soberano e corpo politico. (N. de L. G
aquilo que ele diz desejar". Mas näo M.)
poderå dizer: "O que esse homem qui- 95 Assim chegamos a certas regras pråticas

seramanhä, eu também o quererei" acerca do exercicio do poder: l) pode-se trans-

por ser absurdo submeter-se a vontade mitir o poder, nunca, porém, a vontade geral;
2) qualquer compromisso de submissäo do
a grilhöes futuros e por näo depender
povo, como tal, pöe fim ao estado civil; 3) pre-
de nenhuma vontade o consentir em sume-se que as ordens da autoridade estejam
de acordo com a vontade geral, desde que esta
92 0 impulso natural é egofsta, a Vida em silencie. A observagäo impöe-se quando sabe-
sociedade impöe padröes iguais para todos. mos que este capftulo é tido, por muitos, como
cogitando s6 de problemas "abstratos". Rous-
93 Seguimos, nesta passagem, a correqäo de seau, aqui,comeqa a realizar sua promessa ini-
pontuaqäo proposta por G. Beaulavon sua em cial: dos princfpios fundamentais deriva "re-
ediGäÖ do Contrato c que torna inteligfvel a
gras de administraqäo". (N. de L. G. M.)
frae. (N. da T.)
96 N0Livro 111. (N. de L. G. M.)

CAPfrULO II

A soberania é indivisfvel

A soberania é indivisfvel pela Nossos politicos, porém, näo poden-


mesma razäo por que é inalienåvel, do dividir a soberania em seu princf-
, ou näoo pio, fazem-no em seu objeto. Divi-
é; ou é a do corpo do povo, ou somente dem-na em forga e vontade, em poder
de uma parte. No primeiro caso, essa legislativo epoder executivo, em direi-
vontade declarada é um ato de sobera- tos de impostos,. de justiqa e de guerra,
nia e fazlei; no segundo, näo passa de em administraqäo interior e em poder
uma vontade particular ou de um ato de tratar com o estrangeiro. Algumas
de magistratura, quando muito, de um vezes, confundem todas e,

outras vezes, separam-nas. Fazem do

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DO CONTRATO SOCIAL 11 51

soberano um ser fantåstico e formado


de declarar guerra e o de fazer a paz,
de pegas ajustadas, tal como se for-
que näo o säo, pois cada um desses
massem um homem de inümeros cor- atos näo é uma lei, mas unicamente
pos, dos quais um tivesse os olhos,
uma aplicaqäo da lei, um ato particu-
outro os bragos, outro os pés, e nada lar que determina o cas099 da lei,
mais além disso. Contam que os char- como claramente se verå quando for
latäes do Japäo despedagam uma definida a idéia que se prende å pala-
crianqa aos olhos dos espectadores e vra leil 00
depois, jogando ao ar, um ap6s outro, Examinando-se igualmente as ou-
todos os membros, volta ao chäo a que se incorre
tras divisöes, ver-se-å
crianqa viva e completamente recom- em erro todas as vezes que se cré estar
posta. Mais ou menos assim fazem-se a soberania dividida, pois os direitos,
os passes de mågica de nossos politi- tomados por partes dessa soberania,
cos: depois de desmembrarem o corpo subordinam-se todos a ela, e supöem
social, por uma sorte digna das feiras, sempre vontades supremas, is quais
refinem as pegas, näo se sabe com098 esses direitos s6 däo execuqäo.
Esse erro provém de näo disporem Näo se poderå dizer o quanto essa
de nogöes exatas sobre a autoridade falta de exatidäo langou de obscuri-
soberana e de terem tomado por partes dade nas conclusöes dos autores em
dessa autoridade o que näo passa de matéria de Direito Politico, quando
emanagöes suas. Assim, por exemplo, quiseram julgar os direitos correspon-
tiveram-se por atos de soberania o ato dentes aos reis e aos povos de acordo
com os principios que tinham estabele-
9 7 Para que uma vontade seja geral, nem sem- cido. Todos podem ver nos capftulos
pre é necessårio que seja unånime, mas é preci- Ill e IV do primeiro livro de Gro-
so que todos os votos sejam contados. Qual-
tius101 como esse såbio e seu tradutor
quer exclusäo formal rompe a generalidade*.
Barbeyrac 1 02 confundem-se, embara-
(N. do A.)
* Esta nota é comumente interpretada como gam-se em seus sofismas por medo de
significando a aceitaqäo, por Rousseau, da dizer demais sobre o assunto ou de näo
regra da maioria, como aliås jå admitira
anteriormente, desde que tal regra fosse consa-
grada unanimemente numa primeira conven- 98 Essas criticas, em que pese a opiniäo de
Gäo, o que se explicou no capitulo V do Livro Beaulavon, se dirigem menos contra a "separa-
I.O trecho pode ter, contudo, uma interpre- Gäo dos poderes" de Montesquieu do que ås
taqäo mais larga. Näo hå aqui qualquer refe- acomodatfcias versöes "pråticas" dos te6ricos
réncia å vontade majoritåria, e Rousseau näo politicos do tempo. Rousseau, em principio, då
ignorava, por exemplo, que Locke acreditava ao soberano uma fungäo superior, que é a lei,
da maioria chamar a si todo
ser direito natural mas na pråtica admite a separagäo das funqöes
o poder da comunidade, por "ser necessårio legislativa, executiva e judiciåria. S6 lhe repug-
que o corpo vå para onde o leva a maior na confundir essas deputaqöes, meras "emana-
forga" e por supor que no "consentimento para Göes" com "partes" da soberania. (V. parå-
formar um corpo se incluia o consentimento grafo seguinte.) (N. de L. G. M.)
para ser conduzido pela maioria". (Segundo 99 A aplicaqäo particular; as espécies ou
Ensaio sobre o Governo, c. VIII.) Torna-se lf- ocorréncias a que uma lei bode ser aplicada.

cito concluir que qualquer decisäo coletiva


deve atender ao interesse comum, seja qual for No capftulo VI. (N. de L. G. M.)
o processo de expressäo ou de apuragäo numé- 101 Säo os capftulos relativos ås vårias espé-

rica das opiniöes. É o que faz supor a frase "ou cies de guerra e å "guerra dos süditos contra as
(a vontade geral) é a do corpo do povo, ou poténcias". (N. de L. G. M.)
somente de uma parte", com que se abre o 102 Professor de direito na Universidade de

capftulo. Ademais, a pr6pria idéia de assem- Groningue, Barbeyrac tornou-se célebre como
tradutor de Grotius e Pufendorf. (N. de L. G.
bléia, jå vimos anteriormente, tem valor pura-
mente simb61ico. (N. de L. G. M.)

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dizer 0 bastante Segundo seus pontos deiros princfpios
de vista, fazendo colidir os interesses todas as dificuldades, e teriam

fugiado em Franca, descontente com mente diriam a verdade e cortej


sua påtria e desejando agradar a Lufs somente ao povo. Ora, a
*Ill, a quem seu livro é dedicado, leva fortuna, e 0 Povo näo

todos os seus direitos e para deles ais

revestir os reis, com a melhor arte pos-


sfvel. Também foi essa a inclinagäo de
Um grupo de politicos da
da média convidou Guilherme
chasse
Barbeyrac, que dedicou sua traduGäo ge e Maria, sua mulher e filha de Jaime
ao rei da Jorge I. Mas, infe-
Inglaterra,
Londres sem luta, gen
aterra. Guilherme ocupou
lizmente, a expulsäo de Jaime II, que
103 forgou-o a
ele chama de abdicagäo , Franga. O parlamentoquanto Jaime fugia para a
declarou 0 trono e

manter-se em reserva, a esquivar-se, a


tergiversar, a fim de näo fazer de Gui-
Assim se iniciou a "Gloriosa Revoluqäo';

lherme um
usurpador. Se esses dois (1688-89), que prosseguiu com uma série
reformas constitucionais de
escritores tivessem adotado os verda-

CAPfrULO Ill

Se pode errar a vontade gerall 0 4

Conclui-se do precedente que a von- Jamais corrompe o povo, mas


se
tade geral é sempre certa e tende sem- freqüentemente o enganam e s6 entäo é
pre utilidade påblica; donde näo se que ele parece desejar o que é maul 5
que as deliberaqöes do
segue, contudo, Hå comumente muita diferenqa
povo tenham sempre a mesma exati- entre a vontade de todos e a vontade
däo. Deseja-se sempre o pr6prio bem, gerall 0 Esta se prende somente ao
6.
mas nem sempre se sabe onde ele estå. interesse comum; a outra, ao interesse

104 Aqui se inicia uma exposiGäo sobre a da "mente" comum, mas ainda levantava a
esséncia da vontade geral, que ocuparå dois questäo que agora surge, no titulo de Rous-
capitulos. Tém-se apontado duas fontes inspi- seau, ao perguntar se pode errar a cidade —
radoras dessa teoria: Diderot espinoza. Foi "An civitas peccare possit". Importa, contudo,
Dreyfus-Brisac que, pela primeira vez, aproxi- assinalar que para Diderot os homens säo
mou a nocäo rousseauniana de vontade geral naturalmente levados å Vida em comum, e que
daquela exposta no artigo atribufdo a Diderot, para Spinoza o Estado näo erra porque näo
da Enciclopédia, em que a vontade geral é des- conhece maior poder do que o seu assim se—
crita como sendo "em cada indivfduo um ato tornam patentes a originalidade e as dimensöes
puro do entendimento que raciocina no silén- inéditas do pensamento de Rousseau. (N. de L.
Cio das paixöes" e å qual devera ser confiado o
poder legislativo, por isso que jamais erra. O
105 Extensäo, å vontade geral, do raciocfnio
pr6prio Rousseau remete o leitor a esse artigo
de S6crates acerca da .tendéncia natural dos
sobre Direito Natural, ao desenvolver o seu,
sobre a Economia Politica, na mesma enciclo- homens ao que consideram seu bem, s6 poden-
. "Nin-
pédia. Näo obstante, G. Beaulavon sublinhou do errar, pois, no discernir esse bem
que aqui, como no capitulo II do Manuscrito
guém é mau voluntariamente". (N. de L. G.

de Genebra, a teoria de Diderot näo se repete, M.)


mas é revista e criticada. De sua parte, C. E. 106 No primeiro esb0G0 do Contrato, a
Vaughan acentua a inspiraqäo de Spinoza que, expressäo é decidida: "A vontade geral rara-
no Tratactus Politicus (c. I V), näo s6 cuidava mente é a vontade de todos". (N. de L. G. M.)

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DO CONTRATO SOCIAL 11 53

privado e näo passa de uma soma das em relaqäo a seus membros e particu-
vontades particulares10 7. Quando se lar em relaqäo ao Estado: poder-se-å
retiram, porém, dessas mesmas vonta- entäo dizer näo haver mais tantos
des, os a-mais e os a-menos que nela se votantes quantos säo os homens, mas
destroem mutuamentel 08, resta, como somente tantos quantas säo as associa-
soma das diferenqas 109 a vontade Göes. As
diferengas tornam-se menos
numerosas e däo um resultado menos
geral.
Se, quando o povo suficientemente gerall127E, finalmente, quando uma
informado delibera, näo tivessem os dessas associaqöes for täo grande que
se sobreponha a todas as outras, näo se
cidadäos qualquer comunicaqäo entre
si, do grande nÜmero de pequenas dife-
terå mais como resultado uma soma
rengas sempre a vontade
resultaria das pequenas diferenqas, mas uma
geral e a deliberaqäo seria sempre
diferenqa finica — entäo, näo hå mais
boal 10. Mas quando se estabelecem vontade geral, e a opiniäo que dela se
facqöesl associaqöes parciais a ex-
1 ,
assenhoreia näo passa de uma opiniäo
pensas da grande, a vontade de cada particularl 13.
uma dessas associaqöes torna-se geral para alcangar o ver-
Importa, pois,
dadeiro enunciado da vontade geral,
107 Cf. Emmo (l. II) — "Nos meus Principios que näo haja no Estado sociedade par-
de Direito Politico, ficou demonstrado que Cial e que cada cidadäo s6 opine de
nenhuma vontade particular pode ser ordenada acordo consigo mesmo 11 4. Foi essa a
no sistema social". (N. de L. G. M.)
diz o Marqués
d'Argenson, "tem principios diversos. O acor- t 12Novamente, malgrado os respeitåveis pre-
do de dois interesses particulares se forma por cedentes, impöe-se evitar uma compreensäo
oposiGäo ao de um terceiro." Ele poderia ter "matemåtica" dos termos:
acrescentado que o acordo de todos os interes- rem entre si as opiniöes, tanto mais oportum-
ses se forma por oposigäo ao de cada um. Se dades haverå de emergir o substrato comum, o
näo houvesse interesses diferentes, reconhe- que parece sumamente Improvave quando,
cer-se-ia com dificuldade o interesse comum, pela uniäo em facqöes, as opiniöes encontram
que jamais encontraria obståculos. Tudo anda- apoio mÜtuo nas diferenqas facciosas e näo no
ria por si e a politica deixaria de ser uma arte*. interesse do todo. (N. de L. G. M.)
(N. do A.) 113 Porque a associaqäo supöe o prévio acor-
* Isto é: a organizagäo social funcionaria do de seus associados que se unem, contra as
natural e espontaneamente, dispensando a arte opiniöes divergentes dos demais, exatamente a
politica de revelå-la ås consciéncias. (N. de L. fim de sustentar a opiniäo comum a toda a
associaqäo que, contudo, por näo ser expres-
109 Soma das diferengas: substrato comum ås säo da vontade geral, "näo passa de uma opi-
opiniöes variadas. Totalmente inütil serå atri- niäo particular". (N. de L. G. M.)
buir qualquer sentido "aritmético" a esta 11 4 "Vera cosa V', disse Maquiavel, "che al-
expressäo e a. outras semelhantes, €ncontra- cuni divisioni nuocono alle republiche e alcune
digas em Rousseau, muito embora o fagam giovano: quelle nuocono che sono dalle sette e
bons comentaristas. (N. de L. G. M.) da partigiani accompagnate: quelle giovano
110 Näo se supöe, pois, para que se estabelega che senza sette, senza partigiani, se manten-
a vontade geral, qualquer acordo consciente e gono. Non potendo adunque provedere um
deliberado. Mesmo no concerto tåcito ou näo- fondatore d'uma republica che non siano nimi-
preparado das opiniöes particulares (necessa- cizie in quella, ha de proveder almeno che non
riamente discordantes, posto que correspon- vi siano sette " (Hist. Florent., Liv. VII).* (N.
dendo a impulsos individuais e a interesses do A.)
privados), ela emerge natural e espontanea- * "Em verdade, hå divisöes que prejudicam as
mente, pois que subjaz em todas as conscién- repÜblicas e outras que lhes aproveitam: preju-
cias capacitadas a exprimir-se. (N. de L. G. diciais säo as que suscitam seitas e partidårios,
M.) proveitosas, as que se mantem sem seitas nem
111 Na Reptiblica (l. V), Platäo perguntava: partidårios. Näo podendo, pois, o fundador
"Para um Estado, o maior mal näo é que o duma repüblica impedir que nela existam
dividam? que, de um s6, faqam muitos?" (N. inimizades, impedirå ao menos que haja sei-
tas." (N. de L. G. M,)

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ROUSSEAU
do grande geral sempre se esclareqa e näo se

haja sociedades par- gane o povo.


finica e sublime instituiGäo 11 s Se, de qualquer forma, surgirem partidos
é preciso multiplicar-lhes o né- que sejam entäo bastante numerosos e Sufi'.
e cientemente equilibrados em forga, para desen-
mero a firn de i mpedir-lhes a volver-se o jogo das suas vontades seme.
Ihanga dos indivfduos. (N. de L. G. M.)
dade, como o fizeram
11 s. Tais
. precauqöes säo as fini-
cas convenientes para que a vontade
CAPfrULO IV

Dos limites do poder soberano

Näo sendo o Estado ou a cidade seus bens e da pr6pria liberdade

mais que uma pessoa mpral, cuja Vida


consiste na uniäo de seus membros,e
convém-sel
s6 aquela parte de tudo isso cujo

0 mais importante de seus cuidados interessa cornunidade120. É

é o de sua pr6pria conservaGäo, torna- 118 Se Rousseau, na nota a este parågrafo


se-lhe necessåria uma forga universal e
pedia ao leitor que näo se apressasse em acu-
compulsiva para mover e dispor cada
så-lo de contradiGäo, näo terå Sido atendido,
parte da maneira mais conveniente a
pois o trecho realmente dificil de ser
todos. Assim como a natureza då a
compreendido —
passou a atrair todas as cri-
cada homem poder absoluto sobre ticas. Georges Beaulavon foi o primeiro a pro-

todos os seus membros, o pacto social por-se a defender as "contradiqöes" do parå-


grafo e de todo o capftulo, näo negando sua
då ao corpo politico um poder abso-
existéncia mas recusando-se a considerå-las
luto sobre todos os seus, e é esse
prejudiciais ao fundo do pensamento de Rous-
mesmo poder que, dirigido pela vonta- seau. De fato, depois de assentarmos que os
de geral, ganha, como jå disse, o nome
de soberanial 1 6 totalmente å sua liberdade natural, como
Mas, além da pessoa påblica, temos agora admitir que ainda lhes restem parcelas
de considerar as pessoas particulares de direitos naturais margem de seu compro-
que a compöem, e cuja Vida e liberdade
misso? Em
verdade, Rousseau näo abandonou
a idéia da renüncia total do individuo, que é a
naturalmente independem dela. Trata-
regra legal, mas apenas admite que o corpo so-
se, pois, de distinguir os direitos Cial näo se interesse pela totalidade do que lhe
respectivos dos cidadäos e do sobera- é entregue e, pois, deixe margem para aqöes de
nol 1 7, que os primeiros
e os deveres interesse puramente individual. É
o que se verå
devem desempenhar na qualidade de a seguir, como
adverte o "esperai" da nota de
såditos, do direito natural de que
Rousseau. (N. de L. G. M.)

devem gozar na qualidade de ho-


119 A palavra "convém-se" näo deve ser to-
mensl 1 8 mada como significando uma convenqäo, mas
no sentido vulgar: hå uma comum concor-
Relativamente a quanto, pelo pacto dåncia de opiniäo a tal respeito. Muito prova-
social, cada um aliena de seu poder, de velmente, Rousseau quererå dizer que, neste
ponto, näo hå discordåncia maior entre os te6-
ricos da politica. (N. de L. G. M.)
V. VI e VII do Livro (N. de L.
t 17
1.
120 A interpretagäo de Beaulavon encontra
aqui sua melhor confirmagäo e Vaughan acres-
Leitores .atentos, pep
que näo vos apres-
seis em acusar-me, neste ponto, de
€0. Näo a pude evitar nos termos, devido å poderå sustentar mais adiante a Liberdade inte-

pobreza da lingua, mas esperai. (N. do A.)


lectual e religiosa do individuo em face do

Estado. (N. de L. G. M)

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DO CONTRATO SOCIAL 11
convir, também, em que s6 0 soberano 55
pode julgar dessa importåncial 2 1
por si mesmo, e, conseqüentemente, da
Todos os serviqos que um cidadäo natureza do homem12 4.
pode prestar ao Estado, ele os deve que a vontade geral, para ser verdadei-

ramente geral, deve sé-lo tanto no obje-


porém, de sua parte, näo podel 22 one- to quanto na esséncia; a prova de que
rar os süditos com qualquer pena inütil essa vontade deve partir de todos para
aplicar-se a todos, e de que perde sua
jå-lo,pois, sob a lei da razäo, näo explicaqäo natural quando tende a
menos do que sob a da natureza, nada algum objetivo individual e determi-
nado, porque entäo, julgando aquilo
Os compromissos que nos ligam ao que nos é estranho, näo temos qual-
corpo social s6 säo obrigat6rios por quer principio verdadeiro de eqüidade
para guiar-nosl 2 5
serem måtuos, e tal é sua natureza,
que, ao cumpri-los, näo se pode traba- Com efeito, desde que se trata de um
fato ou de um direito particular sobre
Ihar por outrem sem também trabalhar
algo que näo esteja regulamentado por
para si mesmo. Por que é •sempre certa
convenqäo geral e anterior, a questäo
a vontade geral e por que desejam se torna contenciosa12 6. ,

todos constantemente a felicidade de


cesso em que os particulares interes-
cada um, senäo por näo haver ninguém
sados representam uma das partes e o
que näo se aproprie da expressäo cada
påblico a outra, mas no qual näo vejo
um e näo pense em si mesmo ao votar
nem que lei observar, nem que juiz
por todos? eis a prova de que a
deva pronunciar-se. Seria ridiculo que-
igualdade de direitol 23 e a nogäo de
rer, nesse caso, recorrer-se a uma deci-
justiga, por aquela determinada, deri- säo expressa da vontade geral que mais
vam da preferéncia que cada um tem näo pode representar do que a conclu-
säo de uma das partes12 7 e, conse-

121Agora, chegamos å ligaqäo entre a regra


da alienagäo total e a "contradiqao estudäda 124 Em outras palavras: no consenso da von-
nas notas 1 18 e 120: o soberano pode, de direi- tade geral, cada qual deve pensar em si, pen-
to, tomar tudo de que o individuo se despoja, sando nos demais, e pensar nos demais, pen-
mas, de fato, näo o faz, mesmo porque apode- sando em si. O
egofsmo natural transforma-se
rar-se do que näo lhe interessa seria i16gico e no senso de justiqa do homem socializado. (N.
até imoral (cf. Beaulavon). Näo obstante, per-
manece como ünico juiz de seu pr6prio inte- 12 5 No artigo que teria suscitado este capf-
resse e, pois, das porgöes que tomarå para si tulo do Contrato Social, Diderot supusera que
ou deixarå aos så4itos. (N. de L
G. M.) a vontade geral era algo inerente naturalmente
122 Em verdade, pela sua forga, pode; näo aos homens e, pois, que cada individuo podia
pode, porém, pela ilogicidade e, portanto, pela conhecer por seus pr6prios meios, racioci-
imoralidade de um ato sem causa e que serå, nando "no siléncio das paixöes". Rousseau,
conseqüentemente, contra "a lei da razäo" pelo contrårio, s6 a concebe fundada numa

Nesse raciocfnio hå evidente repercussäo de transformaqäo social do homem e exprimin-

Locke —
"É erröneo supor que o poder supre- do-se pelo consenso coletivo, razäo por que s6
pode atender aos interesses comuns em ques-
mo ou legislativo do Estado possa fazer o que
quiser e dispor dos bens dos süditos duma
töes gerais.Em tudo que for particular, perde
maneira arbitråria." (Governo Civil, c. IX) — sua pr6pria razäo de ser. (N. de L. G. M.)

e de Montesquieu —
"A lei näo é puro ato de 12 6 No sentido juridico de "contencioso ad-
ministrativo", iSto é, respeitante a questöes
poder. As coisas por sua natureza indiferentes
entre a administraqäo påblica e os particula-
näo säo de sua algada." (Do Espfrito das Leis,
res. (N. de L. G. M.)
l.XIX, c. XIV.) (N. de L. G. M.)
12 7 Isto é: interesse püblico, que serå sempre
123 Isto é: todos terem direitos iguais. (N. de
o da vontade geral. (N. de L. G. M.)

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qüentemente, näo passa, para a outra todos nas mesmas condigöes e

Igualmente, devido å natureza do'


cular, nessa do åmesmo
induzida
ocasiäo Assim, injus- pacto, todo o ato de soberania, isto
mod'o que uma vontade particular näo todo o ato auténtico da vontade
pode representar a geral, esta, obriga ou favorece
por sua vez, muda de natureza ao ter cidadäos, de modo
que 0
objeto particular e näo pode, como conhece unicamente o corpo da
geral, pronunciar-se nem sobre um e näo distingue nenhum
homem, nem sobre um fato. Quando, compöem. Que serå, pois , propria-
128 mente, um ato de soberania? Näo é
por exemplo, o povo de Atenas
nomeava ou destituia seus chefes, con- uma convenqäo entre o superior e o

cedia honrarias a um, impugha penasa inferior, mas uma cony_engäo do

outro e, por måltiplos decretos espe-


ciais, indistintamente exercia todos os vengao legitima por ter como base o

atos do governo, 0 povo näo tinha contrato socia1131


mais vontade geral propriamente dita, comum a todos, ütil por näo poder ter

näo agia mais como soberano, mas outro objetivo que näo o bem geral, e
como magistrado. Isto parecerå con- s61ida por ter como garantia a forga
p6blica e o poder supremo. Enquanto
trårio ås idéias comuns, mas dai-me
os süditos s6 estiverem submetidos a
tempo para expor as minhas pr6prias

idéias.
Deve-se compreender, nesse sentido, guém, mas somente å pr6pria vontade,
que, menos do que o nåmero de votos, e perguntar até onde se estendem os
aquilo que generaliza a vontade é direitos respectivos do soberano e dos
interesse comum_que os_unel 29, pois cidadäos é perguntar até que ponto
nessa instituiqäo cada um necessaria- estes podem comprometer-se consigo

mente se submete ås condigöes que mesmos, cada um perante todos e


impöe aos outros: admiråvel acordo todos perante cada um.
entre o interesse e a justiga, que då ås Vé-se por af que o poder soberano,
deliberagöes comuns um caråter de por mais absoluto, sagrado e inviolåvel
eqüidade que vimos desaparecer na que seja, näo passa nem pode passar
discussäo de qualquer neg6cio particu- dos limites das convenqöes geraisl 32
lar, pela falta de um interesse comum que todo o homem pode dispor plena-
que una e identifique a regra do juiz å mente do que lhe foi deixado, por essas
da parte. convenqöes, de seus bens e de sua
Por qualquer via que se remonte ao liberdade, de sorte que o soberano ja-
princfpio, chega-se sempre å mesma
conclusäo, a saber: o pacto social esta-
131 V. as "clåusulas" com que se definiu o
belece entre os cidadäos uma tal igual-
contrato no capitulo VI do Livro I. (N. de L.
dadel 30 que eles se comprometem
1 32 0 poder soberano fica, pois, adstrito is
128 0 exemplo jå ocorrera na Economia Poli- convenqöes gerais. Näo se trata, portanto, de
tica. (N. de L. G. M.) limitaqöes impostas por outro poder ou outros
interesses, mas de limites inerentes a seu pr6-
129 V. notas n.0s 88, 89 e 90, supra. É o
mesmo principio geral a que constantemente se prio plano de existéncia, å sua pr6pria esfera
recorre. (N. de L. G. M.) de aqäo, å sua pr6pria natureza essencial. S6
130 S6 hå verdadeira liberdade convencional assim a vontade geral subsistirå como tal. S6
na de direitos e deveres.
perfeita igualdade assim se resguarda a liberdade dos individuos
Rousseau continua referindo-se ao conceito postos a salvo de quaisquer desigualdades nos
fundamental. (N. de L. G. M.) direitos e nas obrigaqöes. (N. de L. G. M.)

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DO CONTRATO SOCIAL 11
o direito de onerar mais aum nuamente protegida e, quando se ex-
•dadäo do que a outro, porque, entäo, pöem para defendé-lo,

particular a questäo, seu senäo retribuir-lhe o que dele recebe-


der näo é mais competente.
ram? Que fazem que näo fariam, mais
POUmavez admitidas tais freqüentemente e com maior perigo, no
ponto é falso que no contrato social estado de natureza, quando, dando-se
haja por parte dos particulares qual-
combates inevitåveis, defendiam, com
verdadeira renåncia, que sua perigo da pr6pria Vida, aquilo que lhes
situaGäo, por efeito desse cohtrato, se serve para conservå-la? É verdade que
torna realmente preferivel que antes todos tém de combater, quando neces-
dele existia, e, vez de uma aliena-
em
Gäo,näo fizeram senäo uma troca van- sårio, pela påtria,mas também nin-
tajosa de um modo de Vida incerto e
guém terå jamais de combater por si
mesmol 3 4. Quanto å nossa seguranga,
precårio por um outro melhor e mais
näo ganhamos ainda em correr uma
seguro, da independéncia natural pela
parte dos riscos que teriamos de correr
liberdade, do poder de prejudicar a ou-
por n6s mesmos se ela nos fosse
trem pela seguranga pr6pria, e de sua subtraida?
forga, que outras podiam dominar, por
um direito que a uniäo social torna
134 "A guerra é por vezes um dever e näo foi
invencivell 33. A pr6pria Vida, que feita para ser uma profissäo. Todo o homem
devotaram ao Estado, é por este conti- deve ser soldado para defender sua liberdade,
nenhum o deve ser para invadir a liberdade de
133 •V. a comparagäo entre o estado natural e outrem, e morrer servindo påtria é tarefa bela
o estado civil, do capftulo VIII do Livro I. (N.
demais para confiar-se a mercenårios." (Emi-
lio, 1.111.) (N. de L. G. M.)

CAPfrULO V

Do direito de Vida e de morte

Pergunta-se como os particulares, sua pröpria Vida para conservå-la. Ja-


näo gozando, de forma alguma, do mais se disse, daquele que se langa por
direito de dispor da pr6pria Vida, uma janela para escapar a um incén-
podem transmitir ao soberano esse dio, que seja culpado de suicidio? Ja-
mesmo direito que näo tém13 5. A mais se atribuiu tal crime136 åquele
questäo parece dificil de resolver que perece numa tempestade cujo peri-
por estarmal enunciada. Todo o gonäo ignorava ao embarcar?
homem dispöe do direito de arriscar O tratado social tem como fim a
conservagäo dos contratantes. Quem
13 Quem proØe a questäo é Locke, no capi- os meios,
tulo IX do Govemo Ciuil, ao afirmar que "o
e tais meios säo inseparåveis de alguns
poder do Estado (... ) näo poderia ser maior
do que aquele que todas essas diferentes pes- riscos e, até, de algumas perdas. Quem
soas tinham no estado de natureza" e que "nin- deseja conservar sua Vida custa dos
guém tem um poder absoluto e arbitrårio sobre outros, também deve då-la por eles
si mesmo ou sobre outrem para tirar-sc a Vida

ou tirå*la a quem quer que seja (... ) s6 che-


gando seu poder até onde as leis da natureza o 13 6 0 suicidio é um
crime perante o direito
permitam para a conservaqäo de sua pessoa e natural, como na Nova Heloisa (Ill parte,
se IQ
a do genero humano"e (N. de L. G. M,) carta 22). (N. de L. G. M.)

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58 Os processos e o julgamento
. 7. Ora, o cidadäo
provas e a declaraqäo de ter ele rompi
as
näo é mais juiz do perigo ao qual a lei

quer que se exponha e, quando o prin-


"É ütil ao Estado que conseqüentemente, membro do Estado'
Ora, como ele se reconhecera tal
Cipe lhe
" diz:
deve morrer, pois foi exata- menos por sua residéncial 40
mente por essa condiGäo que até entäo
viveu em seguranga e que sua Vida näo isolado pelo exflio, como infrator do
pacto, ou pela morte, como inimigo
é mais da natureza,
mera dådiva
påblico. Porque, näo sendo tal inimigo
porém um dom condicional do Esta-

dol 38 homem, entäo o direito da guerra é o


A pena de morte infligida aQS crimi- de matar o vencido.
nosos pode ser considerada, aproxima-
139
damente, do mesmo ponto de vista Mas, dir-se-å, a condenaqäo de um
criminoso é um ato particular. Estou
näo tornar-se vitima de um
é para
assassino que se consente em morrer,
de acordo; além disso, essa condena-
caso se venha a ser assassino. Em tal
$0 näo pertence ao soberano
é um
tratado, longe de dispor da pr6pria direito que ele pode conferir sem poder

Vida, s6 se pensa em garanti-la, e näo ele pr6prio exercer. Todas as minhas

se presume que, por isso, qualquer dos


idéias se entrelaqam, mas näo posso
contratantes premedite fazer-se enfor-
expÖ-las ao mesmo tempo.
Ademais, a freqüéncia dos suplfcios
car.
Ademais, qualquer malfeitor, ata- é sempre um Sinal de fraqueza ou de
cando o direito social, pelos seus cri- preguiqa do göverno. Näo existe ne-
mes torna-se rebelde e traidor da på- nhum mau que näo possa tornar-se
tria, deixa de ser um seu membro ao bom para alguma coisa. S6 se tem o
violar suas leis e até lhe move guerra. direito de matar, mesmo para exemplo,
A conservaqäo do Estado é entäo aquele que näo se pode conservar sem
incompativel com a sua, sendo preciso perigol 42

que um dos dois perega, e, quando se Quanto ao de conceder graqa


direito
faz que um culpado morra, é menos ou de isentar um culpado da pena esta-
como cidadäo do que como inimigo. belecida pela lei e pronunciada pelo
juiz, s6 pertence åquele que esteja
137 Pelo contrato, a Vida de cada um passa a acima do juiz e da lei, isto é, ao sobera-
ser garantida pelo Estado que, pois, pode dis- no; embora neste particular seu direito
por, para tanto, de todas as forgas, inclusive as näo seja muito nftido e muito raros os
vidas que lhe foram entregues. Corresponden-
casos em que pode uså-lo. Num Estado
temente, cada qual estå obrigado a sacrificar-
se, em caso de necessidade, se assim mandar o bem governado, hå poucas punigöes,
soberano num decisäo de ordem geral. (N. de näo porque se concedam muitas gra-
gas, mas por haver poucos criminosos;
138 Todos os direitos, inclusive o direito å
Vida, foram alienados ao Estado e, desde
entäo, deste dependem, nos termos condicio- 1 40 No Livro IV,capftulo II, assentar-se-å que
nais do contrato. (N. de L. G. M.) a residéncia no territ6rio do Estado equivale
tåcita aceitaqäo de suas leis. (N. de L. G. M.)
139 Isto é: baseia-se no consentimento do
1 41 Isto é: retornou å sua simples condiGäo
individuo, como se deu no contrato, e na prote-
individual. (N. de L. G. M.)
Gäo da sociedade. Em verdade, a pena de
1 42 Embora näo a exponha de forma nftida,
morte s6 conheceu o primeiro ataque frontal (e
Rousseau aproxima-se da teoria, mais tarde
esse mesmo, sentimental e demasiado genéri-
co) com Os Delitos e as Penas de Beccaria,
publicado em 1764. (N. de L. G. M.)
pode matar em legitima defesa. (N. de L. G.
M.)

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DO CONTRATO SOCIAL 11
59
o grande nåmero de crimes asseguraa minosos delas näo teräo mais necessi-
sua impunidade quando o Estado defi- dade e todos podem ver aonde isso
leva. Sinto, porém, que meu coraqäo
n ado nem os cÖnsules jamais tentaram murmura e retém minha pena: deixe-
conceder graga, e mesmo o povo näoo mos essas questöes para serem discuti-
fazia, embora por vezes revogasse seu das pelo homem justo que nunca fa-
pr6prio julgamento. As gragas fre-
qüentes anunciam que em breve os cri- lhou e nunca tenha tido, ele pr6prio,
necessidade de graqa.

C.APfrULO VI

Da lei

Pelo pacto social demos existéncia e


Göes humanasl 4 4. Toda a justiqa vgm
Vida ao corpo politico. Trata-se, agora,
de Deus, que é a sua finica fonte; se
de lhe dar, pela legislaqäo, movimento
soubéssemos, porém, recebé-la de täo
e vontade, porque o ato primitivo, pelo
alto, näo teriamos necessidade nem de
qual esse corpo se forma e se une, nada
governo, nem de leis. Hå, sem dåvida,
determina ainda daquilo que deverå
fazer para conservar-sel 43
uma justiqa universal emanada somen-
te da razäo; tal justiga, porém, deve ser
Aquilo que estå bem e consoante å reciproca para ser admitida entre n6s.
ordem, assim o é pela natureza das coi- Considerando-se humanamente as coi-
sas e independentemente das conven- sas, as leis da justiga, dada a falta de
sangäo natural, tornam-se väs para os
1 43 No
Emflio (ao resumir o Contrato Social
homens; s6 fazem o bem do mau e o
que s6 contava publicar mais tarde), Rousseau
afirma, ao falar da lei, que "o assunto é abso- 44 0 caråter vivo e dinåmico da Vida em
lutämente novo; a definiGäo de lei resta por sociedade (v. nota anterior) é aqui oposto ao
fazer". Vé-se, pois, que considerava sua contri- estatismo duma Vida conformada exclusiva-
buiGäo como algo inteiramente original. E, de mente pela ordem natural. Em todo o parå-
fato, o é na medida em que seus antecessores, grafo, Rousseau esforqar-se-å por deixar bem
ao tratar da questäo, ou seguiam o esquema Claro que, qualquer que seja a origem superior
tradicional para Pör em relaqäo a Ici natural e que se atribua (ou melhor: que seus anteces-
a lei positiva, ou, como Montesquieu fizera sores e contemporåneos atribuam) justiqa
pela primeira vez, aceitavam as leis tais como (seja Deus, seja a razäo), esse primeiro princi-
säo para investigar suas relaqöes com certas pio näo basta para escapar å necessidade de
circunståncias geogråficas, ec016gicas e so- firmar convenqöes e estatuir leis que estabe-
ciais. Abandonando qualquer relagäo neces- legam os padröes das relaqöes entre os
såria com a lei —
natural o corpo
pois, se so- homens. Permanece ainda presente algo 'das
Cial é fruto de uma convengäo, suas näo leis criticas a Diderot, do capitulo anterior. De
podem ter outra — Rousseau näo
fonte se fato, näo se pode esperar que, cada um consul-
com saber como säo as leis feitas pelo
satisfaz tando sua consciéncia, sobrevenha a conver-
homem, mas quer sobretudo saber como géncia espontånea de todos: desprovidas de
devem ser, tendo em conta sua origem e sua sangäo natural, as leis (racionais ou divinas)
esséncia. Mais ainda: tendo plena noqäo de da justiqa viriam a ser um peso injustamente
que, ao desenvolver sua teoria do contrato, s6 imposto aos que as obedecessem, porquanto
vira a sociedadeem sua organizaqäo e estrutu- näo seriam obedecidas por todos. Impöe-se
ra, deseja agora examinar-lhe o dinamismo: restabelecer, mais uma vez, a igualdade de
além da "existéncia e Vida" do corpo social, é direitos e deveres e isso s6 se conseguirå pela
preciso conhecer seu "movimento e vontade". sangäo coletiva, isto é, de todos a todos. (N. de

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do justo, pois este as observa com guais. Segue-se que a

todos, sem que ninguém as observe


com ele. Säo, pois, necessårias conven- outrai 4
Mas, quando todo 0 Povo estatui
Göes e para unrr os direitos aos
leis algo para todo o povo, s6 considera
deveres, e con unr a justiga a seu
No estado de natureza, no simesmo e, caso se estabeleqa entäo
qual tudo écomum, nada devo aqueles uma relagäo, serå entre todo o
a quem nada prometi; reconhep sob um
certo ponto de vista e tod
objeto sob um outro ponto de vistal
como de outrem aquilo que me é inåtil. sem qualquer divisäo do todo. Entäo
Isso näo acontece no estado divil, no
matéria sobre a qual se estatui é geral
qual todos os direitos säd fixados pela
ato dou o nome de lei.
Lei.
Mas que serå, finalmente, uma lei? Quando digo que o objeto das leis é
Enquanto se contentarem em ligar a
sempre geral, por isso entendo que a
essa palavra somente idéias metafisi-
1 45, a raciocinar
continuar-se-å as agöes como abstratas, e jamais um
sem compreender, e, quando
fazer-se homem como um individuo ou uma
se disser o que é uma lei da natureza,
agäo paticularl 49. Desse modo, a Lei
näo se saberå melhor o que é uma lei

do Estado. 1 4 7 0 simile geométrico aqui empregado por


Jå disse näo haver vontade geral Rousseau, aliås como todas as comparaqöes
146. Com de ordem matemåtica que se encontram no
visando objeto particular
Contrato Social, tem suscitado a resisténcia
objeto particular encontra-
efeito, esse
dos comentaristas, que o qualificam de obscu-
se dentro ou fora do Estado. Se estå
ro. Ora, a analogia é meramente superficial,
fora do Estado, uma vontade que lhe é
estranha näo é geral em relagäo a ele. aqui figura duas hip6teses nitidamente confi-
Se estå no Estado, faz parte dele: for- guradas acerca dos efeitos das decisöes do
ma-se entäo, entre o todo e a parte, corpo politico quando delibera sobre algo de
particular: a) se o objeto estå fora da algada do
uma relagäo que produz dois seres
Estado em questäo, näo pode ser do interesse
separados, sendo a parte um
deles, e o
de nenhum dos membros do corpo politico e,
todo,menos essa parte, o outro. Mas o pois, näo haverå vontade geral; b) se, no inte-
todo menos uma parte näo é o todo e, rior do Estado, o objeto é particular, na melhor
enquanto subsistir essa relagäo, näo hip6tese interessarå a alguns membros do

existe o todo, senäo duas partes desi- corpo e, pois, transformar-se-å no motivo de
uma relagäo entre os interessados e os näo-in-
teressados, com o que, novamente, näo haverå
Nessa ironia se tem enxergado uma cri- vontade geral. Comprova-se o principio: näo
tica a Montesquieu que, na parte inicial do Do hå vontade geral visando objeto particular. (N.
Espirito das Leis,esmiugava os vårios sentidos
da palavra "lei" e as rela$es entre a lei civil e 1 48 Osaois pontos de vista säo o ponto de
a lei natural. Näo obstante, Rousseau näo s6 vista dos membros do soberano, ao estatufrem
o valor excepcional
reconheceu explicitamente
a lei, e o ponto de vista dos sÜditos, que a
de Montesquieu, mas ainda buscou marcar a
obedeceräo, tendo-se presente que membros do
diferenga de suas posi?öes. Seriam, pois, infi-
soberano e såditos säo os mesmos individuos
teis quaisquer referéncias irönicas ao Do Espi- que constituem o corpo politico. (N. de L. G.
rito das Leis, sobretudo quando "metafisica"
era quase a totalidade das teorias entäo em
curso sobre a lei. (N. de L. G. M.) 49 Que näo hå direito "ad hominem", ou
V. IV deste mesmo Livro. (N. de
mente determinada pessoa, é principio que se
integrou no direito püblico moderno. Rousseau

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DO CONTRATO SOCIAL 11
61
podérå muito bem estatuir que haverå
privilégios, mas ela näo poderå conce- näo passam de registros de nossas
vontadesl 63
dé-los nominalmente a ninguém: a Lei
pode estabelecer diversas classes de Vé-se ainda que, reunindo a Lei a
universalidade da vontade e a do obje-
cidadäos, especificar até as qualidades
to, aquilo que um homem, quem quer
que daräo direito a essas classes, mas
seja, ordena por sua conta, näo é mais
näo poderå nomear este ou aquele para
uma lei: o que ordena, mesmo o sobe-
serem admitidos nelas; pode estabe-
rano, sobre um objeto particular näo é
lecer um governo real e uma sucessäo uma lei, mas um decreto, näo é ato de
hereditåria, mas näo pode elegey um soberania, mas de magistratural 5 4.
rei ou nomear uma familia real. Em Chamo pois #gepüblica-todo o Esq
suma, qualquer fungäo relativa a um tado regido por leis, sob qualquer
dbjeto individual näo pertence, de orma¯de administragäo que possa
modo algum, ao poder legislativol 50. conhecer, pois s6 nesse caso governa o
interesse püblico e a coisa püblical
Baseando-se nessa idéia, vé-se logo
que näo se deve mais perguntar a quem passa a ser qualquer coisa. Todo o
cabe fazer as leis, pois säo atos da von- governo legftimo é republicanol 5 6.
Explicarei logo adiante o que é gover-
tade geral, nem .se o principel 51 estå no.
acima das leis, visto que é membro do As leis näo säo, propriamente, mais
Estado; ou se a Lei poderå ser injusta, do que as condigöes da associagäo
pois ninguém é injusto consigo civil. O povo, submetido is leis, deve
mesmol 52, ou como se pode ser livre e sero seu autor. S6 åqueles que se asso-
estar sujeito is leis, desde que estas ciam cabe regulamentar as condi?öes
da sociedade. Mas, como as regula-
formula com rigor teorético o que Locke entre-
vira em
termos pråtico-empfricos: "Os regula- 1 53 "E-se livre quando submetido ås leis,
mentos seräo os mesmos para o rico e para o porém näo quando se obedece a um homem,
pobre, para o favorito e para o cortesäo, para o porque nesse Ültimo caso obedeqo å vontade
burgués e para o trabalhador". (Governo Civil, de outrem, enquanto obedecendo å lei näo obe-
c. X.) Jå Burlamaqui, na esteira de sua escola, deco senäo vontade püblica que tanto é
acreditava que o legislador, se pode derrogar
toda a lei, melhor ainda poderia suspender
minha como de quem quer que seja" dizia—
Rousseau no manuscrito de Neuchåtel. (N. de
seus efeitos para tal ou qual pessoa. (Pringi-
pios de Direito Natural, t. I, c. X.) (N. de L. G. Cf. Platäo (Leis l. IV): "Se aos magis-
trados chamei de•servidores da lei, näo foi por
5 Ao executivo, na agäo governamental, desejar mudar o sentido habitual dos termos,
toca aplicar aos casos particulares e is pessoas mas por estar persuadido de que a salvagäo do
a regra geral da lei. Esta, por sua pr6pria natu- Estado depende principalmente disso, enq
reza, obriga o legislativo a manter-se em plano quanto o contrårio fatalmente trarå sua ruina".
bem diverso. (N. de L. G. M.)
1 51 0 governo, näa importando sua forma ou 1 5 No sentido etim016gico da palavra "repå-
composi$äo. (N. de L. G. M.) blica". (N. de L. G. M.)
| 52 Claro que esta expressäo näo é rigorosa- 1 s 6 Por essa palavra näo entendo somente
mente baseada na realidade concreta, pois um uma aristocracia ou uma democracia, mas em
homem pode ser injusto consigo mesmo. Mas, geral todo governo dirigido pela vontade geral,
em tal.gaso, o seria por erro ou paixäo vol- — que é a lei. Para ser legitimo, näo é preciso que
tamos sempre å regra socråtica do "ninguém é o governo se confunda com o soberano, mas
mau €oluntariamente" (v. nota 105, supra), que seja seu ministro. Entäo, a pr6pria monar-
agora compreendida na forma reflexiva. (N. de quia é rep6blica. Isso serå esclarecido no Livro
yeguinte. (N. do A.)

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ROUSSEAU
rejeitam; o påblico quer o bem
do, uma O discerne. Todos

suas vontades? Quem obrigar a conformar


lhe darå a previsäo necessåria para e ao outro, ensinar a Conhecer o
constituir e publicar antecipadamente quef. Entäo, das luzes püblicas
os atos relativos a tais vontades? ou a uniäo do entendimento e da
como as manifestaria em caso de no corpo social, daf 0 perfeito

urgéncia? Como uma multidäo cega,


que freqüentemente näo sabe 0 que de-
seja porque raramente sabe 0 que lhe sidade de um Legislador.
convém, cumpriria por si mesma em-
presa täo grande e täo dificil quanto 1 s 7 Uma das interpreta$es mais simplistas
um sistema de legislagäo? povo, por O (porém näo pouco encontradiqa) do pensa-
si,quer sempre o bem, mas por si nem mento de Rousseau deseja fazé-lo um defensor
sempre o encontra. vontade geraléA da infalibilidade da vontade geral. De
sempre certa, mas o julgamento quea lente simplificagäo decorreu uma
orienta nem sempre é esclarecidol 5 7. fonte de decisöes perfeitas. Ora, se Rousseau
É preciso faze-la ver os objetos tais exaltou a vontade geral, foi para deixar bem
Claro que na sua auséncia näo hå lei, nem
como säo; algumas vezes tais como
governo legftimo. Näo obstante, sua simples
eles devem parecer-lhe, mostrar-lhe o
caminho certo que procura, defendé-la presenga näo constitui garantia absoluta,

da seduGäo das vontades particulares, geral pode errar. É o que fica Claramente
aproximar a seus olhos os lugares e os expresso nesse trecho, base, aliås, da teoria do
"Legislador'@ que a seguir se exporå. (N. de L.
tempos, Pör em balango a tentaGäo das
vantagens presentes e sensfveis com o G. MJ
1 $8 Ou seja: do Legislador. (V. nota anterior.)
perigo dos males distantes e ocultos.
Os particulares discernem o bem que (N. de L. G. MI)

CAPfrULO VII

Do Legislador
dente de n6s e, contudo, quisesse dedi-
Para descobrir as melhores regras
car-se a n6s. gue, finalmente. alme-
de socieade que convenham ås nagöes, jando uma gloria distante, pudesse
precisar-se-ia de uma inteligéncia supe- trabalhar num século. e frui-la em
rior 1 59, que visse todas as paixöes dos
homens e näo participasse de nenhuma para dar leis aos homens.
delas, que näo tivesse nenhuma relagäo
com a nossa natureza e a eonhecesse a 1 60 Um povo s6 se torna célebre quando sua
fundo; cuja felicidade fosse indepen- legislagäo comega a declinar. Ignora-se por
quantos séculos a instituigäo de Licurgo deter-
minou a felicidade dos espartanos antes que se
falasse deles no.rest0'da Grécia. (N. do A.)
1 59 Näo se trata de alguém supetdotado
1 61 Temos anotado como, na iinguagem de
intelectualmente, como se vé pelo restante do
Rousseau, as referéneias divindade sempre
parågrafo. As qualidades excepcionais que
significam o caråter supra-humano do fenö-
meno coletivo. Mais uma vez, tal é o sentido: o
peito ao conteådo e intengäo de suas inicia-
Legislador é aquele, entre os homens, que mais
tivasdo que a suas capacidades naturais, em-
bora essas näo possam ser subestimadas. (N. Clara consciéncia tem dos problemas comuns.

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LIVRO TERCEIRO

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Antes de falardas vårias formas de Governo, procuremos firmar o sentido preci-

CAPfrULO I

Do governo em geral

Advirto ao leitor que este capftulo


o ato, e a outra fisica, que é o poder
deve ser lido pausadamente e que näo
que a executa. Quando me dirijo a um
conheqo a arte de ser Claro para quem
objeto, é preciso, que eu
primeiro,
näo quer ser atent02 1 7
queira ir até ele e, em segundo lugar,
Toda agäo livre tem duas causas que que meus pés me levem até lå. Queira
concorrem em sua produgäo: uma um paralftico correr e näo o queira um
moral, que é a vontade que determina homem ågil, ambos ficaräo no mesmo
lugar. O corpo politico tem os mesmos
2 7 Este capftulo incitava em Rousseau, que m6veis. Distinguem-se nele a forga e a
provavelmente o conservou das primeiras vontade, esta sob o nome de poder
notas para as Instituigöes Politicas, uma curio- legislativo e aquela, de poder executi-
sa contradiGäo sentimental. Por um lado, pare- v021 8. Nada hele se faz, nem se deve
ce julgå-lo excelente, sobretudo pela explana-
fazer,sem o Seu concurso.
Gäo pseudomatemåtica nele contida, pois näo
hesita em
reproduzi-la, quase integralmente,
Vimos que o poder legislativo per-
no resumo do Contrato que incluiu no Emüio,
em flagrante contraste com o restante dessa 218 Serå åtil voltar ao segundo capitulo do
resenha sintética. De outra parte, näo lhe esca- Livro II, onde se condena vigorosamente a
pa o caråter demasiado abstrato, e também confusäo entre "partes" e "emanaqöes" da
precårio, desse processo expositivo, daf decor- soberania, tendo-se em vista, explicitamente,

rendo o pedido de atengäo especial feito ao lei- os "atos particulares" que muitas vezes se
tor.Halbwachs näo teme aproximar esse ape- tomam, por erro, como "atos de soberania".
gamento ao texto dificil e åquele incidente S6 assim se compreenderå que, empregando
amoroso, acontecido em Veneza e ao cabo do duas expressöes também utilizadas por Mon-
tesquieu, como sejam poder legislativo e poder
qual Rousseau ouviu a famosa frase ir6nica:
executivo (cf. Do Espfrito das Leis, l. XI, c.
"Lascia le donne Zanetto, ed studia la mathe-
VI), Rousseau considere o executivo como
matica". A aproximagäo, embora carega de
mera fungäo do Estado, enquanto o legislativo
base objetiva, é assaz sugestiva, sobretudo ten-
é sua pr6pria esséncia, ao passo que Montes-
do-se em conta, segundo as Confissöes, que, quieu coloca a ambos em perfeito Pé de igual-
ainda em Veneza, Rousseau comeqou a con-
dade, como "poderes" componentes do todo
vencer-se da importåncia dos estudos politicos.
estatal. (N. de L. G. M.)

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os såditos e o soberano

vo e näo pode pertencer mütua correspondéncia, encarregado


senäo a ele. Fåcil é ver, pelo contrårio,
baseando-se nos princfpios acima esta- da liberdade, tanto civil como politica.
219, que o poder executivo Os membros desse corpo chamam
magistrados2 2 2 ou reis223
näo pode pertencer generalidade , isto
como• legisladora ou soberana, porque governantes, e o corpo em Seu todo re.'

esse poder s6 consiste em atos particu- cebe o nome de principe224


lares que näo säo absolutamente da al- Tern
muita razäo aqueles que pretendem
da Lei, nem conseqüentemente da näo ser um contrato, em absoluto
do soberano, cujos atos todos s6

podem ser leis2


chefes22 5. Istonäo passa, de modo
Necessita, pois, a forga påblica de
algum, de uma comissäo, de um
um agente pr6prio que a reina e ponha
em aGäo segundo as diretrizes da von-
222Maquiavel jå aludira a "urn magistrado
tade geral, que sirva comunicafäo composto de dez cidadäos" nas Décadas, mas
entre o Estado e o soberano, que de

qua quer modo determme na essoa ral que Rousseau agora estabelece. (N. de L.
püblica o que no homem faz a uniäo
223 Sem divida o termo francés roi, como o
entre a alma e o corp02 portugués rei, deriva do rex latino, que, por Seu
no Estado, a razäo do Governo, con-
turno, sai de regere, que é governar, dirigir. A
fundida erroneamente com o soberano, formagäo da palavra justifica, pois, o sentido
do qual näo é senäo o ministro. que lhe då Rousseau, porém empregå-la no
plural, ao tempo em que escrevia, representava
Que serå, pois, o Governo? É um
uma impertinéncia e um reforw da quase-pro-
corpo intermediårio estabelecido entre vocagäo iniciada com o termo magistrados.
Rei, na linguagem e no pensamento de entäo,

219 Estabelecidos no Livro II, principalmente


era sempre um e ünico. Rousseau, contudo,
no capftulo IV, onde se cuida da Lei. (N. de L. percebe que admitir, sequer em teoria, a plura-
Iidade da fungäo e da pessoa real era a melhor
forma de, em definitivo, distingui-la do sobera-
220 Torna-se aqui explicita a oposi$äo ao
conceito de Montesquieu sobre o executivoe
no. Com isso, oferecia å Revolugäo um dos
seus mais vigorosos temas, como se verå a se-
(V. nota 218, supra.) (N. de L. G. M.)
guir (nota 226). (N. de L. G. M.)
O paralelo com a ontologia, que vem dos 224 É assim que em Veneza se då ao colégio o
parågrafos anteriores, encontra fundamento nome de seren(ssimo principe, mesmo quando
em Descartes, para quem hå no homem trés o doge näo assiste a ele*. (N. do A.)
princfpios: "umao dos
a alma, o corpo e a * Maquiavel, no Principe, cuidava de um
embora mais pressentida
dois primeiros, que, chefe de Estado e näo de governos coletivos,
do que compreendida, é a ünica maneira de por isso mesmo dando muito do livro ao estu-
explicar-se por que a alma —
que é pensa- do da psicologia individual do governante. A
mento — e o corpo — que é extensäo
Rousseau toca a primazia de empregar o
tram em interagäo. Ao Governo, na polftica,
termo em acepgäo de corpo comp6sito. (N. de
reserva-se papel equivalente ao da "unlao
para tragar um nexo entre soberano e Estado.
22 Reabre-se aqui a polémica com os jusna-
5
Como nessas palavras estäo implfcitas as
turalistas.Destes, o que fora mais longe,
expressöes "vontade geral" e "vontades parti-
Pufendorf, precisara subdividir a figura con-
culares", que, embora se refiram å mesma enti-
tratual em tres atos sucessivos para distinguir
dade humana, säo, em concreto, freqüente-
o contrato que constitui o corpo social do con-
mente opostas, percebe-se mais uma vez o
trato de governo, pois, embora percebendo a
poder de antecipagäo de Rousseau, que indica,
grosseira confusäo de seus antecessores, näo
embora sem extremo rigor objetivo, dois
os o social e o individual — do
desejava deles
Rousseau s6 0 primeiro
apartar-se totalmente.
contrato, o
Para
social,
mesmo homem. (N. de L. G. M.)
existe. (V. nota seguinte.) (N. de L. G. M.)

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DO CONTRATO SOCIAL 111
81
ernprego 22 6, do
funcionårios qual, como
nosoberano, exercem
simples em d0229
todo, ou do soberano com o Esta-

0 poder de que ele os fez relagäo por aquela entre os extrémos

retomar quando lhe aprou- média proporcional é 0 Gesovemloi. O


sendo incompatfvel com a
7. Governo recebe do soberano as ordens
natureza do corpo social, a alienagäo que då ao povo e, para que 0 E'stId0
de um tal direito é contråria ao obje- permaneqa em born equilibrio, é preci-
Chamo, pois, de Governo ou admi- so que, tudo compensado, haja igual-
nistraGäo suprema o exercfcio legftimo
dade entre 0 produto ou 0 Poder do
do poder executivo, e de principe ou Governo, tornado em si mesmo, e 0
magistrado o homem ou o corpo produto ou a poténcia dos cidadäos,
que de um lado säo soberanos e de
É no Governo que se encontram as
forgas intermediårias, cujas relaqöes Alem disso, jamais se poderia alte-

compöem a relagäo do todo com o rar qualquer dos trés termos sem rom-
per, de pronto, a proporgäo. Se o sobe-
rano quer governar ou se o magistrado
226 É o tema prediieto da Revoluqäo no quer fazer leis ou, ainda, se os s6ditos
momento inicial, quando, admitindo ainda a
recusam-se a obedecer, a desordem
permanéncia do monarca, pöe nas mäos do
povo toda a soberania: o rei serå um funcio-
toma o lugar da regra, a forga e a von-
nårio do Estado, como propöem os projetos tade näo agem mais de acordo e o
constitucionais. Perante a Assembléia, em Estado, em dissoluqäo, cai assim no
despotismo ou na anarquia. Enfim,
o representante da nagäo. O rei é
xato dizer-se como näo hå senäo uma média propor-
o empregado(em francés: commis), o delegado cional para cada relagäo, näo hå mais
da nagäo para executar as vontades nacio-
que um bom governo possfvel para
nais". E, diante da agitagäo do plenårio, conti-
nuou: "Se a alguém afligiram minhas express
cada Estad0232. Como porém, inüme-
söes, retrato-me. Por empregado s6 quis
significaro emprégo supremo, a tarefa sublime
230 "Uma proporgäo continua, expressäo

de executar a vontade geral". Com tais pala-


hojeem desuso, é uma proporgäo na qual um
mesmo termo é o numerador da segunda fra-
vras, Robespierre simplesmente repetia este
Gäo e o denominador da primeira, como
trecho de Rousseau. (N. de L. G. M.)
227 Porque os governantes säo meros funcio- Se chamamos de S o soberano, isto é, o
nårios, enquanto quem os contrata é o sobera- povo enquanto exerce o poder legislativo, Eo
no. (N. de L. G. M.) Estado, istoé, o povo enquanto obedece lei, e

228 A f6rmula surge mais clara e precisa no Go Governo, isto é, o corpo de magistrados
Emflio: "O corpo inteiro (de governantes), encarregados do poder executivo, pode-se esta-
considerado nos homens que o compöem, cha- belecer a seguinte proporgäo continua:
ma-se principe, e, considerado em sua agäo, Essa, aliås, näo passa de uma
chama-se governo". (N. de L. G. M.) maneira aproximativa de exprimir a seguinte
229 A partir desta frase, inicia-se ajå referida proporgäo, bem diferente de uma proporgäo
exposiGäo pseudomatemåtica, ou melhor, o matemåtica: a poténcia que o soberano confere
paralelo com expressöes aritméticas que, täo ao Governo deve ser igual å poténcia que o
caras a Rousseau,em nada ajudam a esclare- Governo aplica na administraqäo do Estado."
por vezes alcanqando o resul-
cer suas idéias, (G. Beaulavon.) (N. de L. G. M.)
tado oposto. O mais paciente e cuidadoso 231 .Com efeito, da proporgäo supra pode-se
comentarista desta passagem espinhosa é deduzir: G2 = S X E. Poténcia é tomada no
sentido matemåtico." (G. Beaulavon) (N. de L.
Georges Beaulavon, cujas notas passamos a
exemplo, aliås, do que fizeram,
reproduzir, a
232 "Na proporgäo supra, o valor de G é
com meras variaqöes vocabulares, Maurice
efetivamente determinado pelos valores de S e
Halbwachs .e Frangois Bouchardy, entre os
melhores glosadores do Contrato. (N. de L. G. de E, e deve variar proporcionalmente a estes."
M.) (G. Beaulavon.) (N. de L. G. M.)

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ROUSSEAU
82
ros acontecimentos podem mudar as mais o Estado aumenta
a liberdade23 6
relaqöes de um povo, näo s6 diversos , mais d'

governos podem ser bons para diferen- Quando digo que a Irnin

tes povos, mas também para o mesmo ta, quero afirmar que se

Pretendendo dar uma idéia das vå- a na dos


rias relaGöes que podem reinar entre tanto menor o serå na

exemplo o nåmero do POV023 , p segundo a quantidade consider ,

uma relaGäo mais fåcil de exprimir2 3 4 quociente23 7 , mede-se

Suponhamos que o Estado se com- e, na outra acepqäo


considerada segundo a identidade
ponha de dez mil cidadäos. O sobe- estimada pela semelhanqa238
rano näo pode ser considerado senäo Ora, quanto menos se
coletivamente e como um corpo; cada nem239 as vontades
relacio
particular, porém, na qualidade de sü- particulares corn a
vontade geral, isto é, os costumes corn
dito, é considerado como indivfduo;
as tanto mais deverå a
leis, forqa
assim, o soberano estå para o sådito
repressora aumentar. Conclui-se
como dez mil estäo para um, isto é,
que o Governo, para ser bom, deve
cada membro do Estado tem por sua a
relativamente mais forte na medida em
décima milésima parte da autoridade
soberana, conquanto esteja inteira- 23 6 " uando a populaqäo aumenta, o valor

mente submetido a ele23 5. Seja o povo pr6prio de cada südito näo muda (E l), mas

composto de cem mil homens, e näo a poténcia total do soberano aumenta na pro.
porgäo do nÜmero de seus membros (S
muda a situagäo dos såditos, supor-
10 000; S 100 000, etc.). Logo, a importåncia
tando cada um igualmente todo o relativa do südito em relaqäo ao soberano
império das enquanto seu sufrå-
leis, diminui•em proporgäo inversa. Ele estå subme-
gio, reduzido a um centésimo de milé- tido a uma autoridade tanto mais forte quanto

simo, tem dez vezes menos influéncia


o Estado for mais numeroso e, conseqüente-
mente, é tanto menos livre." (G. Beaulavon.)
na redagäo delas. O südito permane-
cendo sempre um, a relaqäo com o
237 No original: exposant, termo que no sécu-
soberano aumenta em razäo do nÜme- 10 XVIII servia aos matemåticos de lingua

ro de cidadäos. Conclui-se que, quanto francesa para significar o quociente da divisäo


do numerador pelo denominador. (N. de L. G.

233 Em Le nombre du peuple, isto é,


francés: M.)
o nümero de componentes da p61is, dos mem- 238 "Rousseau aqui distingue duas acepqöes,

bros do soberano. (N. de L. G. M.) efetivamente contrårias, da palavra relacäo: l)


234 "Note-se que a palavra relagäo, que nesta no sentido preciso dos geÖmetras, significa a
passagem surge quase em todas as linhas, cada relagäo de duas quantidades das quais uma é
vez é tomada em acepqäo diferente e, com 12
dividida pela outra (exemplo•---r), sendo a
freqüéncia, vaga. Assim, o mimero de um povo
relagäo expressa, em valor absoluto, pelo quo-
näo é uma relagäo. Rousseau quer dizer que
ciente; 2) no sentido vulgar e corrente, diz-se
estudarå as relaqöes dos trés termos, S, F, e G,
s6 tendo em conta o nÜmero dos cidadäos."
que duas coisas tém relagäo, quando se asse-
(G. Beaulavon.) (N. de L. G. M.) melham. Ora, quanto mais diferentes forem os
235 dois termos duma relaqäo, tanto maior serå o
Com efeito, é por um ato coletivo que os
quociente que mede tal relaqäo. Hå, pois, desa-
cidadäos, enquanto membros do soberano,
cordo entre a linguagem comum e a linguagem
fazem as leis, porém essas leis aplicam-se a
matemåtica." (G. Beaulavon.) (N. de L. G. M.)
cada um deles tomado individualmente en-
quantQ membro do Estado. Pode-se, pois, 239 Agora, a relaqäo é tomada no sentido vul-
escrever: gar, para significar a maior ou menor seme-
exemplo." (G. Beaula-
von) (N. de L. G. M.) Ihanga entre a vontade geral e as particulares.

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DO CONTRATO SOCIAL 111
o povo for mais numeros02 40
por outro lado, o crescimento do Es-
que
oferecendo aos depositårios da sessem que, para encontrar essa média
autoridade
tado p6blica mais tentaqÖes e
Governo, bastaria, segundo 0 que afir-
mo, extrair a raiz quadrada do nümero
deve ter o Governo para conter o
forga
pov0 e ponderia, entäo, que näo tomo aqui
de sua parte, para conter o Gover- esse nümero senäo como exemplo; que
no, Näo me refiro aqui a uma forga as relaqöes de que falo näo se medem
absoluta, mas å forga relativa das vå-
unicamente pelo nümero de homens,
mas em geral pela quantidade de agäo
Segue-se, dessa dupla relagäo, que a que se combina por mültiplas causas;
proporGäo continua entre o soberano, que, de resto, se, para exprimir-me por
meio de palavras, tomo de empréstimo
mente uma idéia arbitråria, mas uma termos å geometria, näo ignoro, no
conseqüéncia necessåria da natureza entanto, näo ter nenhum cabimento a
precisäo geométrica nas quantidades
um dos extremos, a saber, o povo,
enquanto sådito, sendo fixo e represen- O
Governo é em ponto pequeno o
tado pela unidade, todas as vezes que que o corpo politico, que o encerra, é
aumentar ou diminuir a razäo dupla, em ponto grande. É uma pessoa moral
dotada de certas faculdades, ativa
tambérp a rgzäp simples aumgptgré og
diminuirå, modificando-se, conseqüen-
eomq o sqberano, passiva como o
Estado, e que pode ser decomposta em
temente, o termo médi02 42. Isso mos-
tranäo haver uma constituiGäo de outras relaqöes semelhantes, donde,
por conseqüéncia, nasce uma propor-
Governo finica e absoluta, mas que
Gäo nova e desta, uma outra ainda, de
podem existir tantos Governos diferen-
tes quantos Estados dife-
pela natureza
242 Nota de G. Beaulavon: "A razäo ou rela-
rentes pelo tamanho.
Gäo dupla é a que resulta da multiplicagäo de
Se, pondo o sistema no ridfculo, dis-
duas relagöes iguais, cada uma das quais se
chama relagäo ou razäo simples". (Aritmética
de Bezout, citada por Brunel, na Revista de
240 Dir-se-ia que, segundo certos dados da Hist6ria Literåria da Franqa, julho de 1904.)
moderna, o crescimento quantita-
sociologia Portanto, dado que-o- = , sendo E = l,
tivo duma sociedade acarreta maior generali-
SG
zaqäo de valores, idéias e håbitos de Vida. multiplicando temos-c—. Logo, a populagäo de
Rousseau, contudo, interessa-se pela tendéncia um Estado basta para determinar a forma de
das grandes sociedades a consentir na forma- seu governo;. (N. de L. G. M.)
Gäo de grupos internos, isto é, a complicar sua 243 "Efetivamente, fazendo-se S = IOOOOe
estrutura, como dizem os soci610gos. Näo s6 0 E = l, G= (G. Beaula-
fato é verdadeiro, como ainda interessa direta- von.) Importa acrescentar que, neste passo,
mente ao problema central da politica de Rousseau comeqa a dar-se conta do ponto a
Rousseau, que busca a melhor maneira de pre- que poderia levå-lo o paralelo matemåtico e
venir ou, pelo menos, mitigar a desigualdade. reage a esse hipotético mas provåvel ridiculo,
opondo-se a qualquer exagero. (N. de L. G.

241 Ou
melhor: å relacäo das forgas internas, M.)
2 44 Todo esse parågrafo, que poderå resultar
pois do jogo entre o poder do soberano, Estado
e Governo depende o dominio do Governo duma segunda revisäo da primitiva explanagäo
pseudomatemåtica, praticamente a anula no
sobre os süditos, e o do soberano sobre o
que tem de abstrata e de pretensamente exata.
Governo. Essa relacäo näo é arbitråria, mas
decorre da natureza social, como se afirma no
O Rousseau moralista reassume seus direitos.
parågrafo seguinte. (N. de L. G. M.)

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ROUSSEAU
84 245
acordo com a ordem dos tribunais dominante do Principe s6 é

até que se alcance um termo médio


ser, a vontade geral ou a'

indivisfvel, isto é, um ünico chefe ou forga näo é senäo a püblican


magistrado supremo, que pode ser concentrada: desde que
representado, no centro dessa progres- de si mesmo qualquer ato
säo, como a unidade entre a série das independente, comeqa a e
ligaqäo do todo. Enfim, se
fraeöes e a dos nåmeros2
Sem nos embaragarmos nessa multi- tivesse o prfncipe uma vontade p
2 4 7, contentemo- lar mais ativa do que a
plicaGäo de termos do sober}llocu;
nos em considerar oGoverno como para obedecer a essa vontade particu'
um novo corpo no Estado, distinto do lar, se utilizasse da forqa Püblica

povo e do soberano, e intermediårio que dispöe, de modo que se teriam


assim dizer, dois soberanos 'Por
entre um e outro.
Hå uma diferenga essencial entre direito e outro de fato, i mediatamente
esses dois corpos: o Estado existe por a uniäo social desapareceria e dissol.

si mesmo e o Governo s6 existe pelo ver-se-ia o corpo polftic02 48

soberano. Desse modo, a vontade No entanto, para que o corpo do

Governo tenha uma existéncia, uma


245 "0
corpo de magistrados decompöe-se,
Vida real que o distinga do corpo do
com em um grande nümero de grupos
efeito,
ou de tribunais subordinados uns aos outros, Estado; para que todos os Seus mem-
cada um deles recebendo do alto uma determi- bros possam agir concertadamente e
nada porgäo de poder que aplica abaixo. O possa ele atender ao fim para o qual é
mesmo simbolismo matemåtico poderia, pois, institufdo, é-lhe necessårio um eu parti-
aplicar-se a essas relaqöes milti las e comple-
cular, uma sensibilidade comum a Seus
xas, podendo-se escrever:-ÜT ,
membros, uma forga, uma vontade
de L. G. M.)
etc." (G. Beaulavon.) (N.
pr6pria que busque a sua conservagäo.
246 "Se considerarmos o poder executivo
como concentrado num ånico magistrado Essa existéncia particular supöe as-

supremo, G = l, teremos, em lugar das rela- sembléias, conselhos, um poder de

— as relaqoes
Göes seriam iguais se o povo
Z.-e
I

nao
Essas rela-
tivesse senäo
deliberar e de resolver, direitos,

privilégios pertencendo exclusivamente


tftulos,

um cidadäo, pois entäo seria S ao prfncipe e que tornam a condigäo


conseqüentemente, E = l. Mas, å medida que
do magistrado mais digna na propor-
aumenta o nåmero de cidadäos e, por isso,
cresce a poténciado principe, cada s6dito 2 48 Como jå sabfamos do artigo sobre aEco•
toma poténcia do prfncipe uma fragäo tanto nomia Politica, embora o governo venha a for-
menor. Num Estado de dois cidadäos, mar um corpo distinto e, pois, dotado de von-
exprimiria a relagäo numérica entre soberano e tade (particular) pr6pria, nele deve dominar
sempre a vontade geral, sob pena de, näo
pnncrpe
' , e ——-a relaqäo entre prfncipe e sidi-

sabendo os såditos quando é legftimo (vontade


tos. Se S assume sucessivamente os valores 3,
geral) e ilegftimo (vontade particular) o mando
10 000, etc., teremos governamental, anular-se, por impraticåvel, o
, etc. As duas relaqöes de nossa primitiva pro- pr6prio contrato social. (Esse raciocfnio conti-
porgäo afastam-se, pois, mais e mais uma da nua no parågrafo seguinte.) Além do sentido

outra, como a série dos nÜmeros inteiros e a genérico, a afirmagäo tem ainda implicaqöes
série dos nÜmeros fracionårios, enqanto o prin- imediatas e concretas, pois o governo dos
Cipe permanece igual å unidade." (G. Beaula- monarcas do século XVIII caracterizava-se
von.) (N. de L. G. M.) exatamente por uma total
confusäo da vontade
247 Pela segunda vez, Rousseau abandona o e interesses particulares da pessoa real com os
paralelo aritmético, voltando a uma linguagem objetivos e o exercfcio do poder do Estado. A
simples e direta para exprimir suas afirmagöes Revolugäo, enquanto fiel ås suas fontes doutri•
sobre o mecanismo do Governo no complexo nårias, lutou por estabelecer um Estado total-
social. (N. de L. G. M.)
mente impessoal. (N. de L. G. M.)

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que é mais penosa. As dificul- 85

rapidez, gozar, por assim dizer, de uma


muente,

nada altere a constituiqäo do objetivo de sua instituiqäo, poderå


no ern fortalecer a sua, e que dis-
sempre sua forga particular, des- dele afastar-se mais ou menos, de acor-
pr6pria conservaqäo, da forga do com a maneira pela qual se consti-
tuiu.

consagrada do
De todas essas diferenqas nascem as
sempre pronto a sacrificar o Governo
com o corpo do Estado, segundo as
näo o povo ao Governo.
vo, e
relaqöes acidenta-is e particulares pelas
aoP0.,s embora o corpo artificia12•49
quais esse mesmo Estado é modifi-
do Governo seja a obra de um outro
cado. Freqüentemente, o melhor Go-
corpo artificial e,de certo modo, näo verno em si mesmo pode tornar-se o
possua senäo uma Vida emprestada e
mais vicioso, se suas relaqöes näo
subordinada, tal näo impede que possa
forem alteradas segundo os defeitos do
agir com maior ou menor vigor ou corpo politico ao qual pertence.

249 "artificial

a palavra surge para é, meios bastantes para comunicar-se e convi-
qualificar tanto o corpo do Governo quanto o ver com seus semelhantes. Entre tais meios,
pr6prio corpo social. Impöe-se, contudo, lem- inclui-se o contrato social, que é a tomada de
brar que com Rousseau näo quer
esse adjetivo consciéncia de sua condiGäo social e politica,
significar simplesmente o que é fruto do artifi- e, também, a consciéncia da necessidade e
cio, da atividade gratuita. do homem. Em seu limites do corpo governamental, elemento fun-
vocabulårio, "natural" identifica-se com a cional que servirå de intermediårio pråtico
natureza primåria, psicofisi016gica fundamen- entre as vontades particulares e a vontade
tal, do indivfduo humano guiado pelos seus geral. Näo se trata, pois, de entidades opostas
impulsos instintivos e suas necessidades båsi- å natureza a elas "sobrejuntadas" (como
cas. Em conseqüéncia, o "artificial", como o equivocadamente julgou Durkheim), mas de
"civil" e o "policiado", säo termos ligados decorréncias naturais (na acepgäo moderna do
esfera de desenvolvimento social do homem, vocåbulo) da evoluqäo sofrida pelo homem a
que assim adquire uma linguagem, o pleno partir de sua condiGäo primeira e primåria. (N.
desenvolvimento da razäo e uma moral isto —

CAPfrULO II

Do principio que constitui as vårias


formas de governo

de membros2 50. Jå dissemos que a


A fim de expor a causa geral dessas
diferengas, distinguir, neste
2 50 No 61timo parågrafo do capftulo seguinte,
Ponto, entre o prfncipe e o Governo, fica esclarecido que, ao falar dos membros do
Governo, näo se alude aqui a todos os funcio-
como acima o fiz com o Estado e o nårios dos quadros governamentais, mas s6
soberano. aos "magistrados supremos", isto é, åqueles
que podem influir nas decisöes do Governo,
O corpo do magistrado pode com- dispondo, pois, de uma parcela do poder exe-

por-se de um maior ou menor nümero cutivo. (N. de L. G. M.)

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